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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Saúde sexual é um direito fundamental para a emancipação das pessoas e se relaciona com a satisfação de necessidades humanas básicas, como desejo de contato, prazer, intimidade, carinho e amor. O objetivo da promoção à saúde sexual é permitir às pessoas exercerem sua sexualidade com maior autonomia, liberdade e tranquilidade. O primeiro passo é reconhecer que existem discursos, valores e normas nesse campo que reproduzem relações de poder e/ou exclusão (GUSSO et al., 2019). A sexualidade envolve, além do corpo, os sentimentos, a história de vida, os costumes, as relações afetivas e a cultura. Portanto, é uma dimensão fundamental de todas as etapas da vida de homens e mulheres, presente desde o nascimento até a morte, e abarca aspectos físicos, psicoemocionais e socioculturais (BRASIL, 2013). De acordo com as definições da OMS, a sexualidade é vivida e expressa por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos (BRASIL, 2013). SEXUALIDADE X PRÁTICA SEXUAL A sexualidade é mais abrangente do que a prática sexual. Ela é expressa no modo de vida, nos desejos, nas crenças, nas atitudes, nos valores, nos comportamentos, nas práticas, nos papéis e nos relacionamentos das pessoas. Apresenta desenvolvimento complexo ao longo da vida, não completamente conhecido, e envolto por diversos aspectos (corporais, psíquicos, culturais e históricos) (GUSSO et al., 2019). As práticas sexuais podem ser solitárias (como a masturbação) ou com outra(s) pessoa(s), utilizando partes ou todo corpo, com ou sem adereços (vibradores, vestimentas, barreiras, etc.), associada ou não à atividade reprodutiva. Essas práticas não são determinadas pela orientação sexual ou pelos atributos corporais das pessoas (GUSSO et al., 2019). CORPO ↠ O corpo biológico isoladamente não determina quem se é, mas sim a forma como se será apresentado ao mundo (GUSSO et al., 2019). ↠ O corpo é instrumento para a existência e o relacionamento entre as pessoas, e o seu desconhecimento dificulta a vivência sexual em sua plenitude. Algumas diferenças entre os corpos estão relacionadas a: (GUSSO et al., 2019). • Genótipo (genes e cromossomos sexuais): XX, XY e suas variações (XX ou XY com variações genéticas, XXY, etc.). • Genitália (caracteres sexuais primários): vulva, pênis e testículos típicos e variações. • Órgãos reprodutores: sistema reprodutor testicular e ovariano-uterino. • Caracteres de origem hormonal (ou secundários): mamas, aumento das genitálias, pelos corporais, aumento da secreção sebácea, distribuição de gordura corporal, desenvolvimento muscular, menstruação e ciclos ovulatórios, ejaculação e produção de espermatozoides, crescimento de cartilagem tireoide, alterações na voz, etc. GÊNERO E IDENTIDADE DE GÊNERO ↠ Gênero é um aspecto identitário existente em contexto comunitário, construído socialmente a partir da percepção da diferença corporal, suas simbologias e seus significados. Ser mulher ou homem é diferente em cada sociedade e varia ao longo da história (GUSSO et al., 2019). ↠ Desta maneira, o tipo de genitália não determina o gênero de uma pessoa. A norma social de atribuir um gênero às crianças a partir da genitália (visualizada ao nascimento ou nas ultrassonografias [US] obstétricas) é uma construção histórica e social que define como a família e a comunidade se relacionam com cada pessoa, podendo perpetuar desigualdades que influenciam no sofrimento, na morbidade e na mortalidade, principalmente das mulheres (GUSSO et al., 2019). A identidade de gênero é autodeterminada pela pessoa a partir das proposições de gênero que são apresentadas socialmente. A pessoa que se identifica com o gênero atribuído ao nascimento é entendida como cisgênera. A literatura científica descreve como “transgêneras” as pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer (GUSSO et al., 2019). Contudo, o movimento por associações de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) brasileiro definiu como estratégia política de reconhecimento de identidades os termos: travestis, mulheres transexuais (mulheres que não foram designadas mulheres ao nascer) e homens trans (homens que não foram designados homens ao nascer) (GUSSO et al., 2019). Travesti, pela Classificação internacional de doenças (CID-10), seria uma pessoa transfeminina, que se diferenciaria de uma mulher transexual por não desejar alterar sua genitália; entretanto, movimentos de pessoas transexuais não diferenciam essas identidades, exceto historicamente no movimento de resistência política. Na definição de pessoas transgêneras, também estão incluídas as pessoas não binárias (não se identificam como homens nem como mulheres), de “gênero fluido” (ora se identificam com um gênero, ora com outro) e outras variabilidades de gêneros tem também suas identidades reconhecidas nesse contexto (GUSSO et al., 2019). ↠ Outra possibilidade é compreender o gênero como uma performance intencional, constituída da repetição de atos, gestos e signos. Essa expressão de gênero, reconhecida como a forma de cada pessoa se apresentar às demais e ser percebida dentro dos tradicionais referenciais de feminino e masculino, abrange a imagem do corpo, posturas corporais, vestimentas, maneirismos, modos de fala e forma de estabelecer relações. Ela pode 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck ou não estar de acordo com os estigmas de gênero e com os papéis sociais esperados, ou pode ser fluida – percepção que proporcionou o surgimento do “Movimento queer” (GUSSO et al., 2019). Muitas pessoas buscam expressões de gênero que revelem sua identidade, para serem assim reconhecidas no meio social, mas outras não sentem essa necessidade ou não o fazem por temerem discriminações. Por isso, profissionais de saúde devem evitar suposições sobre a identidade da pessoa simplesmente a partir de sua imagem ou comportamento (GUSSO et al., 2019). Drag queens, drag kings e transformistas são artistas que representam personagens com gênero diferente do seu, muitas vezes exagerados e estereotipados. Crossdressers são pessoas que, por qualquer motivo, vestem e usam acessórios associados ao gênero diferente do seu. O modelo binário (que considera apenas homem ou mulher) é limitado para descrever todas as variabilidades de identidade e expressões de gênero (GUSSO et al., 2019). ORIENTAÇÃO AFETIVA E SEXUAL ↠ A orientação sexual é definida a partir do gênero por quem se deseja sexualmente, e a orientação afetiva ou romântica, a partir do gênero por quem se deseja relacionar afetivamente (GUSSO et al., 2019). Os prefixos “homo”, “hetero”, “bi”, “pan” e “a” são utilizados para definir a relação entre o gênero de quem deseja e por quem se deseja sexualmente (p. ex., bissexual são aqueles cuja atração é por mais de um gênero; pansexual, cuja atração independe do gênero; e assexual, quem não se atrai sexualmente por gênero algum) ou afetivamente (p. ex., homoafetiva, com atração afetiva pelo mesmo gênero; heteroafetiva, por um gênero diferente) (GUSSO et al., 2019). ↠ Identificar-se como homossexual (gay ou lésbica) ou bissexual, para além de categorias de orientação do desejo, significa um posicionamento político e de representação social. Porém, identificar-se com uma determinada orientação afetiva-sexual não expressa todos os desejos, afetos e relações que a pessoa estabelece ao longo da vida. Por isso, algumas estratégias preventivas para ISTs preferem os termos homens que fazem sexo com homens (HSH) e mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM) para incluir pessoas que têm relações com outras do mesmo gênero, mas que não necessariamente se identificam como homo ou bissexuais (GUSSO et al., 2019). ↠ A orientação afetiva-sexual não é uma opção, pois se tratado reconhecimento de seus próprios desejos, e não de uma decisão individual consciente. Ao longo da vida, podem ocorrer variações sobre a compreensão de si e dos outros e, portanto, também mudanças da compreensão da própria orientação afetiva-sexual. Mas esse é um processo singular e subjetivo que não é suscetível a modificações com terapias de reversão da orientação sexual. O Conselho Federal de Psicologia proíbe essas terapias, considerando-as tortura, por gerarem sofrimento mental e aumentar o risco de suicídios (GUSSO et al., 2019). Genitália, identidade de gênero, expressão de gênero, orientação sexual e práticas sexuais são conceitos corriqueiramente confundidos. São aspectos independentes e cada pessoa pode apresentar uma combinação única (GUSSO et al., 2019). 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck DIVERSIDADE SEXUAL E MOVIMENTOS SOCIAIS ↠ Foi convencionado chamar de “diversidade sexual” as múltiplas expressões da sexualidade decorrentes das combinações entre corpo biológico, gênero, identidade e orientação sexual (GUSSO et al., 2019). ↠ Uma expressão dessa diversidade é o movimento social liderado por LGBTs, que luta por direitos, pela livre expressão da diversidade sexual, pelo fim da violência dirigida a esses grupos e pela despatologização das “identidades trans”, com foco em políticas públicas e reconhecimento dessas identidades. Há uma tendência para que as letras “I”, “A” e “Q” sejam incorporadas à sigla, com intenção de dar visibilidade às demandas específicas de pessoas intersexo, assexuais (A) e queer (Q). Para contemplar essas e não restringir outras inclusões, também se utiliza a sigla LGBT+ (GUSSO et al., 2019). Temas negligenciados na abordagem da sexualidade ↠ Uma das principais ações para promover a saúde sexual é incentivar o autoconhecimento corporal e esclarecer sobre a sexualidade, especialmente em relação a temas negligenciados pela moralidade, como o clitóris e o orgasmo, o sexo anal e a masturbação (GUSSO et al., 2019). Sexualidade no ciclo de vida ↠ Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a sexualidade só pode ser compreendida por uma ampla definição, que abrange: (GUSSO et al., 2019). O sexo, as identidades e os papéis de gênero, a orientação sexual, o erotismo, o prazer e a intimidade. Ela é vivenciada e expressa por meio de pensamentos, fantasias, desejos, opiniões, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e nos relacionamentos. Embora a sexualidade inclua todas essas dimensões, nem todas são experimentadas ou expressadas por todas as pessoas ao longo da vida. Nascimento ↠ Os fatores que influenciam a constituição do sujeito iniciam antes mesmo da concepção intrauterina. Ao nascer, nossa sociedade costuma atribuir à criança a identidade de gênero a partir da genitália: homem, se pênis; mulher, se vulva (GUSSO et al., 2019). ↠ A partir dessa definição é comum a exigência que a criança expresse comportamentos de acordo com o gênero designado a ela, ao que profissionais devem enxergar a possibilidade de abordar as expectativas da família e outras situações que tendem a propagar violências de gênero (GUSSO et al., 2019). INFÂNCIA ↠ A maturação biológica do sistema sensorial e motor promove uma mudança na forma como a criança percebe e explora o mundo. A partir da interação com as pessoas ao redor, ocorre uma diferenciação entre o eu-outro e a autopercepção em relação a si. Ao redor dos 3 anos, a criança já percebe diferenças entre os corpos, como presença de pênis ou vulva, e entre 6 e 9 anos, são comuns brincadeiras de imitar os adultos, inclusive nos papéis de gênero (GUSSO et al., 2019). ADOLESCÊNCIA ↠ O adolescente pode ter preocupações quando compara o seu corpo com o de outros de sua idade, mas em outro estágio puberal, pois podem ser muito diferentes. Na adolescência, podem surgir dúvidas sobre a ejaculação, tamanho das mamas, ou do pênis, e a presença ou não de pelos. A masturbação é uma prática comum (GUSSO et al., 2019). Vida adulta ↠ A vida adulta não é um período uniforme e difere bastante entre as populações cis e transgêneras e entre homens e mulheres. Nessa fase, além de conversar sobre práticas sexuais, prevenção de ISTs e disfunções sexuais, abordam-se os direitos reprodutivos (GUSSO et al., 2019). Envelhecimento ↠ A necessidade sexual é mantida nas pessoas idosas, pois não há idade na qual a atividade, os pensamentos ou os desejos sexuais se esgotem, embora, devido a valores culturais, possam sentir vergonha ou medo de falar sobre o assunto. A melhora da expectativa e da qualidade de vida também permite a prática sexual com mais saúde, liberdade e autonomia por mais tempo e até o fim da vida (GUSSO et al., 2019). ↠ Redescobrir a sexualidade com outra pessoa após uma viuvez pode ser uma situação difícil em uma sociedade que vê as pessoas idosas destituídas de erotização. Problemas como redução da libido, anorgasmia e disfunção erétil não são parte do envelhecimento saudável (GUSSO et al., 2019). ABORDAGEM NA CONSULTA E COMUNICAÇÃO ↠ Aspectos da sexualidade são relevantes para compreender a pessoa. Entretanto, a abordagem dos profissionais, em geral, é vinculada a normas sociais ou a suposições, como admitir que uma mulher sexualmente ativa se relaciona com um 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck único homem, com quem deve ser casada e praticar apenas sexo com penetração vaginal. Mulheres que não atendem a esses quesitos, tidos como hegemônicos, tornam-se invisíveis no serviço de saúde e não têm suas necessidades atendidas. Muitos profissionais e pacientes não revelam sobre sexualidade porque temem o julgamento e/ou desassistência (GUSSO et al., 2019). ↠ A atenção à privacidade e ao sigilo é essencial em qualquer consulta. A porta do consultório deve estar fechada e não deve haver interrupções (GUSSO et al., 2019). ↠ A entrevista se inicia com perguntas abertas, evitando normatizações sociais. Sugere-se perguntar e pactuar os pronomes (femininos, masculinos ou neutros) e o vocabulário a ser utilizado, em vez de arriscar nomenclaturas que não reflitam a sua compreensão (GUSSO et al., 2019). ↠ É preferível perguntar sobre a existência de “relacionamentos”, em vez do “estado conjugal” ou “existência de marido/esposa”. As perguntas devem ser diretas, sem julgamento, e neutras (p. ex., “A pessoa com quem você tem relações...?”) em relação ao gênero ou à natureza da relação. O diálogo aberto é a prática de cuidado mais efetiva. Profissionais não precisam sentir desconforto ou medo de perguntar sobre a orientação sexual. A melhor estratégia é explicar previamente o motivo das perguntas e realizá-la (GUSSO et al., 2019). PERGUNTAS SOBRE SEXUALIDADE NA CONSULTA “No seu formulário, consta o nome “X”. Existe algum outro nome que prefira ser chamado? Você pode me informar isso a qualquer momento e podemos mudar seu registro na UBS, caso seja mais confortável para você.” “Eu gostaria de fazer algumas perguntas sobre sua sexualidade para ajudar na nossa conversa. Pode ser?” “Você já teve relações sexuais? Quando foi a última vez? Com que frequência? Com quantas pessoas? Com uma pessoa de cada vez ou todas juntas? Com homem, mulher, ambos?” “Você se masturba? Com que frequência?” “Você pratica ou já praticou sexo com penetração? Na vagina, no ânus e/ou na boca? Você penetrou ou recebeu a penetração (ativo ou passivo)? A penetração ocorreu com pênis, dedos ou objetos? Tem algum outro tipo de prática sexual que não lhe perguntei que ache importante falar?” “Você usa camisinha (peniana ou vaginal)? Qual é a frequência? Usa alguma outra forma de proteção contra IST? Já teve alguma IST?” “Você utiliza algum tipo de lubrificante? Qual?” Referências GUSSO, Gustavo; LOPES, José M C.; DIAS, Lêda C. Tratado de medicina de família e comunidade- 2 volumes: princípios, formação e prática. Grupo A, 2019. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. (Cadernos de Atenção Básica, n. 26)
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