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(FICHAMENTO) Jorge Ferreira e Lucília de A N Delgado (Org ) - O Brasil Republicano - O tempo do nacional-estatismo (Vol 2) - Capítulo 10

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Rachel Soihet – O povo na rua: manifestações culturais como expressão de cidadania (Cap. 10 de O Brasil Republicano – Vol. 2).
- “Tanto a prática do futebol como a do samba pelos populares nesse período [inicio do séc. XX] mesclavam-se a um processo de luta com vista a garantir sua prática. Afinal, nos primeiros anos da República predominava um quadro em que tais segmentos [futebol, samba, carnaval, candomblé], excluídos de participação política, rejeitaram a segregação que se lhes pretendiam impor e, a partir de suas manifestações, desenvolveram formas alternativas de organização vinculadas ao terreno da cultura, através da qual edificaram uma cidadania” – pág. 352;
~> Futebol no Rio de Janeiro em seus primeiros tempos
- “De esporte considerado próprio da elite, que pelo exercício aproximar-se-ia do modelo civilizado europeu, passa, na década de 1930, a ser valorizado pela influência negra, que teria dado ao futebol brasileiro um estilo nacional e uma maestria que, de longe, o fizeram superar aquele próprio dos seus locais de origem. Surgido na Inglaterra, o futebol já seria aqui praticado, em fins do século XIX, por imigrantes europeus e empregados de companhias estrangeiras, especialmente ingleses, mas também portugueses, italianos e alemães” – pág. 353;
- “O Fluminense Football Club, fundado em 21 de julho de 1902, foi o primeiro dos clubes surgidos no Rio, composto basicamente de jovens brasileiros da alta burguesia, que buscaram associar ao esporte ali praticado a imagem de refinamento e de cosmopolitismo” – pág. 353;
- “Esse foi um período em que ecoa com mais ênfase, junto à população, a maciça campanha de higienistas em favor do exercício físico, exaltado como fonte de energia e de saúde” – pág. 353;
- “Na perspectiva de garantir ao futebol uma imagem de distinção, ameaçada diante de seu crescimento, segundo a concepção dos dirigentes dos clubes considerados mais refinados, estes se decidem organizar a 8 de julho de 1905 a Liga Metropolitana de Futebol. Caberia à liga não apenas definir as regras como também os grupos que poderiam praticar o jogo. [...] O coroamento do processo deu-se com a decisão de se enviar aos clubes associados um ofício informando que as pessoas de cor não poderiam ser registradas na liga como amadores” – pág. 354-55;
- “Ao contrário do que ocorrera no Botafogo e nos demais clubes, os sócios do Bangu, que de forma crescente compunham-se de trabalhadores, inclusive negros, decidem-se pelo desligamento da liga, diante daquela decisão” – pág. 355;
- “A Liga Metropolitana não teria, porém, como evitar que os grupos excluídos dos seus quadros formassem as próprias associações ou clubes. Espalhados pela cidade, esses clubes não demoraram a criar outras ligas e campeonatos. Longe do monopólio pretendido pela Liga Metropolitana, o futebol espalhou-se por vários bairros” – pág. 355;
- “Verifica-se que jogadores rejeitados das disputas da Liga Metropolitana iam conquistando espaço nos clubes de menor expressão, dando ao futebol uma marca diversa daquela desejada pelos clubes de maior prestígio. Assim, operários, negros e suburbanos passam a articular os próprios clubes, tornando-se o jogo uma importante opção de lazer para amplas parcelas da sociedade carioca” – pág. 356;
~> Negros, mestiços, pobres conquistando espaço no futebol
- “Apesar de todos os empecilhos e do mal-estar provocado em membros dos grandes clubes, aqueles de menor porte vão ingressando na Liga Metropolitana” – pág. 356;
- “Nesse embate uma proposta é apresentada e aprovada naquele mesmo ano [1916], com vista a garantir a discriminação – a Lei do Amadorismo. De acordo com essa lei não seriam amadores, entre outros, os que tirarem seus meios de subsistência de qualquer profissão braçal, considerando como tais todas aquelas em que o indivíduo depende inteiramente de seus poderes físicos e não dos recursos de sua inteligência, especificando a seguir inúmeras profissões e situações impeditivas, como a do analfabetismo” – pág. 357;
- “As regras aprovadas geraram inúmeras polêmicas, mas os clubes pequenos articulados, quando da discussão dos estatutos, conseguiram impor-se, estabelecendo a assembleia com representantes de todos os clubes, na qual formavam a maioria, como instância decisiva da liga. Dessa forma, ainda que nos estatutos aprovados em 1917 ficassem estabelecidas as restrições acima citadas, a nova correlação de forças na liga garantiu aos clubes menores uma grande flexibilidade na interpretação das regras” – pág. 357;
- “Cresce a cada dia o prestígio do futebol [...] Novos sujeitos passam a praticá-lo, multiplicando-se os clubes, dando lugar a novas ligas e campeonatos. Os populares, portanto, nessa luta cotidiana, em nenhum momento abrindo mão da prática do jogo, asseguram seu espaço e uma crescente participação. Tomava vulto a escalada em termos da transformação do futebol em um grande fenômeno de massas” – pág. 357;
- “Indiferentes a esses protestos à sua presença e participação no futebol, os populares mantêm-se fiéis a sua paixão, compartilhando com a elite do entusiasmo pelo esporte e pelos jogadores que nele se destacavam” – pág. 358;
- “Tal situação, portanto, não era sinônimo de convivência harmônica, mantendo-se em meio à mesma uma realidade plena de disputas e conflitos: conflitos regionais entre cariocas e paulistas que se estenderam dos cronistas aos torcedores; rivalidades entre adeptos dos diferentes clubes; e as tensões étnicas e sociais que se mantinham, decorrentes da discriminação dos jogadores negros e dos pobres” – pág. 358;
- “Negros e mestiços lutavam contra sua própria exclusão, fazendo do patriotismo uma arma com a qual cobravam sua inclusão nos times nacionais e na própria imagem do país” – pág. 360;
- “Nesse momento [década de 1920], mais do que diversão, o futebol transforma-se em importante fonte de renda para os clubes. Com o crescimento significativo do público serão construídos os primeiros grandes estádios: Laranjeiras, São Januário e o Parque Antártica” – pág. 360;
- “O futebol transformava-se em jogo majoritariamente praticado por pobres. Domingos Antônio da Guia e Leônidas da Silva, jogadores negros que alcançaram enorme admiração, são um exemplo dessa mudança que se aprofunda na década de 1930” – pág. 360;
- “Aumentam as pressões em prol do profissionalismo, campanha na qual teve significativo papel o jornalista Mário Filho, no início dos anos 1930. Ressalta-se nessa campanha o apoio da maior parte dos dirigentes esportivos, convencidos de que caso esse não fosse adotado, inúmeros jogadores iriam para o exterior, mote da campanha de Mário Filho” – pág. 361;
- “Todavia, apesar de significativa resistência, em janeiro de 1933, o Fluminense, o Vasco, o Bangu e o América constituem a primeira entidade esportiva profissional da cidade – a Liga Carioca de Futebol, dando início a esse processo” – pág. 362;
- “Finalmente, já no início de 1937, o governo buscou acelerar a votação da emenda que oficializava os esportes, diante dos conflitos existentes e do clamor de grande parte da sociedade contrariada com os prejuízos por eles causados, em meio a um contexto internacional favorável à intervenção nos esportes” – pág. 362;
- “A valorização da participação negra no futebol não era um fenômeno isolado. Lembremos que na década de 1920 o modernismo acentua a importância da presença negra e indígena em nossa formação, opondo-se à tendência dominante que pretendia a valorização exclusiva do modelo europeu” – pág. 363;
- “[Freyre] Ao reforçar a associação do jogo da bola com os movimentos de outras práticas culturais negras, como a capoeira e o samba, dava forma a um processo que forja para o futebol praticado no Brasil uma nova tradição – mostrando como o jogo ganhara uma característica que não tinha em seus locais de origem, transformando-se o futebol em legítima expressão da nacionalidade” – pág. 364;
- “Na verdade, a ascensão e o reconhecimento desses jogadores não se constituíram em algo pacífico, como querem fazer ver intelectuais como o próprio Freyre, mas foram resultadode um processo de lutas. Nelas, os populares não apenas resistiam como atuavam, utilizando diferentes táticas, buscando aproveitar as ocasiões, as possibilidades oferecidas para garantir o exercício da cidadania cultural” – pág. 364;
- “O êxito obtido pela seleção na Copa de 1938 e o entusiasmo provocado nos diversos segmentos da população propiciaram ao governo a certeza acerca da significação do futebol para a consolidação de seu projeto político em termos dos ideais nacionalistas e de harmonia social, fazendo da atuação de certos jogadores a prova da inexistência de conflitos étnicos e sociais no país” – pág. 365;
~> Mas passemos ao Carnaval...
- “O Carnaval constituía-se na manifestação máxima dos populares, quando, de forma irreverente, utilizando-se da paródia, do deboche, da inversão, traziam à tona suas tensões e insatisfações contra a opressão e a discriminação que sofriam” – pág. 365-66;
- “E as manifestações populares, nas quais ganha espaço crescente a marca negra, são vistas com profundo desagrado num contexto em que predominavam as crenças quanto à superioridade racial e social, com vista ao avanço civilizatório” – pág. 366;
- “Os populares não aceitam tal discriminação, investindo toda sua energia em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal veículo de coesão e de construção de uma identidade própria, especialmente num contexto que lhes exclui do reconhecimento de direitos” – pág. 366;
- “Predominavam nesse momento as alusões desairosas da maior parte dos cronistas e intelectuais, que, com algumas poucas exceções, estavam voltados para a missão de civilizar o povo à moda europeia” – pág. 368;
- “Mas, apesar de toda a pressão, os populares não esmoreceram. Continuaram a ocupar as ruas, como a do Ouvidor de início e, mais tarde, a avenida Central, espaço pretensamente reservado às elites, não se limitando à Praça Onze. Integraram-se à vida da cidade, frequentando outros espaços, misturando-se com as demais classes sociais” – pág. 369;
- “Verifica-se que, apesar do esforço de segmentação dos espaços, de restringir a avenida ao Carnaval dos segmentos mais elevados, o fato não se concretizou de todo. A presença no local dos segmentos populares e a indesejada mistura de classes é uma realidade, apesar do empenho desenvolvido” – pág. 370;
- “Mas na década de 1920 novos ares se anunciavam. Após a Primeira Guerra Mundial, desmorona-se a ilusão da Europa como centro de um progresso ilimitado, tomando vulto no Brasil um movimento em busca de suas raízes. Num país onde as desigualdades econômicas, políticas, sociais, culturais e regionais eram a marca, constatam diversos intelectuais a urgência de modernização. [...] Esse processo, aliado ao desenvolvimento de ideias nacionalistas e à resistência desenvolvida pelos populares, que, apesar de todos os percalços, mantiveram suas manifestações, resultou na valorização das suas formas de expressão cultural, que passaram gradativamente a assumir um lugar reconhecido no espaço público” – pág. 372-73;
- “Iniciava-se um ritual que tomará corpo na década de 1930, de apresentação do samba aos visitantes estrangeiros, transformando-o em fator de atração turística” – pág. 373;
~> As Escolas de Samba ensaiam os primeiros passos...
- “Vargas, a partir de sua ascensão, percebe o potencial do quadro vigente, buscando valer-se da música popular e das agremiações carnavalescas como veículo para a integração dos populares no projeto de construção da nacionalidade. [...] Dessa coincidência de interesses afirma-se o predomínio popular no Carnaval, o qual se consolida com as escolas de samba, que teriam surgido em fins da década de 1920, quando ocorre uma concentração maior da população pobre nos morros e nas áreas suburbanas” – pág. 373-74;
- “Da reunião desses blocos surgiram, em fins da década de 1920 e início da de 1930, as escolas de samba. O nome escola teria surgido de um grupo que se reunia para beber e fazer música num botequim no Largo do Estácio, que ficava em frente a uma escola normal. Ismael Silva, outro expoente da nossa música popular, inspirou-se nesta e sugeriu que aquele grupo, com relação aos demais sambistas, era composto por professores, membros de uma escola de samba” – pág. 375;
- “Impedidos, por longo tempo, do exercício da cidadania, não brigavam por seu partido, como as elites, mas por sua agremiação festiva, como o faziam pelo time de futebol. O que servia de pretexto para que merecessem os epítetos de bárbaros, primitivos e para as atitudes violentas da polícia” – pág. 378;
- “São da maior significação as observações de E. P. Thompson acerca dos cuidados quanto a generalizações como cultura popular. [...] Acentua, o termo cultura, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto” – pág. 379;
- “Claro que os conflitos não ocorreram apenas entre os próprios populares. Alusões são feitas igualmente às intervenções violentas da polícia contra aqueles segmentos, como também às formas desrespeitosas por meio das quais os populares, durante largo tempo, foram qualificados por intelectuais e membros das elites” – pág. 379;
~> Populares e Estado: um pacto se estabelece
- “Para os grupos que ascendem ao poder em 1930, munidos de um novo projeto, torna-se fundamental retomar a construção da nacionalidade. [...] Urgia articular a comunicação entre as elites e a massa da população, até então divorciadas. Era mister voltar-se para o povo em suas mais genuínas e espontâneas manifestações e aspirações, fonte das tradições mais puras deste país, base da nação que se pretendia reconstruir” – pág. 380;
- “Temos, dessa forma, um momento em que as forças convergem. De um lado, os populares, fortalecidos por um longo processo de resistência, dispõem-se à conquista concreta do espaço público, não mais se contendo nos grupos específicos religiosos e tradicionais, nos pequenos cordões e ranchos carnavalescos. De outro, temos a proposta de valorização das manifestações populares por um Estado que se dispõe a realizar a união entre elites e massas e que, com a junção entre natureza e cultura, por intervenção da política, faria a integração tão sonhada, expressando a visão de uma sociedade harmônica” – pág. 380-81;
- “Um pacto se estabelece, mesmo que entre desiguais. De um lado, as manifestações populares são enaltecidas como raízes da nacionalidade. Com a reforma urbana, que resultou na destruição da Praça Onze, o desfile das escolas de samba transfere-se para o espaço nobre da avenida Rio Branco em 1942. De outro lado, valendo-se da astúcia, os populares devem praticar a caça em terreno alheio, na feliz expressão de Michel de Certeau” – pág. 383;

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