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Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada INTERSECCIONALIDADE DE RAÇA E GÊNERO Cleverson Oliveira Domingos O conceito de interseccionalidade foi desenvolvido em países anglo-saxônicos a partir da herança do Feminismo Negro, desde o início dos anos de 1990, dentro de um quadro interdisciplinar, por Kimberlé Crenshaw e outras pesquisadoras inglesas, norte-americanas, canadenses e alemãs. Kimberlé Crenshaw é professora de direito, pesquisadora e ativista dos direitos civis, da teoria legal afro-americana e do feminismo negro. Quando Kimberlé Creshaw elaborou esse conceito, sua intenção era, por meio dele: capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. [...] (CRENSHAW, 2002, p. 177) Kimberlé Crenshaw (2002) apresenta o conceito de discriminação interseccional para refletir sobre as experiências de discriminação que enfrentam as mulheres negras, enfatizando que essas mulheres enfrentam preconceitos por serem negras e preconceitos por serem mulheres, revelando as imbricações entre dois sistemas de dominação e exploração: o racismo e o sexismo. Mesmo que sua abordagem foque nas experiências de mulheres negras, a noção de discriminação interseccional permite ser ampliada para todas as pessoas, pois como Crenshaw afirma todas as pessoas tem um gênero e uma raça. Nesse sentido, todas as pessoas têm experiências de interseccionalidade. Para entender a interseccionalidade da discriminação e da desigualdade de raça e gênero, faz importante primeiro compreendermos brevemente esses dois conceitos: raça e gênero. Antes disso, cabe situar que o Movimento Negro e o Movimento Feminista são principais atores políticos que cobram políticas e ações dos poderes públicos e que constroem as propostas educativas para fazer avançar a luta por uma educação voltada para a igualdade racial e de gênero. Desde meados do século passado, o Movimento Negro Brasileiro preocupa-se com o papel desempenhado pela educação na reprodução de estereótipos e preconceitos, buscando instituir mecanismos jurídicos de promoção da igualdade racial. Além disso, o Movimento Feminista também se preocupa com a educação que é oferecida pela escola para meninas e meninos, buscando garantir a promoção dos direitos humanos e da igualdade de gênero. O termo raça, sob o prisma científico-biológico, é inapropriado para aplicação a seres humanos. A despeito de não ter validade científica, a noção de raça integra o senso comum como construção histórico-social, sobretudo nas sociedades nas quais a raça (cor) das pessoas influencia na distribuição das oportunidades e dos lugares sociais. Mesmo sem bases científicas, o uso da categoria raça é empregado para classificar Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada seres humanos e embasa tratamentos sociais diferenciados a partir de seus atributos raciais, o que exige que as políticas de reconhecimento da diversidade cultural, para fins de promover a igualdade, levem em conta a ideia de raça. O conceito de etnia, comumente acompanha o de raça, mas tem um significado diferente. Etnia pode ser compreendida como um conjunto de dados culturais – língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais – mantidos por grupos humanos. Ele baseia- se em atributos culturais compartilhados por membros de determinado agrupamento humano. Os grupos indígenas, os ciganos, a comunidade judaica e a comunidade islâmica, entre outras, podem ser citados como exemplos de grupos étnicos. Raça e etnia, longe de representarem apenas aspectos biológicos ou hereditários que distinguem pessoas ou grupos, são resultados “[...] de um processo relacional – histórico e discursivo – de construção da diferença” (SILVA, 2001, p. 101). A diferença deve ser entendida como uma construção social, cultural e histórica. Ainda sobre a diferença, Guacira Lopes Louro (2010) pontua que a diferença se constitui, sempre, numa relação. Ela deixa de ser compreendida como um dado e passa a ser vista como uma atribuição que é feita a partir de um determinado lugar. Quem é representado como diferente, por outro lado, torna-se indispensável para a definição e para a contínua afirmação da identidade central, já que serve para indicar o que esta identidade não é ou não pode ser. Assumir essa perspectiva teórica supõe, portanto, refletir sobre relações entre sujeitos e grupos, significa analisar conflitos, disputas e jogos de poder historicamente implicados nesses processos. (LOURO, 2010, p. 47-48). Falar de diferença é abordar identidade. Identidade e diferença são conceitos interdependes e relacionais, que evidenciam processos de produção simbólica, cultural e discursiva ligadas aos sistemas de representação e poder (SILVA, 2000). A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam sempre em processos de diferenciação marcados por relações de poder, tais como incluir/excluir, demarcar fronteiras, classificar, normalizar, entre outros. Para Silva (2000, p. 81), “onde existe diferenciação – ou seja, identidade e diferença – aí está presente o poder. A diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e a diferença são produzidas”. Ainda segundo o autor, as identidades não são simplesmente definidas, mas impostas, porque não convivem sem hierarquias, ou seja, são disputadas. Nos processos de disputas pela identidade, existem disputas mais amplas por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. Outra diferença que se constitui socialmente é a de gênero. O conceito de gênero remete a história dos movimentos feministas que o utilizaram para enfatizar o caráter cultural das diferenças entre os sexos e denunciar a opressão e violência contra as mulheres. É importante destacar que “[...] não é negada a biologia, mas enfatizada a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” (LOURO, 1997, p. 22). O gênero remete a compreensão de que as características atribuídas aos homens e as mulheres na realidade são construídas socialmente e que é por meio da educação que se aprende Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada o que é ser homem e o que é ser mulher. A sociedade atribui socialmente funções, papéis e comportamentos diferenciados para homens e mulheres. Essas questões muitas vezes são também carregadas de estereótipos, que relacionam as mulheres à fragilidade, enquanto os homens são considerados mais fortes. Conforme Silva (2007, p. 105-106), O conceito de gênero foi criado precisamente para enfatizar o fato de que as identidades masculina e feminina são histórica e socialmente produzidas. É suficiente observar como sua definição varia de acordo com a história e entre as diferentes sociedades para compreender que elas não têm nada de fixo, de essencial ou de natural. Pensar a questão de gênero na escola é refletir sobre que educação é oferecida para meninas e meninos. A escola ajuda a separar meninas e meninos, oferecendo uma educação diferenciada de acordo com o gênero e ensinando e exigindo comportamentos distintos para ambos, ou ela provoca o debate sobre as relações sociais de gênero, desmistificando verdades sobre como meninas e meninos devem ser? O modo como a educação atual cria meninas e meninos tem reforçado a crença de que as mulheres são inferiores aos homens, de que rosa é cor de menina e azul cor de menino, de que meninas brincam de boneca e meninos brincam de carrinhos. Conforme Perozim (2006, p. 48) afirma que: [...] de acordo com o que é esperado de cada sexo, às meninas caberiao papel de “boazinhas”: mais quietas, organizadas e esforçadas. Deveriam ter cadernos impecáveis e jamais voltarem sujas ou suadas do recreio. Já os meninos poderiam se mostrar mais agitados e indisciplinados. Espera-se que eles gostem de futebol, e é tolerado que tenham o caderno menos organizado e o material incompleto. Qualquer deslize nesses padrões de comportamento seria sinal de alerta de uma inversão do que se espera de uma atitude feminina ou masculina. Guacira Lopes Louro (1997) recoloca o debate de gênero no campo social, por acreditar que é nele que se constroem e se reproduzem as relações desiguais entre homens e mulheres. Portanto, entender gênero como constituinte da identidade dos sujeitos é percebê-lo como parte, com identidades plurais, múltiplas, que não são fixas ou permanentes e que até podem ser contraditórias. Aplicada ao campo da educação, a reflexão sobre as relações de gênero tem revelado que a educação tem convocado meninas e meninos a assumirem suas posições sociais em uma ordem cultural que tem mantido posições sociais de privilégio e poder dos homens ao longo da história, e gerado desigualdades e violências contra as mulheres. Kimberlé Crenshaw ao elaborar o conceito de interseccionalidade na discriminação de raça e gênero argumenta que nosso olhar quando discute a discriminação, muitas vezes, não percebe as sobreposições e relações entre diferentes eixos e sistemas classificatórios. Geralmente, discute-se a discriminação contra a diversidade racial, a discriminação contra as mulheres, entre outros grupos sociais considerados “minoritários”, mas não se percebe que essas discriminações podem combinar quando abordada a partir da singularidade de quem enfrenta essas discriminações. Por Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada exemplo, uma mulher negra pode enfrentar discriminações tanto por ser mulher quanto por ser negra. Na realidade, como afirma Kimberlé, “as experiências das mulheres negras não podem ser enquadradas separadamente nas categorias da discriminação racial ou da discriminação de gênero” (p. 8). É preciso articular essas duas” categorias. A interseccionalidade é uma proposta para levar em conta as múltiplas fontes da identidade. A ideia de interseccionalidade permite abordar as diferenças dentro da diferença, sendo um desafio para as práticas pedagógicas perceber que os sujeitos são constituídos a partir de diversos marcadores sociais da diferença. As categorias raça/etnia, classe, geração, gênero, sexualidade, religião são o que hoje chamamos de “marcadores da diferença”. A noção de marcadores sociais da diferença compreende à articulação dos diferentes pertencimentos sociais de uma pessoa e de como eles produzem lugares diferenciados socialmente. Esses marcadores estabelecem lugares diferenciados para indivíduos diversos, inserindo as diferenças num jogo complexo de hierarquias que, em alguns momentos, podem contribuir para construir enormes desigualdades. Para Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade é uma conceituação para abarcar a articulação entre múltiplos sistemas de subordinação e discriminação. Para demonstrar como ocorre a interseccionalidade da discriminação de raça e gênero, Kimberlé propõe que imaginemos um cruzamento, como numa esquina, em que há diferentes direções – norte-sul, leste- oeste – que cruzam uma com as outras (ver imagem a seguir). A discriminação racial seria uma rua que segue do norte para o sul. E a discriminação de gênero como uma rua que cruza a primeira na direção leste-oeste. Mesmo que sejam discriminações distintas, essas discriminações podem ser cruzar e, como alerta Crenshaw (2002, p. 177), “na verdade, [...] frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam”. Fonte: Kimberle Crenshaw (2004) O exemplo abaixo amplia os eixos de poder, que atravessam o lugar em que mulheres e homens podem estar posicionados, trazendo também as discriminações ligadas à herança do colonialismo. Segundo Ferreira (2014, p. 259), a colonização da América pelos impérios europeus pode ser sintetizada da seguinte maneira: o colonialismo unificou diferentes povos através da criação de um novo conceito – o de raça – que passou a ser um princípio de hierarquização associada à divisão do Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada trabalho capitalista. Essa hierarquização era um dos traços característicos do colonialismo e do eurocentrismo, mas sobreviveu à situação colonial e tornou-se um dos fatores centrais da desigualdade no sistema mundial. A abordagem da interseccionalidade – que implica em reconhecer as intersecções variadas que os diferentes sistemas e ou eixos de desigualdades, mas também entre os marcadores sociais da diferença. A interseccionalidade vai além da ideia de que as diferenças se adicionam de modo a somar ou subtrair vantagens e desvantagens a uma ou outra pessoa. Esta noção questiona, por conseguinte, a ideia de que quanto mais atributos positivados socialmente um indivíduo, mais sucesso este terá, ou, ao contrário, quanto menos deles um indivíduo tiver, mais fadado ao fracasso social (e escolar) será. Kimberlé propõe que possamos visualizar outros sistemas que atravessam, Assim, adotar uma perspectiva interseccional é, ao invés de tentar compreender a realidade a partir de um ou outro isoladamente, tentar pensar como gênero, raça/etnia, sexualidade, geração, classes que se articulam em diferentes contextos produzindo igualdade ou desigualdade. Assim, trata-se menos de se pensar em uma soma ou subtração, mas de entender que uma boa compreensão da problemática das diferenças deve levar em conta como estes marcadores se articulam na produção de diferenciações e impactam os cotidianos das pessoas conforme vivem suas vidas. Ou seja, para além dos marcadores e pertencimentos, é preciso observá-los no modo como aparecem em diferentes contextos. Nessa perspectiva, o conceito de interseccionalidade pode ser entendido como uma ferramenta teórica e metodológica que aponta para interdependência das relações de poder de raça, sexo, classe, entre outras diferenças. Ele permite refletir sobre a inseparabilidade entre sistemas de discriminação, como o racismo e o sexismo, entre outros sistemas de dominação. A sociedade brasileira é marcada por esses sistemas de desigualdades e discriminações. O racismo é a um sistema discriminatório baseado na hierarquia de raças. O classismo baseado na hierarquia de classe e o sexismo baseado na hierarquia de gênero. E essas desigualdades e discriminação não são exclusivamente de cunho econômico, ou seja, relacionada à classe social. Inúmeros movimentos sociais, como os movimentos negros e feministas, sinalizam que os marcadores de raça, etnia e gênero são utilizados cotidianamente para estruturar mecanismos específicos de subordinação, discriminação e desigualdade social. A proposta da interseccionalidade, como afirma Kimberlé Creshaw (2004), “oferece uma oportunidade de fazermos com que todas as nossas políticas e práticas sejam, efetivamente, inclusivas e produtivas”. Equidade Étnico-Racial no Sistema Municipal de Ensino Programa de Formação Continuada REFERÊNCIAS CRENSHAW, Kimberle. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 171-187, 2002. Disponível em: <http://www. scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf>. Acesso em 05 maio 2019. CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004. Disponível em: <http:// www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/ uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf>. Acesso em: 05 maio 2019. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidadee educação: uma perspectiva pós- estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade - o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2010. PEROZIM, Lívia. Masculino e feminino: plural. In: Revista Educação. Ano 10. n. 109. 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. SAIBA MAIS Por que compreender a interseccionalidade? Disponível em: <https://www.geledes.org.br/por- que-compreender-interseccionalidade/>. PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 11(2), 2008. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/ fchf/article/view/5247/4295> HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social. 2014, vol.26, n.1, pp.61-73.
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