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02 - Estudos Sobre Daniel - Português

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ESTUDOS SOBRE DANIEL
Origem, Unidade e Relevância Profética
Todos os direitos reservados para a UNASPRESS. Não é permitida a cópia
total ou parcial sem autorização prévia dos editores.
Editoração: Renato Groger
Revisão: Rodolfo Kalschne e Felipe Carmo
Programação visual e capa.'Fábio Fernandes
".
Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Estudos sobre Daniel : origem, unidade e relevância profética /
Frank B. Holbrook, editor; tradução Francisco Alves de Pontes,
Fernanda Caroline de Andrade Souza. - Engenheiro Coelho,
SP : Unaspress -Tmprensa Universitária Adventista, 2011. - (Série
Santuário e Profecias Apocalípticas ; v. 2)
Título original: Symposium on Daniel : introductory and
exegetical studies.
ISBN 978-85-89504-17-1
1.Adventistas do Sétimo Dia - Doutrinas
2. Bíblia. A.T. Daniel - Profecias 3. Teologia
I. Holbrook, Frank B. 11.Série.
09-11102 CDD-224.506
Índices para catálogo sistemático:
1. Daniel : Livros proféticos: Bíblia:
Interpretação 224.506
1a edição
1a impressão - 2009 - 2.000 exemplares
2a impressão - 2011 - 500 exemplares
Centro Universitário Adventista de São Paulo
Salvo outra indicação, as citações escriturísticas ao longo deste volu-
me são extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada, 2a edição,
1993, da Sociedade Bíblica do Brasil.
CAPÍTUW 1
AUTORIA, TEOLOOIA E PROPÓSITO DE DANIEL
Arthur J. Ferch
ORIGENS DO SEGUNDO OU SEXTOSÉCUW?
Sinopse editorial. Atualmente, estudiosos sustentam duas posições contrastan-tes sobre as origens do livro de Daniel. O ponto de vista minoritário (adotado
1unto pela sinagoga quanto pela igreja até o século 19) pode ser rotulado como a
u-se exílica. Ela aceita como válida o testemunho do próprio livro de que os even-
1()~ narrados têm lugar durante o cativeiro babilónico dos judeus do sexto século
:1.C. Consequentemente, atribui a autoria de todo o livro (tanto suas narrativas
11isróricas quanto suas visões proféticas) a Daniel, o cativo judeu que ocupava
11111cargo importante nos reinados sucessivos de Babilônia e Pérsia da época de
Nabucodonosor a Ciro.
O ponto de vista majoritário, designado algumas vezes de tese macabeia, é pro-
1IIIwido por estudiosos da linha crítico-histórica. Ela acredita que o livro de Daniel
II li escrito (se não todo, ao menos substancialmente) durante a perseguição feita
Ii( Ir Antíoco IV Epífãnio aos judeus da Palestina, no segundo século a. C. Deixando
dI' 1:1(10o testemunho do livro, os reconstrucionistas primeiramente propuseram
,!II\' () documento foi escrito por um autor desconhecido do segundo século, que
.1~/1111lliu o lugar de estadista-profeta do sexto século. Suas supostas previsões eram
hnplcsmente eventos históricos registrados após seus acontecimentos.
( ")estudo contínuo tem forçado um reexame dessa posição. A visão atual é a de
'lI\(' II trabalho desenvolveu-se no decorrer de um longo período de tempo (come-
1,llIld(l com o início do cativeiro babilõnico) e passou pelas mãos de vários autores/
I .luurcs, Sua estrutura final, uma fusão das partes históricas (caps. 1-6) e proféticas
(I IljlS. 7-12) teve lugar durante as lutas do segundo século entre judeus-na Palestina.
\~fd m , susrcn ta-se que o livro foi designado para fornecer significado e encoraja-
1IIII\I\) ;\OS judeus e seus líderes macabeus no conflito nacional com Antíoco IV.
A I ('S\, 1lI;\ct!wia defende sua posição com três pilares principais: (1) inexatidões
liI~l,11\(';\;; lIll\' Sllgl'ITI11que () documento foi escrito muito depois de o conheci-
1111111111:\('111:11dI' IIIll \'VI1;'lriodo Sl'Xt'O século ter sido perdido e esquecido; (2) o uso
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANJEL
feito pelo autor de estrangeirismos persas e gregos, os quais novamente sugerem
uma data posterior para sua composição; e (3) paralelos próximos entre Daniel 11
e os eventos na Palestina entre 168-165 a.c. Em resposta a essas alegações, deve-se
observar que descobertas arqueológicas e a pesquisa de anos recentes têm destruido
amplamente os argumentos contra a integridade histórica de vários temas no livro.
Estudiosos conservadores têm demonstrado apropriadamente que o autor do livro
de Daniel deve ter vivido durante o período do sexto século que ele descreve.
Os argumentos linguísticos (embora não inteiramente respondidos até este
momento) da mesma forma têm sido consideravelmente emudecidos. Os estran-
geirismos persas mostraram ser palavras do persa antigo (principalmente títulos
oficiais) que Daniel teria adquirido naturalmente à medida que trabalhava com
seus colegas persas. Vinte dos 15 estrangeirismos gregos alegados provaram ser
agora de origem persa, e não mais dão suporte à alegação de uma composição do
segundo século.
O leitor desatento pode ver certas semelhanças entre o capítulo 11 e a situação
histórica na Palestina sob o governo de Antíoco IV. No entanto, observa-se que as
fontes históricas são limitadas (três documentos principais) e que apresentam tal
díscordância uma da outra, que é impossível fazer, a partir delas, uma reconstru-
ção histórica consistente e acurada. Além disso, as diferenças entre o capítulo 11
e as fontes históricas são demasiado grandes para defender a suposição de que os
dois são relatos paralelos que descrevem os mesmos eventos.
Chegamos à conclusão que a tese macabeia cria mais problemas do que solu-
ciona, portanto é suspeita. A tese exílica, que leva a sério o que é dito no livro de
Daniel, é mais satisfatória e convincente.
ESBOÇO DA SEÇÃO
1. Introdução
2. A tese exílica
3. A tese macabeia
4. Avaliação da tese macabeia
5. Resumo
INTRODUÇÃO
I~um ditado axiomático que as pressuposições de um pesquisador influenciam
~'I:IS('(mclusocs. Isso se tem mostrado verdade principalmente na avaliação da origem,
ESTUDOS SOBRE DANIEL
estrutura e teologia do livro de Daniel pelos eruditos. Neste capítulo, desejamos fazer
uma breve apresentação e avaliação das pressuposições de alguns eruditos da linha
crítico-histórica na atualidade em contraste com uma abordagem conservadora.
A TESE EXÍLlCA
Até o século 19 de nossa era tanto a sinagoga como a igreja aceitavam as
declarações do livro de Daniel. De acordo com elas, o escritor dos relatos autobio-
gráficos (caps. 7-12) é idêntico a Daniel que, de acordo com a primeira metade do
livro, foi levado como prisioneiro judeu para a Mesopotâmia. Durante o período
do exílio, ele e vários colegas judeus foram promovidos a altas posições adminis-
Irativas a serviço dos governos neobabilônico e medo-persa.
Esse mesmo Daniel professou ter tido várias visões e sonhos dados por Deus,
(lS quais, juntamente com suas interpretações, descreviam eventos que se esten-
diam desde sua era contemporânea até o tempo quando os impérios humanos
n-rão chegado ao seu fim e o reino de Deus terá sido estabelecido.
Essa convicção com relação ao livro de Daniel, sustentada por quase dois mi-
I('nios tanto por judeus como por cristãos, é apoiada pelas afirmações explícitas
do livro (1:1-2,21; 2:1; 7:1-2; 8:1; 9:1; 10:1, etc.). O ponto de vista foi chamado
,Iv tese exílica porque data a origem do documento no sexto século a.C. A partir
.lcssa perspectiva, a origem, autoria, composição e propósito do livro estão razoa-
vclmente claros.'
5
A TESE MACABEIA
De acordo com K. Koch, a tese exílica, que considerou as declarações do livro
dI' Ibniel ao pé da letra, tem sido desafiada desde 1890 pelos estudiosos da linha
I1 IIk\l-histórica. Ao seguirem Porfírio, o inimigo neoplatonista do cristianismo
1111u-rcciro século d.C.,z os estudiosos da linha crítico-histórica pressupõem que
II 11\'1'0de Oaniel foi composto (se não totalmente, ao menos as partes principais)
lllll:lIl1l';) perseguição religiosa aos judeus por Antíoco IV Epifânio.
A fim de manter essa sugestão, os estudiosos têm que se desviar dos claros
I1'11'1l11lnhos fornecidos pelo livro de Daniel, admitir não apenas sua autoria des-
1111.111'1id:I, mas r.unbcrn conjccturar um propósito e teologia que reflitam a situ-
11..!t1 I I lI11Vlllpor:lnca do segundo século a.C.Essa abordagem alternativa ao livro
.\1 I ).IldI'IIIlIIHHISl' :lgnra \l ponto de vista majoritário e é chamada por Koch de
I1 " 111.11. til(' i:1.
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
De acordo com a tese macabeia, o livro de Daniel foi escrito (ao menos em
parte) e/ou editado por um autor desconhecido do segundo século a.c. que se
colocou como um estadista-profeta do sexto século chamado Daniel. Esse escri-
tor/ editor tinha a pretensão de oferecer previsões genu inamente inspiradas, as
quais, na realidade, não eram nada mais que narrativas históricas sob o pretexto
de previsões proféticas.
O ponto de vista majoritário na atualidade propõe que a verdadeira época da
composição final pode ser determinada. Sugere-se que certas pistas históricas podem
ser encontradas dentro do livro, e que é possível discernir o ponto exato onde o autor
passa da história verdadeira para "expectação imaginária" e falsas previsões futuras.
Assim, A. Lacocque sugere que em Daniel 11 o autor: (1) dá evidência de que
tem conhecimento da profanação do templo de Jerusalém por Antíoco IV Epífãnío
(7 de dezembro de 167 a.C« conforme 11:31); (2) faz alusão à revolta dos macabeus
e às primeiras vitórias de [udá (166 a.Cc), mas (3) não tem conhecimento da purifi-
cação do templo por Judas (14 de dezembro de 164 a.C}, nem da morte de Antíoco
(outono de 164 a.C}, A morte de Antíoco, no entanto, é erroneamente predita e
descrita em 11:40-45. Lacocque conclui que "podemos ao menos situar a segunda
parte do livro de Daniel (caps. 7-12), portanto, com ampla certeza em 164 a.C."3
Uma vez que estudiosos da linha crítico-histórica desprenderam o livro de
Daniel dos ancoradouros de declarações bíblicas explícitas, foram impelidos a
conjecturar novas teorias de composição e propósito. Além disso, questões refe-
rentes à estrutura e à teologia tiveram agora que ser analisadas de uma perspectiva
totalmente diferente.
Até o momento em que o ponto de vista prevalecente era o de que o livro veio
das mãos de um autor do sexto século, questões de autoria, composição, estrutura
apresentavam poucos ou nenhum problema. Tudo isso agora mudou com a intro-
dução da tese macabeia. Em 1975, J. J. Collins reconhecia que "a composição do
livro de Daniel tem fomentado uma ampla confusão de opiniões de estudiosos"."
Num estágio inicial da pesquisa crítico-histórica, prevalecia a opinião de que o
livro de Daniel originou-se in tato no segundo século a.C. Estudiosos da atualidade
são a favor de um longo processo de desenvolvimento do livro, iniciando na mes-
ma época do começo do exílio babilónico e findando cerca de 164 a.c.
J. G. Gammie defende, entretanto, que vários aspectos no livro de Daniel dis-
cordam da teoria que permite que o contexto macabeu (o estágio final na compo-
sição do livro) domine a interpretação do todo. Ele argumenta que "a única e mais
eminente fraqueza da teoria macabeia de interpretação é que o rei nos capítulos 1,
2, ), 4 e 6 é estranhamente amigo e simpático com os jovens judeus membros de
SlI;\ corte. Esse retrato dificilmente se ajusta aos últimos dias do odiado heleniza-
dOI, ÂIlI!OCO IV Epifãnio.:"
ESTUDOS SOBRE DANIEL
Este e outros fatores que serão mencionados depois instam os estudiosos a con-
siderarem a visão de que houve um crescimento no texto bíblico de Daniel a partir
de um estágio original (possivelmente oral) por meio de várias redações de capítu-
los individuais antes de ocorrerem a reunião dos capítulos 1-6 e a fusão das duas
metades do livro." O que fornece ao menos uma medida de unidade para as várias
porções do livro é a onipresença do tirano final, identificado como Antíoco.?
A teoria macabeia de interpretação também tem deixado uma marca indelé-
vel nas abordagens atuais da teologia do livro de Daniel. De acordo com Koch, a
pesquisa crítico-histórica tem procurado, nos últimos 200 anos, destruir a crença
centenária de que Daniel apresenta um esboço bem coordenado da história mun-
dial passada e futura, no qual a própria situação histórica do autor se apresenta
apenas incidentalmenre."
Estudos-chave atuais restringem a relevância do livro de Daniel à metade da
década do conflito entre círculos palestinos leais a Yahweh e seus suseranos selêu-
cidas. Consequentemente, vários estudiosos postulam que a teologia de Daniel re-
flete o conflito entre o judaísmo dos últimos anos - identificado com frequência
como uma religião determinada pela Torá - e o helenismo.
Recentemente, no entanto, Koch questionou outra vez se o livro é realmente
uma das testemunhas eminentes da disputa entre Atenas e Jerusalém. Ele indaga
se o livro de Daniel reflete lutas de poderes político-religiosos entre tobíadas [fac- 7
ção apoiadora das tendências helenistas] e oníadas [partidários do sumo sacerdote
Onias 1Il, defensor do judaísmo] ou testifica de uma onda de religiões introduzi-
das a partir de Babilõnia.?
Se a ênfase principal da teologia de Daniel é dar significado e encorajamento
às lutas religiosas dos judeus na metade do segundo século, então todo o aspecto
teológico deve ser considerado de uma perspectiva totalmente diferente do que a
sugerída pela tese exílica. As visões, nada mais que história escrita depois do acon-
rccimento, são dificilmente evidências de providência, previsões e supremacia divi-
nas. O esquema do império é pouco mais que um dispositivo literário designado a
contrastar poderes pagãos mundiais, liderança humana e reinado com Deus.
Da mesma forma, os períodos de tempo não mais transpõem os séculos. São
nada mais que uma série de términos sucessivos que se estendem por menos de
quatro anos, estabelecidos por um círculo cada vez mais frustrado e perseguido
lk fiéis israelítas esperando por libertação. O "tempo do fim" é esperado ime-
diatamente - no máximo 1.335 dias à frente - quando o blasfemo tirano será
eliminado. É evidente que a tese macabeia aguarda um fim imediato e não um
fi 1\1 distante (eschaton).
Pela inrcr prctnção rnacabeia, o vilão desafiador e blasfemo (dos capítulos 7, 8
\. 11) (, Ant íoco IV, c urna dupla aplicação deste símbolo tanto ao soberano sírio
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
como ao anticristo está "fora de questão".1O A. A. Di Lella condena qualquer apli-
cação dupla como "insensatez exegética e inutilidade religiosa"." Nesse contexto,
a ressurreição é interpretada fundamentalmente como a promessa de reparação e
vindicação dos judeus do segundo século, que, a despeito da abrangência e severi-
dade da perseguição, continuam leais à aliança.'?
A mudança de opinião com relação à origem do livro tem levado a uma rede-
finição de seu propósito. Dependendo de uma aplicação mais ou menos rígida da
tese macabeia quanto à origem do livro, intérpretes sugerem diferentes propósitos.
Possivelmente, o registro de "encorajamento" desafiando os devotos judeus contem-
porâneos a permanecerem fiéis a Deus apesar da perseguição emergida dos selêucidas
e/ou de seus compatriotas está em todos os propósitos supostos. Assim, o propósito
do livro de Daniel tem sido descrito de variadas formas, como "manifesto político",
literatura de resistência", "propaganda política" ou mesmo "manifesto pacifista" P
AVALIAçÃo DA TESE MACABEIA
É evidente que o impacto da tese macabeia sobre a compreensão de Daniel
tanto é importante como de ampla abrangência em suas aplicações e implicações.
Por essa razão, não podemos deixar de fazer pelo menos uma breve avaliação desse
ponto de vista.
Enquanto a tese macabeia rejeita o explícito testemunho de Daniel, também
chama atenção para várias evidências implícitas dentro do livro, as quais parecem
indicar uma data de autoria subsequente ao exílio. Estudiosos da linha crítico-histó-
rica se focam principalmente em: (1) inexatidões históricas alegadas (a teoria explica
que o escritor compôs o material numa época em que o conhecimento histórico
exato de detalhes estava perdido); (2) certos argumentos linguísticos (particularmen-
te estrangeirismos persas e gregos, bem como a natureza da língua aramaica usada
no livro), e, principalmente, (3)a estreita semelhança histórica entre o capítulo 11
e o período de Antíoco IV Epifânio." Enquanto o terceiro dado em si não precisa
argumentar pela origem de Daniel no segundo século a.c. - o capítulo poderia ter
sido escrito profeticamente - os detalhes do capítulo 11 persuadem a maior parte
dos estudiosos a considerarem essa' visão (e, consequentemente, todas as profecias
paralelas anteriores) como tendo sido escritas após os acontecimentos.
INEXATiDÕES HISTÓRICAS ALEGADAS
Aspectos considerados inexatidões históricas incluem problemas de datas
1\1l~ C:\pltlllos I e 2, a referência a Belsazar como rei, a figura de Dario, o medo,
ESTUDOS SOBRE DANIEL
e a natureza dos "caldeus" mencionados como uma classe de homens sábios."
Infelizmente, abordagens crítico-históricas do tema são bastante frustrantes ao
representarem, na maioria das vezes, repetições não críticas de argumentos ante-
riores e ignorar quase totalmente informações que têm sido obtidas em décadas
recentes. Muito já se escreveu sobre esse tema por estudiosos conservadores, e não
precisamos repetir seus argumentos.
À luz de descobertas mais recentes, esses estudiosos oferecem explicações e sínte-
ses que na verdade dirigem o ataque à historicidade do livro de Daniel ao seu cerne, e
indicam que o autor do livro de Daniel viveu muito provavelmente durante o mesmo
período que ele descreve.P Isso acontece porque o autor sabe detalhes do que estava
perdido por séculos e milênios logo após os eventos ocorrerem. Em seu exame da
defesa mais recente da origem exílica do livro de Daniel por parte de estudiosos," J.
G. Gammie escreveu que J. G. Baldwin "faz uma argumentação razoavelmente con-
vincente" para a historicidade de vários itens mencionados acima, os quais estudiosos
da linha crítico-histórica têm geralmente apresentado como inexatidões históricas."
PROBLEMAS LlNGUÍSTICOS
No livro, há vários estrangeirismos persas e gregos. Acredita-se que esses ter-
mos estrangeiros indicam uma data para o livro subsequente ao exílio, possivel-
mente depois de Alexandre, o grande conquistador da Palestina ou até uma data
tão tardia quanto o segundo século a.C.19
Além disso, S. H. Horn sugere que o aramaico de Daniel na sua forma presente
parece ser mais recente do que a língua aramaica do quinto século a.c., documentos
elefantinos e o livro bíblico de Esdras.P Por outro lado, parece que o nível do aramai-
co representado no livro de Daniel é anterior ao Apócrifo de Gênesis (1QapGen)
e ao Targum de [ó (Ll Qtgjob) datados do final do terceiro ou começo do segundo
século a.C.21 Enquanto esses fatores sugerem que o texto de Daniel na sua forma pre-
sente é de um estágio posterior ao sexto século a.c., eles não negam a possibilidade
de uma autoria do sexto século nem provam sua origem no segundo século.
Horn concilia suas descobertas com relação ao texto aramaico de Daniel com
uma origem no sexto século, assumindo que o texto aramaico de Daniel foi moder-
nizado da mesma forma que versões da Bíblia em diversos idiomas são adequadas
ao uso atual da ortografia e gramática. Tais atualizações do texto bíblico podem ser
claramente demonstradas como tendo ocorrido em séculos pré-cristãos.
Para os empréstimos da língua persa em Daníel, K. A. Kitchen observa que
essas são palavras específicas do persa antigo ocorrendo na história da língua persa
até 300 a.C. Ele sugere que se Daniel estava envolvido na administração persa,
como declara o livro, ele teria naturalmente adquirido esses termos (que são títu-
los principalmente oficiais) de seus colegas persas.
9
AUTORlA, TEOLOGlA E PROPÓSITO DE DANIEL
Koch declara que em 1814 estudiosos ainda listaram 15 empréstimos gregos no
livro de DanieL Mais pesquisas da língua persa reduziram esse número para apenas
três, à medida que mais e mais das palavras gregas alegadas terminaram se mostran-
do persas em sua origem." Embora as três palavras gregas restantes (que designam
apenas instrumentos musicais no capítulo 3, versículos 5, 7, 10 e 15) apareçam pela
primeira vez em documentos num período posterior ao sexto século a.C., apenas
uma delas não está documentada no sentido usado no livro de Daniel antes do
segundo século a.c. - a palavra sampônyãh- Embora os três termos musicais ainda
sejam um problema para os proponentes da tese exílica, é interessante observar que
para um grande número de estudiosos da linha critico-histórica, que confiantemen-
te sugere que os capítulos históricos tiveram origem antes do segundo século a.c.,
essas palavras gregas não apresentam confusãoY
É fato que palavras gregas são geralmente evidenciadas no aramaico do papiro
elefantino e no Oriente Médio muito antes da conquista de Alexandre. O grego era
também falado em Jerusalém desde a época dos ptolomeus. À luz dessas considera-
ções, estudiosos que apoiam a origem do livro de Daniel segundo a tese macabeia
podem, na verdade, estar fazendo a pergunta errada. Numa tese rígida de origem
no século segundo a.c., a pergunta não deveria ser por que há três palavras gregas
no livro, mas por que há apenas três palavras gregas num livro a respeito do qual se
alega ter sido escrito tão tardiamente na história dos judeus.
SEMELHANÇAS/DIFERENÇAS ENTRE O CAPÍTULO 11 E O SEGUNDO SÉCULO A.C.
Mas e quanto à estreita semelhança histórica entre o capítulo 11 e o período
de Antíoco IV Epifânio? Essas semelhanças são tão notáveis a ponto de forçar um
leitor a admitir que o livro de Daniel originou-se (ou seja, teve seu contexto histó-
rico [Sitz im Leben]) no segundo século a.c.?
Um número significativo de comentaristas conservadores veem em 11:21-
12:4 previsões do sexto século de Antíoco e de acontecimentos além da época
de Antíoco alcançando o fim dos tempos. O ponto de vista predominante, no
entanto, considera as semelhanças entre o capítulo 11 e o segundo século tão im-
pressivas que nega qualquer origem anterior e rejeita qualquer profecia de alcance
além do contexto macabeu. Essa última posição é bem expressa por Di Lella, que
argumenta que nesse capítulo "O reinado de terror desse perverso tirano [ou seja,
AntíocoJ é descrito com grande precisão e detalhe - outro indicador de que essa
revelação foi escrita durante sua vida" .24
Num prefácio do comentário de Lacocque sobre Daniel, P. Ricouer aprova a
decisão de interpretar o livro de Daniel unicamente da perspectiva da origem do
st'gundo século. Ricouer acrescenta a impressiva declaração de que Lacocque "está
\'( 11'I'vt o :ll) LI izcr que o recurso à situação original do autor real - o Sitz im Leben - é
ESTUDOS SOBRE DANIEL
nossa principal defesa contra a pretensão de um leitor moderno tirar do livro de
Daniel profecias com respeito a seu próprio futuro". 25
Fundamental para a opinião crítico-histórica é a pressuposição de que seja
possível uma reconstrução histórica bastante confiável de eventos entre os anos
de 168 e 164 a.Ca além disso, argumenta-se que tal reconstrução coincide estreita-
mente com a informação fornecida na última metade do capítulo 11 (e em menor
escala, nas partes anteriores do livro).
Ao assumir a validez do argumento de que o livro de Daniel surgiu durante o
período da perseguição de Antíoco, o leitor esperaria um relato particularmente
detalhado e exato de eventos desse período. Além disso, com base na sugestão
de que o autor fosse um macabeu ou tivesse inclinações macabeias, ele também
deveria ser capaz de detectar ênfases e perspectivas evidentes na literatura con-
temporânea macabeia. Entretanto, quando o pesquisador se dedica a uma análise
histórica, o argumento de que o capítulo 11 corresponde a eventos do segundo
século a.C. apresenta problemas significativos."
Em primeiro lugar, as fontes primárias contemporâneas mais importantes que
retratam em detalhes os eventos entre 168 e 164 a.c. são poucas e limitadas, prin-
cipalmente em 1 e 2 Macabeus e Polybius." Para complicar um pouco mais, está o
fato de que existem várias e fortes discordâncias nessas fontes, tanto sobre detalhes
como sobre a ordem de acontecimentos nesse período. 11
Em segundo lugar,dadas essas divergências nas fontes primárias e contempo-
râneas disponíveis no momento, é difícil fazer uma reconstrução histórica consis-
tente e exata dos eventos sob consideração.ê" Isso, bem como as várias alusões im-
precisas no texto do capítulo 11, impossibilita uma comparação satisfatória entre
o livro de Daniel e os acontecimentos da metade do século.
Eventos ocorridos durante esse período que ainda são um ponto de contro-
vérsia entre os historiadores incluem a causa da perseguição religiosa aos judeus, a
época precisa da rebelião de [asão, a data da morte de Antíoco e as duas arremeti-
das de Antíoco contra Jerusalém.
Devido a essas questões e ao fato de os livros de Macabeus não citarem os dois
ataques de Antíoco à Cidade Santa, é interessante notar como o famoso erudito
judeu V. Tcherikover reconstrói acontecimentos do período entre 168 e 164 a.c.
Ele reclassifica o procedimento contestável de se tratar o capítulo 11 - o qual men-
ciona um duplo contato entre o rei do norte e o povo de Deus - como um relato
de testemunho ocular. É fundamentado nisso que ele argumenta em prol de dois
ataques de Antíoco a [erusalérn."
Tcherikover simplesmente admite o que os estudiosos crítico-históricos (ao dis-
cutirem o Sitz im Leben de Daniel) estão tentando provar. A validade desse tipo de
:Irglllllcnto ci rcu Ia r está aberta a questionamentos, pois precisamente esses dois
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
ataques de Antíoco a Jerusalém são apresentados como uma das maiores provas
de que o livro de Daniel surgiu no segundo século a.c.
Em terceiro lugar, enquanto se pode propor várias semelhanças entre o livro de
Daniel e a posição de Macabeus, há ainda mais diferenças que têm de ser ignoradas.
As semelhanças entre o capítulo 11 e os livros de Macabeus e Polybius in-
clúem: (1) referência ao estabelecimento da "abominação e desolação" (cf. 11:31;
1Macabeus 1:54; Dn 9:27; 12:11;Mt 24: 15), e (2) o duplo conflito do rei do norte
com o rei do sul, bem como a retirada do tirano do norte depois de um encontro
com os navios de Quitim (11:25-31).
Quando esses detalhes são comparados com a profanação do templo por
Antíoco, seus dois ataques contra o Egito e sua expulsão pelo oficial romano
Popillius Laenas, sugere-se paralelos entre eles. Seria fácil para alguém que lesse o
capítulo 11 na época de Antíoco aplicar essas passagens para seu contexto.
No entanto, dada a premissa de que o capítulo 11 (e outras partes no livro de
Daniel) foi possivelmente escrito apenas alguns meses depois que os eventos acon-
teceram, é incrível que tão pouco no relato bíblico reflita os eventos registrados
em 1 e 2 Macabeus. Se, como tem sido proposto, o autor do livro de Daniel era
macabeur'" ou no mínimo simpatizante da causa macabeia, o pesquisador deveria
esperar detalhes mais precisos de acontecimentos da época. Além disso, deveria
ser capaz de descobrir evidências de uma filosofia básica comum a ambos os escri-
tores dos livros de Macabeus e Daniel. Além disso, o teor de 1 e 2 Macabeus e o
de Daniel parecem ser opostos. A literatura macabeia está muito mais preocupada
com a oposição dos judeus ao rei selêucida, ao passo que Daniel está mais interes-
sado nas atividades do rei do norte. O capítulo 11 (principalmente osversículos
36-39 e 8:9-12) demonstra grande interesse no caráter do tirano blasfemo e o des-
creve em termos que muito superam qualquer coisa que conhecemos com relação
ao caráter, pretensões e ações de Antíoco Epifânio.
Antíoco deixou uma incrível impressão na mente e vida dos judeus de seu tem-
po. Ele interferiu nas suas observâncias religiosas, seus ideais, e seu sistema de adora-
ção. Ele atraiu colaboradores e perseguiu impiedosamente aqueles que relutavam a
cumprir seu programa. Antíoco e seus partidários marcharam pelo território judeu.
Ele profanou o templo erigindo uma imagem pagã no seu altar, porém não destruiu
() templo (veja, porém, 8:11). Desde a derrota de seu pai, Antíoco viveu à sombra de
Roma. Até onde podemos verificar, suas proezas militares dificilmente correspon-
dcm àquelas atribuídas ao chifre pequeno e ao rei do norte em 8:9 e 11:22.
Mesmo o ponto de vista predominante concorda que 11:40-45 não se harrno-
lliz:I com o que é conhecido sobre o fim de Antíoco. Esses versículos criam um
\lI(lhlvm" que a tese macabeia procura solucionar relegando esses versículos às
,11,11\'111:\d:\~, porem falsas esperanças do autor do segundo século. Tal explicação
ESTUDOS SOBRE DANIEL
é um esquema engenhoso para evitar problemas levantados pelo texto. Aqui, o
ponto de vista predominante torna-se inconcebível, principalmente se aceitamos
sua noção de que o cumprimento de 11:1-39 foi designado a inspirar nos judeus a
esperança e a confiança no cumprimento de futuras profecias.
É da mesma forma estranho que embora se diga que as visões foram escritas
por alguém que estava vivo por ocasião dos acontecimentos, os vários períodos de
tempo listados em Daniel (a perseguição do povo de Deus e a restauração dos ser-
viços do santuário) não coincidam em nenhum lugar com o período de três anos
mencionado em Macabeus para a profanação do templo."
Enquanto que na literatura macabeia os macabeus e suas vicissitudes são de
íundamental importância, os comentaristas crítico-históricos geralmente vêem
11~0mais que uma vaga alusão a combatentes da liberdade em Daniel (11:34).32
Se o escritor do livro de Daniel fosse um macabeu, por que silenciou tanto a
respeito dos feitos dos macabeus e suas emocionantes vitórias sobre Apolônio e
Scron (1 Macabeus 3: 10-26), Górgias e Lísias (1 Macabeus 4: 1-35)?Por que não há
nenhum chamado à batalha em Daniel quando os macabeus estavam preparados
,lll' mesmo para transgredir o sábado com uma revolução para alcançar a indepen-
d\\ncia e sobrevivência? Mesmo que o autor fosse um membro dos hasidim (ou um
p.icifista), é provável que ele tivesse se entusiasmado com o sucesso de seus conter-
rnncos e não deixasse de citar heróis como Matias e [udas Macabeu.
À luz desses problemas, a colocação de que o capítulo 11 corresponde a even-
11IS na Palestina entre 168 e 165 a.c. de modo tão estrito, a ponto de nos fornecer
11l'(mtexto histórico do livro (Sitz im Leben), precisa ser questionada. Enquanto a
lI'se rnacabeia demonstra como alguém que leu o capítulo 11 na época de Antíoco
1IIl\Ieriaaplicar seções desse capítulo a seu próprio contexto, essa teoria não prova
'111\'() capítulo 11 (ou o restante do livro) teve origem naquela época.
Outro elo fraco na cadeia de argumentos proposta por essa interpretação mais re-
11'111l'de Daniel é a sugestão de que o livro foi uma composição pseudónima, embora
Ipl:t1ificadapara inclusão no cânon das Escriruras.P Proponentes dessa alegação têm
'111\'dcsconsiderar o fato de que o livro nomeia o autor em todas as seções do livro.
B"ldwin, após analisar a questão da pseudonomia no mundo do AT, conclui:
''t', ~ignificativo que dentro do período que abrange o AT nenhum exemplo até
11/:111':1veio à tona de um pseudepígrafo aprovado ou considerado um livro autori-
10111\'1I c, ... houve oposição à interpelação de material novo ao texto."34 De fato,
,I', ""H;Cll'Sque, segundo os eruditos, são cumpridas pela pseudografia, são mu-
1II0011l1'111'l'exclusivas. "Por um lado, é-nos pedido que creiamos que essa era uma
I11I\\'\'IH;:IOIiterá ri" acci ta, livre de engano. Por outro lado, é-nos dito que a adoção
d, 11111pSl'lldil11 imil (prcsu m ivclrncntc não detectado) aumentava a aceitabilidade
l' :lllIlllidad\' d\' 1111\:\ohra,""
13
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
No entanto, se o livro se originou durante o exílio, a pseudonomia - uma
idéia de certo modo ofensiva tanto à sensibilidade moral como lógica de leitores
leigos do livro de Daniel - não é necessária. Possivelmente, o problema mais sério
com a noção de pseudonomia no livro de Daniel é o fato de que ela rouba desse
livro bíblico seu impacto. G. Wenham afirma muito propriamente que "a idéia
de que Deus declara seus propósitos futuros aos seus servos está no cerne da te-ologia do livro. Mas, se Daniel é uma obra do segundo século, um de seus temas
centrais é desacreditado, e poder-se-ia afirmar que Daniel deveria ser relegado aos
apócrifos e não reter status canônico como uma parte das Escrituras do AT."36
Finalmente, a tarefa de demonstrar que o livro é em alguma parte pseudônimo
continua sendo daqueles que fazem tal alegação.
Nesse contexto, também questionamos a noção, frequentemente não declara-
da, de que uma profecia preditiva detalhada é impossível per seY A possibilidade
ou impossibilidade de profecia preditiva pertence ao campo das pressuposições.
O leitor do livro de Daniel deve escolher adotar a alegação de que o Deus de
Daniel, diferentemente dos deuses das nações vizinhas, conhece e revela o futuro,
ou rejeitar esse dado bíblico com base nas suposições empíricas modernas.
RESUMO
Qualquer interpretação do livro de Daniel que negue o testemunho explícito
com relação a quando foi escrito, baseando suas teorias inteiramente ou fundamen-
talmente em indicações implícitas de uma data diferente de origem é tão inadequa-
da quanto uma explicação que desconsidera os dados implícitos e consideram ape-
nas as alegaçõesexplícitas do livro.Wenham está certo quando afirma que "aqueles
que crêem que toda a Escritura é inspirada por Deus devem ouvir tanto o que ela
diz sobre sua composição como o que ela implica sobre sua origem" .38
O testemunho explícito do livro de Daniel é claro. Nossa interpretação das in-
formações implícitas não sanou todas as perguntas, mas esforçou-se para demons-
trar que sua origem no sexto século é possível e, de fato, provável. Por outro lado,
parece que a tese macabeia cria n:ais problemas do que soluciona, e, portanto, é
suspeita. Os argumentos advogados por seus proponentes até então não elevaram
a hipótese além do campo da possibilidade.
Muitos dos dados no livro de Daniel são de longe melhor explicados se o
cnplrulo 11 e o restante das visões forem considerados como profecias genuínas
('scrifas antes dos acontecimentos (vaticinia ante eventu). Se, por um lado, pode-
IllllS n.ro querer pressionar por correspondências históricas para cada detalhe de
11111:1 pl,d\'ci:\ dada muito antes do acontecimento, por outro devemos esperar
ESTUDOS SOBRE DANIEL
paralelos estreitos num relato que tenha sido escrito dentro do contexto dos
eventos narrados.
Ao autor deste ensaio parece que a crítica histórica rigorosa não apoia as de-
clarações positivas e confiáveis feitas por adeptos da tese macabeia. Como alter-
nativa, a tese exíiica, que (embora não isenta de problemas) procura considerar
seriamente as afirmações do livro de Daniel é mais convincente e satisfatória.
Consequentemente, Daniel é responsável pelas mensagens que refletem sua vida e
a de seus companheiros, bem como pelas visões divinas que abrangem desde o seu
contexto contemporâneo do sexto século até o fim dos tempos (eschaton).
15
AUIDRIA ÚNICA OU MÚLTIPlA?
Sinopse editorial. Uma obra literária pode ser uma composição de um autorou de vários. Obviamente, um ensaio produzido por um único autor dará
evidências de uma unidade que não seria possível ser alcançada numa obra de
vários autores.
Que evidência o livro de Daniel apresenta nesse sentido? Como um documen-
to escrito, não escapou da faca afiada da crítica literária. Sua unidade (autoria úni-
ca) tem sido objeto de debate desde 1674. Enquanto argumentos foram advogados
por eruditos histórico-críticos em prol de sua unidade (um autor macabeu), outros
têm sugerido vários autores (até nove). De acordo com a tese exílica (que considera
as informações do livro ao pé da letra) Daniel, o cativo judeu do sexto século, é o
autor de todo o livro.
Como observado na seção anterior, estudiosos crítico-históricos atualmente
argumentam em prol de uma autoria múltipla e um processo lento no desenvol-
vimento do livro (do cativeiro babilónico do sexto século à Palestina do segun-
do século). Argumentos contra a unidade de Daniel estão em geral baseados em
supostas contradições, repetições, peculiaridades de estilo e vocabulário, suposta
deficiência em coesão e progressão entre as unidades literárias, diferenças entre a
septuaginta grega e o texto hebraico-aramaico (o texto massorético), e especialmen-
te as implicações da tese macabeia. Mas esses argumentos não são convincentes,
uma vez que explicações razoáveis podem ser dadas.
Certas características internas sugerem que o livro de Daniel não foi escrito
de uma vez só; contudo, vários indicadores argumentam em prol de sua unidade e
autoria única. Por exemplo, as várias narrativas pressupõem umas as outras e dão
o contexto necessário para as visões. Temas comuns e marcadores cronológicos
tecem os doze capítulos em uma tapeçaria literária que tem o capítulo 7 como
um entrelaçamento central que liga as porções históricas e proféticas. Da mesma
forma, as estruturas quiásticas, bem como o paralelismo marcante, progressivo das
visões evidenciam o propósito e desígnio de uma única mente.
ESBoço DA SEÇÃO
1. Introdução
2. Uma breve história do debate sobre a unidade de Daniel
3. Revisão dos argumentos contra a unidade
4. Indicadores da unidade
1. Conclusão
EsTUDOS SOBRE DANIEL
INTRODUÇÃO
o livro de Daniel, como outros livros da Bíblia, é uma obra literária. Assim
vndo, deve ser analisado segundo seu gênero (tipo de literatura), tom, forma, estru-
1111',1,estilo, vocabulário, etc. Falaremos de todos esses aspectos, mas nos limitare-
IIIOSprincipalmente à estrutura do livro. Discussões gerais sobre a estrutura lidam
lundamentalmente com a soma da relação das partes não-formais da composição
lucrária. Discussões sobre estilo lidam com as partes formais. Neste capítulo, o ter-
111(\"estrutura" irá abranger tanto os elementos formais como não-formais.
Composições literárias diferem muito em sua natureza. Assim, uma criação lite-
1011ia pode ser o produto de seu autor, composta em um período relativamente curto
I Ilcstinada a um público específico sobre um assunto específico. Pode ser uma cole-
1,,111de discursos, documentos, ou memórias desenvolvida para um certo público ou
Il1lhlicos. Suas várias partes terão sido produzidas em um período de anos ou mesmo
IlIda uma vida. No primeiro tipo de composição, o leitor esperaria maior coesão e
111\idade. No último, o tom, o vocabulário, a estrutura, o gênero podem variar, embo-
1,\ele ainda visse evidência de características literárias e mentais semelhantes.
Por outro lado, obras literárias podem incluir ensaios submetidos por díferen-
",~ indivíduos, mas selecionados e arranjados por um editor. Em tal caso, o tato e
IIirssivelmente até mesmo a filosofia do editor que deu forma final à composição
III,de estar evidente sem obscurecer completamente as características literárias dos
11'l1tribuidores individuais.
Na pesquisa do livro de Daniel, a análise da estrutura costumeiramente enfatiza
"questão da unidade do livro. À primeira vista, existem pelo menos três fundamen-
IIISpara uma teoria de autoria múltipla. São eles: (1) as duas línguas utilizadas no
lrvro - hebraico (1:1-2:4a; 8:1-12:13) e aramaico (2:4b-7:28); (2) a divisão de con-
u-údos em narrativas históricas (cap. 1:3-6) e visões (cap. 2:7-12); e (3) linguagem
I'II! primeira pessoa da segunda metade do livro (começando com o capítulo 7) em
1111)( raposição com a linguagem de terceira pessoa da primeira metade. Se esses cri-
u-rios coincidissem, haveria um argumento muito forte contra a unidade do livro.
I:II! vez disso, as divisões em seções em grego e em aramaico, narrativas e visões, e
u-lntos de primeira e terceira pessoa vão em direções diferentes e inconclusivas.
17
UMA BREVE HISTÓRIA DO DEBATE SOBRE A UNIDADE DE DANIEL
l-mhor» grande quantidade de hipóteses com relação à unidade e estrutura do
11\,1011'1111:1sido propagad:l, um breve esboço deve ser suficiente." Em 1674 d.C., o
11"'IMltojUdC11n. Spil10za declarou que Danicl foi () autor dos capítulos 8-12, mas
AUTORIA, TEOLOGIA E PROp6SITO DE DANIEL
confessou nada saber do escritor dos primeiros sete capítulos.40 Spinozaconjectu-
rou que os capítulos 8-12 foram compilados antes dos primeiros sete.
No século seguinte, o cientista inglês LNewton chegou a uma conclusão semelhan-
te. Ele argumentou que embora os capítulos 1-12 tenham vindo das mãos de Daniel,
o profeta, os primeiros seis eram uma coleção posterior de artigos híscórícos."
A divisão do livro em várias seções e autores continuou, alcançando maré alta
no começo do século dezenove com L. Bertholdt. Ele postulou nove autores dife-
rentes que teriam escrito em épocas e lugares diferentes durante o período dos se-
lêucidasY J. Montgomery declarou essa multiplicidade de autores e composições
como "uma falência da crítica" .43Enquanto tais teorias divergentes encontraram
apenas um pequeno seguimento, alcançou-se um ponto de convergência quando,
em 1822, F. Bleek argumentou em prol da unidade substancial do livro, a qual,
propôs ele, veio das mãos de um autor macabeu"
Os argumentos a favor da unidade perduraram por aproximadamente um
século, como é evidente no comentário de Daniel por R. H. Charles, publicado
em 1929.45 A despeito de várias oposições (refletidas nas principais pesquisas
de M. Noth e H. L. Ginsberg),46 H. H. Rowley outra vez se levantou para alegar
uma única autoria de um macabeu no seu discurso presidencial à Sociedade de
Estudo do Antigo Testamento (Society for Old Testament Studv) em Londres, em
l8 janeiro de 1950.41 Fundamental para a maior parte desse debate foi a natureza do
capítulo 7 e sua relação com os outros capítulos do livro."
Atualmente, a maioria dos estudiosos crítico-históricos abandonou a proposta
de Rowley. Eles tendem a defender a autoria múltipla e um processo prolongado
de composição do livro de Daniel (começando com o início do cativeiro babilôni-
co e finalizando em algum período do segundo século a.c.). Com frequência, tais
estudiosos rejeitam grande parte das insignificantes e numerosas divisões literá-
rias do texto bíblico de Daniel, mas mantêm a idéia de que as seções escritas pos-
teriormente (basicamente os capítulos 7-12, segundo eles) originaram-se durante
as perseguições religiosas aos judeus por Antíoco IV Epifânio. Argumenta-se que
esses materiais foram escritos para confortar e encorajar o fiel e o combatente.
De acordo com esse ponto de vista, ots) autoríes) desse último estágio incor-
poraram à obra material escrito ou oral (consistindo fundamentalmente de passa-
gens nos capítulos 3-6) originalmente registrados bem antes da época de Antíoco
IV Epifânio e mantidos para um propósito diferente. Esses capítulos anteriores
foram modificados com as circunstâncias históricas variantes da comunidade
judaica e acrescentadas ao livro. A intenção era fazer com que essas primeiras
seções cumprissem o mesmo propósito conforme alegado sobre os capítulos 7-12.
l lrna vez que nem todas as características desse primeiro material podem ser har-
11Hin iZ:ldils com () objetivo dos capítulos posteriores, considera-se que cumprem
l"I\Il'11 ou I)vnhul11 propósito no livro como o temos agora.
EsTuDOS SOBRE DANIEL
I lma análise crítica-formal recente de Gammie é típica dessa abordagem. Ele
i"I~I\da três estágios de crescimento no livro de Daniel.t? Gammie propõe que (1)
I 1l,l,sagem 2:4b-7: 18 (menos 7:7b-8, 11a e 12) foi composta durante o reinado de
l'I,d,ll11eu IV Filopator (221-204 a.c.). Foi seguida por (2) 1:1-2:4a; 10; 12:1-4, as
lil IIs de acredita terem sido escritas logo após a virada do segundo século (mas,
11111'.,de Antíoco IV Epifânio). Finalmente, (3) foram acrescentadas as passagens
r JI) .~8;8; 9; 11; 12:5-13 e as interpolações 7:7b-8, 11a e 12.
111felizmente, Gammie não cita nenhuma análise crítica-literária para de-
11\1'1 I~Irar a validade de sua apreciação. Seu único critério parece ser uma suposta
1,11u-spondência entre essas seções de Daniel e certas circunstâncias históricas
!IIImnto mal-definidas.ê?
I\llch, ao resumir as pesquisas sobre o livro de Daniel até 1980, sugere que o li-
111, rcsceu em seis estágios, iniciando com histórias orais e escritas da última parte
dll qunrto século a.C.; sendo, então, modificado no terceiro século e primeira parte
111"I'gundo século; e sofrendo acréscimos no período dos macabeus. O sexto está-
li I I' representado pela tradução grega do livro no final do segundo século a.c. SI
REVISÃO DOS ARGUMENTOS CONTRA A UNIDADE
19
1)vvido aos limites deste capítulo não permitirem um registro detalhado de ar-
1IIIII'IIrOSem prol e contra a unidade de Daníel, deve-se fazer um relato resumido
11111:1avaliação. Geralmente, críticos literários da Bíblia baseiam suas teorias diver-
1'11111'Sem supostas contradições, repetições, peculiaridades de estilo e vocabulário,
• .ip.m-nte deficiência na coesão e progressão entre as diversas unidades literárias.
I. Alega-se que existe uma contradição no fato de que o capítulo 1 declara que
I I .lucação de três anos de Daniel e de outros jovens hebreus escolhidos começou
1111:1110em que Nabucodonosor conquistou Jerusalém pela primeira vez (1:5). No
1111,11110,o capítulo 2 declara que o profeta interpretou o sonho do rei babilõníco no
11:lllldo ano do reinado do monarca.
/. P. R. Davies argumentou que o processo editorial do capítulo 2 é mais eviden-
1,':1 luz da "apresentação contraditória do herói".5z Segundo Davies, a contradição
, 11.11':1em virtude do fato de que o capítulo 2 (exceto os versículos 13-23) retrata o
111111"1:1como um desconhecido cativo judeu apresentado ao rei por um dos oficiais
it ,IIN, :1\1 passo que, de acordo com os versículos 13-23, o herói é perseguido para ser
!~I'\ 111.ulo como alguém que já pertence ao grupo dos sábios do rei. De fato, Daniel
I' 111:lCl'SSO ;tO monarca de uma maneira que fica implícita a segunda situação.
Assim, :l npu-scnrnção de Danicl (de acordo com 2:13-23) como um sábio
1111"1~oI'1l!Il' (l (':lplllJ!O I, mas :l nprcscntnção como uma pessoa desconhecida nas
20
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
outras partes do capítulo 2 contradiz o capítulo 1. Dessa forma, Davies propõe que
a passagem 2: 13-23 seja concebida como uma inserção posterior pela pessoa res-
ponsável pela edição do capítulo 1. Apesar de o editor ter criado uma contradição,
ela pode ser vista apenas como uma omissão não intencional.
3. O capítulo que mais chama a atenção da análise critica-literária é o 7. A
alternância entre prosa e poesia, fórmulas introdutórias características, detalhes
mencionados no capítulO, mas omitidos da primeira declaração da visão, e certos
sinônimos têm trazido à tona algumas das mais complexas teorias de progressão
para esse capítulo em particular. 53 Alguns eruditos têm presumido estrangeiris-
mos de fontes antigas não-israelitas (por exemplo, babilônicas, cananeias, persas e
gregas) no capítulo 7. Enquanto alguns eruditos vêem essas inclusões de materiais
extra-bíblicos como nada mais que fontes utilizadas pelo editor, outros pesquisa-
dores consideram-nas indícios de autoria composta.
4. A falta de coesão interna entre os capítuloS é sugerida como um índice de
falta de unidade.54 Exemplos dados incluem o fato de que apesar de o capítulo 2 re-
gistrar o reconhecimento de Nabucodonosor da superioridade do Deus de Daniel,
o capítulo 3 ainda narra a mesma exigência do rei por adoração a seus ídolos e a
imagem de ouro. No capítulo 3, o rei aparece completamente alheio à soberania do
Deus de Israel. Novamente, o chamado de Nabucodonosor e Belsazar por homens
sábios em vez do profeta no capítulo 4 e 5, bem como a aparente completa nova
introdução de Daniel em 10:1, supostamente corrobora a não-unidade interna.
Outros sinais de autorias divergentes são supostas disparidades teológicas. Os
exemplos incluem o seguinte: (1) Daniel 7:18 declara que o reinado será dado aos
santos no fim dos tempos (eschaton), enquanto 12:2 afirma que a ressurreição omi-
te qualquer referência à soberania deles. (2) Repetidas referências são feitas aos
anjos em 7-12. Por outro lado, nenhum desses seres é mencionado nos capítulos
anteriores; (3) há uma aparente disparidade entre a teologia da oração confessio-nal de Daniel (9:3-21) e o restante do livro.
5. Outro fator que levou os eruditos a assumirem a multiplicidade da autoria
e de documentos é a diferença entre a tradução do grego antigo (conhecida como
a Septuaginta e intitulada LXX) e dos textos hebraicos e aramaicos (conhecidos
como textos massoréticos, abre\(iados TM) de Daniel. Além de adicionar seções
não encontradas nos TM ou documentos conhecidos do Mar Morto - A Canção
de Azarias (Dn 3:24-90), a história de Susana (13:1-64), Bel (14:1-22) e do Dragão
(14:23-42) _ a LXX parece traduzir os capítulos 4 a 6 de uma forma um tanto livre,
ao passo que aderiu mais fielmente aos textos aramaicos e hebraicos na sua tradu-
ção dos capítulos 1-2 e 7-12.
6. Em 1980, P.R. Davies chamou a atenção para a confusão que definições
çrllditas de ":1\1ocalíptico" estavam causando entre a primeira e a segunda parte
EsTuDOS SOBRE DANIEL
do livro.55 De acordo com essas definições, as visões do livro são parte de um
tipo de literatura conhecida como" apocalíptica". Apocalíptica é caracterizada por
aspectos que incluem: (1) revelações de seres sobrenaturais; (2) revelações de rea-
lidades transcendentes, com frequência por meio de simbolismos complexos; (3)
dualismos espaciais, temporais e éticos; (4) um escopo cósmico, porém uma visão
pessimista da história; (5) uma salvação escatológica envolvendo dois éons [eras] e
:t ressurreição; (6) pseudonomia, e (7) temas tirados de religiões não-israelitas, es-
pecialmente fontes persas e cananeias. Vistas a partir dessa definição, as visões são
um tanto diferentes das narrativas históricas do livro. As últimas são semelhantes
:t histórias bíblícas tais como as de José e Ester.
7. No entanto, a razão mais proferida para a divisão do livro e de seus capítulos
não tem sido a análise puramente literária mencionada acima. Pelo contrario, a
urgência de desmantelar o livro de Daniel deriva-se da tentativa da crítica históri-
ca de reconstruir seu cenário. Uma vez que a tese macabeia foi aceita, assumiu-se
rambém que o último poder antes do eschaton (o fim dos tempos, mencionado
no livro) deve se referir - a despeito do simbolismo empregado - ao rei arrogante,
hlasfemo e implacável, Antíoco IV Epifânio.
Muitos estudiosos não se convenceram da argumentação de Rowley de que
rodo o livro de Daniel foi uma variação do tema de Antíoco e sua relação com
os judeus. Portanto, qualquer material do livro que não se ajustava ao suposto
.ontexto do segundo século a.c., eles o designaram a períodos anteriores às atro-
cidades sírias contra os judeus. Assim, começando com a premissa de Antíoco
ligada à analise literária e outras, a crítica histórica forneceu o critério supremo na
reconstrução do desenvolvimento do livro de Daniel. 56
Surpreendentemente, foi também a crítica histórica combinada com argumen-
ros linguísticos que fez com que Rowley defendesse a unidade do livro." Rowley
discordou da opinião majoritária contemporânea contra a unidade por várias ra-
zões. Ele mencionou, de forma um tanto depreciativa, a diversidade de opinião
dentre aqueles que advogavam uma autoria composta e sinalizou que tal diversida-
de dificilmente inspirava credibilidade em suas presumidas análises. Ele também
comentou a discordância geral dos estudiosos de que os capítulos 8 a 12 vieram
de um só autor. Rowley ainda argumentou que o capítulo 7 estava estreitamente
ligado ao capítulo 2 e ao 8, em virtude de sua linguagem comum e várias ligações
(raseológicas. Rowley chamou atenção para o fato de que figuras da realeza como
Bclsazar e Daria, o medo, aparecem em ambas as partes do livro. Entretanto, sua
alegação mais poderosa foi a de que o mesmo raciocínio e as mesmas característi-
(,;IS literárias podem ser encontradas em todo o livro.
Rowley desconsiderou muitas das ambíguas divisões literárias do livro.
Corajosamente, ele desafiou: "O ônus da prova jaz sobre aqueles que criticam
21
..A oZ.d 1.30
AUTORLA, TEOLOGLA E PROPÓSITO DE DANIEL
22
uma obra. Aqui, porém, não foi produzido nada que possa ser seriamente chama-
do de prova de autoria composta. Por outro lado, há evidências da unidade do
livro em sua totalidade."58
Enquanto a maior parte da argumentação de Rowley nunca foi apropriadamente
respondida - mas curiosamente evitada - esse notável erudito inglês se superou quan-
do escreveu que" podem ser encontrados pontos para cada história da primeira parte do livro
no cenário da era dos macabeus, para a qual a última parte está designada". 59
A resposta de J. J. Collins pode ser considerada como uma representação da
opinião majoritária a esse respeito: "A despeito dos extensos argumentos de Rowley,
está evidente que os contos da corte nos capítulos 16 não foram escritos na época
de macabeus. Sequer é possível isolar um único versículo que denuncie uma inser-
ção editorial daquele período."60 Os capítulos de 1-6 não foram escritos na época
de Antíoco IV Epifânio porque:
"Essa posição se fundamenta principalmente nos argumentos de que os capítulos
1-6 não contêm clara referência a Antíoco Epifânio ou à sua época ... Os contos dos
capítulos 1-6 são ambientados na Diáspora. Não há referências claras a eventos na
terra de [udá ... Rowley demonstrou bem como alguém que tenha lido esses contos na
época de Antíoco poderia aplicá-los à sua própria situação. Isso, entretanto, não pro-
va que os contos foram escritos com aquela situação em mente. De fato, se considera-
mos os contos como um todo e não simplesmente isolamos seus elementos disperses,
concluímos que são um tanto inadequados para o período de macabeus ... Em suma,
a diferença entre Daniell-6 e as visões do restante do livro são muito mais importan-
tes do que os pontos nos quais os contos podem parecer apropriados para os tempos
de macabeus. Não apenas os contos não foram escritos pelo autor das visões, como
não foram sequer editados para mostrar qualquer evidência clara da perseguição de
Antíoco ou para expressar a mesma teologia como o restante do livro.?"
Mais tarde, Collins argumentou:
"Há amplo acordo entre os estudiosos que os contos se originaram na
Diáspora oriental. Embora essa tese não possa ser provada conclusivamente, car-
rega um forte peso de probabilidade. Não há razão aparente por que um judeu na
Palestina devesse escrever ou coletar um conjunto de contos, todos ocorridos em
Babilônia, e cujo herói é um sábio caldeu. Tais contos seriam mais relevantes aos
judeus na Diáspora, especialmente àqueles que tinham um cargo ou aspiravam a
um cargo em qualquer posição numa corte gentia. Isso se aplica não apenas aos
contos individuais, mas também ao conjunto deles."62
Koch apoia a noção de um cenário oriental para as histórias porque, de acor-
do com E. Y. Kutscher, a vocalização do aramaico em Daniel parece ser oriental
v as personagens da realeza no livro, bem como o contexto da história, apontam
p:tr;1 II oriente."
ES'llJlx lS s( 1111{1' / hN1I1
Em suma, Rowley tem que render um dos fundamentos básicos em SII;1;II~:II
mentação. Sua alegação em prol da unidade ou sua defesa por uma origelll III;H:t
hcia do livro todo deve ser abandonada. Estudiosos têm mostrado correl;III11'lllv
que essas duas noções não podem ser mantidas de uma vez e ao mesmo tl'1l1/11),
Apesar de as razões de Rowley para a origem macabeia do livro todo ter conVClll'id()
:dguns, seus argumentos em prol da unidade ainda aguardam uma refutação.
Críticos que desconsideram o testemunho explícito do livro de Danicl e por
meio da crítica histórica procuram encontrar uma situação diferente para a h is-
rória concluem que uma origem macabeia está fora de questão. Simplesmente,
não há clara referência a Antíoco, sua época, ou qualquer referência evidente a
vventos na terra de [udá durante esse período compreendendo Daniel 1-6, nem
Ii:\ razão aparente por que alguém na Palestina devesse escrever tais narrativas
:lll1bientadas no contexto babilônico.
Consideradas como um todo, as histórias da corte não são apenas impró-
prias para o período macabeu, elas, na verdade, conflitam com seu suposto pro-
p(')sito de encorajaros judeus perseguidos pelo seu suserano sírio. Atribuir o
l';lpítulo 4 ao segundo século e considerar o orgulho, queda e restauração de
Nabucodonosor uma comparação com Antíoco Epífânío, afirmando que Deus
1 rataria Antíoco como tratou Nabucodonosor, poderia apenas desencorajar um
"Ideu que sofria naquele tempo.v?
O próprio Rowley previu vários desses problemas. Por essa razão, argumentou
que muitos aspectos nas histórias não cumpriam e não deveria se esperar que cum-
prissem o Propósito do autor.65 Tal solução parece extremamente inconsistente em
vista de sua justificada exigência por rigor metodológico e sua reprovação à divisão
llo livro quando a evidência textual é inconveniente à teoria de alguém.
Parece que o próprio método de Rowley é uma divisão requerida pelo fato de que
01 evidência é inconveniente e pode ser descrita, em suas próprias palavras, como "rude
propaganda para um teoria, no lugar de um estudo científico de evidência".66 Para
1I1:111tersua própria explicação, Rowley teve que trazer à tona a evidência textual com
',l'U suposto Propósito do livro e ignorar evidências contrárias como irrelevantes.
O que dizer, porém, dos argumentos acima mencionados a favor da autoria
múltipla? O que dizer das supostas repetições e contradições? Enquanto tais serne-
1":111çassão encontradas na LXX de Daniel, isso dificilmente acontece no original
do mesmo livro. Não encontramos mais desnecessárias repetições e semelhanças
do que podem ser encontradas em outros documentos antigos cuja unidade é
,/lIestionada. Em Daniel, tais elementos (como listas de palavras para várias classes
dv homens sábios, oficiais da realeza ou instrumentos) são com frequência parte
.Io estilo do escritor. São refletidos ao longo do capítulo de tal forma que realmen-
Il' se °PÔl':Jo :lrglJll1enlo p:tr;1 nurori» Il1ldtip/a c fworl'Cc a unidade do livro,
23
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPOSITO DE DANIEL
A sugestão da diversidade de autores com base numa suposta falta de coerên-
cia interna se opõe à essência das narrativas históricas. Se lemos sobre os instáveis
absolutistas orientais déspotas, cujo objetivo é seu próprio engrandecimento - im-
pressão transmitida pelo livro conforme se apresenta agora - dificilmente se justi-
fica a defesa de alguma coesão de capítulos pos quais um rei que uma vez entrou
em contato com Daniel e seu Deus nunca mude de idéia. Tal análise do livro lhe
roubaria sua própria mensagem.
É provável que Nabucodonosor tenha construído a imagem relatada no capí-
tulo 3 por causa da imagem do sonho registrada no capítulo 2. De forma similar,
o orgulho demonstrado por ambos, Nabucodonosor e Belsazar, é muito mais real
do que as extrações sugeridas permitiriam. A tendência para separar referências
ao chifre pequeno como inserções editoriais posteriores enfraquece as visões, as
quais, sem essas passagens, perdem sua idéia principal.
A contradição assumida por Davies está no principio de que os capítulos 1 e
2 estão cronologicamente em conflito e no herói presente, que é, ao mesmo tem-
po, conhecido e desconhecido por Nabucodonosor. A pergunta por que Daniel,
embora um membro do corpo de homens sábios, não foi chamado à corte para in-
terpretar o sonho e busca uma entrevista individual, na qual o emissário real tem
que mediar entre o monarca e o cativo hebreu, é um ponto central a essa questão.
24 No entanto, em vez de assumir uma contradição, o fato de Daniel e seus colegas
não terem sido chamados para interpretar o sonho com os homens sábios pode
ser explicado melhor com outra hipótese. Uma explicação mais simples seria que
uma vez que os jovens tinham recentemente concluído seus estudos (de maneira
notável, certamente), o rei decidiu reunir os membros mais experientes.
Além disso, dever-se-ia reconhecer que o escritor provavelmente usa o mé-
todo antigo de contagem inclusiva (atestado em vários documento~ do perí-
odo contemporâneo), começando com o ano da ascensão de Nabucodonosor.
Consequentemente, não há necessidade de afirmar que o capítulo 1esteja crono-
logicamente contradizendo o capítulo 2. A reconstrução de Davies perde ainda
com o fato de que o suposto editor final, que hipoteticamente juntou os capítulos
1 e 2, não viu a contradição que criou com a forma que deu ao material.
Argumentos que dividem o capítulo 7 foram examinados detalhadamente em
outra parte pelo autor." Não é necessário fazer outra análise aqui, a não ser por
algumas observações. Atribuir a visão dos quatro animais a um nível de tradição, o
animal de dez chifres a outro, e o chifre pequeno ainda a outro é algo dúbio, como
() t' também a tentativa de separar os versículos poéticos que tratam do Ancião de
I)ias, do julgamento e do "um como o filho do homem". Os argumentos defendi-
dos vst:io abertos para questionamentos sérios. Além disso, o procedimento como
IlItI tndn deixa as seções individuais sem um objetivo.
ESTUDOS SOBRE DANIEL
Sem o poder representado pelo chifre pequeno (no capítulo 7 e outros lugares
110livro) a visão se enfraquece. "O que o autor do livro, e do capítulo 7 especial-
mente, está escrevendo se deve a uma convicção, que toma a forma de uma pro-
lccia, de que um clímax nos negócios do mundo, que requerem uma intervenção
liireta e final de Deus, está se aproximando rapidamente. Essa consideração, isto
,\ que uma visão sem o símbolo imperativo do chifre pequeno estaria sem con-
ivxto, e seria sem dúvida insignificante, parece ser bem mais importante do que o
.rrgumento dado por North."68
Da mesma forma, os argumentos que relegam a visão do julgamento, do
!\ncião de Dias e do "um como o filho do homem" a um outro autor não reco-
nhecern a tendência do livro e do AT de geralmente expressar clímaxes em forma
poética e então interromper o ponto mais alto da visão.r? Razões negativas para
',1' rejeitar a unidade do capítulo 7 parecem ser reforçadas positivamente por uma
.uiálise estrutural e temática do capitujo.I?
Enquanto o estudioso da Bíblia pode tirar muito benefício da crítica literária
. onfiáve], qualquer análise deve estar em harmonia com a natureza do texto.
No caso do capítulo 7, e do livro como um todo, normas e critérios propostos
p:1ra apoiar várias camadas textuais tendem a refletir um pensamento silogístico
III'idental que é imposto ao texto bíblico. A esse respeito, o aviso de Deissler é
oportuno. "Deve-se notar que quando se deseja lidar de maneira justa com o 25
II'xtO,um texto antigo, oriental e principalmente apocalíptico, ele não pode ser
,implesmente pressionado a um leito de Procusto da lógica moderna ocidental.
i'ortanro, o argumento popular de que os versículos que tratam dos dez chifres
1111especificamente do décimo primeiro chifre ... podem também ser omitidos
demonstrando-se, assim, sua natureza secundária - não é válido, pois embora o
lI'st·cprincipal remanescente possa se tornar uniforme, isto é meramente um 'tronco
.Ipocalíptico' estrutural e conrexruni"."
já notamos que as peculiaridades da tradução grega do livro de Daniel [e-
vurarn alguns estudiosos a supor a autoria múltipla. A evidência presente cer-
I.unente sugeriria que as orações e histórias não-canônicas que não são citadas
IIIIS textos massoréticos hebraicos nem nos rolos do mar morto são composições
1" ixtc riores. O pensamento de que essas adições fazem parte de um "ciclo de
I l:lniel" de contos populares em circulação entre os judeus em direção ao fim da
I 1':1passada é apenas conjectura.P
A questão das traduções gregas de Daniel (e suas derivações) é complexa, e o
tll'hate continua com relação a suas origens, natureza e data. A LXX de Daniel é
11111:1tradução prc-cristã do AT hebraico. A revisão Teodócio de Daniel, cornumen-
li' d:ltad:1 do segundo século d.e. pode representar um diferente texto, um fenó-
Itll'!lO tal11ht"111em evid0ncia para outros livros do AT.71Assim, a revisão Teodócio
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
de Daniel, a mais recente das duas, pode ter ou corrigido a LXX de Daniel ou
seguido uma tradição textual pré-cristã anterior.
De acordo com Montgomery, lecionários gregosparecem conter apenas os
capítulos históricos do livro de Daniel.Í" Isto, e o fato de que as histórias do capí-
tulo 3 e 6 são aludidas em 1 Macabeus 2, pode sugerir que as narrativas históricas
usufruíam de certa popularidade além das visões. Além disso, as leituras mais
midráshicas da LXX de Daniel4-6 podem indicar que as traduções gregas são elabo-
rações secundárias. Essas elaborações poderiam ser ornamentos incluídos numa
época em que a fluidez textual não era incomum. A fluidez textual pode também
ter permitido a inclusão das partes não-canônicas.
Em suma, as narrativas históricas, sendo populares, podem ter circulado inde-
pendentemente, acrescentando-se a elas detalhes fictícios em uma ou mais tradi-
ções textuais específicas. Após obterem sua forma presente, os capítulos 4-6 foram
possivelmente emprestados pelo tradutor dos outros capítulos ou por algum com-
pilador posterior quando o livro foi finalmente reunido na forma que agora temos
a LXX de Daniel. Em vez de indicar dois autores diferentes, a evidência parece
apontar para diferentes tradutores ou compiladores.75
A observação de Davies de que a palavra "apocalíptica" causou divisão entre
as duas partes do livro é válida." Como resultado, as visões foram tratadas como
26 sendo a essência do livro, ao passo que as histórias são basicamente consideradas
como um prólogo que introduz o contexto e os personagens para as visões.
Davies é sensível ao fato de que os capítulos de 7-12 tendem a ser interpretados
a partir de um contexto sócio-religioso e literário alheio designado "apocalíptico" e
definido por características muito frequentemente estranhas ao livro de Daniel (e,
devemos acrescentar, às Escrituras como um todo). Entretanto, sua própria propo-
sição de que as histórias praticamente criaram as visões é inaceitável.
Sua tese de que as visões foram escritas durante o período dos macabeus como
uma aplicação contemporânea da mensagem das histórias é falha por causa da
falta de evidência para tal releitura. Ele quer ver uma ligação mais estreita entre
as histórias e as visões, e está correto ao enfatizar a continuidade entre as duas
partes do livro. No entanto, Davies falha em mostrar como "temas especificos na
escatologia das visões derivam de contos".77
A continuidade entre as visões de Daniel e o material apocalíptico em geral
não pode ser negada. Isso não é inferir que exista alguma relação de origem entre
as duas, mas afirmar que a estrutura e coerência internas das visões "é semelhante
àquela dos apocalipses, e, portanto, destaca o modo de revelação, a natureza espe-
cífica da escatologia e a proeminência da Palavra divina sobrenatural representada
pelos anjos."78 Deve-se acrescentar que embora apocalipses não-canônicos possam
ser ílu-a rntivos, dificilmente são indispensáveis para nossa compreensão de Daniel.
EsTUDOS SOBRE DANII'I
Tudo isso tem levado vários comentaristas - de forma correta, cremos - a reco-
nhecer uma certa peculiaridade em Daniel. Consequentemente, Daniel não é consi-
.lcrado como um espécime típico da literatura apocalíptica que surgiu entre 200 a.C.
(' 200 d. C, aproxímadamente.l? Baldwin observa de forma apropriada: "O livro de
llaniel é um dos primeiros exemplos de seu gênero; sem dúvida deve ser considerado
('(Imo um protótipo ou modelo no qual escritores mais tarde se inspiraram. "80
Outra alternativa que busca enquadrar as visões e as histórias sob um guarda-
(,huva foi sugerida por Gammie. Ele amplia sua definição de apocalíptico para in-
( luir vários subgêneros, a fim de "dispensar estudiosos da necessidade de dissociar
(IS capítulos 1-6 da classificação 'apocalíptica'"." Em ambos os casos, nenhuma di-
visão artificial é colocada entre as duas partes do livro por algum critério externo.
A análise histórica não é apenas útil, mas essencial à exegese, uma vez que respei-
li' o texto, Entretanto, a crítica histórica pode facilmente levar ao raciocínio circular.
lsso acontece quando a crítica se afasta de uma passagem bíblica para descobrir algu-
ma identificação histórica e, então, retorna ao texto para remover material que não
rsteja em harmonia com sua interpretação histórica hipotética. Rowley condenou
I:d procedimento quando observou que "isto é fundamentar o caso nos supostos
enganos de uma teoria da origem do livro e não em evidência."82 Sob nenhuma
( i rcunstância deve o exegeta sacrificar a primazia e integridade do texto,
Irregularidade no texto também tem sido inferida com base no suposto emprés- 27
limo de antigo material tradicional extra-bíblico, principalmente nos capítulos 7-8
(' 10-12. Embora nenhuma importação indiscriminada de tais materiais seja conce-
hida, estudiosos propõem derivação de temas da Babilônia, Canaã e Pérsia."
Este autor examinou a hipótese da origem cananeia para o capítulo 7 e a
.uhou em falta." As teorias babilônicas e persas têm poucos seguidores atualmen-
11', e as alusões míticas sugeridas para os capítulos 8 e 10-12 têm pouca relevân-
( ia,85Outros estudiosos argumentam que o autor de Daniel, se e quando ele usou
lontes bíblícas ou extra-bíblicas, incorporou as fontes de tal maneira que não há
.vidência de nenhuma junção.
INDICAÇÕES DE UNIDADE
Os argumentos listados até agora não nos impõem o ponto de vista da autoria
múltipla do livro.i" Entretanto, essa não é uma demonstração em si da unidade
dI) livro, Há alguma evidência que sugira que a autoria única é uma alternativa
II\:Iis convincente?
Aspectos individuais de uma obra literária são essenciais e significativos, e não
plH.k haver nenhum produto lircrário sem vocabulário c sintaxe, Tais unidades
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
individuais podem ser comparadas a tijolos no edifício da comunicação. No final
das contas, porém, uma análise detalhada dessas partes apresenta tão pouco da
estrutura e significado gerais de uma obra literária quanto um exame de tijolos
individuais nos diz sobre a natureza e propósito da construção da qual fazem parte.
É por essa razão que agora passamos a uma pesquisa do edifício como um todo.
1. Capítulos posteriores pressupõem materiais anteriores. O autor dos capítu-
los de 1-6 claramente compõs esses capítulos em uma unidade coerente. Assim, o
capítulo 2 pressupõe a introdução de Nabucodonosor, Daniel, e seus amigos como
apresentado no capítulo 1. Da mesma forma, a imagem de ouro do capítulo 3, erigi-
da em honra ao rei, está relacionada à estátua do capítulo 2, onde a cabeça de ouro
representa o rei. Os acontecimentos vividos por Belsazar na noite registrada no capí-
tulo 5 pressupõem a história de Nabucodonosor no capítulo 4; e o reinado de Dario
no capítulo 6 pressupõe a queda de Babílõnia narrada no capítulo anterior."
As narrativas da corte introduzem não só a figura de Daniel e seus amigos,
mas também várias das principais personagens mencionadas no restante do livro.
Portanto, em certo sentido, as histórias descrevem a cena e preparam o leitor para
as visões. As visões, por outro lado, pressupõem o profeta, o contexto histórico e
geográfico e aspectos importantes da mensagem das narrativas anteriores. O rei
Nabucodonosor, Belsazar, Dario o Medo, e Ciro aparecem em ambas as partes. De
28 fato, embora as histórias descrevam a carreira de Daniel se estendendo além do
período de Nabucodonosor até Ciro (1:21; 6:28), não é uma narrativa histórica,
mas sim uma visão (caps. 10-12) que é dada nos tempos de Ciro.
2. Temas comuns. Vários temas são comuns a ambas as partes do livro. A
submissão é imposta ao povo de Deus em todo o livro. Novamente, Deus é retra-
tado como o governante supremo em contraste com os governantes terrenos cujos
reinados decaem. A história humana, a qual o profeta inspirado pode revelar de
antemão, é descrita como uma obra da providência divina. Já nos capítulos 4 e 5
os reis experimentam manifestações sobrenaturais - um, um sonho, o outro, uma
escrita misteriosa -, ambas seguidas de suas interpretações.
De forma semelhante, os sonhos são acompanhados de interpretações detalha-
das nos capítulos 2, 7 e 8. Como o orgulho precedea queda nos capítulos 4 e 5,
também a arrogância do último inimigo de Deus nos capítulos 7 -8 e 10-12 leva ao
seu julgamento e destruição. Os capítulos 4 e 5 registram cumprimentos das predições
feitas por Daniel aos seus monarcas contemporâneos. Isso, por sua vez, inspira con-
fiança no cumprimento futuro dos sonhos e interpretações delineados nas visões.88
3. Conexões cronológicas. Conexões cronológicas também estão presentes
nas duas partes do livro. Assim, as narrativas abrangem o período de Babilônia
e Mcdo-Pérsia (caps. 1-6). De igual modo, as visões, ao invés de continuarem a
scquência cronológica da Medo-Pérsia em diante, retoma à Babilónia e repete o
EsruDOS SOBRE DANIEL
padrão (caps. 2, 7-12). Também importante para o padrão da cronologia é o esque-
ma dos quatro impérios - explícitos nos capítulos 2 e 7 e implícitos nos capítulos
H-12. Esse esquema detalha o reinado de quatro poderes mundiais consecutivos,
começando com Babilônia. Portanto, é evidente que as histórias e as visões são
urnbas compostas juntas pela cronologia da carreira de Daniel e seguem o mesmo
progresso da história em sequência paralela.
4. Daniel 7 interliga o livro. O capítulo 7 ocupa um lugar central e crucial
dentro de todo o livro. Ele interliga os dois blocos de material. Ele reúne as his-
rórias pela linguagem e simetria e as visões dos capítulos 8-12, pela sequência e
I'onteúdo cronológico." Já observamos que os capítulos 2-7 são escritos em ara-
maico'" (discutiremos mais tarde a disposição simétrica que une esses capítulos).
Também vimos que o capítulo 7 repete o ciclo de datas registradas nos capítulos
1-6 e mencionamos que sua forma e conteúdo literário estão mais estreitamente
relacionados às visões dos capítulos 8-12.
Conexões linguísticas e temáticas entre os capítulos 2, 7 e 8-12 tendem a in-
dicar a coesão das duas partes do livro. Palavras como "forte", "ferro", "quebrar",
"quatro reinos" (2:40; 7:7,23) conectam os capítulos 2 e 7. Por outro lado, locuções
corno "os quatro ventos do céu" (7:2; 8:8; 11:4), "lívroís)" do juízo (7:10; 12:0, e a
vxpressão única "povo dos santos" (7:27; 8:24) reúnem os últimos cinco capítulos."
5. Características únicas de estilo. Características peculiares de estilo reapa- 29
iccem ao longo do livro. Há uma certa predileção por listas de palavras. Várias
classes de homens sábios (2:2, 10, 27; 4:7; 5:7, 11); listas de oficiais reais (3:2,3;
():7) e instrumentos da orquestra de Nabucodonosor (3:5, 7 ,10, 15) são repetidos
com frequência. A frase característica "povos, nações, ... línguas" unem os capitu-
II)s3-7 (3:4, 29; 4:1; 5:19; 6:25; 7:14).
Outra característica sutil que reaparece em capítulos que dão interpretações
I" a introdução ou suplementação de detalhes não mencionados explicitamente
IlOS sonhos ou nas visões (por exemplo, 2:41-43 suplementa 2:33; 4:33 acrescenta
11111 aspecto ausente no primeiro sonho; 7:21-22 amplia a primeira visão com a in-
1 rodução dos "santos", e a interpretação de 8: 19-25 suplementa a visão de 8:3-14).
Rowley chama atenção para o fato de que' algumas vezes simbólico e o real alternam
IlI) livro (como em 4:14-17)92. Também certa "irregularidade" e lógica intocadas
pelo silogismo ocidental podem ser traçadas em diversos capítulos do livro."
6. Padrões literários. Algumas características estruturais dificilmente reco-
n hccidas e nada acidentais devem ser observadas. Em 1972, A. Lenglet publicou
IIIll a rtigo relevante sobre a estrutura literária de Daniel 2-7 no qual defendeu
111\\a si mctria concêntrica dos capítulos ararnaicos.?"
Conscqucntcrncnrc, os capítulos 2 e 7 se ajustam como um envelope aos capí-
111I\\s >-6, Os capítulos 2 e 7 registram visões que tratam da história de impérios e
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
clímax, de um lado com uma pedra "cortada sem auxílio de mãos", e, do outro, com
um reino e domínio eterno dados a "um como o Filho do Homem" e aos "santos do
altíssimo" (2:34, 45; 7:13-14, 27). O ciclo seguinte (caps, 3 e 6) é composto de duas
histórias de livramento, a saber, a salvação dos amigos de Daniel da fornalha ardente
e do resgate do próprio Daniel da cova dos leões. Dentro desse circulo novamente
estão os capítulos 4 e 5, que tratam do julgamento de dois reinos gentios.
Esses mesmos capítulos podem também ser dispostos numa forma literária
conhecida como quiasma, um recurso literário, que unifica uma composição ao
arranjar suas partes correspondentes numa relação invertida uma com a outra.
Veja a seguinte ilustração:
A. Visão da história mundiaL (cap. 2)
B. Libertação da fornaLha ardente (cap, 3)
C. JuLgamento de um rei gentio (cap. 4)
C'. Julgamento de um rei gentio (cap. 5)
B'. Libertação da cova dos leões (cap. 6)
N.. Visão da história mundial (cap. 7)
30
Embora seja impossível demonstrar que esse quiasma foi escrito de forma
deliberada, é pouco provável que tenha sido escrito de maneira acidental, prin-
cipalmente quando se reconhece que estruturas semelhantes ocorrem em outros
capítulos desse livro.
Estudiosos que analisaram ambas as visões e o restante do capítulo 7 em várias
camadas passaram por alto a estrutura quiástica que une esse capítulo. Uma vez que
já discutimos essa característica em outra parte, um resumo de nossa análise será
suficiente aqui." É notável que - após uma visão preliminar dos reinos do mundo
(7:2b-3) - a visão flui numa sequência de unidades em direção ao clímax. Ela, en-
tão, reverte a mesma sequência temátic~ como indica o esboço a seguir:
A. Primeiros três animais (v. 4-6)
B. Quatro animais (v. 7)
C. Descrição do chifre pequeno, incluindo sua fala (v. 8)
D. O JUÍZO (v. 9-10 suplementados pela segunda metade
nos versículos 13-14)
C'. Destino do chifre pequeno e sua fala (v. l l a)
B'. Destino dos quatro animais (v. lIb)
N.. Destino dos três animais (v. 12)
A estrutura quiástica dos versículos 4-14, com o juízo no seu centro, primeiro
d\'sn\'wa ascensão limitada dos poderes do mundo antes de traçar seu destino
ESTUDOS SOBRE DANIEL
numa ordem exatamente inversa na segunda metade do quiasma. Essa estrutura
argumenta claramente em prol de uma unidade da visão. O fato de os versículos
9-10 e 13-14 estarem em métrica poética, em contraste com a prosa, já indica que
alcançamos o clímax da visão.
Além disso, há três descrições que tratam da opressão, do juízo do reino que
se repetem no capítulo:
A. Opressão A. Opressão A. Opressão(v. 7-8) (v. 21) (v. 23-25)
B. juízo B. [uízo B. [uízo
(v. 9-12) (v. 22a) (v. 26)
C.Reino C. Reino C. Reino
(v. 13-14) (v.22b) (v. 27)
A segunda e a terceira descrição repetem a primeira estrutura de opressão, juí-
li) e reino; entretanto, as cores e os contornos ficam mais pronunciados à medida
que o escritor se move de uma descrição para a próxima.
Vários temas reúnem esses recorrentes padrões estruturais. Um tema desen-
1'1 ilve as vicissitudes de uma força opressora e o tema do reino, enquanto o outro
Ilvsdobra a importância do julgamento. Por um lado, vemos os profundos matizes
do principal vilão e seu destino final; enquanto, por outro lado, o reino, que a
principio pode ter parecido distante, torna-se cada vez mais uma realidade.
As estruturas e linhas temáticas que se apresentam no capítulo unem os ma-
uriais no capítulo 7. Há um plano delicadamente equilibrado e contraditório no
":tpítulo, que só seria interrompido pela retirada de alguma das partes. Isso, então,
Ivva ao seguinte esboço de todo o capítulo:
31
A. Prólogo (v. 1-2a)
B. Visão (v. 2b-14)
C. A reação do profeta à visão (v. 15-16)
D. Breve resumo da interpretação (v. 17-18)
C'. A reação do profeta à visão e sua elaboração (v. 19-22)
B'. Interpretação extensa (v. 23-27)
A'. Epílogo (v. 28)
W. 11. Slwa chal1la :1Il'n~':i()para outro quiasrna lircmrio no próximo capítulo:
/,:l) I2.'It, Numn disClISS:II) d:t.~ dinl\'llst\\'S ":ljll)c:dlplicas" horizoJ)lais t' vnlirais,
AUTORIA, TEOLOGIA E PROPÓSITO DE DANIEL
Shea observa várias declarações no capítulo 8 com respeito às atividades do chifre
pequeno. A primeira e a segunda atividades descrevem

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