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FREUD E A ALMA HUMANA BRUNO BETTEmiIM FREUD E A ALMA HUMANA Tradução de Álvaro cabral EDITORA CULTRIX São Paulo Título do original: FREUD & MANS SOUL Copyright © Bruno Bettelheim - 1982 Edição Ano 1-2-3-4-5-6-7-8-9 84-85-86-87-88-89-90-91-92-93 Direitos de tradução reservados para o Brasil pela EDITORA CULTRIX RuaDr. Mário Vicente, 374 - 04270 São Paulo, SP, fone 63-3141 Impresso nas oficinas da Editora Pensamento A Psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor. FREUD, numa carta a Jung PREFACIO As traduções inglesas das obras de Freud são seriamente defeituosas em importantes aspectos e têm levado à formulação de conclusões errôneas, não só a respeito do homem Freud mas também no que se refere à psicanálise. Esta nossa afirmação aplica-se inclusive à Standard Edition of the Complete Psychological Works ofSigmund Freud, malgrado sua aura de competente edição oficial. Depois de ler as críticas a essa tradução, que apresento neste livro, o leitor poderá perguntar-se por que terei esperado tanto tempo para publicá-las e por que outros nã o formularam antes críticas idênticas. É óbvio que não posso responder à segunda indagação com qualquer margem de segurança, mas as razões justificativas de minha própria relutância talvez sugiram por que outros hesitaram também em criticar as traduções. Conversas com amigos revelaram-me que muitos que, como eu próprio, têm o alemão como língua materna e emigraram para os Estados Unidos já na metade de suas vidas, estão profundamente Seria de snecessário lembrar que, na medida em que a edição brasileira das Obras Completas de Freud se baseou exclusivamente na Standard Edition, as críticas aqui formuladas pelo Autor ao texto inglês são obviamente extensivas à edição brasileira derivada desse texto. Bruno Bettelheim mostra-nos até que ponto se cometeu lamentável negligência ao preterir o original alemão como legítima fonte de tradução das obras de Freud para o nosso idioma. (N. do T.) descontentes com o modo como as obras de Freud foram vertidas para o inglês. É enorme a quantidade de impropriedades e erros crassos nas traduções; a simples cor re ção dos erros mais gritantes j á seria, por si só, uma tarefa ingente, e a decisão sobre por onde começar e em que concentrar prioritariamente as atenções seria dificílima. Mas a relutância em discutir abertamente a inexatidão das traduções existentes creio ser fruto, em última análise, de reservas psicológicas mais profundas. A maioria das traduções foi concluída durante a vida de Freud e por ele aceita ou, no mínimo, tolerada. O editor- chefe da Standard Edition foi um dos seus seguidores, a quem Freud confiou pessoalmente a tradução de algumas de suas obras; e o co-editor foi sua filha, Anna, a pessoa mais íntima de Freud nos derradeiros anos de sua vida e escolhida como sua herdeira. Em tais circunstâ ncias, criticar as traduções não só estaria muito longe de par ecer uma crítica ao próprio e tã o venerado mestre. E houve uma atitude generalizada de relutância em fazê-lo, acompanhada da esperança persistente em que outros - idealmente, os herdeiros escolhidos de Freud - empreendessem essa onerosa mas necessária tarefa. Essa foi a minha esperança durante quase quarenta anos. Sei que outros, muito mais chegados do que eu aos responsáveis pela organização da Standard Edition, ventilaram o problema e propuseram vários remédios, como adicionar um 25 volume de glossários corretivos. Todas essas sugestões foram rejeitadas como inaceitáveis pela casa editora. A maioria das pessoas que viveu na Viena de Freud e se familiarizou com o seu pensamento nesse tempo e lugar ou já morreu ou beira agora os 70 ou 80 anos, avizinhando-se do final de suas vidas. Por conseguinte, se os erros de tradução que lamentavelmente proliferam na Standard Edition t êm de ser corrigidos por alguém que compartilhou o mesmo ambiente cultural de Freud e que 8 está intimamente familiarizado com o idioma, tal como Freud o usou, então cumpre que se faça isso agora. Eis por que finalmente venci a relutância que por largo tempo senti. O tempo não me permitiu aproximar-me sequer de um exame completo dos muitos erros de tradução - algo que, de qualquer modo, estaria muito além da minha capacidade. E a decisão sobre em que pontos me concentrar não foi fácil, especialmente se for levado em conta que muitas idéias largamente sustentadas acerca de Freud, de sua vida e de aspectos fundamentais de seu pensamento baseiam-se em equívocos decorrentes de apresentações defeituosas desse pensamento em tradução e, até, de versões imperfeitas de comentários muito simples por ele feitos a seu próprio respeito. Numa breve memória que Freud escreveu aos 80 anos, ele descreve uma experiência por que passara há mais de trinta anos, por ocasião de uma viagem a Atenas, quando estava visitando a Acrópole (Um Distúrbio de Memória na Acrópole)- Essa nota autobiográfica revela muito sobre Freud, sobre seus sentimentos durante os anos escolares, sobre suas relações com o pai, enfim, sobre sua formação. Na frase final, Freud diz que, após ter conseguido analisar o significado mais profundo de sua experiência na Acrópole, essa lembrança reaparecia-lhe freqüentemente - o que não era surpreendente, porquanto ele agora estava velho, necessitado de paciência e estoicismo (uma alusão óbvia à sua última doença) e incapaz de viajar. As palavras exatas de Freud são: Und jetzt werden Sie sich nicht mehr verwundern, dass mich die Erinnentng an das Erlebnis auf der Akropolis so oft heimsucht... A palavra que ele usa aqui para referir-se ao freqüente reaparecimento dessa recordação, heimsuchen - visit ar - comporta um significado especial, porque na Viena católica a Maria Heimsuchung a Visitação de Maria era (e ainda é) um importante feriado religioso, celebrando a visita da Virgem Maria a Isabel, um evento reproduzido �em numerosas pinturas e esculturas famosas com que Freud se familiarizara nas viagens que não poderia agora voltar a fazer. E assim como Maria tomou conhecimento nessa visita de algo de profunda importância a seu próprio respeito, também a recordação de Freud, depois que a analisou com êxito, revelou-lhe coisas do maior significado pessoal. Sua escolha da palavra heimsuch visitado pela recordação sugere isso. No início do ensaio, quando Freud afirma pela primeira vez que essa recordação lhe reaparecia freqüentemente e menciona que, inicialmente, não compreendia por que, usa a expressão t auchte immer wieder auf. Auftauchen significa literalmente vir à superfície (vir à tona de água profunda), mas também é usado mais genericamente em referência a qualquer coisa que surge de súbito, de um modo abrupto. Que no mesmo ensaio Freud empregue essas duas palavras muito diferentes para designar um único fenômeno, é um exemplo de seu uso magistral da língua. Antes de analisar o reaparecimento assíduo da recordação, ele se refere a ela com uma palavra que implica uma súbita aparição desde profundezas desconhecidas, sugerindo o surgimento desde o inconsciente. Depois de analisá-la, e depois que o leitor fica sabendo até que ponto essa recordação é profundamente significativa e por que, Freud emprega uma palavra que alude a um evento extremamente revelador, a Visitação. Na Standard Edition, a frase final desse ensaio foi traduzida assim: E agora, já não vos surpreenderá que a recordação desse incidente na Acrópole tenha me perturbado co m tanta freqüência... Esta tradução errônea deu asa a algumas especulações muito esmeradas acerca da atitude de Freud em relação ao seu próprio background, baseadas no pressuposto de que ele disse ser freqüentemente perturbado por essa recordação. Mas ele nada disse que se pareça a isso, comentando meramente que a recordação o visitava 10 �amiúde e empregando uma palavra que, por causa de suas antigas associações religiosas, sugere algo da mais profunda significação. Este é apenas um exemplo relativamente secundário de comouma tradução defeituosa pode levar (e tem levado) a conclusões errôneas a respeito de Freud - e ofereço-o para mostrar por que fui tentado a discutir aqui todas as muitas traduções inadequadas que causaram uma variedade de equívocos e falsas interpretações sobre Freud e sobre a natureza da psicanálise. Mas, como disse acima, um estudo verdadeiramente abrangente seria uma tarefa de tamanha magnitude que não me atrevo a tentá-la. Preferi, assim, concentrar-me em duas tarefas menores: corrigir as traduções errôneas de alguns dos mais importantes conceitos psicanalíticos e mostrar a pessoa profundamente humana que Freud era, um verdadeiro humanista no melhor sentido da palavra. Sua maior preocupação era com o ser mais íntimo do homem, ao qual se referiu com bastante freqüência através de uma metáfora - a alma do homem - porque a palavra alma evoca inúmeras conotações emocionais. O maior defeito das versões inglesas correntes de suas obras reside justamente no fato de não nos darem sequer o mais leve indício dessa preocupação. Debati o problema das traduções inglesas dos escritos de Freud com estudantes e amigos ao longo de muitos anos e recebi tantas sugestões valiosas que seria impossível mencioná-las todas aqui. Mas desejo, pelo menos, agradecer as que me foram feitas pelos Drs. Paul Kramer, Richard Sterba, Trude Weisskopf e Henry von Witzleben. Como em tantas outras ocasiões passadas, estou muito grato a Joyce Jack pela preparação sensível e cuidadosa do manuscrito original deste livro. Robert Gottlieb teve a amabilidade de lhe dar sua forma final, pelo que lhe estou imensamente agradecido. Por 11 �último, porém nâo menos, desejo agradecer a Theron Raines suas valiosas sugestões e, sobretudo, seu encorajamento, sem o qual este livro talvez nunca tivesse sido concluído. A maioria dos trechos de Freud aqui citados são transcritos da Standard Edition. Todas as traduções sem atribuição de fonte sSo de minha própria autoria. Bruno Bettelheim 12 Nascido em Viena, no seio de uma família judia assimilada de classe média, fui criado e educado num meio que, sob múltiplos aspectos, era idêntico àquele que serviu de backgro und à formação de Freud. A cultura que me foi transmitida no lar paterno, depois na escola secundária e, finalmente, na Universidade de Viena, mudara muito pouco desde os tempos de estudante de Freud, 50 anos antes. Assim, era natural que a partir do momento em que comecei a pensar por minha própria cabeça, também lesse Freud. Depois de estudar suas obras anteriores, li avidamente as novas à medida que iam sendo publicadas, desde Para Além do Principio de Prazer Beyond the Pleasure Principle, 1920) e O Ego e o Id The Ego and the Id, 1923) até todos os seus ensaios subseqüentes, nos quais suas idéias alcançaram pleno desenvolvimento. O entendimento dos escritos de Freud foi-me facilitado pela circunstância de poder ir acompanhando suas idéias à medida que ele completava o edifício da psicanálise, cuja construção fora iniciada alguns anos antes de meu nascimento. Também foi facilitado pelo fato de eu próprio estar O Dr. Bettelheim nasceu em Viena em 1903. Freud estava então com 47 anos e as Reuniões das Quartas-feiras tinham começado no ano anterior. (N. do T.) 15 �em análise, assim como pelo meu estudo da psicanálise no mesmo e extraordinário clima cultural vienense, onde Freud trabalhou e pe não u. Quando, na meia idade, fui suficientemente afortunado para me permitirem começar uma nova vida nos Estados Unidos, e comecei então a ler e discutir escritos psicanalítícos em inglês, descobri que a leitura de Freud em traduções inglesas gera impressões muito diferentes daquelas que eu tinha formado quando o lia em alemão. Tomou-se-me evidente que as traduções inglesas dos escritos de Freud distorcem muito o humanismo essencial que impregna os originais. Em A Interpretação de Sonhos (The Interpretation of Dreams, 1900), que desvendou ao nosso entendimento não só o significado de sonhos mas também a natureza e o poder do inconsciente, Freud discorreu acerca de sua árdua luta para obter uma autoconsciência cada vez maior. Em outros livros, Freud explicou por que considerava necessário que todos nós fizéssemos o mesmo. De certo modo, todos os seus escritos são amáveis e persuasivas insinuações, freqüentemente cunhadas em frases brilhantes, de que todos nós, seus leitores, colheríamos ime não s benefícios de uma idêntica viagem espiritual de autodescoberta. Freud mostrou-nos como a alma pode adquirir conhecimento de si mesma. Não é fácil tarefa chegarmos a conhecer as mais profundas regiões da alma - explorar o inferno pessoal, seja ele qual for, em que possamos estar sofrendo. As descobertas de Freud e, ainda mais, o modo como no-las apresenta dão-nos confiança em que essa exaustiva e potencialmente perigosa viagem de autodescoberta trará como resultado tom armo-nos mais pl enamen te humanos, de modo que nã o mais possamos ser escravizados, sem o saber, pelas forças sombrias que residem em nós. Explorando e compreendendo as origens e a potência dessas forças, 16 �não só ficamos muito mais capacitados para enfrentá-las mas também adquirimos uma compreensão muito mais profunda e compassiva de nossos semelhantes. Em seu trabalho e em seus escritos, Freud falou com freqüência da alma - de sua natureza e estrutura, de seu desenvolvimento e atributos, do modo como se revela em tudo o que fazemos e sonhamos. Lamentavelmente, ninguém que o leia em inglês pode imaginar isso, porquanto quase todas as suas inúmeras referências à alma e a questões pertinentes à alma foram suprimidas nas traduções. Esse fato, combinado com a tradução errônea ou inadequada de muitos dos mais importantes conceitos originais da psicanálise, faz com que os apelos diretos e sempre profundamente pessoais de Freud à nossa humanidade comum se apresentem aos leitores de inglês como enunciados abstratos, despersonalizados, altamente teóricos, eruditos e mecanizados - em suma, científicos - sobre o estranho e muito complexo funcionamento de nossa mente. Em vez de insularem um profundo sentimento pelo que existe de mais humano em todos nós, as traduções tentam induzir o leitor a desenvolver uma atitude científica em relação ao homem e suas ações, uma compreensão científica do inconsciente e de como este condiciona grande parte de nosso comportamento. Apercebi-me disso na década de 1940, quando assumi o cargo de diretor da Escola Ortogênica da Universidade de Chicago, para crianças mentalmente perturbadas. O pessoal que aí trabalhava comigo fizera uma ampla leitura de Freud, todos estavam convencidos de que haviam absorvido as idéias dele ao ponto de as considerarem suas próprias e procuravam colocar seu entendimento de Freud em prática no trabalho com as crianças. No entanto, a considerável compreensão teórica dos processos inconscientes que haviam 17 adquirido através do estudo de Freud continuou sendo exatamente isso: teórica. Era de escassa utilidade para ajudar crianças afetadas por sérios distúrbios psiquiátricos e, com freqüência, constituía até um estorvo. Tal compreensão decorria de uma postura racionalista, emocionalmente distante, quando o que se fazia necessário era uma proximidade emocional, uma estreita ligação afetiva, baseadas na compreensão imediata e compassiva de todos os aspectos da alma da criança - do que a afligia e por quê. O que se fazia necessário era aquilo de que Freud falou ocasionalmente de um modo explícito, mas, com muito maior freqüência, implicitamente: uma correspondência espontânea e solidária do nosso inconsciente com o de outros, uma resposta afetiva e sensível de nossa alma à deles. Lendo Freud em tradução, os meus colaboradores tinham perdido tudo isso; não se pode esperar adquirir uma compreensão da alma se a alma nunca é mencionada. A maior deficiência das traduções é que, através de seu uso de abstrações, elas tom am fácil ao leitor distanciar-sedo que Freud procurou ensinar a respeito da vida interior do homem - e do próprio leitor. Na tradução inglesa, a psicanálise converte-se em algo que se refere e aplica a outros como um sistema de construtos intelectuais. Portanto, os estudantes de psicanálise não são levados a adotá-la pessoalmente - não são instigados a adquirir acesso a seu próprio inconsciente e a tudo o mais que em seu íntimo é eminentemente humano, mas, não obstante, inaceitável para eles. Durante quase 40 anos, dei cursos de psicanálise a médicos recém-graduados e residentes norte-americanos em psiquiatria. Fui repetidamente levado a comprovar que as traduções inglesas dificultam seriamente os esforços dos estudantes de psicanálise no sentido de adquirirem uma verdadeira compreensão de Freud e da 18 própria psicanálise. Embora a maioria dos brilhantes e dedicados alunos a quem tive o prazer de dar aulas se mostrasse profundamente empenhada em apurar do que trata a psicanálise, eles se sentiam incapazes de chegar a uma conclusão. Quase invariavelmente, descobri que os conceitos psicanalíticos tinham-se tom ado para esses alunos um modo de examinar e julgar exclusivamente os outros desde uma certa e prudente distância - nada que se relacionasse com eles mesmos. Eles observavam as outras pessoas através dos óculos da abstração, tentavam compreendê-las por meio de conceitos intelectuais, jamais desviando o olhar para dentro de si próprios, para sua própria alma ou seu próprio inconsciente. Isso acontecia mesmo com os alunos que estavam em análise - o que não fazia qualquer diferença aprec já vel. A psicanálise tinha ajudado alguns a ficarem mais em paz consigo mesmos e a enfrentarem a vida com maior segurança, tinha ajudado outros a libertarem-se de embaraçosos sintomas neuróticos, mas suas concepções errôneas a respeito da psicanálise subsistiam. Tal como esses estudantes a viam, a psicanálise era um sistema puramente intelectual - um engenhoso e excitante jogo - e não a aquisição de insights sobre o próprio eu e o comportamento da própria pessoa, os quais eram potencial e profundamente perturbadores. Era sempre o inconsciente de outrem que eles analisavam, quase nunca o próprio. Não prestavam suficiente atenção ao fato de que Freud, para criar a psicanálise e compreender o funcionamento do inconsciente, tivera de analisar seus próprios sonhos, entender seus próprios atos falhos e as razões por que ele esquecia coisas ou cometera vários outros lapsos e enganos. A melhor explicação para a incapacidade manifestada por esses estudantes para apreender a essência do pensamento de Freud 19 �é o desejo universal de permanecer na ignorância do próprio inconsciente. Freud, que compreendeu muito bem ser isso o que ocorreria com seus leitores, tentou falar-lhes o mais diretamente possível. Quando escreveu sobre si mesmo e seus pacientes, fê-lo de um modo que induzia deliberadamente o leitor a reconhecer que ele estava falando sobre todos nós - sobre o leitor, tanto quanto sobre ele próprio, seus pacientes e os outros. A escolha de palavras e o estilo direto de Freud servem à finalidade de preparar o leitor para aplicar a si mesmo insights psicanalíticos, pois somente através de sua experiência interior ele poderá entender completamente o que foi que Freud escreveu. Os erros nas traduções de Freud tom am-se particularmente nocivos quando se combinam com as inevitáveis distorções decorrentes do espaço de tempo que nos separa da era em que Freud formulou suas idéias. Na tradução, as idéias de Freud tiveram de ser transferidas não só para uma linguagem diferente, mas também para um meio cultural diverso - no qual a maioria dos leitores possui apenas um conhecimento superficial da literatura européia clássica. Assim, a maioria das alusões de Freud cai em ouvidos surdos. Muitas das expressões que ele usou foram reduzidas a meros termos técnicos, as palavras essenciais não mais se revestem da multiplicidade de conotações especiais que possuíam, embora Freud as escolhesse precisamente por conterem um significado profundo e vibrarem com ressonâncias humanistas especiais. 20 II A linguagem é de suprema importância na obra de Freud, ela constitui-se no instrumento imprescindível de seu ofício. O seu uso da língua alemã foi não só magistral, mas freqüentemente poético; Freud expressou-se quase sempre com v erdadeira eloqüência. Isto é bem sabido e amplamente reconhecido por quantos estão familiarizados com a literatura alemã. Tem sido freqüentemente assinalado que as histórias de casos descritos por Freud podem ser lidas também como alguns dos melhores romances escritos em sua época. Muitos escritores alemães reconheceram Freud como um grande estilista: Thomas Mann, referindo-se a um dos livros de Freud, escreveu que na estrutura e na forma, ele está aparentado com toda a grande ensaística alemã, da qual é uma obra-prima. Hermann Hesse enalteceu Freud porque sua obra é convincente, graças às suas altíssimas qualidades humanas e às não menos elevadas qualidades literárias, acrescentando que sua linguagem, embora completamente intelectual, é maravilhosamente concisa e exata em suas definições. Albert Einstein disse que admirava Freud especialmente por sua re ali zação como escritor e que nã o conhecia qualquer outro autor contemporâneo capaz de apresentar seu assunto com tamanho domínio da língua alem!.1 De fato, Freud modelou seu estilo pelos 1. Estas e muitas outras expressões de admiração pela mestria literária de Freud podem ser encontradas na análise de Walter Schònau do estilo de Freud: Sigmund Freuds Prosa, Germanistische Abhandlungen 25, Stuttgart, Metzlerische Verlagsbuchhandlung, 1968. 21 clássicos alemSes - sobretudo Goethe, que ele leu assiduamente quando estudante e de quem recebeu profunda influência. (Foi Goethe, diga-se de passagem, quem introduziu o termo sublimar - subli mãeren - na língua alemã, em referência a sentimentos humanos que devem ser aperfeiçoados, elevados e canalizados para outras motivações de nível mais puro.) Como Freud atribuía tanta importância ao emprego do mot juste, da palavra exata, as substituições canhestras e o uso inexato da língua por seus tradutores foram ainda mais perniciosos às suas idéias. Privados da palavra certa ou da frase apropriada, os pensamentos de Freud tom aram-se não apen as vulgares ou esquemáticos mas ficaram seriamente distorcidos. Traduções descuidadas privam suas palavras de alguns ou da maioria dos sutis matizes se não riais e de alusões que ele deliberadamente usou para permitir ao leitor entender o que ele tinha em mente, e reagir não só em um nível intelectual mas também no emocional - não só com a mente consciente mas também com a mente inconsciente. Só se os seus escritos forem entendidos em ambos os níveis haverá a possibilidade de se apreender o pleno significado da obra de Freud, em toda a sua sutileza e riqueza, e isso é crucial para um entendimento correto da psicanálise. Sempre que Freud o julgou possível, tentou comunicar suas novas idéias em termos extremamente comuns, em palavras que seus leitores estivessem habituados a usar desde a infância; sua grande façanha como estilista foi impregnar essas palavras de tonalidades, significados e insights que não faziam parte de seu uso cotidiano. Quando não podia comunicar suficientemente o que queria dizer usando termos familiares de compreensão fácil e acessível, Freud criava novas palavras a partir das comuns, combinando por vezes 22 duas palavras, o que constitui uma prática corrente na língua alemã. Somente se palavras comuns, mesmo quando eram investidas de novos significados ou usadas em combinação ou justaposição, lhe pareciam inadequadas para expressar o que pretendia transmitir, ele recorria ao uso do grego ou do latim - a expressões tais como complexo de Édipo, derivadas de mitos clássicos. Mesmo em tais casos, Freud escolheu palavras que pensava serem conhecidas deseus leitores e que podiam assim ser dotadas de conotações importantes quando ele queria comunicar seus significados, tanto os manifestos quanto os mais profundos. Ele partia do princípio de que seus leitores seriam pessoas cultas, acostumadas desde a escola à leitura dos clássicos, como ele próprio o fora. (No tempo de Freud, os estudantes de Gymnasium, ou escola secundária, tinham de estudar grego e latim como parte do currículo.) in Entre os vocábulos gregos que Freud usou, de modo muito significativo, estão Eros e erótico; dessas palavras derivou ele o importante conceito de zona erógena, termo criado por Freud para designar certas áreas do corpo especialmente sensíveis à estimulação erótica, como as zonas oral, anal e genital. O conceito foi apresentado pela primeira vez nos Trê s Ensaios sobre a Teoria da 23 Sexualidade Three Essays on the Theory of Sexuality, 1905). N um prefácio à Quarta Edição, escrito em 1920, Freud sublinhou como a idéia de uma sexualidade mais ampliada se aproxima do Eros do divino Platão. Para leitores que, como Freud, estavam mergulhados na tradição clássica, palavras como Eros e erótico invocavam o encanto, a graciosidade e a astúcia de Eros, e - talvez ainda mais importante - seu profundo amor por Psique, a alma, a quem Eros está unido em eterno amor e devoção. Para os que estão familiarizados com e sse mito, é impossível pensar em Eros sem lembrar simultaneamente Psique, e em como esta foi, no começo, astuciosamente induzida a crer que Eros era repelente, com as mais trágicas conseqüências. Ver Eros ou qualquer coisa com ele relacionada como grosseiramente sexual ou monstruoso é um erro, que, segundo o próprio mito, pode redundar em catástrofe. (Seria igualmente errôneo confundir Eros com Cupi do: Cupido é um garotinho irresponsável e travesso; Eros é um jovem adulto, no auge da beleza e força de sua masculinidade.) Para que o amor sexual seja uma experiência de genuíno prazer erótico, deve estar impregnado de beleza (simbolizada por Eros) e expressar os anseios da alma (simbolizada por Psique). Estas eram algumas das conotações que Freud tinha em mente quando usava palavras como Eros e erótico. Despojadas de tais conotações, as quais estilo intimamente associadas à sua origem clássica, essas palavras não só perdem muito do significado que Freud pretendia que elas suscitassem, mas podem até ser dotadas de significados opostos aos pretendidos. Isto vale até para a própria palavra psicanálise, cunhada por Freud. Aqueles que usam esse termo, hoje familiar, usualmente só possuem um conhecimento bastante vago de que ele combina duas palavras de origem grega, mas poucos estão conscientes do fato 24 de que essas duas palavras referem-se a fenômenos fortemente contrastantes. Psique é a alma - um termo repleto do mais rico significado, dotado de emoção, abrangentemente humano e nâocientífico. Análise, por seu lado, implica a decomposição de um todo em suas partes componentes, um exame científico. Os leitores ingleses de Freud são ainda mais confundidos pelo fato de que, em inglês, o acento em psicanálise recai sobre análise, enfatizando assim a parte da palavra cujas conotações são científicas. Na palavra alemã Psychoanalyse, p or outro lado, o acento recai sobre a primeira sílaba - sobre psique, a alma. Ao criar o termo psicanálise para descrever seu trabalho, Freud desejou enfatizar que, isolando e examinando os aspectos negligenciados e ocultos de nossas almas, podemos relacionar-nos com esses aspectos e compreender os papéis que eles desempenham em nossas vidas. Foi a ênfase de Freud sobre a alma que tom ou sua análise diferente de todas as outras. 0 que pensamos e sentimos a respeito da alma humana - de nossa própria alma é de suprema importância na concepção de Freud. Lamentavelmente, quando usamos hoje a palavra psique na palavra composta psicanálise ou em outras palavras compostas, como psicologia, já não reagimos às palavras com os mesmos sentimentos que Freud pretendia evocar. Tal n3o ocorria com os seus contemporâneos em Viena: para eles, psique, usada em qualquer combinação, nunca perdeu o seu real significado. A história de Psique pode ter sido especialmente atraente para Freud porque ela teve de entrar no Inferno e aí recuperar algo antes de poder atingir sua apoteose. Freud também tinha que se atrever a penetrar nas profundezas tenebrosas - em seu caso, as da alma - para obter sua revelação. Ele aludiu à história de Amor (ou Eros) e Psique em seu ensaio O Tema dos Três Cofres (The Theme of the 25 Three Caskets, 1913), no qual analisa os motivos inconscientes que podem explicar a imagem freqüentemente evo cada da escolha sempre decisiva entre três: três cofres em O Mercador de Veneza, três filhas no Rei Lear, três deusas no julgamento de Paris e três irmãs, das quais Psique era a mais bela. Freud procurou mostrar que dois tópicos afins estão subjacentes nesse motivo: o desejo de acreditar que temos uma escolha, quando não temos nenhuma, e uma expressão simbólica dos três papéis predestinados que a mulher desempenha na vida do homem - como mãe, como amante e, finalmente, como a mãe simbólica (Mãe-Terra), a quem o homem re tom a quando morre. A história de Amor e Psique descreve a profunda ligação entre a mãe e seu filho - a menos ambivalente de todas as relações na vida de um homem, segundo Freud. Também descreve o ciúme extremo que uma mãe sente da jovem a quem seu filho ama. Como Apuléio nos conta n as Metamorfoses , a beleza de Psique era tão grande que ela chegou a ser mais venerada do que Vênus, e isso enfureceu a deusa. Os lábios entreabertos, Vênus beijou seu filho demorada e fervorosamente, para persuadi-lo a destruir Psique. Mas, apesar dos esforços de sua mãe para induzi-lo a cumprir sua ordem, Amor apaixonou-se profundamente por Psique. Isso apenas serviu para aumentar o ciúme de Vênus que, decidida a destruir Psique a qualquer preço, passa então a exigirlhe a realização de tarefas que, no entender de Vênus, certamente acarretarão a morte da jovem, incluindo a de lhe trazer do inferno um cofre cheio com o valor de um dia de beleza. E, para assegurarse de que Amor não interferirá em suas maquinações, Vênus mantém-no preso. Desesperado, Amor pede ajuda a seu pai, Júpiter, que, recordando suas próprias experiências amorosas, aceita Psique como noiva de seu filho. 26 �Em alguns aspectos, a história de Amor e Psique é uma réplica da de Édipo, mas existem importantes diferenças. A lenda de Édipo fala-nos dos temores de um pai de que seu filho o destrone e ocupe o lugar dele; para impedir isso, o pai tenta destruir o filho. A história de Psique fala-nos de uma mãe temerosa de que uma jovem a substitua nas afeições da humanidade, incluindo seu próprio filho, portanto, ela se esforça por destruir a jovem. Mas, enquanto a história de Édipo termina tragicamente, a história de Amore Psique tem um final feliz, e este fato é deveras significativo. O amor de uma mãe por seu filho e a ira ciumenta contra a jovem que a substituiu, desalojando-a das preferências dele, podem ser abertamente reconhecidos. Que a jovem suplante a mulher madura em beleza, que um filho se afaste de sua mãe para beijar sua noiva, que uma noiva tenha de suportar o ciúme da mãe de seu apaixonado - tudo isto, embora extremamente perturbador, está em perfeita harmonia com as emoções humanas normais e em concordância com o conflito natural das gerações. É por isso que, no fim, Júpiter e Vênus aceitam a situação: Amor e Psique celebram seu noivado na presença de todos os deuses, Psique passa a ser imortal e Vênus faz as pazes com ela. Mas Édipo, ao matar o pai e esposar a mãe, concretiza em atos, na realidade, uma comum fantasia infantil que deveria ter permanecido apenas isso e nada mais do que isso. Assim procedendo, Édipo age contra a natureza, a qual requer que um filho case com uma mulher de sua própria geração e nâo com a própria mãe, e quefaça as pazes com o pai. Portanto, sua história resulta em tragédia para todos os envolvidos nos acontecimentos. Ignoramos se Freud ficou impressionado com os paralelos e as diferenças desses dois antigos mitos, mas sabemos até que ponto ele estava fascinado com a mitologia grega: estudou-a assidua- 27 mente e colecionou estatuária grega, romana e egípcia. Sabia que Psique era retratada como jovem e bela, possuindo asas de pássaro ou de borboleta. Pássaros e borboletas são símbolos da alma em muitas culturas e servem para enfatizar sua natureza transcendente. Esses símbolos revestem a palavra psique de conotações de beleza, fragilidade e insubstancialidade - idéias que ainda associamos à alma - e sugerem o grande respeito, cuidado e consideração com que Psique tinha de ser abordada, pois qualquer outra abordagem a violaria ou até a destruiria. Respeito, cuidado e consideração também são atitudes que a psicanálise requer. IV O objetivo da luta empreendida por Freud durante toda a sua vida resumiu-se em ajudar-nos a adquirir uma compreensão de nós próprios, de modo que deixássemos de ser impelidos, por forças que nos eram desconhecidas, a viver uma vida de mal- estar, descontentamento ou mesmo de franco infortúnio e angústia, e a tom ar outros seres infelizes, em grande parte para nosso próprio detrimento. Freud questionou algumas crenças profundamente arraigadas, como a ilimitada perfectibilidade do homem e sua bondade inata; deu-nos consciência de nossas ambivalências e de nosso entranhado narcisismo, com suas origens no egocentrismo infantil, 28 e mostrou-nos a natureza destrutiva de tal processo. Em sua vida e obra, Freud respeitou verdadeiramente a advertência inscrita no templo de Apoio em Delfos: Conhece-te a ti mesmo - e quis ajudar-nos a fazer o mesmo. Mas conhecer-se a si mesmo, de forma profunda, pode ser uma experiência extremamente perturbadora. Subentende a obrigação de mudar - uma tarefa árdua e dolorosa. Muitas das concepções errôneas em curso hoje em dia sobre Freud e a psicanálise promanaram do medo de autoconhecimento - da opinião confortável, favorecida pela linguagem emocionalmente distanciadora das traduções, de que a psicanálise é um método para analisar aspectos selecionados do comportamento de outras pessoas. Os insights de Freud ameaçam a nossa imagem narcisista de nós próprios. Quão irônico que a obra de um homem que se bateu denodadamente pela autocompreensâo tenha levado a tantas e tão errôneas concepções defensivas acerca da psicanálise ! Ao aceitarem seletivamente apenas algumas das idéias de Freud sobre o papel das impulsões sexuais na constituição do homem, ao interpretarem erroneamente sua crença trágica em que as tendências destrutivas do homem brotam de um lado sombrio da alma, e ao converterem perversamente essa crença numa teoria fácil e complacente, segundo a qual os aspectos negativos do comportamento humano são mera conseqüência do fato de o homem viver numa sociedade má, muitos seguidores de Freud transformaram a psicanálise de uma visâb profunda da condição humana em algo frívolo e superficial. Freud estava convencido de que a criação da sociedade civilizada, apesar de todas as suas deficiências, era ainda a mais nobre realização do homem. Somente uma interpretação gravemente deturpada do que Freud escreveu em Totem e Tabu (Totem and Taboo, 1912-13) e em O Mal-estar da Gvilização 29 (Gvilization and Its Discontents, 1930) pode levar alguém ao cômodo pressuposto de que a psicanálise, em vez de nos defrontar com o abismo em nosso interior e nos forçar à tarefa incrivelmente difícil de domar e controlar seu caos, t omaria a vida fácil e agradável e nos permitiria, com o pretexto de auto-expressão, satisfazer aos nossos desejos sexuais sem quaisquer restrições, risco ou ônus. Todo o trabalho de Freud para desvendar o inconsciente teve por objetivo fornecer-nos um certo grau de controle racional sobre ele, de modo que, quando agir de acordo com suas pressões não for a conduta apropriada, a descarga dessas pressões possa ser adiada ou neutralizada, ou - o mais desejável de tudo - as forças do inconsciente possam ser redirecionadas através da sublimação para servirem a melhores e mais altos propósitos. As dificuldades que Freud enfrentou durante sua auto-analise e as dificuldades que seus pacientes experimentaram ao trazer à tona as lembranças que haviam reprimido tom aram óbvio para ele que a descoberta, pelo indivíduo, de seu próprio inconsciente jamais seria uma empresa fácil. Algumas experiências iniciais ensinaram-lhe ser absolutamente necessário, a fim de evitar conseqüências indesejáveis, exercer um cuidadoso controle da transferência positiva do paciente para o analista, assim como dos próprios sentimentos do analista. Concluiu Freud ser necessária a criação de um conjunto especial de regras, caso se quisesse que o trabalho psicanalítico de autodescoberta transcorresse num ambiente seguro e eficaz. Para que o paciente abrisse em segurança o caldeirão do inconsciente, libertando suas emoções e desfazendo repressões - muitas das quais tinham sido úteis para levar avante a tarefa de viver em sociedade - era necessário restringir o processo a períodos relativamente curtos e bem circunscritos. Só então poderia alguém 30 aventurar-se a soltar pensamentos e sentimentos que, para o bem do oróprio indivíduo e o bem de outros, tinham de ser ordinariamente mantidos sob controle. Só então era admissível dar uma boa olhada ao que se passava nõ próprio inconsciente, sem incorrer no risco de que esse processo interferisse na vida normal da pessoa fora do gabinete de tratamento e desintegrasse suas relações pessoais. A cautelosa abordagem de Freud tem sido desrespeitada ou esquecida em muitos setores, e passou a ser popularmente suposto que a psicanálise advoga uma liberdade irrestrita, nã o através da fala em isolamento, durante um período estritamente limitado de tempo, mas através de um comportamento sem restrições durante o tempo todo e em todas as situações, sem levar em conta o caos que isso poderá acarretar para a vida do próprio indivíduo e para as vidas de outros. Como a psicanálise revelou as conseqüências mutiladoras de uma excessiva repressão, passou-se a supor que a psicanálise defende a ausência de todos os controles. Como a psicanálise requer que se solte tudo - embora apenas por uns 50 minutos d já rios e sob a orientação de um terapeuta especialmente treinado e digno de confiança, que protegerá o paciente de ir longe demais ou depressa demais no desvendamento do inconsciente - passou a supor-se que a psicanálise advoga despejar tudo o que está reprimido em qualquer lugar e a todo o momento. Assim, Conhece-te a ti mesmo converteu-se em Faz o que te apeteça. Freud sublinhou repetidas vezes que os inimigos - os detratores - da psicanálise hâo representavam perigo algum para o seu desenvolvimento; sua preocupação era com os amigos de índole simplista de sua nova ciência e com aqueles que a usariam para justificar tudo o que seus desejos egoístas os levassem a fazer ou a impor a outrem. Ele temia que a psicanálise fosse destruída caso 31 �fosse geralmente aceita sem ser compreendida. Depois de visitar os Estados Unidos - onde, em 1909, na Universidade Clark, recebeu o seu primeiro e único diploma de doutor honor is causa por suas realizações - Freud previu que a psicanálise era suscetível de sofrer tal destino na América. Em 1930, escreveu: Ouço freqüentemente dizer que a psicanálise é muito popular nos Estados Unidos e que não conhece aí a mesma e obstinada r esistência com que se defronta na Europa. ...Parece-me que a popularidade do nome da psicanálise na América não significa uma atitude amistosa em relação à sua essência nem tampouco qualquer extensão e aprofundamento de sua compreensão... com extrema freqüência, descobrimos entre médicos e autores norte-americanos apenas uma familiaridade muito inadequadacom a psicanálise, de modo que só conhecem alguns nomes e slogans, o que não os impede de formularem opiniões infalíveis. Tal como o pai da psicologia americana, William James, Freud baseou sua obra principalmente na introspecção - na sua e na de seus pacientes. A introspecção constitui o alicerce da psicanálise. Embora Freud seja freqüentemente citado, hoje em dia, nos compêndios introdutórios de psicologia - com mais freqüência, de fato, do que qualquer outro autor de psicologia2 - seus escritos influencia- 1. Introdução a um artigo na Medical Review of Reviews, 36, 1930. 2. Num recente levantamento, Freud foi o primeiro da lista com 318 citações. Segu iu-se-lhe Skinner, com 140, e Piaget, com 107. Ver N. S. Endler, J. P. Rushton e H. L. Roedíger, Productivity and Scholarly Impact (citations) of British, Canadian and U. S. Departments of Psychology, 1975. American Psychologist, 1978, 33. 32 ram de uma forma apenas superficial a obra dos psicólogos acadêmicos que o citam. A pesquisa e o ensino de psicologia nas universidades norte-americanas têm uma orientação ou behaviorista, ou cognitiva, ou fisiológica, e concentram-se quase exclusivamente no que pode ser medido ou observado desde o exterior; a introspecção não desempenha aí papel algum. A psicologia americana tom ou-se toda ela análise - com negligência completa da psique, ou alma. No campo da psicologia do desenvolvimento - que dificilmente existiria sem Freud - a maioria das referências à obra de Freud é const ituída por refutações ou trivializações de suas idéias. O Dr. Benjamin Spock, o mais famoso pediatra de seu tempo, aplica muitos insights freudianos sobre a mente infantil em seu livro Baby and Child Care. Em uma das duas passagens em que Freud é mencionado, Spock escreve: As anteriores e intensas ligações da criança a seus pais terão servido seu principal propósito construtivo e serão progressivamente esquecidas com a idade. (Freud chamou a essa mudança de resolução do complexo de Édipo.) Vejam como a coisa é simples! As ligações servem a determinados propósitos e são esquecidas co m o transcorrer do tempo, sem quaisquer conflitos nem resíduos. O complexo de Édípo, parece pensar Spock, desaparece automaticamente com o passar dos anos - embora Freud tivesse demonstrado quão profundamente o complexo de Édipo nos molda durante a vida inteira. 33 V Fieud criou o termo complexo de Édipo para descrever a profusão de idéias, emoções e impulsos, todos em grande parte ou inteiramente inconscientes, que gravitam em tom o das relações que uma criança forma com seus pais. É impossível compreender por que Freud escolheu esse termo - essa metáfora - se não estivermos familiarizados com importan tes detalhes da história de Édipo. Lamentavelmente, a maioria dos graduados de universidades americanas a quem tentei expor a psicanálise tinha apenas uma vaga noção do mito de Édipo ou da tragédia de Sófocles, Édipo Rei. A história de Édipo começa com a traumatizaçâo psicológica e física incrivelmente brutal de uma criança por aqueles que deveriam ser os seus principais protetores: seus pais. O bebê Édipo - nascido de Laio e Jocasta, rei e rainha de Tebas, a quem um oráculo advertira que o filho deles estava fadado a assassinar o próprio pai - é aleijado (transpassam-lhe os pés com uma lança) e mandado para longe, a fim de que seja morto. Poupado da morte prematura, Édipo será entSo criado pelo rei e a rainha de Corinto, e cresce acreditando serem esses os seus verdadeiros pais. Quando, certo dia, alguém lhe sugeriu não serem esses seus pais, Édipo fica tâo consternado que vai consultar o oráculo de Delfos. O oráculo diz a Édipo - tal como fora dito antes a seus verdadeiros pais - que ele matará seu pai e casará com a própria mãe. 34 Chocado com semelhante profecia, Édipo deseja tão ardentement e proteger aqueles que pensa serem seus pais que foge de Corinto, decidido a nunca mais voltar. Começa vagueando por toda a Grécia, quando, numa encruzilhada, mata um estranho - Laio, seu pai - com quem se encontrara e se desentendera. Finalmente, Édipo chega a Tebas, num momento em que a cidade está sendo assolada pela Esfinge, que se instalara num penhasco vizinho e propunha enigmas a todos os que tentavam passar por perto, matando qualquer um que nâo lhe desse a resposta certa. Édipo, sem eira nem beira e tendo a vida em pouco apreço, aceita o desafio da Esfinge e consegue resolver o enigma que ela lhe apresentou. A Esfinge joga-se num despenhadeiro e Édipo, como recompensa por ter libertado Tebas, é feito rei e casa com Jocasta. Muitos anos depois, abate-se a peste sobre a cidade como punição pelo assasssinato nâo vingado de Laio. Édipo vê-se obrigado a procurar o assassino e, quando a verdade é finalmente revelada, ele se cega e Jocasta se suicida. O significado do termo complexo de Édipo é simbólico. Tal como todas as demais metáforas que Freud usou em seus escritos, esse termo é principalmente valioso por sua sugestividade e riqueza referencial. É uma metáfora que funciona em muitos níveis, uma vez que alude a outras metáforas por suas referências manifestas e encobertas ao mito e ao drama. Freud escolheu-o para iluminar e vivificar um conceito que desafia uma expressão mais concisa. Se acreditarmos, como muitos de meus alunos acreditavam, que o termo complexo de Édipo subentende apenas que rapazinhos pequenos querem matar o homem que sabem ser o pai deles e casar com a mulher que sabem ser a mâe deles, então o nosso entendimento baseia-se numa simplificação extrema e descabida do mito. No fim de contas, Édipo não sabia o que estava fazendo quando matou Laio 35 e casou com Jocasta, e seu maior desejo era tom ar impossível para ele causar qualquer dano àqueles que pensava serem seus pais. O que esse termo deve sugerir-nos é a angústia e culpa da criança por ter desejos parricidas e incestuosos, assim como as conseqüências de agir de acordo com esses desejos. A culpa de Édip o e sua descoberta da verdade sã o as questões centrais na peça de Sófocles e refletem-se nas principais características do complexo de Édipo. Descobriu Freud que, quando já não somos mais crianças, ignoramos os sentimentos negativos a respeito do genitor do mesmo sexo e os sentimentos sexuais acerca de ambos os pais que tivemos nos primeiros anos de vida, porque reprimimos profundamente muitos aspectos desses sentimentos. Em segundo lugar, embora esses sentimentos complexos e ambivalentes acerca de nossos pais nos sejam desconhecidos como adultos, continuamos sendo inconscientemente motivados por eles e sentimo-nos inconscientemente culpados por tê-los. Esses desejos inconscientes e esses sentimentos inconscientes de culpa podem acarretar conseqüências devastadoras. Finalmente, quando a hostilidade reprimida contra o genitor do mesmo sexo e os anseios sexuais pelo genitor do sexo oposto ganham, enfim, acesso ao nosso reconhecimento consciente, então poderemos tomar medidas para sustar as terríveis conseqüências desses sentimentos. Ao pensarmos sobre o complexo de Édipo, cumpre-nos ter em mente que tanto o mito quanto a tragédia de Sófocles nos dizem que Édipo agiu da maneira que agiu porque seus pais o rejeitaram completamente quando criança, e que uma criança que não fosse profundamente rejeitada por seus pais jamais agiria como Édipo. As idéias de Freud acerca da profunda repressão dos desejos edipianos e da severidade da culpa edipiana - tão importantes para se compreender 36 �o conflito que modela uma tão grande parte de nossa personalidade - não fazem sentido algum se o nosso pai tentou realmente matar-nos quando éramos crianças; por que haveríamos de sentir-nos culpados por desejar livrarmo-nos de semelhante vilão? E o desejo de amar e ser amado exclusivamente e para sempre por nossa mãe, assim como a culpa pelo desejo de possuí-la, não fazem sentido se a nossa mffe se voltou realmente contra nós quando éramos jovens. Somente o nosso amorpor nossos pais e o nosso desejo consciente de protegê- los é que nos leva a reprimir nossos sentimentos negativos e sexuais em relação a eles. São esses sentimentos ocultos a que Freud se referiu quando falou da culpa edipiana. Édipo, ao fugir de Corinto, não prestou atenção à admonitória inscrição no templo: Conhece-te a ti mesmo. A inscrição advertia implicitamente que quem não se conhecesse a si mesmo seria incapaz de compreender as sentenças do oráculo. Como Édipo ignorava seus sentimentos mais íntimos, a profecia cumpriu-se. Porque era ignorante de si mesmo, acreditava que podia matar o pai que o criara bem e casar com a mãe que o amava como filho. Édipo concretizou em atos a sua cegueira metafórica - sua cegueira para o que o oráculo quisera dizer, baseada em sua falta de conhecimento de si mesmo - privando-se de sua visão. Ao fazê-lo, pode ter-se inspirado no exemplo de Tirésias, o vidente cego que revelou a Édipo a verdade sobre o assassinato de Laio. Encontramos em Tirésias a idéia de que ter a visão desviada do mundo externo e dirigida para o mundo interior - para a natureza íntima das coisas - confere à pessoa o verdadeiro conhecimento e permite-lhe compreender o que está oculto e precisa ser conhecido. O princípio orientador da psicanálise estabelece que conhecermo-nos requer conhecermos também o nosso inconsciente e lidarmos 37 com ele, de modo que suas pressões não -reconhecidas não nos levem a agir de um modo prejudicial para nós próprios e para os outros. com isto presente, o autoconhecimento requerido para uma verdadeira compreensão das sentenças oraculares poderia ser entendido como abrangendo também os aspectos normalmente inconscientes de nós mesmos. Assim, o conceito freudiano do complexo de Édipo contém a advertência implícita de que precisamos adquirir ciência de nosso inconsciente. Se o fizermos, estaremos então aptos a controlá-lo. E quando nos encontrarmos de novo numa encruzilhada, sem saber por que rumo enveredar e sentindo- nos bloqueados por alguma figura paterna, não a agrediremos em incontrolada ira e frustração. Em momentos de grande stres s, não seremos impelidos por nosso inconsciente para agir de um modo que nos destrua, como as ações de Édipo o destruíram. É parte integrante do mito de Édipo - e, por conseguinte, por implicação, do complexo de Édipo - que, enquanto o feito edipiano e os desejos, agressões e ansiedades edipianos inconscientes que levaram ao feito permanecem desconhecidos, eles continuarão exercendo seu poder destrutivo: a pestilência que devastou Tebas simboliza isso. Quando Édipo toma conhecimento da verdadeira causa da peste, purifica-se e a peste cessa. Esta é uma parte crucial do mito: assim que o desconhecido passa a ser conhecido - assim que o segredo do parricídio e do incesto com a mãe é trazido para a luz e o herói se redime purificando-se - as conseqüências perniciosas do feito edipiano desaparecem. O mito adverte também que quanto mais demorada for a nossa defesa contra o conhecimento desses segredos, maior será o dano causado a nós mesmos e aos outros. O construto psicanalítico do complexo de Édipo também contém essa advertência implícita. Freud descobriu, 38 tanto em sua auto-analise quanto em seu trabalho com paciente s, que quando se possui a coragem de enfrentar os próprios desejos parricidas e incestuosos inconscientes - o que eqüivale a purgá-los - as conseqüências maléficas desses sentimentos extinguem-se. Ele descobriu que tomar conhecimento de nossos sentimentos inconscientes - que assim deixam de ser inconscientes para to marem-se parte de nossa mente consciente - constitui a melhor proteção contra a catástrofe edipiana. É perfeitamente possível que, ao desenvolver sua teoria do complexo de Édipo, Freud reagisse subconscientemente à sua familiaridade com o mito de Édipo e com a tragédia de Sófocles, pois tanto aquele como esta advertem sobre as conseqüências profundamente destrutivas de se agir sem saber o que se está fazendo. As descobertas de Freud permitem-nos compreender também o significado mais profundo da história da Esfinge, a qual teve provavelmente sua origem nos insights inconscientes dos inventores do mito. A lenda de Édipo justapõe os resultados radicalmente opostos de nossas ações quando somos impelidos por pressões inconscientes, como foi Édipo ao matar Laio, e quando estamos livres de tais pressões, como estava Édipo em seu encontro com a Esfinge. A Esfinge, não sendo uma figura paterna, nâo despertou ambivalências e dificuldades psicológicas em Édipo, de modo que, quando defrontou a Esfinge, ele estava na plena posse de todos os seus poderes racionais e foi-lhe assim fácil resolver o enigma da Esfinge. Freud mostrou como isso se aplica a todos nós: quando estamos aptos a enfrentar as forças sombrias com os poderes de nossa mente racional, desembaraçada de pressões inconscientes, a racionalidade leva a melhor; e, quando a racionalidade domina as nossas ações, podemos derrotar os poderes destrutivos e neutralizar sua capacidade de nos causar dano. 39 �A Esfinge, que apresentava enigmas e devorava aqueles que nã o podiam resolvê-los, era em si mesma um enigma, porquanto era parte mulher e parte um animal destruidor. A parte superior de seu corpo era o de uma mulher, com seios proemimentes; a parte inferior, onde seus órgãos sexuais estão localizados, era de uma leoa com terríveis garras. Ela é, simultaneamente, símbolo da mãe boa e nutriente, e da mSe má e destrutiva. Simboliza o medo da criança de que, por causa dos desejos de devorar a mâe para que esta seja toda dela e nunca possa deixá-la (uma idéia que tem suas origens no fato de que a criança come pedaços de sua mãe, tenta engolir partes do corpo dela quando mama), a mâe revide devorando-a. Como nos é dito que a Esfinge propunha toda espécie de enigmas, é lícito supor que aquele que foi apresentado a Édipo tenha sido especificamente prep arado para ele. O enigma assim rezava: De manha anda em quatro pés, ao meio dia em dois e à noite em três e Precisamente quando caminha no maior número de pés é que sua rapidez e força sâo mínimas. A resposta correta, que foi dada por Édipo, era homem - pois na manha de sua vida (a infância) engatinha de quatro, ao meio-dia (o vigor da vida) caminha ereto sobre as pernas e à noite (a velhice) requer a assistência de uma terceira perna, isto é, de uma bengala; e, evidentemente, é na infância, quando tem o maior número de pés, que ele também possui menos força e menos rapidez de movimentos. Mas, como Thomas De Quincey sublinhou, o tema do enigma, e também a sua solução , não sSo simplesmente o homem em geral, mas Édipo em particular: ninguém é mais fraco ao nascer do que o bebê abandonado com seus pés pregados um ao outro, e ninguém precisa de mais ajuda na velhice do que Édipo, em seus anos de cegueira. Sem dúvida, Édipo, em virtude dos efeitos duradouros de seu trauma 40 infantil, deve ter estado mais preocupado do que a maioria das pessoas com os problemas criados à sua locomoção pelos pés deformados, e mais prope ns o a meditar sobre o que significaria caminhar em várias idades; como criança, engatinhando de quatro, deve ter-se apercebido mais nitidamente do que uma criança normal de sua incapacidade para caminhar sobre dois pés. O que a história da Esfinge parece enfatizar é que a resposta ao enigma da vida não é pura e simplesmente o homem, mas cada pessoa em si mesma. Assim, o mito volta a dizer-nos que devemos nos conhecer para nos libertarmos dos poderes destrutivos. No sistema de Freud, os desejos edipianos e a ansiedade de castração estão intimamente ligados: a ansiedade de castração contribui para o abandono das impulsões edipianas e leva ao desenvolvimento das instituições controladoras da mente e da moralidade. Pensamos hoje que o amor da criança por seus pais também tem muito a ver com esses desenvolvimentos. Shakespeare reconheceu isso quando, no Soneto 160, escreveu:Mas quem não sabe que a consciência é filha do amor? Freud acreditava que o medo do pai de ser substituído, de ser derrotado pelo filho, é que explicava a prática da circuncisão - uma castração simbólica - em sociedades primitivas. Depois que Freud expressou essas idéias, surgiram dúvidas acerca de seus pontos de vista sobre o significado da circuncisâo,1 mas é certo que ele reconheceu o papel que as atitudes parentais desempenham na formação e resolução do complexo de Édipo. A importância das atitudes parentais está claramente indicada no mito. 1. Ver, entre outros escritos, o meu próprio livro Symbotk Wounds. 41 �Se os pais de Édipo não tivessem acreditado na predição do oráculo, eles nâo teriam tentado matar seu filho. Era conhecimento comum na época que as sentenças de Pítia eram ambíguas e difíceis de interpretar corretamente. Para que Laio e Jocasta aceitassem essa profecia incondicionalmente, eles deviam estar convencidos de que sua interpretação do oráculo era a correta, assim como Édipo também estava convencido da correção de sua interpretação e de que o oráculo se referia a seus pais adotivos. O que convenceu Édipo foram os sentimentos edipianos que ele desenvolvera em relação àqueles que o tinham criado desde a infância; o que convenceu seus pais foram seus sentimentos em relação à criança, sentimentos esses que são parte integrante do complexo de Édipo, tanto quanto os do filho. A interpretação dada por Laio à sentença do oráculo parecia- lhe plausível porque temia ser substituído por seu filho: inicialmente, na afeição de sua esposa e, mais tarde, em seu papel na sociedade. Embora o primeiro desses temores seja freqüentemente ainda que nem sempre - injustificado, o segundo não é, dado que no curso normal dos acontecimentos o filho substitui o pai na sociedade quando este envelhece e o filho atinge a idade adulta. Jocasta deve ter receado a possibilidade de amar seu filho mais do que amava o marido; caso contrário, teria tentado persuadir Laio de que ele interpretara erradamente o significado da profecia e de que nenhum filho deles faria o que havia sido profetizado. Se ela não alimentasse tais temores, nunca teria concordado em que Édipo fosse mandado para longe, condenado à morte, e teria feito algum esforço para salvá-lo. Foi por não ter feito isso - por ter participado na trama para matar o filho - que Jocasta se suicidou mais tarde. Seu suicídio nada teve a ver com a culpa por seu incesto com Édipo, como tantos 42 de meus alunos acreditavam; Sófocles deixou esse ponto bem claro. A lenda de Édipo prenuncia assim a descoberta psicanalítica de que os desejos e ansiedades edipianos da criança têm suas contrapartes nos sentimentos dos pais em relação ao filho. Esses sentimentos são a atração dos pais para a criança do sexo oposto e sua ambivalência (ou mesmo ressentimento) a respeito da criança do mesmo sexo, por quem temem ser substituídos. Se os pais permitem que esses sentimentos os dominem, entSo resultará o gênero de tragédia de que nos falam o mito e Sófocles. Ainda há muito a aprender sobre a vida, obra e pensamentos de Freud, uma vez que grande número de documentos importantes ainda estão fechados a sete chaves nos Arquivos Freud da Biblioteca do Congresso e só serão acessíveis a partir do ano 2000. Duvido, porém, de que mesmo quando esses arquivos forem franqueados se adquira um conhecimento seguro acerca de todos os pensamentos conscientes e subconscientes que contribuíram para a formação por Freud do seu conceito de complexo de Édipo; seu desenvolvimento foi extremamente difícil e levou muito tempo para se definir. Isto é sugerido pelo fato de mais de dez anos terem transcorrido entre a primeira menção do Édipo de Sófocles em ligação com o que Freud estava descobrindo a respeito dos sentimentos inconscientes das crianças em relação a seus pais (isso foi numa carta ao seu amigo Wilhelm Fliess, escrita na época em que Freud fazia sua auto-analise) e o batismo real do complexo de Édipo numa publicação. Já em 1900 Freud escrevia sobre as semelhanças entre a psicanálise e Édipo Rei: A açâo da peça consiste, nem mais nem menos, no processo de revelar, passo a passo, com excitaç ío crescente e astuciosas demoras - comparáveis ao trabalho da psicanálise - que o próprio Édipo é não só o assassino de Laio mas também filho do 43 homem assassinado e de Jocasta. Se analisarmos o Édipo de Sófocles como Freud o fez, damo-nos conta de que toda a peça gira essencialmente em tom o da luta de Édipo para chegar à verdade oculta. É uma batalha pelo conhecimento, na qual Édipo tem de superar uma tremenda resistência interior contra o reconhecimento da verdade sobre si mesmo, pois o que possa vir a descobrir causa-lhe um ime ns o temor. Quem estiver familiarizado com a tragédia, como Freud esperava que seus leitores estivessem, não pode deixar de impressionar-se com o fato de Sófocles não apresentar o feito edipiano; os próprios desejos edipianos só são brevemente mencionados no comentário de Jocasta: Tampouco este casamento com a mãe precisa aterrorizar-te; muitos são os homens que sonharam com isso. De certo modo, a peça de Sófocles parece subentender que (o desejo de) eliminar o pai e (o desejo de) casar com a mãe é um decreto do destino, tal como o mito diz que é, e nada mais do que isso. O que forma a essência de nossa humanidade - e da peça - não é sermos vítimas do destino, mas a nossa luta para descobrir a verdade sobre nós mesmos. Jocasta, que afirma claramente não desejar descobrir a verdade, é incapaz de enfrentá-la quando ela lhe é revelada, e perece. Édipo, que enfrenta a verdade, apesar dos ime ns os perigos para si mesmo, dos quais está, pelo menos, vagamente cônscio, sobrevive. Édipo sofre profundamente, mas, no final, em Colonas, não só encontra a paz como é guindado a deus e transfigurado. O que é sumamente significativo a respeito de Édipo, da situação edipiana e do complexo de Édipo é não só a trágica determinação do destino, segundo o qual todos nós somos projetados em profundos conflitos pelos nossos desejos infantis, mas também a necessidade de resolver esses conflitos através da difícil e árdua luta pela (e a realização final da) autodescoberta. Por isso é que, como 44 Freud sempre insistiu, o complexo de Édipo é central para a psicanálise. VI Aceitar a idéia do complexo de Édipo sem compreender o mito e a peça donde ele tirou seu nome é uma forma de aceitar a psicanálise sem tentar alcançar o seu mais profundo significado - exatamente aquilo que Freud preconizou que aconteceria nos Estados Unidos. Como os tradutores de Freud previam um vasto contingente de leitores ingleses e americanos, e como os leitores americanos, pelo menos, tendem a estar pouco familiarizados com a história de Édipo e outras referências clássicas de Freud, teria sido muito útil se os tradutores tivessem feito alguma tentativa de explicar o significado das alusões de Freud à literatura clássica. Pode ser contestado que os tradutores tinham a obrigação de se preocupar em traduzir somente o que o autor escreveu, tão fielmente quanto as diferenças de línguas o permitem. Mas para tratar de forma acurada um tema como a psicanálise e uma linguagem tão cuidadosamente escolhida e cheia de matizes quanto a de Freud, os tradutores precisam ser muito sensíveis, não só para o que está escrito como também para o que está subentendido. Sua tarefa inclui, definitivamente, a obrigação de transmitir não só as palavras que formam uma 45 �frase mas também os significados a que essas palavras aludem. Os tradutores devem ser receptivos aos esforços do autor para falar também ao subconsciente do leitor, para suscitar neste uma reação tanto emocional quanto intelectual. Em suma, devem também traduzir as tentativas do autor de comunicação de significados implícitos. Não duvido de que os tradutores ingleses de Freud quiseram apresentar seus escritos ao público tão fielmentequanto possível - em função do quadro de referência dentro do qual desejavam que ele fosse entendido. Quando Freud parece ser mais impenetrável ou mais dogmático em tradução inglesa do que no original alemão, estar falando mais sobre conceitos abstratos do que a respeito do próprio leitor, e mais acerca da mente do homem do que de sua alma, a explicação provável não é leviandade ou negligência por parte dos tradutores, mas um desejo deliberado de perceber Freud estritamente dentro do quadro de referência da medicina e, possivelmente, uma tendência inconsciente para se distanciarem do impacto emocional daquilo que Freud procurou transmitir. As traduções inglesas apegam-se a uma fase inicial do pensamento de Freud, na qual ele se inclinou para a ciência e a medicina, e desprezam o Freud mais maduro, cuja orientação era humanista e cuja preocupação primordial era co m problemas culturais e humanos, vistos como um todo, e com a s questões da alma. O próprio Freud afirmou considerar o significado cultural e humano da psicanálise mais importante do que o seu significado médico. Ao resumir, na 34? das Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (New Introductory Lectures on Psychoanalysis, 1933), o que reputava serem os principais méritos da psicanálise, Freud, embora sublinhando seus êxitos terapêuticos, não escondeu 46 �as limitações do método nesse campo; de fato, admitiu nunca ter estado realmente entusiasmado a respeito da psicanálise como terapia. Se bem que a psicanálise seja, sem sombra de dúvida, o mais valioso de todos os métodos de psicoterapia, esse escasso entusiasmo só podia ser esperado, uma vez que se trata de um método extremamente difícil, exigente e grande consumidor de tempo e energia. Freud recomendou que nos interessássemos pela psicanálise, não como uma terapia, mas, outrossim, pelo que nos revela a respeito daquilo que interessa mais de perto ao homem: a sua própria essência e por causa das ligações que desvenda entre as mais variadas ações humanas. Sua maior esperança era que, com a divulgação do conhecimento psicanalítico, e com os insights adquiridos através desse conhecimento, a criação dos filhos fosse reformada. Freud considerou ser essa talvez a mais importante de todas as atividades de análise, porquanto poderia libertar o maior número de pessoas - não apenas aquelas poucas que se submeteram pessoalmente à análise - de repressões desnecessárias, ansiedades irreais e aversões destrutivas. Ao reduzir drasticamente os conflitos interiores de que sofremos, a psicanálise poderia ajudar-nos a agir mais racionalmente poderia ajudar-nos, em suma, a nos tom ar mais humanos. Em seu Pós-Escrito para A Questão da Análise Leiga (Postscript to The Ques tão n of Lay Analysis, 1927), disse Freud: A psicanálise não é uma especialidade médica. Não vejo como se possa resistir a reconhecer isso. A psicanálise é uma parte da psicologia. Não é psicologia médica na acepção tradicional, nem a psicologia de processos patológicos. É psicologia propriamente dita; por certo, não a totalidade da psicologia, mas o seu substrato, possivelmente o seu próprio alicerce. E adverte em seguida que não devemos nos deixar enganar pela aplicação da psicanálise para fins médicos; comparou a psica- nálise à eletricidade, que tem seus usos médicos na forma de técnicas de raios X, sublinhando que isso não faz a eletricidade tom ar-se parte da medicina, em vez de ser parte da física. Apesar dessa clara afirmação, a psicanálise foi percebida nos Estados Unidos e em outros países como uma prática que deveria ser prerrogativa exclusiva de médicos, em vez de ser aceita pelo que ela é no mais profundo e mais importante sentido: um apelo em favor de maior humanidade e uma forma de realizá-la. Tão obstinados estavam os analistas americanos em que a psicanálise deveria ser restringida aos médicos que, em 1926, o legislativo estadual de Nova York promulgou uma lei declarando ilegal qualquer análise não conduzida por um médico. Não satisfeitos com isso, os americanos continuaram sua batalha no âmbito da Associação Psicanalítica Internacional e ameaçaram romper com o movimento psicanalítico internacional se o ponto de vista deles não fos se aceito. A controvérsia em tom o dessa questão redundou em graves dissensões no seio da Associaçã o Psicanalítica Internacional, as quais duraram de 1926 a 1932, quando Ernest Jones, presidente de uma comissão criada pela associação para tratar do problema, encontrou uma solução de compromisso, de acordo com a qual cada uma das sociedades nacionais, que formam a associação internacional, teria daí em diante o direito de fixar as qualificações necessárias à filiação. Em conseqüência disso, os analistas americanos decidiram - contrariando frontalmente as sólidas convicções de Freud - que, como princípio geral, somente os médicos podiam ser analistas nos Estados Unidos. As conseqüências de tal decisão iriam ter importantes repercussões, embora ninguém suspeitasse disso na época. Quando Freud anuiu relutantemente à decisão dos analistas americanos, o centro da 48 psicanálise estava na Europa, com o grupo vienense, em tom o de Freud, claramente dominante. Todos os sete membros da Comissão que dirigia o movimento psicanalítico viviam na Europa: Freud e Otto Rank em Viena; Karl Abraham, Max Eitingon e Hanns Sachs em Berlim; Sandor Ferenczi em Budapeste; e Ernest Jones em Londres. Ninguém imaginava que o pequeno e relativamente insignificante grupo de analistas nos Estados Unidos poderia ter a menor influência no desenvolvimento geral da psicanálise, uma vez que todos os avanços teóricos e práticos se originavam nos centros europeus, principalmente com o próprio Freud, sua filha Anna e os outros membros da Comissão. com a subida de Hitler ao poder, entretanto, tudo mudou subitamente. A psicanálise desapareceu no continente europeu e, depois da guerra, os psicanalistas americanos constituíam o maior e mais influente grupo, dominando todo o campo. É duvidoso, para dizer o mínimo, que se Freud tivesse previsto essa situação, concordasse em que a psicanálise nos Estados Unidos se convertesse numa especialidade médica, se levarmos em conta que, toda vez que ele tinha uma opinião inabalável sobre alguma questão, não hesitava em correr o risco de cisões no movimento psicanalítico para assegurar sua continuação no espírito que ele lhe incutira. O vigor da convicção de Freud de que a psicanálise não devia existir exclusivamente dentro de um quadro de referência médico pode ser aferido por uma carta de 1928 para seu amigo Oskar Pfister. Referindo-se a dois de seus livros recentes, A Questão da Análise Leiga (The Ques tão n of Lay Analysis, 1926 ), no qual tinha argumentado que devia ser permitido a leigos psicanaliticamente treinados tratar pacientes, e O Futuro de uma Ilusão (The Future of an Illusion, 1927), que se ocupou da natureza das idéias religiosas, 49 �escreveu ele: Não sei se você se apercebeu do vínculo oculto entre Anális e Leiga e Ilusão . No primeiro livro, quero proteger a análise dos médicos e, no segundo, dos padres. Quero conf i á-la a uma profissão que ainda não existe , uma profissão de pastores seculares de almas, que não têm por que ser médicos e não devem ser sacerdotes. A psicanálise não pretendia ser uma disciplina médica nem um credo. Os psicanalistas não deviam pensar ou agir como os que se ocupam da cura do corpo, nem lhes competia serem mensageiros de uma verdade esotérica ou revelada. (A propósito, em sua edição americana original, publicada em 1927, o título The Ques tão n of Lay Analysis - Die Frage der Laienanalyse - foi erradamente traduzido como The Problem of Lay-Analyses. Quando o livro foi reeditado com seu título correto, em 1947, o dano já estava feito.) Nos últimos meses de vida de Freud, quando a psicanálise quase deixara de existir no continente europeu, circulou o boato de que ele mudara de idéia e era agorada opinião de que a prática da psicanálise deveria ser limitada aos médicos. Em resposta a um pedido de esclarecimento sobre o assunto, Freud escreveu (em inglês): Não consigo imaginar como se originaria esse boato idiota de que mudei de opinião sobre a questã o da análise leiga. O fato é que jamais repudiei meus pontos de vista a esse respeito e insisto neles ainda mais intensamente do que antes, em face da óbvia tendência americana para converter a psicanálise em mera faxineira da psiquiatria. 1. O que traduzi como pastores de almas é, no original, seelsorger, um termo normalmente aplicado a padres e ministros protestantes. Freud usou-o num sentido mais amplo, combinando Seele, que significa alma, e Sorger, que significa alguém que cuida das necessidades de outrem. 50 Para caracterizar a função do analista - alguém que pode facilitar imensamente o surgimento de uma nova personalidade, tom ando seguro o processo de mudança - Freud usou freqüentemente o simile da parteira. Assim como a parteira não produz a criança nem decide o que ela será, mas apenas ajuda a mãe a dá-la à luz com segurança, também o psicanalista não pode dar origem à nova personalidade nem determinar o que ela deve ser; somente a pessoa que analisa a si mesma pode reformar-se. Outros houve que usaram também a imagem da parteira para explicar o tratamento da psicanálise. A poetisa H. D. (Hilda Doolittle), falando de sua experiência com Freud durante sua análise, disse: Ele é o parteiro da alma. OT Na Viena da época de Freud, a psicologia não era uma ciência natural, mas um ramo da filosofia; ela era principalmente especulativa e descritiva, de conteúdo essencialmente humanista. Só depois da II Guerra Mundial a psicologia em Viena saiu desse quadro de referência e mesmo então o processo foi lento e cauteloso, quando os psicólogos começaram imitando os cientistas naturais em seus métodos e formas de pensamento. Podemos ver de que modo Freud concebia a psicologia através das referências que lhe fez em The Ques tão n of Lay Analysis: Em �psicologia, só podemos descrever com a ajuda de comparações. Isso nada tem de especial; o mesmo ocorre em outras áreas. Mas somos forçados a mudar repetidamente essas comparações, pois nenhuma delas nos pode servir por muito tempo. Existem numerosas razões para o freqüente uso de metáforas por Freud, quando ele explica a natureza da psicanálise. Uma delas é que a psicanálise, embora se defronte com fatos indiscutíveis e objetivos, não se ocupa deles como tais, mas dedica-se à interpretação e explicação imaginativa de causas ocultas, as quais somente podem ser inferidas. As metáforas que Freud usou têm a finalidade de cobrir a brecha que existe entre os fatos concretos e dolorosos a que a psicanálise se refere e a maneira imaginativa como os explica. Uma segunda razão está ainda mais estreitamente relacionada com a natureza da psicanálise. Em virtude da repressão, ou da influência da censura, o inconsciente revela-se em símbolos ou metáforas, e a psicanálise, em sua preocupação com o inconsciente, procura falar sobre ele em sua própria linguagem metafórica. Finalmente, as metáforas são mais suscetíveis, do que uma explicação puramente intelectual, de ferir uma corda humana e suscitar nossas emoções, proporcionando-nos assim uma percepção do que pretendem dizer. Uma verdadeira compreensão da psicanálise requer não só percepção intelectual mas uma resposta emocional simultânea; nem uma nem outra isoladamente alcançará esse objetivo. Uma metáfora bem escolhida permitirá a ocorrência de ambas. Como os poetas falam em metáforas sobre o conteúdo de seus inconscientes, Freud insistiu em afirmar que eles, e outros grandes artistas, sabiam o tempo todo o que ele teria de descobrir através de laborioso trabalho. Em todos os seus escritos piscanalíticos, Freud analisou obras de arte e literatura, numa tentativa de apelar para as 52 nossas intuições, de mobilizar nossa compreensão consciente e inconsciente. Citou com freqüência Goethe, Shakespeare e outros poetas, assim como escritores tais como Dostoievsky, Nietzsche e Arthur Schnitzler, e sustentou que eles sabiam tudo o que era preciso saber a respeito do inconsciente. Tudo o que ele reivindicava para si mesmo era ter organizado esse conhecimento, tom ando-o acessível como um meio de compreender o inconsciente não só intuitiva mas também explicitamente. Freud raramente citou cientistas naturais e, muito menos, médicos; as únicas exceções eram os seus colegas psicanalistas, que também eram médicos, a quem ele ensinara a psicanálise em primeiro lugar. Freud deliciava-se com chistes e anedotas, principalmente anedotas judias, porque eram tSo férteis de significados inconscientes. Tal como as metáforas, os chistes sugerem mais do que anunciam seu significado e convidam o iniciado a especular sobre sua origem inconsciente. Freud dedicou uma de suas principais obras amostrar até que ponto os chistes nos proporcionam, de forma engenhosa, concisa e divertida, in sights profundos sobre o inconsciente do homem, e usou anedotas para esse fim em muitos outros de seus escritos. (Numerosas anedotas judias, muito populares nos meios intelectuais vienenses ao tempo de Freud, afirmavam sua argúcia, mas, simultaneamente, troçavam dela, moderando assim os efeitos de suas pretensões de superioridade. O anti- semitismo que predominava em Viena despertou fortes reações entre a populaçío judia, reações que teria sido imprudente manifestar abertamente, e as anedotas judias permitiam com fr eqüência desabafar esses sentimentos; eram, na maioria das vezes, metáforas do que os judeus vienenses realmente sentiam.) Por essas e tantas outras razões paralelas, é importante, se 53 desejarmos compreender Freud, prestar muita atenção ao seu uso de metáforas, quer ele tom asse óbvio ou não que estava falando metaforicamente; é igualmente importante que não tomemos suas metáforas como declarações fatuais. De todas as metáforas que Freud usou, provavelmente nenhuma teve conseqüências mais importantes e de mais profundo alcance do que a metáfora da doença mental e - derivada dela - a metáfora da psicanálise como tratamento e cura da doença mental. Freud recorreu à imagem da doença e seu tratamento para nos permitir compreendermos como certas perturbações influenciam a psique, o que é que as causa e como podem ser enfrentadas. Se essa metáfora não for reconhecida como tal, mas, pelo contrário, aceita como referência a fatos objetivos, privamo-nos de um entendimento real do inconsciente e seu funcionamento. Nessa metáfora, o corpo representa simbolicamente a alma. Se a metáfora for interpretada literalmente, como tem sido nos Estados Unidos, a nossa psique, ou alma - para Freud os dois termos são intercamb já veis - parece tom ar-se algo tangível. Adquire algo parecido com uma existência física, como um órgão do corpo; por conseguinte, seu tratamento passa a ser parte da ciência médica. Nos Estados Unidos, é claro, a cura da doença mental tem sido considerada a principal tarefa da psicanálise, tal como a cura da doença corporal é missão precípua da medicina. Espera-se que quem se submete à psicanálise obtenha resultados tangíveis - a espécie de resultados que o médico, obtém para o corpo - em vez de adquirir uma compreensão mais profunda de si mesmo e um maior controle de sua vida. Em 1949, um dos mais destacados psicólogos estadunidenses declarou numa assembléia da Associação Psicológica Americana que, de todas as características da teoria 54 �freudiana, os mecanismos de ajustamento eram os mais largamente aceitos nos Estados Unidos. Essa extraordinária declaração revela a natureza da aceitação americana da psicanálise, se atentarmos especialmente para o fato de que Freud pouco se preocupava com o ajustamento e não o considerava valioso. O que é verdade, e o que os porta-vozes americanos da psicanálise deveriam ter dito, é que o conceito de ajustamento
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