Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
de combate, a afirmação dos direitos subjectivos faz parte de mi luta viva, ainda eficaz nos nossos dias107. Esta conclusão não é Ipwlficamente marxista: alguns autores aderem a ela muito simples- inte ao considerar os direitos subjectivos como uma técnica jurí- on do nosso tempo108. Não se trata, pois, de se resignar à maneira de alguns e de dizer: i direito subjectivo está enraizado no coração do homem ou da iiuiça com o amor próprio, no sentido de La Rochefoucauld109!». no há qualquer enraizamento na «fisiologia do homem» (sic) senão n pura convenção. Tomemos esta classificação pelo que ela é: uma Hlniestação da técnica jurídica do sistema capitalista moderno que M I por fim permitir um certo tipo de troca. A classificação traz 'ir.iKo, como vimos, as suas próprias críticas, designadamente, sob 11 "n-mula de «interesse juridicamente protegido» ou de «situação i i i l iça» — tentativa de objectivar certas relações jurídicas até aqui inllsadas a partir do sujeito de direito e de que o capitalismo con- inporâneo se satisfaz melhor, em definitivo. Se não há senão direito l i|i-d.ivo, como no sistema de Kelsen110, os direitos subjectivos desa-1 iroceram e com eles os homens — é o reino puro das trocas entre i'.:is, essência última do capitalismo. Í,2 Direito público — direiro privado Esta classificação constitui aquilo que os professores de direito jlontinuam a chamar, com o gosto do arcaísmo que convém, uma ««utnma divisio». Ela é mesmo de tal modo importante que não há l nunca nas introduções ao direito, ocasião de a pôr verdadeiramente l ttn causa. Não é que ela não seja objecto de críticas, como veremos l Riais adiante, mas surge na sua implicidade última como de tal modo •vidente, de tal modo «natural», que ninguém se aventura a fazer-lhe lima crítica radical. A primeira manifestação desta classificação assumirá, para o • indante de direito, a forma particular da especialização nos estudos Jurídicos. Contrariamente ao que frequentemente o comum dos mor- Ntla julga, não se pode hoje ser licenciado em direito, quero dizer, j lm direito pura e simplesmente: é-se necessariamente licenciado em • n M i t o público ou em direito privado. E, a partir do terceiro ano l • In curso, o estudante terá de optar pelo ramo publicista ou peloi fumo privatista. É sempre um motivo de espanto, para alguém que j ¥os faça perguntas sobre um problema de arrendamento ou de ftlfime matrimonial, saber que sois publicistas e que, consequente- 107 E o «contradireito» ao qual se encontram tão fortemente ligados o R. WEYL, La Part ãu droit, op. (At., pp. 105 e seguintes, los R, MASPETIOL. «Ambiguité ...», artigo cftado, conclusões. 109 3. CARBONNIER, Droit civil, op. cit. no Cfr. para a teoria de Kelsen, parte III, cap. 2. 151 mente, não tendes conhecimentos particulares sobre tais qucstf sobretudo se sois professor de direito; como se pode ser jurista não conhecer «todo o direito»? É um facto: a ciência jurldli encontra-se dividida e o ensino universitário consagra essa divls Não se deve, no entanto, ser iludido por esta primeira experiom Contrariamente ao que sustentam, por vezes, juristas muito simpliH a divisão do direito entre direito público e direito privado não obra dos professores de direito. Seria demasiado fácil se se pudn assim encontrar uma «explicação» psicológico-histórica para clivagem. Os professores não fazem mais do que racionalizar e, certo sentido, perpetuar uma separação que os ultrapassa largament Na realidade, como vou mostrar, a separação público-privado é objl tiva na sociedade capitalista: ela fala-nos de organização concreto real dessa sociedade. Ela não tem, pois, senão uma existência fant mática ou puramente ideológica: participa não apenas ideologicamiiii mas também institucionalmente no funcionamento da sociedade bi guesa. Apesar disto, é com base nessa separação que são dePnlí ainda hoje os diversos domínios da «ciência jurídica» e que são de volvidas actualmente as práticas universitárias. Talvez não haja exí pio mais claro de uma prática social ser assim mascarada de e passear por científica. Que cada um julgue por si. A apresentação desta classificação desenrola-se sempre de m maneira perfeitamente positivista, como se se tratasse de apresent assim a coisa mais simples do mundo. «Dividem-se as regras de direito, por um lado, em regras de dirolt nacional e regras de direito internacional, por outro lado em ror de direito privado e regras de direito público. (...) Claro que é dif distinguir com precisão o direito público do direito privado, menos dá-se uma ideia geral do critério definindo o direito privad aquele que rege as relações entre particulares, e o direito públlfl aquele que rege as relações jurídicas em que intervém o Esta (ou uma outra colectividade pública) e os seus agentes ni». O juril não julga necessário dizer mais, para além de determinadas precisí que analisarei mais adiante. Todos os manuais se reencontram ne estranha simplicidade cuja medida é dada pela seguinte fórmi «Todo o direito se divide em duas partes: direito público e dir privado112». O que é interessante nesta classificação é que não é apenas classificação prática, nascida das instituições jurídicas que funciona na nossa sociedade: é uma — talvez a — classificação essencial «ciência jurídica». Com efeito, é a partir desta summa divisio que ordenam todos os ramos do direito — quer dizer, tanto os diveri domínios cobertos pela regra de direito como as diversas disciplii iu MAZEAUD; Leçons ..., oy. cit., p. 45 112 J. CARBONNIER, Droit civil, op. cit., p. 57. Felizmente nas «U notas, em letra miudinha, este autor dá, numa súmula interessante, un atenuação sensível à fórmula categórica que abre o seu capítulo, p. 58 152 «ciência jurídica». Certos autores traduzem bem o fundamento classificações: «As regras de direito são muito numerosas, o desenvolvimento encontra-se ligado ao das relações sociais que de uma complexidade sempre crescente. Esta complexidade acar- uma especialização (...) e, por conseguinte, a divisão do direito grandes ramos. Uma tal divisão' facilita a exposição das regras direito (...). Ao mesmo tempo, responde a uma realidade113, nxceptuarmos a visão simplista de uma complexidade das relações ivis que determinaria a das regras de direito, o autor apercebe-se do duplo alcance da divisão (invertendo, aliás, a ordem das ias): uma classificação que fale da realidade, uma classificação facilite o estudo das regras de direito. Apesar disto, um único nento será finalmente conservado: o da apresentação dos diferen- ramos da «ciência jurídica», e, «esquecendo» o real, o jurista ora não ter de responder pela validade da sua classificação. Assim, tiho de começar por mostrar as incoerências desta classificação disciplinas, queria sobretudo explicar o não dito respeitante à desta classificação. H) A «ciência do direito» apresenta-se sob a forma de uma árvore WIITI ramos abertos, cujo tronco comum seria constituído pelo «direito Ranlonal» (por relação e por oposição ao direito internacional). A par- tir deste tronco, uma multiplicidade de pequenos ramos se desen- MfOlvem, mas em última análise, todos se ligam a um ou outro dos dnlH ramos principais: o ramo do direito público ou o ramo do direito pTlvado. Como justificação para esta classificação, os autores socorrem-se >;uns argumentos que se lamenta constatar terem ainda aceitação Junto daqueles que pretendem fazer obra científica. Já não é sequer linm roupagem da ideologia mais corrente, é a restituição directa j |n senso comum a respeito da divisão entre público e privado. Eis t que se pode ler sob o título «Diferenças entre o direito público e • direito privado»: «Tradicionalmente ericontrami-se as seguintes dife- ii'nras: 1.°) Quanto ao fim. O fim do direito público é o de dar Htlsfação aos interesses colectivos da nação, organizando o governo llRta e a gestão dos serviços públicos. O fim do direito privado é o ssegurar ao máximo, a satisfação dos interesses individuais. li") Quanto ao carácter. Tendo em conta o seu fim,o direito pri- Vtdo deixará, pelo contrário, uma larga parte à autonomia da von- |}de, e a maior parte das suas regras não serão imperativas (...). li") Quanto à sanção. Se as regras de direito privado são desres- l^ltadas, o particular lesado dirigir-se-á aos tribunais e à força social pBiu obter justiça. A sanção do direito público é mais difícil de orga- Blwir, porque aqui o Estado está em causa e não estará inclinado a lonar-se a ele próprio114». »» A. WEILL, Droit civil, op. cit., p. 31. '" A. WEILL, Droit civil, op. cit., pp. 35-36. 153 O argumento aqui repousa sobre um a priori: o da separa entre o indivíduo e o grupo social; mas esta separação toma o de uma oposição. As relações privadas opõem-se às relações públ: na sua finalidade, no seu conteúdo e «portanto» na sua expre jurídica. No entanto, para que não haja qualquer confusão, precli bem que a liberdade está do lado do indivíduo, portanto, do din H . privado, e a coacção do lado do grupo, portanto, do direito púbii. n Reencontramos aqui a dicotomia simplista que prevalecia antciim mente a propósito da classificação entre direito objectivo e diroin subjectivos. Aliás, certos autores pensavam que estas duas classilnn coes se sobrepunham — vê-se como115. Este maniqueísmo per imi . muito claramente qualificar peremptoriamente as técnicas jurídicaâl o imperativo em direito público, o permissivo em direito privai Io Tudo se passa como se os publicistas não tivessem senão preocupaçQfi de comando, de ordens, de coacção, e como se, inversamente, a coo n l" nação, o acordo, o consensualismo fossem as únicas técnicas do direito privado. À direita, o contrato, à esquerda, a injunção. Não v ; i h > a pena insistir para mostrar o carácter simplificador e, por conM» guinte falso, desta separação: não é apenas exagerado, é inexadn O direito privado conhece numerosas situações de coacção em <ni" o indivíduo não tem possibilidade de escolha, enquanto que o direi!*. público está longe de ser unicamente um direito de coacção, sobi tudo nos seus desenvolvimentos recentes118. E, no entanto, toda a doutrina sábia continua a desenvolver esto» temas tão manifestamente erróneos117. O que me interessa, é meno» fazer a sua crítica, que já está feita118, que mostrar a ligação com a representação habitual da nossa sociedade. De facto, se, apesar dit usura do tempo, os manuais continuam a retomar estes argumentos, é porque eles dão força a uma situação que é certamente mais p n > funda que as meras necessidades de clareza de exposição de um curso de introdução ao direito. E, no entanto, as dificuldades são cada maiores para manter a coerência desta classificação. Com efeito, excepções são cada vez mais numerosas depois que a fronteira enti direito público e direito privado foi objecto de lutas e de negociaç sérias. Podem dar-se alguns exemplos dessas flutuações que os nossc autores estão aliás prontos a reconhecer, mas tirando daí curic conclusões, como veremos. A modificação da fronteira entre o público e o privado é certa- mente uma das questões mais debatidas, não apenas nas faculdades i" BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE, Introductton' générale..., op. cit. us A crítica minuciosa de um ângulo positivista pode ser encontrada em C. EISENMANN, Droit public, Droit prive, R. D. P. 1952, pp. 903 e seg«. 117 R. SAVATIER, Droit public et Droit prive, D. 1946, cap. 25; Du droit civil au droit public, L. G. D. J., Paris, 1950, pelo lado dos priva- tivistas; pelo lado dos publicistas, algnmas criticas: J. RIVERO, Droit public, Droit prive, conguête ou statu quo? D. 1947, cap. 69. "s B. EDELMANN, Lê Droit saisi..., op. cit., pp 115 e seguintes. iti' direito, mas sobretudo nas práticas políticas, económicas, ideoló- jlmis da nossa sociedade desde o fim da segunda guerra mundial. i imos a duas deslocações da fronteira: uma no sentido favorável 'i piiblicização do direito, é o movimento mais aparente; a outra, no (tpiil.ldo da sua privatização, é o movimento real. A publicização do direito francês seria, se retomarmos o raciocí- oxposto mais acima, a submissão cada vez maior de sectores m i l i ora abandonados pelo Estado ao seu império e a regulamentação funis estreita das liberdades de todo o género dos cidadãos. Dito de i H i i r a maneira, tendo o Estado-polícia liberal cedido o lugar ao Estado Pmvidência, a intervenção estatal fez recuar os limites antigamente iiiimitidos pelos poderes públicos: o Estado tem doravante uma acção i '1 ' i iómica (ele nacionaliza e cria estabelecimentos públicos, planifica M H mo), uma acção social (a escola mas também os serviços sociais, n procura de uma certa equidade pela segurança social), uma acção millural, etc. Ao mesmo tempo, esta intervenção traduz-se necessariamente por uma extensão do imperativo, do comando, portanto, por uma restrição das «liberdades». Antigamente, o director da empresa era «livre» nas imas relações com o operário que empregava, o proprietário era «livre» nus suas relações com o seu inquilino, e assim por diante... «Vê-se» quo esta liberdade foi reduzida já que a legislação social veio res- i i i i i i > l r quer os poderes do proprietário, quer os do patrão. É o fim do mundo liberal, «em consequência do desenvolvimento das teorias itn economia dirigida e do socialismo de Estado 119»! Esta perspectiva i, no entanto, absolutamente falsa: não é porque o direito privado nu tornou mais imperativo que ele se transformou em direito público. Nilo houve, realmente, publicização do direito 12°. Vamos mesmo um piiueo mais longe: quando o Estado, por intermédio do legislador, diminui a liberdade do patrão, é para dar mais consistência à do nnpregado. Não diminuiu, pois, por esse facto «a liberdade» no seio da sociedade. Tomam facilmente a parte pelo todo, os juristas! Assim, n firmo que o movimento de pretensa publicização do direito é mais «parente: correspondeu à vaga da economia dirigida depois de 1945, mns, à medida que a economia capitalista recupera, ele torna-se menos uctual. O movimento inverso parece-me mais profundo. Ao pretexto da incapacidade do direito público para ser eficaz nos domínios económicos e sociais, é o direito privado que se instala nm numerosos sectores que, no entanto, são governados pelo Estado. A maleabilidade do direito privado, a sua rapidez são qualidades de que o Estado não poderia privar-se no momento em que se torna empresário, banqueiro, comerciante, etc. Esquece-se de dizer que as empresas nacionalizadas estão, no essencial, submetidas ao direito 119 120 p. 17. A. WEILL, Droit civil, op. cit., p. 38. Ê o que demonstra sem esforço Henri MAZEAUD, cap. já citado, 154 155 privado, que os organismos de segurança social são de direito pri- vado, que as intervenções em matéria de planificação relevam cada vez mais do direito privado: contratos e sociedades de economia mista em que a parte do direito público foi reduzida ao mínimo. E nem sequer os tradicionais serviços públicos deixam de ser atin- gidos: por exemplo os P.T.T. com o serviço das sociedades privadas para o telefone—, e que dizer do recurso aos concessionários pri- vados em matéria de auto-estradas? Este movimento de transborda mento pelo direito privado não é mais do que a «privatização do Estado», quer dizer, a sua submissão cada vez maior aos interesses da classe social que se encontra no topo dele; há muito tempo quo se falou de desorçamentação e de desplanificação. O processo con tinua, acelerado actualmente pela política de um Governo que quor ainda fazer acreditar nas virtudes do liberalismo económico121. Não se trata, como faz um certo número de autores prudentes, de opor frontalmente estes dois movimentos (publicização/privatização) consl- derando-os como equivalentes na sua natureza e nos seus efeitos. O melhor é render-se à evidência, é, sem o carácter glorioso qua lhe dá o seu autor, constatar que «o primado do direito privado per- siste Í2a» e explicar a razão disso. Esta «discrição» para tentar dar conta dos fenómenos actuais, reencontrá-la-emos quando, passando do plano geral da classificaçãopara o outro mais particular da ordem das disciplinas na ciência jurídica, os autores reconhecem as dificuldades sem serem capazes de as resolver. Limitam-se a indicar que tal disciplina pertence «sob cei tos aspectos» ao direito privado, «mas, que no entanto», ela tem liga- ções com o direito público. Isto não é dizer absolutamente nada, É preciso reconhecer que, para justificar a classificação actual, os professores de direito têm algumas dificuldades! Com efeito, er» mais ou menos fácil a partir da summa divisio repartir todas aã matérias de ensino por uma ou outra das categorias. Mas eis que as excepções aumentam e que certas dúvidas se podem levantar sobro a validade da classificação, mesmo num plano pedagógico. Tomemos alguns exemplos. O direito público é tido como regulador das relações entre o Estado e as pessoas públicas (colectividades ou estabeleci mentos) assim como entre o Estado (ou uma pessoa pública) e um indivíduo. Assim, pode-se, sem dificuldade, arrumar neste grupo a> seguintes disciplinas: direito constitucional, direito administrativo, direito das finanças públicas ou direito financeiro. Mas não se arruma aí senão com reservas o direito penal e o direito judiciário «privado». São os autores modernos que são desta opinião, mas são os autores clássicos que têm ainda autoridade! Aliás, nas universidades jurídicas, 121 O plano de relançamento adoptado em Setembro de 1975 é particular- mente significativo. Técnicas perfeitamente liberais para relançar a econo- mia, mas em que, querendo fazer funcionar os mecanismos do mercado, M combatem os efeitos e não as causas. • 122 H. MAZEAUD, capítulo já citado. 156 4 ninda um privativista que ensina o direito penal e está sempre um piivativista na cadeira de processo civil123. Esta força do hábito merece,- apesar de tudo, ser analisada. Com nfoito, de acordo com a definição do direito público, o direito penal rege as relações entre a sociedade e o indivíduo, aqui sob o ângulo < ! < > s delitos e dos crimes; o processo é claramente a matéria em que MO estudam as regras de acordo com as quais os tribunais — quer ilr/.cr, um serviço público do Estado — julgam os litígios entre os Indivíduos. Então, porque continua a estudar-se o serviço público da justiça diferentemente dos outros serviços públicos? Porque é que se pensa que o direito penal está apesar de tudo mais próximo do direito pri- vndo? A questão vai mais longe do que a simples reivindicação de M I na «divisão» mais equitativa dos cursos entre os diversos profes- sores. Na realidade, se quisermos enunciar as razões deste estado de coisas, podemos talvez penetrar nalguns dos mistérios do ilogismo das classificações da «ciência jurídica». Eu tomarei o caso do direito penal como exemplo desta desloca- çílo na ordem da classificação. Que razões são dadas para esta situação paradoxal? «Sob certos aspectos, o direito penal tem ligações com o direito privado: protege os indivíduos na sua vida, na sua honra, na (tua propriedade, etc., e pode ser considerado como a sanção última do direito privado (...). Alguns tendem, no entanto, a ligar o direito penal exclusivamente ao direito público, a pretexto de que a infracção tf unicamente uma questão entre a sociedade e o delinquente, sendo o direito penal dominado pela ideia de defesa social. (...) Este ponto de vista parece demasiado exclusivo: a maior parte dos textos de direito penal reprime ainda hoje os atentados aos direitos dos par- ticulares 124». O argumento é sempre o mesmo: «o Homem», como se o direito público se desinteressasse dos homens... O direito consti- tucional e o direito administrativo, e num plano mais material, o direito público financeiro, protegem também a propriedade dos indi- víduos e, de maneira mais geral, reprimem as violações feitas a esses direitos. E, mesmo quando coubesse ao juiz penal (considerado como pertencendo aos tribunais da ordem judiciária, quer dizer, privada) decidir, isso não significaria, só por si, que o direito que ele aplica Keja direito privado! É, pois, preciso descobrir porque é que por detrás da figura do Homem, se esconde o lugar real do direito penal. Para isso proponho uma interpretação fundada sobre a própria noção de repressão social. Entre os ramos do direito, o direito penal é certamente aquele que é abertamente mais repressivo: é o qualifi- cativo habitual para os juizes que exercem nesse domínio, e a juris- 123 o concurso para professor agregado em direito privado compreende Kempre oima prova de direito penal e criminologia de que não se encontra rasto no concurso para professor agregado de direito público. 12* A; WEILiLi, Droit civil, op. cit., p. 36, 157 dição penal é designada por «jurisdição repressiva1"». Ora, o < | i i " me parece interessante é a maneira pela qual a nossa sociedade ooiV temporânea tenta, a qualquer preço, mascarar este fenómeno rei n . sivo. Como M. Foucault mostra de forma luminosa, a repressão p r i m i que parecia comprazer-se no espectáculo dos seus actos, é hoje intolrn mente caracterizada pelo fenómeno inverso: o do oculto. Ao contnlrln de Damiens que é torturado e que é espancado na praça de Gríivt no fim do século XVIII, ao contrário mesmo da publicidade qui rodeava ainda a pena da guilhotina no século XIX, a pena torn.i > agora um total isolamento do condenado, cortado da sociedade ' Seria contentarmo-nos com palavras acreditar numa atenuação desif regime penal: vale mais interrogarmo-nos sobre a sua forma. O lugaf do direito penal no direito privado parece-me ser o efeito na «ciência jurídica» desse processo de camuflagem da repressão. Ao tomar lut?nr entre as disciplinas do direito privado, o direito penal faz esquectf j que ele, antes do mais, é essencialmente um direito repressivo. E, p;mi convencer o auditor disso, dar-lhe-á o argumento da protecção d" homem. Abre-se, então, todo o campo das conotações de liberdact», de vontade, de indivíduo, de direito ligado à pessoa, que são os coro- lários do direito privado. Eu não digo, como é evidente, que se trai» de um cálculo habilidoso: ninguém em particular é responsável por esta classificação. Ela funciona objectivamente, tanto através dói programas de ensino como através dos do recrutamento dos profe* j sores de direito. Ela tem, pois uma função social e não apenas pedn gógica. b) Desde logo, a classificação direito público-direito privado nau pode ser tratada apenas como um instrumento cómodo para um fim didáctico. É preciso saber que a sua existência é significativa, maN significativa de quê? Tentarei mostrar que se trata, aqui também, de uma das estruturas do modo de produção capitalista. A demonstração disso foi brilhantemente feita pelo jurista Pás u kanis. Basta retomá-la rapidamente127. A sociedade feudal não conhece fronteiras entre o privado e o público: o senhor é simultaneamente o proprietário da terra (e portanto, sujeito de direito privado) e a autoridade no seio da comunidade que vive nas suas terras (portanto, nisso, autoridade «pública»). Os poderes políticos ou públicos que detém encontram a sua fonte na propriedade da terra. «Os serviços do Estado tinham-se patrimonializado, o poder público confundia-se com o domínio, a propriedade do príncipe: tudo se tinha tornado direito privado», escreve J. Carbonnier12S. Para dar um exemplo, aã Vi M - ! de comunicação no feudo são caminhos privados no sentido em i i feudo é propriedade do senhor, de certo modo; mas, abertas i iblico, constituem, ao mesmo tempo, vias «públicas». Esta indis- I •;> que não produziu ainda o binómio público-privado é perfeita- i 11; coerente no modo de produção feudal. No entanto, vão-se • • . . • i l u z i r fenómenos que abrem brechas nesta unidade: o desenvolvi- lo das trocas mercantis vai trazer consigo tanto uma função de "leeção do senhor (o poder feudal assume o papel de garante da • i «Ias trocas) como o estabelecimento de lugares fixos em que as " » a s se desenrolam: as cidades. Ora estas constituem comunidades i M vão tentar libertar-se da tutela senhorial (cartas de alforria) por- i ". - i,êm uma vida autónoma. Oom efeito, na ausência de uma patri- .".malização do poder, este «separa-se» do corpo a que se ajusta. v .na, surge pela força das coisas uma separação entre o interesse fieiiivo e os interesses privados. Serão criados os primeiros «servi- t" públicos» nas cidades, dando desse modo uma forma concreta à t u » .10 de um poder «público». Em seguida, com a extensão da troca I1 n - i cantil e a sua transformação numa estrutura capitalista, as for- ln . r . políticas do Estado não serão mais do que o alargamento ao con- | m i i o da nação desta característica; correlativamente, o poder feudal i começar pelo poder feudal do Rei — diminuirá, para não ser timão simbólico no fim do século XVIII. A revolução de 1789 virá tornar o direito conforme aos factos, coroando este processo pela ins- ItUueão do Estado nacional moderno, pura incarnação da esfera (iHhlica acima da esfera dos interesses privados. A distinção-oposição entre direito público e direito privado não é, i H MS, «natural»: não é lógica em si, traduz uma certa racionalidade, do Estado burguês129. Assim, podem ser postas em funcionamento • Ideologia e as instituições deste Estado como instância autónoma "ii formação social130. A classificação não é estritamente e vagamente • istórica: está ligada à história de uma sociedade que conheceu gra- • malmente a dominação do modo de produção capitalista. Fica-se, >!iNÍm, com a ideia de como é grave que tudo isto seja silenciado i elo professor de introdução ao direito. Acrescentarei uma palavra sobre uma instituição que, normal- iinnte, não levanta problemas: a Declaração dos direitos do homem cio cidadão, de 1789. É a conjunção coordenativa «e» que é aqui a Minis importante. Faz-se uma distinção entre os direitos do homem i - os do cidadão. «Qual é este «homem» distinto do cidadão?» A esta questão que Marx levanta num texto célebre, ele responde: «Não é «utrem senão o membro da sociedade burguesa131». Por outras pala- 1=5 MAZEAUD, Leçons..., op. cit., p. 153; J. CARBONNIER, Droit civil, op. cit., p 87; B. STARCK, Droit civil, op. cit., p. 184. 120 M. FOUCAULT, Surveiller et Punir, op. cit., p. 75 e seguintes. 127 E. B. PASUKANIS, Théorie générale du droit..., op. cit., em espe- cial pp. 90, 124-159, 136 e seguintes. ia» J. CARBONNIER, Droit civil, op. cit., p. 58. 158 129 A contrario, encontrar-se-iam hoje numerosos casos em que a intro- i l n i - . - i o do capitalismo nos Estados do terceiro mundo teve de fazer-se acompa- nhar desta distinção. ião cfr. as considerações acima feitas no que respeita às teorias do Htado. is» K. MARX, La Question jmve, op. cit., p. 37. 159 vras, a separação entre direito público e direito -píívado é extorii ao indivíduo: ela separa-o em dois elementos distintos e mesni opostos. O homem como indivíduo burguês privado e o homem con cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação da distin<,:< entre direito privado e direito público. Esta divisão entre o homori egoísta enquanto membro da sociedade civil (no sentido hegelianm e o homem altruísta, abstraindo da esfera jurídica, encontram> In perfeitamente descrita e analisada nas obras de Jean-Jacques Roui seau, designadamente em O Contrato Social. Daí esta dificuldade pai quem quer que ouça falar da distinção entre direito público e direlt privado de não a reportar a uma banal experiência pessoal: «Sintu perfeitamente em mim uma vontade particular e egoísta e uma von tade moral virada para os outros, quer dizer, para o interesse todos». Eficácia particularmente conseguida da ideologia que che(| ao ponto de nos fazer interiorizar as estruturas do Estado e do direi l capitalistas de tal modo que nós acreditamos encontrarmos as sul raízes dentro de nós próprios, numa evidente transparência. Pois é disto mesmo que se trata: é a forma da sociedade eí que vivemos que produziu esta clivagem entre o público e o privad e marcou a nossa consciência, e não o inverso! Que a ideologia corrente veicule esta distinção público-privado, nada mais lógico numa sociedade capitalista. Que um ensino da ciência jurídica a retome sem mais, eis o qu é mais grave. Há bem mais a dizer sob esta distinção e as suas dií culdades, do que meras questões de classificação pedagógica. Mas pedagogos não dizem palavra sobre isso! 2.3 Coisas e pessoas As classificações dos direitos e das coisas arrumam uma matérii que, sem elas, seria extremamente complexa. Todavia, convém «i atribuir às classificações um valor absoluto132». Com efeito, não há, contrariamente ao que se podia crer, uma única classificação, maa várias, respeitantes às relações das coisas e das pessoas. Segundo o que cada um considera o objecto do direito, a apreciação eventual do direito em dinheiro, a própria natureza da coisa objecto do direito, diferentes categorias jurídicas são estabelecidas. Nesta estrutura com- plexa dos direitos subjectivos, gostaria apenas de fazer algumas obser- vações; estas permitirão apreciar a maneira como os juristas preten- dem, na sua «ciência», justificar a sociedade actual. Não se põe a questão de retomar, ponto por ponto, cada uma dessas classificações; convém apenas mostrar como estas esbarram num certo número de dificuldades que iludem em vez de resolver. Aí está bem a marca da função ideológica do direito. 132 MAZBAUD, tiegons..., op. cit., pp. 195 e seguintes. 160
Compartilhar