Buscar

DirPub_x_DirPriv

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 6 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 6 páginas

Prévia do material em texto

de combate, a afirmação dos direitos subjectivos faz parte de
mi luta viva, ainda eficaz nos nossos dias107. Esta conclusão não é
Ipwlficamente marxista: alguns autores aderem a ela muito simples-
inte ao considerar os direitos subjectivos como uma técnica jurí-
on do nosso tempo108.
Não se trata, pois, de se resignar à maneira de alguns e de dizer:
i direito subjectivo está enraizado no coração do homem ou da
iiuiça com o amor próprio, no sentido de La Rochefoucauld109!».
no há qualquer enraizamento na «fisiologia do homem» (sic) senão
n pura convenção. Tomemos esta classificação pelo que ela é: uma
Hlniestação da técnica jurídica do sistema capitalista moderno que
M I por fim permitir um certo tipo de troca. A classificação traz
'ir.iKo, como vimos, as suas próprias críticas, designadamente, sob
11 "n-mula de «interesse juridicamente protegido» ou de «situação
i i i l iça» — tentativa de objectivar certas relações jurídicas até aqui
inllsadas a partir do sujeito de direito e de que o capitalismo con-
inporâneo se satisfaz melhor, em definitivo. Se não há senão direito l
i|i-d.ivo, como no sistema de Kelsen110, os direitos subjectivos desa-1
iroceram e com eles os homens — é o reino puro das trocas entre
i'.:is, essência última do capitalismo.
Í,2 Direito público — direiro privado
Esta classificação constitui aquilo que os professores de direito
jlontinuam a chamar, com o gosto do arcaísmo que convém, uma
««utnma divisio». Ela é mesmo de tal modo importante que não há
l nunca nas introduções ao direito, ocasião de a pôr verdadeiramente
l ttn causa. Não é que ela não seja objecto de críticas, como veremos
l Riais adiante, mas surge na sua implicidade última como de tal modo
•vidente, de tal modo «natural», que ninguém se aventura a fazer-lhe
lima crítica radical.
A primeira manifestação desta classificação assumirá, para o
• indante de direito, a forma particular da especialização nos estudos
Jurídicos. Contrariamente ao que frequentemente o comum dos mor-
Ntla julga, não se pode hoje ser licenciado em direito, quero dizer,
j lm direito pura e simplesmente: é-se necessariamente licenciado em
• n M i t o público ou em direito privado. E, a partir do terceiro ano l
• In curso, o estudante terá de optar pelo ramo publicista ou peloi
fumo privatista. É sempre um motivo de espanto, para alguém que
j ¥os faça perguntas sobre um problema de arrendamento ou de
ftlfime matrimonial, saber que sois publicistas e que, consequente-
107 E o «contradireito» ao qual se encontram tão fortemente ligados
o R. WEYL, La Part ãu droit, op. (At., pp. 105 e seguintes,
los R, MASPETIOL. «Ambiguité ...», artigo cftado, conclusões.
109 3. CARBONNIER, Droit civil, op. cit.
no Cfr. para a teoria de Kelsen, parte III, cap. 2.
151
mente, não tendes conhecimentos particulares sobre tais qucstf
sobretudo se sois professor de direito; como se pode ser jurista
não conhecer «todo o direito»? É um facto: a ciência jurldli
encontra-se dividida e o ensino universitário consagra essa divls
Não se deve, no entanto, ser iludido por esta primeira experiom
Contrariamente ao que sustentam, por vezes, juristas muito simpliH
a divisão do direito entre direito público e direito privado não
obra dos professores de direito. Seria demasiado fácil se se pudn
assim encontrar uma «explicação» psicológico-histórica para
clivagem. Os professores não fazem mais do que racionalizar e,
certo sentido, perpetuar uma separação que os ultrapassa largament
Na realidade, como vou mostrar, a separação público-privado é objl
tiva na sociedade capitalista: ela fala-nos de organização concreto
real dessa sociedade. Ela não tem, pois, senão uma existência fant
mática ou puramente ideológica: participa não apenas ideologicamiiii
mas também institucionalmente no funcionamento da sociedade bi
guesa. Apesar disto, é com base nessa separação que são dePnlí
ainda hoje os diversos domínios da «ciência jurídica» e que são de
volvidas actualmente as práticas universitárias. Talvez não haja exí
pio mais claro de uma prática social ser assim mascarada de
e passear por científica. Que cada um julgue por si.
A apresentação desta classificação desenrola-se sempre de m
maneira perfeitamente positivista, como se se tratasse de apresent
assim a coisa mais simples do mundo.
«Dividem-se as regras de direito, por um lado, em regras de dirolt
nacional e regras de direito internacional, por outro lado em ror
de direito privado e regras de direito público. (...) Claro que é dif
distinguir com precisão o direito público do direito privado,
menos dá-se uma ideia geral do critério definindo o direito privad
aquele que rege as relações entre particulares, e o direito públlfl
aquele que rege as relações jurídicas em que intervém o Esta
(ou uma outra colectividade pública) e os seus agentes ni». O juril
não julga necessário dizer mais, para além de determinadas precisí
que analisarei mais adiante. Todos os manuais se reencontram ne
estranha simplicidade cuja medida é dada pela seguinte fórmi
«Todo o direito se divide em duas partes: direito público e dir
privado112».
O que é interessante nesta classificação é que não é apenas
classificação prática, nascida das instituições jurídicas que funciona
na nossa sociedade: é uma — talvez a — classificação essencial
«ciência jurídica». Com efeito, é a partir desta summa divisio que
ordenam todos os ramos do direito — quer dizer, tanto os diveri
domínios cobertos pela regra de direito como as diversas disciplii
iu MAZEAUD; Leçons ..., oy. cit., p. 45
112 J. CARBONNIER, Droit civil, op. cit., p. 57. Felizmente nas «U
notas, em letra miudinha, este autor dá, numa súmula interessante, un
atenuação sensível à fórmula categórica que abre o seu capítulo, p. 58
152
«ciência jurídica». Certos autores traduzem bem o fundamento
classificações: «As regras de direito são muito numerosas, o
desenvolvimento encontra-se ligado ao das relações sociais que
de uma complexidade sempre crescente. Esta complexidade acar-
uma especialização (...) e, por conseguinte, a divisão do direito
grandes ramos. Uma tal divisão' facilita a exposição das regras
direito (...). Ao mesmo tempo, responde a uma realidade113,
nxceptuarmos a visão simplista de uma complexidade das relações
ivis que determinaria a das regras de direito, o autor apercebe-se
do duplo alcance da divisão (invertendo, aliás, a ordem das
ias): uma classificação que fale da realidade, uma classificação
facilite o estudo das regras de direito. Apesar disto, um único
nento será finalmente conservado: o da apresentação dos diferen-
ramos da «ciência jurídica», e, «esquecendo» o real, o jurista
ora não ter de responder pela validade da sua classificação. Assim,
tiho de começar por mostrar as incoerências desta classificação
disciplinas, queria sobretudo explicar o não dito respeitante à
desta classificação.
H) A «ciência do direito» apresenta-se sob a forma de uma árvore
WIITI ramos abertos, cujo tronco comum seria constituído pelo «direito
Ranlonal» (por relação e por oposição ao direito internacional). A par-
tir deste tronco, uma multiplicidade de pequenos ramos se desen-
MfOlvem, mas em última análise, todos se ligam a um ou outro dos
dnlH ramos principais: o ramo do direito público ou o ramo do direito
pTlvado.
Como justificação para esta classificação, os autores socorrem-se
>;uns argumentos que se lamenta constatar terem ainda aceitação
Junto daqueles que pretendem fazer obra científica. Já não é sequer
linm roupagem da ideologia mais corrente, é a restituição directa
j |n senso comum a respeito da divisão entre público e privado. Eis
t que se pode ler sob o título «Diferenças entre o direito público e
• direito privado»: «Tradicionalmente ericontrami-se as seguintes dife-
ii'nras: 1.°) Quanto ao fim. O fim do direito público é o de dar
Htlsfação aos interesses colectivos da nação, organizando o governo
llRta e a gestão dos serviços públicos. O fim do direito privado é o
ssegurar ao máximo, a satisfação dos interesses individuais.
li") Quanto ao carácter. Tendo em conta o seu fim,o direito pri-
Vtdo deixará, pelo contrário, uma larga parte à autonomia da von-
|}de, e a maior parte das suas regras não serão imperativas (...).
li") Quanto à sanção. Se as regras de direito privado são desres-
l^ltadas, o particular lesado dirigir-se-á aos tribunais e à força social
pBiu obter justiça. A sanção do direito público é mais difícil de orga-
Blwir, porque aqui o Estado está em causa e não estará inclinado a
lonar-se a ele próprio114».
»» A. WEILL, Droit civil, op. cit., p. 31.
'" A. WEILL, Droit civil, op. cit., pp. 35-36.
153
O argumento aqui repousa sobre um a priori: o da separa
entre o indivíduo e o grupo social; mas esta separação toma o
de uma oposição. As relações privadas opõem-se às relações públ:
na sua finalidade, no seu conteúdo e «portanto» na sua expre
jurídica. No entanto, para que não haja qualquer confusão, precli
bem que a liberdade está do lado do indivíduo, portanto, do din H .
privado, e a coacção do lado do grupo, portanto, do direito púbii. n
Reencontramos aqui a dicotomia simplista que prevalecia antciim
mente a propósito da classificação entre direito objectivo e diroin
subjectivos. Aliás, certos autores pensavam que estas duas classilnn
coes se sobrepunham — vê-se como115. Este maniqueísmo per imi .
muito claramente qualificar peremptoriamente as técnicas jurídicaâl
o imperativo em direito público, o permissivo em direito privai Io
Tudo se passa como se os publicistas não tivessem senão preocupaçQfi
de comando, de ordens, de coacção, e como se, inversamente, a coo n l"
nação, o acordo, o consensualismo fossem as únicas técnicas do
direito privado. À direita, o contrato, à esquerda, a injunção. Não v ; i h >
a pena insistir para mostrar o carácter simplificador e, por conM»
guinte falso, desta separação: não é apenas exagerado, é inexadn
O direito privado conhece numerosas situações de coacção em <ni"
o indivíduo não tem possibilidade de escolha, enquanto que o direi!*.
público está longe de ser unicamente um direito de coacção, sobi
tudo nos seus desenvolvimentos recentes118.
E, no entanto, toda a doutrina sábia continua a desenvolver esto»
temas tão manifestamente erróneos117. O que me interessa, é meno»
fazer a sua crítica, que já está feita118, que mostrar a ligação com
a representação habitual da nossa sociedade. De facto, se, apesar dit
usura do tempo, os manuais continuam a retomar estes argumentos,
é porque eles dão força a uma situação que é certamente mais p n >
funda que as meras necessidades de clareza de exposição de um curso
de introdução ao direito. E, no entanto, as dificuldades são cada
maiores para manter a coerência desta classificação. Com efeito,
excepções são cada vez mais numerosas depois que a fronteira enti
direito público e direito privado foi objecto de lutas e de negociaç
sérias. Podem dar-se alguns exemplos dessas flutuações que os nossc
autores estão aliás prontos a reconhecer, mas tirando daí curic
conclusões, como veremos.
A modificação da fronteira entre o público e o privado é certa-
mente uma das questões mais debatidas, não apenas nas faculdades
i" BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE, Introductton'
générale..., op. cit.
us A crítica minuciosa de um ângulo positivista pode ser encontrada
em C. EISENMANN, Droit public, Droit prive, R. D. P. 1952, pp. 903 e seg«.
117 R. SAVATIER, Droit public et Droit prive, D. 1946, cap. 25; Du
droit civil au droit public, L. G. D. J., Paris, 1950, pelo lado dos priva-
tivistas; pelo lado dos publicistas, algnmas criticas: J. RIVERO, Droit public,
Droit prive, conguête ou statu quo? D. 1947, cap. 69.
"s B. EDELMANN, Lê Droit saisi..., op. cit., pp 115 e seguintes.
iti' direito, mas sobretudo nas práticas políticas, económicas, ideoló-
jlmis da nossa sociedade desde o fim da segunda guerra mundial.
i imos a duas deslocações da fronteira: uma no sentido favorável
'i piiblicização do direito, é o movimento mais aparente; a outra, no
(tpiil.ldo da sua privatização, é o movimento real.
A publicização do direito francês seria, se retomarmos o raciocí-
oxposto mais acima, a submissão cada vez maior de sectores
m i l i ora abandonados pelo Estado ao seu império e a regulamentação
funis estreita das liberdades de todo o género dos cidadãos. Dito de
i H i i r a maneira, tendo o Estado-polícia liberal cedido o lugar ao Estado
Pmvidência, a intervenção estatal fez recuar os limites antigamente
iiiimitidos pelos poderes públicos: o Estado tem doravante uma acção
i '1 ' i iómica (ele nacionaliza e cria estabelecimentos públicos, planifica
M H mo), uma acção social (a escola mas também os serviços sociais,
n procura de uma certa equidade pela segurança social), uma acção
millural, etc.
Ao mesmo tempo, esta intervenção traduz-se necessariamente por
uma extensão do imperativo, do comando, portanto, por uma restrição
das «liberdades». Antigamente, o director da empresa era «livre» nas
imas relações com o operário que empregava, o proprietário era «livre»
nus suas relações com o seu inquilino, e assim por diante... «Vê-se»
quo esta liberdade foi reduzida já que a legislação social veio res-
i i i i i i > l r quer os poderes do proprietário, quer os do patrão. É o fim
do mundo liberal, «em consequência do desenvolvimento das teorias
itn economia dirigida e do socialismo de Estado 119»! Esta perspectiva
i, no entanto, absolutamente falsa: não é porque o direito privado
nu tornou mais imperativo que ele se transformou em direito público.
Nilo houve, realmente, publicização do direito 12°. Vamos mesmo um
piiueo mais longe: quando o Estado, por intermédio do legislador,
diminui a liberdade do patrão, é para dar mais consistência à do
nnpregado. Não diminuiu, pois, por esse facto «a liberdade» no seio
da sociedade. Tomam facilmente a parte pelo todo, os juristas! Assim,
n firmo que o movimento de pretensa publicização do direito é mais
«parente: correspondeu à vaga da economia dirigida depois de 1945,
mns, à medida que a economia capitalista recupera, ele torna-se menos
uctual. O movimento inverso parece-me mais profundo.
Ao pretexto da incapacidade do direito público para ser eficaz
nos domínios económicos e sociais, é o direito privado que se instala
nm numerosos sectores que, no entanto, são governados pelo Estado.
A maleabilidade do direito privado, a sua rapidez são qualidades de
que o Estado não poderia privar-se no momento em que se torna
empresário, banqueiro, comerciante, etc. Esquece-se de dizer que as
empresas nacionalizadas estão, no essencial, submetidas ao direito
119
120
p. 17.
A. WEILL, Droit civil, op. cit., p. 38.
Ê o que demonstra sem esforço Henri MAZEAUD, cap. já citado,
154 155
privado, que os organismos de segurança social são de direito pri-
vado, que as intervenções em matéria de planificação relevam cada
vez mais do direito privado: contratos e sociedades de economia
mista em que a parte do direito público foi reduzida ao mínimo.
E nem sequer os tradicionais serviços públicos deixam de ser atin-
gidos: por exemplo os P.T.T. com o serviço das sociedades privadas
para o telefone—, e que dizer do recurso aos concessionários pri-
vados em matéria de auto-estradas? Este movimento de transborda
mento pelo direito privado não é mais do que a «privatização do
Estado», quer dizer, a sua submissão cada vez maior aos interesses
da classe social que se encontra no topo dele; há muito tempo quo
se falou de desorçamentação e de desplanificação. O processo con
tinua, acelerado actualmente pela política de um Governo que quor
ainda fazer acreditar nas virtudes do liberalismo económico121. Não
se trata, como faz um certo número de autores prudentes, de opor
frontalmente estes dois movimentos (publicização/privatização) consl-
derando-os como equivalentes na sua natureza e nos seus efeitos.
O melhor é render-se à evidência, é, sem o carácter glorioso qua
lhe dá o seu autor, constatar que «o primado do direito privado per-
siste Í2a» e explicar a razão disso.
Esta «discrição» para tentar dar conta dos fenómenos actuais,
reencontrá-la-emos quando, passando do plano geral da classificaçãopara o outro mais particular da ordem das disciplinas na ciência
jurídica, os autores reconhecem as dificuldades sem serem capazes de
as resolver. Limitam-se a indicar que tal disciplina pertence «sob cei
tos aspectos» ao direito privado, «mas, que no entanto», ela tem liga-
ções com o direito público. Isto não é dizer absolutamente nada,
É preciso reconhecer que, para justificar a classificação actual,
os professores de direito têm algumas dificuldades! Com efeito, er»
mais ou menos fácil a partir da summa divisio repartir todas aã
matérias de ensino por uma ou outra das categorias. Mas eis que as
excepções aumentam e que certas dúvidas se podem levantar sobro
a validade da classificação, mesmo num plano pedagógico. Tomemos
alguns exemplos. O direito público é tido como regulador das relações
entre o Estado e as pessoas públicas (colectividades ou estabeleci
mentos) assim como entre o Estado (ou uma pessoa pública) e um
indivíduo. Assim, pode-se, sem dificuldade, arrumar neste grupo a>
seguintes disciplinas: direito constitucional, direito administrativo,
direito das finanças públicas ou direito financeiro. Mas não se arruma
aí senão com reservas o direito penal e o direito judiciário «privado».
São os autores modernos que são desta opinião, mas são os autores
clássicos que têm ainda autoridade! Aliás, nas universidades jurídicas,
121 O plano de relançamento adoptado em Setembro de 1975 é particular-
mente significativo. Técnicas perfeitamente liberais para relançar a econo-
mia, mas em que, querendo fazer funcionar os mecanismos do mercado, M
combatem os efeitos e não as causas.
• 122 H. MAZEAUD, capítulo já citado.
156
4 ninda um privativista que ensina o direito penal e está sempre um
piivativista na cadeira de processo civil123.
Esta força do hábito merece,- apesar de tudo, ser analisada. Com
nfoito, de acordo com a definição do direito público, o direito penal
rege as relações entre a sociedade e o indivíduo, aqui sob o ângulo
< ! < > s delitos e dos crimes; o processo é claramente a matéria em que
MO estudam as regras de acordo com as quais os tribunais — quer
ilr/.cr, um serviço público do Estado — julgam os litígios entre os
Indivíduos.
Então, porque continua a estudar-se o serviço público da justiça
diferentemente dos outros serviços públicos? Porque é que se pensa
que o direito penal está apesar de tudo mais próximo do direito pri-
vndo? A questão vai mais longe do que a simples reivindicação de
M I na «divisão» mais equitativa dos cursos entre os diversos profes-
sores. Na realidade, se quisermos enunciar as razões deste estado de
coisas, podemos talvez penetrar nalguns dos mistérios do ilogismo das
classificações da «ciência jurídica».
Eu tomarei o caso do direito penal como exemplo desta desloca-
çílo na ordem da classificação. Que razões são dadas para esta situação
paradoxal? «Sob certos aspectos, o direito penal tem ligações com o
direito privado: protege os indivíduos na sua vida, na sua honra, na
(tua propriedade, etc., e pode ser considerado como a sanção última
do direito privado (...). Alguns tendem, no entanto, a ligar o direito
penal exclusivamente ao direito público, a pretexto de que a infracção
tf unicamente uma questão entre a sociedade e o delinquente, sendo
o direito penal dominado pela ideia de defesa social. (...) Este ponto
de vista parece demasiado exclusivo: a maior parte dos textos de
direito penal reprime ainda hoje os atentados aos direitos dos par-
ticulares 124». O argumento é sempre o mesmo: «o Homem», como se
o direito público se desinteressasse dos homens... O direito consti-
tucional e o direito administrativo, e num plano mais material, o
direito público financeiro, protegem também a propriedade dos indi-
víduos e, de maneira mais geral, reprimem as violações feitas a esses
direitos. E, mesmo quando coubesse ao juiz penal (considerado como
pertencendo aos tribunais da ordem judiciária, quer dizer, privada)
decidir, isso não significaria, só por si, que o direito que ele aplica
Keja direito privado! É, pois, preciso descobrir porque é que por detrás
da figura do Homem, se esconde o lugar real do direito penal.
Para isso proponho uma interpretação fundada sobre a própria
noção de repressão social. Entre os ramos do direito, o direito penal
é certamente aquele que é abertamente mais repressivo: é o qualifi-
cativo habitual para os juizes que exercem nesse domínio, e a juris-
123 o concurso para professor agregado em direito privado compreende
Kempre oima prova de direito penal e criminologia de que não se encontra
rasto no concurso para professor agregado de direito público.
12* A; WEILiLi, Droit civil, op. cit., p. 36,
157
dição penal é designada por «jurisdição repressiva1"». Ora, o < | i i "
me parece interessante é a maneira pela qual a nossa sociedade ooiV
temporânea tenta, a qualquer preço, mascarar este fenómeno rei n .
sivo. Como M. Foucault mostra de forma luminosa, a repressão p r i m i
que parecia comprazer-se no espectáculo dos seus actos, é hoje intolrn
mente caracterizada pelo fenómeno inverso: o do oculto. Ao contnlrln
de Damiens que é torturado e que é espancado na praça de Gríivt
no fim do século XVIII, ao contrário mesmo da publicidade qui
rodeava ainda a pena da guilhotina no século XIX, a pena torn.i >
agora um total isolamento do condenado, cortado da sociedade '
Seria contentarmo-nos com palavras acreditar numa atenuação desif
regime penal: vale mais interrogarmo-nos sobre a sua forma. O lugaf
do direito penal no direito privado parece-me ser o efeito na «ciência
jurídica» desse processo de camuflagem da repressão. Ao tomar lut?nr
entre as disciplinas do direito privado, o direito penal faz esquectf j
que ele, antes do mais, é essencialmente um direito repressivo. E, p;mi
convencer o auditor disso, dar-lhe-á o argumento da protecção d"
homem. Abre-se, então, todo o campo das conotações de liberdact»,
de vontade, de indivíduo, de direito ligado à pessoa, que são os coro-
lários do direito privado. Eu não digo, como é evidente, que se trai»
de um cálculo habilidoso: ninguém em particular é responsável por
esta classificação. Ela funciona objectivamente, tanto através dói
programas de ensino como através dos do recrutamento dos profe* j
sores de direito. Ela tem, pois uma função social e não apenas pedn
gógica.
b) Desde logo, a classificação direito público-direito privado nau
pode ser tratada apenas como um instrumento cómodo para um fim
didáctico. É preciso saber que a sua existência é significativa, maN
significativa de quê? Tentarei mostrar que se trata, aqui também,
de uma das estruturas do modo de produção capitalista.
A demonstração disso foi brilhantemente feita pelo jurista Pás u
kanis. Basta retomá-la rapidamente127. A sociedade feudal não conhece
fronteiras entre o privado e o público: o senhor é simultaneamente
o proprietário da terra (e portanto, sujeito de direito privado) e a
autoridade no seio da comunidade que vive nas suas terras (portanto,
nisso, autoridade «pública»). Os poderes políticos ou públicos que
detém encontram a sua fonte na propriedade da terra. «Os serviços
do Estado tinham-se patrimonializado, o poder público confundia-se
com o domínio, a propriedade do príncipe: tudo se tinha tornado
direito privado», escreve J. Carbonnier12S. Para dar um exemplo, aã
Vi M - ! de comunicação no feudo são caminhos privados no sentido em
i i feudo é propriedade do senhor, de certo modo; mas, abertas
i iblico, constituem, ao mesmo tempo, vias «públicas». Esta indis-
I •;> que não produziu ainda o binómio público-privado é perfeita-
i 11; coerente no modo de produção feudal. No entanto, vão-se
• • . . • i l u z i r fenómenos que abrem brechas nesta unidade: o desenvolvi-
lo das trocas mercantis vai trazer consigo tanto uma função de
"leeção do senhor (o poder feudal assume o papel de garante da
• i «Ias trocas) como o estabelecimento de lugares fixos em que as
" » a s se desenrolam: as cidades. Ora estas constituem comunidades
i M vão tentar libertar-se da tutela senhorial (cartas de alforria) por-
i ". - i,êm uma vida autónoma. Oom efeito, na ausência de uma patri-
.".malização do poder, este «separa-se» do corpo a que se ajusta.
v .na, surge pela força das coisas uma separação entre o interesse
fieiiivo e os interesses privados. Serão criados os primeiros «servi-
t" públicos» nas cidades, dando desse modo uma forma concreta à
t u » .10 de um poder «público». Em seguida, com a extensão da troca
I1 n - i cantil e a sua transformação numa estrutura capitalista, as for-
ln . r . políticas do Estado não serão mais do que o alargamento ao con-
| m i i o da nação desta característica; correlativamente, o poder feudal
i começar pelo poder feudal do Rei — diminuirá, para não ser
timão simbólico no fim do século XVIII. A revolução de 1789 virá
tornar o direito conforme aos factos, coroando este processo pela ins-
ItUueão do Estado nacional moderno, pura incarnação da esfera
(iHhlica acima da esfera dos interesses privados.
A distinção-oposição entre direito público e direito privado não é,
i H MS, «natural»: não é lógica em si, traduz uma certa racionalidade,
do Estado burguês129. Assim, podem ser postas em funcionamento
• Ideologia e as instituições deste Estado como instância autónoma
"ii formação social130. A classificação não é estritamente e vagamente
• istórica: está ligada à história de uma sociedade que conheceu gra-
• malmente a dominação do modo de produção capitalista. Fica-se,
>!iNÍm, com a ideia de como é grave que tudo isto seja silenciado
i elo professor de introdução ao direito.
Acrescentarei uma palavra sobre uma instituição que, normal-
iinnte, não levanta problemas: a Declaração dos direitos do homem
cio cidadão, de 1789. É a conjunção coordenativa «e» que é aqui a
Minis importante. Faz-se uma distinção entre os direitos do homem
i - os do cidadão. «Qual é este «homem» distinto do cidadão?» A esta
questão que Marx levanta num texto célebre, ele responde: «Não é
«utrem senão o membro da sociedade burguesa131». Por outras pala-
1=5 MAZEAUD, Leçons..., op. cit., p. 153; J. CARBONNIER, Droit civil,
op. cit., p 87; B. STARCK, Droit civil, op. cit., p. 184.
120 M. FOUCAULT, Surveiller et Punir, op. cit., p. 75 e seguintes.
127 E. B. PASUKANIS, Théorie générale du droit..., op. cit., em espe-
cial pp. 90, 124-159, 136 e seguintes.
ia» J. CARBONNIER, Droit civil, op. cit., p. 58.
158
129 A contrario, encontrar-se-iam hoje numerosos casos em que a intro-
i l n i - . - i o do capitalismo nos Estados do terceiro mundo teve de fazer-se acompa-
nhar desta distinção.
ião cfr. as considerações acima feitas no que respeita às teorias do
Htado.
is» K. MARX, La Question jmve, op. cit., p. 37.
159
vras, a separação entre direito público e direito -píívado é extorii
ao indivíduo: ela separa-o em dois elementos distintos e mesni
opostos. O homem como indivíduo burguês privado e o homem con
cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação da distin<,:<
entre direito privado e direito público. Esta divisão entre o homori
egoísta enquanto membro da sociedade civil (no sentido hegelianm
e o homem altruísta, abstraindo da esfera jurídica, encontram> In
perfeitamente descrita e analisada nas obras de Jean-Jacques Roui
seau, designadamente em O Contrato Social. Daí esta dificuldade pai
quem quer que ouça falar da distinção entre direito público e direlt
privado de não a reportar a uma banal experiência pessoal: «Sintu
perfeitamente em mim uma vontade particular e egoísta e uma von
tade moral virada para os outros, quer dizer, para o interesse
todos». Eficácia particularmente conseguida da ideologia que che(|
ao ponto de nos fazer interiorizar as estruturas do Estado e do direi l
capitalistas de tal modo que nós acreditamos encontrarmos as sul
raízes dentro de nós próprios, numa evidente transparência.
Pois é disto mesmo que se trata: é a forma da sociedade eí
que vivemos que produziu esta clivagem entre o público e o privad
e marcou a nossa consciência, e não o inverso!
Que a ideologia corrente veicule esta distinção público-privado,
nada mais lógico numa sociedade capitalista.
Que um ensino da ciência jurídica a retome sem mais, eis o qu
é mais grave. Há bem mais a dizer sob esta distinção e as suas dií
culdades, do que meras questões de classificação pedagógica. Mas
pedagogos não dizem palavra sobre isso!
2.3 Coisas e pessoas
As classificações dos direitos e das coisas arrumam uma matérii
que, sem elas, seria extremamente complexa. Todavia, convém «i
atribuir às classificações um valor absoluto132». Com efeito, não há,
contrariamente ao que se podia crer, uma única classificação, maa
várias, respeitantes às relações das coisas e das pessoas. Segundo o
que cada um considera o objecto do direito, a apreciação eventual
do direito em dinheiro, a própria natureza da coisa objecto do direito,
diferentes categorias jurídicas são estabelecidas. Nesta estrutura com-
plexa dos direitos subjectivos, gostaria apenas de fazer algumas obser-
vações; estas permitirão apreciar a maneira como os juristas preten-
dem, na sua «ciência», justificar a sociedade actual.
Não se põe a questão de retomar, ponto por ponto, cada uma
dessas classificações; convém apenas mostrar como estas esbarram
num certo número de dificuldades que iludem em vez de resolver.
Aí está bem a marca da função ideológica do direito.
132 MAZBAUD, tiegons..., op. cit., pp. 195 e seguintes.
160

Outros materiais