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>>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 934 Limites e potencialidades dos profissionais, instituições e políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica infantil na Atenção Primária de Saúde: visão dos gestores Emiko Yoshikawa Egry1 , Mylene Gomes da Silva2, Karen Namie Sakata So3, Maíra Rosa Apostólico4 1 Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. emiyegry@usp.br 2 Escola de Enfermagem da USP, Bolsista Iniciação Científica PIBIC USP/CNPq. mylene.silva@usp.br 3 Escola de Enfermagem (EE) e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP). knsakata@usp.br 4 Universidade Guarulhos. maira_eeusp@yahoo.com.br Resumo. Estudo descritivo e qualitativo, cujos objetivos foram identificar e descrever os profissionais, as instituições e as políticas públicas que atuam no enfrentamento da violência doméstica infantil. Foram analisadas 17 entrevistas semiestruturadas, realizadas com gestores da Atenção Básica e os profissionais de referência na unidade de saúde para rede de proteção, em dois cenários brasileiros: Distritos Boa Vista e Bairro Novo de Curitiba/PR e Distrito Capão Redondo de São Paulo/SP. Os resultados revelaram potencialidades e fragilidades, a partir da percepção dos entrevistados. Há prevalência de fragilidades nas três dimensões – profissional, institucional e políticas -‐, tais como, despreparo e insegurança para lidar com a violência e suas formas de enfrentamento, dificuldade em realizar ações inter setoriais orquestradas e pouca efetivação das políticas públicas atreladas aos sub financiamentos. As potencialidades apontadas se referiram a atuação de uma equipe multiprofissional envolvida na avaliação das necessidades das vítimas e monitoramento dos casos notificados. Palavras-‐chave: violência, maus-‐tratos infantis, organizações, políticas de saúde, profissionais de saúde. Limits and potential of professionals, institutions and public policies to combat the child domestic violence in Primary Health Care: managers’perception Abstract. Descriptive and qualitative study, whose objectives were to identify and to describe the professionals, institutions and public policies that act to cope child domestic violence. We analyzed 17 semi-‐ structured interviews, conducted with primary health care managers and reference professionals in the health unit responsible for protection of violence, in two Brazilian scenarios: two districts of Curitiba, capital of Parana State and one district of São Paulo, capital of São Paulo State. The results revealed strengths and weaknesses according to the respondents’ perceptions. We found prevalence of weaknesses in all dimensions -‐ professional, institutional and political -‐ such as lack of preparation and insecurity to deal with violence and ways of coping; difficulty in performing orchestrated inter sectorial actions and lack of effective public policies and few financial support. The mentioned potential referred the work of a multidisciplinary team involved in assessing the needs of victims and monitoring of reported cases. Keywords: violence, child abuse, organizations, health policies, health professionals. 1 Introdução A violência doméstica infantil tem aumentado em escala exponencial, alcançando diferentes sociedades e diferentes grupos sociais. Perpassam relações interpessoais e espaços familiares, trazendo consequências sérias para o desenvolvimento infantil, assim como o comprometimento das relações familiares. A criança vítima de violência leva para a fase adulta marcas físicas e psicológicas significativas. Tem afetada sua autoestima, capacidade de solução de conflitos, respeito e tolerância, >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 935 conferindo ao fenômeno da violência um caráter cíclico (Apostólico, Hino,& Egry, 2013; Lourenço et al., 2013). Dada a complexidade do fenômeno, o seu enfrentamento requer ações inter setoriais, para além das realizadas pelo setor saúde. No Brasil, em virtude das implicações para a saúde dos envolvidos nas situações de violência doméstica infantil, a atuação do setor saúde tem sido fundamental, exercendo muitas vezes o papel nuclear de organização das ações Inter setoriais. Os profissionais de saúde que atuam na Estratégia Saúde da Família (ESF) referem insegurança e falta de qualificação para lidar com os casos de violência doméstica. Apenas a existência de políticas públicas não tem sido suficientes para garantir que os profissionais percebam o fenômeno como foco de sua prática. É frequente a queixa dos profissionais sobre o pouco conhecimento do tema, estrutura insuficiente para enfrentamento, falta de conhecimento sobre a notificação e seu fluxo, além das dificuldades de se estabelecer uma abordagem integrada e inter setorial (Lobato, Moraes, & Nascimento, 2012). O Estado, responsável por garantir os direitos e o bem estar da sociedade, necessita desenvolver diversas ações e programas que atuam em distintos setores, como educação, saúdee meio ambiente. Para isso, utiliza-‐se das políticas públicas, que são um agrupamento de ações governamentais – seja em qualquer esfera de poder – voltadas para a solução de problemas de interesse específico e público, como é o caso da violência doméstica infantil (Souza, 2006). Buscando uma melhor compreensão das necessidades percebidas pelos profissionais acerca da organização dos sujeitos e das instituições para o enfrentamento da violência, a pergunta de pesquisa é: para os gestores da Atenção Básica como e quais profissionais, instituições e políticas públicas podem auxiliar na assistência à criança vítima de violência doméstica? 2 Objetivo O objetivo do estudo foi identificar e descrever os profissionais, as instituições e as políticas públicas que atuam na assistência e no enfrentamento da violência doméstica infantil. 3 Métodos Trata-‐se de um estudo exploratório, descritivo que toma como base o discurso de gestores no nível central, regional e local da Atenção Primária em Saúde (APS), além dos profissionais de referência para rede de proteção na unidade de saúde, de dois cenários brasileiros. O estudo integra o projeto “Instrumentalizando os profissionais da Atenção Básica para o enfrentamento da violência contra a criança” (FAPESP 2011/50.932-‐1), desenvolvido por equipe de pesquisadores, cujos dados foram coletados de 2012 a 2014. Como referencial teórico e metodológico este estudo utilizará a Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC) nas suas duas primeiras etapas que consistem na captação e interpretação da realidade objetiva de um dado fenômeno (Egry, 1996). O cenário de estudo foi constituído pelos Distritos Boa Vista e Bairro Novo do município de Curitiba do Estado do Paraná, Região Sul do Brasil e Distrito Administrativo de Capão Redondo do município de São Paulo, Região Sudeste do país. Destaque-‐se que o município de Curitiba conta com as ações da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em situação de risco para a violência, tendo como objetivo contribuir de forma integrada para a redução da violência contra a criança e o adolescente, principalmente no que se refere à violência sexual e doméstica (Fonseca, Egry, Nobrega, Apostólico, & Oliveira, 2012). >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 936 A base empírica deste estudo foi constituída por 17 entrevistas dos dois municípios, sendo nove de Curitiba e oito de São Paulo, referentes aos gestores de saúde do nível central e regional, com a coordenação da unidade (gerente) e com o profissional de referência da rede de proteção na unidade de saúde. Os trechos das entrevistas utilizados neste estudo correspondem à seguinte pergunta norteadora do roteiro de entrevista: “Do seu ponto de vista, de que maneira e quais instituições, profissionais e políticas públicas podem auxiliar na assistência à criança vítima de violência e também aos seus familiares?”. Utilizou-‐se a análise de conteúdo de Bardin (2011) e como marco de referência Minayo (2004) que considera a análise qualitativa como uma maneira de ultrapassar o nível do senso comum e os significados mais aparentes e alcançar uma visão crítica frente ao objeto analisado. O projeto foi submetido e aprovado pelo do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP (CAAE 02153012.9.0000.5392), Comitês de Ética da Secretarias Municipal de Saúde de Curitiba, Fundação de Assistência Social de Curitiba (FAS) e Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo/ Coordenadoria Sul. 4 Resultados e Discussão 4.1 Caracterização dos sujeitos Todos os entrevistados são profissionais da saúde com formação universitária e atuam nas unidades de saúde, nas Coordenações Regionais e nas Coordenações de nível central da assistência, em ambos os cenários. Exceto um coordenador de referência da rede de proteção na unidade de saúde no cenário de Curitiba que possuía formação de técnico de enfermagem. A formação acadêmica dos gestores de saúde a nível central e regional, em ambos os cenários de estudo, foram bastante diversificadas: assistentes sociais, odontólogos e fonoaudiólogos. Foi observado que não há profissionais de enfermagem ocupando cargos de gerenciamento nesses níveis. Em contraposição, a maior parte dos gestores das unidades de saúde (gerentes) e profissionais referências da rede de proteção nesses locais, são enfermeiras(os). Atuam em sua área de formação acadêmica, supervisionando as famílias com histórico de violência infantil, na área de abrangência da unidade de saúde. A caracterização dos sujeitos permite detectar quais profissionais estão mais envolvidos no enfrentamento da violência nos cenários de estudo, refletindo o processo de formação e qualificação do profissional de saúde para lidar com uma demanda delicada e peculiar. 4.2 Organização do material empírico O conjunto das 17 entrevistas foi lido à exaustão e gerou três dimensões de análise, seis categorias e 114 trechos ou fragmentos que formaram o corpus de análise. A Tabela 1 sintetiza o agrupamento do corpus (trechos das entrevistas)nas três dimensões: Tabela 1. Agrupamento do corpus de análise em dimensões. Dimensões de análise Trechos das entrevistas Instituições 35 Profissionais 39 Políticas Públicas 40 Total 114 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 937 As categorias foram elencadas a partir do objetivo deste estudo, ou seja, identificar e descrever os profissionais, as instituições e as políticas públicas que atuam na assistência e no enfrentamento da violência doméstica infantil. Logo, detectar essas peculiaridades requer uma análise minuciosa, que revele as potencialidades e fragilidades de cada dimensão. Tabela 2. Agrupamento do corpus de análise nas categorias por número de sujeitos. Categorias N.º de sujeitos % Fragilidades das instituições 13 19,4 Fragilidades das políticas públicas 13 19,4 Potencialidades dos profissionais 12 17,9 Fragilidades dos profissionais 12 17,9 Potencialidades das instituições 10 14,9 Potencialidades das políticas públicas 7 10,5 Total 67 100 Destaca-‐se que nem todos os entrevistados responderam a todas as dimensões ou todas as partes do questionário, apresentando dificuldade na ponderação das questões quando elas se encontravam mais distante de sua realidade de trabalho. Percebe-‐se aqui um número maior de sujeitos discorrendo sobre as fragilidades das instituições (n=13) e das políticas públicas (n=13), sendo para a dimensão dos profissionais um número igual presente nos discursos dos gestores entre as fragilidades (n=12) e as potencialidades (n=12). Isso indica que na percepção dos entrevistados as fragilidades dessas três dimensões (profissionais, instituições e políticas públicas) ainda superam suas potencialidades. Tabela 3. Agrupamento do corpus de análise em categorias por número de trechos. Categorias N.º de sujeitos % Fragilidades dos profissionais 24 21,3 Fragilidades das políticas públicas 22 19,2 Fragilidades das instituições 20 17,4 Potencialidades das políticas públicas 18 15,5 Potencialidades das instituições 15 13,3 Potencialidades dos profissionais 15 13,3 Total 114 100 Observa-‐se que, ao serem considerados os trechos dos discursos dos entrevistados, a maior parte ainda se concentra nas fragilidades das três dimensões. 4.3 A dimensão dos profissionais Dentre os 17 entrevistados, 12 citaram trechos que correspondem à categoria das Potencialidades dos Profissionais, e 12 citaram trechos referentes à categoria de suas Fragilidades. Do total de 114 trechos analisáveis, 15 pertencem à categoria das Potencialidades dos Profissionais, retratando a importância de uma equipe multiprofissional envolvida e sensível acerca do tema violência infantil. Foi destacada a importância da presença de todos os profissionais para avaliação da criança, mostrando que eles podem contribuir para o enfrentamento da violência infantil. O profissional atento e capacitado tem por responsabilidade ajudar essa criança a sair da situação de violência, atuando desde a notificação até o desfecho, e podendo ainda ser um multiplicador de seus conhecimentos na área: >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 938 "Eu acho que a presença de um psicólogo é fundamental, a presença de um assistente social, enfermeiro, médico, uma equipe multidisciplinar para avaliar qual a necessidade da criança." (SUJ 04) Outros estudos reiteram, enquanto potencialidades relacionadas aos profissionais, poder atuar em integração com outros trabalhadores e outros setores (escolas, professores, diretores de escolas, polícia, vizinhos), bem como, contar com uma rede de proteção integrada e ter treinamentos, capacitações e ou formação para lidar com as situações de violência infantil. (Moreira et al., 2014; Schols, Ruiter, & Ory, 2013) Quanto às Fragilidades foram encontrados 24 trechos que reforçaram a falta de capacitação e preparo do profissional e a ausência de segurança e sigilo dos profissionais na notificação de casos. São questões que refletem o desconhecimento quanto à denúncia e ao fluxo de notificação para vigilância e monitoramento dos casos. Muitas vezes, consideram a retirada da criança do âmbito familiar como o primeiro procedimento, realocando-‐a para um abrigo. Isso pode provocar consequências tão desastrosas quanto a própria violência sofrida no ambiente doméstico. Em geral, os profissionais visam a notificação, acompanhamento e encaminhamento da criança e da família para as instituições de apoio social. A dificuldade mais citada é a falta de capacitação e preparo dos profissionais de saúde, sendo necessária uma pessoa de referência para lidar com a questão da violência para não se perder o monitoramento e acompanhamento da criança e de sua família. Há também a falta de comunicação entre os profissionais de saúde com outras instituições públicas e demais equipamentos sociais que poderiam prestar algum tipo de auxílio, seja para a criança ou para o agressor: "[...] porque entendemos que para lidar coma situação são pessoas que devem estar realmente preparadas, capacitadas, treinadas. Ter o profissional, ter o serviço, depende das políticas públicas." (SUJ 30) A capacitação dos profissionais para enfrentar casos de violência doméstica infantil remete às dificuldades encontradas pelos mesmos, que perpassam o despreparo profissional na identificação dos casos, a falta de amparo institucional, a escassez de trabalhadores, a não constatação da violência como agravos de saúde, os sentimentos de impotência e banalização da violência (Moreira et al., 2014; Aragão et al., 2013; Vecina & Machado, 2010). Essas dificuldades que os profissionais de saúde se deparam comprometem a atuação profissional, visto que não notificando os casos suspeitos e os confirmados de violência, situar-‐se-‐iam contrariando o seu compromisso social e moral com a sociedade em preservar os direitos infantis previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Evidenciam-‐se lacunas importantes: falta fluidez no encaminhamento dos casos detectados e a carência de interação entre o serviço de saúde e os órgãos de proteção à criança. A inter setorialidade ocorre apenas no encaminhamento das vítimas, e não no acompanhamento posterior das famílias ou da criança São destacadas ainda a falta de formação profissional específica para o atendimento de ocorrência da violência doméstica infantil, falta de investimento para a instrumentalização dos profissionais e ausência de protocolos instituídos que estabeleceriam os fluxos de atendimento: "Porque se eu deixar isso [a denúncia] na mão do enfermeiro e do médico certamente haverão desfechos muito complicados e não porque o profissional está de má fé ou tem pouco interesse em resolver o problema, nada disso, não é o profissional que é ruim é a formação dele que não é específica para atender a esse tipo de problema. Então eu acho que o investimento em instrumentalizar o profissional, porque é fácil dizer que o cara tem a obrigação de denunciar a violência, mas ele não vai denunciar a violência e vai embora do serviço, ele vai denunciar a violência e vai continuar atendendo essa família e ele vai continuar nessa comunidade." (SUJ 33) >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 939 As dificuldades apresentadas anteriormente, decorrentes da falta de preparo dos profissionais de saúde acerca do tema, confirmam a importância de integrar na formação acadêmica, a aproximação do estudante com o tema da violência doméstica infantil e o incentivo à participação da universidade na educação continuada dos profissionais nos diferentes campos de estágio curricular. Também faz-‐ se necessária a estruturação de uma rede efetiva de acolhimento e enfrentamento da violência, assim como a construção de protocolos que definam papéis e responsabilidades, com o intuito de assegurar a notificação, o monitoramento e a resolubilidade, assim como criar ou melhorar as medidas de proteção às crianças. A falta de interesse, empatia e paciência dos profissionais com os perpetradores também é retratada. Em alguns casos os profissionais da saúde são agredidos verbalmente, chegando a ser ameaçados e nessas situações eles mesmos precisam recorrer à ajuda de profissionais de segurança. "Mas tem pessoas muito desumanas, mal humoradas, que não quer saber do outro, que fala que também teve uma vida desta forma, chama de vagabundo, manda trabalhar, então, dentro do setor público quando pede ajuda, encontra pessoas desta forma. Em outros setores da saúde pública, não na unidade de saúde. Não tem uma coisa de se preocupar muito com o outro, se importar mesmo que isto aconteça." (SUJ 22) A carência de sigilo na notificação é algo grave e que impede a ação de muitos profissionais. Ameaças e calúnias são constantes pelos perpetradores, que quando denunciados, revoltam-‐se com o acontecido e desejam que aquela notificação não siga para o Conselho Tutelar: "Mas eu acho que deve ter um sigilo. A falta do sigilo também é uma coisa complicada porque às vezes é notificado, chega para o Conselho Tutelar, aí o pai ou a mãe são chamados e falam que foi a pessoa daquela unidade, eles citam o nome da pessoa que ali notificou. Daí, a pessoa toma isso como pessoal. Sei de relatos de algumas pessoas que têm falado que foi ameaçada de morte." (SUJ 04) Assim, verifica-‐se que os impactos da violência na notificação dos casos, está relacionado ao medo de se envolver com indivíduos com agressivo e violentos, o receio de represálias e de vingança. Esta insegurança pode interferir no funcionamento do serviço de saúde, na medida em que contribuem para a atuação paralisante dos profissionais (Andrade et al., 2011). Essa dificuldade é ampliada quando se coloca a percepção de gênero: a enfermagem é uma profissão predominantemente exercida por mulheres (Grüdtner, 2005). Em outras palavras, a falta de uma política institucional clara de proteção dos trabalhadores da saúde das unidades acrescida da dominação masculinaaponta-‐se como presumível fonte do medo e inquietação em relação aos agressores familiares, motivando o silêncio e cooperando para a continuidade da situação de violência (Oliveira & Fonseca, 2007). Há também, a complexidade do tema tratado, uma vez que caracteriza como uma questão desafiadora na rotina de trabalho dos profissionais de saúde. 4.4 A dimensão das instituições Dentre as 17 entrevistas, 13 gestores de saúde citaram trechos que correspondem à dimensão das Fragilidades das Instituições e 10 gestores citaram trechos referentes à dimensão de suas Potencialidades. Dos 114 trechos gerados, 20 trechos foram classificados na categoria de Fragilidades das Instituições, a qual relata as carências de informação das organizações à respeito do tema. Por outro lado, 15 trechos pertencem à categoria das Potencialidades das Instituições, mostrando que existem organizações que auxiliam no enfrentamento da violência doméstica infantil. >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 940 As Potencialidades foram relatadas por dez entrevistados. Dentre elas está representado, por exemplo, o suporte para prevenção da violência que as instituições não governamentais oferecem à criança: "O que eu vi até hoje que deu certo são centros pra prevenção da violência com apoio de instituições até não governamentais, mas é uma coisa assim para no futuro tentar alguma parceria, mas vai estar envolvendo área saúde, área educação e FAS [Fundação de Ação Social de Curitiba]." (SUJ 16) As fragilidades das Instituições foram citadas por 13 entrevistados, tais como, as fragilidades que as instituições apresentam no acompanhamento das crianças e suas famílias que pertencem aos grupos vulneráveis para a violência. Geralmente, ocorre falta de articulação entre os equipamentos sociais, precária atuação com os agressores, demora no fluxo de atendimento e escassa atuação de instituições governamentais públicas: “Por exemplo, nós temos uma Guarda Municipal, e a Guarda Municipal não participa. Mas a Guarda está com seus carros, motos, agentes de segurança em frente às escolas, praças, parques, equipamentos públicos, nas ruas. Ela devia ser um participante ativo. Só para dar um exemplo, o esporte talvez pudesse estar participando porque em algumas situações você pode oferecer opções para a retirada da criança de um ambiente violento. Então eu acho muito difícil.” (SUJ 02) O fragmento acima explora um dos obstáculos que as instituições se deparam quando o assunto é o enfrentamento da violência doméstica infantil, ou seja, a dificuldade em atuar em ações que sejam inter setoriais. No trecho abaixo, é possível perceber a ausência de uma rede mais articulada para atuar de forma mais efetiva no enfrentamento: "Então eu acho que em termos de instituição de locais, não gostaria de citar nenhum. Mas assim, que tivesse quem sabe uma rede mais articulada mesmo. Onde a gente pudesse ter mais opções de locais para encaminhar, de locais para o acompanhamento, porque às vezes a unidade de saúde não dá conta." (SUJ 39) 4.5 A dimensão das políticas públicas Dentre as 17 entrevistas realizadas com os gestores de saúde, 13 deles relataram sobre as Fragilidades das Políticas Públicas que atuam sobre a violência doméstica infantil. Sete relataram sobre as Potencialidades desta dimensão. Dos 114 trechos analisados, 22 são referentes às Fragilidades das Políticas Públicas e 18, às Potencialidades. As Potencialidades foram expostas por meio de trechos que reafirmaram a importância das políticas públicas referentes a diversas para se fazer o enfrentamento da violência doméstica infantil, sendo esta uma preocupação de ordem inter setorial. “Então, acho que passa por todas as políticas. Porque eu acho que a violência está ligada a uma série de questões, aquela coisa que falamos lá no começo, é muito multifatorial” (SUJ 40) Mais investimentos em processos de formação, avaliação, supervisão e apoio aos profissionais, poderiam fortalecer o protagonismo e o envolvimento dos diversos setores e trabalhadores na superação das contradições presentes nas políticas públicas entre o que está previsto e o que é possível de operacionalização (Moreira et al., 2014). Na percepção dos entrevistados, uma instituição familiar estruturada, com responsáveis que possuem perspectiva de vida e boas condições financeiras são tidos como condições favoráveis ao combate a violência doméstica infantil. Sabendo-‐se disso, as parcerias de instituições com políticas >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 941 públicas que visem retirar famílias de extrema pobreza, vinculando-‐as a programas sociais, são de grande avanço. Mas esta é uma visão parcial pois a violência doméstica infantil não pode ser explicado como resultante de uma ou duas causas, ao contrário, ele é complexo e socialmente determinado em suas manifestações.Portanto, é preciso considerar as condições de vida e trabalho no atual modo de produção capitalista às quais estas famílias estão submetidas, o que irá determinar as condições de enfrentamento da violência vivenciada. Caso contrário, ações pontuais e de ordem individual apenas reforçarão o sentimento de culpa pessoal pela violência sofrida e não mudarão as estruturas geradoras da violência doméstica infantil. “Está sendo feito todo um trabalho, junto à subprefeitura, para trazer essas pessoas de extrema pobreza para que elas possam estar vinculadas a programas sociais, isso pode ser uma forma. Acho que também dever estar muito ligado à educação para as pessoas terem um horizonte. Hoje, vemos muitas pessoas que a vida não leva à perspectiva nenhuma, isso leva a um sofrimento mental muito grande e eu acho que isso também é um grande gerador de violência. Na medida em que você não tem perspectiva de nada, que você não almeja nada, o que você pode almejar é a sua vida de hoje somente. A perspectiva de vida é muito ruim individualmente, aí você não tolera nada, então, você é gerador de violência.” (SUJ 40) Sendo assim, salienta-‐se a importância na luta contra a violência infantil, rever e compreender melhor as múltiplos determinações que colaboram para a ocorrência da violência contra a criança, bem como as suas distintas formas de expressão e consequências, auxiliando para direcionar medidas e políticas peculiares de prevenção e intervenção, que dedicam-‐se a família e incumbindo não apenas o Estado, mas à sociedade em geral, a função de proteger a criança (ABRAPIA, 1992). Em termos de política de estado, no Brasil, já existe a garantia de proteção: o artigo 4° do ECA, estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos previstos no Estatuto” (ECA, 1990). Quanto às Fragilidades das Políticas Públicas, são citadas a escassez de políticas que pudessem agilizar os encaminhamentos, a falta de efetivação destas e o sub financiamento: “E tem políticas. Existe legislação preconizando todos aqueles direitos, mas o que a gente tem é a falta da efetivação.” (SUJ 01) “As políticas públicas podem auxiliar acho que dando um suporte melhor que não tem, às vezes para encaminhar é tanta notificação que tem que esperar, então acontece isto, não tem aquela atenção, é muito burocrática em alguns momentos, não é uma coisa com tanta facilidade como notificou e já resolveu, precisa de uma reforma política, não existe muito investimento nesta área, assim como não existe na área de educação no nosso país e a preocupação com estas crianças que são vitimizadas.” (SUJ 22) Entende-‐se que a importância do desenvolvimento de políticas públicas efetivas está interligada ao monitoramento do problema da violência doméstica infantil, com o objetivo de avaliar programas de prevenção e de assistência, gerar hipóteses para estudos de investigação e servir para a tomada de decisão. Apesar das iniciativas desenvolvidas até o momento relativamente ao enfrentamento dos maus-‐ tratos na infância e adolescência, é necessário destacar a importância de se intensificar ações de prevenção, seja na eliminação ou redução dos fatores de risco, na identificação de crianças em situação de risco ou acompanhamento da vítima e de seu agressor (Martins & Jorge, 2010). Além disso, é preciso ampliar os projetos interventivos incorporando a percepção das vulnerabilidades das famílias em termos de reprodução social decorrente dos processos de inserção na produção social da riqueza produzida. (Egry, Apostolico, Albuquerque, Gessner, & Fonseca, 2015). Ademais, há necessidade de integração dos diversos segmentos sociais, viabilizando discussões e reflexões entre os diferentes setores que possam acarretar em políticas e estratégias preventivas, diagnósticas e >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 942 terapêuticas, numa ampla rede de apoio social e interinstitucional (Martins & Jorge, 2010). As limitações do presente estudo se referem à escolha dos sujeitos, que foram todos da área da saúde, em estudos posteriores estas mesmas indagações podem ser feitas aos serviços de assistência social, às escolas e ao sector judiciário. 5 Conclusão O estudo mostrou que os gestores quando indagados acerca do papel institucional e político no enfrentamento da violência doméstica infantil conseguem detectar amplamente as dificuldades ou as fragilidades nas três dimensões, tais como, o despreparo e a insegurança para lidar com a violência e suas formas de enfrentamento, a dificuldade em realizar ações inter setoriais e mais articuladas e a pouca efetivação das políticas públicas atreladas aos sub financiamentos. A identificação das potencialidades requer uma análise minuciosa do objeto de estudo. As potencialidades estão relacionadas a atuação de uma equipe multiprofissional comprometida e capacitada na avaliação das necessidades das vítimas, assim como a supervisão doscasos notificados. A comunicação entre os profissionais e as instituições devem se fortalecer para que a criança bem como sua família sejam acompanhado ao logo de sua vida. Uma melhor formação ou o preparo do profissional para lidar com o fenômeno da violência pode resultar em uma atuação mais adequada, clara e segura para identificar e intervir no fenômeno da violência doméstica infantil. Tornar visível o fenômeno e compreender os seus determinantes podem ajudar tanto na atenção às crianças e suas famílias, incluindo os agressores, quanto em atuações mais articuladas dos profissionais, instituições e políticas públicas. Estudos em continuidade deverão ser realizados para conhecer melhor a vulnerabilidade infantil à violência e as formas efetivas de enfrentamento existentes. Agradecimentos. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro (Auxílio à Pesquisa processo nº 2011/50.932-‐1 e Bolsa de Pós-‐Doutorado processo nº 2012/06.714-‐2). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelas bolsas de Iniciação Científica e Produtividade em Pesquisa. Referências Andrade, E. M., Nakamura, E., Paula, C. Silvestre., Nascimento, Rosimeire., Bordin, I. A., & Martin, Denise. (2011). A visão dos profissionais de saúde em relação à violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saúde e Sociedade [Internet], 20(1), 147-‐155. Apostólico, M. R., Hino, P., & Egry, E. Y. (2013). Possibilities for addressing child abuse in systematized nursing. Revista Escola de Enfermagem da USP, 47(2), 320-‐327. Aragão, A., Ferriani, M., Vendruscollo, T., Souza, S., & Gomes, R. (2013). Abordagem dos casos de violência à criança pela enfermagem na Atenção Básica. Revista Latino Americana Enfermagem, 21(spec), 172-‐1179. Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA). (1992). Maus-‐tratos contra crianças e adolescentes: proteção e prevenção. 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