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Direito Administrativo Antonio José Nascimento de Souza Polak Presidente Prudente Unoeste - Universidade do Oeste Paulista 2016 Polak, Antonio José Nascimento de Souza. Direito Administrativo. / Antonio José Nascimen- to de Souza Polak. – Presidente Prudente: Unoeste - Universidade do Oeste Paulista, 2016. 202 p.: il. Bibliografia. ISBN: 978-85-88755-10-9 1. Direito Administrativo. 2. Teoria do Estado. I. Título. CDD\22ª. ed. © Copyright 2016 Unoeste - Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade do Oeste Paulista. Direito Administrativo Antonio José Nascimento de Souza Polak Reitora: Ana Cristina de Oliveira Lima Vice-Reitor: Brunno de Oliveira Lima Aneas Pró-Reitor Acadêmico: José Eduardo Creste Pró-Reitor Administrativo: Guilherme de Oliveira Lima Carapeba Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão: Adilson Eduardo Guelfi Diretor Geral: Augusto Cesar de Oliveira Lima Núcleo de Educação a Distância: Dayene Miralha de Carvalho Sano, Marcelo Vinícius Creres Rosa, Maria Eliza Nigro Jorge, Mário Augusto Pazoti e Sonia Sanae Sato Coordenação Tecnológica e de Produção: Mário Augusto Pazoti Projeto Gráfico: Luciana da Mata Crema Diagramação: Aline Miyamura Takehana e Luciana da Mata Crema Ilustração e Arte: Antônio Sérgio Alves de Oliveira, Fernanda Sutkus de Oliveira Mello e Luciana da Mata Crema Revisão Técnica: Pedro Teófilo de Sá Revisão: Renata Rodrigues dos Santos Colaboração: Vanessa Nogueira Bocal Direitos exclusivos cedidos à Associação Prudentina de Educação e Cultura (APEC), mantenedora da Universidade do Oeste Paulista Rua José Bongiovani, 700 - Cidade Universitária CEP: 19050-920 - Presidente Prudente - SP (18) 3229-1000 | www.unoeste.br/ead 341.3 P762d Catalogação na fonte: Rede de Bibliotecas Unoeste Antonio José Nascimento de Souza Polak Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 2002. Cursou especialização em Direito e Negócios Internacionais, em 2004, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Também é especialista em Direito Tributário, desde 2009, pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Como advogado, atua na área de Direito Público, com ênfase no Direito Administrativo, Direito Tributário e no Direito Aduaneiro. Essas áreas são o foco da atuação acadêmica do professor em cursos de especialização e extensão, na Universidade Federal do Ceará, Itamaraty, entre outras instituições de ensino superior. Sobre o autor Carta ao aluno O ensino passa por diversas e constantes transformações. São mudanças importantes e necessárias frente aos avanços da sociedade na qual está inserido. A Educação a Distância (EAD) é uma das alternativas de estudo, que ganha cada vez mais espaço, por comprovadamente garantir bons referenciais de qualidade na formação pro- fissional. Nesse processo, o aluno também é agente, pois organiza o seu tempo confor- me suas atividades e disponibilidade. Maior universidade do oeste paulista, a Unoeste forma milhares de profissio- nais todos os anos, nas várias áreas do conhecimento. São 40 anos de história, sendo responsável pelo amadurecimento e crescimento de diferentes gerações. É com esse mesmo compromisso e seriedade que a instituição iniciou seus trabalhos na EAD em 2000, primeiramente com a oferta de cursos de extensão. Hoje, a estrutura do Nead (Núcleo de Educação a Distância) disponibiliza totais condições para você obter os co- nhecimentos na sua área de interesse. Toda a infraestrutura, corpo docente titulado e materiais disponibilizados nessa modalidade favorecem a formação em plenitude. E o mercado precisa e busca sempre profissionais capacitados e que estejam antenados às novas tecnologias. Agradecemos a confiança e escolha pela Unoeste e estamos certos de que suas expectativas serão atendidas, pois você está em uma universidade reconhecida pelo MEC, que oportuniza o desenvolvimento constante de Ensino, Pesquisa e Extensão. Aqui, além de graduação, existe pós-graduação lato e stricto sensu, com mestrados e doutorado recomendados pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), prêmios conquistados em âmbito nacional por suas ações extensivas e pesquisas que colaboram com o desenvolvimento da cidade, região, estado e país; en- fim, são inúmeros os referenciais de qualidade. Com o fortalecimento da EAD, a Unoeste reforça ainda mais a sua missão que é “desenvolver a educação num ambiente inovador e crítico-reflexivo, pelo exercício das atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão nas diversas áreas do conhecimento cien- tífico, humanístico e tecnológico, contribuindo para a formação de profissionais cidadãos comprometidos com a responsabilidade social e ambiental”. Seja bem-vindo e tenha bons estudos! Reitoria Sumário Capítulo 1 Noções de direito CoNstituCioNal 1.1 Concepções da Constituição ........................................................................................15 1.2 Marcos Históricos Constitucionais .................................................................................16 1.3 Classificações da Constituição ......................................................................................17 1.4 Poder Constituinte ......................................................................................................19 1.4.1 Poder Constituinte Originário ....................................................................................20 1.4.2 Poder Constituinte Derivado ......................................................................................21 1.4.3 Poder Constituinte Decorrente ..................................................................................24 1.4.4 Hierarquia de Normas e Espécies Normativas .............................................................26 1.4.5 Solução de Conflitos .................................................................................................30 1.4.6 Direito Constitucional Intertemporal ..........................................................................31 1.4.7 Espécies Normativas na Constituição Federal de 1988 .................................................34 1.4.8 Da Relação entre as Espécies Normativas ..................................................................37 1.4.9 Formas de Inconstitucionalidade ...............................................................................38 1.5 Recepção de Tratados Internacionais ...........................................................................42 Capítulo 2 da teoria Geral do estado e dos direitos FuNdameNtais 2.1 Organização do Estado Brasileiro .................................................................................46 2.1.1 Formas de Estado ....................................................................................................47 2.1.2 Formas de Governo ..................................................................................................50 2.1.3 Sistemas de Governo ...............................................................................................50 2.2 O Modelo Brasileiro .....................................................................................................51 2.2.1 Competências ..........................................................................................................52 2.2.2 Intervenção .............................................................................................................53 2.2.3 Fases da Intervenção Federal....................................................................................54 2.2.4 Procedimento de Intervenção ...................................................................................55 2.3 Atribuiçõese Responsabilidades do Presidente da República ..........................................55 2.4 Da Tripartição de Poderes ............................................................................................57 2.4.1 Breve Síntese Histórica .............................................................................................57 2.4.2 Funções Típicas e Atípicas ........................................................................................57 2.4.3 Poder Executivo .......................................................................................................57 2.4.4 Poder Legislativo ......................................................................................................58 2.4.5 Poder Judiciário .......................................................................................................61 2.5 Direitos Fundamentais ................................................................................................62 2.5.1 Evolução Histórica dos Direitos .................................................................................62 2.6 Direitos Fundamentais em Espécie ...............................................................................65 2.6.1 Princípio da Isonomia ...............................................................................................65 2.6.2 Direito à Vida ..........................................................................................................66 2.6.3 Direito à Liberdade ..................................................................................................66 2.6.4 Direitos da Personalidade .........................................................................................67 2.7 Das Inviolabilidades ....................................................................................................67 2.8 Extradição ..................................................................................................................69 2.9 Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição ....................................................................70 2.10 Remédios Constitucionais ..........................................................................................71 2.10.1 Habeas Corpus ......................................................................................................71 2.10.2 Habeas Data ..........................................................................................................71 2.10.3 Mandado de Segurança ..........................................................................................72 2.10.4 Nacionalidade ........................................................................................................73 Capítulo 3 Noções de direito admiNistrativo 3.1 Contexto Histórico ......................................................................................................78 3.1.1 Do Exemplo Francês ................................................................................................78 3.1.2 Direito Administrativo Alemão ...................................................................................81 3.1.3 Direito Administrativo Italiano ...................................................................................82 3.1.4 Da Experiência Brasileira ..........................................................................................82 3.2 Conceito de Administração Pública ...............................................................................84 3.2.1 Princípios Informativos do Direito Administrativo ........................................................86 3.2.2 Princípio da Supremacia do Interesse Público .............................................................87 3.2.3 Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público .....................................................87 3.3 Dos Poderes da Administração Pública........................................................................ 101 Capítulo 4 modelos de admiNistração PúbliCa 4.1 Da Organização Administrativa .................................................................................. 108 4.1.1 Órgãos Públicos ..................................................................................................... 108 4.2 Das Formas de Administração Pública ........................................................................ 111 4.2.1 Autarquias ............................................................................................................. 111 4.2.2 Fundações ............................................................................................................. 113 4.2.3 Empresas Públicas ................................................................................................. 114 4.2.4 Sociedades de Economia Mista................................................................................ 115 4.2.5 Agências Reguladoras ............................................................................................ 116 4.2.6 Agências Executivas ............................................................................................... 117 4.2.7 Concessões e Permissões do Serviço Público ............................................................ 117 4.2.8 Parcerias Público-Privadas ...................................................................................... 121 4.2.9 Terceiro Setor ........................................................................................................ 122 4.2.10 Organizações Sociais ............................................................................................ 122 4.2.11 Serviços Sociais Autônomos .................................................................................. 123 4.2.12 Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) .................................. 124 4.3 Do Ato Administrativo ............................................................................................... 125 4.3.1 Dos Atos Administrativos e Atos da Administração .................................................... 125 4.3.2 Atributos dos Atos Administrativos .......................................................................... 126 4.3.3 Requisitos de Validade do Ato Administrativo ........................................................... 128 4.3.4 Classificação dos Atos Administrativos ..................................................................... 131 4.3.5 Extinção dos Atos Administrativos ........................................................................... 131 4.4 Licitação e Contratos Administrativos ......................................................................... 134 4.4.1 Da Licitação ........................................................................................................... 134 4.4.2 Princípios .............................................................................................................. 135 4.4.3 Fases da Licitação .................................................................................................. 136 4.4.4 Modalidades de Licitação ........................................................................................ 139 4.4.5 Inexigibilidade e Dispensa de Licitação .................................................................... 141 4.4.6 Dos Contratos Administrativos ................................................................................ 142 4.4.7 Formas de Alteração dos Contratos Administrativos .................................................. 145 4.4.8 Rescisão do Contrato Administrativo ........................................................................ 145 4.5 Servidores Públicos ................................................................................................... 146 4.5.1 Agentes Públicos .................................................................................................... 146 4.5.2 Ingresso ao Cargo Público ......................................................................................147 4.5.3 Estabilidade ........................................................................................................... 150 4.5.4 Da Remuneração do Servidor Público ...................................................................... 154 4.5.4.1 Do Subsídio ........................................................................................................ 154 4.5.4.2 Sistema Baseado no Conceito de Vencimentos ...................................................... 154 4.5.5 Da Aposentadoria do Servidor ................................................................................. 155 4.5.5.1 Modalidades de Aposentadoria do Servidor ........................................................... 156 4.5.6 Regras Infraconstitucionais Aplicáveis aos Servidores Públicos ................................... 157 4.5.7 Das Vantagens dos Servidores Públicos ................................................................... 159 4.5.8 Do Provimento de Cargos ....................................................................................... 160 4.5.8.1 Das Hipóteses de Vacância .................................................................................. 161 Capítulo 5 dos meios de iNterveNção Na ProPriedade Privada 5.1 Desapropriação ........................................................................................................ 166 5.1.1 Fases do Procedimento Administrativo para a Desapropriação ................................... 167 5.1.2 Confisco ................................................................................................................ 168 5.1.3 Requisição Administrativa ....................................................................................... 169 5.1.4 Ocupação .............................................................................................................. 169 5.1.5 Limitação Administrativa ......................................................................................... 169 5.1.6 Servidão ................................................................................................................ 169 5.1.7 Tombamento ......................................................................................................... 170 5.2 Da Responsabilidade do Estado ................................................................................. 171 5.2.1 Espécie de Responsabilidade .................................................................................. 172 5.2.2 Responsabilidades Específicas ................................................................................. 173 5.3 Processos Administrativos Federais – Lei 9.784/99 ...................................................... 175 5.3.1 Princípios do Processo Administrativo ...................................................................... 175 5.3.2 Das Fases do Processo Administrativo ..................................................................... 176 5.4 Bens Públicos ........................................................................................................... 177 5.4.1 Classificação dos Bens Públicos ............................................................................... 178 5.4.2 Desafetação .......................................................................................................... 178 5.4.3 Regime Jurídico dos Bens Públicos .......................................................................... 178 5.4.4 Uso dos Bens Públicos ............................................................................................ 179 5.4.5 Espécies de Bens ................................................................................................... 180 Referências .................................................................................................................... 184 Estudos Complementares ................................................................................................ 198 11 Apresentação Neste livro de Direito Administrativo vamos estudar mais um importante tema na caminhada para a sua formação profissional, apresentando as peculiaridades e a abrangência do Direito Administrativo. Podemos dizer que o Direito Administrativo pertence ao Direito Público, pela classificação dicotômica entre Direitos Privado e Público, podendo também ser entendido como peça fundamental dessa última modalidade. Por isso, vamos apresentar a forma de atuação da máquina pública, definindo seus limites, poderes e formas de controle, sempre em obediência aos ditames constitucionais, pedra fundamental do nosso orde- namento jurídico. Assim, para o desenvolvimento adequado dos seus estudos, será necessário fazer uma introdução ao Direito Constitucional, permitindo a você a contextualização histórica do tema, para, num segundo momento, falarmos das especificidades do Direito Administrativo, seu histórico, princípios e poderes. Essa jornada é necessária para fornecer os fundamentos do nosso sistema atual, as razões da sua construção e os motivos que o definiram, surgindo aqui a neces- sidade da contextualização histórica do tema, atacando o direito de forma geral, para depois centralizar na temática específica. Com os parâmetros históricos definidos, contextualizados de forma consti- tucional, passaremos ao estudo do Direito Constitucional propriamente dito, que define limites, princípios e parâmetros de obediência mandatória. Com a fundamentação dese- nhada, vamos partir para o estudo do Direito Administrativo, seus aspectos históricos e pressupostos fundamentais. O Direito Administrativo instrumentaliza as limitações aplicáveis à Adminis- tração Pública, previstas no texto constitucional, limitações essas que visam à proteção do cidadão em face de possíveis excessos da máquina pública, sempre em obediência ao interesse público, seu princípio fundamental. Em suma, o Direito Administrativo nos apresenta as formas de relacionamen- to da Administração Pública com o cidadão, abrangendo, nesse contexto, a Administra- ção Pública Federal, Estadual, Municipal inclusive o Distrito Federal, sempre respeitando a Constituição Federal. Bons estudos! 13 Noções de direito CoNstituCioNal Capítulo 1 14 Introdução No intuito de possibilitar uma análise completa do Direito Administrativo, primeiro faz-se necessário uma apresentação, mesmo que resumida, dos fundamentos do sistema no qual ele se inclui. Assim, partiremos de uma análise inicial de Direito Constitucional e de Teoria do Estado, regida pelo intuito de apresentar noções introdutórias do tema em estudo, pelas quais serão apresentados os vínculos e limites que se tornarão mais claros ao aca- dêmico quando do estudo completo da temática. Em linhas gerais, o Direito Constitucional é o fundamento do nosso orde- namento jurídico, o qual prevê limites e princípios gerais de aplicação obrigatória, em vista de proteger o indivíduo, elencando garantias em face da onipresente Administração Pública. A Teoria do Estado caminha em conjunto com o Direito Constitucional e revela ao acadêmico a área de atuação da Administração Pública, além do seu locus de interesse, evidenciando os sujeitos aptos a exercê-la e os mecanismos de tomada de decisões. De acordo com o artigo 1º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Poder Pú- blico só pode atuar preservando o interesse da coletividade, conclusão que decorre do signi- ficado do termo “República” (res publica = coisa pública), gerando o entendimento que todo o poder emana do povo e será exercido diretamente ou por meio de seus representantes. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolú- vel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Es- tado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político (BRA- SIL, 1988). Nos casos em que o Poder Públicose afasta do interesse coletivo, surgirá o chamado desvio de finalidade, ou seja, uma forma de ilegalidade. Diante dessa irre- gularidade, poderá o Poder Judiciário atuar em vista de saná-la, pois esse poder, em obediência ao Princípio da Separação dos Poderes, não pode ultrapassar a sua esfera de competência e invadir o campo de decisão da Administração Pública. Por força dos interesses que representa, a Administração recebe do ordena- mento jurídico prerrogativas e obrigações, que não se estendem aos particulares. 15 Pautados pela conexão entre a temática de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Direito Administrativo, partiremos, a seguir, ao estudo do primeiro tema, também visto como fundamento do ordenamento jurídico e, para alguns, lugar da chamada norma hipotética fundamental. A norma fundamental de Kelsen possui um caráter hipotético: suposta sua validade, resulta igualmente válido o sistema jurídico que sobre ela se embasa. Neste pressuposto se radica a chamada soberania da ordem jurídica estatal, expressa através da unidade e da validade ex- clusiva do sistema escalonado de normas com o qual o próprio Estado se confunde. Esta, porém, é uma questão que conduz a um impasse em sua teoria, pois se a norma fundamental é um pressuposto, não há lugar para o problema de seu fundamento (REALE, 1998, p. 61). A metodologia adotada neste livro buscará realizar interlocuções entre a teo- ria abstrata e sua aplicação prática, com a apresentação de entendimentos dos Tribunais Superiores Pátrios. 1.1 Concepções da Constituição O primeiro passo no estudo do Direito Constitucional é determinar o sentido específico do termo Constituição, o qual, mesmo diante da diversidade doutrinária de opções, pode ser enquadrado, majoritariamente, em distintas correntes: • Sociológico. Criado por Ferdinand Lassalle (1933), em seu livro Qué és una Constituición?, entende que a Constituição reflete os fatores reais de poder de uma sociedade, representando a vontade popular. Só pode ser considerada Constituição se representar o real poder social; caso contrário, será ilegítima. Em um Estado, há a Constituição real ou efetiva e, ao seu lado, a Constitui- ção escrita. A Constituição real representa a soma dos fatores reais de poder. Portanto, ao lado da Constituição escrita, há a Constituição efetiva, que é feita por quem detém o poder. A Constituição escrita é a constituição folha de papel e só tem alguma legitimida- de quando encontra amparo na Constituição real. • Político. Idealizado por Carl Schmitt (2003), entende que a Constituição reflete a discussão política fundamental de um povo, criando a distinção entre Constitui- ção e Lei Constitucional. Assim, a Constituição está em posição de supremacia, enquanto a Lei Constitucional a ela se submete, integrando o ordenamento jurídico. A discussão política fundamental deve estruturar o Estado e assegurar o núcleo de direitos funda- mentais. Envolve um conceito decisionista de Constituição. Aqui se diferencia a Consti- tuição e as Leis Constitucionais. A Constituição propriamente dita é apenas aquilo que decorre de uma de- cisão política fundamental. Todo o restante consagrado no texto da Constituição são apenas Leis Constitucionais. Somente são partes da Constituição porque estão no texto 16 Preâmbulo: relatório que antecede uma lei ou decreto. constitucional, mas poderiam estar em qualquer lei ordinária. Exemplo clássico: artigo 242, §2º, da CF/88, sobre a localização do Colégio D. Pedro II. A decisão política fundamental envolve as matérias clássicas da Constituição, que são: a) Direitos Fundamentais; b) Estrutura do Estado; c) Organização dos Poderes. São apenas essas matérias que integram a Constituição propriamente dita. • Jurídico. Idealizado por Hans Kelsen (2006), a Constituição é a norma jurídica de grau hierárquico mais elevado, na medida em que todo ordenamento jurídico está num sistema piramidal, valendo mais que as outras leis que devem nela buscar seu fundamento. É a norma pura, encontrando dois sentidos na Teoria de Kelsen: um pri- meiro lógico-jurídico, como a norma hipotética fundamental, servindo de fundamento de validade para o segundo sentido, o jurídico-positivo, consubstanciado em norma positiva suprema no topo da pirâmide do sistema. Para essa escola, a Constituição é um conjunto de normas jurídicas. É uma lei como as demais. O seu fundamento, portanto, deve estar no próprio direito. A partir disso, diferencia: a) Constituição em sentido lógico-jurídico: é a norma hipotética fundamen- tal. Ela é fundamental porque nela está o fundamento da Constituição Federal, encontra- do também na de 1988. É hipotética porque é pressuposta, não é uma norma positivada. Não há norma positivada que determine obediência à Constituição. Há, no entanto, uma norma pressuposta que vincula tal obrigação, tanto que o teor da norma hipotética fundamental é: todos devem obedecer à Constituição. Parte-se do pressuposto que tal norma existe. Por isso, fala-se em sentido lógico, e não em sentido positivo. b) Constituição em sentido jurídico-positivo: nesse último enfoque, a Cons- tituição é aquela feita pelo Poder Constituinte. É a Constituição escrita que se conhece. Exemplo: CF/88 – conjunto de normas jurídicas positivadas. 1.2 Marcos Históricos Constitucionais A primeira Constituição escrita foi a do Estado da Virgínia, nos EUA, em 1776, pela qual foram estabelecidas as regras de relacionamento entre os três poderes, com limitação de competências, levando a ideia de supremacia constitucional e estipu- lando o Poder Judiciário como seu órgão garantidor, por ser o poder dotado de maior neutralidade política. A Constituição Francesa de 1791 foi a primeira Constituição Escrita Europeia, sendo incorporado em seu preâmbulo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cida- dão, dotada das ideias de garantias de direitos e separação de poderes. 17 O constitucionalismo liberal daquela época não foi suficiente para atender as demandas sociais, na medida em que as garantias de direito de liberdade não garantiam a liberdade real. Passando-se, então, para uma nova fase de constitucionalismo, o cha- mado social, pautado pela igualdade material. Para alguns autores, esse é o momento em que nos encontramos. Para ou- tros, estamos numa fase de neoconstitucionalismo, pautada por princípios da digni- dade da pessoa humana e seus princípios decorrentes, além do reconhecimento da força jurídica do texto constitucional, não mais meramente político. Parada Obrigatória Convém esclarecer que o termo neoconstitucionalismo, ou novo direito constitucional, diz respeito a uma teoria, ideologia ou método de análise do Direito, por essa razão não há um conceito único, mas é possível precisar sua origem em meados do século XX, na Europa. Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 127) ensinam que o neoconstitucionalismo é marcado pelos seguintes aspectos: “a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisla- dores; c) mais princípios do que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e) mais concretização do que interpretação.” 1.3 Classificações da Constituição Existem diversas formas de classificar as Constituições, sendo aqui apresen- tadas as modalidades mais difundidas: • Quanto à origem, a Constituição pode ser: a) Outorgada: é fruto de imposição e não de debate social. Pode também ser chamada de Carta Constitucional. Como exemplo, apresenta-se a Constituição de 1937. b) Promulgada: é fruto de debates e discussões políticas da sociedade, cria- da por uma Assembleia Constituinte convocada com esse fim específico. Aqui podemos inserir um submodelo, que são as Constituições Cesaristas ou Napoleônicas, nas quais o poder governante cria a Carta Constitucional e depois leva o texto para aprovação popular, por intermédio de plebiscito ou de referendo, o qual rati- fica a vontade do núcleo governante. A Constituição Federal (BRASIL, 1988) é vista por muitos como promulgada, mas parte da doutrina nãoa considera dessa forma, na medida em que foi criada por uma Assembleia Constituinte composta de forma diferenciada, um chamado Congresso Constituinte. 18 Jurisprudência: conjunto das decisões e interpretações das leis feitas pe- los tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato. Saiba Mais A palavra doutrina possui um significado amplo. Vejamos: Conjunto de ideias, opiniões, conceitos que os autores expõem e de- fendem no estudo e no ensino do Direito, os quais servem de susten- tação para teorias e interpretações da ciência jurídica; norma inter- pretativa que a jurisprudência tende a seguir na aplicação de uma lei (DICIONÁRIO HOUAISS). Constituição x Democracia Democracia, num sentido formal, significa a prevalência da vontade da maio- ria, o que, em tese, poderia levar a uma antítese com a ideia de constitucionalismo. Acontece que a democracia não pode ser vista somente nesse sentido, mas também em seu sentido material, na medida em que prevalece a vontade da maioria, mas sempre garantindo direitos fundamentais, mesmo que para a minoria. • Quanto à mutabilidade, as Constituições podem ser: a) Rígidas: é possível a alteração por Emendas Constitucionais, cujo proces- so legislativo é mais complexo em comparação com o das demais leis. b) Flexíveis: a alteração do texto constitucional segue a mesma metodologia da modificação das demais leis, podendo ser até mais fácil. c) Semirrígidas: possuem normas que podem ser alteradas de forma rígida e outras de forma semirrígida, pois é constituída por normas materialmente constitucio- nais e normas formalmente constitucionais. d) Imutáveis: são as Constituições que não admitem alteração. e) Super-rígidas: referem-se à Constituição rígida, que possui um núcleo imutável, as chamadas cláusulas pétreas, por isso não podem ser alteradas, a exemplo do artigo 60, parágrafo 4º. • Quanto à forma: a) Escrita ou dogmática: são escritas sob a forma de um dogma, ou seja, de forma fechada. b) Não escritas ou históricas: são construídas pelo costume e pela jurisprudência. 19 • Quanto à sistemática: a) Reduzidas: também chamadas de codificadas, único corpo legislativo. b) Variadas: espalhadas em vários textos normativos. • Quanto à ideologia: a) Ortodoxas: única linha ideológica. b) Ecléticas: várias linhas ideológicas. • Quanto ao conteúdo: a) Formais: possuem normas que não tratam de matéria constitucional. b) Materiais: possuem normas constitucionais. • Quanto à eficácia: a) Semântica: possui grau mínimo de eficácia, não conseguindo disciplinar a vida em sociedade. b) Normativa: possui grau máximo de eficácia, com absoluta aplicação no ato social que pretende regular. c) Nominal: intermediária entre as anteriores, possuindo parte semântica e parte normativa. 1.4 Poder Constituinte É um poder supraconstitucional, está acima do ordenamento jurídico e fora dele. Nessa visão, tem a natureza de um poder de fato ou político. Entre os autores que adotam esse posicionamento estão Paulo Bonavides e Carl Schmitt, sendo esse o enten- dimento que prevalece na doutrina pátria. Outra parte da doutrina, ligada ao jusnaturalismo, entende que há direito para além do direito positivo, justificando tal afirmativa no fundamento de que o direito natural está acima do direito positivo. Portanto, o direito positivo deve obedecer aos princípios do direito natural. Nesse contexto, o Poder Constituinte, aquele que colocará o direito positi- vo, está subordinado ao direito natural, sendo um poder de direito ou jurídico. Assim, posiciona-se, por exemplo, Ferreira Filho (1985). Saiba Mais Para o jusnaturalismo, o direito não se resume ao direito positivo, porque existe um direito resultante da própria natureza humana e que o antecede. “Esse direito é, grosso modo, o que resulta da natureza humana. É o chamado direito natural.” (FERREIRA FI- LHO, 1985, p. 51). 20 O Poder Constituinte possui várias classificações e agora esse será o tema do nosso estudo. 1.4.1 Poder Constituinte Originário É o poder de fazer uma nova Constituição, também visto como poder de 1º grau. É poder de fato, não se baseando em nenhuma norma jurídica, é um ato de força. Também é inicial e autônomo, incondicionado e ilimitado, sendo expresso por outorga ou por Assembleia Constituinte. Essa modalidade de poder, conforme parcela da doutrina, pode estar subdi- vidida em: a) Poder Constituinte Originário Histórico: responsável por fazer a primeira Constituição de um determinado Estado. Utilizando como exemplo o Brasil, esse foi o poder que elaborou a Constituição do Império. Foi inclusive a única Constituição que ele elaborou. b) Poder Constituinte Originário Revolucionário: é a possibilidade de fazer uma nova Constituição. Pode surgir de dois fenômenos: • Golpe de Estado: um governante, usurpando o Poder Constituinte, elabo- ra uma nova Constituição Federal. Exemplo: CF/37. • Insurreição: acontece quando um grupo externo aos Poderes Constituí- dos faz uma “revolução” e elabora uma nova Constituição Federal. c) Poder Constituinte Originário Transicional: surge a partir da transição constitucional. Foi o que ocorreu com a CF/88. O Congresso, no período de 1986 e se- guintes, tinha dupla função: atuava como Poder Constituído da CF/67 e CF/69; atuava como Poder Constituinte da CF/88. Outra parcela da doutrina nacional, agora capitaneada por Bonavides (2010), subdivide o Poder Constituinte Originário em: • Material: responsável por determinar o conteúdo da Constituição Federal. O povo é o responsável pela escolha. • Formal: responsável pela formalização do conteúdo escolhido. Uma vez escolhido o conteúdo, ele é formalizado em normas constitucionais. É a Assembleia Na- cional Constituinte que o exerce, formalizando as escolhas do povo. A doutrina tradicional costuma elencar três características: • Poder inicial: não existe outro poder antes ou acima dele. • Poder autônomo: cabe a ele escolher a ideia de direito que irá prevalecer. • Poder incondicionado: não se sujeita a nenhuma condição, nem formal, nem material. 21 1.4.2 Poder Constituinte Derivado É poder jurídico, regulado por lei, limitado e decorrente do Poder Constituin- te Originário. O Poder Constituinte Derivado ainda pode ser de duas ordens: o reforma- dor e o revisor. • Poder Constituinte Derivado Reformador: é o poder de fazer emendas ao texto constitucional, exercido pelo Congresso Nacional, em nome do povo, condicionado e limitado, com limites materiais, como as cláusulas pétreas (forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico, direitos e garantias fundamentais), circuns- tanciais (art. 30, §1º) e procedimentais (art. 60, §5º), todos da Constituição Federal (BRASIL, 1988). As limitações estão previstas no artigo 60 do diploma constitucional: a) Limitação temporal: impede a modificação da Constituição durante de- terminado período de tempo. A finalidade desse tipo de limitação é dar estabilidade à Constituição. A Constituição Brasileira de 1824 contemplava uma limitação temporal que durante quatro anos (1824 a 1828) ela não poderia sofrer qualquer modificação. A CF/88 não consagrou limitação temporal para o poder reformador (a limitação temporal que existia era para o poder revisor, conforme o artigo 3º do Ato das Disposições Constitu- cionais Transitórias - ADCT). b) Limitações circunstanciais: não se confundem com as temporais. Elas im- pedem a alteração da Constituição em situações excepcionais, nas quais a livre manifes- tação do poder reformador possa estar ameaçada. Essas limitações constam do art. 60, §1º, da CF/88. A Constituição Federal não pode ser emendada durante a vigência de estado de defesa (art. 136 da CF/88), estado de sítio (art. 137 da CF/88) e intervenção federal (art. 34 da CF/88). Estado de defesa e estado de sítio também são denominados de es- tados de legalidade extraordinária. 22 Biblioteca da Disciplina Para aprofundar os estudos sobre o estado de defesa, de sítio e intervenção federal,acesse a Biblioteca da Disciplina e veja: • Leitura Complementar 1 - “Sistemas emergenciais: breve análise de alguns pon- tos controvertidos”, das autoras Maísa Cristina Dante da Silveira e Sidinéa Faria Gon- çalves da Silva. • Leitura Complementar 2 - “O Estado extraordinário: fundamentos, legitimidade e limites aos meios operativos, lacunas e o seu perfil perante o atual modelo consti- tucional de crises”, de Ângelo Fernando Facciolli. O objetivo do estado de defesa e de sítio é impedir que, em situação de anormalidade e a pretexto de tal situação, os governantes violem direitos. Para impedir isso, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) já diz quais são os direitos que podem ser restringidos em situações de anormalidade. Não é estado de ilegalidade. É estado de legalidade, mas legalidade extraordinária. Nessa linha de entendimento, a intervenção federal em apenas um estado já impede a emenda. A União Federal (UF) pode intervir somente em municípios dos territórios. Essa intervenção não impedirá a emenda. Isso porque a intervenção federal em mu- nicípio tem a mesma natureza da intervenção estadual em município. Se a última não impede, a primeira também não o impedirá. c) Limitações formais: também conhecidas como limitações processuais ou limitações procedimentais. Existem autores que a chamam de limitações implícitas. Há duas espécies de limitação: c.1. Limitações formais subjetivas: relacionadas aos sujeitos que podem pro- por emenda à Constituição Federal. No art. 61 da CF/88 há uma regra geral de legitimados para a iniciativa de lei. Na emenda, o processo é mais rigoroso. O único legitimado comum do art. 61 e do art. 60 (pode propor leis e também emendas) é o Presidente da República. A legitimidade para propositura de emendas consta do art. 60, I a III, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). c.2. Limitações formais objetivas: relacionam-se com o processo de elabora- ção da emenda. d) Limitações materiais ou substanciais: são as denominadas cláusulas pé- treas (há quem chame de cláusulas superconstitucionais). Tem por objetivo evitar mo- dificações feitas por maiorias momentâneas que pudessem comprometer as metas de longo prazo previstas pela CF/88. Assim, as cláusulas pétreas pretendem preservar as 23 metas a longo prazo, permitindo a continuidade do processo democrático. Poderia pa- recer que elas são antidemocráticas, porque não permitem a alteração pretendida pela maioria. Democracia não é só vontade da maioria, mas também proteção da minoria. A Constituição Federal (BRASIL, 1988) indica que não pode haver emenda tendente a abolir as cláusulas pétreas. O que não significa que não possam ser alte- radas, desde que a emenda não seja tendente a abolir o seu núcleo essencial. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com o STF, o que as cláusulas pétreas protegem não é a intangibilidade literal do dispositivo, mas sim o seu núcleo essencial. A Constituição Federal (BRASIL, 1988) consagra cláusulas pétreas ex- pressas e cláusulas pétreas implícitas. d.1.) Cláusulas pétreas expressas: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta. [...] § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais (BRASIL, 1988). d.2.) Cláusulas pétreas implícitas: são aquelas não previstas expressamente no § 4º, do art. 60, mas que decorrem da lógica do sistema constitucional, como propos- ta de emenda ofensiva à tripartição dos poderes ou, até mesmo, a supressão de direitos fundamentais. • Poder Constituinte Derivado Revisor: com previsão no artigo 3º do ADCT, o qual define que o texto constitucional passaria por uma revisão decorridos cinco anos da sua promulgação, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional em sessão unicameral (que tem somente uma câmara legislativa). O Poder Constituinte Derivado Revisor já foi exercido, o que para muitos leva ao entendimento da sua extinção, ante a preclusão de seu exercício. Preclusão: impedimento de se usar determinada faculdade processual civil, seja pela não utilização dela na ordem legal, seja por ter-se realizado uma atividade que lhe é incompatível, seja por ela já ter sido exercida (DICIONÁRIO HOUAISS). 24 1.4.3 Poder Constituinte Decorrente É o Poder do Estado-membro em fazer sua Constituição Estadual (art. 25 da CF/88 e art. 11 da ADCT), com limites decorrentes da observância obrigatória dos princí- pios constitucionais (princípio da simetria), permitindo a auto-organização dos Estados- membros. Por princípio da simetria define-se que, mesmo possuindo os Estados-mem- bros o chamado Poder Constituinte Decorrente, devem ser respeitados os limites e as disposições da Constituição Federal, na forma como são instituídos. Da soma dos dois dispositivos extrai-se o princípio da simetria, isto é, a Cons- tituição Estadual deve seguir o modelo da Constituição Federal. O princípio da simetria também deve ser observado pela Lei Orgânica Municipal, sendo que essa deve obediên- cia tanto a Constituição Federal quanto a Constituição Estadual do Estado-membro em que esteja inserido o Município. Sobre o princípio da simetria já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.298, julgada em 2009, aplicando o seguinte entendimento: No desate de causas afins, recorre a Corte, com frequência, ao chama- do princípio ou regra da simetria, que é construção pretoriana tendente a garantir, quanto aos aspectos reputados substanciais, homogeneida- de na disciplina normativa da separação, independência e harmonia dos poderes, nos três planos federativos. Seu fundamento mais dire- to está no art. 25 da CF e no art. 11 de seu ADCT, que determinam aos Estados-membros a observância dos princípios da Constituição da República. Se a garantia de simetria no traçado normativo das linhas essenciais dos entes da federação, mediante revelação dos princípios sensíveis que moldam a tripartição de poderes e o pacto federativo, de- veras protege o esquema jurídico-constitucional concebido pelo poder constituinte, é preciso guardar, em sua formulação conceitual e aplica- ção prática, particular cuidado com os riscos de descaracterização da própria estrutura federativa que lhe é inerente. [...] Noutras palavras, não é lícito, senão contrário à concepção federativa, jungir os Estados- membros, sob o título vinculante da regra da simetria, a normas ou princípios da Constituição da República cuja inaplicabilidade ou inob- servância local não implique contradições teóricas incompatíveis com a coerência sistemática do ordenamento jurídico, com severos incon- venientes políticos ou graves dificuldades práticas de qualquer ordem, nem com outra causa capaz de perturbar o equilíbrio dos poderes ou a unidade nacional. A invocação da regra da simetria não pode, em sín- tese, ser produto de uma decisão arbitrária ou imotivada do intérprete (BRASIL, 2009a). A partir da Constituição Federal, todas as Constituições Estaduais devem ser reelaboradas. Não há recepção como acontece com as leis infraconstitucionais normais. 25 Assim, todas as Constituições Estaduais devem ser reescritas e para que isso seja feito há o prazo estabelecido de um (01) ano. O Poder Constituinte Derivado Decorrente possui limitações, as quais en- contramos em normas de observância obrigatória, sendo que a classificação dos limites adotada neste livro é a apresentada por Silva (2004), para quem é possível falar em três espécies de limites: a) Princípios Constitucionais Sensíveis: quem os denominou dessa forma foi Pontes de Miranda (apud SILVA, 2004). Há quem diga que são chamados assim porque, uma vez descumpridos, geram uma reação. Constam na Constituição Federal (BRASIL, 1988), da seguinte forma: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:[...] VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos esta- duais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. Sem a observância desses princípios, haverá uma intervenção federal nos Estados. b) Princípios Constitucionais Extensíveis: a CF/88 trata da matéria para a União e manda estender ao Estado. São as normas de auto-organização da União que se estendem aos Estados. É possível separar dois grupos de princípios extensíveis: b. 1) Expressos: art. 27, §1º (aplicação das regras da CF/88 para disciplinar a atuação dos Deputados Estaduais), art. 28 (eleição do Governador e Vice deve seguir o art. 77 da CF/88) e art. 75 da CF/88 (Tribunal de Contas do Estado deve observar nor- mas do Tribunal de Contas da União). b. 2) Implícitos: art. 58, §3º (Comissão Parlamentar de Inquérito, segundo o STF, é norma de observância obrigatória, embora não conste tal exigência expressamen- te da CF/88); processo legislativo (art. 59 e seguintes). c) Princípios Constitucionais Estabelecidos: a própria CF/88 os estabelece como princípios que devem ser seguidos pelos Estados (não é mera extensão). São divi- didos em: c. 1) Expressos: que, por sua vez, se subdividem em: • regras mandatórias: art. 37 da CF/88. • regras vedatórias: art. 19 da CF/88. 26 c. 2) Implícitos: a CF/88 estabelece, no art. 22, as matérias ligadas à União. Como estão atribuídas à União, implicitamente, está consignado que o Estado não pode tratar. O mesmo se dá com relação ao art. 30 da CF/88. O que consta do art. 30 foi atri- buído à competência para os Municípios, portanto o Estado não pode tratar. c. 3) Decorrentes: são aqueles originados do sistema constitucional adotado. Exemplo: da previsão do princípio federativo decorre a exigência de respeito recíproco entre os Estados. 1.4.4 Hierarquia de Normas e Espécies Normativas Numa primeira análise, devemos estudar as normas constitucionais em re- lação ao seu grau de eficácia. Assim, apresentamos a classificação idealizada por Silva (2004), pautada pelo critério da eficácia da norma, lida nos seguintes termos: • Eficácia Plena ou Autoaplicáveis: normas que não dependem de leis in- fraconstitucionais para sua instrumentalização ou regulamentação, não podendo ter seu conteúdo normativo reduzido, possuindo aplicabilidade imediata e direta. Normalmente, são as normas de eficácia plena que estabelecem vedações (art. 19), proibições (art. 145, §2º), isenções (art. 184, §5º), imunidades (art. 53) e prerrogativas (art. 128, §5º, I). A exceção é o art. 95, IV, da CF/88, pois o dispositivo consigna vedações e permite que a lei ressalve situações específicas. • Eficácia Limitada: normas constitucionais que dependem de lei, de regu- lamentação para tornarem-se aplicáveis, com aplicação indireta e mediata, por ter carga muito grande de abstração (art. 196 da CF/88) ou quando pedir expressamente, por expressões como “nos termos da lei”. Exemplo: art. 37, VII, da CF/88. Para exemplificar a diferenciação entre normas de eficácia plena e as normas de eficácia contida, apresenta-se um quadro comparativo entre a forma definida do di- reito de greve na iniciativa privada e no serviço público. QUADRO 1 - Normas de eficácia plena e limitada Greve na iniciativa privada Greve no serviço público Art. 9º: é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interes- ses que devam por meio dele defender. §1º: a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Art. 37, VII: o direito de greve será exerci- do nos termos e nos limites definidos em lei específica. Interpretação: até a criação do §1º, o trabalhador tem o direito integral à greve. Poderá, porém, ter o direito restrito quando da criação de restrição por lei. Norma de eficácia contida. Interpretação: enquanto está sujeito ao complemento por lei, não existem os termos para o exercício do direito. Não podendo ser exercido o direito. Norma de eficácia limitada. Fonte: Elaboração própria (2012). 27 O fato de a norma depender de outra norma para ser aplicada não significa que ela não tenha eficácia. Ela não tem eficácia positiva enquanto não for regulamenta- da, mas tem eficácia negativa. Exemplo: uma norma anterior à CF/88 que dissesse que o servidor público não tem direito de greve não seria recepcionada pela CF/88, pois o art. 37, VII, da CF/88 tem eficácia negativa. A norma de eficácia limitada tem duas espécies: • normas de eficácia limitada de princípio institutivo ou organizatório; • normas de eficácia limitada de princípio programático. a) Normas de eficácia limitada de princípio institutivo ou organizatório: são aquelas que dependem de um ato intermediador para dar forma ou estrutura a institui- ções previstas por ela. Essa norma cria uma instituição, um órgão, mas não estabelece a forma e a estrutura dessa instituição, deixa para a lei fazer. Ex.: art. 102, §1º, da CF/88. Segundo esse dispositivo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Funda- mental (ADPF) será processada e julgada na forma da lei. Antes da regulamentação da ADPF (quem pode propor, qual é o trâmite, quais são os efeitos da decisão, etc.), não se poderia ajuizar, não havia a estrutura, a forma do instituto. A ADPF só passou a ser possível depois da regulamentação da Lei 9.882/99 (BRASIL, 1999a). As normas de princípio institutivo têm uma subdivisão interna: a. 1) Normas impositivas: obrigação que a CF/88 impõe ao legislador. Ex.: regulamentar a ADPF, regulamentar o direito de greve do servidor, etc. Podem gerar omissões inconstitucionais. a. 2) Normas facultativas: a Constituição dá liberdade ao legislador para escolher se faz ou não a norma. Ex.: art. 154 da CF/88 (impostos residuais e extraordi- nários). A CF/88 dá a faculdade para a União instituir os tributos. A não implementação da norma constitucional não gera uma omissão inconstitucional. Ex.: art. 22, parágrafo único, da CF/88, também é norma facultativa. Se a União não quiser delegar nenhuma matéria de sua competência normativa, ela não delega. Aqui, não há omissão inconstitu- cional. Portanto, não cabe mandado de injunção ou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) por omissão. Saiba Mais Tanto o mandado de injunção quanto a ADI por omissão servem para suprir a ausência de uma norma regulamentadora necessária para regular o exercício de direitos consti- tucionalmente previstos, mas há divergência entre a legitimidade para propositura de cada uma das medidas e quanto à extensão do objeto. 28 Biblioteca da Disciplina Para aprofundar o estudo, acesse a Biblioteca da Disciplina para a Leitura Complemen- tar 3 - “Ação direta de inconstitucionalidade por omissão x mandado de injunção: estudo comparativo”, de Tiago do Amaral Rocha. b) Normas de eficácia limitada de princípio programático: são aquelas que estabelecem diretrizes ou programas de ação a serem implementados pelos poderes públicos. A norma de princípio programático estabelece obrigação de meio ou de re- sultado? De resultado. Ela não diz quais são os meios que os poderes públicos devem utilizar. Diz apenas os fins que se deve buscar. Ex.: art. 3º da CF/88 que trata dos obje- tivos da República Federativa do Brasil. A norma de princípio programático é aquela que atribui aos poderes públicos competência para definir os fins a serem atingidos? Não. Quem estabelece os fins é a própria norma de princípio programático. Os poderes públicos só selecionam os meios para atingir os fins já previstos na norma programática. Além disso, existem as normas de eficácia contida. São normas constitucio-nais que não dependem de lei para sua aplicação, atuam de forma direta e imediata, mas admitem que a lei restrinja seu alcance. Exemplo muito comum de norma de eficácia contida encontramos no inciso XIII do artigo 5º da CF (BRASIL, 1988), o qual prevê: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabele- cer”. Assim, inexistindo restrição legal, pode-se exercer qualquer profissão, podendo a lei criar as condições (Ex.: corretor de imóveis, advogado, dentista, etc.). Outro exemplo é o art. 5º, XVI, da CF/88, que trata da liberdade de asso- ciação. Em princípio, é de eficácia plena. Porém, é restringida no art. 136 e no art. 139 (estado de defesa e estado de sítio). Nesses casos, pode haver restrição. O termo norma expressa um mandamento, uma ordem, a qual, pelos ensina- mentos de Kelsen (2006), serve para conferir poderes, permissões e limitações. Do ponto de vista jurídico, a norma serve para regular o comportamento externo do indivíduo, limitando sua forma de relacionamento em sociedade. Nesse as- pecto é diferente da norma de cunho religioso, a qual busca regular seu comportamento interior. 29 Pelos ensinamentos de Moraes (2006, p. 166), aprendemos que as normas constitucionais são dotadas de quatro características fundamentais, quais sejam: • superioridade hierárquica, pela qual a norma constitucional serve de parâ- metro de comparação para as demais normas e também de fundamento para validá-las; • maior grau de abstração, o que leva, em muitos momentos, a necessida- de de complemento em busca de concretude, possibilitando também uma interpretação mais abrangente; • em decorrência da sua hierarquia e fundamento do ordenamento, cabe as normas constitucionais prescrever direitos e garantias fundamentais; • estabelecer os fundamentos do Estado Federativo, como as limitações territoriais e as formas de exercício do poder político. Quanto às normas jurídicas, podemos observar na doutrina moderna que elas são divididas em duas ordens principais: princípios e regras. Ambas têm valor nor- mativo e são de aplicação mandatória, imperativa. Biblioteca da Disciplina Você pode ampliar os estudos, acessando a Biblioteca da Disciplina para a Leitura Comple- mentar 4 - “Normas, regras e princípios: conceitos e distinções”, de Luiz Flávio Gomes. A diferença fundamental reside no grau de abstração de cada uma, encon- trando-se os princípios em grau mais elevado de abstração, enquanto as regras apresen- tam grau de concretude maior. Assim, diante da elevada abstração, os princípios precisam de instrumentos que permitam sua concretização, visando sua aplicabilidade. Parada Obrigatória Exemplos de princípios são encontrados na Constituição Federal (BRASIL, 1988): Artigo 1º - Princípios do Estado Democrático de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana. Artigo 2º - Princípio da Separação de Poderes. Artigo 37- Princípios da Administração Púbica. Por outro lado, as regras possuem um menor grau de generalidade e abstra- ção, são consideradas de alta densidade normativa, encontrando exemplo no artigo 57 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Observa-se a previsão do referido artigo que o Congresso Nacional irá se reunir, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro. 30 1.4.5 Solução de Conflitos Diante de conflito entre normas e regras, deve-se utilizar de critério pautado na hierarquia, identificando a origem de determinada normativa, devendo prevalecer o de maior hierarquia. O conflito de regras é resolvido pela aplicação de três métodos de solução: hierarquia, especialidade e cronologia. Assim, a regra de maior hierarquia prevalece so- bre a de menor hierarquia, a mais nova sobre a mais antiga e, por fim, a especial sobre a geral. No caso de conflito entre princípios, primeiro deve ser identificado seu re- gime. Num exemplo, pautando-se em eventual conflito de princípios de ordem consti- tucional, parte da doutrina entende que a resolução deve ocorrer pelo critério de peso, prevalecendo o de maior valor jurídico sobre o de menor valor. Mas diante de um suposto conflito da mesma origem, em se tratando de princípios da ordem constitucional, entende-se que não há verdadeiramente um conflito, mas apenas uma aparência. Nesse caso, deve-se conciliar os princípios que se pretende analisar, ou seja, haverá uma aplicação simultânea dos dois princípios, porém em dife- rentes intensidades. Vejamos um exemplo por meio da Apelação Cível nº 760, julgada em 1996, pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: [...] Responsabilidade civil de empresa jornalística. Publicação ofensi- va. I. Liberdade de informação versus inviolabilidade à vida privada. Princípio da unidade constitucional. Na temática atinente aos direitos e garantias fundamentais, dois princípios constitucionais se confrontam e devem ser conciliados. De um lado, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, de outro lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Sempre que princípios aparentam colidir, deve o intérprete procurar as recíprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma inteligência harmoniosa, por- quanto, em face do princípio da lealdade constitucional, a Constituição não pode estar em conflito consigo mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios que contém. Assim, se ao direito à livre expres- são da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, segue-se como consequência lógica que este último condiciona o exer- cício do primeiro, atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir excessos e abusos (RIO DE JANEIRO, 1996). Dentro desse contexto, deve-se ter presente que todo ordenamento jurídico, aí incluída a Constituição, é formado por um conjunto de normas jurídicas, sejam elas apresentadas sob a forma de princípios, sejam sob a vestimenta de regras jurídicas, ou ambos os casos, já que não são excludentes entre si. 31 Biblioteca da Disciplina Por favor, acesse a Biblioteca da Disciplina para Leitura Complementar 5 - “A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais”, de George Marmelstein Lima. 1.4.6 Direito Constitucional Intertemporal • Revogação por normação geral: a primeira forma de sucessão de normas que será estudada é a superveniência de uma nova Constituição Federal. Pela Teoria Geral do Direito, há possibilidade de revogação expressa ou tácita da antiga Constituição, quando deparada com um novo texto constitucional. A referida revogação pode ocorrer de duas ordens: tácita ou expressamente. A revogação tácita pode acontecer quando há incompatibilidade entre a lei nova e a lei anterior e também quando a nova norma trata da matéria inteiramente. Essa é uma revogação por normação geral. Nessa linha, a revogação tácita é por incompati- bilidade ou pelo fato de que a nova ordem regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (revogação por normação anterior). A nova Constituição não precisa dizer expressamente que está revogando a antiga, não precisa também ser totalmente incompatível com a anterior para que haja revogação. • Recepção: recebimento pela nova Constituição de normas anteriores, infra- constitucionais, que com ela sejam compatíveis e a consequente revogação de todas as normas incompatíveis com o novo texto. Trata-se de verificar se os atos normativos infraconstitucionais (primários e secundários), criados sob a égide (proteção) da Constituição anterior, são aceitos ou não sob a égide da nova Constituição. Saiba Mais Os atos normativos infraconstitucionais são divididos em: • Primários: inovam o ordenamento, criando e limitando direitos. • Secundários: acessórios, visando complementar, interpretar ou regular um ato norma- tivo já existente.32 Do ponto de vista teórico, o correto seria revogar todo o ordenamento que tem seu fundamento de validade na Constituição anterior e criá-lo sob a égide da nova Constituição. Porém, do ponto de vista prático, isso é impossível. Criaria um vácuo legis- lativo imenso. Assim, cria-se o conceito de recepção, que envolve a ideia de que normas infraconstitucionais, não contrárias ao novo texto constitucional, podem ser recepciona- das pela nova Constituição. Ao analisar a recepção, o critério que deve prevalecer é o aspecto material do texto normativo, deve-se verificar inicialmente se o conteúdo da norma é compatível com a Constituição nova. Caso seja compatível, ela é recepcionada; caso não seja, ela é não recepcionada ou revogada (não pode ser chamada de inconstitucional). Havendo incompatibilidade apenas formal, em regra, a norma poderá ser recepcionada, mas irá adquirir um novo status, uma nova roupagem. Podemos citar como exemplo o Código Tributário Nacional (CTN), feito por meio da Lei Ordinária 5.172/66, sob a égide da CF de 1946. Veio a CF de 1967, que, por emenda, dizia que normas gerais de Direito Tributário deveriam ser feitas por Lei Com- plementar (LC). Então, o CTN foi recepcionado como Lei Complementar. O mesmo acon- teceu com a CF de 88, que novamente o CTN foi recepcionado como Lei Complementar. Porém, há caso de incompatibilidade formal que impede a recepção. Trata- se de uma exceção. Trata-se da hipótese em que a norma é feita por determinado ente federativo e a nova CF atribui essa competência a outro ente. Para exemplificar: a lei sobre o assunto A deixa de ser de competência do Município e passa a ser da União. As leis municipais sobre o tema não são recepcionadas. • Repristinação: é o ressurgimento da lei revogada, causada pela revogação da lei que a revogou. No nosso sistema, em regra, não ocorre de forma automática, mas pode acontecer em decorrência de previsão expressa na lei. • Desconstitucionalização: é o recebimento pela nova Constituição, na cate- goria de lei ordinária, de artigos compatíveis da Constituição revogada. Esse sistema não é adotado pelo Brasil. Quanto à retroatividade da norma constitucional, já se manifestou o Supre- mo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 493, julgada em 1992, no sentido de ser adotada em nosso sistema a chamada retroatividade mínima, ou seja, a nova Ordem Constitucional é aplicada em face de fatos que venham a acontecer após a sua promulgação, referentes a negócios passados: Ação Direta de Inconstitucionalidade - Se a lei alcançar os efeitos futu- ros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no art. 5º, XXXVI, da CF, se 33 aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de Direito Público e lei de Direito Privado, ou entre lei de or- dem pública e lei dispositiva. Precedente do STF. Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no art. 5º, XXXVI, da Carta Magna. Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional (PES/CP). Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 18, ‘caput’ e parágrafos 1 e 4; 20; 21 e parágrafo único; 23 e parágrafos; e 24 e parágrafos, todos da Lei n. 8.177, de 1 de maio de 1991 (BRASIL, 1992a). Em contrapartida a retroatividade mínima, existe ainda a retroatividade mé- dia e a máxima. Pela retroatividade média restariam sob o novo ordenamento tão so- mente efeitos pendentes de atos jurídicos verificados antes dela. A retroatividade média difere da mínima na medida em que poderia atacar parcelas vencidas e inadimplidas em um momento anterior a publicação. Já a retroatividade máxima diz respeito a uma nova ordem que poderia ata- car fatos já consumados antes de sua publicação. Inadimplir: deixar de cumprir nos termos e prazos convencionados. Ipso facto: expressão em latim que significa pelo próprio fato. A desconstitucionalização parte da ideia (concepção política) de Constituição de Carl Schmitt (2003), que distingue Constituição e Leis Constitucionais. Constituição é somente o que decorre de uma decisão política fundamental (direitos fundamentais, organização dos poderes, estrutura do Estado), todo o restante é Lei Constitucional. Assim, a superveniência de uma Constituição não revoga, ipso facto, a Constituição anterior. É necessário separar na versão antiga o que é Constituição e o que é Lei Constitucional. O que for Constituição propriamente dita fica completamente revogada. Agora, o que está no texto constitucional e não é Constituição propriamente dita (as leis constitucionais), serão recepcionadas pela nova CF. Porém, essas leis cons- titucionais tinham status constitucional, mas serão recepcionadas com status infracons- titucional. Cabe ressaltar que essa teoria não é admitida no Brasil. 34 Sobre a supremacia da norma constitucional, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 248, julgada em 1993, nos seguintes termos: A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não per- mite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido (BRA- SIL, 1993a). 1.4.7 Espécies Normativas na Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal (BRASIL, 1988) prevê as espécies normativas que compõem nosso ordenamento jurídico, as quais serão abordadas nos próximos itens: • Emenda Constitucional A emenda constitucional é espécie normativa que possui a tarefa de alterar a Constituição quando permitido, exigindo para sua aprovação um procedimento diferen- ciado de aprovação, pela utilização de um quorum de aprovação de 3/5 dos membros de ambas as Casas do Congresso Nacional, exigindo ainda votação em dois turnos. Existem limitações expressas quanto às matérias que podem ser objeto das emendas constitucionais, as quais já foram expostas quando da apresentação do Poder Constituinte Derivado Reformador. Prevê o artigo 60, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seus incisos I, II e III, regra de iniciativa exclusiva para essa espécie normativa, não havendo no texto constitucional previsão quanto à possibilidade do exercício do direito de veto pelo Presidente da República. • Leis Complementares Essa espécie normativa possui quorum especial de votação e aprovação, exigindo a maioria absoluta, conforme previsão do artigo 69 da Constituição Federal, podendo tão somente discorrer sobre matérias expressamente previstas pela CF/88. A definição da competência para iniciativa da lei complementar está definida no artigo 61 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). • Leis Ordinárias A limitação imposta à espécie normativa das leis complementares não se aplica às leis ordinárias, cabendo a essa espécie tratar de todas as matérias não previs- tas para leis complementares, utilizando de um critério residual de abrangência. A lei ordinária exige para sua aprovação a maioria simples de votos, também chamada de maioria relativa, conforme previsão do artigo 47 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). 35 Interessante a discussão sobre a existência de hierarquia entre lei comple- mentar e lei ordinária. Na doutrina há defensoresde ambas as correntes, porém o Su- premo Tribunal Federal entende que não existe relação hierárquica entre as espécies, mas sim diversidade de competências entre elas, conforme exemplificado no Recurso Extraordinário nº 377.457, julgado em 2008: Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação pelo art. 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às so- ciedades civis de profissão regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Com- plementar 70/91. Legitimidade. 3. Inexistência de relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente cons- titucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 4. A LC 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conhecido, mas negado provimento (BRASIL, 2008a). • Leis Delegadas As leis delegadas representam uma espécie normativa cuja competência de criação recai sobre o Presidente da República. A competência original de criação da re- ferida lei é do Congresso Nacional, o qual a delega ao Presidente da República. Mesmo diante da delegação da competência de criação, o Congresso Nacional continua exercen- do controle sobre o conteúdo da respectiva lei. Essa espécie legislativa possui três fases de criação: uma primeira de inicia- tiva, a segunda constitutiva e a terceira chamada fase de integração de eficácia. Na primeira fase, tem-se que a iniciativa será sempre do Presidente da Re- pública para o Congresso Nacional, chamada de iniciativa solicitadora, pela qual o Pre- sidente solicita ao Congresso a delegação da competência para criação de determinada lei, ato esse de competência exclusiva. No segundo momento, chamado de fase constitutiva, cabe ao Congresso Na- cional analisar, de maneira discricionária, o pedido de concessão de delegação realizado pelo Presidente da República, verificando se encaixa nas possibilidades elencadas pelo artigo 68, §1º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). 36 Parada Obrigatória Para não que não haja dúvida sobre as características da fase constitutiva, é importante que você conheça o artigo: Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da Repúbli- ca, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1º - Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusi- va do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei comple- mentar, nem a legislação sobre: I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos (BRASIL, 1988). A delegação pelo Congresso Nacional será formalizada pela Câmara dos De- putados e pelo Senado Federal. Ambas as Casas do Congresso, pelo exercício do voto, utilizando o critério da maioria simples, devem expedir uma resolução. Nessa resolução estarão determinadas as condições e limites da delegação exercida, obedecendo aos pa- râmetros definidos pelo artigo 68 e parágrafos da Constituição Federal (BRASIL, 1988). A delegação ainda pode ser de duas ordens: típica e atípica. A delegação típica, também denominada de delegação própria, é aquela em que o Congresso Nacio- nal delega ao Presidente da República, utilizando-se de resolução, a autorização para elaboração de projeto de lei e, posteriormente, promulgar e publicar a lei. Cabe ressaltar que o Presidente estará vinculado apenas aos parâmetros estabelecidos pela resolução. Já a delegação atípica, ou chamada imprópria, possui previsão no artigo 68, §3º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Ela representa a modalidade em que o Congresso Nacional delega ao Presidente da República, sob a forma de resolução, a autorização para elaboração de projeto de lei. Após confeccionado, o projeto deverá retornar ao Congresso Nacional para aprovação. Tal aprovação será realizada em votação única, vedada as emendas parla- mentares, utilizando do critério do quorum de maioria simples, possuindo, assim, a lei delegada o status de lei ordinária. Entende-se que a diferença entre a delegação típica e atípica reside no maior ou menor controle exercido pelo Congresso Nacional sobre a legislação pretendida. Por- tanto, pela delegação típica o controle é limitado aos limites impostos pela resolução, enquanto na delegação atípica, além dos limites definidos pela resolução, caberá ainda 37 ao Congresso Nacional a aprovação ou não da lei, cuja competência de criação fora de- legada ao Presidente da República. • Medida Provisória A medida provisória possui força de lei, mas não é lei. Tal espécie normativa é de competência exclusiva do Presidente da República, representando uma prerrogativa pela qual se busca regular uma matéria relevante e urgente. A medida provisória possui limitação temporal, até mesmo pelo fato que deveria ser utilizada tão somente para regular situação atípica, dotada de urgência e relevância, que não possa aguardar o tempo de duração do processo legislativo regular. Assim, a medida provisória, quando publicada, deve ser submetida imedia- tamente ao Congresso Nacional, possuindo prazo de validade de 60 dias, sendo ainda possível uma única prorrogação por igual prazo. Biblioteca da Disciplina Você pode aprofundar os estudos, acessando a Biblioteca da Disciplina para a Leitura Com- plementar 6 - “Medida Provisória: o controle dos requisitos constitucionais de rele- vância e urgência pelo Congresso Nacional e pelo STF”, de Felipe Penteado Balera. • Decreto Legislativo O decreto legislativo é ato normativo que veicula matérias de competência do Congresso Nacional que, em regra, são dotadas de efeitos externos. Encontramos um exemplo no ato de ratificação de tratados internacionais. Essa espécie normativa serve para instrumentalizar o trabalho do Congresso Nacional, entendido como normativa primária. Outros exemplos de sua aplicação são encontrados nos incisos I e V do artigo 49 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). • Resolução A resolução é uma espécie normativa primária, utilizada para veicular as competências de caráter privativo do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. De modo geral, as resoluções objetivam regular as matérias, em regra, com efeitos internos às Casas. 1.4.8 Da Relação entre as Espécies Normativas Conforme já apresentado, de acordo com a orientação do Supremo Tribunal Federal, não há hierarquia entre lei ordinária e lei complementar, na medida em que ambas possuem campos materiais específicos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, havendo, portanto, diferença de matéria, e não de hierarquia. 38 Entre as leis criadas pelos diferentes entes da Federação - Lei Federal, Lei Estadual e Lei Municipal -, em vista da repartição horizontal de competências, também não se fala em hierarquia, na medida em que cada ente federativo possui um campo específico de atuação. Havendo conflito, primeiro é necessário que se analise qual ente extrapolou sua competência legislativa. A competência exclusiva dessa análise é do Supremo Tri- bunal Federal, nos termos em que define a alínea “d”, do inciso III, do artigo 102, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Também está prevista na Constituição Federal (BRASIL, 1988) a competên- cia concorrente, não de repartição horizontal, mas sim de repartição vertical. Nesse caso, cabe a União legislar sobre normas gerais, ao Estado-membro legislar sobre normas complementares e aos Municípios legislar sobre matérias de interesse local. A norma Estadual que entrar em conflito com a geral da União ficará suspensa. No artigo 61, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), constam as regras de competência legislativa, estabelecidas da seguinte forma: A iniciativa das leis complementares
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