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Antônio Vasconcelos de Saldanha - As Capitanias do Brasil - 2001

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AS CAPITANIAS DO BRASIL
ANTECEDENTES, DESENVOLVIMENTO
E EXTINÇÃO DE UM FENÓMENO ATLÂNTICO
K*
ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA
AS CAPITANIAS DO BRASIL
ANTECEDENTES, DESENVOLVIMENTO
E EXTINÇÃO DE UM
FENÓMENO ATLÂNTICO
Prefácio de Frédéric Mauro
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
LISBOA 2001
C o l e c ç ã o O u t r a s M a r g e n s
Título: As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento
e extinção de um fenómeno atlântico
Autor: António Vasconcelos de Saldanha
© Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
Revisão: Francisco Paiva Boléo
Capa: Fernando Felgueiras
Paginação: Jorge M. Belo
Fotolitos: Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro, S. A.
1.* edição: Centro de Estudos de História do Atlântico - 1992
1" edição: CNCDP - Fev. 2001
ISBN: 972-787-030-9
Depósito legal: 161 626/01
CNCDP - Catalogação na Fonte
SALDANHA, António Vasconcelos de, 1956-
As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e
extinção de um fenómeno atlântico / António Vasconcelos
de Saldanha. - Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
- 469p; 24cm. - (Outras Margens). - ISBN-972-787-030-9
l - SALDANHA. António Vasconcelos At
N O T A P R É V I A
Dez anos passados sobre a redacção, oito sobre a edição original,
e no ano preciso em que se comemora o 5.° centenário da descoberta
do Brasil, quis a Comissão Nacional para as Comemorações dos Des-
cobrimentos Portugueses dar novamente à estampa a obra a que origi-
nalmente demos o título As Capitanias. O Regime Senhorial na Expansão
Ultramarina Portuguesa, editada em 1992 pelo Centro de Estudos de
História do Atlântico, na Madeira.
Sai agora a mesma obra - ainda que desprovida dos apêndices
originais - com o título As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvi-
mento e extinção de um fenómeno atlântico.
Aqui, como então, haverá a necessidade de formular algumas
advertências que permitam ao leitor uma melhor compreensão das
linhas que se irão seguir. De facto, este estudo - vinculado a um tema
de História do Direito Português -não pretende fazer de modo algum
a história das capitanias atlânticas, mas tão-somente proporcionar al-
gumas chaves de compreensão do processo de génese e desenvolvi-
mento de um quadro jurídico e político, quadro esse que permitiu à
administração portuguesa o que Paulo Merêa definiu muito justa-
mente como «uma inteligente e fecunda adaptação das doações de
bens da Coroa» à realidade e às necessidades da Expansão e estabele-
cimento dos portugueses nos territórios de África, do Brasil e das
Ilhas do Atlântico durante os séculos XV, xvi, xvii e XVIII. O autor con-
tinua hoje a ter a consciência plena de que - independentemente da
justeza e do rigor que pretendeu fazer imprimir às suas conclusões -
muito haverá que colher ainda da investigação de importantes fundos
documentais, não só do Arquivo Nacional mas também dos arquivos
madeirenses e açorianos, do que, porventura, restar dos brasileiros e,
quem sabe até, dos antigos territórios portugueses da África Ocidental.
Diremos também que não houve pejo em - segundo um critério
de rigorosa actualização - transcrever tantas vezes quanto foi consi-
derado necessário o registo documental que melhor fundasse a com-
N O T A P R É V I A
preensão dos pontos de questões sucessivamente tratadas. Aconse-
lhava-o o carácter de um estudo que não é nem pretende ser de di-
vulgação, mas, essencialmente, um instrumento de trabalho para os
investigadores da História e do antigo Direito português.
Cabe também aqui referir a grande dívida de gratidão que o au-
tor contraiu ao longo deste percurso. Recordamos a preciosa colabo-
ração tantas vezes recebida nas Bibliotecas e Arquivos do país, nas di-
ferentes fases de uma pesquisa muitas vezes árdua. A hombridade e
o rigor com que os ilustres Mestres das Universidades de Lisboa e de
Coimbra apreciaram esta obra enquanto dissertação apresentada à
Academia. A generosidade e o interesse com que o Centro de Estudos
de História do Atlântico, nas pessoas dos Senhores Professor Luís de
Albuquerque e Doutor Alberto Vieira, acolheram a primeira edição
deste estudo. O modo muito particular com que o Senhor Professor
Frédéric Mauro quis na altura honrar o autor desta obra, redigindo o
prefácio da mesma.
E porque de dívidas falamos, notemos uma outra, esta para com
a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses. Em primeiro lugar, porque - sendo Comissário-Geral o
Senhor Dr. Vasco Graça Moura - foi em 1993 esta mesma obra galar-
doada por essa Comissão com o Prémio Nacional «D. João de Castro».
Em segundo lugar, porque agora - sendo Comissário o Senhor Professor
Joaquim Romero Magalhães - quis a mesma Comissão continuar a
honrar o autor com o patrocínio desta reedição, cabendo um particular
agradecimento ao Vogal da mesma Comissão, Senhor Dr. João Paulo
Salvado, pelo empenho que a isso notoriamente dedicou.
Finalmente, em relação aos Senhores Professores Martim de Albu-
querque e Ruy de Albuquerque, da Faculdade de Direito de Lisboa,
depois de arguirem e orientarem esta obra como sempre arguiram e
orientaram o seu autor durante os anos que com eles teve o privilégio
de trabalhar - com rigor, com disciplina, com saber e com seriedade
- permanece a dívida de gratidão, e, consequentemente, a dedicató-
ria original deste estudo.
Lisboa, Outubro de 2000
Amónio Vasconcelos de Saldanha
P R E F Á C I O À l * E D I Ç Ã O
Je suis heureux de présenter ia une oeuvre qui, je l'espère, ne será pás
réservée au public portugais - lê portugais esí devenu Ia troisième langue
européenne parlée dans lê monde, après l'anglais et l'espagnol - et qui
touche à rhistoire dês pays atlantiques: Portugal et sés tles adjacentes, Bré-
sil mais aussi Afrique lusophone. Une histoire qui commence au tnoins en
•1440, date de Ia création de Ia première capitainerie-donation, si nous
négligeons lê problème dês antécédents et dês origines, et se termine en
i 770 si nous oublions Ia marque laissée par cette institution sur lê statut et
Ia vie d'un certain nombre d'États et de régions. Nous avons été trop obnu-
bilés par Ia période 1532-1548 ou fui installé lê système dês capitaineries
brésiliennes. Lê thème ici aborde esí, à juste titre, plus large: il s'agit de
prendre toute l'institution dans toute sã durée et dans toute son extension
géographíque. C'est au bénéfice de tout lê monde y compris dês «brésilia-
nistes» qui ainsi comprennent mieux une institution qui a tant marque rhis-
toire du Brésil.
Une institution, écrivons nous, mais est-ce seulement une institution?
Au-delà de Ia façade institutionnelle, du formalisme juridique, n'y a-t-il pás
une structure, une réalíté humaine, politique, administraúve, économique
vivante qu'il convient de mettre en valeur? Malgré lês avertissements de sés
historiens du droit, l'Ecole Historique Française, depuis Ia dernière guerre
mondiale, a peut-être trop méprisé cette «façade institutionnelle», par réac-
tion contre l'oubli que certains juristes avaíení commis à l' égard de cê que
cache Ia façade. Mais Ia façade ne cache pás forcément Ia structure et dans
l'architecture classique elle exprime mime cette structure et elle est en mime
une partie. H en est de même dans lê droit ou lron connait trop bien Ia résis-
tance dês structures juridiques et institutionnelles. Nous sommes arrivés
aujourd'hui à un juste equilibre, fruit du bon sens et d'une conception plus
globale et complete de l'histoire. Lê droit et l'institution, sans être toute l'his-
toire,en sont une dês profondeurs, qui ne peut être évacuée.
António de Saldanha nous montre bien, dês son introduction, 1'ampleur
du problème qu'il aborde. U comprend três bien, en juriste ouvert, qu'il faut
P R E F Á C I O À 1.' E D I Ç Ã O
préciser Vencadrement politique, économique et social du processus généra-
teur de l'institution et Ia façon dont a été appliqué lê droit existam lors de
cette création. De lá, Ia necessite «d'éplucher» lês sources juridiques qui
étaient applicables, cê qui permettait ensuite de mieux caraaériser lês
diverses composantes de l'instituiion. Dans quelle mesure lê droit nouveau
ainsi defini était-il appliqué dans Ia pratique? Voilà une question qui
montre que lês historiens du droit ne se contentem pás d'étudier Ia société
telle qu'elle aurait du être été en fait. Enfm notre auteur n'oublie pás l'ana-
lyse dês courants d'idées subjacents à Ia création, 1'application, Ia survi-
vance et l'extinction de cês institutions. Ce sont dês príncipes généraux
qu'António de Saldanha s'efforce de suivre en s'adaptant au sujet qu'il
traite.
L'ouvrage que nous avons devant lês yeux est une véritable «somme»
sur lê sujet. D'abord par l'ampleur de Ia documentation dont il est fait, au
début, un tableau magistral et dont certains éléments sont reproduits à Ia ftn
du volume*. Et nous ne parlons pás de Ia bibliographie três complete qui se
trouve en tête du même volume. De même un inventaire três complet est
donné de Ia discussion érudite - qui n'y a pás participe? - sur lê «féoda-
lisme» ou lê «capitalisme» dês capitaineries. Tout lê monde est d'accord
aujourd'hui pour affirmer que sous lês apparences juridiques et sémantiques
d'un regime féodal - à peu prês inexistant au Portugal même - se cache une
entreprise agro-commerciale capitaliste tournée vers lê marche international.
Par contre Saldanha rappelle que lê système «seigneurial» existait au Por-
tugal continental et qu'en fait c'est lui plutôt qui sen de modele à Ia consti-
tution dês capitaineries, qui sont dês donations de biens de Ia Couronne
régies par dês règles qui relêvent de cê système.
Nous ne pouvons descendre dans lê détaildes analyses, remarquables de
dane et de précision, faites par l'auteur sur Ia création, Ia transmission et l'ex-
tinction dês capitaineries, sur leur gouvemement, sur l'organisation, qui y est
prévue, de Ia justice. Notons ensuite Ia présence d'un imponant chapitre sur
Ia sesmaria, cette concession de terre faite au cólon, au nom du Rói, par lê ca-
pitaine donataire. Lê système durera jusqu'en 1822. II y ala un prolongement
du système seigneurial, lê titulaire de Ia sesmaria étant soumis à cenaines
obligations envers lê donataire et envers lê rói, en échange dês avantages qu'il
reçoit.
Dans lê chapitre consacré à Ia propriété et aux revenus dês capitaines-
donataires, António de Saldanha nous rappelle qu'à cote dês pouvoirs dont
il jouissait, lê titulaire de Ia capitainerie percevait dês revenus dont certains
provenaient du fait qu'il était par délégation du Rói, propriétaire de Ia capi-
' Na 1.* edição.
] O
P R E F Á C I O À 1.' E D I Ç Ã O
tainerie, dont Íl distribuait à son tour une panie dês terres sous forme de ses-
marias. Selon Ia règle de 1'Ancien Regime Ia souveraineté n'était pás nette-
ment séparée de Ia propriété et celle-ci était diffuse à travers Ia hiérarchie
seigneuriale contrairement à Ia propriété bourgeoise du Code Napoléon.
Lês deux derniers chapitres sont consacrés aux relations entre lê Pouvoir
Royal et lês Capitaines Donataires et au processus d'incorporation dês Ca-
pitaineries à Ia Couronne, processus qui devait, au xviu siêcle, en finir avec
l'institution même dês capitaines-donataires. Lê lecteur dévorera cês pages
à"histoire, d'une histoire riche et techniquement remarquable. Venons en à Ia
conclusion, ou plutôt aux six conclusions qui dans leur dépouillement et leur
netteté vérifient encore une fois Ia vigueur de l'analyse. En resume:
1) Lês capitaineries sont dês manifestations du regime seigneurial;
2) Lê contenu de cês capitaineries est entièrement forme par dês biens et
dês droits de Ia Couronne qui restent sujets au regime qui leur est propre-,
3) Lê recours de Ia Couronne à cette institutton s'explique par trois mo-
tifs: Ia recompense de services rendus, l'évangélisation, Ia colonisation de ter-
ritoires atlantiques inhospitaliers;
4) La confiance dans cê système a dure du début du XVe à Ia fin du
XVUe siède;
5) Cette longue durée peut se diviser en trois phases: celle ou l'institution
est un facteur déterminant de Ia colonisation; celle ou elle est une formule
d'administration locale; celle enfm ou elle n'est qu'un moyen de percevoir dês
revenus et de poner dês titres nobiliaires;
6) Toutes lês prérogatives exercées par lês Capitaines Donataires lê sont
par délégation du Rói et conformément aux orares du Rói qui garde toujours
lê pouvoir suprime.
Nous livrant aux audaces de l'histoire comparative, nous avons pu na-
guère comparer l'institution dês Capitaines Donataires à celle dês Adelanta-
dos de l'Empire Espagnol. Si cela est vrai du point de vue du role économique
qu'ils ont pu jouer, Saldanha nous montre que du point de vue juridique, po-
litique, social et culturel, l'Adelantado est un petit personnage à cote du Ca-
pítaine Donataire qui, recrute dans une elite, était, avant Ia lettre, une espèce
de vice-roi dans sã province. Ce qui nous fait voir que l'élaboration juridique
dês institutions ponugaises était três solide. Ce qui ne devrait pás nous éton-
ner d'un peuple latin.
Nous souhaitons encore quelques granas livres d'histoire du droit ponu-
gais comme celui de Saldanha.
Frédéric Mauro
í i
A B R E V I A T U R A S U T I L I Z A D A S
AÃ - Archivo dos Açores
AM - Arquivo Histórico da Madeira
AP - Anais Pernambucanos, de F. Pereira da Costa
CD - Collecção de Documentos, de M. Velho Arruda
DBN - Documentos Históricos, Biblioteca Nacional
DF - Descobrimentos Portugueses, de J. Silva Marques
GTT - As Gavetas da Torre do Tombo
HCP - História da Colonização Portuguesa do Brasil, ed. de Carlos Ma-
Iheiro Dias
ID - Inventário dos Documentos, de E. de Castro e Almeida
MM - Monumema Missionaria Africana
OA - Ordenações Afonsinas
OF - Ordenações Filipinas
OM - Ordenações Manuelinas
PP - Processo relativo ao pleito sucessório sobre a Capitania
de Pernambuco, no Arquivo Nacional
RSP - Registo da Câmara de S. Paulo
SGC - Subsídios para a História da Guiné e Cabo Verde, de Senna Bar-
celos
13
I N T R O D U C Ã O
Objecto, Premissas e Considerações
Metodológicas
«Ainda está por ser escrita a história das capitanias hereditárias»,
escreveu há não muitos anos Hélio Viana1.
E ainda que o historiador brasileiro se referisse expressamente às
Terras de Vera Cruz, a afirmação mantém-se válida e não menos per-
tinente para a totalidade daqueles territórios do antigo Império Por-
tuguês onde o regime se firmou e, em grande parte, perdurou até à se-
gunda metade do século xvin.
É, no entanto, muito difícil levara cabo um estudo honesto e pro-
fundo da expansão e estabelecimento dos portugueses no Ultramar,
ignorando o que Paulo Merêa muito justamente considerou uma «so-\o tradicional da colonização». E mesmo a própria, ainda que es-
quecida, questão da estruturação e existência de um regime senhorial
em Portugal é indissociável de uma das suas mais fecundas manifes-J
tacões, como o são as capitanias ultramarinas.
Contudo, não cremos incorrer em exageros, afirmando que o es-\o do estabelecimento e evolução histórico-jurídica de uma institui- ;
cão como a das capitanias está eivado das dificuldades inerentes à gê- l
neralidade dos estudos que tenham como objecto a administração das !
antigas possessões portuguesas do Ultramar, e nas quais, em nosso en- i
tender, avulta sobre todas a penúria de bibliografia de pendor jurídico^-1
Daí que o investigador tenha que se confrontar à partida com a neces-
sidade de proceder a aturadas pesquisas nos mais diversos fundos do-
cumentais, o que não é emsi aterrorizante, não fora ter o passo cons-
tantemente atravessado por duas ordens de problemas: a enorme
dimensão de um campo de investigação que se espraia ao longo de
três séculos, em áreas geográficas muito distintas, e o razoável mau es-
tado dos arquivos próprios, não apenas desfalcados pelo tempo -
«roedor com dente brando, e o rato, a traça e os insectos com dente
1 HÉLIO VIANA, «A última capitania hereditária do Brasil (1685)», in Estudos de
História Colonial, S. Paulo, 1948.
l 7
l\O
agudo» - mas frequentemente primitivos no que respeita à cataloga-
ção racional dos fundos remanescentes.
Não surpreende, pois, que o grande historiador brasileiro Capris-
tano de Abreu, confuso pela vastidão e complexidade do tema, o re-
putasse como «o assunto mais incapaz de receber uma forma apre-
sentável que eu conheço». Também Hélio Viana, encarregado em
1936 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de estudar o
tema das capitanias com o fim de o expor em tese no III Congresso
de História Nacional a realizar em 1938, ano centenário da Institui-
ção, se apercebeu amargamente das dificuldades inerentes à desme-
dida tarefa:
«Desde então o estudamos - escrevia ainda em 1963 - sem ter até
agora chegado à elaboração de trabalho de conjunto a seu respeito.
Isto porque concluímos que não pode o mesmo ser realizado sem lon-
gas pesquisas em Portugal, inclusive pela perda de vários arquivos
particulares de antigos donatários em consequência dos incêndios re-
sultantes do terremoto de Lisboa, de 1755.»
Não podemos negar e somos solidários com as dificuldades sen-
tidas e pressentidas por Hélio Viana. Mas elas não são suficientes, em
nosso entender, para justificar o considerável descuido ou pobreza a
que este ramo da história ultramarina tem sido votado. Porque as ra-
zões não são apenas formais ou instrumentais, mas, essencialmente,
metodológicas, e é nesse campo que há que combater uma situação
cujas causas estão à vista e não são difíceis de definir: um estudo que
tenha como alvo o regime das capitanias não poderá ser de modo al-
gum extrapolado da análise de uma ou poucas situações m concreto, tal
como é igualmente improfícuo fazê-lo através da história avassalado-
ramente pormenorizada de cada uma das que a História inventaria.
Pelo contrário, defendemos que a compreensão desse complexo
institucional que está na base de toda a série das capitanias atlânticas
- e sobretudo as do Brasil - só poderá ser atingido pela abstracção das
particularidades de cada, em proveito do inventário e da reconstrução
de todas as lihhas-mestras de um sistema que, com raízes antigas e
com fins determinados, se fez estender a áreas diversificadas da ex-
são dos portugueses.
As capitanias, para lá das vicissitudes da sua existência e das dos
seus donatários, são essencialmente complexos políticos, jurídicos e
institucionais que há que definir com precisão em proveito da com-
preensão de fenómenos não exclusivamente jurídicos, mas também
sociais, políticos e económicos inerentes à evolução da sociedade
portuguesa. Como o fez Gonzalez Alonso em relação ao regime se-
I N T R O D U Ç À O
nhorial espanhol, é-nos lícito interrogarmo-nos quanto à possibili-
dade de entender a economia das capitanias desconhecendo o con-
teúdo jurídico do domínio sobre a terra, dos direitos exclusivos ou
das próprias cartas de foral; também nos é vedada a noção exacta das
relações sociais estabelecidas na área das capitanias, se prescindirmos
do conhecimento do estatuto jurídico dos seus habitantes ou da ex-
tensão precisa dos poderes dos órgãos de administração donatarial.
Fazê-lo é correr o risco de extrair conclusões erróneas ou, pelo me-
nos, bizarras quando postas em confronto com a realidade histórica
e jurídica portuguesa, o que, infelizmente, tem sido frequente neste
tipo de estudos.
A metodologia que defendemos e procuraremos seguir, impe-
dir-nos-á, porventura, de incorrer nos quatro vícios básicos por que,
em nosso entender, tem sido prejudicado seriamente o tratamento
proveitoso do assunto. Em primeiro lugar, a monopolização da tema- '
tica pelos estudos dedicados à história das capitanias brasileiras, do
que resulta infalivelmente a malformação ou a pura frustração de
uma visão global do fenómeno institucional. Em segundo lugar, a vin- ?
culação da história das capitanias às vicissitudes biográficas dos seus
donatários, com os mesmos resultados que acima se apontam. Em ?
terceiro lugar a desconfiança, indiferença ou pura e simples ignorân-
cia do peso da realidade jurídica subjacente à questão, de que resul-
tam em estudos globalmente válidos lacunas ou desvios de muito di-
fícil admissão. Em quarto e último lugar, as investigações feitas, ainda 4
que algumas abarcando outras matrizes que não exclusivamente a
brasileira, cristalizam-se na sua maioria em redor do título constitu-
tivo das doações, decompondo-o com maior ou menor pormenor^!
mas ignorando quase por completo o facto de que o fenómeno júri- \o não é estático e que cerca de três séculos de existência, fecundos j
em vicissitudes políticas, económicas e sociais, foram mais do que su-
ficientes para transtornar substancialmente não apenas a regulamen- \o jurídica interna como até o posicionamento jurídico-político ;
das capitanias quatrocentistas e quinhentistas.
Tudo presente, e atendendo a que este estudo se vincula prima-
cialmente à área da história das Instituições e do Direito, há que fixar
marcos orientadores que constituirão outros tantos objectivos meto-
dológicos geralmente aceites como indissociáveis de um trabalho
com estas características:
O traçado do enquadramento político, económico e social do
processo gerador e de aplicação do Direito em análise, a destrinça das
fontes do Direito aplicável, a caracterização e exame das componen-
I N T R O D U Ç Ã O
tes da instituição em causa, a verificação da aplicação prática do Di-
reito definido e, finalmente, a detecção das correntes de ideias subja-
centes à criação, aplicação, sobrevivência e extinção dessas institui-
ções. Na prática, houve, sequentemente, que moldar estas linhas de
rumo às particularidades do tema, levando em conta que nas capita-
nias ultramarinas - tal qual nos senhorios metropolitanos - são per-
ceptíveis quatro realidades condicionantes: o conjunto diversificado
dos fins que presidem à sua criação, o desenvolvimento de relações
peculiares e distintas dos vigentes noutros âmbitos, a constatação rei-
terada de determinadas práticas económicas e o facto de cada cir-
cunscrição donatarial se constituir numa área de exercício de um sis-
tema específico de governo.
Advirta-se, porém e desde já, que esta investigação sofre de uma
condicionante de peso, como é a da inexistência de um estudo global
sobre o regime senhorial português, do que vimos a incorrer na in-
versão de uma estratégia de estudo que, obviamente, haveria que par-
tir de um tema daquela natureza para outro, como o presente, sua
mera componente ou manifestação peculiar. Houve, pois, que tocar
em pontos que poderiam ser dados como pressupostos, desenvol-
vendo outros com o fim preciso de vincar, comparando, especificida-
des no quadro vasto do senhorio português.
Assim, delimitado o âmbito da questão, perspectivámos as capi-
tanias na sua vera natureza de doações régias de bens e direitos da
Coroa, com as inerentes obrigações que daí decorreram para os seus
detentores. Definido o enquadramento exterior da matéria e indica-
das não apenas as fontes úteis para o seu estudo, como também as
grandes linhas por onde correu a sua consideração nos últimos anos,
passámos a destrinçar e a caracterizar as variadas formas de criação,
transmissão e extinção das capitanias. A administração destas - quer
na perspectiva dos vários cargos e delegados dos donatários quer no
dos poderes que efectivamente lhes competiam - mereceram-nos es-
pecial atenção, e, na sequência, abordámos a própria jurisdição e o
exercício da Justiça pelos capitães. Não foi esquecida também a ca-
racterização dos réditos e dos monopólios senhoriais, e atendemosdevidamente à importante questão das sesmarias. Entrámos, final-
mente, no problema do relacionamento dos capitães e do poder real,
no que essa ligação poderá ter implicado em autonomia e subordina-
ção, e concluímos o nosso estudo debruçando-nos sobre o mal escla-
recido processo de incorporação das capitanias na Coroa.
Presente a tudo, o princípio de que esta investigação se desenro-
lou em função de matéria de Direito, valendo a incursão em outras or-
20
I N T R O D U Ç Ã O
dens, como a económica ou a política, como amparos à melhor defi-
nição de fenómenos jurídicos próprios e a levar em conta na caracte-
rização do contexto da Expansão Portuguesa. No seu termo, o leitor
ajuizará do sucesso do objectivo que pretendemos atingir: o enun-
ciado da disciplina jurídica que caracterizou o sistema das capitanias
como manifestação do fenómeno mais vasto do regime senhorial
português, e, no âmbito da colonização ultramarina, o seu posiciona-
mento face à Coroa, que lhe deu e retirou o ser.
Como última observação, é desnecessário reiterar a vastidão do
tema proposto: se por um lado, cronologicamente, se estende da data
da criação da primeira Capitania, em 1440, à data da extinção da úl-
tima, em 1770, geograficamente abarca toda a zona atlântica de ex-
pansão dos portugueses - o Brasil, a Madeira, os Açores, Cabo Verde,
S. Tomé, Angola e a Serra Leoa.
As oportunidades, condições e momentos da sua criação nessas
várias zonas são do conhecimento geral e não há obra dedicada à ex-
pansão ultramarina que as não cite. Ao fim que nos interessa - e sem
prejuízo dos aprofundamentos pontuais de que a matéria será alvo no
decurso deste estudo -, se quiséssemos sintetizar em linhas de dinâ-
mica o período de existência das capitanias atlânticas, poderíamos di-j
zer que há duas que são marcantes e que condicionam o desenrolar!
de dois processos que chegam a ser simultâneos.
No decurso do primeiro, é patente a crença na virtualidade do re-
curso à criação de capitanias como expediente de colonização de ter-
ritórios a desbravar. Tem, como vimos, o seu período áureo nos sé-
culos XV e xvi, chegando-se até ao fim dessa última centúria a impor
o sistema em todas as zonas da expansão atlântica. É o período dos
que - em consonância com velha prática - chamaremos Grandes-Do-;
natários, irmãos ou sobrinhos dos monarcas de Avis, a quem estes,
concedem amplas porções dos territórios recém-descobertos ao fim:
determinado da sua colonização e aproveitamento, doações essas a
que acompanham proventos consideráveis e relativamente amplos
poderes na administração e no exercício da justiça. Como não menor
dessas faculdades, incluiu-se o poder criar capitanias, concedendo-se
aos capitães, com o carrego de as manter «em justiça e direito», im-
portantes direitos no campo do exercício da administração, arrecada-
ção de proventos e distribuição de terras, em muito semelhantes aosj
da primeira doação feita ao Grande-Dona tá ri o.
Esse período, iniciado em 1433 com a doação que o Rei
D. Duarte fez a seu irmão D. Henrique da ilha da Madeira, terminará
em 1495 com a subida ao trono do derradeiro Grande-Donatário, o
2 l
I N T R O D U Ç Ã O
Duque de Beja, com o nome de D. Manuel I. Sob a acção conjunta
desses príncipes e do Rei Africano, a criação de capitanias - iniciada
no Machico, em 1440 - aíargar-se-á ao resto da Madeira e ao Porto
Santo, às ilhas de S. Miguel, Faial, Pico, S. Jorge, Graciosa e Terceira,
esta dividida nas duas jurisdições da Praia e Angra, todas nos Açores,
às de Santiago, Fogo, S. Nicoíau, Brava, Boavista, Maio e Sto. Antão,
em Cabo-Verde, a S. Tomé e à própria ilha do Príncipe. Mesmo aque-
les territórios vagos - ilhas míticas ou esperanças dos Cortes-Reais,
que a ambição dos nautas portugueses não desarmava de procurar-
chegou-os a conceder adiantadamente o Rei, segundo o mesmo tipo
de concessões de características senhoriais que vinha fazendo aos po-
voadores de terras já descobertas.
A necessidade de ocupar efectivamente as terras do Brasil, susci-
tará um incremento do sistema de colonização por capitanias, re-
vendo-se o esquema de doações anteriormente usado no sentido de
conceder aos capitães maior exuberância nos poderes e proventos
enunciados. Nascem assim, no período que decorre de 1534 a 1536,
as célebres capitanias «primárias» do Rio Grande, Maranhão, Juru-
cuará, Ceará, Itamaracá, Santo Amaro, Pernambuco, Baía, Ilhéus,
Porto Seguro, São Vicente, Cabo Frio e, posteriormente, em 1556,
criar-se-á a de Itaparica e em 1557 a de Peroaçu.
Nos termos do modelo brasileiro, o Rei D. Sebastião estenderá,
í em 1571, o sistema a Angola e, em 1606, o Rei Filipe fá-lo-á alargar à
Serra Leoa. Serão também os Filipes a dar início a um novo ímpeto de
criação de capitanias no Brasil, que, independentemente da turbulên-
cia da Restauração, se irá prolongar até ao reinado de D. Pedro: só no
século XVII poderemos contar a criação de nada menos que dez novas
capitanias - Rio Grande, Cabo Frio, Campos de Goitacazes, Rio da
Prata, Ilha de Sta. Catarina, Cumá, Caeté, Cabo do Norte, Ilha
Grande de Joanes e Xingu, a derradeira, em 1685.
Porém, no decurso de um segundo e simultâneo processo, ainda
nos primórdios do século XVI, são patentes as limitações impostas ao
poder dos donatários da Madeira, Açores, e, especialmente, aos do
Brasil, que - provado o seu fracasso - vêem violentamente abalados
os seus privilégios originais com a instituição de um Governo-Geral
em 1549. Os reis Filipes iniciarão um processo organizado de con-
trolo de eficácia da acção dos donatários, pela imposição de condi-
ções, revogação de privilégios - como em Pernambuco - e até puras
e simples renúncias de carácter compulsivo, como sucede à Capitania
de Cabo Frio, de Gil de Gois, em 1619. O entendimento parece ser o
de restringir ao máximo a existência ou autonomia dos capitães em
22
I N T R O D U Ç Ã O
zonas de crescente interesse para a Coroa, fomentando a sua criação,
como vimos, em zonas de colonização inexistente ou incipiente.
Os reis da nova dinastia de Bragança, mantendo embora a polí-
tica de concessão de capitanias limitadas às zonas mais primitivas do
Brasil, aproveitar-se-ão das profundas mutações proporcionadas pelo
estado de guerra constante, para lançar mão de antigos senhorios
como Pernambuco e sujeitar ainda mais os restantes ao controlo cres-
cente dos governantes de nomeação régia. O descrédito acaba por en-
volver totalmente o sistema de capitanias, tornado patente já no deal-
bar do século XVHI, criando-se, como dissemos, a derradeira, no Brasil,
em 1685.
À administração do Rei D. João V preside, em relação às capita-
nias, uma só preocupação: a tentativa da sua absorção, atingida em
vários pontos com sucesso - Sto. Amaro (1709), Pernambuco (1716)
e Espírito Santo (1718), todas no Brasil, e em 1736 algumas das capi-
tanias remanescentes em Cabo Verde são também definitivamente
incorporadas na Coroa, o que, acrescendo ao processo natural do de-
sinteresse ou falta de sucessão dos capitães-donatários, leva a que o
número dos senhorios ultramarinos vá substancialmente diminuindo.
Efectivamente, quando D. José sobe ao trono em 1750, esses se-
nhorios ultramarinos estão reduzidos ao escasso número de nove no
Brasil, ao de Sto. Antão em Cabo Verde, ao da Ilha do Príncipe e às ve-
lhas capitanias de Porto Santo, Machico e Funchal, na Madeira, e
S. Miguel e Santa Maria, nos Açores. Neste mesmo reinado, num pro-
cesso que se desenrola de 1753 a 1770, acabarão por desaparecer
definitivamente2.
2 A fim de facilitar uma visão global da inserção das capitanias no enquadra-
mento histórico da Expansão portuguesa, poder-se-á consultar, para o que toca ao
ritmo das concessões, em toda a área atlântica, nos séculos XV e XVI, CHARLES VERLIN-
DEN, «Portugese en Spaanse Feodale en Domaniael Kolonisatievormen in de Atlantis-
che Ruimte», in Mededelingen van de Koninkli/ke Academie voar Wetenschappen, Leneren
en Schone Kunsie van Belgie. Klasse dês Letteren. Academias Analecta, Jaargang 45, Nr. 3,
Bruxelas, 1983. Do mesmo autor, masrestrito às doações na Madeira e nos Açores,
veja-se «Formes Féodales et domaniales de Ia Colonisation Portugaise dans Ia Zone
Atlantique aux XIV et XV siècles et spécialement sous Henri lê Navigateur», in Revista
Portuguesa de História, vol. IX, Coimbra, 1960, pp. 1-44. Para o mesmo Em, veja-se
também HENRIQUE GALVÃO e CARLOS SELVAGEM, O Império Ultramarino Português. Mono-
grafia do Império, Lisboa, 1950-1952 (4 voís.) e CRJSTTANO DE SENNA BARCELOS, Subsídios
para a História da Guiné e Cabo-Verde, Lisboa, 1899. Para o caso específico do Brasil
veja-se, naturalmente, a História da Colonização Portuguesa do Brasil. Edição Monumental
Comemorativa do Primeiro Centenário da Independência do Brasil, editada e organizada
I N T R O D U Ç Ã O
por CARLOS MALHEIRO DIAS, Porto, 1921-1924 (3 vols.J, e, complementarmente, e a
fim de prolongar no tempo a visão do processo de concessão das capitanias brasilei-
ras, veja-se também HÉLIO VIANA, História do Brasil - Períocío Colonial. Monarquia e
República, 14.1 ed., Edições Melhoramentos, S. Paulo, 1980. O caso específico das
capitanias de Angola e da Serra Leoa pode ser analisado, respectivamente, em
ALÍREDO DE ALBUQUERQUE FELNER, Angola. Apontamentos sobre a ocupação e início do esta-
belecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela, Coimbra, Imprensa da Univer-
sidade, 1933; VIRGÍNIA RAU, «Uma tentativa de colonização da Serra Leoa no século
xvm», in Ias Ciências, Ano XI, num. 3, Madrid, s.i.d., e P. E. H. HAJR, «The Abortive
Portuguese Settlement of Sierra Leone 1570-1625», in Vice-Almirante A. Teixeira da
Mota. In Metnoriam, Volume I, Lisboa, Academia de Marinha, Instituto de Investiga-
ção Científica Tropical, 1987, pp. 171-208. Outra questão afim, como a dos prece-
dentes medievais das concessões senhoriais como expediente de colonização, pode
ser apreciada em PAULO MERÊA, «A solução tradicional da Colonização do Brasil», na
citada História da Colonização Portuguesa do Brasil, voí. m, Porto, 1924, pp. 167-168, e
especialmente CHARLES VERLINDEN, Précédents médiévaux de Ia colonie en Amériaue, Ins-
tituto Panamericano de Geografia e História, México, 1954. Veja-se também M. JEN-
SEN e R. REYNOLDS, «European colonial experience. A plea for comparativa studies», in
Studi in onore di Cino Luzatío, t. rv, Milão, 1950, e HAROLD B. JOHNSON JR., «The Dona-
tary Captaincy in,Perspective: Portuguese Backgrounds to The Settlement of Brazil»,
in The Hispanic American Hisloncal Review, 52:2 (Maio de 1972), pp. 203-214. Sobre a
administração dos grandes-donatários há que consultar, para os Açores, o ensaio crí-
tico de MANUEL MONTEIRO VELHO ARRUDA, na sua Colecção de Documentos relativos ao
descobrimento e povoamento dos Açores, Ponta Delgada, 1932, e para a Madeira é de uti-
lidade o estudo de DAMIÃO PERES, A Madeira sob os Donatários, Funchal, 1914, bem
como JOEL SERRÀO, «Na Alvorada do Mundo Atlântico - I - Primórdios da Coloniza-
ção da Ilha da Madeira (1425-1470)», in Das Artes e da História da Madeira, vol. jv, n.°
l, Funchal, 1961, e FERNANDO JASMINS PEREIRA, «A Ilha da Madeira no período henri-
quino (1433-1460)», in Ultramar, n.° 3, Lisboa, 1961, pp. 24-47. A concessão de ilhas
ou territórios de localização incerta pode ser analisada através dos vários diplomas
2 4
I N T R O D U Ç Ã O
transcritos por MANUEL MONTEIRO VELHO ARRUDA, Os Cortes-Reais. Memória Histórica
Acompanhada de Aluitos Documentos Inéditos, Ponta Delgada, 1883, e em W. H- BAB-
COCK, Legendary islands ofthe Atlantic, Nova Iorque, 1922. Questão a merecer também
alguma atenção é a das afinidades e eventuais derivações de outros sistemas de colo-
nização fundados em concessões de cunho senhorial por outras nações, matéria refe-
rida em PAULO MERÊA, oy. cit., e JEAN-PIERRE WALLOT, «Lê Regime Seigneurial et son
abolition au Canada», in LfAbolition de Ia Féodalité dans lê monde ocddental. Colloaues
Intemattonaux du Centre national de Ia Recherche Scientifique Sciences Humaines, Actas,
Toulouse, 12-16, Novembro de 1968, tomo i, Paris, 1971, pp. 357 e 384. Vide também
a discussão desta comunicação no tomo II das citadas Actas.
No que toca à extinção das várias capitanias não conhecemos nenhum estudo
global, salvo o que deixamos feito no Capítulo IX desta obra. Infelizmente, por con-
veniência editorial, não nos foi possível incluir o corpo de 11 apêndices que na 1.*
edição reputámos de consulta essencial para o estudo das capitanias, uns inéditos ou
desconhecidos, ou já publicados mas geralmente ignorados, esquecidos ou de difícil
consulta. A saber: Carta de doação de duas capitanias no Brasil a João de Barros e
Aires da Cunha (8 de Março de 1535); Carta de doação das minas de ouro e prata das
respectivas capitanias a João de Barros, Aires da Cunha e outro (18 de Junho de
1535); Alvará por que se limita a jurisdição dos Capitães-Donatáríos do Brasil (5 de
Março de 1557); Diploma sobre a alçada dos capitães das Ilhas, colhido das Ordena-
ções Extravagantes do Dr. Heitor de Pina (23 de Março de 1549); Carta de Doação da
Capitania de Camutá a Feliciano Coelho de Carvalho (14 de Dezembro de 1633);
Parecer do Dr. Tomé Pinheiro da Veiga sobre as alterações a introduzir nas cartas de
confirmação das capitanias (15 de Junho de 1649); Acórdão respeitante à causa que
correu entre os Condes de Vimioso e a Coroa sobre a Capitania de Pernambuco (31
de Agosto de 1677); Carta de Doação da Capitania de Xingu a Luís de Abreu de Frei-
tas (31 de Janeiro de 1685); Anúncio da Gazeta de Lisboa respeitante à incorporação
da Capitania de Caeté (15 de Novembro de 1753); Diploma de extinção das capita-
nias dos Açores (2 de Agosto de 1766); Parecer do Dr. José de Seabra da Silva sobre a
Capitania de S. Vicente (30 de Junho de 1781).
25
l . O T E M A
1. O Estudo da Temática das Capitanias
1.1. Introdução
i
Apesar de constituir-se como um dos temas fundamentais da his-
tória da administração ultramarina, não é largo ou sequer satisfatório
o número dos estudos que especificamente se dedicam à análise da
construção jurídica própria do sistema das capitanias. Podemos con-
tar, naturalmente, com a sua menção em grandes obras de síntese
j como as histórias gerais ou as histórias do Direito; são conhecidos
também estudos que se debruçaram especificamente sobre uma ou
grupos de poucas capitanias, como são as obras clássicas de Alberto
Lamego, Pedro Tacques, Faria e Maia, Damião Peres ou Pedro de Aze-
vedo, vinculando-as na generalidade aos percalços das biografias dos
seus donatários.
Todavia - e ainda que especificamente dirigido ao caso brasileiro
- mantém-se pertinente o comentário de Dauril Alden (1973) de que
«apart from studies on the founding fathers and an occasional article
on the Iate captaincies granted in the seventeenth century, there are
no comprehensive studies of the donatarial regime»1.
No mesmo sentido poderia Harold Johnson concluir que
«Luso-Brazilian historiography hás never managed to achieve a very
satisfactory understanding of the donatary captaincy, the institution
above ali others that provided the framework for the initial settle-
ment of Brazil»2.
Verdade que, aliás, não é nova pois já o velho historiador brasi-
leiro Rocha Pombo advertira que «não é possível ter uma ideia do que
1 DAURJL ALDEN, Royal Government in Colonial Brazil, with special reference to the.
admínistration of the Marquis of Lavradio, Vice-Roy, 1769-1774, Berkeley, University of
Califórnia Press, 1968, pp. 31 ss. 8.
2 HAROLD B. JOHNSON JR., «The Donatary Captaincy in perspective: Portuguesa
Backgrounds to the Setdement of Brazil», ín The Hispanic American Historical Review,
52:2 (Maio de 1972), p. 197.
29
O TEMA
eram as donatárias sem uma notícia completa do regimen político,
económico e civil, que por elas se criava. Por falta de semelhante no-
tícia, nem sempre se tem uma noção perfeita do que foi aquele pro-
cesso a que recorreu D. João III no intuito de apressar a ocupação e
povoamento da terra»3.
Mas, mau grado as advertências, a falta de vitalidade deste tipo
de estudos é patente, e ressente-se,já o dissemos, da ausência la-
mentável de um estudo aprofundado sobre o regime senhorial
português, de que as capitanias são uma das manifestações mais
notáveis.
Vamhagen e Rocha Pombo deixaram-nos nos volumes das obras
que dedicaram à História do Brasil, análises cuidadas dos diplomas
constitutivos, dos forais e regimentos que fundamentaram a vida ini-
cial das capitanias brasileiras. Histórias especificamente dedicadas ao
Direito brasileiro, como as de Max Fleiuss4, ou os detalhados estudos
de Waldemar Martins Ferreira5 ou de Isidoro Martins Júnior6, dedica-
ram páginas sérias ao mesmo objectivo.
Aliás, o enunciado jurídico do regime das capitanias tomou-se
elemento essencial mas repetitivo em quase todas as obras dedicadas
à Expansão, nomeadamente as respeitantes ao Brasil e, em muito me-
nor grau, às das ilhas da Madeira e Açores.
1.2. A Questão do «Feudalismo»
O ano de 1924 e a edição da monumental História da Colonização
Portuguesa do Brasil7, pareceram marcar decisivamente um rumo novo
à consideração do problema das capitanias, nomeadamente às do Bra-
sil, que assim faziam passar a uma imerecida sombra instituições con-
géneres de outras áreas do Atlântico. Se o Professor Paulo Merêa lhes
dedicava um primoroso estudo de cunho jurídico, encimado pela epí-
3 JOSÉ FRANCISCO DA ROCHA POMBO, História do Brasil, Rio de Janeiro, Tipographia
da Empresa Literária e de Tipographia, 1905, vol. III, p. 221.
4 MAX FLEIUSS, História Administrativa do Brasil, 2.* ed., S. Paulo, Companhia
Melhoramentos de S. Paulo, s.i.d.
5 WALDEMAR MARTINS FERREIRA, História do Direito Brasileiro, S. Paulo, 1951-1958.
6 ISIDORO MARTINS JÚNIOR, História do Direito Nacional, Colecção Memória Jurí-
dica Nacional, vol. l, Brasília, Departamento de Imprensa Nacional, 1979.
7 C. MALHEIRO DIAS, História da Colonização Portuguesa do Brasil. Edição Monumen-
tal Comemorativa do 1." Centenário da Independência do Brasil, Porto, 1921-1924, Edição
de (...).
30
O T E M A
grafe A Solução Tradicional da Colonização do Brasifi, noutros capítulos
biografavam-se os primeiros capitães-donatários9, exaltando-lhes os
feitos e aureolando-lhes a acção sob a luz romântica do que Malheiro
Dias, promotor e organizador da edição, chamou no volume m, O Re-
gime feudal das Donatárias.
Há, todavia, que ponderar. Escreveu há vários anos o Professor
Mário de Albuquerque que a «expansão ultramarina tem sido ava-
liada por critérios diferentes mas sempre filhos de preocupações dou-
trinárias»; e exemplificava enunciando a «história cavalheiresca», os
românticos, os nacionalistas e mesmo os que «estrangulam o pro-
blema frequentemente numa estreita visão agrária»10. E tinha razão o
ilustre Mestre, bastando recordar o condicionamento a que tem es-
tado sujeito o tratamento da questão das capitanias no sentido de a
priori o integrar em esquemas de feudalismo. Relembrem-se, por exem-
plo, as palavras do Professor Ruy UIrich:
«As capitanias são um tipo perfeito do regimen feudal - facto estu-
pendo este, pois o feudalismo rigorosamente caracterizado nunca exis-
tiu no Portugal europeu. O que aqui não existira julgou-se, porém, ade-
quado para as Colónias e lá se usou [...] Os donatários das capitanias
eram autênticos senhores feudais, com direitos de propriedade e de so-
berania, que se transmitiam hereditariamente, e tributários perpétuos da
Coroa suserana...11»
Numa linha em que o facto ou rotulação é dada como consu-
mada, o Padre Serafim Leite fala em «regime feudal dos donatários»12,
Contreiras Rodrigues num «período feudal da colonização»13, A. Am-
brósio de Pina em «privilégios feudais»14, Charles Boxer num «dona-
8 PAULO MERÊA, «A Solução Tradicional da Colonização do Brasil», ín HCP,
vol. li, pp. 167 ss.
9 PEDRO DE AZEVEDO, «Os Primeiros Donatários», in HCP, vol. n, pp. 194 ss.
10 MÁRIO DE ALBUQUERQUE, O Significado das Navegações e Outros Ensaios, Lisboa,
Sociedade Nacional de Tipografia, 1930, p. 17.
11 RUY ULRICH, «Colonizações Ibéricas», in A Questão Ibérica, Lisboa, Typografia
do Anuário Comercial, 1916, pp. 207-208.
12 SERAPIM LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa, Rio de Janeiro,
1938-1950, tomo n, p. 140.
13 F. CONTREIRAS RODRIGUES, Traços de Economia Social e Política do Brasil Colonial,
Rio de Janeiro, Aciel Editora, 1935, p. 106.
14 A. AMBRÓSIO DE PINA, «O feudalismo e os descobrimentos», ín Congresso Inter-
nacional de História dos Descobrimentos. Actas, Vol. IV, Lisboa, 1961.
O TEMA
tario system with its mixture of feudal and capitalistic elements»15,
Bailey Diffie referindo que «the powers granted to the Donatários
were much like those held by the feudal nobles of Portugal»16, ou
Henrique Galvão aludindo a um regime «semi-feudal de capitanias
hereditárias»17. Eulália Lobo, num estudo que dedicou à administra-
ção comparada das Américas espanhola e portuguesa, ainda acres-
centa que «a administração das colónias americanas destes países
apresentava um carácter predominantemente feudal. Empregamos
esta palavra para nos referirmos àquelas características feudais que
existiram na península Ibérica, e não ao sistema na sua forma mais
completa e típica como o encontramos, por exemplo, na França»18.
Também Vicente Tapajós, num estudo recentemente publicado pela
Universidade de Brasília, chega ao ponto de afirmar que «se levarmos
em consideração que o regime das sesmarias era caracterizadamente
feudal, seremos forçados a admitir certa vinculação entre os dois re-
gimes, o feudal e o das capitanias hereditárias, de que as sesmarias se
constituíam pilares»19.
Em termos não muito diferentes e sem grande expressão de fun-
damento, tinham-no já afirmado também Varnhagen, João Francisco
Lisboa, Oliveira Martins, Martins Júnior e Sílvio Romero, que, se-
gundo Queiroz Lima - num estudo que fez escola por destoar do ge-
ral coro dos propugnadores do feudalismo20 -, «têm procurado ver no
sistema de capitanias hereditárias a ressurreição do regimen feudal da
Idade Média»21.
Corno característica quase omnipresente nestas posições, anote-
-se uma total ou quase total falta de fundamentação, a que não será
estranha, porventura, a ausência de um conceito preciso de «feuda-
lismo». Casos típicos são os citados de Diffie, Eulália Lobo ou o próprio
15 CHARLES R. BOXER, The Portuguese Seabome Empire, 1415-18Z5, Londres, 1969.
16 BAYLEY DIFFIE, Latiu American Civilization - Colonial Períod, Hamburgo, 1947,
p. 739.
17 HENRIQUE GALVÃO e CARLOS SELVAGEM, Império Ultramarino Português. Monogra-
fia do Império, Lisboa, Imprensa Nacional de Publicidade, 1950-1952, vol. \\, p. 188.
18 EULÁLIA MARIA LOBO, Administração Colonial Luso-Espanhola nas Américas, Rio
de Janeiro, Editora Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1952, p. 75.
19 VICENTE DA COSTA TAPAJÓS, História Administrativa do Brasil. A política adminis-
trativa de D. João III - 2.* ed., Brasília, Universidade de Brasília, 1983, p. 29.
20 QUEIROZ LIMA, «Capitanias Hereditárias», in Revista de Estudos Jurídicos, n.° 2,
Agosto, Rio de Janeiro, 1930.
21 HÉLIO VIANA, História do Brasil. Período Colonial. Monarquia e República, S. Paulo,
Edições Melhoramentos, 1980.
32
O TEMA
Malheiro Dias no seu «Regime Feudal das Donatárias». Como comen-
tou Harold Johnson, «that nothing in his description remotely con-
formed to any viable definition of feudalism, or that medieval Portu-
gal never experienced an identifiable "feudal" tradition, seems not to
have perturbed him at ali»22.
1.3. Orientações Recentes
Mas, sintomaticamente, não foram juristas ou historiadores do
Direito a vir à liça a fim de procurar a precisão de uma questão que se
tornava emblemática e monopolizadora das atenções de quem se de-
bruçasse sobre este aspecto da antiga administração portuguesa.
A tese de Malheiro Dias encontraria um dos mais acérrimos im-
pugnadores no campo dos historiadores económicos, na pessoa do
Professor Roberto Simonsen, autor de uma clássica História Económica
do Brasil, pouco mais de uma dúzia de anos mais recente do que a
obra dirigida por Malheiro Dias23. No capítuloque submeteu preci-
samente ao título «Capitalismo ou regimen feudal?», Simonsen afir-
mou categoricamente não lhe parecer razoável «que a quase totali-
dade dos historiadores pátrios acentuem em demasia o aspecto feudal
do sistema das donatárias, chegando alguns a classificá-lo como um
retrocesso em relação às conquistas políticas da época»24.
Além de vários considerandos sobre o peculiar regime jurídico
das donatárias brasileiras e as motivações que terão presidido à sua
criação, suficientes no entender de Simonsen para lhes subtrair o cunho
feudal, acrescenta:
«Os nossos historiadores não têm encarado o caso sob esse aspecto.
Quando se referem a donatarismo, o consideram como se estivessem
diante de um regimen feudal. O facto se explica pela falta de conheci-
mento das características da vida medieval que somente os recentes
estudos da história económica têm esclarecido suficientemente. Na ver-
dade, Portugal, em 1500, já não vivia sob o regime feudal. D. Manuel,
com sua política de navegação, com seu regimen de monopólios interna-
cionais, com suas manobras económicas de desbancamento do comércio
22 HAROLD B. JOHNSON, op>. cif, p. 203.
23 ROBERTO SIMONSEN, História Económica do Brasil. 4500-1820, S. Paulo, Rio de
Janeiro, Recife, Companhia Editora Nacional, 1937.
24 Uem, p. 124.
33
O T E M A
de especiarias de Veneza, é um autêntico capitalista. Os seus "vassalos"
não ficam atrás. Não fazem a conquista como os cavaleiros da Idade Mé-
dia. Procuram engrandecer e enriquecer o país. Querem que Portugal seja
uma potência. Conquistaram as índias com o mesmo espírito com que,
mais tarde, os ingleses vieram a constituir o grande Império Britânico. Tal
estado de coisas é tão acentuado, que, mostram os historiadores, as con-
cessões aos donatários vão de encontro à lei mental, ou seja, aquela que
o Mestre de Avis tinha "em mente" para desfazer o poderio dos feudos.
Mas a verdade é que a lei mental não foi contrariada. Pelo facto dos acor-
dos entre o Rei e os donatários serem feitos mediante o "Foral dos direi-
tos, foros e tributos e coisas que na dita terra haviam os colonos de
pagar", não se há de fechar os olhos à realidade económica...»25
Escassos três anos passados sobre a publicação da obra de Si-
monsen, em 1940, no III Congresso Sulriograndense de História e
Geografia sai à liça o Dr. Raul de Andrade e Silva, e, na mesma rota
de argumentação de Simonsen, alinha factos de ordem económica, ju-
rídica e política, tendentes uns e outros a rebater as teses dos «feuda-
listas»26. Já no ano anterior o Dr. J. F. de Almeida Prado impugnara na
sua História da formação da sociedade brasileira as conclusões de Ma-
Iheiro Dias27. Um crítico, o Professor Alexander Marchant, sintetizou
a tese deste historiador brasileiro nos seguintes termos:
«Dr. Almeida Prado accepts Professor Simonsen;s opinion that the
grants made by the king were not feudal, that only in the forais did any
element remain that might be called feudal, and that the grants should
be placed against the pattems of capitalism that were in full develop-
ment in the Renaissance. Later he characterizes simply as capitalists
some of the noble and powerful men who were consídering building
sugar mills in Pernambuco. But, unhappily, he does not consider that the
demands of his volumes permit him to dwell on the subject and, conse-
quendy, he does not specify the patterns of capitalism that were fol-
lowed.»28
25 Idem, pp. 126-127.
26 RAUL DE ANDRADE E SILVA, «O Regime feudal e as capitanias hereditárias {Breve
estudo comparativo)», in Anais do III Congresso Suiriograndense de história e geografia, III,
1940.
27 J. ALMEIDA PRADO, Pernambuco e as capitanias do Norte do Brasil, 1530-1630,
S. Paulo, 1939-42.
28 ALEXANDER MARCHANT, "Feudal and Capitalistic Elements in the Portuguese
Settlement ofBrazil», in The Hispanic American Revicw, Agosto de 1942.
34
O T E M A
Essa apontada lacuna propôs-se o próprio Marchant preenchê-la
num estudo clássico, Feudal and Capitalistic Elements in the Portuguese
Settlement ofBrazil (1942)29. Fazendo aí contrastar os elementos inclu-
sos nas cartas de doação com três conceitos básicos de feudalismo,
Marchant funda a sua tese num postulado central:
«An economic meaning, aside from its general inaccuracy, is entirely
inapplicable, for it implies comparison of the self-sufficient househoíd
economy of medieval France with the plantatíon and trading economy
ofBrazil.»30
Tal como Simonsen, Almeida Prado ou Andrade e Silva - que,
negando o carácter feudal do regime, ele próprio o afirma, «ali accept
capitaíism as the alternative, as if none other could exist once feuda-
lism had been rejected»31 - o historiador americano não segue dife-
rente rumo, propondo-se unicamente especificar ou aprofundar o
mesmo trilho tomado por aqueles outros autores: «But if capitalism is
accepted, what is needed next is a differentiation of the kind of capi-
talism practiced by the donatários from the many other kinds that
were being practiced then or have been practiced since.»32
Passará então a especificar os três tipos «of capitalistic enterprise
that had become usual, each one fitted to particular circumstances of
trade that the Portuguese had found in pushing along the African
coast and to índia»33. Isto é,
a) O recurso inicial a companhias de investidores alicerçados num com-
plexo de feitorias costeiras, acumuladoras de bens, depois canaliza-
das para a metrópole nos próprios navios dos investidores3"1;
{?} O expediente de apropriação por parte da Coroa, numa fase seguinte,
da estrutura de exploração comercial fundada pelas companhias,
método empregado na índia depois de 1500, e também no Brasil no
período que mediou entre a descoberta e a criação das donatárias35;
c) A solução empregada em regiões desabitadas como as próprias ilhas
do Atlântico, «that combined commerce with colonizatíon»36. As
29 Idem, ibidem.
30 Idem, p. 500.
31 íãem, p. 502.
32 Idem, p. 502.
33 Idem, p. 503.
34 Idem com a bibliografia indicada a pp. 503-504.
35 Idem, p. 504.
36 Idem, ibidem.
35
O TEMA
ilhas eram concedidas em parte ou no seu total a donatários, que as
colonizavam à sua própria custa, fomentando o plantio do açúcar e
outras culturas, recebendo como contrapartida certos tributos e mo-
nopólios que lhes facultavam um rendimento e um controlo sobre os
colonos. Solidificada a fixação humana e a produção agrícola, comer-
ciantes da metrópole organizavam-se em companhias destinadas ao
tráfico com as ilhas, nos termos precedentemente empregados nas fei-
torias africanas37.
Será precisamente esta última modalidade que Marchant esten-
derá à caracterização do regime donatarial brasileiro38.
É evidente que a essas amplas doações acompanharam-nas todo
um conjunto de regalias jurídicas e políticas, aqui omitidas por Mar-
chant, altamente prestigiantes no enquadramento social do tempo.
«Mas - notou-o Lúcio de Azevedo - essas vantagens, a serem aufe-
ridas pelos donatários, pressupõem povoações, lavouras, comércios, tra-
balho organizado e capital acumulado, o que rinha de ser obra do tempo
longo e do imediato dinheiro.»39
O regime poderia, assim, ser obviamente caracterizado, não
como feudal mas decididamente capitalista no puro sentido do in-
vestimento de dinheiro para lucro40:
«They were planter capitalists and not primarily traders, and their
investment was in land and slaves. Only after the donatários had begin
plantation economy in Brazil did merchants, organised in trading com-
panies and investing not in land and slaves but in buying, selling, and
transporting sugar bring to Brazil another and more obvíousíy recog-
nised type of capitalism.»41
Mas nem esta nova progressão do problema contentou os estu-
diosos da administração portuguesa. A esta discussão que opôs os de-
fensores do feudalismo e do capitalismo eventualmente caracteriza-
dor das donatárias, apodou-a justamente Francis Dutra de «sterile
37 Idetn, ibidem.
38 Idem, p. 512.
39 SIMONSEN, of. aí., p. 125.
40 MARCHANT, op. cii, p. 512.
41 Idem, p. 512.
OT E M A
controversy»42. Foi, porém, Harold B. Johnson que com maior acuti-
lância denunciou o prejuízo que o estudo das capitanias tem sofrido
pela vinculação excessiva a discussões que desvirtuam o interesse
central da questão:
«Robert Simonsen further built on Dias misinterpretation when he
cast the question in terms of capitalism vs. feudalism. This pervasive in-
terpretative dichotomy, from which few subsequent commentators
have been able to escape, makes litde sense except in a Marxist frame-
work. Only for historians of the latter persuasion do feudalism and cap-
italism describe the same order of things - social systems based upon a
certain type of economic exploitation. But Simonsen, whose inspiration
seems to have derived from Gustav Schmoeller, not Marx, failed to give
feudalism an economic definition; and when Alexander Marchant fol-
lowing in Simonsen's footsteps adopted a radically juridical definition of
feudalism, he failed to note that this step makes any further attempt at
comparison or contrast with capitalism entirely pointless. To continue
along these lines was simply to confuse the issue further.
«Indeed, such arguments continued as long as they did due to the
failure of these pioneers to see the essentially emotional roots underly-
ing the feudal - vs. - capitalism dichotomy. For these thinkers feudalism
implied backwardness and capitalism progress; and the real question
they were só insatiably posing was "under what star was Brazil bom?"
Did it begin its life history with a head start or under a handicap? Only
in the light of such strong emotive significance can one explain the ob-
sessive fixation of historians with the question in spite of the fact no sat-
isfactory answer in these terms is or ever was possible. As long as the so-
cio-psychological roots of the problem went unperceived, however,
historiography was fated compulsively to repeat it. The only way of this
interpreta ti vê treadmill was for someone knowledgeable but emotion-
ally uninvolved to step off and point the way to an approach both more
objective and less charged with unspoken, half-unconscious wishes.»43
Assim, para Johnson, o passo decisivo teria sido dado em 1954
pelo historiador belga Charles Verlinden, quando defendera que o
modo mais adequado de compreender o sistema de colonização por
capitanias haveria necessariamente que passar pelo estudo dos senho-
í2 FRANGIS A. DUTRA, A Cuide to lhe History of Brazil, 1500-1822. The Liíerature in
Engiish, ABC, Ohio, Santa Barbara, Califórnia, Oxford, Inglaterra, 1980, p. 89.
1(3 HAROLD B. JOHNSON, op. cit., pp. 203-204.
O T E M A
tios medievais portugueses44. A essa obra clássica - Precedente médié-
vaux de lacohnieenAmérique (1954)45- acrescentou desde então o ilus-
tre medievalista belga outros estudos, avultando sobre todos as For-
mes Féodales et Domaniales de Ia. Cohnisatíon Portugaise (1960)46 e um
dos mais recentes, Portugese en Syaanse Feodale en Dominiael Kolonisa-
tievormen in de Atlantische Ruimte (1983)47.
Não será este o local mais próprio para comentar e necessaria-
mente contestar várias das posições tomadas por Verlinden na consi-
deração de questões que envolvem diferente conhecimento da reali-
dade, das fontes e da tradição jurídica portuguesa; fá-lo-emos
pontualmente noutro capítulo em relação a aspectos que nos parecem
mais delicados48. Como característica geral e sensivelmente crescente
na obra de Verlinden dir-se-á, todavia, que detectámos uma ênfase
excessiva na vinculação da tradição senhorial portuguesa a esquemas
de «feudalismo» ou «laços vassaláticos» que lhe são totalmente
alheios. Aliás, foi já Joel Serrão, em 1950, a propósito dos poderes dos
primeiros capitães da Madeira, que comentou que «é uma das muitas
balelas que ainda são consideradas moeda corrente a de que o dona-
tário teve atribuições feudais»49.
Um comunicação apresentada pelo Professor Frédéric Mauro no
Colóquio de Toulouse de 1968 dedicado à abolição do feudalismo,
subordinada ao título Existence et persistente d'un regime féodai ou seig-
neurial au Brésil50, encara o problema de modo bem mais moderado,
44 Idem, p. 204.
45 CHARLES VERLINDEN, Précédents médiévaux de Ia cohnie en Amérique, Comisión
Panamericana de Historia, México, 1954.
46 CHARLES VERLINDEN, «Formes Féodales et Domaniales de Ia Colonisation Por-
tugaise dans Ia Zone Adantique aux XIV et XV siècles et spécialement sous Henri le
navigateur», in Revista de História, Coimbra, IX, 1960.
47 CHARLES VERLINDEN, «Portugese en Spaanse Feodale en Domaniael Kolonisa-
tievormen in de Adantische Ruimte», in Mededelingen van de Koninklre Academie voor
Wetenschappen, Letieren ert Schnone Kiinste van Belgie. Masse der letteren. Academiae Ana-
leda, Jaargang 45, 1983, nr. 3, Bruxelas, 1983.
48 Vide o nosso Capítulo V.
49 JOEL SERRÃO, «O Infante D. Fernando e a Madeira (1461-1470). Elementos para
a formulação de um problema», in Das Aries e da História da Madeira, n.° 4, 1950,
p. 12, n. 22.
50 FRÉDÉRIC MAURO, «Existence et persistance d'un regime féodai ou seigneurial
au Brésií», in 1'Abolition de Ia Féodalité dans le monde occidental. Cottoques Intemationaux
du Centre National de Ia Recherche Scientifique. Sciences Humames, Toulouse, 12-16 de
Novembro de 1968, Editions du Centre National de Ia Recherche Scientifique, Paris,
1971, tomo 1.
38
O T E M A
mas ainda vinculado à questão feudalismo V5. capitalismo. O referido
estudo de Johnson parece-nos beneficiado por um maior desprendi-
mento, denotando um bastante razoável conhecimento da realidade
jurídico-institucional portuguesa e estabelecendo com senso o que
passível é de ligação entre os antigos senhorios metropolitanos e o
que de novo se procurou implantar nas terras adquiridas pelo efeito
da Expansão, acrescendo sobre tudo a desmistificação da velha dis-
cussão capitalismo vs. feudalismo que durante tanto tempo desviou
as atenções dos atractivos reais do problema. Em obras modernas
como The Camhridge History of South America (1985), o pequeno estudo
de Johnson merece do Professor Frédéric Mauro as honras do que de
mais recente se fez com seriedade no campo51, e também Lyle McA-
lister (1984) se lhe refere como «the best analysis of the donatary or
captaincy System»52.
Mas, sem prejuízo do inegável mérito de uns e outros historia-
dores citados, sempre diremos que essas teses, veiculadas com outro
impacto e em âmbito diverso, as deixou já formuladas com maestria
o Professor Paulo Merêa em A Solução Tradicional da Colonização do
Brasil, estudo já citado53, de escassas trinta páginas, que em 1924 se
incluiu no volume III da História da Colonização Portuguesa do Brasil. Já
aí- e, repetimo-lo, em 1924 - escrevia o Mestre:
«... Sendo assim, o sistema de colonização por donatárias apresen-
tava-se como uma inteligente e fecunda adaptação das doações de bens
da Coroa, que entre nós eram tão frequentes e representavam até certo
ponto um equivalente das concessões feudais. Com efeito, na altura em
que D. Henrique iniciou os descobrimentos, os chefes dos diversos esta-
dos europeus enfeudavam a cada passo bens, rendas e direitos da Coroa
aos seus parentes e servidores, não obstante o sistema político assumir
de dia para dia uma feição mais acentuadamente monárquica e centrali-
zadora. Entre nós, sem embargo dos progressos do poder real, os mo-
narcas continuavam a fazer frequentes e importantes doações de direi-
tos reais e de jurisdição civil e criminal [...] Ora, nunca esta cedência de
direitos reais e poderes soberanos fora tanto de aconselhar como no pre-
51 The Camhridge History of Latin America, Vol. I, Colonial Latin America, Editado
por Leslie Bethel, Cambridge University Press, 1985.
52 LYLE N. McAiiSTER, Spain anã Portugal in lhe New World. 1942-1700, Oxford
University Press, 1984, p. 535.
53 PAULO MEREA, «A Solução Tradicional da Colonização do Brasil», in HCP, vol.
n, pp. 167 ss.
39
O T E M A
sente caso em que ao Rei e ao Infante convinha interessar alguém direc-
tamente no povoamento e desenvolvimento das novas possessões,sem
aliás abdicar do seu senhorio eminente e suprema jurisdição.»54
Mais adiante alude ao «sistema senhorial das capitanias que se
adoptou no Brasil na primeira fase da sua colonização»55, e conclui
que se aplicavam, «adaptando-se às circunstâncias, duas peças tradi-
cionais do nosso sistema político-administrativo: por um lado as doa-
ções de bens da Coroa e direitos reais, por outro as cartas de foral»56.
As palavras que acabamos de reproduzir não deixam dúvidas
quanto à sensibilidade de Merêa a uma realidade cujo mérito do
anúncio tem sido atribuído a outros que só posteriormente a referem,
e em seu prejuízo, ao ponto de Stuart Schwartz, um dos mais citados
historiadores do Brasil colonial, na sua aliás interessante e geralmente
bem documentada obra Sovereignities and Society in Colonial Brasil
(1973)57, não contente em deturpar-lhe o nome, lhe amputar o título
do estudo citado, envolvendo erroneamente na discussão do feuda-
lismo ou capitalismo das capitanias, e apresentando refutado por Ale-
xander Marchant em obra em que este o cita perfunctoriamente e
sem qualquer conotação com a matéria58.
É para lamentar, mas, valha a verdade, este ramo de estudos tem
sido assim indesculpavelmente descurado pelos historiadores e pelos
juristas nacionais, a quem primeiro que todos competia neles avançar.
O panorama visível é, efectivamente, escasso. O Arquivo da Madeira
publicou um estudo subordinado ao título «Ensaio sobre a natureza
jurídica das capitanias»59. Pertinente e bem elaborado, ficou, todavia,
incompleto e desprovido de notícia de autor. Do melhor que até à
data se tem feito, merecem também especial referência os artigos de
Maria Emília Cordeiro Ferreira no Dicionário de História de Portugal, sub
S4Mcm,pp. 167-168.
5SIdem, p. 171.
56 Idem, p. 174.
57 STUART B. SCHWARTZ, Sovereignitíes and Society in Colonial Braztl. The High Court
of Bahia and itsjudges, 1609-1571, Berkeley, Los Angeles, Londres, University of Cali-
fórnia Press, 1973.
58 Idem, p. 24, n. 3.
59 «Ensaio sobre a natureza jurídica das capitanias», in Arquivo da Madeira,
T. II-III, s.i. de autor.
40
O TEMA
você «Capitães-Donatários» e «Donatárias»60, e podemos, é certo, re-
correr aos elementos carreados no Elucidário Madeirense do Padre
Francisco da Silva e Azevedo de Menezes61, à obra A Madeira sob os
Donatários, de Damião Feres62 (1914), a alguns estudos de Fernando
Jasmins Pereira63 ou aos Capitães dos Donatários de Faria e Maia
(1972)64. São, contudo, como alguns outros que aqui não há que citar,
estudos resumidos, utilitários ou mais voltados para a história social
ou para a biografia dos capitães.
Também, sob títulos que se poderiam considerar auspiciosos -
A Condição Jurídica das Capitanias Brasileiras, comunicação de Oliveira
Guimarães apresentada no Congresso do Mundo Português (1940)65,
as «Capitanias Hereditárias» de Jacobina Lacombe, na Revista Portu-
guesa de História (1978)66 e «O Sistema das Capitanias do Brasil», de
Manuel Nunes Dias, no Boletim da Biblioteca da Universidade de Coim-
bra (1980)67 - nada ou pouco de útil se colhe para o avanço da análise
da questão, para além de um recurso mais ou menos transiatício ao
que Waldemar Ferreira e Paulo Merêa muitos anos antes deixaram
escrito.
O Professor Marcello Caetano, na sua História do Direito Português,
deixou mais recentemente (1981) dedicadas algumas páginas ao es-
tudo do regime jurídico das primeiras capitanias quatrocentistas, co-
locando-as sob a epígrafe significativa de «Utilização do regime se-
nhorial na colonização das terras descobertas»68. As páginas desse
historiador do Direito são, porém, breves, e infelizmente interrompi-
60 MARIA EMÍLIA CORDEIRO FERREIRA, sub você «Capitães-Donatários» e «Donatá-
rias», in Dicionário de História de Portugal, Lisboa, vol. l, 1963.
61 PADRE FRANCISCO AUGUSTO DA SILVA e CARLOS AZEVEDO DE MENEZES, Elucidário
Madeirense, Funchal, 1965.
62 DAMIÃO FERES, A Madeira sob os Donatários, Funchal, 1914.
63 FERNANDO JASMINS PEREIRA, «A Ilha da Madeira no período henriquino
(1433-1460)», in Ultramar, n.° 3, 1961, pp. 21-47.
64 FRANCISCO DE ATHAYDE M. DE FARIA E MAIA, Subsídios para a história de S.
Miguel- Capitães dos Donatários (1439-1766), Lisboa, 1972.
65 Luís DE OLIVEIRA GUIMARÃES, «A Condição Jurídica das Capitanias Brasileiras»,
in Congresso do Mundo Português - vol. IX - Memórias e Comunicações apresentadas ao
Congresso Luso-Brasileiro de História (VII Congresso), Lisboa, tomo I, l.1 Secção, 1940.
66 AMÉRICO JACOBINA LACOMBE, «Capitanias Hereditárias», in Revista Portuguesa de
História, Tomo XVI, Homenagem ao Doutor Torauaio de Sousa Soares, Coimbra, 1978.
67 MANUEL NUNES DIAS, «O Sistema das Capitanias do Brasil», in Boletim da
Biblioteca da Universidade de Coimbra, XXXIV- S.' parte, Coimbra, 1980.
68 MARCELLO CAETANO, História do Direito Português (1140-149$) - I, Lisboa, Edi-
torial Verbo, 1981, pp. 524-527.
41
O T E M A
das pela sua morte. No entanto, é sintomático do interesse que a ma-
téria vem suscitando que o Professor Ruy de Albuquerque, no Pro-
grama do curso de História do Direito Português que se fez publicar
em 1985 na Revista da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
apresente precisamente como pontos de destaque ou «aspectos mais
relevantes» da matéria da Administração Ultramarina, na Madeira e
nos Açores, o «regime senhorial» e a «extinção das donatárias», e, no
Brasil, «organização por capitanias: causa do insucesso»69.
Quanto saibamos, os últimos estudos que encararam as capita-
nias sob um prisma jurídico e institucional, fizemo-lo nós, despreten-
siosamente, em linhas breves que apresentámos no 1.° Colóquio In-
ternacional de História da Madeira (Funchal, 1986) sob o título «As
Capitanias à luz da História e do Direito», e num artigo publicado
numa revista histórica em 199070.
No primeiro desses escritos tivemos a oportunidade de global-
mente notar que «a quase totalidade desses e outros poucos estudos
afins brotam da pena de historiadores, particularmente de medieva-
listas, tendencialmente limitados pela análise da letra dos títulos
constitutivos, sem que até ao momento se chegasse a ensaiar um es-
tudo de conjunto, quer do ponto de vista cronológico, geográfico e,
sobretudo, institucional. E impõem-se fazê-lo. É displicente de-
termo-nos sobre o peso e a extensão atingida pelo sistema de coloni-
zação por capitanias: na Madeira, nos Açores, em Cabo Verde e
S. Tomé alargou-se a toda ou quase toda a extensão das ilhas. No Bra-
sil é bem conhecida a repartição quinhentista que se estende aos fi-
nais do século XVII, e poderíamos referir ainda as aflorações que nos
surgem em Angola e até na Serra Leoa. O que não cabe esquecer é
que as capitanias não foram criadas simultaneamente, decorrendo
mais de duzentos anos entre a doação da primeira, na Madeira, em
1440, e a da última, no Brasil, em 1685, e mais quase cem até ao de-
saparecimento da derradeira, a de Porto Santo, em 1770. O investiga-
dor é, pois, confrontado com um processo longo e irregular, fundado
em motivações diversas e enquadrado por legislação mutável, em que
69 RUY DE ALBUQUERQUE, «História do Direito Português», in Revista da faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, XXVT, 1985.
70 Vide ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA, «As Capitanias à Luz da História e
do Direito (Perspectivas e Metodologia}», in Actas do 1." Colóquio Internacional de His-
tória da Madeira, 1986. Vol. I, Funchal, Governo Regional da Madeira, 1989, e «Con-
siderações sobre o estudo das capitanias ultramarinas portuguesas», in Ler História.
Descobrimentos e Expansão, n.° 19, 1990.
42
O T E M A
as capitanias na sua maioria acabam por perder por inteiro a função
primária de povoamento, para se tornarem autênticas circunscrições
administrativas ou puras e simples prebendas económicas»71.
2. As Capitanias como Doações Régias
2.1. Questões Prévias
Vimos assim que a questão das capitanias do antigo império por-
tuguês tem sido perspectivada dos mais diversos modos, e, se é certo
- como escreve Orlando Ribeiro - «quemuitos aspectos da nossa ex-
pansão são bem conhecidos, se é facto que a erudição portuguesa dos
últimos cinquenta anos se aplicou a esclarecer alguns deles, especial-
mente os problemas relativos às minúcias dos descobrimentos, à arte
náutica, ao desenvolvimento da cartografia, ao raconto da história he-
róica dos portugueses no Brasil, na África e no Oriente, que podem
considerar-se relativamente bem estudados, é verdade também que
outros aspectos permanecem obscuros, que a muitas interrogações
não se sabe o que se há de responder e algumas dúvidas nem sequer
se podem pôr de uma maneira correcta que permita vislumbrar-lhes
próxima solução»72.
Assim sucede no plano do jurídico onde continuam em aberto
importantes questões, constituindo outras tantas lacunas, só contra-
riadas por estudos pontuais ou capítulos isolados de obras mais vas-
tas, uns e outros insuficientes para enquadrar devida e globalmente o
sistema sob um prisma fundamentalmente jurídico. E isto porque al-
guns autores, deixando-se ofuscar pelas peculiaridades formais das
cartas de doação e pelas inevitáveis adaptações que no meio ultrama-
rino quer elas quer os respectivos forais houveram de sofrer, desloca-
ram a questão das capitanias do seu meio próprio, dando-lhe foros de
autonomia enquanto a desenraizavam do meio de onde brotavam e
do qual retiravam o próprio e único significado.
Ora, em rigor, toda a questão das capitanias respeita fundamen-
talmente a uma dispersão de bens da Coroa, de direitos inerentes à
71 ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA, As capitanias à Luz da História e do Direito
(Perspectivas e Metodologia), comunicação apresentada no 1.° Colóquio Internacional
de História da Madeira, Funchal, 1986.
72 ORLANDO RIBEIRO, Aspectos e problemas da Expansão Portuguesa, Fundação da
Casa de Bragança, 1955, p. 16.
O T E M A
soberania real, dispersão essa excepcionalmente aceite e processada
em função de objectivos precisos, segundo um ritmo peculiar e com
um enquadramento jurídico e doutrinário determinado. Viu-o bem o
Professor Paulo Merêa, notando que «o sistema de colonização por do-
natárias apresentava-se como uma inteligente e fecunda adaptação das
doações de bens da Coroa, que entre nós eram tão frequentes e repre-
sentavam até certo ponto um equivalente das concessões feudais»73.
Estamos, pois, perante a figura genérica de actos graciosos de dis-
posição, que, pressupondo a ideia e existência de um domínio, to-
mam por objecto poderes ou direitos nestes contidos. Fazendo-nos
avançar um passo mais na determinação do processo de atribuição
desses direitos, uma análise atenta do nomen iurís utilizado quer pelas
partes a quem coube a iniciativa do acto quer pela própria jurispru-
dência e pela doutrina, revela-nos a adopção da fórmula da donatio74.
Disse-o recentemente, como vimos, o Professor Paulo Merêa, e tam-
bém o escreveu muito antes o ilustre jurisconsulto seiscentista que foi
o Dr. Manuel Álvares Pegas, afirmando que «os capitães desta quali-
dade sejam donatários da Coroa e se devam reputar por tais e as suas
doações se hajam de regular como as dos outros donatários, está jul-
gado muitas vezes...»75.
Um pouco mais tarde, o próprio Pascoal José de Melo Freire re-
conheceu também que
«os capitães perpétuos das Ilhas (que cumpre distinguir totalmente dos
Governadores temporários e oficiais militares), aos quais foi concedido
o direito e império como Capitania, isto é, obrigação de defender as ter-
ras atribuídas, são verdadeiros donatários, e, por isso, sujeitos à nossa
Se quisermos, porém, avançar ainda mais no juízo desta questão,
facilmente se constata que os argumentos de carácter documental,
encarados solitariamente, apenas podem sustentar uma presunção de
correspondência entre a designação doação e a vontade das partes, a
73 PAULO MERÊA, op. cit., n. 53.
74 Sobre a questão da configuração da concessão e da doação no antigo Direito
Português, vide P.UY DE ALBUQUERQUE, Os títulos de Aquisição territorial, Lisboa, 1960
(tese dact. e polic.), pp. 153-159.
75 PP, foi. 569.
76 PASCOAL JOSÉ DE MELO FREIRE, «Instituições de Direito Civil Português, tanto
público como particular», Livro II, reed. in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 163,
Fevereiro, 1967.
O T E M A
presunção da licitude da utilização do termo doação, aplicado ao con-
teúdo jurídico do acto visado pelas partes. O que, podendo sugerir
uma insuficiência de elementos qualificativos do acto, nos não deixa
necessariamente com a certeza da realização desse tipo negociai, não
excluindo, portanto, um error in nomine negotii77.
Estando em causa, como dissemos, o processo através do qual se
teria feito a transferência de direitos suscitada por um acto gracioso
de disposição, só teremos a ganhar com a valorização dos elementos
existentes, comparando-os com a fattisyecie típica da doação78. Ele-
mentos como, por exemplo, a existência de fórmulas simples em que
transparece a ideia de transferência e de consequente perda de direi-
tos, «fazemos doação», «faço mercê e irrevogável doação», «hei por
bem fazer-lhe irrevogável doação», etc., todo um naipe de fórmulas
que documentos adiante citados poderão de algum modo melhor re-
velar. E o caso, também, do modo como o apossamento do.
pelp^adcjuirejite o_u pelo seu mandatário^seguiíclõ fórmulas e em cir-
cunstâncias pré-estabelecidas, traduz o modus adquirendi, manifesto
em autos ou instrumentos de tomada de posse que complementam,
por assim dizer, os instrumentos relativos à declaração da vontade de
transmitir .direitos79. É, enfim, a natureza do própriõ~õbjêcto da cTõlî
cão, na sua vertente essencial do direito ou direitos transferidos.
2.2. Os Fundamentos do Domínio Régio
De facto (e aludimos a tema que iremos posteriormente desen-
volver) os monarcas doadores, reservando para si um domínio emi-
nente, transferem para o Donatário um domínio útil, preenchido por
direitos relativos a uma bem determinada área territorial do reino, en-
globada na genérica categoria dos bens da Coroa.
Concentrando-se os suportes, ou melhor dizendo, as determi-
nantes territoriais desses direitos na zona atlântica das possessões
portuguesas - as ilhas do Atlântico, a África Ocidental, o Brasil - qual,
pois, o título jurídico em que se fundou a Coroa para fazer doações,
para se arrogar de uma summa potestas e da faculdade de dispor daque-
les direitos?
77 Sobre este problema no âmbito definido, vide RUY DE ALBUQUERQUE, op. dl.,
p. 160.
78 Idem, p. 167.
79 Vide RUY DE ALBUQUERQUE, op. cit., pp. 172-173.
45
O T E M A
O assunto foi já proficientemente escalpelizado por Ruy de Albu-
querque, em trabalho que dedicou precisamente aos títulos de aquisi-
ção territorial na Expansão portuguesa80. Seja-nos assim permitido
apontar somente que nas áreas que foram alvo da atribuição e criação
de capitanias, independentemente de grandes especulações doutriná-
rias, os dois grandes sustentos jurídicos do domínio da Coroa de Portu-
gal eram considerados estarem invariavelmente fundados ou numa
aquisição originária de territórios (Ilhas dos Açores ou da Madeira,
p. ex.) ou, no caso de outros habitados, na força e virtude dos diplomas
pontifícios de doação81. Verdade que nem sequer cabia discutir, como
escreveu o cronista quinhentista João de Barros em páginas célebres que
dedicou ao ditado ou título real do Rei D. Manuel, considerando que
«... posto que estes três títulos, Conquista, navegação e comércio sejam
actos em tempo não determinados e finitos e em lugar tão grandes que
compreendem tudo o que jaz do Cabo Bojador até ao fim da terra orien-
tal, etc., e neste ano de quinhentos e um El-Rei D. Manuel se intitulou
deles, não podia tomar outros mais próprios à justiça e aução que tinha
naquela Oriental propriedade ao presente salvos eles, bem se pode a
Coroa deste reino intitular destes reinos que tem conquistado. Na Etió-
pia, Sofala, Quíloa e Mombaça, e na Arábia e Pérsia do grande Reino de
Ormuz, cujo estado com muitas vias e lugares está nestas duas partes de
terra. E na índia, dos Reinos de Goa, Maíaca e Maluco,

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