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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Para a minha família. AGRADECIMENTOS Desde que escrevi Prato Sujo – Como a Indústria Manipula os Alimentos para Viciar Você, recebo dezenas de mensagens de leitores dizendo que começaram a olhar a alimentação de um novo jeito. Muitos conseguiram retomar o hábito de passar mais tempo à mesa saboreando as histórias contadas ao redor dela. Espero que o Tarja Preta também seja entendido assim, não como um manual do que fazer, mas como uma inspiração para melhores escolhas na hora de tratar o corpo, a mente, a saúde e as relações. Agradeço ao Alexandre Versignassi por ter acreditado no projeto e liderado a força-tarefa para que os planos virassem páginas, à SUPER por continuar firme no propósito de divulgar a ciência e aos profissionais feras que ajudaram direta ou indiretamente a fazer este livro: além do Versi, tem o Denis Russo Burgierman, o Fabricio Miranda, a Inara Negrão, o Alexandre Carvalho dos Santos, o Anderson C. S. de Faria, a Cris Pereira. Obrigada a todos os neurologistas, psiquiatras, endocrinologistas, pesquisadores, antropólogos, psicanalistas, psicólogos, profissionais da indústria farmacêutica, membros de organizações e conselhos de classe, como o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, o Conselho Federal de Farmácia, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e o Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Em especial, agradeço ao psiquiatra americano Allen Frances, diretor de uma das edições do DSM, o principal manual de diagnóstico psiquiátrico do mundo. Frances separou um tempo generoso para me ensinar sobre os bastidores dos excessos de diagnósticos de transtornos mentais. Obrigada aos amigos e desconhecidos que dividiram comigo suas histórias de como vencem o preconceito contra a obesidade e lidam com a ansiedade, a depressão, o transtorno bipolar e o déficit de atenção. Obrigada a você, que comprou este livro. SUMÁRIO PARTE 1 • TARJA PRETA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 1 - Big Pharma Brasil Capítulo 2 - Remediolão Capítulo 3 - O Poderoso checão Capítulo 4 - Doenças S/A Capítulo 5 - Elixires milagrosos Capítulo 6 - Overdose de drogas lícitas Capítulo 7 - O manual da loucura PARTE 2 • TARJA VERMELHA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 8 - Ansiedade: de aliada a vilã Capítulo 9 - A vida em preto e branco: depressão e antidepressivos Capítulo 10 - Déficit de atenção: a vida fora de foco Capítulo 11 - Obesidade: verdades, mitos e mais mitos Capítulo 12 - Automedicação: um perigo real Capítulo 13 - Efeito placebo Posfácio Créditos SE TEM UM local que brasileiro frequenta é a farmácia. Existem mais estabelecimentos no País para comprar remédio do que para comprar pão: são 78 mil drogarias1, contra 63 mil padarias2. O Brasil é o sexto país que mais consome medicamentos no mundo, atrás de Estados Unidos, Japão, China, Alemanha e França3, e devemos ultrapassar os franceses e os alemães em 2017. O uso de remédios que alteram a química cerebral cresce a galope. O Rivotril foi o medicamento mais prescrito no Brasil entre 2013 e 20144. As vendas de clonazepam, o princípio ativo do calmante, aumentaram 73% nos últimos nove anos e as de antidepressivos subiram 44% em cinco anos. A alta nas vendas de um estimulante tarja preta, o metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial Ritalina, chegou a 775% entre 2003 e 20125. E, sorria, porque você está sendo monitorado. Sim: eles sabem que você comprou comprimidos na farmácia da esquina. Eles sabem a marca do remédio, o problema de saúde que você tem, o nome do médico que deu a receita, onde você mora, qual a sua idade e o seu CPF. Eles são a indústria farmacêutica. Existe um sistema informatizado que integra os dados de vendas de parte das farmácias com empresas especializadas em auditar o mercado de remédios, num trabalho cuja documentação pode envolver a microfilmagem de notas fiscais e receitas. Os dados são consolidados e geram relatórios periódicos com rankings mensais por laboratório, unidades vendidas, valores… Essas empresas também fazem pesquisas com médicos para ter acesso ao registro diário de informações no consultório com o histórico da prescrição de medicamentos, os diagnósticos e as características dos pacientes. A indústria recebe esses relatórios e pode ver as enfermidades mais diagnosticadas, os remédios mais receitados, sintomas tratados, sexo e média de idade dos pacientes, médicos que mais detectam determinados males, bairros campeões em vendas de remédios, doutores que mais receitam tal droga, medicamentos prescritos na mesma receita. Eles sabem quais são as doenças mais lucrativas. Dependendo do número de receitas auditadas, cada médico pode ser classificado de acordo com o potencial de vendas. Isso serve para que os promotores das companhias farmacêuticas tracem estratégias específicas e consigam melhorar a sua “curva de conquista” de receituário. Em 2013, o Conselho Federal de Medicina emitiu um parecer6 sobre essa prática, alertando que ela viola princípios éticos e legais. Com o agravante de que essas informações sobre os pacientes são usadas para fins comerciais, “cujo resultado é utilizado para que os propagandistas e a indústria farmacêutica façam pressão sobre os médicos de modo que estes prescrevam seus produtos”, diz o documento. Existe um Projeto de Lei (número 2028/2015) que propõe considerar como infração sanitária a violação do sigilo das prescrições médicas retidas pelas farmácias. As penas previstas seriam advertência, interdição parcial ou total do estabelecimento, cassação da licença sanitária, cancelamento da autorização para o funcionamento da empresa e multa. Mas enquanto o projeto não vira lei, o procedimento segue solto. O que a farmácia ganha com isso? O Conselho Federal de Farmácia afirma desconhecer que farmacêuticos recebam dinheiro, descontos ou qualquer tipo de vantagem em troca de informações sobre a venda de medicamentos. “Porém, caso os Conselhos Regionais de Farmácia, que são os responsáveis pela fiscalização do exercício profissional do farmacêutico, venham a receber este tipo de denúncia, uma sindicância será feita no local, a fim de que os fatos sejam apurados. Tal infração seria de ordem ética”, afirma a farmacêutica Alessandra Russo de Freitas, do Centro Brasileiro de Informação Sobre Medicamentos do Conselho Federal de Farmácia. De qualquer forma, esse monitoramento pode acontecer com o seu consentimento, inclusive. Ou vai dizer que nunca se cadastrou numa drogaria ou no site do fabricante para integrar um programa de fidelidade e conseguir descontos? Quando alguém se inscreve para pagar mais barato nos remédios, precisa informar nome completo, data de nascimento, endereço, CPF, e-mail, telefone. A cada compra, são lançados o nome do médico que deu a receita, o número do registro profissional delee o nome do remédio. Os cartões de desconto e aplicativos de celular de farmácias e planos de saúde também geram dados que traçam um perfil dos pacientes, dos médicos e dos remédios receitados. Nada disso vai contra a legislação. Proibido, no Brasil, é fazer propaganda de medicamentos tarjados diretamente ao consumidor. Nos EUA, isso é permitido e causa uma enorme dor de cabeça, porque os pacientes tendem a chegar ao consultório salivando por um medicamento como quem está diante do novo combo de hambúrguer com fritas anunciado na TV. ESTE MÉDICO PODE FAZER MAL À SAÚDE Médicos podem receber dinheiro de laboratórios como remuneração por serviços de consultoria e palestras, e pela realização de pesquisas patrocinadas. O que não podem é ganhar para prescrever algum remédio. Ou melhor, não em espécie. Digamos que eu fabrique coxinhas e você tenha uma loja de salgados. A lei permite que eu mande kits de degustação, que um promotor da minha empresa faça visitas e leve folhetos explicativos sobre como os produtos são feitos segundo as mais avançadas práticas de elaboração de coxinhas. Eu posso convidar você para um piquenique no Central Park em Nova York, um congresso sobre “Os salgados e a geração Y” em Paris e um treinamento de coxinhas geneticamente modificadas em Milão. E você não será obrigado a oferecer meus produtos aos seus clientes por causa desses, digamos, incentivos. Aí eu monitoro as vendas das minhas coxinhas no mercado e vejo que, na sua loja, as coxinhas dos concorrentes têm mais saída do que as minhas. O que eu faço? Uma visitinha, claro. Digo que provavelmente “não vai mais estar sendo possível” convidá-lo para os nossos eventos, congressos e treinamentos, porque outros empresários são mais “parceiros” e eu prefiro “direcionar esforços” ao grupo fiel. Dependendo dos seus princípios morais, você mantém suas convicções sobre as coxinhas dos concorrentes e abre mão dos meus “incentivos”. Ou cede à pressão e recomenda meus produtos até para quem está de dieta. Remédios não são coxinhas, mas o mercado dos medicamentos funciona assim. Médicos cuidam de vidas e devem seguir um rigoroso código de conduta que os proíbe de colocar interesses financeiros acima da segurança do paciente. A indústria farmacêutica está legalmente autorizada a convidar os profissionais para a participação em eventos, congressos e treinamentos com despesas pagas, enviar aos consultórios amostras grátis de medicamentos e brindes, contratar médicos e promotores para informar sobre os remédios. O que se discute é o limite da ética e as perversões que esse sistema pode gerar. O fato de um médico estabelecer algum vínculo com uma companhia, como dar palestras, não quer dizer que ele tenha vendido a alma, claro. Também não significa que só prescreva uma medicação em troca de benefícios. Em tese, médicos tomam decisões baseadas em evidências de eficácia e segurança das drogas. A questão é: pode acontecer de alguns deles se corromperem? Sim, pode. Uma pesquisa do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)7 mostrou que 93% dos médicos paulistas recebem brindes, convites para almoços, jantares e eventos culturais, ou pagamentos de honorários de aulas e palestras das empresas farmacêuticas e de equipamentos. Desse total, 48% prescrevem os produtos indicados pelos fabricantes que os bancaram. Curiosidade: 77% dos médicos afirmam conhecer outros médicos que aceitam presentes, benefícios e pagamentos de maior valor, mas apenas 37% admitem que eles mesmos receberam. Outras curiosidades: 33% souberam ou presenciaram casos de pressão da indústria sobre médicos, 28% souberam de profissionais que recebem comissão por receitar medicamentos e realizar procedimentos recomendados pelos fabricantes e 22% conhecem médicos que indicam remédios ou procedimentos desnecessários, inclusive cirúrgicos, em troca de benefícios. Nenhum deles assume essas práticas. A conclusão do Cremesp é que a promoção de medicamentos, produtos e equipamentos, mesmo as iniciativas que parecem inofensivas, como distribuição de pequenos brindes, pode influenciar de forma negativa as decisões sobre tratamento. Nos EUA, essa relação entre médicos e indústria vem sendo alvo de iniciativas de controle. Desde 2013, o governo mantém uma lista aberta para consulta8 com informações sobre valores que médicos e hospitais universitários recebem da indústria e para quais atividades. Em 2014, as empresas declararam pagar US$ 6,45 bilhões a profissionais da área — só metade desse dinheiro foi remuneração pelo envolvimento em estudos. A outra metade financiou despesas que incluem brindes, viagens e contratação de palestras. Nove das dez maiores farmacêuticas do mundo gastam mais em marketing do que em pesquisa9. A maior parte delas coloca quase o dobro de dinheiro em ações para divulgar os remédios do que para desenvolvê-los. E você paga essa conta, já que todos esses custos são embutidos nos preços dos remédios. Por isso, dizer que novos medicamentos são caros por consumirem muito tempo e dinheiro em pesquisa é uma meia verdade. Mas dizer que a indústria é o monstro criador de todo esse sistema perverso é simplificar a questão. Existem muitas nuances de cinza no meio desse preto e branco. Duas situações que, no Brasil, são preocupantes abrem as portas para distorções. Uma delas é o despreparo de parte dos profissionais. “Hoje, temos mais médicos mal formados do que antes, porque os critérios de abertura de novos cursos no País muitas vezes atendem a interesses comerciais, e não à qualidade do ensino”, diz o psiquiatra Mauro Aranha, vice-presidente do Cremesp. As estratégias de marketing ganham espaço porque entram no vácuo da falta de conhecimento. Todos os anos, o Cremesp faz um exame para avaliar recém-formados em Medicina no Estado de São Paulo. A participação e a nota na prova não impedem o exercício da atividade. Ela funciona como diagnóstico da qualidade das faculdades de São Paulo, onde estão muitas das melhores do País. Portanto, serve indiretamente como termômetro nacional. E os resultados mostram que o ensino médico está na UTI. Em 201510, 48% dos inscritos foram reprovados, acertando menos de 60 das 120 questões. O índice foi menor entre os formandos de escolas públicas (um quarto dos reprovados) do que de instituições privadas (três quartos). Considerando todos os participantes, 60% ou mais não souberam diagnosticar ou tratar problemas de saúde frequentes que chegam aos consultórios e prontos- socorros, como hipertensão, crise de asma, hipertireoidismo, doenças psiquiátricas e cetoacidose, uma complicação em diabéticos causada pelo excesso de glicose no sangue que pode levar ao coma e à morte. Também demonstraram despreparo para agir diante de um quadro inicial de infarto agudo do miocárdio e de primeiros socorros de vítimas de acidentes automobilísticos. Em 2014, 55% não atingiram a nota mínima. Em 2013, foram 59,2%. Poderia ser um indício de que o ensino está melhorando, mas não. Segundo o parecer do Cremesp, o nível de dificuldade da prova foi menor em 2015 do que nos outros anos. Enquanto isso, mais e mais cursos de Medicina são abertos no País. Foram 28 novas escolas em 2014 e mais 18 em 2015. Médicos despreparados tendem a prescrever abusivamente, ter visão menos crítica diante das informações que recebem e fazer diagnósticos errados. Principalmente durante poucos minutos de consulta. Tudo isso junto reduz muitos médicos a meros carimbadores de receita. Segundo o manual de Auditoria da Atenção Básica do Ministério da Saúde, o padrão de produtividade no SUS é de quatro consultas por hora; uma a cada 15 minutos. Difícil oferecer qualidade em tão pouco tempo, mesmo que o médico seja bem preparado. Já quem tem dinheiro para pagar por um convênio encontra melhores condições, certo? Não. Considerando a proporção de atendidos no SUS e na saúde suplementar, existem três vezes maismédicos disponíveis na rede privada do que na pública11. Mesmo assim, o sistema de consultas-relâmpago tem se disseminado, principalmente por causa da procura dos profissionais por uma remuneração maior do que os baixos repasses oferecidos pelos planos de saúde. Para garantir uma renda satisfatória, médicos podem ter dois empregos (29,5% deles), três (24,3%), quatro (12%), cinco (6,8%), seis ou mais (5,4%). Três em cada dez trabalham mais de 60 horas por semana. Quem sofre com isso são os pacientes. Quem ganha é a indústria farmacêutica, que desenvolveu estratégias para ampliar território e conquistar aliados. As investidas pesadas fizeram com que muitos laboratórios virassem protagonistas dos maiores escândalos de fraude que o mundo da saúde já viu. No próximo capítulo tem mais sobre esse assunto, que afeta diretamente a nossa vida. Porque nunca tomamos tanto remédio e nunca estivemos tão doentes. O envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida têm a ver com o boom na venda de remédios, naturalmente. O preço de ficar velho e por mais tempo costuma ser cobrado em pílulas a mais no criado-mudo. Graças a muitas delas é que chegamos mais longe. Mas essa é só uma pequena parte da história. Se o envelhecimento da população explicasse por que a gente toma tanto remédio, os jovens adultos não seriam as maiores vítimas de mortes por medicamentos. E as crianças não seriam um dos principais alvos da indústria farmacêutica hoje. Há uma questão cultural escondida nessas entrelinhas. O mundo está ficando complicado para quem é diferente. Normal agora é ser acima da média, medalha de ouro, feliz todo dia, mulher perfeita, homem exemplar, funcionário do mês, aluno modelo, filho padrão. Só que a normalidade é um molde estreito. E para caber nela recorremos a remédios para mudar a química cerebral e domar a ansiedade e a tristeza, encarar os medos, manter o foco, cumprir prazos, dormir, acordar. Medicamentos salvam e prolongam vidas. Mas existem verdades inconvenientes que muitos médicos não conhecem ou preferem manter em sigilo, governos fingem não ver e laboratórios farmacêuticos não querem que você saiba. A pergunta é: como chegamos até aqui? Tem de haver uma boa explicação. Uma, não. Várias. E elas estão nas próximas páginas. Entender como tudo funciona é saber que existem soluções possíveis. Melhor ainda, que o controle não está nas mãos do governo, dos convênios, da indústria, nem dos maus médicos. Quem decide o final dessa história é você. GLOSSÁRIO Entenda o significado das cores das tarjas e dos diferentes tipos de receita. 1 AS TARJAS SEM TARJA São livres de prescrição médica, o que não significa que não precisam ser usados de acordo com as orientações da bula ou do médico. Geralmente, ficam nas prateleiras ou no balcão das drogarias. Se administrados corretamente, causam poucos efeitos colaterais. TARJA VERMELHA Podem causar muitos efeitos colaterais e, por isso, devem ser receitados por um médico. Alguns exigem retenção da receita, como os antibióticos e os antidepressivos. TARJA PRETA Indica que o remédio estimula ou deprime o sistema nervoso central e pode causar dependência química. É o caso dos ansiolíticos. A receita também fica retida. 2 AS RECEITAS BRANCA É usada para medicamentos com tarja vermelha. Em alguns casos, como para a compra de antidepressivos e antibióticos, ela é feita em duas vias, para que uma delas fique na farmácia. AMARELA É a receita A, para medicamentos classificados pela Anvisa como drogas com alto risco de induzir dependência, como sedativos derivados do ópio (morfina), remédios da classe das anfetaminas, que estimulam o sistema nervoso central, e o metilfenidato, princípio ativo da Ritalina. AZUL Chamada de receita B, é usada quando há prescrição de psicotrópicos que a Anvisa classifica como substâncias com risco moderado de causar dependência física, como os calmantes (o Rivotril, por exemplo) e o inibidor de apetite sibutramina. “NÓS NÃO podemos esperar que os médicos perguntem, temos de chegar lá e dizer na frente deles. Jantares, programas de educação médica continuada, consultoria – tudo isso funciona muito bem, mas não se esqueçam do cara a cara. É aí que precisamos estar, segurando a mão deles e sussurrando em seus ouvidos.” “Nada deixa um médico mais interessado num remédio do que um estudo. Use o poder do estudo para abrir portas, mas não perca muito tempo com isso e não diga que você pode conseguir um estudo para ele. Nós não temos muito dinheiro sobrando.” “Se algum deles perguntar por dados adicionais, diga que estamos reunindo tudo, depois sugira que o médico coloque alguns pacientes em tratamento com a droga.” Os diálogos que você acabou de ler estão no depoimento12 que o cientista David P. Franklin deu à Justiça americana sobre como os promotores de venda e consultores médicos da farmacêutica Parke-Davis, comprada depois pela Pfizer, eram orientados a falar com os profissionais da saúde. Franklin entrou na empresa em abril de 1996 e pediu demissão menos de três meses depois, principalmente por não concordar com práticas de promoção do remédio Neurontin. Ele gravou e registrou várias conversas e e-mails para comprovar as denúncias. O Neurontin foi lançado em 1994 como medicamento coadjuvante contra crises de convulsão em pacientes epiléticos que não respondiam bem a outros tratamentos. Era um mercado relativamente pequeno. Acontece que as vendas anuais do medicamento passaram de US$ 97,5 milhões em 1995 para US$ 2,7 bilhões em 2003 — um crescimento de 2.700%. E não foi exatamente porque tivesse aumentado o número de doentes com esse quadro tão específico. Segundo Franklin, a companhia contratava consultores médicos para atuar exclusivamente como representantes de venda e oferecer dinheiro a quem receitasse o medicamento e conseguisse influenciar o maior número de colegas a fazer o mesmo. Os consultores eram orientados também a dizer que estavam “envolvidos em pesquisas”, para passar maior credibilidade, quando na verdade só estavam envolvidos mesmo em engordar suas contas bancárias. Não havia estudos relevantes nem dados comprovados para divulgar. No mundo ideal, consultores médicos trabalham em funções médicas, científicas, sem nenhum vínculo com departamentos de vendas. No mundo ideal, eles são treinados para oferecer informações técnicas (e verdadeiras) sobre os produtos da empresa para onde trabalham, de modo a ajudar os médicos nos consultórios. Mas o mundo real pode ser diferente. De acordo com o depoimento, a farmacêutica fornecia informações falsas sobre o medicamento, plantava pessoas na plateia de congressos para fazer perguntas sobre os benefícios do remédio, promovia medicamentos para usos não aprovados, dava dinheiro para que médicos permitissem a presença de representantes do laboratório nas consultas e ainda distribuía uns trocados para aqueles que fornecessem gravações de conversas com pacientes que estivessem em tratamento com a droga. Eram US$ 50 por cabeça mais pagamentos de despesas gerais. Teve médico que mandou mais de 300 áudios, diz Franklin, embolsando US$ 15 mil na brincadeira. Segundo ele, essas gravações não serviram, na época, para compor nenhum estudo clínico. O negócio ali era incentivar os participantes a colocar mais pacientes em tratamento contínuo com o remédio. A conclusão da Justiça é que essas práticas tiveram potencial de induzir erro ou abuso nas prescrições. Quando um remédio consegue registro no órgão regulador (Anvisa, no Brasil; FDA, nos EUA), o fabricante só tem permissão para promover a medicação para o tratamento indicado na bula. Mas o médico pode prescrever, por conta e risco, para uso off-label (fora da bula, em tradução livre), para qualquer condição, se analisar as evidências disponíveis e julgar adequado. É que uma substânciaquímica costuma ter várias ações no organismo, boas e ruins. De repente, uma droga contra um tipo de câncer funciona para outro, um antidepressivo pode curar ejaculação precoce, um comprimido para tratar epilepsia se mostra eficiente para ataques de pânico. Acontece com a bupropiona, o princípio ativo de antidepressivos que promovem a circulação de dopamina no cérebro. Ela é receitada para combater a perda de libido causada por outra classe de antidepressivos, a dos serotoninérgicos, que bombam a serotonina. Estes últimos são os mais populares, tendo o Prozac (fluoxetina) e o Lexapro (escitalopram) na família. Já os próprios serotoninérgicos são muitas vezes receitados contra ejaculação precoce. O efeito deles na redução da libido pode ser benéfico para quem se afoba demais na cama, promovendo relações sexuais mais duradouras, desde que administrados na dose exata para evitar broxadas. O caso mais famoso de remédio em que o efeito colateral passou a ser visto como o principal é o do Viagra. Os pesquisadores faziam testes com o princípio ativo da droga, a sildenafila, para tratar uma doença cardiovascular e perceberam que os voluntários relatavam ereções frequentes e duradouras, mesmo aqueles com impotência sexual crônica. Então os estudos caminharam nessa direção e a companhia entrou com pedido de aprovação no FDA para o tratamento de disfunção erétil. Nos casos em que a droga já está no mercado, aprovada para outro fim, o laboratório precisa voltar uma casa e fazer testes específicos de eficácia e segurança das novas utilizações se quiser tirar proveito comercial delas. O processo leva tempo, custa dinheiro e nem sempre termina bem. Acontece, por exemplo, de os estudos mostrarem que o remédio não faz efeito para outros males ou, pior, que aumenta o risco de morte em determinados grupos de pacientes. Pode ser também que o trâmite da aprovação demore e saia quando a patente do produto estiver para expirar. Por conta disso, a indústria às vezes tenta pegar atalhos e aumentar, ela própria, o número de consumidores de seus comprimidos vendendo-os pelo efeito colateral. Escondida. Receitar essas alquimias não tem nada de ilegal, como já dissemos. É parte da função de um médico. Esse poder que os doutores têm, por outro lado, atiça os laboratórios a dar-lhes mais agrados, começando o círculo vicioso. Foi exatamente o que aconteceu lá no caso do Neurontin, que vamos ver em detalhes agora. COMO FAZER INIMIGOS INFLUENCIANDO PESSOAS As equipes de consultores do laboratório eram treinadas para dizer que o Neurontin não produzia efeitos colaterais significativos, além de ser seguro mesmo em altíssimas doses, maiores do que a máxima de 1.800 mg por dia aprovada na época. E funcionaria para… • Transtorno bipolar. • Déficit de atenção e hiperatividade. • Enxaqueca. • Crise de abstinência de drogas e álcool. • Síndrome das pernas inquietas. • Neuropatia diabética, lesão dos nervos causada pela alta taxa de açúcar no sangue em pacientes diabéticos. • Tremor essencial: agitação constante das mãos mais comum do que mal de Parkinson • Neuralgia pós-herpética: dor crônica que atinge parte dos pacientes que tiveram herpes-zoster. • Distrofia simpático-reflexa, que causa dor, queimação, inchaço e alteração de cor nas partes afetadas. • Esclerose lateral amiotrófica, que destrói as células nervosas. • Neuropatia periférica: doença que danifica ou impede a comunicação entre o sistema nervoso central e as partes periféricas do corpo. • Neuralgia do nervo trigêmeo, que causa dor lancinante em um lado da face. • Distúrbio do movimento periódico dos membros: transtorno que acontece principalmente durante a noite, interrompendo o sono. Um dos trechos do discurso motivacional de um executivo da empresa para uma plateia cheia de consultores, que consta no depoimento de Franklin, dizia o seguinte: “Todos nós sabemos que as vendas não vão crescer por causa do tratamento [contra convulsões]. Não é aí que o dinheiro está. Controle da dor, isso dá dinheiro. Monoterapia [tratamento exclusivo com um só medicamento], isso dá dinheiro. Neurontin para dor, Neurontin para monoterapia, Neurontin para transtorno bipolar, Neurontin para tudo. Eu não quero ver um paciente sequer deixar de tomar Neurontin antes que ele chegue a pelo menos 4.800 miligramas por dia. E também não quero ouvir falar dessa porcaria de segurança. Vocês experimentaram Neurontin? Cada um de vocês deveria tomar um, só para ver que não tem nada, que é uma droga excelente.” Depois que esses e outros documentos vieram à tona, o laboratório fechou um acordo13 em 2004 para pagar uma multa de US$ 420 milhões e dar fim a queixas criminais e civis referentes a práticas ilegais naquele período. A Justiça americana considerou que a farmacêutica promoveu o remédio até para casos em que estudos não comprovaram eficácia. Por exemplo, para tratar transtorno bipolar “mesmo quando uma pesquisa científica demonstrou que placebo funciona tão bem ou melhor do que a droga”. Placebo são pílulas de açúcar, sem princípios ativos com ação direta sobre doenças. Muitos processos enfrentados pela companhia envolveram suicídios. Foi o que aconteceu com a família Briggs. Douglas Briggs sofreu um acidente de carro e passou anos com uma dor crônica nas costas. Foram três cirurgias para tentar resolver o problema, e nada. Em fevereiro de 2004, ele começou a tomar Neurontin, receitado pelo médico, e “virou outra pessoa”, afirma a mulher, Robin. Douglas era um homem ativo, que jogava tênis e basquete, mas passou a ficar prostrado no sofá, irritado e reclamando de dor. As brigas com a esposa, que antes não aconteciam, viraram frequentes. No dia 25 de dezembro daquele mesmo ano, ele insistiu para que a mulher e os dois filhos fossem ao cinema. Queria ficar sozinho. A família achou estranho deixá-lo ali justo no Natal, mas cedeu ao pedido. Quando voltou, Douglas estava morto, enforcado no hall de entrada da casa. É difícil comprovar a relação direta entre os episódios e a droga, porque outros fatores, como histórico de saúde, propensão a doenças psiquiátricas, estilo de vida e administração de outros medicamentos, contam também. Mas não há dúvidas para os Briggs e outras famílias de 47 Estados americanos mais o Distrito de Colúmbia que, depois de perderem parentes em uso do medicamento, ajuizaram processos contra o fabricante. O laboratório foi acusado de omitir os riscos de suicídio e de falhar ao não alertar os médicos. Só em 2009 o FDA determinou14 que a bula de todas as drogas contra epilepsia e convulsão trouxesse o aviso de que podem aumentar o risco de suicídio, com a recomendação para que pacientes e familiares ficassem atentos a alterações de comportamento e sintomas de depressão. A agência reguladora avaliou dados de 11 remédios dessa categoria e concluiu que todos eles dobram as chances de ter pensamentos ou comportamentos suicidas em comparação com quem tomou placebo. Durante os testes, houve quatro mortes entre os que receberam medicamentos dessa classe e nenhuma entre os que não usaram. Exemplos não faltam de escândalos e acordos multimilionários envolvendo a indústria nos EUA, incluindo pagamento de propina a médicos e manipulação de dados para fraudar o sistema de saúde americano, o Medicare. Muitos têm a ver com uma categoria que se mostrou bem lucrativa a partir da década de 1990, os antipsicóticos, aprovados principalmente para tratar esquizofrenia e episódios de mania no transtorno bipolar. Essa condição afeta aproximadamente 1% da população. É pouco. Pelo menos não é o bastante para fazer de uma cápsula contra esquizofrenia um case comercial. Mas, nos últimos anos, um antipsicótico, o Abilify, virou o segundo remédio que mais dá dinheiro nos Estados Unidos (o primeiro é um anti- inflamatório injetável para tratar doenças autoimunes, o Humira, que custa quase US$ 1 mil a cada injeção e é bastanteusado em hospitais). Grande parte do sucesso dessa classe de remédios vem do aumento da prescrição off-label para problemas psiquiátricos comuns, como depressão, ansiedade e transtornos de comportamento. Um dos casos mais famosos foi do antipsicótico Risperdal15 e a promoção ilegal para uso em crianças e em idosos. A bula inicialmente aprovada pelo FDA indicava que os estudos clínicos não incluíram um número significativo de pacientes acima de 65 anos e, por isso, não era possível verificar a eficácia e a segurança da medicação nessa faixa etária. Segundo um memorando da Justiça americana16, em 2003, depois da ocorrência de mortes em testes da droga em pacientes mais velhos, o FDA determinou a inclusão de uma nova advertência na bula para avisar sobre o risco aumentado de óbito, acidente vascular cerebral e ataque isquêmico transitório em idosos com demência sob tratamento com o princípio ativo. Isso foi feito. Ainda assim, o laboratório teria continuado a orientar promotores para divulgar o remédio como adequado e seguro para esse público. A estratégia visava aumentar o número de pacientes que faziam uso da droga, porque “devido à menor expectativa de vida entre esquizofrênicos, a doença atinge uma porcentagem ainda menor de idosos”. Na prática, era como se a farmacêutica estivesse vendendo bolacha: tudo o que interessava era capturar mais um nicho de mercado. O governo americano teve acesso a uma série de relatórios escritos por executivos da empresa, com orientações para que os promotores dissessem aos médicos e farmacêuticos que o remédio era indicado para demência. Em um deles, o vice-presidente de marketing dizia “A prescrição de Risperdal para tratar demência é o foco principal da força de vendas do ElderCare”, grupo de promotores que atuavam apenas com ações para pacientes acima de 65 anos. Outro jeito de promover o medicamento para uso não aprovado era bem mais sutil: distribuindo nos consultórios amostras grátis de até 1 miligrama, na medida para tratar demência. As doses recomendadas para esquizofrenia eram de 3,8 miligramas ao dia e de 2,4 mg para esquizofrenia em idosos. Para demência (uso não aprovado), era de 0,9 mg. Segundo os documentos, os promotores divulgavam fortemente o uso off-bula da droga também entre os farmacêuticos, “importantes influenciadores” que, “aproveitados corretamente, podem atuar como uma extensão da nossa força de vendas”. Sim, você leu “força de vendas”. Fabricantes podem pagar comissão por medicamentos vendidos no balcão. Outro caso emblemático foi o da promoção do antidepressivo Paxil para crianças e adolescentes nos EUA, mesmo sem aprovação do FDA para uso pediátrico. Desde 2004, a bula dos antidepressivos traz a advertência de que eles podem aumentar o risco de pensamentos e comportamentos suicidas em menores de 18 anos. A Justiça considerou que o laboratório “participou do preparo, da publicação e distribuição de artigo médico enganador que presta informações falsas de que um teste clínico de Paxil demonstrou eficácia no tratamento da depressão em crianças e adolescentes, quando, na verdade, o estudo falhou em demonstrar eficácia”. Outra acusação foi a de pagar “milhões de dólares para médicos palestrarem em congressos, às vezes em resorts de luxo”, para promover usos não autorizados à época do antidepressivo Wellbutrin, como a indicação para perda de peso. O documento diz que as estratégias envolviam “representantes de venda, falsos consultores e programas supostamente independentes de educação médica continuada”. A empresa também foi acusada de não informar sobre efeitos colaterais graves de um medicamento que chegou a ser o mais vendido no mundo, inclusive no Brasil, para o tratamento de diabetes tipo 2: o Avandia. A Justiça concluiu que o risco aumentado de ataque do coração e insuficiência cardíaca congestiva foi ocultado pelo fabricante. E também que os médicos receberam informações “falsas e enganadoras” em relação aos efeitos positivos do remédio sobre o colesterol, “embora não houvesse estudos controlados para sustentar essa informação”, e aos benefícios cardiovasculares, ainda que a bula trouxesse a advertência sobre riscos cardiovasculares. Na Europa e no Brasil, o medicamento foi retirado das prateleiras em 2010, depois que uma análise28 de 56 experimentos envolvendo 35 mil pessoas mostrou risco 28% maior de infarto do miocárdio em usuários do princípio ativo. Segundo a Anvisa29, foram estimados cinco vezes mais casos de insuficiência cardíaca nos pacientes tratados com a droga do que nos que receberam outro medicamento para o mesmo fim. As conclusões foram de que os riscos do remédio superavam os benefícios e que havia outras opções mais seguras. Ei, mas os remédios não passam por rigorosos testes antes de chegar ao mercado? Sim e não. Às vezes, o processo se assemelha mais a um roteiro de filme de Francis Ford Coppola. É o que vamos ver no capítulo 3. OPERAÇÃO FALSELOTES O cientista David P. Franklin foi à Justiça americana denunciar práticas ilegais da empresa farmacêutica onde trabalhou. Veja a seguir três trechos do depoimento que ele deu à polícia. 1 MANUAL IMORAL O passo a passo recomendado pela farmacêutica para influenciar médicos a prescrever um remédio. • MENCIONE que você é os olhos e os ouvidos do setor de pesquisa e que está compilando dados clínicos. • DEPOIS, faça perguntas genéricas sobre a prática médica. • MENCIONE os usos aprovados do remédio, mas descarte-os dizendo que isso é notícia velha. • FAÇA perguntas básicas sobre o número de pacientes com quadros de dor que ele geralmente observa na prática. • DEPOIS, faça uma série de perguntas para detectar todas as oportunidades de potenciais usos não autorizados do remédio. • EM seguida, revele que a empresa “tem uma grande quantidade de informações sobre a fantástica taxa de resposta em pacientes que usam o medicamento para todos esses males”. • PASSE para uma discussão sobre testes clínicos e como esses dados são custosos e sobre “a taxa de resposta de 90% a 95% que estamos observando em mais de 80% dos pacientes”. • APRESENTE ao médico qualquer publicação que tiver disponível e saliente que muitas drogas comuns para o tratamento da dor aparecem em poucas, senão em nenhuma, dessas publicações. • PEÇA ao médico para colocar alguns dos pacientes dele em tratamento com o remédio e diga que o consultor médico vai manter contato para ajudá-lo a fazer qualquer relato de caso. • MENCIONE que relatos de caso podem ser lucrativos e resultar em testes clínicos. • OFEREÇA-SE para fazer uma apresentação ou um almoço para colegas de profissão ou um grupo de amigos dele para mostrar todos os “dados” que nós temos. • CONVIDE o médico para futuros encontros de consultores e reforce que há o pagamento de US$ 250 mais um agradável passeio ou refeição paga na cidade onde o evento acontece. • SE um representante de vendas estiver presente, deve fechar negócio pedindo para que o próximo paciente a entrar no consultório comece a ser tratado com nosso remédio. OPERAÇÃO FALSELOTES 2 CONCHAVO O diálogo entre o cientista David P. Franklin, seu supervisor e uma consultora médica sobre a promoção de um remédio para uso não aprovado em crianças com hiperatividade. • FRANKLIN “Você viu aquele artigo médico recente indicando que algumas crianças com déficit de atenção e hiperatividade tratadas com o nosso remédio tiveram efeitos colaterais severos, principalmente a piora dos sintomas e ataques de raiva? Como vocês estão administrando os questionamentos dos médicos sobre isso?” • SUPERVISOR “Mas é um número tão pequeno de crianças... E os pais podem simplesmente parar com a medicação caso isso ocorra, não existe nenhum efeito permanente. Então, nem toque no assunto.” • CONSULTORA “Se eles perguntarem, apenas diga que existe um único estudo, mas que há problemascom ele e que as crianças envolvidas apresentavam vários distúrbios.” • FRANKLIN “Mas e se for verdade e essas crianças começarem a piorar ou a se machucar durante um ataque?” • SUPERVISOR “Nesse caso, quem mandou o médico prescrever a coisa para uso não autorizado? Não, não se preocupe, isso nunca vai bater de volta na gente.” 3 VENDA A JATO O roteiro que os consultores médicos da farmacêutica deviam seguir para aumentar as vendas de um remédio contra problemas cardiovasculares. • APRESENTE-SE como um pesquisador da área cardiovascular da empresa. • ANTES de visitar um médico, saiba qual é o grau de sofisticação dele. • SE ele for um novato, apresente a história da biologia vascular e o papel da droga na doença. • SE ele for experiente, pule direto para “os excelentes resultados que nós estamos observando em dois testes clínicos”. • DIGA que outras drogas falharam em controlar a doença e que a nossa é a única que funciona. • PERGUNTE se o médico prescreve o medicamento. Se não receitar, diga que os pacientes vão viver mais e, na verdade, se sentir bem melhor se ele mudar a medicação deles. • OFEREÇA serviços de consultoria e benefícios. • SUGIRA que você pode fazer uma apresentação formal sobre o medicamento e informe que irá voltar com mais novidades. • FECHE a venda se um representante comercial não estiver presente. Glaxo Smith Kline EM 2012, a farmacêutica foi multada17 em US$ 3 bilhões, acusada de pagar comissão aos médicos para que receitassem seus remédios, promover medicamentos de forma ilegal, prestar informações falsas e omitir efeitos colaterais graves de uma droga usada para tratar diabetes. Pfizer EM 2009, a companhia concordou18 em pagar US$ 2,3 bilhões por promover medicamentos para usos não aprovados pelo FDA, incluindo doses e prescrições vetadas pela agência americana por falta de comprovação de que eram seguras. Em outro caso, envolvendo uma subsidiária da companhia, a multa19 foi de US$ 15 milhões por promoção ilegal de um hormônio do crescimento, para tratar distúrbios do crescimento em crianças e doenças que causam deficiência na produção hormonal em adultos. A empresa fazia ações para divulgá-lo como seguro e eficaz em tratamentos anti-idade, para melhorar a aparência e a performance atlética. Em 2012, o Conselho Federal de Medicina20 brasileiro proibiu médicos de usarem o hormônio como recurso antienvelhecimento, sob pena de terem o registro cassado. A alegação é que, além de não haver evidências científicas de que a droga funcione nesses casos, ela pode aumentar o risco de desenvolvimento de diabetes e tumores. Johnson & Johnson FEZ UM acordo de US$ 2,2 bilhões em 2013 para encerrar processos por práticas ilegais de promoção de medicamentos e pagamento a profissionais da saúde para que receitassem remédios da empresa nos EUA. Abbott EM 2012, foi considerada culpada21 de promover ilegalmente o remédio Depakote para usos não autorizados pelo FDA e teve de pagar US$ 1,5 bilhão. Duas das várias alegações foram de que, mesmo depois de ter sido forçada a parar com os testes da droga em pacientes com demência, por causa de vários efeitos colaterais em doentes mais velhos, a farmacêutica continuou divulgando o medicamento como eficaz e seguro para idosos. Também promoveu o uso contra esquizofrenia apesar de dois estudos mostrarem que não havia benefícios nesse tipo de tratamento. Eli Lilly EM 2009, a Eli Lilly aceitou22 pagar uma multa de US$ 1,4 bilhão por propaganda ilegal do antipsicótico Zyprexa, por recomendá-lo para idosos com demência. Merck ASSINOU acordo23 em 2008 envolvendo pagamento de US$ 650 milhões para encerrar processos em que era acusada, entre outras alegações, de usar vários métodos diferentes para convencer médicos a receitarem as drogas — como pagamento ilegal de remuneração pela participação em treinamentos. Purdue EM 2007, a farmacêutica e três executivos da empresa, incluindo o presidente, aceitaram24 pagar multa de US$ 600 milhões pela divulgação de informações enganosas sobre o analgésico Oxycontin, nome comercial da oxicodona, remédio da classe da morfina usado para controlar dores severas. A companhia divulgava que a substância tinha menor risco de abuso e dependência em comparação com outros narcóticos, quando, na verdade, era tão poderosa quanto a heroína. Parte da multa serviu para encerrar processos movidos por pacientes que ficaram viciados na droga e familiares de vítimas de overdose. O ator Heath Ledger morreu em 2008 depois de combinar oxicodona com outros remédios (veja outros famosos que morreram por mau uso de medicamentos no capítulo Overdose de Drogas Lícitas). AstraZeneca CONCORDOU25 em pagar multa de US$ 520 milhões para encerrar a investigação sobre a promoção do remédio Seroquel, para esquizofrenia e transtorno bipolar, como seguro e eficaz para usos não comprovados. A lista incluía ansiedade, stress pós-traumático, depressão, transtornos de humor, insônia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mal de Alzheimer e demência. Bristol-My ers Squibb Foi considerada culpada26 por inflar preços de um remédio para combater efeitos colaterais de tratamentos contra câncer, pagar remuneração ilegal a médicos para que receitassem seus remédios e promover, sem comprovação de segurança e eficácia, o antipsicótico Abilify em idosos com demência e crianças. Fazia parte da estratégia divulgar a droga especificamente entre pediatras e cuidadores de pacientes mais velhos. Teve de pagar US$ 515 milhões. Novartis FEZ UM acordo27 de US$ 422 milhões em 2010 para encerrar processos que a acusavam de pagar comissão a médicos e farmacêuticos e promover o uso não aprovado de vários medicamentos nos EUA. Warner-Lambert ESSA DIVISÃO da Pfizer se comprometeu em 2004 a pagar US$ 420 milhões para terminar processos civis e criminais sobre promoção de medicamentos e omissão de efeitos colaterais severos, principalmente em relação ao remédio. O DIÁLOGO: EDWARD “David, certifique-se de que não iremos aceitar esta bula.” DAVID “Eu recebi uma cópia faz cinco minutos e vou digerir hoje à noite. Nós sabíamos que isso poderia ser FEIO, e é. Vamos contra-atacar e ver o que conseguimos.” EDWARD “É feio ao cubo. Eles são uns filhos da puta.” Nem House of Cards, nem O Poderoso Chefão. Esse diálogo é uma troca de e- mails entre dois executivos de uma farmacêutica30 depois que o FDA pediu ao laboratório para deixar claro na bula que seu mais famoso anti-inflamatório, o Vioxx, aumentava as chances de ataque cardíaco e AVC. O remédio era campeão de vendas no Brasil no começo dos anos 2000. Indicado para dor aguda, principalmente de osteoartrite, era usado também para outros quadros, como cólica menstrual. Acontece que um estudo feito pela própria empresa e encaminhado por ela ao FDA31 mostrou um risco cinco vezes maior de infarto e tromboembolismo venoso em comparação com outra droga da mesma categoria. Só 18 meses depois que os números vieram à tona32 é que a agência americana mandou colocar o alerta na bula33, na parte de “Advertências”. E aí aconteceu a troca de e-mails que abre este capítulo. Antes de atender à determinação, o laboratório fez um levantamento do impacto financeiro que a mudança poderia trazer em três cenários diferentes:34 se eles suavizassem a mensagem na bula, se falassem dos riscos na parte de “Precauções” ou se colocassem em “Advertências”. A primeira alternativa era a melhor para o bolso da empresa, mas ficaria longe de atender ao pedido do FDA. A terceira derrubaria as vendas. Optaram pela segunda, dizendo que o perigo desses efeitos adversos era para quem tivesse “histórico de doença isquêmica do coração”, o tipo de frase que faz um leigo pensar “não é comigo”. Mas era. A farmacêutica fez outro estudo, em 2004, que precisou ser interrompido porqueficou claro que a droga quase quadruplicava as chances de ataque cardíaco e morte súbita em qualquer paciente, tivesse ele histórico de isquemia ou não35. Sim, porque pacientes que tinham maior propensão a eventos cardíacos não foram elegíveis a participar dessa pesquisa. Ah, nesse meio tempo, o FDA liberou o uso da droga em crianças. Seis meses se passaram e bilhões de dólares entraram nos cofres do fabricante até que a empresa decidisse, por conta própria, retirar o medicamento do mercado global. A estimativa é de que 100 mil americanos tenham sofrido ataque cardíaco motivado pelo uso do remédio, segundo o epidemiologista americano David Graham, que era do alto escalão do FDA na época. “Provavelmente, entre 30% e 40% dessas pessoas morreram”, disse ele em um testemunho dado à Justiça em 200436. Nunca um medicamento, líder de vendas em vários países, portanto usado por milhões, expôs de forma tão gritante a fragilidade das agências reguladoras e dos testes de segurança e eficácia dos remédios. NASCE UMA PÍLULA Testes de uma droga determinam quais doses causam mais bem do que mal na maioria dos pacientes. Para isso, existem procedimentos exigidos pelos órgãos reguladores. Quando é um novo medicamento, para tratar um mal que ainda não conta com um remédio disponível, a investigação começa na fase de pesquisa básica, quando o objetivo principal é saber como a doença age no organismo. Só depois de responder a algumas charadas é que dá para arriscar os tipos de droga com potencial para conter ou eliminar o invasor. Essa etapa pode levar anos, consumir milhões e dar em nada. Por isso, quem costuma assumir a bronca são as universidades e o governo, principalmente o americano e o europeu. A indústria tende a entrar depois, quando a parte mais inovadora da história foi feita e já existem candidatos a medicamentos que podem ser testados. É a pesquisa aplicada. A fase pré-clínica do desenvolvimento de um novo remédio tem experimentos in vitro, quando envolvem a cultura de células, e in vivo, com animais. Isso serve para saber se a droga é segura e tem potencial terapêutico. Só um em cada mil compostos sobrevive a essa etapa. Mas células dentro de um tubo de ensaio nem sempre se comportam como as de um organismo vivo. E células que habitam ratos nem sempre agem como as de um ser humano. É por isso que, confirmado um nível de toxidade aceitável para determinada droga (não existe remédio livre de perigo para a saúde), a indústria obtém a patente do princípio ativo e entra com um registro na agência reguladora para seguir a investigação na etapa clínica. Na fase 1, a primeira obrigatória em humanos, entre 20 e 100 voluntários saudáveis recebem a droga para saber se é segura e como ela funciona em diferentes dosagens. Se os testes forem de medicamentos contra câncer ou aids, essa etapa é feita com portadores das doenças. Na fase 2, o grupo de participantes cresce, para 100 a 300, e geralmente é formado por pessoas que têm a doença ou condição pesquisada. O objetivo é ver se o remédio realmente produz algum efeito sobre o mal que pretende curar e como ele é absorvido, processado e eliminado no corpo do doente. A terceira etapa é a dos grandes estudos controlados, a prova de fogo, com mil a 2 mil portadores da doença. Aqui também podem ser feitas pesquisas complementares com populações especiais, como idosos ou doentes crônicos, e interações medicamentosas. É a última antes da aprovação do medicamento. Essa bateria de exames deveria significar que, antes de uma droga entrar no seu corpo, a ciência já descobriu o que exatamente ela faz lá dentro. Só que não. É por isso que muitas bulas trazem os dizeres “o mecanismo de ação não é plenamente conhecido”, “este é seu suposto mecanismo de ação”, principalmente das drogas contra distúrbios psíquicos, como ansiedade e depressão. Depois que um remédio chega ao mercado, milhões de pessoas viram cobaias involuntárias e muitos efeitos colaterais não observados nos testes começam a aparecer. É do jogo. As farmacêuticas, então, fazem novos estudos de segurança. É a fase 4, de pós-comercialização. Dependendo dos resultados, as agências reguladoras pedem para incluir advertências nas bulas ou, mais raro, retirar o produto do mercado. Esse é o processo completo para o lançamento de uma substância inovadora, mas não para o desenvolvimento de uma variação do que já existe nas prateleiras. Há um tipo de remédio chamado medicamento de imitação: são moléculas novas que atuam de um jeito parecido com outras mais antigas. Por exemplo, os antidepressivos mais comuns inibem a recaptação de serotonina, promovendo a circulação desse neurotransmissor no cérebro. Um novo princípio ativo que tenha essa mesma função é considerado um “medicamento de imitação”, porque a forma como ele funciona já está estabelecida. Nesse caso, os testes podem pular etapas. Isso gera uma economia de tempo e dinheiro e explica por que a maioria dos remédios lançados nas últimas décadas é uma variação dos que já estavam disponíveis para colesterol alto, hipertensão, azia, depressão. O custo é menor, o desenvolvimento, mais rápido e o número de gente que desembolsa dinheiro com eles pela vida toda é enorme. Mesmo assim, desenvolver qualquer medicamento é caro e demorado. As vendas precisam recuperar o investimento e ainda sustentar uma boa margem de lucro. Daí o baixíssimo interesse em pesquisar doenças disseminadas em países pobres, como a malária e a esquistossomose, que fazem milhões de vítimas entre quem não tem condições de comprar remédios. GAME OF CLONES Com a chegada dos genéricos e similares no mercado, produzidos quando expira a patente do medicamento de referência (aquele que foi desenvolvido pelo laboratório), a vida das farmacêuticas ficou mais difícil. Os medicamentos de referência são os pioneiros da cadeia. Trazem o nome da marca, e não dos princípios ativos, e servem como padrão para a produção de genéricos e similares depois que a patente expira. Genéricos e similares são cópias dos medicamentos de referência, com o mesmo princípio ativo. A principal diferença entre os dois é que genéricos são quimicamente idênticos aos remédios de origem e os similares são parecidos. Nos similares, algumas substâncias inativas, chamadas de excipientes, como corantes, estabilizantes e conservantes, podem ser diferentes das originais. Isso pode interferir na forma como o corpo processa a medicação. A não ser que o fabricante apresente testes comprovando que agem exatamente do mesmo jeito, os similares não substituem os de referência. Já os genéricos sempre foram obrigados a comprovar que são clones dos remédios de origem, e que funcionam exatamente da mesma forma, por isso viraram alternativas aos de referência. No rótulo dos similares aparece um nome fantasia. No dos genéricos, hoje bem mais populares, o que vai impresso são apenas os princípios ativos. A vantagem dessas cópias é que elas custam metade do preço ou menos. Mas a gente prefere pagar caro por um novo remédio porque os mais recentes são sempre mais eficientes e seguros do que os antigos, certo? Senta. AQ UELE 1% O controle da maioria dos testes e da forma como os dados são divulgados, quando são, está inteiramente nas mãos dos próprios fabricantes. É quase como ir a uma entrevista de emprego e, em vez de passar por um processo seletivo coordenado pela empresa, levar resultados prontos de exames que você mesmo conduziu mostrando que sua performance é ótima. Quando querem aprovar um medicamento, os fabricantes não são obrigados a provar se a nova droga é melhor do que outros tratamentos já existentes; apenas se funciona mais do que um placebo. E nem sempre eles precisam publicar todos os testes feitos. Se mostrarem dois, já está de bom tamanho, mesmo se os omitidos indicarem que o medicamento não faz efeito ou deixa mortos e sequelados pelo caminho. Não é de surpreender quea maioria das pesquisas bancadas pelo fabricante seja favorável ao remédio avaliado. Um estudo das universidades Harvard e de Toronto36 com todos os testes envolvendo as cinco principais classes de medicamentos, realizados entre 2000 e 2006, quis saber se os patrocinados pela indústria eram mais benéficos a ela. Das 546 pesquisas que os cientistas examinaram, 84% dos estudos financiados pelos laboratórios tinham resultados positivos sobre as drogas. Entre as pesquisas pagas pelo governo, 50% eram favoráveis. Em outra análise, um antidepressivo vendido no Brasil e não aprovado nos EUA, a reboxetina, foi pego no antidoping37. Os pesquisadores encontraram 13 pesquisas envolvendo mais de 4 mil pacientes. Só 26% dos dados tinham sido publicados, todos mostrando que o princípio ativo funcionava melhor do que placebo e era tão eficaz quanto outras do mercado. Adivinhe o que os outros 74% indicavam? Que o novo remédio ou era pior que os equivalentes ou tinha o mesmo efeito de pílulas de açúcar. Se você tira uma selfie desfavorável à sua imagem, o que faz? Tira outra, para ver se sai bonito na foto dessa vez. É mais ou menos isso que acontece com os testes de remédios. Boa parte dos estudos é feita comparando o medicamento com placebo, para ver se o remédio que vai abocanhar parte do seu salário é melhor do que um naco de farinha. Mesmo se o estudo incluir um medicamento concorrente, dá para testar dosagens inadequadas do comprimido adversário, para que ele se saia pior. Se eu quero lançar um anti-inflamatório, que é um tipo de remédio conhecido por irritar estômagos, posso comparar uma dose baixa do meu produto com uma maior do concorrente e concluir que o dele causa hemorragia e o meu não faz nem cócegas. Vale ainda terminar a pesquisa antes do prazo se ela mostrar logo no começo certa vantagem para o seu produto. Dá até para continuar só com os voluntários que recebem o remédio do concorrente e ver se alguém ali sofre um efeito colateral que mereça menção honrosa nos resultados. Também pode testar o remédio em grupos menos doentes, em vez de pessoas que apresentam complicações comuns ligadas à doença que a droga pretende tratar38. Assim, os resultados serão melhores. Por essas, testes comparativos financiados pelo fabricante têm 20 vezes mais chances de favorecer a nova droga39. É como escolher a foto em que só você ficou bem e ainda marcar o resto do pessoal, para destacar sua beleza hegemônica. Outro jeito de sair bem na selfie farmacêutica é escolher um bom filtro. No caso, maquiar as palavras da bula. Em vez de dizer “Este antibiótico pode matar na hora”, melhor optar por “reações de hipersensibilidade anafilactoides sérias e ocasionalmente fatais têm sido relatadas”. Claro, não faria sentido ser alarmista, senão ninguém mais coloca um comprimido na boca e a saúde pública volta aos níveis da Idade Média, quando qualquer unha encravada podia significar a amputação do seu pé, dada a ausência de antibióticos. Medicamentos devem ser usados quando os benefícios superam os riscos e a probabilidade de curar ou conter a doença é maior do que a chance de sofrer prejuízos com a droga. Espalhar a insegurança seria irresponsável. Por outro lado, também é irresponsável deixar de prestar informações claras sobre os efeitos colaterais de qualquer medicação. Estamos diante de uma questão que merece mais debates, no mínimo. De qualquer forma, um caso que ganhou destaque nos EUA depois da divulgação de uma troca de e-mails entre executivos da indústria40 trouxe à tona essa discussão. As mensagens eram sobre um remédio para esquizofrenia e transtorno bipolar, o Seroquel, relacionado a um risco maior de ganho de peso e aumento da quantidade de glicose no sangue: “O principal fator é o aumento de 3 a 3,5 quilos em 52 semanas. Não sei como você vai torcer isso; portanto, espero que o time possa resolver focando no metabolismo da glicose, que vai amplamente desenfatizar a parte do ganho de peso.” Ora, se eu prescrevo um comprimido sabendo que o paciente vai engordar e ainda conviver com açúcar extra passeando na circulação, preciso receitar também dieta e exercícios físicos para diminuir as chances de obesidade e diabetes, e pedir exames específicos para acompanhar a saúde cardiovascular e os índices de glicose, colesterol, triglicérides. Sem a clareza desses efeitos colaterais, fica complicado evitar que uma droga trate um problema sem causar outros dois — tão ou mais graves. Por que os cientistas envolvidos nas pesquisas não colocam a boca no trombone sobre essas artimanhas? Porque, muitas vezes, são proibidos por contrato de revelar qualquer dado sem a permissão do patrocinador. Os laboratórios podem estabelecer cláusulas de confidencialidade e outras que dão a eles pleno poder para interferir no processo, usar somente parte dos dados coletados e aprovar o relatório final. Por que então os médicos, antes de receitarem remédios, não recorrem a artigos publicados em jornais sérios e independentes (alguns são patrocinados pela indústria) em vez de se basear apenas em testes feitos com a intenção de aprovar as drogas? Existem milhares de veículos médicos com dezenas de artigos publicados a cada edição. Para ler só os artigos relevantes que saem a cada mês, um médico precisaria dedicar 29 horas por dia41. Mesmo para os profissionais que investem boa parte da rotina para se atualizar, é difícil separar o joio do trigo. BASTIDORES INGLÓRIOS Pedir ao departamento de marketing para dar um tapa no relatório final de um teste clínico antes da publicação é uma prática comum (e dentro da lei) na indústria farmacêutica. Como pega mal se o redator publicitário coassinar um trabalho científico, os laboratórios submetem o estudo a um médico contratado ou a um profissional de prestígio no mercado para que ele apenas revise e assine. O documento enviado às revistas científicas (publicações especializadas que divulgam os testes para a classe médica) vai com o nome do profissional de saúde. É como se ele estivesse fazendo o papel de garoto propaganda do remédio — e você nunca vai saber quanto ele embolsou com o trabalho. Quando você vê na TV o George Clooney tomando café e seduzindo geral, sabe que ele recebeu para isso. Provavelmente, o poder de atração dele é o mesmo com chá, pinga ou leite de magnésia, não importa. A relação comercial está clara e quem tira as conclusões sobre a credibilidade do que vê é o consumidor. Se você não se sentir mais sexy tomando o mesmo café que o Clooney, isso não vai trazer prejuízos a não ser para a sua autoestima. Da mesma forma, quem deve avaliar o impacto de uma possível informação tendenciosa sobre um remédio é quem prescreve. Porque pode ter armadilha até mesmo onde não se espera. O anestesista americano Scott Reuben, por exemplo, enganou até os grandes laboratórios. Referência no tratamento da dor aguda, ele descobriu que um tipo de anti-inflamatório era tão eficiente quanto anestésicos derivados da morfina para controlar a dor no pós-operatório. Com a vantagem de que não causava dependência, o que era um achado e tanto. Para fazer estudos clínicos que comprovassem a teoria, Reuben entrou em contato com fabricantes de anti- inflamatórios pedindo financiamento. Os resultados animadores foram publicados em revistas de divulgação científica e influenciaram milhares de médicos e pacientes pelo mundo. Afinal, anestésicos da classe da morfina geralmente têm alto poder viciante e muitos efeitos colaterais. Se existia uma alternativa melhor atestada por um expert, por que não adotá-la? Porque as pesquisas nem tinham sido feitas. Era tudo puro engodo. Reuben embolsou a grana, dando um chapéu nos laboratórios que o contrataram. Em 2010, ele foi condenado por inventar pelo menos 21 estudos e a devolver mais de US$ 300 mil para a Pfizer e US$ 50 mil para a Merck42. O caso mais trágico envolvendo médicos que assinam estudos de terceirosfoi o da talidomida. A droga, lançada na Alemanha Ocidental em 1957, era bem popular em mais de 40 países, incluindo o Brasil, para tratar insônia, tensão, náusea e, principalmente, enjoo matinal em gestantes. Os ginecologistas recomendavam o medicamento porque os testes do fabricante indicavam que ele não tinha nenhum efeito colateral. Na Alemanha daquela época, cabia ao fabricante garantir e se responsabilizar pela segurança. Sobre eficácia, então, ninguém falava. A disseminação da talidomida entre as gestantes levou a farmacêutica Richardson-Merrell a pedir aprovação da droga no mercado americano para tratar náusea na gravidez. Com o pretexto de realizar testes clínicos enquanto o trâmite não se desenrolava no FDA, a empresa distribuiu milhões de comprimidos para mais de 1.200 médicos, a maioria ginecologistas, e buscou aliados nos consultórios para assinar estudos. Quem topou foi o obstetra Ray Nulsen, que emplacou um artigo no American Journal of Obstetrics Gynecology43 em 1961 atestando que o remédio era seguro e funcionava para gestantes. A assinatura era dele, mas o conteúdo foi feito pelo diretor médico da farmacêutica. No mesmo ano, um pediatra alemão relatou ter identificado 150 casos de bebês com más-formações relacionadas à talidomida, como a focomelia, em que os braços e as pernas não se desenvolvem. Metade das mães tinha tomado a droga no primeiro trimestre da gestação, quando os enjoos são mais frequentes. Um único comprimido era suficiente para causar deformidades. Dez dias depois, o medicamento começou a ser retirado do mercado. A partir de 1965, a droga voltou a ser administrada em muitos países, como o Brasil, sob controle especial para tratar complicações de hanseníase. Mais tarde vieram a proibição para mulheres em idade fértil que não usam contraceptivos e a liberação de uso em pacientes com aids, lúpus, alguns tipos de câncer e outras doenças. O caso da talidomida foi fundamental para que as agências reguladoras endurecessem as regras de aprovação de medicamentos, mas não a de promoção de remédios para quem provavelmente não precisa deles, como vamos ver em seguida. QUANDO VOCÊ DESCOBRE que virou hipertenso, mesmo que a sua pressão arterial tenha permanecido igual nos últimos 15 anos, significa que baixaram a linha de corte para a doença. Q uem decide se a sua taxa de açúcar no sangue, a pressão, o colesterol e a densidade óssea podem ser considerados normais são comitês de especialistas, médicos que são referências em suas áreas e que desenvolvem pesquisas em universidades de ponta. Bom, a lógica de baixar a linha de corte é que doenças crônicas matam milhões a cada ano — antecipar os cuidados pode ser melhor do que deixar o estrago correr solto. E isso é ótimo. Mas será que essas decisões sofrem influência da indústria farmacêutica? Tudo indica que, pelo menos em parte, sim. DIABETES Antes de 1997, diabéticos eram aqueles que, em jejum, tinham uma taxa de açúcar no sangue maior do que 140. Depois, o nível baixou para 12644, porque quantidades acima disso já podem trazer danos ao organismo. Da noite para o dia, essa pequena mudança transformou 1,7 milhão de saudáveis em diabéticos só nos EUA45, sem contar os novos pré-diabéticos, com glicemia em jejum entre 100 e 125. Pessoas com fatores de risco, que antes eram consideradas normais, estão sendo tratadas como doentes. É que elas ficam no grupo limítrofe, flertam com o problema sem namorar. Como não dá para saber quem vai mesmo assumir compromisso, a ordem é acompanhar todo mundo. Mas acompanhar e medicar são verbos bem diferentes. Parâmetros laboratoriais não querem dizer que todos devam tomar uma droga para forçar seus indicadores a caber neles. Existem níveis aceitáveis para cada paciente, que o médico procura manter sob controle. Porque, às vezes, a normalidade induzida pode ser perigosa, como indicou um estudo do National Institutes of Health com 10.251 pacientes com diabetes tipo 2 e alto risco de ataque cardíaco e AVC46. Os participantes foram separados em dois grupos. Um recebeu terapia medicamentosa intensiva para baixar a taxa média de glicose ao normal, e outro seguiu a terapia padrão, para ficar em níveis aceitáveis, mas ainda acima do ideal. O objetivo era acompanhar a evolução clínica dos voluntários durante seis anos, de 2003 a 2009. Só que a pesquisa foi interrompida na metade porque tinha muita gente morrendo… entre os pacientes da terapia intensiva. Os cientistas observaram que tentar baixar a glicose à normalidade aumentou em 22% o risco de morte e não diminuiu a possibilidade de ataques cardíacos e AVC. O chefe do comitê que tinha recomendado os novos índices de glicemia, veja você, era consultor das farmacêuticas Aventis, Bristol-My ers Squibb, Eli Lilly, GSK, Novartis, Merck e Pfizer47. Todas elas fabricam remédio para diabetes. O segundo medicamento mais vendido no Brasil em 2015 foi um para tratar níveis anormais de açúcar no sangue. Só perdeu para um soro que desentope o nariz. Mas o prêmio de droga lícita mais lucrativa do ano coube à losartana potássica, para hipertensão. PRESSÃO ALTA Houve tempo em que pressão alta era acima de 16. Hoje, até 13,9 dá para aceitar. A ideal é a 12 por 8. Em 2003, um comitê americano batizou quem tem pressão normal, entre 12 e 13,9 por 8 a 8,9, como pré-hipertenso. Até aí, vale a lógica de monitorar pacientes limítrofes e recomendar mudança de estilo de vida para diminuir as chances de desenvolver a doença. A coincidência é que começaram a surgir estudos em jornais renomados mostrando que a terapia farmacológica fazia maravilhas para os limítrofes. Um deles48 reuniu vários Ph.Ds de universidades americanas e durou quatro anos. Nos primeiros dois anos, pré-hipertensos que tomaram remédio tiveram 66% menos chance de ter alta na pressão em comparação com quem mandou ver no placebo. O número é vistoso, mas quer dizer o seguinte: a maioria dos participantes que recebeu medicação para baixar a pressão teve a pressão baixada. Ok. Nos outros dois anos, todo mundo ficou só na pílula de açúcar. Ao final da pesquisa, 53% dos que tinham tomado a droga na primeira etapa desenvolveram hipertensão, contra 63% do time do placebo. A conclusão dos cientistas foi de que o medicamento reduziu as chances de pressão alta. Será que essa pequena diferença justifica passar a vida tomando remédio para evitar uma doença que leva você a passar a vida tomando remédio? É uma boa pergunta para o seu médico. Mas, surpresa: o estudo foi feito por uma fabricante de remédio para hipertensão. Oito dos 11 médicos que assinaram a pesquisa eram consultores e palestrantes de mais de um laboratório. Um deles, na época membro da diretoria de uma farmacêutica, declarou receber “apoio financeiro” de 14 empresas de medicamentos. Outro era contratado da fabricante que pagou pela pesquisa. Dois deles fizeram parte do grupo que definiu em 2003 novos parâmetros de diagnóstico e tratamento de pressão alta49, recomendando o uso de novas drogas — que tiveram a eficácia contestada depois. Nesse time, oito dos nove pesquisadores declararam ter ligações com a indústria. O presidente do comitê tinha prestado serviços para cinco grandes empresas e uma das médicas recebeu verba de pesquisa de 21 fabricantes, deu consultoria para sete e era diretora de um laboratório de biotecnologia que faz produtos para diagnósticos médicos. Essas relações perigosas se repetem em muitas outras doenças. COLESTEROL ALTO Em 2004, o Programa Nacional de Educação para o Colesterol (NCEP, na sigla em inglês), dos EUA, baixou a régua dos pacientes que precisam tomar remédio todo dia. A recomendação foi de prescrever medicação para homens e mulheres saudáveis com “colesterol ruim”, o LDL, entre 100 e 129 ou entre 70 e 100 para quem tem doença cardíaca, independentemente da idade50. Aí você pega seu exame de sangue e vê que colesterol entre100 e 129 é “desejável”, e abaixo de 100 para quem tem doença cardíaca também. Assim, fica difícil acompanhar essa história. Foi o que pensaram 35 pesquisadores independentes e médicos de hospitais e universidades que estão entre as instituições mais respeitadas do mundo. Eles encaminharam ao NCEP uma petição50 cobrando uma revisão isenta do painel que decidiu os novos parâmetros para o colesterol ruim, porque o NCEP inicialmente omitiu que oito dos nove médicos envolvidos recebiam dinheiro da indústria. “Esses conflitos de interesse certamente poderiam afetar o julgamento dos autores e minar a confiança pública no relatório”, observaram no documento. O ponto principal é que recomendar para todos esses milhões de novos pacientes a ingestão diária de estatinas, a terapia medicamentosa padrão contra colesterol alto, pode não ter fundamento. A petição questionou as cinco pesquisas — financiadas pelas farmacêuticas — que serviram de base para as decisões do comitê: “Esses alvos mais baixos de LDL são justificados por evidências científicas? Mesmo aceitando a interpretação de estudos feitos pelos próprios fabricantes (e sem ter acesso à totalidade dos dados), nossa análise mostra que muitas recomendações não são suportadas pelas evidências mais recentes”. Estatinas são drogas que fazem o corpo produzir menos colesterol e ajudam muita gente a despistar ataques do coração e AVC, principalmente quem tem predisposição genética para desenvolver colesterol alto. Em geral, esse remédio é eficiente e seguro, mas entre os efeitos colaterais estão danos musculares que causam fraqueza, câimbras, espasmos e rigidez. Mulheres, idosos, diabéticos e pacientes que exageram no álcool ou tomam outras medicações têm mais chance de enfrentar esses problemas. Como esses grupos de risco tendem a ficar de fora de estudos controlados para a aprovação de medicamentos, justamente por terem mais chances de complicações, recomendar remédio para todo mundo pode ser mau negócio. OSSOS FRÁGEIS Mulheres de meia-idade sabem: de uma hora para outra, muitas delas passam a precisar de comprimidos de cálcio e vitamina D para prevenir osteoporose. Ossos não são tão durões quanto aparentam. Eles vivem se renovando — e é graças a isso que a gente se recupera de um dedo quebrado ou um joelho trincado. Lá pelos 30 anos de idade, a produção de novas células atinge o pico e depois começa a cair, até que a taxa de perda celular supere a de reposição. Ou seja: a quantidade de osso que chega não repõe a que vai embora e a estrutura se torna mais porosa e suscetível à quebra. Esse processo não é rápido. Ossos porosos só costumam se tornar um problema a partir dos 60, 70 anos. Ou melhor, costumavam. Em 1992, a Organização Mundial da Saúde (OMS) promoveu um evento, patrocinado por laboratórios farmacêuticos, que reuniu dezenas de especialistas para discutir como prevenir o surgimento de fraturas causadas pela osteoporose51. Se houvesse uma forma de detectar antes a tendência para a doença, talvez fosse possível brecar o avança dela. Para tanto, foi preciso decidir o que é um osso propenso à osteoporose, e o que não é. O comitê escolheu como padrão a densidade de mulheres brancas entre 20 e 29 anos, período em que a atividade celular está no auge e os ossos, tinindo. Por que mulheres brancas? Elas têm mais chances de sofrer da doença. O estrogênio tem efeito protetor sobre os ossos. Como a taxa desse hormônio despenca a partir da menopausa, as portas para a osteoporose nas mulheres ficam mais abertas. Nos homens, a função protetora está a cargo da testosterona, e os problemas só tendem a aparecer quando eles passam dos 65, mais ou menos. Além disso, a densidade óssea é cerca de 30% maior neles. Foi assim que a saúde dos ossos passou a ser medida segundo parâmetros que levam em consideração faixa etária, sexo e etnia comparados aos indicadores de um grupo de mulheres brancas jovens. Se a sua densidade óssea é parecida com a delas, o exame aponta que seu índice é zero. Padrão. Se a densidade é maior, pode chegar a 1, 2 ou 3. Quando é menor, vai para menos 1, menos 2, menos 3. Essa escala recebeu o nome de T score, o índice T. Com o envelhecimento, a densidade naturalmente diminui e começa a se distanciar do padrão. Se você tem 50 anos e a sua massa mineral é comparada com a de uma mulher 20 anos mais jovem, isso dá um número negativo, claro. Mas existem níveis baixos que podem indicar osteoporose, definida pela OMS como índice T igual ou menor que menos 2,5. Ossos são feitos de cálcio — e a vitamina D ajuda na absorção do mineral. Logo, aumentar a quantidade dessas substâncias no organismo parece ser uma solução contra a doença. Mas a própria OMS admite que somente colocar mais cálcio na estrutura pode não resolver o problema das fraturas na idade avançada52. Especialistas dizem que a qualidade da massa, e não só a quantidade do mineral, é determinante. Inquestionável mesmo é o crescimento do mercado de equipamentos, diagnósticos e venda de suplementos e remédios para aumentar a densidade óssea, principalmente depois de 2003, quando estabeleceram que quem tem índice T a partir de menos 2 também precisa ser tratado com pílulas. Essa decisão colocou mais 7 milhões de mulheres na mira da terapia medicamentosa só nos EUA. E quem tem entre menos 1 e menos 2? Está livre de passar na farmácia? Não. Foi estabelecida uma nova condição médica para homens e mulheres, chamada osteopenia, que é a diminuição da massa óssea, uma “pré-osteoporose”. A pré- doença pode ser um convite para que médicos adotem um procedimento padrão: prescrever remédio para todo mundo. Tudo bem, porque vitaminas e minerais não fazem mal nem a uma mosca, certo? Não temos certeza sobre as moscas, mas, no corpo humano, doses altas de qualquer substância são perigosas. Aumentar a quantidade de vitamina D e cálcio sem acompanhar os efeitos no organismo pode levar a danos nos músculos, nervos, ossos e, principalmente, nos rins. Os remédios de primeira linha para prevenção e tratamento, os bisfosfonatos, têm entre seus efeitos colaterais dor incapacitante de músculos e ossos, úlceras de esôfago, aumento de ocorrências de necrose do osso da mandíbula e fraturas do fêmur53. Em 2013, a Anvisa recomendou54 que a prescrição de fármacos seja limitada a casos confirmados de osteoporose com alto risco para lesões. A base da decisão foram estudos que indicaram não haver diminuição das chances de fratura nos grupos que receberam bisfosfonatos. Além dos riscos que todo medicamento traz, não existem pesquisas que mostrem o que acontece no corpo depois de quatro anos de uso contínuo dessa classe de remédios. Esses dados todos, claro, não diminuem a importância de detectar e prevenir doenças incapacitantes. Mesmo assim, vale redobrar o cuidado para evitar efeitos colaterais de remédios e vitaminas artificiais que não são tão inócuos quanto parecem. Até porque, não faz muito tempo, cocaína e heroína também eram considerados medicamentos com desvantagens irrelevantes — como vamos ver agora, no capítulo 5. BEBÊ QUE CHORA demais à noite? Morfina nele. Dor de dente? Cocaína. Tosse, heroína. Anemia infantil, cerveja. Esses eram alguns dos remédios mais populares do século 19. Era uma época em que não havia agências reguladoras. A Anvisa é uma adolescente, nascida em 1999. O FDA, a Anvisa dos EUA, começou a tomar corpo em 1906, mas só vingou a partir de 1938, depois que um antibiótico com solvente altamente tóxico chegou às prateleiras americanas sem passar por testes e causou envenenamento em massa e mais de cem mortes. Até então, os remédios entravam no mercado sem comprovação de segurança e eficácia. Os fabricantes nem precisavam revelar os ingredientes da fórmula. E aí surgiam produtos como este aqui, anunciado em jornais, revistas, livros de receitas e capas de calendário nos EUA: “Você é perturbada ànoite e tem seu descanso interrompido por uma criança doente sofrendo e chorando com a dor do nascimento dos dentes? Resolva de uma vez e compre um vidro do Xarope Tranquilizante da Sra. Winslow. Vai acabar com o problema do coitadinho imediatamente. Cura diarreia, regula o estômago e o intestino, sara cólica, suaviza a gengiva, reduz a inflamação, dá tônus e energia para todo o organismo.” O xarope da sra. Winslow, enfermeira e sogra do fabricante, foi lançado em 1849 e virou “o melhor amigo” das mães e babás do século 19. Em 1868, as vendas anuais estavam em 1,5 milhão de unidades56, fazendo do remédio um dos mais populares do mundo. Sucesso fundamentado, porque ele funcionava mesmo, na hora, sem erro: era morfina com álcool. A morfina é um poderoso depressor do sistema nervoso central. Daí a ação anestésica por todo o corpo e o efeito sobre a diarreia, porque a substância inibe os movimentos do intestino. Com o uso indiscriminado, crianças morriam de overdose ou ficavam dependentes e passavam a sofrer com as terríveis e dolorosas síndromes de abstinência. No começo do século 20, autoridades americanas começaram a pedir a proibição de fórmulas pediátricas contendo morfina. Ainda assim, o xarope da sra. Winslow só saiu do mercado em 1930, mais de 80 anos depois do lançamento. Até lá, usou como álibi de marketing as décadas de presença nas farmácias e nos lares planeta afora. “O Xarope Tranquilizante da Sra. Winslow é um antigo e bem testado remédio, que por mais de 50 anos tem sido usado por milhões de mães, com perfeito sucesso, quando a dentição dos filhos começa a despontar.” Outros medicamentos famosos, como o Vapor-Ol, para ser colocado no vaporizador e inalado para tratar asma, e o Elixir Paregórico da Stickness & Poor, tinham ópio, substância leitosa extraída da papoula dormideira, da qual se obtém a morfina. O elixir trazia 46% de álcool, a mesma graduação de cachaça, uísque e vodca. A posologia era de cinco gotas para recém-nascidos com até 5 dias de vida, oito gotas para bebês de até 2 semanas e 25 gotas para crianças de até 5 anos. Os adultos tomavam uma colher de chá cheia. Os elixires paregóricos, também conhecidos como tintura de ópio, foram um clássico no Brasil também. Ainda existem, mas a maioria tem óleos essenciais de outras plantas, não da papoula, com efeitos contra diarreia e gases. O uso de entorpecentes naturais para tratar doenças é feito há séculos. Nos anos 1500, o médico Paracelso descobriu um jeito de aumentar a eficiência do ópio no tratamento de males diluindo a substância em álcool, em vez de água, para ser melhor absorvida pelo organismo. Paracelso é o avô da quimioterapia, por ter proposto o uso de venenos em pequenas doses para curar doenças antes mesmo que o bacteriologista alemão Paul Ehrlich, considerado o pai da quimioterapia, comprovasse a eficácia da teoria muito tempo depois. O ópio não demorou a se tornar uma mercadoria fundamental, virando parte da rotina de milhões (mais graças a seus poderes recreativos do que medicinais) e motivando grandes disputas. As companhias de navegação, como a britânica Cia. das Índias Orientais, eram as maiores empresas da Terra entre os séculos 16 e 18, e aproveitavam as rotas do comércio de especiarias para negociar ópio também. Elas compravam e vendiam a substância nos portos do Oriente, que era onde estavam tanto os mercados produtores como os consumidores de ópio. Na China, o consumo foi tão disseminado que a substância acabou proibida por decreto do governo no século 18. Os ingleses chiaram, e entraram em guerra contra os chineses para impor a legalização, e continuar comercializando a droga livremente nos portos de lá. Estavam iniciadas as Guerras do Ópio. E, com a vitória britânica, a droga foi novamente liberada na China. No Ocidente, o derivado da papoula só se tornou popular mesmo no século 19. Um dos princípios ativos do ópio foi isolado e, graças à sua intensa ação anestésica, recebeu um nome em homenagem ao deus grego dos sonhos, Morfeu. Era a morfina — que, dali em diante, ganhou status de salvadora da pátria. Por um motivo nobre. Milhões de pessoas conviviam com doenças como a cólera, a disenteria e a malária sem ter acesso a remédios que pudessem ao menos trazer algum conforto. O ópio era o alívio imediato das dores e evitava mortes, porque realmente breca a diarreia. É possível que, diante das opções disponíveis na época, os opiáceos tenham salvado mais vidas do que tirado. Até hoje, são os únicos anestésicos capazes de livrar do sofrimento muitos pacientes com dores severas, como as do câncer. Até por isso, quanto mais desenvolvido um país, hoje, mais morfina seus hospitais costumam ter, para confortar os doentes que padecem de dores insuportáveis. Mas o poder viciante da droga e o uso recreativo, que superou o terapêutico, fizeram com que a dependência química virasse um problema de saúde pública em vários países ainda no século 19. Principalmente depois da fabricação da agulha para aplicação de remédios com seringa. Acreditava-se que a administração intravenosa não viciava — depois é que descobriram o impacto ainda maior dessa prática. Enquanto isso, na Alemanha… Era 1897. Químicos da Bayer trabalhavam em um derivado do ópio que fosse menos viciante que a morfina. Chegaram à codeína e à diacetilmorfina, descoberta 23 anos antes por um químico inglês que não levou o experimento adiante. A companhia decidiu fabricar e lançar a diacetilmorfina com um nome comercial bem mais atraente, que remetesse à força e à capacidade de dar conta de muitos males: heroína — da palavra “herói” mesmo. Misturada com álcool e clorofórmio (um anestésico tóxico usado como solvente), a heroína virou a alternativa “segura” à morfina, para tratar não só os viciados como também os males que as antigas formulações curavam, sem o efeito colateral da dependência. O uso mais popular era como xarope para tosse em crianças. Até descobrirem que a droga tinha um poder viciante bem maior que o da morfina. A ASPIRINA DE TUTANCÂMON Os cientistas do século 19 tinham outro interesse botânico além das papoulas: as folhas de um arbusto franzino, a Erythroxylum coca. Mascadas e usadas em infusões pelos índios andinos em rituais religiosos, eram consumidas também pelos nativos para vencer as dores de cabeça causadas pela altitude elevada, combater a exaustão, reduzir o apetite e acalmar o estômago castigado pela fome. Depois que os europeus passaram a usar as folhas em formulações medicinais e um químico alemão isolou um dos compostos ativos da planta, dando a ele o nome de cocaína, a substância virou o ingrediente da moda em remédios e tônicos. Um deles recebeu até um selo papal de qualidade pelas propriedades terapêuticas, com chancela do papa Leão 13: o Vinho Mariani, criado por um químico francês. Era uma bebida à base de álcool e extrato de folhas de coca que prometia recuperar rapidamente a saúde, a força, a energia e a vitalidade, e era indicado para “acelerar a convalescença, especialmente depois da gripe” e “fortalecer, estimular e revigorar o corpo e a mente”. De carona nesse sucesso, o médico e farmacêutico americano John Pemberton criou sua própria versão do fortificante alcoólico em 1884. Só que o vinho francês de coca do sr. Pemberton tinha ingredientes a mais, como o extrato de um fruto africano rico em cafeína que os escravos comiam para suportar o trabalho pesado e as dores. As vendas iam bem para Pemberton, mas os americanos enfrentavam há tempos uma epidemia de abuso de álcool e as comunidades se engajaram para pressionar os governos pela proibição de bebidas alcoólicas. Antes que o país decretasse a Lei Seca, em 1920, várias regiões tinham criado legislações próprias. Foi o que aconteceu em Atlanta, onde Pemberton atuava. Ele tirou o álcool da fórmula em 1886, colocou água gaseificada e mudou a marca, que ganhou o nome dos dois ingredientes principais: a planta andina,coca, e o fruto africano, a noz de cola. Estava criado o refrigerante mais famoso do mundo. A Coca-Cola começou a carreira como um “tônico cerebral” vendido em farmácias para curar vários males, de cansaço, nevralgia e dor de estômago a histeria, dor de cabeça e melancolia. A fórmula conteve cocaína até os primeiros anos do século 20. A partir dali, as folhas da planta continuaram na receita, mas sem cocaína. A dose recomendada para náusea e vômito era de uma ou duas colheres de chá, ou de acordo com a orientação médica. Mas esses fortificantes não davam barato. Ferver ou mascar a planta é diferente de consumir cocaína processada. Uma folha tem de 0,5% a 2% de cocaína. São necessários 240 quilos de folhas da planta, 50 litros de solventes e 1 quilo de substâncias oxidantes para produzir menos de 1 quilo de pó, o cloridrato de cocaína. Significa que a droga é o princípio ativo concentrado, fruto do mesmo linchamento químico que faz nascer a maior parte dos medicamentos. Você deve ter vários tipos de pó branco extraídos de alguma planta dentro do seu armário. Remédios são versões industrializadas da natureza. Nossos ancestrais aprenderam que mascar certas plantas quando surgia dor ou indisposição dava certo. Animais fazem isso, como o seu cachorro, que mantém firme a mania ancestral dos lobos de comer mato quando bate uma dor de estômago. A diferença é que nós, em vez de continuar comendo mato por tentativa e erro, não só descobrimos quais eram as plantas (e fungos) mais eficazes como passamos a isolar e refinar seus princípios ativos em forma de pós digeríveis. O mais famoso desses pós é o ácido acetilsalicílico, mais conhecido como aspirina, uma versão moderna do chá de casca de salgueiro que Tutancâmon tomava. O salgueiro fazia parte dos ingredientes farmacêuticos do Egito Antigo, listados no Papiro Ebers, de 1550 a.C., considerado como o tratado médico mais importante da Antiguidade. A planta é rica em salicilina, substância com propriedades anti-inflamatórias. Foi só no século 19 que os pesquisadores descobriram que a salicilina era convertida em ácido salicílico no organismo. Apesar de eficiente, causava irritações graves no estômago e no intestino. Os cientistas então decidiram modificar a substância, juntando a ela um grupo de compostos chamado acetila. Aí, sim, a droga ficou mais branda e passou a ser mais tolerada pelo corpo — embora continue, até hoje, se estranhando com as mucosas. O processo, parecido com a transformação da morfina em heroína, resultou no ácido acetilsalicílico. Quem deu o nome comercial famoso foi a Bay er, que lançou, em 1899, o remédio à base de outra planta rica em salicilina, do gênero Spiraea, e o batizou de Aspirina. Heroína, cocaína e aspirina são exemplos de como a farmacologia é um jogo de tentativa e erro — coisa que, no fundo, ela continua sendo. FREUD EXPLICA A cocaína era considerada uma alternativa não viciante para curar dependentes de morfina e álcool. A droga foi também o primeiro anestésico local, por isso estava entre os ingredientes de pastilhas e gotas para dor de dente e garganta. Pequenas cirurgias, como as de olho e nariz, eram feitas com soluções de cocaína. Depois vieram os derivados da mesma família, como a benzocaína e a xilocaína. Existem relatos médicos da época contando casos de tratamento de febre tifoide, pneumonia, asma, anemia grave e tuberculose com a substância. Até o médico Sigmund Freud usou a droga para tentar livrar pacientes de males físicos, como a dependência de morfina e álcool, e psíquicos, como a depressão. Para isso, fez uso, ele próprio, da cocaína diluída em água e relatou a experiência em quatro artigos publicados. O primeiro deles foi o Über Coca57 (Sobre a coca), de 1884: “É um fato notório que os psiquiatras dispõem de um farto suprimento de drogas para reduzir a excitação dos centros nervosos, mas nenhum que possa servir para aumentar o funcionamento reduzido dos centros nervosos. Por conseguinte, a coca tem sido prescrita para os mais diversos tipos de debilidade psíquica (…) A propriedade terapêutica da coca não merece, portanto, ser rejeitada de imediato.” Demorou pelo menos 11 anos para Freud perceber que a droga milagrosa matava, e que em vez de cura trazia dependência crônica. Mais tarde, depois da Convenção Internacional do Ópio, assinada em 1912, os países começaram a reprimir o consumo de cocaína, ópio e derivados. A proibição foi criando um mercado ilegal, e o resto desse drama culminou na explosão do consumo, da população carcerária e da violência ligada ao crime organizado. No mundo dos fármacos, o jeito foi tentar outra substância, que fosse eficaz, mas não viciasse nem tivesse poderes recreativos. Vejamos o que temos aqui… as anfetaminas, claro. A droga começou a ser produzida em laboratório para ser usada como descongestionante nasal e broncodilatador. O primeiro remédio de anfetamina foi a Benzedrina, popular a partir de 1930. Os efeitos colaterais do medicamento eram tirar o sono, o cansaço e a fome. Por isso, serviu de estimulante das tropas na Segunda Guerra Mundial. Até médicos das Forças Armadas americanas adotavam para uso próprio. Um folheto encaminhado a eles com um cupom para ser recortado dizia o seguinte: “Todos os médicos das Forças Armadas do inverno passado continuam nos escrevendo pedindo seus inaladores de Benzedrina habituais. Evidentemente, sob condições do serviço militar — o mais exigente teste de utilidade prática —, os inaladores de Benzedrina mostraram sua combinação única de praticidade e eficiência terapêutica. Então, nós esperamos que qualquer médico do Exército ou da Marinha que queira inaladores de Benzedrina para uso pessoal retorne o cupom abaixo ou nos envie uma carta postal (nós não temos nenhuma outra forma de obter seu endereço).” A Alemanha tinha um esquema de fabricação e distribuição da versão mais potente da anfetamina, a metanfetamina, vendida com o nome comercial de Pervitin. Tratava-se de uma droga tão potente quanto o “cry stal meth”, protagonista químico do seriado Breaking Bad. Ou seja: uma droga que deixava o usuário pilhado por quase 10 horas. Até por isso, o Pervitin foi distribuído em escala industrial para os soldados nazistas ao longo da Segunda Guerra — segundo alguns pesquisadores, o remédio está por trás da eficiência das Blitzkrieg, as “guerras-relâmpago”, nas quais os nazistas marchavam por dias sem dormir, atingindo seus alvos praticamente de surpresa. No front ocidental, a Benzedrina foi lançada na forma de pastilhas contra a narcolepsia (doença que causa sono excessivo, tremores e depressão). Depois deu origem aos inibidores de apetite. Ela acabaria proibida, e não só por causar dependência, mas por aumentar o risco de ataque do coração, arritmias cardíacas, convulsão, AVC, pressão alta e desidratação severa. Ao longo dos anos, substâncias quimicamente parecidas com a anfetamina foram estudadas para fazer parte de remédios que agissem de forma semelhante no cérebro, estimulando o sistema nervoso central, mas com potencial bem menor para o vício. Esses derivados menos poderosos da anfetamina, então, passaram a constar na fórmula de alguns remédios contra a obesidade, mal de Parkinson e TDAH. O ácido lisérgico (LSD) foi outro que surgiu com propósitos médicos, para tratar esquizofrenia e alcoolismo. Não deu certo, já que a eficácia terapêutica do alucinógeno não foi provada. No começo de 2016, porém, as propriedades medicinais do LSD voltaram à tona, depois que especialistas de várias universidades observaram o efeito da droga em cérebros humanos monitorados por computador. O estudo58 indicou que a substância, se usada por um curto período — a princípio, uma única vez —, pode enfraquecer conexões chamadas de rede de modo padrão, relacionadas a modelos rígidos de comportamento. Essa rede de neurônios é pouco ativa na infância, quando a capacidade de aprender coisas novas e seadaptar é virtualmente infinita. Conforme envelhecemos, essas conexões ficam mais cristalizadas e qualquer mudança se torna mais difícil. Segundo os cientistas, a rede cerebral de quem passa por fortes traumas ou sofre de depressão severa é ainda mais “dura”. Se o LSD conseguir mesmo atuar nesses casos psiquiátricos graves, que não respondem a outras classes de medicamentos, poderá atenuar temporariamente as ligações, permitindo que o cérebro refaça suas conexões e, em última instância, “aprenda” a se livrar da depressão. Mas isso são apenas hipóteses para um antidepressivo do futuro. De qualquer forma, o contrassenso é que as drogas legalizadas viraram um problema tão grande quanto as ilícitas. As mortes por overdose de remédios prescritos vêm aumentando em ritmo assustador — como você verá no próximo capítulo. REMÉDIOS Feridas na pele INGREDIENTES Fezes humanas, cerveja e mel. MODO DE USAR Fazer uma pasta e aplicar sobre o local. Fraqueza extrema INGREDIENTES Sêmen de asno com folhas de salgueiro, pão fresco, ervas do campo, figos, uvas e vinho. Ou excremento de pássaro com polpa de fruta cozidos em azeite e cerveja. MODO DE USAR Ingerir durante quatro dias. Debilidade física INGREDIENTES Carne podre com alho e ervas do campo. MODO DE USAR Cozinhar em gordura de ganso para ingestão durante quatro dias. Hemorroida INGREDIENTES Cominho e gordura de antílope. MODO DE USAR Moldar um supositório e introduzir. Queimaduras INGREDIENTE Uma rã. MODO DE USAR Aquecer em óleo e esfregar na região afetada. Queimaduras 2 INGREDIENTES Fezes de gato com sabugueiro ou esterco queimado de cabra, ou cera com gordura assada de vaca misturada com fibras de palmeira. MODO DE USAR Aplicar na queimadura. Dor de cabeça INGREDIENTES Couro de lombo de hipopótamo com sementes de papoula. MODO DE USAR Fazer uma pasta e besuntar a cabeça. Coriza INGREDIENTES Pão com leite de uma mulher que acabou de dar à luz um filho. MODO DE USAR Misturar e enfiar no nariz. Constipação INGREDIENTES Fruto da palmeira amassado com sêmen humano. MODO DE USAR Cozinhar com óleo e mel para ingestão durante quatro manhãs. Enrijecimento abdominal INGREDIENTES Cocô de gato, pão, melancia, cerveja e vinho. MODO DE USAR Preparar um emplastro. Calvície INGREDIENTES Gordura de leão, de hipopótamo, de crocodilo, de gato, de serpente e de cabra. MODO DE USAR Misturar e esfregar na careca. Gula INGREDIENTES Tâmaras e folhas. MODO DE USAR Quando examinar alguém que sofre de obstrução no abdômen e sente desconforto depois de ter comido, com o corpo inchado, faça-o deitar estendido e o examine. Se achar que o corpo está quente e o abdômen, rígido faça o remédio com tâmaras. XAROPE DE MORFINA DA SRA. WINSLOW Alívio imediato para o pequeno querubim “O Xarope Tranquilizante da Sra. Winslow deve ser usado sempre que os dentes das crianças começarem a nascer. Traz alívio imediato para o pequeno sofredor. Promove um sono natural e tranquilo salvando a criança da dor, e o pequeno querubim desperta ‘tão brilhante quanto um botão de flor’. Tem um gosto muito agradável. Acalma a criança, suaviza as gengivas, afasta toda a dor, libera a respiração, regula o intestino e é o melhor remédio conhecido para diarreia, seja decorrente do quadro dental, seja de outras causas. À venda por todos os farmacêuticos em todo o mundo.” PASTILHA DE COCAÍNA ALLEN Servem para tudo “Para febre do feno, catarro e problemas na garganta. Cura nervosismo, dor de cabeça e insônia.” GOTAS DE COCAÍNA Propriedades maravilhosas “Esta preparação de gotas para dor de dente contém cocaína, e suas maravilhosas propriedades são plenamente demonstradas pelas várias recomendações que recebe diariamente. Não use outro remédio a não ser as Gotas de Cocaína para Dor de Dente.” MALZBIER Para mães e filhos “A cerveja doce para senhoras e crianças. O tônico contra anemia e palidez.” VINHO DE COCA MARIANI Recomendado pelo papa “Para corpo e cérebro. Há 30 anos sendo recomendado por todos os médicos eminentes. O Vinho Francês de Coca original; o tônico estimulante mais popular usado em hospitais, instituições públicas e religiosas em toda parte. Nutre, fortifica, refresca. Fortalece todo o organismo. O renovador mais agradável, efetivo e duradouro.” XAROPE DE ALCATRÃO Deixa você curado e bonito “Eu era assim [figura de um homem idoso]. Cheguei a ficar quase assim [figura de uma caveira]. Sofria horrivelmente dos pulmões, mas, graças ao Jatahy Prado, o rei dos remédios brasileiros, poderoso remédio contra tosse, bronquite, asma e rouquidão, consegui ficar assim [figura de um bigodudo estilo Tom Selleck, o Magnum], completamente curado e bonito. Garanto, sob minha palavra de honra, a todos que sofrem de tosse e rouquidão, que fiquei completamente curado desses males com Xarope de Alcatrão e Jatahy do sr. Honorio do Prado, bem como tenho aconselhado a todas as pessoas de minha amizade esse medicamento. Tenho obtido sempre bons resultados.” CLORIDRATO DE HEROÍNA O mais barato alívio “É eminentemente adaptado da fabricação de elixires, bálsamos, gotas e medicamentos para tosse de todo tipo. O mais barato alívio específico para a tosse (em bronquite, tuberculose pulmonar, coqueluche, etc., etc.). VINHO DE COCA METCALF Agradável e certeiro “Para cansaço da mente e do corpo. Feito com folhas frescas de coca e o mais puro vinho. Recomendado para nevralgia, insônia, abatimento, etc. Como tônico e revigorador, é sempre seguro, agradável e certeiro, sendo preparado com o máximo de habilidade e precisão a partir das mais frescas folhas de coca e do mais puro vinho.” GLICO-HEROÍNA Melhor que morfina “A soma de experimentos clínicos indica a Glico-heroína (Smith) como um sedativo respiratório superior às preparações de ópio, morfina, codeína e outros narcóticos, desprovido dos efeitos tóxicos ou depressores desses últimos.” XAROPE E EXTRATO COCA-COLA É isso aí “Essa ‘bebida intelectual’ e moderada contém as preciosas propriedades tônicas e estimulantes nervosas da planta coca e da noz de cola (ou kola) e consiste não só numa deliciosa, palpitante e refrescante bebida, mas num valioso tônico cerebral e na cura para todas as perturbações nervosas — enxaqueca, nevralgia, histeria, melancolia, etc.” CIGARROS ÍNDIOS DE MACONHA Respirar ficou fácil “A dificuldade em respirar, a roncadura, os flatos, a aspiração sibilante acabam quase logo, produz-se uma expectoração abundantíssima quase sempre em pouco tempo, torna-se mais fácil a respiração, mais branda a tosse e um dormir reparatório afasta todos os sintomas assustadores que se tinham manifestado.” “Todos os específicos empregados até hoje para aliviar da asma e das moléstias das vias respiratórias têm por base substâncias tóxicas que deixam um grande peso no cérebro e, além d’isto, são sumamente perniciosas à inteligência e à saúde em geral. As propriedades do princípio ativo do cânhamo de Bengala que contêm nossos cigarros são tão admiráveis que, apenas se respira alguma fumaça, nota-se logo uma grande facilidade em respirar, menor opressão, em uma palavra um alívio rápido, completo e inofensivo, porque os nossos cigarros não contêm princípio tóxico algum. São pois esses cigarros o único remédio certo que se possa aconselhar com confiança contra nevroses, asma, catarro pulmonar, laringite e em geral contra todas as moléstias das vias respiratórias.” COMPRIMIDOS ANTISSÉPTICOS DE COCAÍNA Um up nas cordas vocais “Acalma instantaneamente os males da garganta, tosse, rouquidão, etc. Restitui às cordas vocais sua flexibilidade e elasticidade. Indispensável aos cantores, professores e oradores.” TEM MAIS gente morrendo de overdose de remédios prescritos nos EUA do que por abuso de coca e heroína somados60. Amaior parte dos casos tem a ver com remédios derivados da morfina, como a codeína, a metadona e a oxicodona, e, em menor grau, de calmantes que podem estar no seu armário, como o Rivotril e o Valium. Entre 1999 e 2010, o número de óbitos por overdose de remédio cresceu 400% entre as mulheres e 265% entre os homens61. Esse aumento maior entre o público feminino acontece porque elas são mais propensas a desenvolver dor crônica e usar a medicação forte por períodos mais longos, criar dependência mais rapidamente e obter receitas de vários médicos diferentes, o que facilita uma interação medicamentosa fatal. No Brasil, as mulheres representam 62% dos casos de envenenamento por medicamentos62. Aliás, remédios são a principal causa de intoxicação por aqui, superando os produtos de limpeza e os agrotóxicos62. Dos 99.035 casos notificados em 2012, último período avaliado pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico- Farmacológicas (Sinitox), 27.008 foram de remédios — quase três em cada dez. O mais alarmante é que bebês de 1 a 4 anos de idade são a faixa etária com maior ocorrência na comparação com as outras definidas na pesquisa. Eles chegam a 28% dos casos, quase o dobro do segundo maior grupo, entre 20 e 29 anos. Bom, depois vêm os acidentes com escorpiões (12.494) e o uso de drogas de abuso (7.998), que podem causar dependência, como cocaína, heroína, crack e álcool. A cultura da automedicação e da autoprescrição ajuda a entender esses números. Nos últimos cinco anos, foram 60 mil internações hospitalares no País63 motivadas pelo uso de remédios sem acompanhamento profissional. Uma pesquisa do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade Industrial64 mostrou que a automedicação faz parte da rotina de 76,4% dos entrevistados acima de 16 anos. Cinco em cada dez carregam comprimidos para tomar quando surge algum incômodo; 16,5% usam analgésicos toda semana. Considerando apenas os jovens entre 16 e 24 anos, nove em cada dez compram frequentemente remédios sem qualquer orientação médica. Quanto mais escolaridade, maior o consumo por conta própria. Metade dos entrevistados com ensino fundamental e 84,8% dos que completaram o ensino médio dispensam a consulta antes de passar na farmácia. A gente faz isso porque tem a sensação de estar o tempo todo no controle da situação. É só não exagerar na dose, certo? Nem sempre, porque exagerar na dose não é tão difícil assim em alguns casos. O paracetamol, por exemplo. Digamos que, para superar um resfriado, você decida recorrer a 750 mg de paracetamol (um Ty lenol) para dor e febre, bem menos do que a dose máxima considerada segura, que fica entre 3 e 4 gramas por dia. Para potencializar o efeito, sua conclusão é de que não custa nada complementar com um antigripal para desentupir o nariz. São mais 400 mg de paracetamol. Esses dois remédios quatro vezes ao dia resultam em 4,6 gramas da droga, o que já traz risco de lesão hepática irreversível e morte. Mas os casos de overdose costumam acontecer com remédios bem mais potentes do que o paracetamol. Os ansiolíticos viram suas vendas crescer em mais de 400% entre 1996 e 201365 nos EUA. A prescrição de remédios dessa classe, os benzodiazepínicos (vamos chamá-los de “benzos”, como eles são conhecidos entre os íntimos), aumentou 67% nesse período e a quantidade média em miligramas consumida subiu 140%. Significa que as doses estão mais altas ou as pessoas estão usando por mais tempo. Em 2013, três em cada dez mortes por remédios envolveram calmantes. Isso é uma surpresa, porque o que costuma acontecer em casos de superdosagem de benzo é o paciente dormir até passar o efeito. A dose alta dificilmente mata, como ocorria com os tranquilizantes mais antigos, os barbitúricos, da família do Gardenal. Esses tiraram a vida de muitos famosos e anônimos entre as décadas de 1950 e 1970. Marilyn Monroe e Judy Garland, a Dorothy de O Mágico de Oz, sofreram overdose desses remédios. Então o mais provável é que as pessoas hoje estejam usando ansiolíticos de forma errada — misturando mais de um deles ou tomando com analgésicos ou álcool em excesso, por exemplo. Tranquilizantes deprimem o sistema nervoso central. Se ingeridos com álcool ou outras substâncias que também diminuem as funções do organismo, como alguns antidepressivos e remédios para dor, um potencializa o efeito do outro — e o sistema cardiorrespiratório pode parar. ANALGÉSICOS Q UE MATAM O número de intoxicações e mortes entre quem mistura benzo e analgésicos triplicou entre 2004 e 201166 nos EUA em todas as faixas etárias acima de 17 anos. Mas não estamos falando de quaisquer analgésicos, e sim daqueles da família da morfina: os opioides. Entre as mulheres, o coquetel de benzodiazepínicos e analgésicos barra pesada tem sido um problema crescente67. E as grávidas, naturalmente, são o grupo que mais deve receber atenção. Esses remédios, assim como o álcool, o tabaco e drogas ilícitas, atravessam a placenta e afetam o bebê, podendo causar um conjunto de problemas chamado síndrome de abstinência neonatal (SAN). O recém-nascido passa por um sofrimento parecido com o de um ex-viciado no processo de desintoxicação e tem distúrbios físicos ou mentais. Entre 2000 e 2009, o número de SAN aumentou quatro vezes. Remédios tarja preta para dor são a principal causa das mortes por overdose entre as mulheres67. Em segundo estão os calmantes benzodiazepínicos, seguidos por antidepressivos. Só depois vêm cocaína e heroína. Para cada uma que perde a vida pelo uso de analgésicos prescritos nos EUA (e são 18 por dia só naquele país), 30 vão parar no pronto-socorro. As mulheres entre 25 e 54 são as que mais sofrem intoxicação. Já a maioria das vítimas fatais está na faixa entre 45 e 54. Não é difícil entender por que, para homens e mulheres, a situação pode sair tanto do controle. Quando a morfina e outros analgésicos da classe dos opioides entram na circulação, a sensação é de leveza. Prazer. No cérebro, nos músculos e nos intestinos, o medicamento finge ser uma substância natural anestésica que o corpo produz, a endorfina, nossa morfina interior. O sofrimento evapora. O processo poderia parar depois que a doença foi controlada ou curada. Mas vários pacientes continuam, não exatamente por falta de força de vontade. É que, em poucas semanas, o organismo diminui a produção de endorfina, até ficar próxima de zero. Claro, dizem as células, já tem bastante analgésico nadando no sangue. Na primeira tentativa de se livrar do remédio, surgem dores que mais parecem castigo, porque não há mais anestésico natural circulando. Podem acontecer câimbras no abdômen, diarreia, vômito, náusea, insônia, taquicardia, hipertensão, suor frio. É preciso acompanhamento médico para diminuir gradualmente a dose, ou entrar com um químico substituto, que atenue a falta dos anestésicos naturais e ajude a atravessar o período de desintoxicação — um exemplo é a metadona, um medicamento sintético que age exatamente como os derivados do ópio, mas é absorvido de forma mais lenta pelo organismo e não causa crises de abstinência tão graves. O objetivo de remédios como a metadona é desacostumar o corpo gradualmente àquelas doses grandes de analgésicos que emulam a endorfina e ajudá-lo a restaurar a produção natural da substância. Pode ser um longo e doloroso calvário. Até por isso, muitos desistem da recuperação no meio do caminho e continuam com os opioides. RECOMPENSAS EM SÉRIE O vício é inerente ao Homo sapiens. É que, você sabe, existem coisas na vida que dão prazer. Elas acionam o centro de recompensa do cérebro, ligado aos nossos instintos de preservação dos genes, e liberam dopamina, a substância que inunda o corpo com uma sensação gostosa que leva à repetição da experiência. Fazer sexo, comer e aquecer o corpo ao sol liberam dopamina. É um mecanismo sábio da natureza para que a espécie produza descendentes, não morra de fome e não congele. Mas esse centro de recompensatem sido enganado. Se uma droga libera a produção de dopamina, o cérebro fica salivando por ela. E quem fisga o centro de recompensa muito bem é a heroína. Outros que não deixam a desejar são a cocaína, os analgésicos da família da morfina, o álcool e, em grau bem menor, os calmantes e os estimulantes como a Ritalina, usada no tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Cada substância age em maior ou menor intensidade, dependendo da quantidade do princípio ativo, da forma como ela funciona e de como o organismo responde. Mas o que determina mesmo o poder viciante de uma substância é a relação entre a dose ingerida, a via de administração, o tempo para chegar ao pico de ação e a demora até a eliminação. Se a droga é absorvida rapidamente — por exemplo, injetada na veia em vez de consumida por via oral —, vai começar a fazer efeito quase imediatamente e atingir o ápice num tempo mais curto. Quando a excreção também é ligeira, o corpo pede uma nova remessa logo para repor a que sumiu. Para minimizar o desejo pela próxima dose, a indústria tem investido em versões de analgésicos e calmantes de liberação lenta, que levam 12, 18 horas para começar a perder o efeito — intervalo suficiente para que o comprimido seguinte chegue antes da sensação de que não vai dar para aguentar. A repetição do uso pode levar o organismo a se acostumar com a droga. Aí, são necessárias doses cada vez maiores para alcançar o mesmo efeito. Os médicos chamam isso de tolerância. Quantidades grandes de opioides no sangue são uma cilada. Eles deprimem com maestria o sistema nervoso central, diminuindo a atividade dos centros da dor e da vigília. Basta passar um pouco da quantidade terapêutica para reduzir também a atividade de regiões que controlam a respiração, a pressão e os batimentos cardíacos. Ansiolíticos modernos também podem levar à tolerância, à dependência física e a outros males, como perda irreversível de memória (vamos falar mais sobre isso no capítulo 8, sobre ansiedade). Livrar-se dos ansiolíticos depois de usá-los diariamente por mais de três meses não é fichinha. “A retirada brusca da medicação causa tremores, taquicardia, sudorese, insônia, diarreia, ansiedade”, diz o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas, em São Paulo. A síndrome de abstinência leva muita gente a usar remédios tarja preta por anos a fio sem precisar. Porque, como acontece com o vício em heroína, cocaína, crack ou mesmo tabaco, chega uma hora em que o objetivo é evitar as sensações ruins que a falta do medicamento traz. É justamente aí, quando o ansiolítico passa a fazer parte da rotina, que aumentam as chances de achar que está no controle, quando, na verdade, esse é o momento em que você coloca tudo a perder. E passa a correr o risco de se tornar mais uma vítima. VÍTIMAS FAMOSAS As celebridades que morreram de overdose de remédios. Prince, músico IDADE 57 anos ANO 2016 PRINCE MORREU por conta do analgésico opioide mais potente que existe, o citrato de fentanila. Ele é cem vezes mais forte que a morfina e 50 vezes mais poderoso que a heroína pura. Conhecida no Brasil e lá fora pelo nome Fentanil, é um remédio de curta duração comercializado em várias versões. A injetável é administrada em hospitais durante o período de anestesia ou para controle da dor depois de cirurgias. Na forma de comprimidos, é receitada a pacientes com dores severas de câncer que não respondem a outros opioides. A produção clandestina para uso recreativo alimenta um mercado ilegal que tira cada vez mais vidas68. Além de produzir comprimidos que imitam os vendidos em farmácia, mas podem trazer uma concentração perigosamente maior de fentanila, os cartéis têm acrescentado a substância à heroína e vendido essa combinação como uma versão turbinada da droga ilícita. O agravante é que nem sempre o usuário sabe da presença do aditivo. Como a diferença entre a dose segura da fentanila e a que mata é bem pequena, muitos óbitos de dependentes de heroína têm sido associados a essas variações com remédio junto. Os EUA emitiram em 2015 um alerta para o crescimento alarmante de apreensões de fentanila clandestina e de mortes causadas por ela69. O laudo toxicológico de Prince não dá detalhes sobre a forma de ingestão e a dose administrada. É possível que ele tenha passado a usar opioides nos anos 2000, depois que uma cirurgia no quadril o deixou com dores crônicas. Michael Jackson, músico IDADE 50 anos ANO 2009 MICHAEL TEVE parada cardíaca causada por intoxicação aguda de propofol, um anestésico intravenoso aplicado em hospitais apenas por médicos com treinamento em anestesia e reanimação cardiorrespiratória. Os pacientes que recebem a droga devem ser acompanhados 24 horas depois do procedimento. Michael tinha vários frascos em casa e usou uma quantidade suficiente para uma cirurgia de longa duração. A autópsia revelou também a presença dos ansiolíticos diazepam, princípio ativo do Valium, lorazepam, do Lorax, e midazolam, do Dormonid. Eles favorecem a perda de consciência e podem diminuir a capacidade respiratória se mal administrados. Heath Ledger, ator IDADE 28 anos ANO 2008 “OLHA, VAI FICAR TUDO BEM. Eu só preciso dormir um pouco.” Segundo o pai de Heath Ledger, essas foram as últimas palavras do ator ao telefone antes de ir para o quarto tentar descansar. Ledger tinha uma reunião com Steven Spielberg no dia seguinte e queria causar boa impressão. Mas a ansiedade, o stress do trabalho e uma infecção respiratória estavam tirando seu sono. Ele decidiu resolver esses problemas com oxicodona e hidrocodona, analgésicos da família da morfina, além dos ansiolíticos alprazolam (Frontal), diazepam e temazepam e do antialérgico doxilamina, que tem efeito sedativo potencializado se ingerido com tranquilizantes. Horas depois, Ledger estava morto. A causa: intoxicação acidental de remédios prescritos. Anna Nicole Smith, atriz e modelo IDADE 39 anos ANO 2007 NENHUMA das oito substâncias encontradas no corpo da modelo americana estava acima da dosagem terapêutica, aquela que é considerada segura para a administração. O que a matou foi a combinação delas. A principal foi o hidrato de cloral, a mesma usada no crime conhecido como Boa Noite Cinderela, que estimula o sono. A droga é segura quando administrada por médicos. Pode inclusive ser aplicada como sedativo leve para crianças que fazem tomografia, já que o exame requer que o paciente fique totalmente imobilizado. Também foram encontrados difenidramina, um antialérgico, pequenas quantidades dos ansiolíticos temazepam, oxazepam, diazepam, nordazepam, lorazepam e clonazepam, princípio ativo do Rivotril. O filho de Nicole morreu aos 20 anos, cinco meses antes dela, vítima de uma combinação de antidepressivos com metadona, poderoso analgésico da família da morfina receitado para tratar dependentes químicos, especialmente os viciados em heroína. Keith Moon, músico IDADE 32 anos ANO 1978 O BATERISTA do The Who tinha sérios problemas com álcool. Ele estava em tratamento para deixar o copo e tomava clometiazol, sedativo receitado pelo médico para ajudá-lo a vencer as crises de abstinência. Mas Moon não largava a bebida. No dia 7 de agosto de 1978, ele deu uma entrevista ao vivo no programa matinal de TV Good Morning America e chocou o apresentador ao dizer que passava a maior parte do tempo “incrivelmente bêbado”. Um mês depois, foi encontrado morto com 32 cápsulas do remédio no estômago, após passar a noite em uma festa organizada por Paul McCartney. O caso de Moon levou vários psiquiatras a se posicionar contra a prescrição de clometiazol por longos períodos e para pacientes que não estejam em ambiente hospitalar. É que o remédio vicia e o risco de overdose por excesso ou uso com álcool é enorme. Nick Drake, músico IDADE 26 anos ANO 1974PARE DE LER este livro agora e coloque para tocar uma música de Nick Drake. Pode ser Day is Done. Eu espero. Você vai entender melhor essa história se, em vez de ler, sentir como era a personalidade do cantor e compositor, que só não virou um grande astro em vida porque a timidez e o medo da rejeição eram mais fortes do que ele. Drake fazia tratamento contra a depressão. Um dia, foi dormir depois de compor em sua cama e não acordou mais. A causa da morte foi intoxicação por amitriptilina, um antidepressivo com alto risco de morte em superdosagens e que é um dos líderes de venda dessa classe no Brasil. A família afirmou que Drake estava bem, melhor do que nunca naquelas semanas. Se ele quis tirar a própria vida ou foi vítima do remédio é uma dúvida que vai pairar sempre sobre o músico e outros tantos que morrem durante o tratamento de depressão severa. Jimi Hendrix, músico IDADE 27 anos ANO 1970 MUITA GENTE pensa que a causa foi overdose de heroína, mas o laudo da autópsia diz: Jimi Hendrix morreu afogado no próprio vômito, provocado por uma intoxicação causada pelo barbitúrico secobarbital, o calmante mais popular da época. Com alto poder viciante, o remédio virou droga de abuso entre vários famosos. Um ano antes de Hendrix, a atriz e cantora Judy Garland, a Dorothy do musical O Mágico de Oz, havia sido vítima do excesso da substância, aos 47 anos. Marily n Monroe, atriz IDADE 36 anos ANO 1962 A MORTE de Marily n até hoje é polêmica. Não se sabe se foi suicídio. O que o laudo toxicológico apontou foi a causa: overdose de calmantes, com quantidades enormes do sonífero hidrato de cloral e de pentobarbital, barbitúrico que mais tarde passaria a ser usado em pacientes e animais submetidos à eutanásia e na execução de condenados à pena de morte. Mesmo que as doses encontradas no corpo da atriz não fossem altas, só a combinação entre o tranquilizante e o sonífero já poderia ser suficiente para matar, uma vez que um potencializa o efeito do outro, levando à parada cardiorrespiratória. VOCÊ É NORMAL? Consumiu recentemente duas xícaras de café expresso mais uma latinha de Coca-Cola e talvez um energético num dia só? Logo depois sentiu inquietação, nervosismo, excitação, insônia, vontade de fazer xixi? Usa cafeína diariamente há um bom tempo e, quando fica sem, tem uma dor de cabeça do cão, cansaço ou sonolência, irritação, mau humor, dificuldade de se concentrar e ainda percebe que tudo isso afeta suas atividades no trabalho? Identificar-se com apenas algumas dessas situações pode enquadrar você, numa tacada só, em dois distúrbios mentais: intoxicação por cafeína e abstinência de cafeína, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês)70. E tem mais. O que você chama de TPM pode ser transtorno disfórico pré- menstrual se os sintomas a seguir aparecem uma semana antes da menstruação, melhoram depois do início e se tornam mínimos ou ausentes depois que ela termina. Anote aí: mudança de humor, irritabilidade ou raiva acentuadas ou aumento nos conflitos interpessoais, humor deprimido acentuado, sentimentos de desesperança ou pensamentos autodepreciativos, ansiedade acentuada, tensão e sentimentos de estar nervosa ou no limite. E também interesse diminuído pelas atividades habituais, sentimento subjetivo de dificuldade de se concentrar, letargia, fadiga fácil ou falta de energia acentuada, alteração acentuada do apetite ou avidez por alimentos específicos, muito sono ou insônia, sentir-se sobrecarregada ou fora de controle… Não acabou: sensibilidade ou inchaço nas mamas, dor articular ou muscular, sensação de inchaço ou ganho de peso. Quem sente cinco ou mais dessas manifestações em pelo menos dois ciclos menstruais no ano é candidata ao transtorno mental listado no DSM. Publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), o manual detalha sintomas, comportamentos, traços de personalidade e sinais físicos dos pacientes, que servem para embasar decisões de tratamento. Cada edição é elaborada por comitês de dezenas de especialistas que são referências em suas áreas e se reúnem durante anos em grupos de estudos. O número mais recente, o DSM-5, lançado em 2013, levou 12 anos para ficar pronto. O DSM não fez fama só por classificar problemas comuns em distúrbios psiquiátricos. Parte do que está escrito ali veio da necessidade de aumentar o conhecimento médico sobre males da mente, que não aparecem nos exames de sangue nem na ressonância magnética. E não precisa ir muito longe para puxar o fio dessa meada. Vamos até 1945, fim da Segunda Guerra Mundial. Psiquiatras ligados às Forças Armadas americanas constataram um aumento de doenças mentais entre os ex- combatentes. Os hospitais não sabiam lidar com nove entre dez casos que acometiam os veteranos, porque havia diferenças entre os males dos civis e os dos que passaram pelos campos de batalha. Quem vê a guerra de perto pode ter de lidar por anos, senão pela vida toda, com flashbacks de cenas de destruição e morte, paranoia e incapacidade de voltar a se inserir no ambiente familiar, social e profissional. Foi preciso, então, ampliar o pouco que se conhecia sobre os problemas e padronizar a nomenclatura deles, para facilitar a troca de informações médicas e estabelecer uma base unificada de dados. A Organização Mundial da Saúde já tinha um documento próprio, a Classificação Internacional de Doenças (CID). Mas ele não contemplava adequadamente os distúrbios psíquicos. Foi então que a Associação Americana de Psiquiatria lançou o DSM, em 1952, com 132 páginas. Ali havia indicações genéricas de sintomas e das possíveis causas e influências socioculturais. Ninguém deu muita bola para essa nem para a segunda versão. Até que chegou o DSM-3, em 1980. Saíram indicações como “o quadro paranoico é particularmente isolado de grande parte do fluxo normal de consciência”, e entraram comportamentos como o “transtorno de personalidade paranoide”, que acomete quem “suspeita, sem fundamento, estar sendo explorado, maltratado ou enganado pelos outros” e que “guarda rancores persistentes”. Critérios antes obscuros viraram sintomas objetivos, daqueles que a gente lê e, num ato de imprudência juvenil, vai marcando mentalmente para saber se cumpre os pré-requisitos de alguma insanidade. O que estava escrito passou a servir de base não só para o trabalho dos psiquiatras, mas para a indústria farmacêutica desenvolver remédios, operadoras de convênios médicos reavaliarem a lista de cobertura de doenças e tribunais decidirem quem pode responder por crimes e quem é mentalmente incapaz. O manual virou a maior referência mundial no diagnóstico e tratamento de distúrbios mentais e influenciou até o CID, da OMS. O peso da publicação é grande. Nos EUA, as pessoas correm o risco de ser recusadas em processos seletivos e em solicitações de planos de saúde por preencherem critérios de uma doença mental reconhecida pelo DSM. Mesmo que seja transtorno disfórico pré-menstrual. Cada vez que uma revisão é publicada, acontece um boom de novas doenças que passam a ser detectadas nos consultórios. Em 1980, foi o transtorno bipolar. Em 1994, quando saiu o DSM-4, veio uma enxurrada de pacientes com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. O TDAH já era reconhecido em outras versões do manual, mas nesta houve uma ampliação dos critérios, o que fez aumentar o número de diagnósticos. Isso tem um lado bom. O transtorno bipolar é uma das maiores causas de suicídio no Brasil. Leva a picos de estados mentais que tornam os pacientes mais vulneráveis a tirar a própria vida. Com o TDAH não é diferente. O transtorno pode paralisar a ponto de impedir que alguém estude, entregue uma tarefa no trabalho ou compareça a qualquer compromisso agendado. Já o stress pós- traumático deixou há décadas de ser sinônimo de trauma de guerra e se infiltrou fortemente no mundo civil.Quando males que trazem grande sofrimento e prejuízos por períodos longos são documentados, o entendimento sobre eles aumenta. A discussão sobre formas eficientes de tratá-los cresce e o preconceito contra eles diminui, ainda que a passos lentos. Se você pega sarampo, fica com febre de 39 graus e o corpo pintado de vermelho. Ninguém vai dizer que é frescura. Se contar que tem depressão, ainda há quem confunda essa condição com mera falta de força de vontade. Por isso, quando bem utilizado, o manual serve como norte, mas não veredicto. Embora nada disso signifique que o DSM esteja a salvo do marketing das farmacêuticas. BEBÊS BIPOLARES O interesse da indústria no conteúdo desse guia médico tem um motivo óbvio: o DSM virou o maior vendedor de remédios do planeta. Quem faz essa crítica é um renomado psiquiatra americano, que trabalhou por 20 anos nas revisões do DSM e dirigiu a equipe responsável pelo DSM-4, norteador de práticas na área mental no mundo todo. O nome dele é Allen Frances71. Frances me contou que, antes de publicar o DSM-4, ele e a equipe rejeitaram incluir 92 das 94 sugestões de novos transtornos por falta de embasamento científico. “Qualquer diagnóstico adicional tem potencial de causar danos inesperados, porque se alguma coisa no DSM puder ser mal-usada, ela será mal- usada”, disse. Mesmo com o cuidado para não ampliar demais o número de desordens, o detalhamento que o DSM-4, de 1994, estabeleceu sobre elas ao longo de 886 páginas foi ainda mais determinante para uma inflação de diagnósticos pouco embasados. E por colocar nas listas de mais vendidos remédios tarja preta, como antipsicóticos, desenvolvidos para tratar esquizofrenia. O pai do DSM-4 diz que os laboratórios se basearam nas definições genéricas do manual para adaptar o uso de medicamentos e promover essas doenças como “subdiagnosticadas” entre crianças e adolescentes. Não por acaso, remédios para menores de 18 anos de idade formam um belo filão. São um novo mercado a ser explorado, já que o adulto está abarrotado de opções. Bom, a partir do DSM-4, a quantidade de crianças diagnosticadas com transtorno bipolar subiu 40 vezes. Triplicou o número de adolescentes e crianças (muitas com 3, 4 anos de idade) tomando tarja preta para TDAH. Frances alerta: “Talvez 2% ou 3% das crianças tenham hiperatividade e desatenção suficientemente graves para justificar o diagnóstico e o uso de remédio. Mas estamos rotulando e medicando 15% delas e deixando de fora quem realmente precisa de tratamento”. Quando a equipe colocou no DSM-4 a síndrome de Asperger, distúrbio que, resumidamente falando, caracteriza pessoas com dificuldades de interação social, Frances esperava um crescimento de 15% nos diagnósticos. Mas o aumento foi de 1.900% — 20 vezes mais. Associações de pacientes patrocinadas por fabricantes de medicamentos passaram a divulgar o novo mal em eventos direcionados aos pais. Até que… o DSM-5 tirou o Asperger da lista — faz parte do jogo, porque o manual é um livro dinâmico, em constante revisão e, por isso, é passível de trocas e correções. Mas e todas aquelas pessoas diagnosticadas com a síndrome? Aconteceu uma realocação e elas passaram a ser classificadas como portadoras de transtorno do espectro autista, uma fusão entre os diagnósticos ligados ao autismo até então. Outros distúrbios relacionados a comportamentos de crianças e adolescentes podem ser mal conduzidos por médicos. Como o transtorno de oposição desafiante. O paciente precisa apresentar pelo menos quatro destes sintomas: perde a calma com frequência; é sensível ou facilmente incomodado; é raivoso ou ressentido; questiona figuras de autoridade (no caso de crianças e adolescentes, os adultos); desafia acintosamente ou se recusa a obedecer a regras ou pedidos de autoridades; incomoda deliberadamente; culpa outros por seus erros ou mau comportamento; foi malvado ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos seis meses. Em suma: um profissional despreparado pode tranquilamente enquadrar pessoas sem nenhum problema psiquiátrico como portadoras do distúrbio. A nova edição do DSM também tem mudado o conceito de luto. Agora, ficar triste por mais de duas semanas pode indicar transtorno depressivo maior. No DSM-3, o período aceitável era de um ano. No 4, dois meses. “Na próxima edição, serão duas horas”, diz, brincando a sério, o pesquisador dinamarquês Peter Gotzsche, diretor da divisão nórdica do centro Cochrane, grupo global de cientistas que fazem revisões independentes de estudos da área da saúde. A última edição, o DSM-5, abriu as comportas para o uso excessivo de drogas psiquiátricas para combater problemas emocionais comuns. “Antigamente, a prática médica era pautada por um modelo biológico e psicossocial. Ele fornecia a imagem mais completa da natureza humana e guiava melhor as decisões de tratamento”, diz Allen Frances. “Infelizmente, as duas vertentes se separaram e houve um reducionismo. Cada uma capta apenas uma parte da verdade sobre a mente.” Para ele, o tempo e a terapia são melhores do que a medicina na maioria dos distúrbios psiquiátricos leves e moderados. Mas pacientes com problemas graves geralmente precisam de medicação, porque estão em risco de psicose, suicídio e delitos que levam à prisão ou à vida nas ruas. “Estamos supermedicando quem não tem necessidade”, diz Frances. Não é por acaso. Muitos profissionais dos comitês do manual ganham verbas de pesquisa e outros incentivos dos laboratórios. No DSM-5, sete em cada dez membros tinham ligação com a indústria farmacêutica. Nos grupos responsáveis por incluir, tirar e reformular desordens em que o tratamento com remédios é a primeira escolha, como depressão, o número chega a 100%72. HIT NAS FARMÁCIAS O Rivotril foi o remédio mais prescrito no Brasil entre fevereiro de 2013 e de 2014, com 1,3 milhão de caixas vendidas73. De 2006 a 2015, as vendas de clonazepam, princípio ativo do calmante, cresceram 73,5%, passando de 13,6 milhões para 23,6 milhões de caixas por ano74. O Brasil é também um dos principais consumidores de um estimulante do sistema nervoso central, o metilfenidato, mais conhecido pelo seu nome comercial: Ritalina. A droga é receitada para conter o TDAH. O aumento nas vendas chegou a 775% entre 2003 e 201275 e motivou o Ministério da Saúde a recomendar, em 2015, que Estados e municípios criem um mecanismo para controlar a prescrição e a distribuição da droga. Os antidepressivos tiveram alta de 44,6% nas vendas nos últimos cinco anos. Foram 53,7 milhões de caixas compradas de novembro de 2014 a outubro de 2015 — e R$ 2,8 bilhões de reais a mais para os cofres dos fabricantes74. Rivotril e a Ritalina são tarja preta, podem causar dependência física. Os antidepressivos, tarja vermelha, não têm esse risco (a dependência é psicológica). Mas, como os outros dois, só devem ser vendidos com retenção da receita. Por outro lado, qualquer médico, de qualquer especialidade, pode receitá-los. Nos EUA, 80% das prescrições de medicamentos para transtornos mentais não são feitas por psiquiatras76. Os clínicos gerais ou profissionais de outras especialidades são responsáveis por 65% das receitas de calmantes, 62% de antidepressivos e 52% de estimulantes, como os comprimidos para TDAH. Os pediatras respondem por 25% de todos os pedidos de compra de estimulantes. O fato de qualquer médico ter permissão para receitar qualquer remédio, por si só, não deveria ser um complicador. Um bom profissional tem condições de ponderar a real necessidade de drogas tão potentes. Isso pode ser fundamental, inclusive, para atender populações sem acesso a especialistas em saúde mental, geralmente em regiões pobres. No Brasil, são 9.010 psiquiatras para 201 milhões de habitantes; 54% deles concentrados no Sudeste e só 2% no Norte77. O problema é que médicos despreparados fazem diagnósticos equivocados e colaboram para o aumento de receitas — e quando esse médiconão é um especialista em psiquiatria, o risco de despreparo é maior. “Esse exagero permite que empresas farmacêuticas gananciosas vendam um comprimido para cada dificuldade cotidiana”, diz Frances. “E espalhem a ideia de que todos os problemas acontecem devido a algum desequilíbrio químico no cérebro.” CABEÇA FEITA A Década do Cérebro. Foi assim que os americanos chamaram os anos 1990. E não foi modo de dizer. O governo sancionou uma lei instituindo que até 1999 destinaria verbas mais gordas para estudos sobre o sistema nervoso e daria incentivos fiscais para empresas que investissem nisso. Foram centenas de pesquisas com células nervosas ligadas a eletrodos e banhadas com neurotransmissores. Dezenas de seres humanos se dispuseram a ter os miolos vasculhados por aparelhos de imagem. O trabalho permitiu investigar melhor o funcionamento dos neurônios e a ação de substâncias químicas cerebrais, produzindo um avanço mundial no conhecimento sobre doenças como epilepsia, Parkinson e Alzheimer. Mesmo assim, os males que mais afetam as pessoas, como ansiedade e depressão, continuam sem respostas. “A neurociência básica deu um salto na parte técnica e permanece fornecendo um olhar fascinante sobre o funcionamento do cérebro. Mas até agora não livrou um único paciente de um transtorno mental”, afirma Frances. É que cérebro não é como o dedão do pé, que mal sabe se mexer sem levar os outros quatro junto. Esse território entre suas orelhas é uma loucura, com 86 bilhões de células nervosas capazes de fazer trilhões de conexões e liberar borrifos de substâncias químicas distintas, em quantidades variadas, cada vez que conversam. E não falta assunto ali. Quando se está diante de uma ameaça, o papo interneuronal é regado a noradrenalina e adrenalina; o corpo fica em estado de alerta. Quando você come chocolate, o tom da conversa muda para dopamina e serotonina, traduzidos como prazer e bem-estar. Talvez a serotonina ajude a diminuir o sofrimento de quem tem depressão e ansiedade. A dopamina e a noradrenalina podem estar envolvidas no TDAH. Por isso, muitos remédios mexem com a disponibilidade dessas substâncias no organismo. O mais intrigante nesses processos é que cérebro tem RG. Não existem dois iguais. Embora sua cabeça venha de fábrica com configurações básicas, a intensidade e a forma exata como essa comunicação acontece são únicas, moldadas de acordo com fatores internos, como a expressão dos genes, e externos, como o ambiente e as experiências ao longo da vida. Daí a dificuldade em dar o diagnóstico ideal. Mas isso não significa que estamos perdidos. É o que veremos na parte 2 deste livro, logo a seguir. VAMOS COMEÇAR pelo final, para ninguém aí querer pular até a última página deste capítulo. Ansiedade não é doença. Ela deixa o organismo em alerta e melhora a capacidade de funcionar bem sob forte stress. A vida moderna está sempre provocando esse sentimento para que ele saia das profundezas e cause problemas, mas existem vários caminhos para domá-lo quando a coisa foge do controle. Pronto, agora podemos sair do futuro, o lugar preferido dos ansiosos, e dar uma chegada até a Pré-História, onde tudo começou. Tinha dois caras atravessando a savana, um ansioso e um tranquilão. De repente, o ansioso para, arregala os olhos e sai correndo. Quando o tranquilão vai perguntar o que foi, já era: vira almoço de um predador. Essa piada mórbida é baseada em fatos reais vividos pelos nossos ancestrais. A moral da história é que a ansiedade pode ter sido fundamental para a preservação da espécie, porque aumenta a capacidade de avaliar riscos iminentes e diminui as chances de morte por alguma ameaça à espreita. É um mecanismo de defesa em três fases. Primeiro vem a antecipação do risco, quando você tem a sensação de que pode estar em perigo. O cérebro liga o alerta amarelo da hipervigilância, recruta os neurônios para vasculhar a área ao redor, processar as informações coletadas, ir até os arquivos guardados no setor da memória, cruzar os dados e produzir relatórios complexos de probabilidade e estatística. Também é preciso coordenar a liberação de hormônios para que as partes subalternas do corpo se preparem para iniciar, caso necessário, o procedimento seguinte. Tudo isso em milésimos de segundo. A ameaça em questão pode ser um filhote de tatu ou um tigre-dentes-de-sabre. Ninguém tem essa informação ainda. Mesmo assim, o cérebro prefere ser frio e calculista: se você sair correndo, vai gastar 100 calorias em 2 quilômetros. Se pagar para ver, botará umas 480 mil calorias — seu corpo todo — em risco. Quando chega a confirmação de que tem mesmo um bicho escondido ali perto, mas ainda não existe perigo iminente de destruição do organismo, vem o alerta vermelho. Hora de acionar o protocolo M, do medo. A produção de adrenalina vai a mil. O coração acelera, a respiração se torna ofegante. O sangue circula menos pela pele e mais para os músculos, que ganham força máxima para defender o reino. O suor aumenta para o organismo não superaquecer e o sistema digestivo é inibido, porque não é hora de pensar em batatas fritas. A saliva fica no volume morto e a boca seca. O foco se volta inteiro para a situação. É preciso reagir rápido. Nessa hora, há duas escolhas: “congelar” de medo, na tentativa de passar despercebido quando o predador chegar, ou tocar sebo nas canelas, em fuga. Se tudo der errado, vem a terceira fase, a do pânico. Quando você percebe que o bichão ali não está de brincadeira, sirenes imaginárias tocam no último volume. É hora de lutar ou morrer. Esse mecanismo de deixar o corpo em alerta é bom. Vira problema quando fica exacerbado, gerando um estado de apreensão crônica. É quando surgem constantemente pensamentos relacionados a perigos iminentes, reais ou imaginários. O processo de antecipação de situações ruins fica ligado o tempo todo e desencadeia aquelas reações físicas e emocionais envolvidas, como foco no problema, congelamento ou reação de fuga. Isso pode evoluir para a preocupação excessiva ou irreal com os problemas do cotidiano, ataques de pânico, obsessão, compulsão e fobias, como o medo incontrolável de dirigir, sair de casa e ter interação social. Aí, acabou-se vantagem competitiva. O ansioso deixa de ser mais apto a tomar decisões ligeiras. Um estudo da Universidade de Tel Aviv 78 indicou que os não ansiosos são dotados de um sistema de alerta precoce, porque notam sinais sutis de ameaças com antecedência e conseguem se preparar para reagir a elas. Já os ansiosos têm a percepção global menos afiada e deixam escapar pequenas mudanças no ambiente ao redor. Provavelmente, porque a mente deles está focada em um problema futuro ou imaginário, e não no presente. Com a atenção apontada lá para a frente, eles são sempre surpreendidos ao perceberem que o perigo chegou perto. A ansiedade seria uma tentativa de compensar a falta de sensibilidade, deixando o organismo em alerta permanente para não virar almoço nem jantar. O sentimento patológico é sempre negativo e prejudicial, porque fica tão forte que interfere em atividades no trabalho, nos estudos e na vida pessoal. Quem sofre com esses transtornos está sujeito a dores musculares e de cabeça, dificuldade para relaxar, cansaço permanente, tremores, inquietação, insônia, irritabilidade, taquicardia, suor excessivo, tontura, digestão lenta e diarreia. Nada a ver com aqueles momentos bons em que a gente se diz ansioso, mas está mesmo é na expectativa de fazer a viagem dos sonhos ou receber uma encomenda. “O paciente com transtorno de ansiedade acorda e vai dormir com a sensação de que algo ruim está para acontecer”, diz o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Ansiedade do HC. “Isso leva a uma série de limitações na vida que predispõem a outros males. Quase metade dos pacientes evolui para um quadro depressivo ou fadiga crônica. É comumeu atender pessoas que me dizem carregar o mundo nas costas, sustentar a família, ter dois ou três empregos. Elas contam que, antes, davam conta de tudo. Mas depois cansaram, chegaram ao limite.” É, tem muita gente nessa levada. Apesar de não precisarmos mais nos livrar de animais famintos, lidamos com muitos outros predadores. TERRA EM TRANSE Não dá para dizer que a gente viva a Era da Ansiedade. Lidar com situações extremas é uma prática constante para a nossa espécie. Pense nas multidões que enfrentaram a peste bubônica no século 14, doença que dizimou um terço da população europeia, nas epidemias de sífilis entre os séculos 16 e 20, nas duas Grandes Guerras, na Gripe Espanhola de 1918, que matou pelo menos 50 milhões de pessoas em um ano. Talvez o que aconteça hoje seja o aumento da exposição a agentes que desencadeiam a ansiedade, porque convivemos com o excesso de informação. Sete em cada dez brasileiros assistem à TV e olham o smartphone ao mesmo tempo, de acordo com uma pesquisa feita pelo Instituto Ipsos para o Google Brasil. A estimativa é de que mais de 30 milhões de usuários no País consumam mídia em três telas diferentes — TV, celular e computador, tudo junto. Na França são 19 milhões; no Reino Unido, 16 milhões. A tecnologia nos transformou em seres hiperconectados e sempre disponíveis. Lemos e-mails do trabalho em casa, trocamos mensagens de madrugada, passamos horas (antes destinadas ao descanso) vendo textos e imagens. Sabemos de crimes e desastres em tempo real, mesmo que aconteçam do outro lado do mundo. A superestimulação deixa todo mundo acelerado, mais suscetível a sofrer com predadores bem mais perigosos: as poucas opções de lazer, a falta de acesso à educação e a violência. São Paulo é a cidade com maior incidência de transtornos mentais entre todas as pesquisadas pela Organização Mundial da Saúde em 24 países. Três em cada dez habitantes da região metropolitana apresentaram pelo menos um distúrbio nos 12 meses anteriores à pesquisa Megacity 79. Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, com 19,9%. A alta urbanização com opções reduzidas de entretenimento e a baixa inclusão de boa parte da população explicam parte desses males. As mulheres que vivem em regiões mais pobres, com pouco ou nenhum acesso à inclusão social, têm mais chance de desenvolver problemas afetivos e de humor, como a depressão. Em geral, o público feminino sofre mais com alguns tipos de males mentais. Pode ser por causa das alterações hormonais durante o mês, com o sobe e desce de progesterona e estrogênio, que deixa as emoções mais vulneráveis. Ou então porque as pressões sociais para que elas desempenhem com perfeição os papéis de mãe, esposa e profissional funcionem como uma carga pesada, que abre portas para os distúrbios. Já os homens que migram de outras cidades e passam a morar em áreas precárias estão mais propensos do que a média a ter transtornos de ansiedade. Baixa escolaridade é outro fator de risco para ambos os sexos. Mas o verdadeiro tigre-dentes-de-sabre moderno tem sido a violência. Uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que 80% dos 2.700 paulistanos entrevistados tinham sido expostos a situações de violência ou trauma. De 10% a 15% deles desenvolveram o transtorno do stress pós-traumático, quando a vítima passa a recordar permanentemente a experiência, a se isolar e a desenvolver sintomas físicos, como dificuldade de concentração. Não há estudos com dados padronizados, mas dá para supor que essa seja uma realidade nacional. A taxa de homicídios no Brasil é quatro vezes maior do que a média mundial. Os homens são os mais atingidos, com índice dez vezes maior do que o das mulheres. Dentro de casa, são elas que sofrem com a violência. Uma em cada cinco brasileiras já foi espancada pelo marido, namorado ou ex. Em alguns casos, pode ser que a mente não dê conta de se recuperar dos baques. Aí a ajuda profissional é bem-vinda. Mas, segundo o estudo Megacity, só três em cada dez pessoas que sofrem com transtornos mentais incapacitantes procuram atendimento médico. Pode ser pelo estigma que os males psiquiátricos ainda carregam, pode ser pela má fama que os remédios construíram ao longo do tempo. XAROPE DA PAZ Depois que a humanidade tratou a ansiedade com morfina, pinga e heroína, alguém na indústria farmacêutica decidiu colocar fim nessa esbórnia inventando o calmante sintético. Calmantes liberam a produção do principal depressor do sistema nervoso central, o ácido gama-aminobutírico (Gaba). Resumindo em palavras nada técnicas, eles grudam nos canais por onde escoam o Gaba e deixam a substância vazar, para causar o efeito sedativo e deixar o corpo menos sensível a tantos estímulos internos e externos. Os barbitúricos, muito usados desde o começo do século 20 até a década de 1960, fazem isso de um jeito tosco, metendo o pé na porta e segurando para ela não fechar. Como a passagem fica aberta, se a quantidade dessas moléculas indelicadas for grande, vira uma inundação que leva ao coma e à morte. Por isso, uma linha tênue separa a dose terapêutica e a tóxica. Hoje, a indicação dos barbitúricos costuma ser para crises convulsivas que não respondem a outros tipos de medicamentos, anestesias e procedimentos de eutanásia animal e humana. Os benzo são os sucessores mais gentis desses calmantes. Eles abrem e fecham a porta constantemente para o Gaba passar, sem encharcar o recinto. Por isso é bem menor o risco de morte por overdose, a não ser quando combinados com outros depressores. O Rivotril se tornou o mais famoso dessa família porque custa menos do que os concorrentes no Brasil e, quando surgiu, era uma das poucas opções de calmantes com meia-vida longa. Meia-vida é o tempo que leva para metade da quantidade do remédio ser metabolizada pelo corpo. Dali em diante, o efeito começa a diminuir. Tem remédio de ação muito curta, curta, média e longa, dependendo da função dele. O Dormonid começa a perder efeito a partir de 1 hora, porque é usado como pré-anestésico em cirurgias — não precisa durar mais tempo. O Rivotril leva pelo menos 18. A ação prolongada torna confortável a administração, porque não termina nem cedo demais — o paciente não volta a sentir os efeitos da ansiedade no meio da noite ou do dia —, nem tarde demais, com a sedação por um tempo maior do que o desejado. Mas o fato de serem mais cômodos e seguros não significa que não causem mal. Os perigos são vários. Assim como os barbitúricos, eles levam à tolerância, quando é preciso uma dose cada vez maior para produzir o mesmo efeito, e à dependência física. A síndrome de abstinência causada com a retirada ou diminuição brusca do medicamento ou depois de mais de dois meses de uso é complicada, como a gente viu no capítulo anterior. Inclui psicose, ansiedade extrema, tremor, convulsão, insônia, confusão mental, dor de cabeça. Os benzo também interferem no aprendizado. Imagine o seguinte: toda vez que você está diante de uma situação aversiva ou estressante, como falar em público ou conquistar alguém no bar, os neurônios que dão expediente atrás da sua testa, no córtex pré-frontal, trabalham duro para manter o raciocínio lógico e controlar estruturas que geram a ansiedade, como a amígdala. Se essa experiência for repetida várias vezes, chega uma hora em que os miolos aprendem. Enfrentar esses momentos apenas sob o efeito da droga ou do álcool priva o cérebro do aprendizado. Ele não encontra um jeito de dar conta das emoções, porque está sempre bêbado quando elas aparecem. Para pacientes que precisam saber lidar com situações que desencadeiam crises de ansiedade, mascarar o processo é ruim. Ainda mais porque parte importante do tratamento é a terapia focada na mudança de padrões de pensamento. Assumir as emoções é um jeito eficiente de domar a ansiedade, mostrou um estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles80. Os pesquisadoresreuniram quatro turmas de voluntários com fobia de aranhas e, durante uma semana, botaram na frente deles uma caixa com uma tarântula dentro — olha que maldade… O primeiro grupo tinha de dizer uma frase com palavras negativas que resumisse as emoções que estava sentindo. Algo como “Estou paralisada com esse monstro que vai pular na minha cara em dois segundos”. O segundo devia usar só expressões neutras: “Sou mais forte do que essa peluda”. O terceiro falou coisas irrelevantes, sobre móveis de casa (“Na minha geladeira tem um pinguim de porcelana”), e o quarto foi proibido de abrir a boca. No fim, os cientistas mediram quão perto da tarântula cada um conseguia chegar e qual o nível de ansiedade relatado nas conversas e observado em sinais como sudorese e palpitação. A expectativa era de que o grupo que tentou dar outro significado ao medo, dizendo que a aranha não fazia tão mal assim, se saísse melhor, porque essa é a abordagem clássica de muitas terapias. Mas quem venceu foram os sinceros, da primeira turma. Os realizadores do estudo acreditam que verbalizar as sensações negativas, em vez de tentar negá-las, pode ser mais eficiente no tratamento do transtorno. ANSIOLÍTICOS EM XEQ UE O poder que os calmantes têm de mexer com a cabeça vai além de interferir no aprendizado momentâneo. É possível que os problemas apareçam só lá na frente, anos depois da primeira dose, com prejuízos de memória que podem ser irreversíveis. Pesquisadores canadenses e franceses encontraram indícios de que tomar benzodiazepínicos por mais de três meses seguidos aumenta de 43% a 51% o risco de desenvolver Alzheimer81. Isso é preocupante, porque a prevalência de uso dessa classe terapêutica entre os mais velhos vai de 7% a 43% em países desenvolvidos. “Por causa dos riscos, os mais jovens têm uma resistência aos benzo, o que é bom”, afirma Bernik. “A cada ano, a média de idade dos usuários aumenta. São pacientes que fazem uso há um tempo, muitos de forma errada e com tendência de administrar doses cada vez mais altas por longos períodos.” Mas ansiolíticos podem ser necessários, por exemplo, no início do tratamento de quadros graves de ansiedade generalizada, no princípio do ataque de pânico e por curto período quando não há resposta a outra classe de remédios. No restante dos casos, outros remédios começaram a ser preferidos em relação aos benzodiazepínicos de dez anos para cá. Como a nova geração de antidepressivos, que nem é tão nova assim. São os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS). O pai deles é o Prozac, que chegou ao mercado em 1988. A gente vai falar sobre antidepressivos mais para a frente, mas, para acabar com a sua ansiedade, esses remédios funcionam assim: toda vez que um neurônio libera uma substância, parte é captada por outro, parte é destruída e parte volta para a célula nervosa. Os ISRS bloqueiam a retomada de serotonina e fazem com que ela permaneça mais tempo em circulação. Isso tende a regular o humor e aumentar a sensação de bem-estar. Médicos acreditam que essa classe de antidepressivos pode ser mais eficiente para tratar quem tem preocupação crônica, medo de se relacionar e tendência a ficar ruminando pensamentos negativos. Os efeitos iniciais demoram a aparecer — em média, de quatro a oito semanas — e podem agravar alguns quadros, como transtornos do pânico. A vantagem dos antidepressivos é que não causam dependência física. As desvantagens vão de queda na libido e ganho de peso a risco de suicídio, passando pelos sintomas que podem aparecer nos dias seguintes à retirada do remédio, como irritabilidade, mal-estar generalizado, letargia, ansiedade e insônia. Você começa tomando um comprimido e acaba com uma farmácia particular para contornar os problemas que ele causa. Outra aposta farmacológica são os antidepressivos que agem na disponibilidade da melatonina, o hormônio que tem entre suas funções a de regular o sono e o humor. Mas a indústria está andando em círculos quando o assunto é sistema nervoso central. A maioria das drogas se baseia em mecanismos revelados entre as décadas de 1940 e 1960. Por isso, as pesquisas tentam achar novos caminhos, tanto para medicamentos como para tratamentos que dispensam comprimidos. O INTERRUPTOR DA ANSIEDADE Cientistas da Universidade da Carolina do Norte82 querem descobrir se a nossa cabeça tem um botão de liga e desliga da ansiedade. Eles investigam proteínas chamadas de receptores opioides Kappa (KOR, da sigla em inglês), que inibem a produção de um neurotransmissor, o glutamato, relacionado ao humor, à dor e ao sentimento de segurança. Ratinhos que tiveram os KOR desligados apresentaram maior liberação de glutamato e, com isso, menores níveis de ansiedade. Os KOR são antigos conhecidos da farmacologia. Eles estão envolvidos no mecanismo de ação de alguns analgésicos e remédios para tratar o vício em álcool e ópio. Se agem com eficiência e segurança no controle da ansiedade, ninguém sabe. MODIFICAÇÃO COGNITIVA POR COMPUTADOR Participantes de um estudo da Brown University relataram níveis de ansiedade cinco vezes menores do que os iniciais depois de um mês fazendo a seguinte atividade duas vezes por semana. Primeiro, eles olharam na tela do computador rostos perturbadores (com expressões de raiva e medo, por exemplo) e neutros. Cada foto aparecia rapidamente e logo era substituída aleatoriamente pela letra F, de funny (engraçada), ou D, de disturbing (perturbadora). Depois, tiveram de anotar qual era essa letra e se ela tinha realmente a ver com a expressão correspondente. Como tudo acontecia muito rápido, a concentração precisava estar na conclusão da tarefa, e não na reação emocional. O exercício, que foi considerado divertido, levou os ansiosos a interpretar de forma otimista feições hostis. Isso mostra que o condicionamento pode ajudar ansiosos que se sentem incapazes de falar em público, por exemplo. REALIDADE VIRTUAL Terapia com equipamentos de última geração é outra aposta da ciência. Com fone de ouvido e equipamento visual que projeta imagens relacionadas aos geradores de ansiedade, o paciente aprende, aos poucos, a lidar com esses gatilhos. Os experimentos vêm sendo feitos na Universidade de Washington. NEUROFEEDBACK Essa prática é utilizada por muitos médicos, inclusive no Brasil, para tratar problemas psiquiátricos, como transtornos de ansiedade, depressão e TDAH. O paciente veste uma touca cheia de eletrodos, que mapeiam a atividade elétrica do cérebro. O profissional compara os dados com padrões neurológicos e identifica quais regiões apresentam função anormal de acordo com a idade e o sexo. Esse relatório serve de base para determinar o tipo de treinamento cerebral que o paciente vai passar a fazer no computador. O problema é que estabelecer protótipos de normalidade para os neurônios pode não funcionar, porque o cérebro é de uma versatilidade incrível e se molda continuamente a novas situações. Por isso, quando o assunto é transtorno mental, a ciência está batendo cabeça. Ainda mais quando entra em pauta a depressão, que a gente vai ver no próximo capítulo. 1 Parar de se comparar com os outros Metade das pessoas que usam as redes sociais com muita frequência sente que o hábito interfere negativamente no próprio comportamento84, segundo um estudo inglês. Um dos motivos é que elas acreditam que a timeline do vizinho é sempre mais azul. Como os usuários tendem a postar fotos de viagens, jantares, festas e outras cenas felizes, a impressão de ter ficado para trás no sofá de casa é grande. Mas a verdade é que, de perto, todo mundo é normal. 2 Reassumir o controle A mesma pesquisa inglesa indicou que seis em cada dez participantes se dizem incapazes de ignorar o smartphone, o computador ou o tablet. Eles só conseguem dar um tempo se tomarem uma atitude drástica: desligar os aparelhos. Mas aí, a vontade de saber se estão perdendo algoaumenta — e a tendência é de voltarem ao mundo online. A sensação de impotência é natural, dizem os pesquisadores. Quem é predisposto a ter ansiedade vê a tecnologia como um fator de pressão. O sentimento é de estar mais sobrecarregado e inseguro com tanta informação na cabeça. Para sair dessa, a orientação é assumir o controle da situação e estabelecer limites, mesmo que pequenos. Por exemplo, deixando de acessar e- mails da empresa depois de sair do trabalho. 3 Cuidar das relações Outro gatilho de ansiedade apontado pelo estudo é que participar ativamente das redes sociais pode fazer com que você desenvolva uma personalidade combativa, prejudicando relações pessoais e de trabalho. E esses contratempos geram mais ansiedade. Veja se você não entrou no piloto automático do ataque a opiniões diferentes ou tente não comprar cada briga online. 4 Ouvir música Cientistas da universidade McGill, no Canadá85, relataram que ouvir música aumenta em 9% a produção de dopamina, relacionada ao prazer. O crescimento é comparado a outras experiências que ativam o centro de recompensa do cérebro, como a comida e o dinheiro. 5 Meditar por 1 minuto A meditação Mindfulness, que quer dizer “atenção plena”, é uma prática budista que o mundo ocidental transformou em tratamento de saúde. Adotada por psicólogos e psiquiatras, ela não só relaxa como treina o foco para o presente, efeito bem-vindo para ansiosos. O forte dela é a simplicidade. Um dos exercícios é ficar sentado por um ou dois minutos numa posição confortável — não precisa contorcer as pernas como um praticante avançado de ioga — e prestar atenção apenas na sua respiração. Dá para fazer na cadeira do escritório. Com o tempo, a ideia é que o cérebro aprenda a lidar com o stress e a viver no hoje em vez do amanhã. Cientistas da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, encontraram indícios de que práticas meditativas por 30 minutos ao dia, principalmente a Mindfulness, têm efeito semelhante ao de remédios usados para tratar ansiedade e depressão leve e moderada86. Eles chegaram a essa conclusão depois de revisar 47 estudos clínicos envolvendo 3.515 pessoas. SÓ QUEM TEM depressão sabe como é ter depressão — a luta diária contra um sentimento de indiferença em relação a tudo. Não tem a ver com a dor depois de perder alguém para a distância ou a morte. Nem com a melancolia por algo que só existe na memória. Menos ainda com a frustração por não realizar mais um de tantos desejos e perceber que, no fim das contas, nenhum deles cumpriu a promessa da alegria eterna. A tristeza é natural. De alguma forma, ela ajudou a humanidade a chegar até aqui. Foi assim com todas as emoções. São elas que orquestram uma série de reações no corpo e ajudam a lidar com o mundo interno e externo. A própria tristeza pode ter sido uma peça-chave para aprofundar laços sociais e conseguir a cooperação do grupo. É o que defendem o biólogo evolucionista Paul Watson, o psiquiatra Anderson Thomson e o antropólogo Edward Hagen. Para eles, o sentimento é um sinalizador de que alguém está com dificuldades e precisa de ajuda. Um estímulo à compaixão. Outras teses87 e 88 defendem que a tristeza nos torna introspectivos, o que facilita na hora de manter o foco e processar pensamentos. Ficamos ali ruminando a situação, estabelecendo conexões com outros acontecimentos, testando hipóteses mentalmente, antecipando possíveis dificuldades. Tudo isso ajuda na hora de encontrar soluções para dilemas complexos. Existe ainda a teoria da hierarquia, dos psiquiatras evolucionistas Anthony Stevens e John Price. Viver em bandos nas savanas ou em baias no escritório demanda habilidade para obedecer a alguém. Para facilitar a adaptação da espécie à subordinação, nossa máquina genética teria fabricado a tristeza como um sentimento de conformidade que permite acatar ordens e aceitar a natureza das coisas. Tem também a hipótese da múltipla escolha: é difícil se manter satisfeito porque o mundo hoje oferece mais opções do que jamais ofereceu. E muitas possibilidades significam também muitas perdas, e decisões aparentemente erradas — isso pode ser frustrante. A tristeza serviria ainda como um sistema de resfriamento do organismo quando ele vem da fervura de longos períodos de stress. Filhotes de mamíferos separados da mãe, por exemplo, passam por um estágio inicial de agitação e depois entram em um parecido com o de luto. Ficam imóveis para não gastar calorias, o que os ajuda a não chamar a atenção de predadores até a volta dela. Ou seja: a tristeza, por esse ponto de vista, seria uma adaptação primordial para a sobrevivência dos nossos antepassados. Acontece que esse diferencial competitivo da tristeza pode sair do controle se, em vez de recurso momentâneo, virar modo de ação permanente. É quando a felicidade se muda para o passado e cada dia passa a ser um suspiro pela volta no tempo. Trabalhar, estudar, sair e conversar tornam-se fardos pesados, porque tudo o que se quer é ficar ali, focado em um dilema qualquer. E aí podemos estar diante de um quadro de depressão — a doença incapacitante que deve se tornar a mais comum no mundo até 2030, segundo a Organização Mundial da Saúde. O Brasil está em terceiro lugar no ranking89 de 18 países com maior prevalência de depressão. A porcentagem da população com pelo menos um episódio do transtorno durante a vida é de 18,4% por aqui. Perdemos apenas para a França (21%) e os EUA (19,2%). Mulheres, inclusive, podem ser mais suscetíveis à doença, especialmente após o parto. DEPRESSÃO PÓS-PARTO Durante a gravidez, a quantidade de hormônios, como estrógeno e progesterona, atinge seus maiores níveis. Essas substâncias influenciam a comunicação entre os neurônios. Algumas horas depois do nascimento do bebê, os níveis caem drasticamente e isso pode causar descontentamento e irritabilidade por algumas semanas. A privação de sono quando o recém-nascido acorda muitas vezes por noite também contribui para essas alterações de humor. Mas, para algumas mulheres, a sensação não passa — piora e se torna incapacitante. A mãe não consegue cuidar nem de si nem do filho, tem dificuldade para fazer qualquer atividade, inclusive amamentar, e se sente cada vez mais culpada por não ser capaz de lidar com a situação. É a depressão pós- parto. Quem faz uso excessivo de álcool, tem histórico de depressão na família ou já enfrentou episódios da doença corre risco maior de desenvolver a depressão pós- parto. Outros agravantes são as situações de stress durante e depois da gestação. Gravidez não planejada ou indesejada, por exemplo, pode desencadear o quadro. No Brasil, a estimativa é de que uma a cada quatro mulheres tenha o problema entre seis e 18 meses depois do nascimento da criança, segundo um estudo90 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Das 23.896 mães ouvidas, 26,3% tinham depressão pós-parto, índice bem maior do que a média de 19,8% em países de baixa renda, segundo a Organização Mundial da Saúde. ANTÍDOTO SOLIDÁRIO O Japão (6,6%) e a China (6,5%) ocupam os últimos lugares no ranking geral de países com depressão. Como a doença é um enorme tabu nesses países, pode ser que a maioria dos doentes não procure atendimento médico por medo do preconceito e, portanto, não apareça nas estatísticas. Mas a psicóloga Joan Chiao, da Universidade Northwestern (EUA), tem outra explicação para essa diferença a favor dos orientais. A teoria psiquiátrica mais aceita sobre a depressão é que o mal está relacionado a um desequilíbrio bioquímico no cérebro, com níveis baixos de neurotransmissores. Principalmente de serotonina, que, entre outras funções, ajuda a regular o sono, o humor, o apetite e a sensibilidade à dor. Mas não existem certezas sobre isso. Aliás, o que não faltam hoje são questionamentos. Joan fez uma análise91 de dados de 29 países e descobriu que os povos do Leste Asiático, como os japonesese os chineses, têm o dobro de chances de carregar uma mutação de um gene ligado ao transporte de serotonina, o que os tornaria mais suscetíveis a ter depressão e ansiedade. Não é o que acontece: a ocorrência desses transtornos por lá é baixa, mesmo com tamanha pré- disposição. Um dos motivos é que carregar genes ligados a doenças não significa que elas vão se manifestar, porque fatores como estilo de vida e crenças socioculturais contribuem para isso. Segundo o estudo, o individualismo cultivado em boa parte do mundo ocidental ajuda a explicar por que sofremos tanto com a depressão. Apesar de os distúrbios mentais serem um enorme tabu na China e no Japão. Fazendo com que a maior parte dos doentes não procure tratamento, Joan afirma que os orientais tendem a oferecer ajuda aos que estão em maior risco de transtornos psiquiátricos. Para ela, esse hábito funcionaria como um escudo contra gatilhos sociais que poderiam desencadear os males. A pesquisadora diz que a colaboração protege contra emoções negativas e reduz a prevalência de stress crônico, porque reforça normas que aumentam a harmonia social e o apoio mútuo. Interessar-se de verdade pelo problema dos outros serve de terapia preventiva. Mas, depois que a doença se instala, pode ser preciso buscar ajuda. E ela costuma vir em forma de comprimidos. Só que muita gente simplesmente não melhora com antidepressivos. Isso gera uma frustração enorme e mais sentimento de culpa. Fica inevitável fazer aquela pergunta “Será que o problema é comigo?” Não, o problema pode ser com o remédio. A INVENÇÃO DO ANTIDEPRESSIVO Aconteceu por acaso. Os pesquisadores miraram no tratamento da tuberculose e acertaram na depressão. Era década de 1950 e ninguém sabia por que a maioria dos pacientes tratados com uma droga em desenvolvimento, a iproniazida, derivada de um fármaco contra tuberculose, apresentava melhoras visíveis no humor. As teorias sobre neurotransmissores ainda estavam engatinhando. Os resultados dos testes eram mais baseados em observações clínicas do que em estudos controlados. O upgrade no humor dos pacientes foi atribuído à capacidade da iproniazida de inibir a ação de uma enzima chamada monoamina-oxidase (MAO), responsável por destruir neurotransmissores, como a dopamina, relacionada ao prazer, a serotonina, ligada ao bem-estar, e a noradrenalina, estimulante que mobiliza o corpo e o cérebro para a ação. Tirar a MAO do pedaço significa ter mais neurotransmissores circulando. Isso explicaria por que 70% dos voluntários que receberam iproniazida relataram aumento do apetite e do vigor, além de melhora na qualidade do sono e da sociabilidade. O problema é que a droga causava também agitação mental, motora e psicose — efeito colateral de ampliar a presença de vários tipos de neurotransmissores de uma vez só. Não é à toa que o cérebro seja dotado de mecanismos que equilibram as doses, já que o excesso de neurotransmissores pode ser tão ruim quanto a falta deles. No mesmo ano em que o antidepressivo inibidor de MAO chegou ao mercado com o nome comercial de Marsilid, pesquisadores publicaram os resultados do teste de uma droga contra esquizofrenia, a imipramina. Também por acaso, a substância que não se mostrou efetiva para a esquizofrenia fez com que pacientes com depressão começassem a ter mais iniciativa, procurassem atividades sociais e demonstrassem alegria. O melhor, segundo os cientistas, era que nenhum deles tinha sofrido efeitos colaterais tão pesados quanto aqueles dos que tomavam inibidores de MAO. O mecanismo de ação parecia ser diferente. Em vez de inibir a destruição dos neurotransmissores, a imipramina bloqueava a recaptação deles. Ou seja: fechava os “ralos” nos neurônios por onde os neurotransmissores escoam depois de um passeio pelo cérebro, fazendo com que ele permaneçam “alegrando” a mente por mais tempo. A aprovação do novo remédio inaugurou uma nova classe de medicamentos, a dos antidepressivos tricíclicos (ADT). Essa nova alternativa não ficou livre de efeitos colaterais, como aumento da frequência cardíaca, tremores, visão turva, tontura, boca seca, sonolência, ansiedade e prejuízos de memória. Isso porque os ADT também inibem a recaptação de vários tipos de neurotransmissores. Além disso, o limite entre a dose terapêutica e a tóxica de ADT se mostrou baixo: nos casos de overdose acidental, o risco de morte por intoxicação é alto. Mesmo assim, ficava cada vez mais forte a tese da falta de neurotransmissores nos casos de depressão. Em 1965, o psiquiatra americano Joseph Schildkraut publicou um estudo92 mostrando que grandes quantidades de noradrenalina levariam a estados de agitação e que pequenas resultariam em tristeza crônica. Depois foi a vez de cientistas93 encontrarem baixa concentração de serotonina no cérebro de deprimidos que tinham se suicidado. Em 1974, então, surgiram as primeiras evidências de que uma substância chamada fluoxetina inibia mais fortemente a recaptação de um tipo de neurotransmissor: justamente a serotonina. Fazendo com que essa substância fluísse pelo cérebro em quantidades maiores do que as outras, a fluoxetina revelou-se uma nova opção no mercado de antidepressivos. Por conta dessa característica seletiva, a fluoxetina foi classificada como um “inibidor seletivo de recaptação de serotonina”, ou ISRS. Dali em diante, foram anos de testes e de tentativas de aprovação da fluoxetina até o lançamento da pílula que virou ícone cultural: o Prozac. PÍLULAS DA FELICIDADE Ele foi capa de revistas e assunto principal de jornais, programas de rádio e TV. Ganhou espaço em filme do Woody Allen, tornou-se o remédio de Tony Soprano e estrelou um longa-metragem: o Geração Prozac. Com tantos holofotes, o Prozac foi parar na bolsa das celebridades e na mochila dos estudantes em busca de uma vida menos ordinária. A depressão virou sinônimo de qualquer tristeza e passou de doença estigmatizada a mal banalizado. Nem um incômodo efeito colateral do Prozac, que é a diminuição na libido, atrapalhou a ascensão do inibidor seletivo de recaptação de serotonina ao estrelato. A partir dali, dezenas de outros ISRS surgiram: paroxetina (Paxil), sertralina (Zoloft), escitalopram (Lexapro e Exodus). A teoria de que depressão é uma descompensação na química cerebral, envolvendo principalmente a quantidade de serotonina que circula na massa cinzenta de cada um, pegou de vez. E mais drogas chegaram às prateleiras. Os antidepressivos que não se enquadram nas categorias de inibidores de MAO, ADT e ISRS são chamados de “atípicos” ou pelas iniciais do seu mecanismo de ação. Por exemplo, um dos mais usados atualmente no Brasil é a duloxetina, do Velija94. O remédio aumenta a serotonina e a noradrenalina, por isso é conhecido também como IRSN (inibidor de recaptação de serotonina e noradrenalina). Recentemente, a indústria passou a apostar em antidepressivos que fazem crescer a quantidade de melatonina, hormônio regulador do sono e do humor, além de serotonina. Como a agomelatina (Valdoxan). Uma revisão de estudos95 sobre a eficácia dessas novas drogas que atuam sobre a melatonina mostrou que elas causam menos náusea, vômito e perda de libido do que os ISRS. Os antidepressivos mais antigos (inibidores de MAO e ADT) continuam no mercado, por agirem também contra depressão e alguns transtornos de ansiedade. E agora, com esse mundaréu de opções, parece que sempre vai haver uma pílula capaz de trazer dias melhores. Mas, para alguns pacientes, isso não acontece. Como não temos acesso a todas as informações sobre os testes, e as bulas só mostram uma parte da história, tendemos a supervalorizar os benefícios das drogas e minimizar os riscos. Um exemplo: apesar de fabricantes dizerem que até 5% das pessoas que tomam ISRS podem perder a libido, a realidade dá sinais de desacordo. Uma pesquisa96 concluiu que distúrbios sexuais foram comuns em 59% dos 1.022 participantes, todos comvida sexual normal antes de começarem a tomar a droga. Homens (62,4%) enfrentaram mais desordens do que mulheres (56,9%). Dependendo do princípio ativo, os resultados foram piores para ambos os sexos. Aqueles que tomaram citalopram foram os que mais relataram problemas sexuais (72,7%), seguidos pelo grupo da paroxetina (70,7%), venlafaxina (67,3%), sertralina (62,9%) e fluvoxamina (62,3%). Cada paciente reage de um jeito, não faz sentido generalizar. Então, a escolha feita pelos médicos se baseia não só nas promessas da indústria, mas nos resultados alcançados individualmente. Os antidepressivos modernos têm efeitos colaterais menos severos, por isso tendem a ser mais prescritos. Mas todos eles estão na berlinda. Nos últimos anos, revisões de estudos têm apontado que remédios para a depressão muitas vezes podem não ser melhores do que pílulas de açúcar. Não quer dizer que não funcionem. Significa que podem agir tanto quanto um comprimido sem princípio ativo. Placebos têm uma função importante e cada vez mais reconhecida pela ciência na melhora da saúde (tem mais sobre isso no capítulo Efeito Placebo). Uma análise de seis testes de eficácia de antidepressivos indicou que, para casos leves e moderados, eles funcionam tanto quanto pílulas sem valor terapêutico97. Para depressão muito severa, os medicamentos teriam ação mais significativa, dizem os pesquisadores. Quanto maior a gravidade da doença, maior seria o benefício dos medicamentos. O psiquiatra americano Irving Kirsch98 e 99 é ainda mais categórico: antidepressivos têm pouco benefício terapêutico se comparados a placebos em qualquer caso. Nos graves, funcionariam só um pouco melhor. Ele diz isso porque observou que a maioria dos pacientes envolvidos nos testes dessas drogas está no estágio mais severo da depressão100. Ou seja, se os estudos mostram que não há grandes diferenças, é porque não há grandes diferenças nos quadros graves. Para chegar a essas conclusões polêmicas que provocam debates no mundo todo, incentivam mudanças nos hábitos de prescrição de drogas de alguns médicos e despertam a fúria de muitos psiquiatras, Irving usou a lei de acesso à informação nos EUA para conseguir documentos que a indústria não publicou. Ele descobriu que 40% dos estudos feitos pelas farmacêuticas antes da aprovação dos principais antidepressivos não tinham sido revelados, porque a maioria dos trabalhos não demonstrou benefícios muito maiores que os do placebo. Para o pesquisador, as drogas são pouco eficazes porque depressão não é falta de neurotransmissores. “O problema nem é que existem poucas evidências embasando a tese do desequilíbrio químico. O que existe é uma tonelada de dados indicando que essa teoria da descompensação cerebral está errada”, diz. O maior e mais caro estudo101 sobre o tratamento farmacológico de depressão moderada e severa indicou que diferentes tipos de antidepressivos tendem a produzir resultados semelhantes. A conclusão veio depois de sete anos e US$ 35 milhões de gastos pelo governo americano. Os participantes da pesquisa que não responderam bem ao tratamento com algum ISRS específico tiveram a opção de trocar para outro antidepressivo que aumenta a serotonina, ou para um que aumenta a serotonina e a noradrenalina, ou um que aumenta a noradrenalina e a dopamina sem afetar a serotonina. Independentemente da droga escolhida, um em cada quatro pacientes apresentou melhora ao final do estudo. Para pesquisadores como Irving Kirsch, isso significa que os antidepressivos são placebos, já que o próprio mecanismo de ação de cada um parece ser irrelevante. Claro que isso não é consenso. É possível que todos tenham algum grau de eficácia para determinados pacientes. Mesmo assim, trata-se de uma ciência ainda nebulosa. Um jeito de checar se a teoria da depressão causada por falta de neurotransmissor é totalmente válida: pegando pessoas saudáveis sem histórico de transtornos mentais e baixando o nível desses neurotransmissores no cérebro delas. Se isso causar depressão, ok (quer dizer, ok para o cientista que conduzir o experimento). Ele terá indícios de que pouca quantidade desses químicos naturais pode levar à doença. Mais de 90 grupos de pesquisadores já testaram essa hipótese. Uma revisão102 de 53 desses estudos indicou que diminuir a serotonina, a noradrenalina ou a dopamina não causa depressão em pessoas saudáveis, apenas altera levemente o humor de quem tem histórico de depressão na família, mas sem desencadear a doença. Mais: um antidepressivo aprovado na França e vendido em alguns países da Europa e da Ásia funciona sabe como? Diminuindo a quantidade de serotonina. É a tianeptina, que mostrou103 eficácia parecida com outros fármacos, com o agravante de poder causar dependência104. O que isso tudo quer dizer? Que, apesar de as substâncias cerebrais estarem envolvidas nos estados emocionais, ainda há muito para ser desvendado. Como diz o psiquiatra Allen Frances: “O cérebro é a estrutura mais complicada do Universo e revela seus segredos lentamente”. Mesmo com tanta incerteza, só em 2015 foram 54 milhões de caixas de antidepressivos vendidas no Brasil. Em 2010, eram 37 milhões94. E o número não deve diminuir tão cedo. Até que alternativas apareçam, os antidepressivos continuarão sendo a principal resposta farmacológica para tratar a doença, porque funcionam melhor do que nada. Pouco se fala também sobre como pode ser difícil deixar de tomar antidepressivos. Nos dias seguintes à retirada brusca do remédio, é possível surgirem distúrbios de humor, ansiedade, insônia, tontura, tremores, dor de cabeça, náusea, vômito, alterações nos hábitos intestinais, dores musculares, calafrios, congestão nasal. Por isso, essa tarefa tem de ser gradual e feita com acompanhamento médico. Toda essa discussão é importante não para incentivar a tomar ou deixar de tomar esta ou aquela pílula. Isso é uma decisão médica. Essas questões são fundamentais para que a ciência direcione esforços para novas soluções e governantes planejem políticas públicas que incentivem outras opções terapêuticas. No Reino Unido105, a recomendação é que casos leves de depressão não sejam tratados com remédios. E que, para todos os quadros, outras iniciativas sejam consideradas. Exercícios físicos, por exemplo, já se mostraram eficientes contra depressão. Uma pesquisa106 dividiu pacientes em grupos com abordagens diferentes de tratamento durante quatro meses: medicação, atividade física supervisionada por um profissional, atividade física em casa (sem acompanhamento) e placebo. As porcentagens de deprimidos que conseguiram remissão da doença em cada turma foram, respectivamente, 47% (medicação), 45% (exercícios supervisionados), 40% (exercícios não supervisionados) e 31% (placebo). O remédio vence, mas, mesmo assim, são resultados animadores a favor de alternativas. Outra análise107 de estudos sobre os benefícios dos medicamentos e de abordagens não farmacológicas não encontrou diferenças relevantes entre os efeitos de antidepressivos e da terapia cognitiva comportamental (TCC). Todas essas conclusões dão mostra de que, com mais jeitos de lidar com a doença, pacientes que não encontram alívio na farmácia têm mais chances de achar outras saídas. REMÉDIOS DO FUTURO Duas das linhas de pesquisa mais recentes sobre medicamentos para depressão e ansiedade envolvem uma molécula que controla a reação do organismo ao stress e uma rede de neurônios responsável por desligar emoções negativas. Um estudo patrocinado pela empresa farmacêutica Heptares108 usou um acelerador de partículas para conseguir uma imagem em 3D do CRF1, estrutura envolvida na liberação de substâncias relacionadas ao stress, como o cortisol. O objetivo é brecar essas descargas químicas para evitar que elas causem reações em cascata, como ansiedade, depressão e mesmo diabetes tipo 2. Para isso, o laboratório pretende desenvolver uma molécula queconsiga se moldar ao CRF1 e servir de tampão. Outra pesquisa inovadora vem do Massachusetts Institute of Technology (MIT)109. Neurocientistas observaram que duas pequenas estruturas cerebrais em forma de amêndoas, as amígdalas, podem ser as portas das emoções. Nelas estão duas redes diferentes de neurônios responsáveis por avaliar se uma experiência é boa ou ruim e, depois, disparar a informação para que o cérebro reaja de acordo. Por exemplo, quando você come chocolate, a rede positiva de neurônios é acionada e libera a informação para o núcleo acúmbens, relacionado à recompensa. Se você está na frente de um ladrão, a negativa entra em atividade e avisa as células da amígdala centromedial, ligada ao medo e à fuga. Mas, para fazer essa separação, as amígdalas precisam aprender o significado de cada experiência. Alguém que sofreu um acidente de carro na estrada associa uma viagem a algo potencialmente perigoso. Outro, que nunca passou por isso, sente só alegria ao volante. Ou seja, a mesma estrutura cerebral pode processar emoções de diferentes naturezas, dependendo do aprendizado afetivo. Nos experimentos em ratos, quando a rede negativa foi bloqueada, os animais não só deixaram de ter medo como passaram a demonstrar comportamentos positivos. Isso acontece porque os dois grupos de neurônios parecem trabalhar por exclusão: quando uma rede está inativa, a outra fica ativa. Dentro da sua cabeça, as células concluem que, se um estímulo não é ruim, então é bom — e a informação vai diretamente para o lado positivo. O medo desliga a recompensa; a recompensa desliga o medo. Uma das substâncias envolvidas nessa comunicação é a neurotensina, proteína que ajuda no equilíbrio de um neurotransmissor responsável pelo processo de memória e aprendizado: o glutamato. Os pesquisadores acreditam que direcionar pesquisas de fármacos que atuem nessa proteína e nas amígdalas pode trazer respostas que não temos hoje sobre vários males mentais. Por falar em respostas, outro transtorno tem desafiado os pesquisadores: o TDAH, tema do próximo capítulo. BULA RÁPIDA Conheça melhor os principais grupos de antidepressivos. Inibidores de MAO (IMAO) O Q UE FAZEM Aumentam a quantidade de vários neurotransmissores, como a noradrenalina, estimulante, dopamina, ligada ao prazer, e serotonina, que regula o humor, o sono e o apetite. EFEITOS COLATERAIS Agitação mental e motora, insônia, diminuição da libido, ganho de peso, psicose e aumento do risco de hipertensão quando há interação com alguns alimentos, como laticínios. OS NOMES COMERCIAIS Parnate (tranilcipromina), Aurorix (moclobemida). Antidepressivos Tricíclicos (ADT) O Q UE FAZEM Bloqueiam a recaptação de serotonina, noradrenalina e, em menor grau, de dopamina. O Q UE PODEM CAUSAR Boca seca, dificuldade de concentração e aprendizagem, visão turva, prisão de ventre, retenção urinária, perda da libido e ganho de peso. OS NOMES COMERCIAIS Tofranil (imipramina), Amy tril (amitriptilina), Pamelor (nortriptilina), Anafranil (clomipramina). Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS) O Q UE FAZEM Permitem que a serotonina fique disponível por mais tempo, aumentando a ação no cérebro. EFEITOS COLATERAIS Boca seca, tontura, tremor, sudorese, inibição da libido, insônia ou sonolência, diarreia, ansiedade, agressividade e dor de cabeça. OS NOMES COMERCIAIS Prozac (fluoxetina), Zoloft (sertralina), Cipramil (citalopram), Lexapro (escitalopram), Luvox (fluvoxamina), Paxil e Pondera (paroxetina). Antidepressivos atípicos O Q UE FAZEM Atuam de formas diferentes, dependendo do princípio ativo. Podem, por exemplo, inibir a recaptação de serotonina e noradrenalina, como o Efexor, de dopamina e noradrenalina, como o Wellbutrin, só de noradrenalina, como o Prolifit, ou de melatonina e serotonina, como o Valdoxan. EFEITOS COLATERAIS Variam de taquicardia e irritabilidade a aumento da pressão arterial e ansiedade. OS NOMES COMERCIAIS Efexor (venlafaxina), Wellbutrin e Zy ban (bupropiona), Prolifit (reboxetina), Valdoxan (agomelatina). A CIÊNCIA DA VOLTA AO TRABALHO Uma revisão de 23 estudos110 mostrou quais são as iniciativas mais eficientes na hora de readaptar profissionais com depressão que voltam à ativa depois de um tempo afastados. Apoiar O PROBLEMA Falta de suporte social e de compreensão das pessoas próximas são dois dos fatores que mais dificultam a reintegração, mostra a análise. O Q UE A EMPRESA PODE FAZER Os pesquisadores concluíram que criar um canal de atendimento online ou por telefone para conversas anônimas com um terapeuta ou assistente social beneficia funcionários que lidam com a doença O Q UE VOCÊ PODE FAZER Conversar com o médico sobre fazer terapia para ajudar a lidar com comportamentos e emoções. Conviver O PROBLEMA Focar esforços na tentativa de diminuir os sintomas da doença, como eliminar a baixa de energia e a dificuldade de concentração, apenas reforça os estigmas relacionados à depressão 111. O Q UE A EMPRESA PODE FAZER Definir um plano de carreira e metas claras que não subestimem a capacidade do funcionário. O Q UE VOCÊ PODE FAZER Pedir para ser incluído em um processo de aconselhamento de carreira, para definir novos rumos e alinhar expectativas. Entender O PROBLEMA Alguns dos principais empecilhos de voltar ao trabalho é o sentimento de inferioridade e o pouco tempo de readaptação antes de retomar o ritmo anterior111. A impressão, para quem tem a doença, é que qualquer novo deslize pode custar o emprego. O Q UE A EMPRESA PODE FAZER Mudar o tipo de tarefa que o funcionário executa, para trazer novos desafios, considerar a flexibilização ou a redução temporária da jornada e criar um ambiente favorável entre líderes e equipe para a retomada gradual da autoestima e da autoconfiança de quem retorna ao trabalho 110. O Q UE VOCÊ PODE FAZER Respeitar o próprio ritmo e entender que a depressão precisa de tempo para ser domada. SE VOCÊ CONSEGUIU vencer os nove capítulos anteriores deste livro, agradeça aos neurônios que trabalham no centro executivo do cérebro, o córtex pré-frontal. Eles suaram para regular a atenção, a memória, o planejamento, a determinação, as emoções e a capacidade de ação. Foram bem pagos para isso, com doses de dopamina liberadas pelo departamento financeiro do corpo, o centro de recompensa. Por algum motivo que a ciência ainda não explica, na cabeça de algumas pessoas esse fluxo de trabalho vira uma zona. Na cabeça delas, não existe um comando único, mas vários. As atividades sobrepõem-se umas às outras: ler este livro, ouvir a conversa ao lado, ver TV, entrar nas redes sociais, ler notícia, jogar Candy Crush, olhar as horas, saber a previsão do tempo, comer um sanduíche e esquecer o que estava fazendo antes dessa lista toda começar. Isso é uma dificuldade crônica em manter o foco, definida pela psiquiatria como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). E, assim como a ansiedade e a depressão, a dificuldade de concentração pode ter raízes evolutivas e influências sociais. A ESPECIALIZAÇÃO DOS SENTIDOS Quando éramos nômades e andávamos por aí caçando e coletando comida, explorar ambientes desconhecidos era rotina. Quanto maior a capacidade de perceber e avaliar as características do lugar, como os recursos disponíveis e os possíveis perigos, mais fácil seria a adaptação. A atenção dispersa funcionaria como vantagem na hora de ler as informações escondidas em cada canto e aprender a tirar proveito delas. Aí veio o sedentarismo. Fincamos o pé, criamos vilas, cidades, megacidades. Na vida em sociedade, as pessoas passam a cumprir papéis específicos: melhorar as técnicas de agricultura, fabricar ferramentas, construir casas. Quanto maior a especialização e o direcionamento de energia para a função que exercem, mais bem-sucedidos são os trabalhadores. Saide cena a atenção generalista e entra a focada. Não que a atenção generalista tenha sido enterrada com nossos ancestrais. Ela continua viva e bem útil. Alguns a têm mais latente, outros menos. O que aconteceu é que a capacidade de se dedicar a uma tarefa por enormes períodos passou a ser hipervalorizada, porque ela aumenta a produtividade. E produtividade, meus queridos, é a mão que gira a roda do mundo. Só que os neurônios não dão a mínima para convenções sociais modernas. Eles foram criados nas savanas africanas, à base de muita dificuldade e muito trabalho. Naqueles tempos áridos de futuro incerto, aprenderam na carne que é melhor a recompensa imediata do que o prêmio de longo prazo. Por isso, adotando para si a máxima “mais vale um pássaro com batatas à mão do que dois voando”, o cérebro cria rankings de dopamina para comprar sua atenção. Buscar alimentos vale, digamos, “200 dopaminas”. Pegar lenha para aquecer o corpo quando os dias frios chegarem rende umas dez dopaminas. Na Pré- História, a quantidade de boas recompensas capazes de gerar pagamentos substanciosos era pequena. Basicamente, comida e sexo. Mas os tempos mudaram. Temos à disposição pipocas cor-de-rosa entrando pela janela do carro no semáforo, jogos viciantes ao alcance dos dedos no celular, compartilhamentos e curtidas nas redes sociais, que estimulam as mesmas áreas cerebrais ativadas na alimentação e na relação sexual112. Com tanta oferta, os instintos não se fazem de desentendidos; querem tudo. Aí, fica difícil abrir mão das tentações quando é preciso dedicar horas a apenas uma atividade. Poucos podem dizer hoje que está fácil manter o foco e a persistência em tarefas que dão menos prazer, como preencher uma planilha de Excel, entender a matéria da prova ou se lembrar de botar o lixo para fora. Mas existem níveis patológicos dessa dificuldade. Imagine alguém colocar o emprego, os relacionamentos e todo o aprendizado escolar em risco por ser incapaz de entregar um trabalho pedido pelo chefe, comparecer a uma reunião agendada, ler e acompanhar míseros 10 minutos de uma aula. Quem tem TDAH vive no sofrimento de ser rotulado como desleixado por nunca conseguir, apesar do esforço, ajustar a atenção para tarefas importantes. Esse é um dos males psíquicos mais polêmicos da atualidade. Polêmico não porque a dificuldade e a frustração não sejam reais. São. O complicado é que a maioria dos diagnósticos de TDAH é feita em crianças a partir de 6 anos de idade, às vezes menos. E o tratamento padrão tem sido o medicamentoso, com uma droga parecida com a cocaína. Psiquiatras e neurologistas acreditam que, no TDAH, falta dopamina e noradrenalina para estimular o córtex pré-frontal a tocar Mozart nesse carnaval de desatenção. Um dos remédios que parecem cumprir essa função, a Ritalina, nome comercial do metilfenidato, é um estimulante do sistema nervoso central. “Tanto a cocaína quanto o metilfenidato reduzem a recaptação de dopamina, aumentando a concentração dela no cérebro. Mas a forma como as duas substâncias agem não é igual”, diz o neurologista Marco Antonio Arruda, pesquisador de TDAH e diretor do Instituto Glia, em Ribeirão Preto (SP). O medicamento atuaria principalmente no córtex pré-frontal, aumentando o controle da atenção e das funções cognitivas. A cocaína tem ação maior no centro de recompensa, produzindo sensações exacerbadas de prazer. “Um exemplo da diferença entre as duas substâncias é que a administração endovenosa de ambas provoca reações completamente distintas. O metilfenidato não leva a pico de euforia nem ao abuso, como acontece com a cocaína”, diz Arruda. Mesmo assim, pode criar dependência, como avisa a própria caixa do remédio. Outro fator que contribui para o alerta em relação ao excesso de diagnóstico infantil é que os critérios são subjetivos. Não existe exame capaz de dizer quem tem ou não a doença, exatamente como acontece com os outros distúrbios psíquicos. Crianças que apresentam alguns dos comportamentos a seguir têm potencial para o TDAH, segundo o DSM113: • Frequentemente remexe ou batuca as mãos ou os pés, ou se contorce na cadeira. • Frequentemente levanta da cadeira em situações em que se espera que permaneça sentado. • Frequentemente corre ou sobe nas coisas em situações em que isso é inapropriado. (Nota: Em adolescentes ou adultos, pode se limitar a sensações de inquietude.) • Com frequência é incapaz de brincar ou se envolver em atividades de lazer calmamente. • Com frequência “não para”, agindo como se estivesse “com o motor ligado”. Por exemplo, não consegue ou se sente desconfortável em ficar parado por muito tempo, como em restaurantes e reuniões. Outros podem ver o indivíduo como inquieto ou difícil de acompanhar. • Frequentemente fala demais. • Frequentemente deixa escapar uma resposta antes que a pergunta tenha sido concluída. • Frequentemente tem dificuldade para esperar a sua vez. • Frequentemente interrompe ou se intromete. Por exemplo, mete-se nas conversas, jogos ou atividades; pode começar a usar as coisas de outras pessoas sem pedir ou receber permissão; para adolescentes e adultos, pode intrometer-se ou assumir o controle sobre o que outros estão fazendo. Que bom que o DSM não é um livro de testes em que os leigos vão assinalando sim ou não para chegar a um resultado, porque só com esses sintomas já daria para enquadrar uma sala inteira de alunos em cada escola. Que bom que só profissionais treinados e responsáveis usam o manual. Assim, podem observar que TDAH é definido por níveis de desatenção, desorganização, hiperatividade ou impulsividade que causam prejuízos de desenvolvimento e são incompatíveis com a idade. Assim, crianças de 6 anos não tomam tarja preta por não esperar a vez de falar e pegar um brinquedo sem “receber autorização”. Que bom também que pais e professores nunca se baseiam nesses critérios para pressionar o tratamento ou conseguir uma receita de pílulas mágicas que transformem menores indisciplinados em seres de obediência extrema. Não, calma. A realidade é justamente o oposto. JARDIM URGENTE Um estudo com 6.323 crianças e adolescentes em 18 Estados brasileiros mostrou que 68% dos pacientes que usavam um psicoestimulante para TDAH no momento da pesquisa não tinham a doença. A maioria deles era das classes A e B. Entre os que preenchiam os critérios para o diagnóstico, 89% não tomavam a medicação, a maior parte deles das classes D e E. “Esses dados sugerem duas realidades diferentes: uma de subdiagnóstico e subtratamento entre os menos favorecidos e outra de excessos em camadas mais altas, possivelmente por causa da grande expectativa em relação ao desempenho escolar e ao controle comportamental dos filhos, sem que haja educação para o desenvolvimento dessas habilidades”, diz o neurologista Marco Antônio Arruda, coordenador da pesquisa. Pais e professores são parte importante no auxílio do diagnóstico, porque é preciso avaliar todo o histórico da criança em ambientes diferentes. Os sinais devem ser maiores do que questões de indisciplina e reações a conflitos familiares ou sociais. “Na escola, por exemplo, a criança com TDAH começa a ser discriminada, porque os outros alunos vão criando birra dela. A autoestima é prejudicada e ela passa a não dar conta sozinha”, afirma o psiquiatra Mario Louzã, coordenador do Projeto de Déficit de Atenção e Hiperatividade do HC, em São Paulo. Associações de pacientes com TDAH costumam organizar cursos e palestras para fornecer a pacientes, pais e docentes mais informações sobre o transtorno e dar voz a quem sofre com o problema. Essas entidades recebem verbas da indústria farmacêutica, que patrocina inclusive os materiais didáticos distribuídos nos encontros com orientações de como detectar sintomas da doença. A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), por exemplo, tem apoio financeiro da Novartis, que faz a Ritalina, e da Shire, do estimulanteVenvanse, para o mesmo fim. A ABDA não retornou meus pedidos de entrevista. Já a Novartis topou falar. Disse considerar fundamental o trabalho educativo realizado por associações de pacientes para esclarecer e evitar o preconceito em relação ao distúrbio. “É importante que a escola conheça o problema e saiba lidar com ele. Não para fazer diagnósticos, porque isso não cabe à área de educação, mas para ajudar no dia a dia das crianças e adolescentes que têm o transtorno”, diz o neuropediatra Marcelo Gomes, diretor médico de Áreas Terapêuticas da Novartis. O efeito colateral da medida é o aumento de relatos de pais pressionados por professores a levar os filhos ao psiquiatra. O consumo anual de metilfenidato entre crianças e adolescentes de 6 a 16 anos tem um pico nos meses de agosto, setembro e outubro, quando há maior cobrança por desempenho, e uma queda nos meses de férias, em dezembro, janeiro e julho114. Ou seja: em muitos casos, estamos medicando crianças e adolescentes que não têm transtorno algum, só um natural aumento da tensão diante da pressão por resultados. A Ritalina existe desde 1955. Viveu ali, no quadrado dela, até o DSM popularizar o TDAH na década de 1990. A aprovação para comercialização no Brasil veio em 1998. O Concerta, outro medicamento com metilfenidato, chegou em 2002. Entre 2003 e 2012, o consumo em miligramas da substância aumentou 775% 115 no País. Só entre 2009 e 2011, a quantidade de caixas para cada mil crianças e adolescentes passou de 4,3 para 11,3, um crescimento de 162,8% 114. O custo anual de tratamento chegou a R$ 5 mil em 2014116. “O TDAH é superdiagnosticado no mundo todo. Nós transformamos imaturidade natural em um transtorno mental e a tratamos com uma pílula que não melhora a performance acadêmica no longo prazo e ainda tem sérios efeitos colaterais”, afirma o psiquiatra Allen Frances. O Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo recebeu 553 notificações de suspeitas de reações adversas provocadas pelo uso de metilfenidato entre 2004 e 2013 117. A análise mostrou que crianças menores de 6 anos estão sendo indevidamente medicadas. As reações adversas graves mais comuns entre todas as notificações foram taquicardia e hipertensão (que aconteceram em 38,7% dos casos notificados) e depressão, psicose e dependência (36%). Na faixa etária de 14 a 64 anos, os problemas severos mais relatados foram acidente vascular encefálico, paralisia de metade do corpo, pânico, depressão e tentativa de suicídio. A avaliação concluiu ainda que o medicamento pode estar envolvido em cinco mortes, por agravar distúrbios psíquicos como depressão e ideação suicida. Esses dados mostram que a decisão de adotar um remédio tarja preta, ainda mais para menores de idade, deveria ser mais criteriosa e direcionada para quem realmente precisa dele. “O tratamento do TDAH e outros transtornos mentais não se resume à prescrição e ao uso de medicamentos”, diz Arruda. “No caso das crianças, é necessário também que se crie uma rede de colaboração, com pais, terapeutas e escola para trabalhar dificuldades e habilidades identificadas no diagnóstico.” Terapia comportamental ou psicopedagógica e ações que impactem diretamente as atividades familiares, escolares ou profissionais podem ser adotadas. O aprendizado escolar é um dos maiores desafios, porque existe uma lentidão natural na adaptação dos métodos de ensino — métodos que costumam não responder rapidamente às mudanças culturais. Ouvir um professor lá na frente proferindo um monólogo de informações pode ser algo alienígena para quem já nasceu com um smartphone na mão. No mundo adulto, a cobrança por metas cada vez mais ousadas no trabalho pode deixar de lado bons profissionais que não funcionam no modo 100% atento. O nadador Michael Phelps, o músico Kurt Cobain e o empresário David Neeleman, dono da companhia aérea Azul, foram diagnosticados com TDAH. É possível que o escritor Oscar Wilde, os atores James Dean e Clark Gable e o inventor Thomas Edison também tenham convivido com a doença, segundo o psiquiatra irlandês Michael Fitzgerald. O talento fora do comum dessas personalidades tem sido atribuído a uma característica da mente desatenta, o hiperfoco: quando algo desperta muito o interesse, ela é capaz de passar horas e horas concentrada só naquilo, atingindo desempenhos espetaculares. Pode parecer, então, que o TDAH ajudou Phelps a virar o maior medalhista olímpico de todos os tempos, Cobain a se tornar o músico mais célebre de sua geração e Neeleman a virar um dos CEOs mais famosos do mundo, depois de fundar uma companhia aérea icônica nos EUA (a JetBlue) e outra no Brasil (a Azul). Mas justificar o sucesso de alguém pelo sintoma de um transtorno é algo simplista, e um tanto injusto. Fosse assim, os desatentos e impulsivos estariam quebrando recordes mundiais e fundando empresas milionárias em vez de andarem por aí esquecendo guarda-chuva em ônibus. Hiperfoco não é exatamente um dom, é uma condição que pode gerar sofrimento. Ele acontece com um adolescente que passa 14 horas jogando videogame quando deveria estar estudando, dormindo ou se alimentando, por exemplo. Mas, sim, existe realmente uma relação entre transtornos psíquicos e mentes inventivas. Foi o que comprovou uma análise de mais de 1 milhão de casos118. O transtorno bipolar tem prevalência maior entre pesquisadores e pintores; a esquizofrenia entre escritores. Desatentos tendem a ser mais criativos e intuitivos119. Alguns potenciais associados ao TDAH, como expressão artística, além do próprio hiperfoco, podem ser benéficos se bem encaminhados. VIAGRA CEREBRAL A Ritalina ganhou o apelido de pílula dos concurseiros, dos vestibulandos e dos executivos que usam a droga para manter o sono longe e o foco perto durante madrugadas de estudo ou trabalho. Outro estimulante que está fazendo a cabeça de muita gente é o Modafinil, fabricado para tratar narcolepsia, doença que causa grande sonolência durante o dia. Militares passaram a usar o Modafinil na década de 1990 para ficar acordados por mais de 60 horas nos combates. Depois, o consumo se popularizou entre estudantes interessados em melhorar o desempenho cognitivo. Substâncias promissoras no tratamento de Alzheimer, como as ampaquinas e a donepezila, também estão sendo testadas para aumento da capacidade de memória e aprendizado. Todas elas disputam o título de pílulas da inteligência. Mas um estudo da Unifesp com 36 jovens de 18 a 30 anos sem TDAH contesta esse poder das drogas de aumentar o QI. Os participantes foram divididos em quatro grupos. Um tomou placebo e os outros três receberam doses diferentes de metilfenidato. Todos foram submetidos a testes de memória, atenção e funções executivas cerebrais. Os resultados foram parecidos entre as turmas, independentemente da quantidade (ou ausência) da droga. A conclusão foi de que, apesar de aumentar o foco e a persistência, o remédio não altera a capacidade intelectual. Outro revés dos estimulantes é que eles privam o corpo do descanso. A falta de sono pode causar ansiedade, depressão, dificuldade para se concentrar e danos no hipocampo, região cerebral que, entre outras funções, coordena a memória. Parece uma piada de mau gosto, mas os comprimidos que prometem fazer qualquer um corresponder aos altos padrões de desempenho podem surtir o efeito contrário — e trazer ainda mais frustração. Por falar em corresponder a padrões, um novo medicamento traz à tona um antigo debate: vale a pena usar remédio para perder uns quilinhos e caber no jeans? No próximo capítulo. O MAIS NOVO comprimido para perda de peso nem comprimido é. O Saxenda é uma droga injetável para ser usada como coadjuvante em um tratamento que inclui dieta e exercício. O princípio ativo do medicamento é a liraglutida, o mesmo de um remédio contra diabetes tipo 2, o Victoza, que ganhou fama anosatrás por ajudar pacientes a perder peso mais rapidamente - 7 quilos em cinco meses. A liraglutida imita a ação de um hormônio que estimula a produção de insulina quando os níveis de açúcar no sangue estão altos. Esse é um efeito importante para diabéticos que não conseguem controlar as taxas de glicose só com restrição alimentar e atividade física. Outra ação da substância é diminuir o ritmo da digestão, o que aumenta a saciedade. Foi essa promessa aí, de sentir menos fome, que fez o Victoza sumir das prateleiras e parar nas mãos até de quem não é diabético. Nem obeso. O Victoza tem uma quantidade menor do princípio ativo, até 1,8 miligrama. O Saxenda tem até 3 mg. “É indicado para obesos não diabéticos e para quem tem índice de massa corporal (IMC) igual ou maior que 27 e alguma comorbidade, como pré-diabetes”, diz o endocrinologista Alexandre Hohl, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e professor da Universidade Federal de Santa Catarina. é um dos parâmetros de obesidade calculado com a divisão do peso pelo quadrado da altura. Se o resultado ficar entre 18,5 e 24,9, é considerado ideal. Acima disso, é sobrepeso. A partir de 30, é obesidade. Por exemplo, quem pesa 70 quilos e tem 1,70 de altura deve multiplicar 1,70 por 1,70, o que dá 2,89. Depois, basta dividir 70 (quilos) por 2,89 para chegar a um IMC de 24,2. 70 (PESO) ———— = 24,2 1,70 X 1,70 (ALTURA VEZES ALTURA) O novo remédio pode ajudar obesos e pacientes com grande sobrepeso e doenças associadas, mas não faz milagre sozinho. “Todo tratamento contra a obesidade, até mesmo a cirurgia bariátrica, requer mudança no estilo de vida”, afirma Hohl. A busca por soluções fáceis gera polêmicas. Principalmente por causa dos efeitos colaterais dos medicamentos. Na bula da versão americana do Saxenda (que, enquanto este livro era escrito, ainda estava para ser lançado no Brasil), os problemas mais comuns listados são náusea, falta de açúcar no sangue, diarreia ou intestino preso, vômito, dor de cabeça, sensação de peso no estômago, fraqueza, tontura e dor abdominal. Os mais graves são aumento da frequência cardíaca, pancreatite, insuficiência renal, pensamentos suicidas e tumores na tireoide. “É importante fazer acompanhamento médico para monitorar as funções orgânicas e ajustar as doses”, diz o endocrinologista Paulo Rosenbaum, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Pode valer a pena encarar esses riscos se a outra opção for se expor a males como diabetes, hipertensão, problemas cardiovasculares e alguns tipos de câncer. Mas, para quem quer apenas despachar uns quilinhos em prol da estética, o custo-benefício não compensa. No Brasil, a Anvisa proibiu em 2011 três remédios com ação parecida com a das anfetaminas: o Mazindol, o Femproporex e a Anfepramona. Anfetaminas são estimulantes sintéticos que, entre outras funções, tiram a fome. De quebra, como já vimos neste livro, podem levar a taquicardia, insônia, boca seca, ansiedade, irritabilidade, agressividade, pressão alta e até distúrbios psíquicos e problemas do coração. Só dois medicamentos, a sibutramina (Reductil) e o orlistate (Xenical), que não é da família das anfetaminas, continuaram com permissão. O Xenical diminui a absorção de gordura, mas causa flatulência. A sibutramina faz crescer a quantidade de noradrenalina, que é estimulante, e de serotonina, reguladora do humor. Esses efeitos parecem contribuir para a sensação de saciedade e evitar a compulsão alimentar. O remédio pode aumentar o risco de ataque cardíaco e AVC em quem tem problemas cardiovasculares. Em 2014, um decreto legislativo suspendeu a proibição dos anfetamínicos e, em 2016, o Senado aprovou um projeto que torna lei a permissão para produção, venda e consumo, sob prescrição médica, desses inibidores de apetite. A segurança do uso de emagrecedores vem sendo discutida há décadas e divide opiniões. Principalmente depois que uma fórmula milagrosa ganhou fama nos EUA. Era 1992. O pesquisador Michael Weintraub tinha acabado de publicar um estudo120 de quatro anos com 121 obesos dizendo que a combinação de dois inibidores de apetite, a fenfluramina e a fentermina, fazia perder peso consideravelmente. Em média, os participantes que tomaram os dois remédios juntos diminuíram 15,6% do peso inicial em sete meses, enquanto a turma que recebeu placebo emagreceu apenas 4,9% do peso inicial. Eram quase 14 quilos a menos entre cada um dos medicados e nada entre os outros, com a vantagem de que o maior efeito colateral do coquetel seria só boca seca. Não deu outra. A notícia do tratamento sem problemas significativos se alastrou no faminto mercado das pílulas emagrecedoras. Nos anos seguintes, o fen-fen, apelido da combinação dos dois princípios ativos, virou febre entre os americanos, mesmo aqueles que não sofriam de obesidade. Só que os remédios tinham aprovação do FDA separadamente, para tratamentos que durassem no máximo três meses, porque estimulantes tendem a perder o efeito a partir de 90 dias. Não se sabe exatamente o motivo, mas uma explicação é que o corpo se acostuma a eles. A combinação fen-fen, ainda mais por períodos longos, não havia sido testada oficialmente. Os médicos receitavam por conta e risco com base em bons resultados com os pacientes e na pesquisa de Weintraub, que, àquela altura, já era uma celebridade. Entre 1992 e 1995, as vendas de fenfluramina cresceram 3.000% nos EUA. Nesse período, outro remédio da mesma classe, a dexfenfluramina, foi aprovado. As farmácias americanas receberam 18 milhões de prescrições de fen-fen em 1996. No Brasil, os medicamentos mais famosos dessa categoria foram o Isomeride, o Minifage AP e o Fluril. Até que começaram a surgir nos EUA dezenas de casos de hipertensão pulmonar, que leva à morte em poucos meses, e danos nas válvulas do coração em mulheres jovens sem antecedentes para as doenças. Todas tinham tomado a combinação dos medicamentos ou só um deles, fenfluramina ou dexfen. Nenhum dos casos envolvia pacientes que usaram só a fentermina. Nos anos seguintes, vieram centenas de processos contra os laboratórios por mortes e problemas graves de saúde relacionados aos princípios ativos. Em 1997, a fenfluramina e a dexfenfluramina foram banidas dos mercados americano121 e europeu. No Brasil, a Anvisa suspendeu as drogas em 1998 122. Desde então, quando estudos mostram sérios efeitos colaterais com inibidores de apetite, volta à tona o debate sobre o que a Anvisa deveria fazer: proibir ou estabelecer um controle mais rígido para dificultar o acesso a quem não precisa das substâncias? Para a compra da sibutramina, por exemplo, médicos e pacientes devem assinar um termo de responsabilidade. Muita gente burla esses mecanismos e se expõe aos riscos (no próximo capítulo tem mais sobre automedicação), usando até drogas que não foram aprovadas para emagrecimento. Como o hormônio HCG, que ressurgiu das cinzas em 2015. DIETAS DA MODA Quer perder 15 quilos em um mês com a dieta HCG sem botar o pé na academia? Você vai ter de passar esse tempo comendo só 500 calorias por dia, sem nada de açúcar, farinha, amido nem gordura, e ainda injetar um hormoniozinho aí. Parece bacana? Então vamos começar de novo. Quer perder 15 quilos em um mês sem botar o pé na academia? Você vai ter de reduzir drasticamente a ingestão de carboidratos, porque eles se transformam em açúcar no sangue e depois são estocados nas células de gordura. Como a glicose é a principal fonte de energia do cérebro, a falta dela causa alterações no sistema nervoso central, levando à sonolência, indisposição e confusão mental. O hormoniozinho aí é a versão sintética da gonadotrofina coriônica humana (HCG, da sigla em inglês), produzido na gravidez para mobilizar reservas de gordura da mãe para alimentar o feto. Administrado como remédio, aumenta o risco de trombose, embolia pulmonar e AVC, principalmente em obesos,porque o excesso de peso, por si só, faz crescer as chances de trombose. Ah, detalhe: não há comprovação científica de que o HCG ajude a queimar gordura. O uso é aprovado apenas para tratar infertilidade feminina e masculina, além de deficiências hormonais. “Qualquer pessoa submetida a 500 calorias por dia vai perder peso rapidamente, mas dificilmente conseguirá a quantidade básica de nutrientes necessária à manutenção da saúde”, afirma o endocrinologista Alexandre Hohl. Eliminar gordura em pouco tempo pode ser motivador, mas não funciona para quem precisa de efeitos duradouros. E tem cada vez mais gente precisando. Quilos a mais são uma realidade para seis em cada dez brasileiros. A mais recente Pesquisa Nacional de Saúde123, do IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, mostrou que 57,3% dos homens e 59,8% das mulheres estão acima do peso. Pela primeira vez, a avaliação mediu a circunferência abdominal dos entrevistados. Homens com cintura maior do que 102 centímetros e mulheres com cintura acima de 88 centímetros têm excesso de gordura nessa região. Para esse grupo, há mais risco de desenvolver doenças crônicas, como diabetes e males do coração. Cada nova edição da pesquisa mostra que a obesidade só cresce. Paralelamente, aumenta também a frustração de muita gente que quer diminuir números na balança e não consegue. Em geral, quem tem (ou acha que tem) quilos sobrando já passou por mais de um regime maluco e percebeu que voltar a um peso saudável parece cada vez mais difícil. Parece, não. É. EFEITO-REBOTE Dieta é um jeito de dizer ao cérebro que quem manda no corpo é você. Tem duas formas de fazer isso: partindo para a grosseria ou tentando o diálogo. O modo deselegante é mais conhecido como regime da moda. Da noite para o dia, seu cardápio passa de hambúrguer e quindim para quinoa com suco de couve. O número de calorias despenca e, em retaliação, o cérebro manda cinco pragas ancestrais. A primeira é a fome, um comando imediato para que você dê um jeito de coletar ou caçar alimentos para não morrer. Se as calorias não chegam, começa a segunda praga: o metabolismo lento, um recurso para economizar a energia que resta e prolongar as chances de manter a sua vida até que apareça um prato gordo dando sopa. Se você for forte o suficiente, vai ter de lidar com a terceira praga: a perda de massa muscular. Dietas restritivas demais diminuem a oferta de glicose, o principal combustível do organismo. Na falta de quantidades adequadas, o corpo apela também para o que está mais a mão, o glicogênio, que é a energia armazenada nos músculos. Em outras palavras, além de queimar gordura, o organismo frita boas quantidades de massa magra. Só que músculos são grandes incineradores de caloria. Com menos quantidade deles, a queima é cada vez menor. Com o metabolismo lento e menos músculo para consumir energia, tudo o que entra pela boca é lucro — a ordem é estocar. Essa é a quarta praga: a estagnação da perda de peso. Mesmo que seu cardápio tenha se resumido a filé de frango com alface, a balança continua travada no mesmo número. Aí você decide jogar a toalha, porque isso não é vida. Voltam as doses generosas de pizza e cupcake, mas o metabolismo continua lento, pois se adaptou à pouca quantidade de combustível. Resultado: você engorda com muito mais facilidade. É a quinta praga: o efeito-rebote. Digamos que, antes de começar a dieta, seu corpo queimava umas 2 mil calorias para se manter vivo. O que passava desse valor, virava gordura estocada se não fosse queimada de alguma forma. Durante o regime, o metabolismo desacelerou para economizar energia e se acostumou a gastar 1.500. Se você consumia 2.500 calorias por dia, o excedente antes da dieta era de 500. Depois, passou a ser de mil. Na prática, significa fazer o dobro de esforço só para manter o peso. Imagine, então, para emagrecer. Um estudo124 com os participantes da oitava edição do reality show americano The Biggest Loser, que premia quem conseguir despachar mais quilos, mostrou que apenas um deles não havia recuperado boa parte do peso inicial depois de seis anos. O ganhador, Danny Cahill, eliminou 108 quilos em sete meses de programa e já tinha recuperado 45 kg. Os pesquisadores verificaram que o metabolismo dos ex-participantes tinha desacelerado drasticamente. Até aí, nenhuma surpresa. O inusitado foi que, conforme os anos passaram e as pessoas foram engordando de novo, a queima calórica não recuperou os níveis normais. Continuou muito mais lenta do que no começo do programa. Brigar com a balança é lutar contra milhões de anos de evolução. O corpo batalha bravamente para recuperar a fartura de reservas energéticas, ainda mais se a perda delas for rápida. É por isso que exercício e reeducação alimentar são mais eficientes para os resultados de longo prazo. Atividade física não só torra caloria como cria músculos — e músculos queimam mais energia do que massa gorda, mesmo quando você está em repouso. Não faltam exemplos de quem consegue emagrecer muitos quilos depois de passar a comer de forma mais saudável e ir à academia. Mas a obesidade é um problema de muitas causas. Não tem a ver apenas com a quantidade de calorias ingeridas e gastas. Além de influenciadores como questões emocionais, nível de stress e qualidade do sono, existem fatores biológicos que dificultam a perda de peso para uma parcela da população. Por exemplo, a predisposição genética e o funcionamento dos hormônios. A gordura pode levar ao desenvolvimento de resistência a substâncias reguladoras do apetite e do balanço energético. Como a leptina, que sinaliza ao cérebro quando os estoques de gordura estão altos. Sem receber essa mensagem, o corpo continua guardando energia e disparando a fome, por mais esforço que alguém faça. O emagrecimento também induz alterações hormonais, porque faz cair as substâncias que inibem a fome e subir as estimuladoras. Tudo para recuperar logo as reservas. Por isso, taxar um obeso de preguiçoso é como dizer a um deprimido que é só dar bom-dia ao Sol que o sofrimento passa. Obesidade, depressão, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade e déficit de atenção precisam de mais entendimento, mais opções de tratamento, menos promessas milagrosas. E menos, bem menos preconceito. A OBESIDADE NO BRASIL Quilos a mais são uma realidade para seis em cada dez brasileiros. As mulheres são as que mais enfrentam dificuldades com a balança. DOR DE CABEÇA, dor de estômago, dor nas costas. Gases, má digestão, queimação. Resfriado, coriza, febre. O pulso ainda pulsa. E a vida segue. Todo mundo tem uma farmácia particular de remédios sem tarja (ou de plantas medicinais) para lidar com esses contratempos de saúde. Se a população fosse ao pronto-socorro ao primeiro sinal de azia, os hospitais estariam sobrecarregados de pacientes com sintomas leves que provavelmente serão curados sozinhos. O comprimido acelera a recuperação ou ajuda a atenuar o desconforto até o ciclo chegar ao fim. Mas a automedicação começa a se tornar um problema sério quando vira rotina. Ou então, que ninguém nos ouça, se tiver remédio tarjado nesse balaio. Não só porque sintomas recorrentes podem indicar algo mais sério, mas porque todo medicamento tem potencial de delinquência quando corre solto nas suas veias. Hora de saber mais sobre a vida secreta das drogas autoprescritas mais populares do Brasil. TYLENOL PRINCÍPIO ATIVO Paracetamol EFEITOS DESEJADOS O remédio diminui o envio de mensagens aos receptores de dor e atua na regulação da temperatura do corpo, baixando a febre. Quando o paracetamol é metabolizado pelo fígado, uma pequena parte se transforma em uma substância tóxica, a NAPQI, que na maioria dos casos é rapidamente eliminada. EFEITOS INDESEJADOS Para adultos, a partir de 4 gramas por dia ou 1 g de uma vez só, o fígado pode não dar conta de toda a NAPQI produzida. Nesse caso,aumenta o risco de lesões irreversíveis e falência do órgão125. As crianças são ainda mais vulneráveis. Parte das overdoses de paracetamol é intencional, mas existe um grande número de pessoas que passa da medida sem perceber. Ou porque acha que a droga é 100% segura — e nenhuma é — ou por desconhecer que muitos outros remédios para dor, coriza, febre, alergia e inflamação contêm o princípio ativo. Digamos que você tome um Ty lenol para febre (750 mg de paracetamol) e um Resfenol (400 mg) para coriza, congestão nasal e outros desconfortos do resfriado. É 1,55 grama por dose, o que já traz riscos para o fígado, já que o órgão metaboliza melhor até 1 grama de cada vez. Bom, essa dosagem quatro vezes ao dia dá 6,2 gramas, enquanto o ideal para não sobrecarregar o fígado é de 4 gramas para baixo. Se você ainda por cima mandar aquele remedinho para relaxar a musculatura depois de um dia tenso no trabalho, a conta aumenta. Um comprimido de Torsilax, o décimo medicamento mais vendido no Brasil em 2015 e o segundo em faturamento126, coloca 300 mg de paracetamol a mais na sua corrente sanguínea. Se suas noites forem frequentemente banhadas a três doses de álcool, o fígado, que a essa altura estará tomando uma lavada das NAPQIs, vai pedir para sair. Tomar paracetamol para curar ressaca, então, é apagar fogo com gasolina. Em 2011 127 e 2014 128, o FDA alertou os médicos para que deixem de prescrever drogas que contenham mais de 325 mg de paracetamol em combinação com outras substâncias. É uma tentativa de desestimular o consumo casado, de mais de um remédio com o mesmo princípio ativo, que pode levar a uma overdose acidental. NEOSALDINA PRINCÍPIOS ATIVOS Dipirona, mucato de isometepteno e cafeína. EFEITOS DESEJADOS A dipirona diminui a dor e a febre, o isometepteno e a cafeína reduzem o calibre dos vasos sanguíneos do cérebro, enfraquecendo a dor. EFEITOS INDESEJADOS Não precisa nem exagerar no consumo para se expor a dois efeitos colaterais raros, mas potencialmente fatais da dipirona. Um é a diminuição da quantidade de células do sangue, como glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas. Outro, especialmente em asmáticos, é o choque anafilático, reação alérgica grave que pode acontecer mesmo em quem está acostumado a usar a medicação. Esses riscos levaram muitos países129 a proibir a dipirona, como os EUA e a Austrália. Outro problema com os remédios contra dor de cabeça é que eles podem diminuir a capacidade do corpo de liberar endorfinas, nossos analgésicos interiores. O uso exagerado cria resistência, quando é preciso uma dose maior para surtir efeito, e mascara outros distúrbios, que se tornam crônicos. Por exemplo, se o incômodo vem de uma sinusite mal curada, o comprimido alivia o sintoma, mas não resolve a causa. A inflamação na face vai ficando cada vez mais difícil de tratar. E a dor só piora. DORFLEX PRINCÍPIOS ATIVOS Dipirona, citrato de orfenadrina e cafeína. EFEITOS DESEJADOS A dipirona e a cafeína reduzem a dor e a orfenadrina inibe os comandos de contração involuntária dos músculos, produzindo relaxamento. EFEITOS INDESEJADOS Além dos problemas da dipirona, a superdosagem de orfenadrina é potencialmente tóxica. A ingestão de 2 g a 3 g dessa substância pode levar à morte130. Os efeitos colaterais do Dorflex vão de boca seca e alterações nos batimentos do coração até alucinações, tremor, agitação e, em doses altas, delírio e coma. ASPIRINA PRINCÍPIO ATIVO Ácido acetilsalicílico. EFEITOS DESEJADOS A aspirina é três em um. Em baixas dosagens, até 1 g, funciona contra dor e estágios leves de febre. Acima dessa quantidade, inibe processos inflamatórios, principalmente as artrites. EFEITOS INDESEJADOS A overdose costuma acontecer de forma acidental, principalmente com idosos, que usam doses maiores do remédio, e crianças pequenas131. Oito comprimidos são suficientes para aumentar o risco de excesso de acidez no sangue e baixa acentuada de glicose, causando choque cardiovascular e insuficiência respiratória — distúrbios que podem levar à morte. Por causar queda nos níveis de açúcar, qualquer dosagem de aspirina pode causar hipoglicemia em diabéticos que tomam medicamentos para controlar a doença. A aspirina e outros anti-inflamatórios também não devem ser usados antes de procedimentos cirúrgicos, mesmo os mais simples, como arrancar um dente ou uma unha encravada. Quando existe um corte na pele, as plaquetas se juntam e formam tampões para não deixar o sangue escapar. A aspirina inibe essa agregação e deixa a porta aberta para hemorragias. Usar o remédio junto com outro anti-inflamatório ou álcool também é mau negócio: aumenta as chances de úlcera e sangramentos estomacais e intestinais severos. SALONPAS PRINCÍPIO ATIVO Salicilato de metila e levomentol. EFEITOS DESEJADOS O salicilato de metila é um anti-inflamatório da mesma família da aspirina, mas com ação diferente. Ele causa uma leve irritação na pele, levando a maior irrigação sanguínea na superfície e menor nos músculos, nervos e articulações sob ela. Isso distrai os receptores da dor. O levomentol ajuda nesse trabalho de mudar o foco, porque causa a sensação de frio e seu cérebro presta mais atenção no geladinho do que no incômodo. EFEITOS INDESEJADOS É difícil o organismo absorver remédios aplicados na pele, então os efeitos colaterais são raros. Os riscos aumentam se o paciente toma anticoagulante ou medicação contra diabetes, tem alergia a aspirina, histórico de sangramento ou úlcera gastrointestinais, ou ainda problemas no fígado ou nos rins. Anti-inflamatórios da família dos salicilatos agravam esses quadros132. O lado ruim mais comum do Salonpas tem mais a ver com a eficiência do remédio: ele pode mascarar males mais sérios, que precisariam ser investigados por um médico. ENO (SAL DE FRUTA) PRINCÍPIO ATIVO Bicarbonato de sódio, carbonato de sódio e ácido cítrico. EFEITOS DESEJADOS Quando você fica empanturrado ou estressado, o corpo aumenta a produção de ácido clorídrico no estômago e isso pode irritar a mucosa, causando queimação. Como diziam os professores de química, para neutralizar um ácido, que tem pH baixo, é preciso uma base, com pH alto. Os três ingredientes do sal de fruta reagem entre si em contato com a água e formam substâncias alcalinas, que aumentam levemente o pH, reduzindo a acidez. EFEITOS INDESEJADOS Cada envelope de Eno tem 0,85 g de sódio133. Se você tomar dois durante o dia, chegará a 1,7 g, bem próximo da recomendação máxima diária de 2 g. Some isso ao resto do sódio que você pode ter consumido na forma de refrigerante, coxinha e pizza, e você tem uma bomba, principalmente para quem tem pressão alta ou problemas do coração. Alterar frequentemente o pH do estômago ou exagerar na dose também pode provocar alcalose, que é quando o sangue e outros líquidos corporais se tornam muito básicos. Quem faz esse equilíbrio químico são os rins e os pulmões, que ficam sobrecarregados quando há desarmonia. Antiácidos ainda têm potencial de reduzir a absorção de nutrientes e de outros remédios, diminuindo o efeito deles. É que um estômago que se preze funciona bem com pH baixo. O ácido clorídrico ajuda a quebrar alimentos e medicamentos em partes menores que possam ser absorvidas pelo organismo. Tem mais. Suco gástrico não vive apenas de derreter comida e comprimido. Ele é importante para defender o corpo de micro-organismos que chegam com os alimentos e são capazes de causar doenças. É o soldado da linha de frente, a bucha de canhão. Se você come um bolovo de procedência duvidosa, o suco gástrico dá conta da maior parte dos invasores que podem chegar com a maçaroca. Se ele falhar por estar muito alcalino, o sistema imunológico é que assume a bronca. OMEPRAZOL PRINCÍPIO ATIVO Omeprazol. EFEITOS DESEJADOS Em vez de neutralizar, como fazem os antiácidos, o omeprazol e outros medicamentos da mesma família inibem a produção do suco gástrico. Com menos líquidoirritante no pedaço, surge o alívio da dor. O remédio também ajuda a prevenir e a cicatrizar lesões das mucosas. EFEITOS INDESEJADOS A segurança dos inibidores de ácido estomacal não foi estudada no longo prazo. O que existem são relatos de problemas com o uso por grandes períodos134. Um deles é o efeito-rebote. Com a inibição da produção de ácido clorídrico, o organismo tenta compensar a falta liberando mais gastrina, que estimula a produção do ácido. Se esse mecanismo é acionado muitas vezes, pode gerar excesso de gastrina. Aí, quando você deixar de tomar omeprazol depois de um tempo, uma enxurrada de ácido estomacal faz suas crises piorarem — e você volta correndo para o comprimido. É um círculo vicioso. Tem também aqueles efeitos colaterais dos antiácidos, como o aumento do risco de infecções e da dificuldade em absorver nutrientes com uso prolongado sem prescrição. O desequilíbrio das quantidades de minerais pode levar a uma baixa severa dos níveis de magnésio135. E isso pode trazer problemas ao coração. O omeprazol e outros inibidores de ácido clorídrico em geral são seguros e eficientes. Mas, como não dá para saber se você se enquadra na regra ou na exceção, melhor acompanhar com o médico os efeitos dele no seu corpo caso esses remédios sejam companheiros de longa data. NEOSORO PRINCÍPIO ATIVO Cloridrato de nafazolina. EFEITOS DESEJADOS Desentupidor de nariz não é tudo igual. Alguns são soluções estéreis, sem químicos nem conservantes, apenas com água e 0,9% ou 3% de sal (cloreto de sódio). Outros têm também o cloreto de benzalcônio. E os mais vendidos carregam um terceiro ingrediente na fórmula, a nafazolina, que é um remédio. A água com sal hidrata a mucosa e dissolve o muco, desgrudando a meleca para que ela saia dali. O benzalcônio é um conservante com ação germicida. E a nafazolina é um químico que contrai os vasos sanguíneos, diminuindo o inchaço das mucosas e facilitando a passagem do ar136. EFEITOS INDESEJADOS Os sprays de água e cloreto de sódio não têm contraindicação a não ser para quem é sensível aos componentes ou para hipertensos que usam as formulações com concentração maior de sal, de 3%. O benzalcônio pode causar alergia. A nafazolina tende a induzir tolerância, efeito rebote e dependência psicológica. É que, poucas horas depois da aplicação, o edema volta e é preciso repetir a dose. Com o tempo, o corpo acostuma e pede uma quantidade maior para entregar o mesmo efeito. Aí acontece a rinite medicamentosa, causada pela droga. Você nunca sara e ainda passa a acreditar que só vai conseguir respirar com a medicação. Provavelmente, a essa altura já estará devorando nafazolina pelo nariz, o que pode aumentar a pressão sanguínea e trazer problemas para o coração. TORSILAX PRINCÍPIO ATIVO Diclofenaco sódico, carisoprodol, paracetamol e cafeína137. EFEITOS DESEJADOS O diclofenaco é um anti-inflamatório bem popular, presente também no Voltaren e no Cataflam. O carisoprodol age deprimindo o sistema nervoso central, o que causa uma leve sedação e o relaxamento da musculatura. O paracetamol e a cafeína ajudam a reduzir a dor. A cafeína também neutraliza a sonolência causada pelo carisoprodol. EFEITOS INDESEJADOS Anti-inflamatórios como o diclofenaco, a aspirina, o ibuprofeno (do Advil) e o naproxeno (do Flanax) podem detonar as mucosas do trato digestivo. Eles inibem a ação de substâncias que, apesar de estarem envolvidas na inflamação, também ajudam a diminuir a produção de ácido estomacal e a aumentar o muco do trato digestivo. Sem esses efeitos protetores, há mais chances de desencadear náusea, vômito, diarreia, cólicas abdominais, sangramentos gastrointestinais e úlceras. Já o carisoprodol não deve ser usado com outros depressores do SNC, como o álcool. AMOXIL PRINCÍPIO ATIVO Amoxicilina138. EFEITOS DESEJADOS Antibióticos matam ou paralisam a maior parte das bactérias invasoras. As que sobram podem ser engolidas pelas células de defesa ou por outro tipo de antibiótico. EFEITOS INDESEJADOS O abuso leva à proliferação de bactérias resistentes a antibióticos, o que é um perigo para a saúde pública. É o que veremos a seguir. SUPERBACTÉRIAS Os antibióticos são um dos alicerces da civilização. Sem eles, infecção seria praticamente um sinônimo de morte. Mas, na guerra que travamos todos os dias contra as bactérias, a seleção natural não trabalha a nosso favor. É que bactérias competem por alimento contra outras bactérias. Quando o antibiótico entra, ele nem sempre consegue matar todas. Sobram justamente aquelas que, por algum acaso genético, já tinham nascido mais resistentes. Essas sobreviventes tendem a crescer e se multiplicar depois da passagem do remédio, pois não terão a concorrência de outras monstrinhas. É assim que os antibióticos criam superbactérias. Isso não acontece toda vez que alguém toma o medicamento, porque bactérias hiper-resistentes não surgem o tempo todo. Mesmo assim, elas nunca deixarão de surgir: graças a mutações genéticas aleatórias, sina de todo ser vivo, sempre haverá alguma nova superbactéria resistente a qualquer superantibiótico que venha a ser criado. Mas isso não significa que estamos de mãos atadas. Há, sim, muito o que fazer para brecarmos esse mal. Para começar, quem colabora para essa fábrica de bactérias cada vez mais fortes é o médico que prescreve antibióticos indiscriminadamente. Pior: o paciente descuidado que já recebeu várias receitas de antibiótico faz o quê quando fica doente? Vai até a caixa de sapato que abriga uma sucursal da farmácia e pega um resto de cartela de comprimidos. A nossa displicência é outra grande amiga das superbactérias. É que os antibióticos levam no mínimo cinco dias para reduzir a população de invasores. Mesmo que você se sinta incrível já na terceira dose, lá dentro a batalha pode estar só no começo. Se você parar nesse momento, terá matado só as bactérias mais fracas. As mais resistentes a antibióticos (ainda que nem sejam assim super-resistentes) verão caminho livre para se reproduzir à vontade. E sua infecção tenderá a voltar com mais força. Por causa de tudo isso, doenças que antes eram controladas estão virando versões mais poderosas de si mesmas. Como a supergonorreia, na Inglaterra, onde casos dessa doença sexualmente transmissível não respondem à medicação padrão e caminham para se tornar intratáveis. Para tentar conter o desenvolvimento das bactérias resistentes, a Anvisa determinou que os antibióticos só sejam vendidos com retenção da receita. A automedicação e a autoprescrição, de qualquer forma, alimentam uma cultura enganosa, que acredita no poder supremo dos comprimidos — uma crença ruim, já que nos faz usar remédios de forma errada e em momentos em que eles são desnecessários. Por outro lado, a fé de que um tratamento realmente funciona tem um potencial intrigante, e que tem sido cada vez mais estudado pela ciência. Veja a seguir. NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, um fenômeno estranho tem assombrado a indústria farmacêutica. Está cada vez mais difícil provar que certas drogas são melhores do que pílulas de açúcar, principalmente entre os medicamentos para dor e depressão. Pesquisas de princípios ativos geralmente são feitas com um grupo tomando a nova droga e outro, uma pílula sem valor terapêutico. É o teste duplo-cego, no qual nem o paciente, nem o médico sabem quem vai ficar com o quê. Bom, segundo um amplo estudo canadense139, o alívio dos sintomas dos voluntários que recebiam remédios para dor causada pela neuropatia, uma doença que afeta os nervos, era 27% superior ao de quem tinha tomado placebo. Isso em 1990. Em 2013, a diferença caiu para 9%. A princípio, isso poderia indicar que os remédios pioraram ao longo do tempo. Mas não era o caso. Os cientistas concluíram que quem melhorou de desempenho foi o placebo. Mas como, se placebo é pura farinha ou mero açúcar? Começaram a usar farinha integral e açúcar mascavo? Claroque não. A explicação está nas nossas cabeças mesmo. Os cientistas acreditam que o excesso de divulgação de fármacos na mídia e no boca a boca faz com que os benefícios deles acabem superestimados. Então, quando as pessoas participam de estudos, tendem a ter em mente que vão receber pílulas salvadoras de última geração. Essa crença faria com que os sintomas melhorassem, independentemente de haver lá dentro uma molécula complexa ou um punhado de farinha. Além disso, muitas empresas terceirizadas, contratadas pelas farmacêuticas para organizar os testes, chegaram a um nível de sofisticação tão grande que contam com enfermeiros dedicados a auxiliar os pacientes. Só o fato de receber atenção de um profissional da saúde no período das pesquisas já produziria bons resultados. Quando começou a pesquisar sobre antidepressivos, o psiquiatra Irving Kirsch, que é diretor associado do Programa de Estudos em Placebo do hospital de Harvard, queria entender se tomar um comprimido neutro acreditando ser uma medicação poderia mesmo trazer resultados positivos. “Se você perguntar a deprimidos qual é a pior coisa da vida, muitos vão dizer que é a própria depressão”, observou140. “O psicólogo britânico John Teasdale chamou isso de ‘ficar deprimido por ter depressão’. Se esse for o caso, então, a mera promessa de um tratamento efetivo ajudaria a aliviar a doença, porque substituiria a descrença pela esperança.” Bingo. A expectativa da cura pode desencadear uma série de ações no cérebro. Quando você pensa numa lasanha quentinha, sua cabeça já se mexe para antecipar a primeira etapa da digestão, a salivação. A boca fica cheia de água sem nem ver um prato, tal qual a de um cão de Pavlov ao ouvir o sinal da hora do lanche. Com o placebo, é como se você, em vez de antecipar a primeira etapa da digestão, produzisse sua cura — seu analgésico contra a dor, seja dor do corpo, seja dor da mente. REMÉDIO OSTENTAÇÃO Placebo é uma intervenção palpável. E nem sempre vem na forma de pílula. Há injeção placebo, com soluções neutras, acupuntura placebo, sem agulhas, exame placebo, em que o paciente é “avaliado” pelo médico ou em máquinas que não funcionam, cirurgia placebo, com pequenas incisões sem ação médica. Cada tipo tem uma ação diferente. Dois comprimidos funcionam melhor do que um. Placebos com marca de laboratório e nome fantasia dão mais resultado do que pílulas soltas. Se tiverem um aspecto de remédio caro, com holograma na embalagem e outras firulas, melhor ainda. Cápsulas, que parecem mais modernas, fazem maior efeito que comprimidos. Injeções ganham das cápsulas, porque o cérebro já sabe que seringas com agulha na ponta carregam remédio concentrado. Cirurgias dão um banho no restante — o que ajuda a explicar o relativo sucesso das “espirituais”, que simulam intervenções cirúrgicas. Pílulas de cores quentes, como vermelho, amarelo ou laranja, tendem a se sair bem nas pesquisas de estimulantes e antidepressivos. As azuis e verdes têm performance superior nos estudos de calmantes. Mas o poder do placebo não é consenso. Parte dos pesquisadores atribui a melhora do quadro de saúde ao curso natural das doenças. Por exemplo, uma gripe dura alguns dias. Nesse tempo, a dor e o mal-estar serão maiores no começo, vão diminuir até sarar por completo, com ou sem intervenção. Há também casos de melhora e cura de depressão sem pílulas ativas nem inativas, só com mudanças importantes na vida, como um emprego que traz mais propósito, o início de uma rotina de exercícios físicos, um novo amor. Mas não é só isso. “A verdade é que quem tem problemas leves e moderados geralmente sara sozinho”, diz o psiquiatra Allen Frances. “Se tomarem um comprimido, porém, vão creditar ao remédio um poder de cura que ele não merece.” Uma análise140 que Kirsch fez de 38 testes envolvendo 3 mil pacientes deprimidos checou esse dilema entre o efeito de placebos e o curso natural de algumas doenças. Quem tomou placebo teve melhora significativa e quem não recebeu tratamento algum conseguiu apenas uma leve melhora. Ou seja, o ciclo natural de eliminação do problema realmente explica algumas curas sem remédio, mas não a maior parte delas. O poder da autocura, de qualquer forma, pode estar ligado a vantagens evolutivas. Pense num soldado que tem a perna dilacerada numa batalha. Talvez ele não sinta dor na hora. As energias estão focadas nas ações de sobrevivência ao conflito, e não no ferimento. Só depois que a batalha acaba, vem o baque. Esse fenômeno de ignorar a dor é atribuído à atenção seletiva, quando as funções do organismo se voltam para uma tarefa específica, deixando outra de lado. O placebo funcionaria mais ou menos assim, desviando a atenção de algo incapacitante para algo produtivo. A hipótese é de que quando alguém toma um comprimido com qualquer coisa dentro, o cérebro entenderia que o mal está sendo tratado. Então as redes de neurônios ligadas ao processamento das emoções negativas seriam adormecidas; as relacionadas ao bem-estar passariam à ativa. Essa mudança estimularia as substâncias ligadas ao mecanismo de controle da dor e de defesa do organismo. Para o psicólogo evolucionista Nicholas Humphrey 141, professor da London School of Economics, a evolução favoreceu seres que aprenderam a gerenciar melhor os recursos naturais do corpo para lidar com repetidos ataques de doenças, ferimentos e outras ameaças ao bem-estar. Ele compara essa capacidade de controle interno com a administração de um hospital. Imagine que o diretor queira melhorar as condições da instituição que está sob seu comando. As medidas tomadas terão ligação com os problemas que impedem o bom funcionamento da casa, como custos altos, gasto desnecessário de energia, alocação malfeita de recursos disponíveis, falta de eficiência no sistema de triagem de pacientes. Essa lógica, diz Humphrey, também se aplica à autocura: a mente é capaz de trabalhar para reduzir ou eliminar processos internos, como as dores fortes, que interferem no bom funcionamento das células e diminuem as chances de sobrevivência. Mas o organismo não atuaria para limar imediatamente qualquer mal, porque muitos não são defeitos de funcionamento — são defesas. A dor impede você de se colocar em risco de novos ferimentos e estimula o repouso para a recuperação. A tristeza sensibiliza pessoas próximas para a cooperação e ajuda a resolver problemas. A febre aumenta a eficiência do sistema imunológico no combate a micro-organismos invasores. O vômito expulsa substâncias tóxicas. O medo afasta de situações de perigo. Em alguns casos, é bom se sentir mal, porque isso evita algo pior. Quando essas defesas ficam exacerbadas é que viram problema. Se a dor é forte e compromete a mobilidade, deixa o organismo mais vulnerável a ataques. A atenção se volta a ela e a capacidade de raciocínio fica comprometida. Até a vontade de viver desaparece. A febre pode evoluir para convulsões, o vômito, para a desnutrição, a tristeza, para a desconexão com outros membros do grupo essenciais à sobrevivência. Nessa hora, o cérebro pode começar a gerenciar os problemas internos e resolvê-los. “Em alguns casos, esse mecanismo não é espontâneo, mas pode ser disparado pela influência de algo externo”, afirma Humphrey. Para ele, placebo é o estímulo que ativa nossa capacidade latente de autogerenciamento. “É verdade que os efeitos podem não ser sempre consistentes ou totalmente bem-sucedidos. Mas eles certamente ocorrem com regularidade e em escala suficientes para provar que podem fazer uma contribuição altamente significativa para a saúde humana.” Placebo pode ser bom. Mas ele tem um gêmeo mau. O nome dele é nocebo. EFEITO CONTRÁRIO Testes de uma nova droga em comparação com placebos na maioria das vezes geram um fato curioso. Parte dos voluntários que recebe pílulas inativas abandona o estudo por sentir efeitos colaterais, como náusea, dor e aumento da pressão arterial, comose estivesse tomando a medicação. Como os comprimidos não têm princípios ativos que possam causar essas complicações, os cientistas atribuem esses casos à autossugestão negativa. Os participantes têm uma expectativa ruim em relação ao tratamento e realmente experimentam aquelas consequências físicas. É o efeito nocebo, o oposto do placebo. Pesquisadores italianos142 reuniram pacientes com e sem intolerância à lactose e deram a todos eles um “leite placebo”, sem lactose. O esperado era não haver reação adversa em nenhum dos grupos, mas 44% dos sensíveis à substância e 26% dos que não tinham problema com ela apresentaram sintomas gastrointestinais compatíveis com a intolerância. O efeito nocebo acontece também com remédios. Há quem sinta efeitos colaterais de um medicamento só lendo a bula. Placebo e nocebo mostram como as expectativas pessoais e a atitude dos outros ao redor influenciam o corpo e a mente. Por isso, saúde não se compra na farmácia. É uma condição global interligada com as crenças, a cultura, a qualidade das relações e a capacidade de reagir de forma positiva aos ferimentos da vida. A REALIDADE, por mais utópica que seja, é algo de que as pessoas precisam tirar férias com bastante frequência, escreveu Aldous Huxley no prefácio de uma edição de Admirável Mundo Novo. No livro, a humanidade vive em um planeta sem conflitos nem questionamentos, cheio de seres eternamente jovens, belos, saudáveis e padronizados mentalmente por uma droga universal, a Soma. Às vezes me pergunto se não desejamos, mesmo que inconscientemente, essa rotina livre demais de imperfeições e contradições. “Acabaram com a chateação, a insegurança, os altos e baixos. Todos querem estar sempre bem e corresponder às expectativas”, me disse o psiquiatra e psicanalista Miguel Chalub, professor das universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro. Estávamos falando sobre por que recorremos a cada vez mais remédios ao menor sinal de desconforto emocional. Em 2010, um grupo de profissionais brasileiros de várias áreas se uniu para criar o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e organizar encontros mensais para discutir a transformação de questões cotidianas em problemas médicos. “Agora as mulheres não podem mais ter tensão pré- menstrual, a terceira idade deve ser sexualmente ativa…”, me contou o antropólogo Rui Massato Harayama, da secretaria executiva do fórum. Isso acontece porque, desde a década de 1990, somos pautados ao mesmo tempo pela homogeneização e pelo direito à diferença. “Todo mundo tem vida pessoal, mas dentro do Facebook. Cada um tem uma nota na escola, mas voltada para um sistema único de prova, como o Enem.” Existe um padrão social — e quem foge a ele é enquadrado em algum tipo de anormalidade. Nós cedemos a essas pressões e queremos caber nos moldes, mesmo que para isso seja preciso tomar um remédio desnecessário. Quando um médico não dá a receita, encontramos outro que dê. Mas é essencial desenvolver senso crítico. “As empresas farmacêuticas têm de virar objeto de questionamento, como acontece com a indústria do tabaco. É necessário gastar menos em drogas para quem não precisa delas e mais para quem precisa. Os políticos devem ter mais medo dos eleitores do que de lobistas”, me disse o psiquiatra americano Allen Frances. “Por outro lado, podemos oferecer tratamento adequado para aqueles que sofrem com doenças severas, o que requer um misto de conhecimento e compaixão.” Talvez Huxley estivesse certo. Talvez a gente precise mesmo passar um tempo distante da obrigação de ser perfeito e deixar que cada um encontre a própria sanidade. Longe das soluções fáceis, das promessas milagrosas e da pressão social para um estilo de vida doente. REFERÊNCIAS PARTE 1 - TARJA PRETA • COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA CAPÍTULO 1 • BIG PHARMA BRASIL 1. Conselho Federal de Farmácia, com dados referentes a 2013 2. Associação Brasileira de Panificação e Confeitaria 3. IMS Health 4. Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos) com base em dados do instituto de pesquisas Close Up 5. Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro 6. Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, processo-consulta CFM nº 9.252/10 – parecer CFM nº 3/13; Conselho Federal de Medicina, 10 de janeiro de 2013 7. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) 8. Center for Medicare & Medicaid Services, disponível em www.cms.gov/openpayments 9. ANGELL, Marcia. A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos. Editora Record, 2014; e http://dadaviz.com/i/3194 10. Exame do Cremesp 2015 11. SCHEFFER, Mário; BIANCARELLI, Aureliano; CASSENOTE, Alex. Demografia Médica no Brasil 2015. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Conselho Federal de Medicina, 2015. CAPÍTULO 2 • REMEDIOLÃO 12. 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Company Misrepresented Prescription Pain Reliever to Health Care Professionals”, FDA, 10 de maio de 2007 25. “Pharmaceutical Giant AstraZeneca to Pay $520 Million for Off-label Drug Marketing”, The United States Department of Justice, 27 de abril de 2010 26. “Bristol-Myers Squibb to Pay More Than $515 Million to Resolve Allegations of Illegal Drug Marketing and Pricing”, The United States Department of Justice, 28 de setembro de 2007 27. “Novartis Pharmaceuticals Corp. to Pay More Than $420 Million to Resolve Off-label Promotion and Kickback Allegations”, The United States Department of Justice, 30 de setembro de 2010 28. SE Nissen e K. Volski, “Rosiglitazone revisited: an updated meta-analy sis of risk for myocardial infarction and cardiovascular mortality”, 2010 Jul 26; 170(14):1191-1201 29. “Risco cardiovascular do medicamento Avandia”, Alerta SNVS/Anvisa/Nuvig/Gfarm nº 04, de 29 de setembro de 2010 CAPÍTULO 3 – O PODEROSO CHECÃO 30. 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Ancient Egyptian Medicine — The Papyrus Ebers. Ares Publishers, Original from Cornell University, 1974 CAPÍTULO 6 • OVERDOSE DE DROGAS LÍCITAS 60. “CDC Vital Signs: Overdoses of Prescription Opioid Pain Relievers — United States 1999-2008”, 4 de novembro de 2011, 60(43); 1487-1492 61. “CDC Vital Signs: Prescription Painkillers Overdoses — A Growing Epidemic, Especially Among Women”, 2013 62. Sistema Nacional de Informação Tóxico-farmacológica (Sinitox), Fundação Oswaldo Cruz 63. Ministério da Saúde 64. Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade Industrial 65. BACHHUBER, Marcus A.; HENNESSY, Sean; CUNNINGHAM, Chinazo O.; STARRELS, Joanna L. Increasing Benzodiazepine Prescriptions and Overdose Mortality in the United States, 1996–2013. American Journal of Public Health. Abril de 2016; 106(4): 686–688. 66. JONES, Christopher M.; MCANINCH, Jana K. Emergency Department Visits and Overdose Deaths From Combined Use of Opioids and Benzodiazepines. 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Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro 76. MARK, Tami L.; LEVIT, Katharine R.; BUCK, Jeffrey A. Psychotropic Drug Prescriptions by Medical Specialty. Psy chiatric Services, Volume 60 Issue 9, pp. 1167-1167, setembro de 2009 77. Demografia Médica no Brasil 2015, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo PARTE 2 • TARJA VERMELHA COMO VOCÊ FUNCIONA CAPÍTULO 8 • ANSIEDADE: DE ALIADA A VILÃ 78. FRENKEL, Tahl I.; BAR-HAIM, Yair. Neural activation during the processing of ambiguous fearful facial expressions: An ERP study in anxious and nonanxious individuals. Biological Psychology 88 (2011) 188–195 79. VIANA, Maria Carmen; TEIXEIRA, Marlene Galativicis; BERALDI, Fidel; BASSANI, Indaiá de Santana; ANDRADE, Laura Helena. São Paulo megacity – um estudo epidemiológico de base populacional avaliando a morbidade psiquiátrica na região metropolitana de São Paulo: objetivos, desenho e implementação do trabalho de campo. Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 31, nº 4. São Paulo, dezembro de 2009 80. KIRCANSKI, Katharina; LIEBERMAN, Matthew D.; CRASKE, Michelle G. Feelings Into Words: Contributions of Language to Exposure Therapy. Psy chological Science, 16 de agosto de 2012 81. DE GAGE, Sophie Billioti et al. Benzodiazepine use and risk of Alzheimer’s disease: case-control study. TheBMJ 2014; 349:g5205 82. CROWLEY, Nicole A. et al. Dynorphin Controls the Gain of an Amygdalar Anxiety Circuit. Cell Reports, Volume 14, Issue 12, p2774–2783, 29 de março de 2016 83. Study: Anxiety around the world. Wearetelescopic — JWT Intelligence, 06 de setembro de 2013 84. Anxiety UK study finds technology can increase anxiety. 9 de julho de 2012 85. SALIMPOOR, Valorie N. et al. Anatomically distinct dopamine release during anticipation and experience of peak emotion to music. Nature Neuroscience 14, 257–262 (2011) 86. Goy al M et al. 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American Psychiatric Association, “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais — DSM-5”, Artmed, 5ª edição, 2014 114. Boletim de Farmacoepidemiologia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados da Anvisa, Ano 2, nº 2, jul. a dez. 2012 115. Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro 116. Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde (BRATS) 117. “Alerta terapêutico em farmacovigilância 01/2013 — metilfenidato: Indicações terapêuticas e reações adversas”, Núcleo de Farmacovigilância do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Julho de 2013 118. KYAGA, Simon et al. Mental illness, suicide and creativity: 40-Year prospective total population study. Journal of Psychiatric Research, Volume 47 , Issue 1 , 83 – 90, 2013 119. WHITE, Holly A.; SHAH, Priti. 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Bula do Omeprazol 135. “FDA Drug Safety Communication: Low magnesium levels can be associated with long-term use of Proton Pump Inhibitor drugs (PPIs)”, FDA, 2 de março de 2011 136. Bula do Neosoro 137. Bula do Torsilax 138. Bula do Amoxil CAPÍTULO 13 • EFEITO PLACEBO 139. Tuttle AH et al. Increasing placebo responses over time in U.S. clinical trials of neuropathic pain. Pain. Dezembro de 2015; 156(12):2616-26 140. KIRSCH, Irving. The Emperor’s New Drugs: exploding the antidepressant my th. The Bodley Head, 2009 141. HUMPFREY, Nicholas. The Mind Made Flesh. Capítulo 19, pp. 255- 288, Oxford University Press, 2002 142. VERNIA, Piero et al. Diagnosis of lactose intolerance and the “nocebo” effect: the role of negative expectations. Dig Liver Dis. Setembro de 2010; 42(9): 616–619 BIBLIOGRAFIA ABRAMSON, John. Overdo$ed America: The Broken Promise of American Medicine. 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S. de Faria PRODUÇÃO DE EPUB Cumbuca Studio EDITORA EDITORIAL ABRIL Alessandra Zapparoli DIRETOR EDITORIAL − ESTILO DE VIDA Sérgio Gwercman DIRETOR DE REDAÇÃO Denis Russo Burgierman DIRETOR DE ARTE Fabrício Miranda REDATOR-CHEFE Alexandre Versignassi Agradecimento Objetos de Cena K25t Kedouk, Marcia Tarja preta. / Marcia Kedouk. – São Paulo: Abril, 2016. 256 p ; il. ; 23 cm. (Superinteressante , ISBN 978-85-5579-067-6) 1. Farmacologia - Remédios. 2. Administração de medicamentos. 3. Remédios controlados. I. Título. II. Kedouk, Marcia. III. Série. CDD 615.6 2016 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA ABRIL S.A. Av. das Nações Unidas, 7221 05425-902 — Pinheiros — São Paulo — SP — Brasil Table of Contents Folha de Rosto Sumário PARTE 1 TARJA PRETA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 1 - Big Pharma Brasil Capítulo 2 - Remediolão Capítulo 3 - O Poderoso checão Capítulo 4 - Doenças S/A Capítulo 5 - Elixires milagrosos Capítulo 6 - Overdose de drogas lícitas Capítulo 7 - O manual da loucura PARTE 2 TARJA VERMELHA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 8 - Ansiedade: de aliada a vilã Capítulo 9 - A vida em preto e branco: depressão e antidepressivos Capítulo 10 - Déficit de atenção: a vida fora de foco Capítulo 11 - Obesidade: verdades, mitos e mais mitos Capítulo 12 - Automedicação: um perigo real Capítulo 13 - Efeito placebo Posfácio Créditos Folha de Rosto Sumário PARTE 1 TARJA PRETA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 1 - Big Pharma Brasil Capítulo 2 - Remediolão Capítulo 3 - O Poderoso checão Capítulo 4 - Doenças S/A Capítulo 5 - Elixires milagrosos Capítulo 6 - Overdose de drogas lícitas Capítulo 7 - O manual da loucura PARTE 2 TARJA VERMELHA - COMO A INDÚSTRIA FUNCIONA Capítulo 8 - Ansiedade: de aliada a vilã Capítulo 9 - A vida em preto e branco: depressão e antidepressivos Capítulo 10 - Déficit de atenção: a vida fora de foco Capítulo 11 - Obesidade: verdades, mitos e mais mitos Capítulo 12 - Automedicação: um perigo real Capítulo 13 - Efeito placebo Posfácio Créditos