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Relato do Tratamento Psicanalítico de • uma menzna ~ I MAGO D. W. WINNICOTT THE PIGGLE RELATO DO TRATAMENTO PSICANALÍTICO DE UMA MENINA Coleção Psicologia Psicanalítica Direção de JAYME SALOMÃO IMAGO EDITORA LTDA. RIO DE JANEIRO THEPIGGLE Copyright © 1977 Clare Winnicott Published by arrangement with Mark Paterson & Associates, 1 O Brook Street, Wivenhoe, Colchester C07 9DS, England Editoração: Tradução : Else Pires Vieira e Rosa de Lima Martins Revisão: Heloisa Fortes de Oliveira Todos os direitos, de reprodução, divulgação, tradução são reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por micro·ftlme, ou outro processo fotomecânico, eletrônico ou outros conhecidos no momento ou inventados a partir de agora, incluindo fotocópias e gravações, sem permissão do Editor. Impresso no Brasil Printed in Btazil SUMÁRIO Nota dos tradutores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Prefácio por Clare Winnicorr e R. D. Sheperd . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Prefácio do Editor - Ishak Ramzy . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Introdução por D. W. Winnicott. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 A paciente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Primeira consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Segunda consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Terceira consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 7 Quarta consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Quinta consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Sexta consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 Sétima consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Oitava consulta .......................... ~ . . . . . . . . . . . 93 Nona consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 Décima consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 Décima-primeira consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Décima-segunda consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 Décima-terceira consulta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 Décima-quarta consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Décima-quinta consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Décima-sexta consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Pósfácio pelos pais de Piggle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 13 i 15 Planta do local de trabalho do Dr. Winnicott 87 Chester Square Londres. 1. Jardim no terraço 2. Muro -Janela obstruída 3. Telhado inclinado 4 . Área no Subsolo S. Estantes 6. Cortinas 7. Livros 8. Escritório 9. Sala de Espera 10. Livros 11. Estantes 12. Brinquedos 13. Escada para o jardim no Terraço 14. Consultório 1 5 . Estantes 16. Livros 17. Escrivaninha Desenhado por E. Britton NOTA DOS TRADUTORES Evitamos, na medida do possível, fazer qualquer adaptação, recurso do qual os tradutores se valem com freqüência. Citaríamos, à quisa de exem- plo, a não tradução dos nomes próprios. O apelido "Piggle", literalmente, equivaleria a "porquinha" em português. No entanto, "Piggle", um vocativo da linguagem afetiva usado para crianças, não tem qualquer conotação pejora- tiva, como ocorre em português com a tradução literal "porquinha". Um equivalente semântico seria, por exemplo, o vocativo "Gatinha"; mas este não se prestaria às variações fonológicas que a criança faz com a palavra "Piggle", como os leitores terão oportunidade de ver. O mesmo ocorre com o nome próprio "Gabrielle". Preferimos, também, não traduzir o apelido "Sush", que a criança inventou para designar sua irmã, Susan. A palavra "Sush" sugere uma pronúncia incorreta de "Susan", talvez, também, por analogia com "suck" (sugar, mamar) ou com "such" (parte da exclamação "Such a baby!" - Que bebê! - freqüentemente usada por pais ingleses ao repreen- der, carinhosamente, uma criança). Uma vez que não seria adequado traduzir ou adaptar tais nomes próprios, a título de uniformidade de critério, man- tivemos tan1bém os outros. A adaptação ao nível do discurso foi também evitada. Preferimos, sem- pre que possível, uma tradução mais literal da linguagem da criança, dos pais e do terapeuta, ao dirigir-se à paciente em termos mais accessíveis. Entendemos que, muitas vezes, isto tenha implicado um uso menos aceitável do português. Porém, parece-nos que, num texto psicanalítico, o modo de expressar uma idéia é tão importante quanto o conteúdo propriamente dito; assim sendo, preocupamo-nos mais com a linguagem, em detrimento da correção lingüística. Tivemos de nos valer de elementos extra-lingüísticos ao traduzir o pro- nome "you". Como poderíamos traduzi-lo por "você" ou "o( a) senhor( a)", baseamos a arbitrariedade de nossa escoll1a no espírito britânico. O povo inglês é bastante cerimonioso, principalmente com pessoas mais idosas; assim 8 The Piggle sendo, traduzimos "you" por "o senhor" quando Piggle ou os pais se dirigem ao terapeuta; nos .outros casos, traduzimo-lo por "você". Gostaríamos de fazer uma última observação de ordem estilística. O autor, falecido antes de terminar o preparo do manuscrito para publicação, não teve a oportunidade de cuidar do estilo e até mesmo de 'COmpor frases inteiras. Suas notas, às vezes excessivamente elípticas, podem gerar dificul- dades. Visando facilitar a leitura, alteramos, algumas vezes, a pontuação. Mantivemos, no entanto, a disposição do texto, inclusive das notas marginais. O leitor poderá deduzir que a presente tradução apresenta todas as dificuldades da tradução literária assim como da tradução técnica. Ao expor as principais dificuldades encontradas, não poderíamos deixar de mencionar a ajuda do professor Ian Linklater, de literatura inglesa, e da professora Ana Maria de Almeida, de literatura brasileira. Registramos nossos agradeci- mentos especiais à inestimável ajuda do Dr. Abrahão Israel Myssior, da Associação Mineira de Psiquiatria, que, com seu profundo conhecimento téorico e grande experiência clínica, orientou-nos durante todas as fases do trabalho e reviu, cuidadosamente, o manuscrito. Else Ribeiro Pires Vieira Rosa de Lima Sá Martins (Do Laboratório de Tradução da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais). Maio de 1979 PREFÁCIO DA EDIÇÃO INGLESA Este livro apresenta literalmente trechos de anotações de um psicana- lista sobre o tratamento de uma criancinha. O leitor terá a rara oportu,nidade de penetrar na intimidade de um consultório e observar a criança e o tera- peuta em atividade. Isso terá um valor especial para aqueles que estão pro- fissionalmente envolvidos com crianças, assim com'> será também de interesse para qualquer pessoa que sé preocupe com crianças e seu desenvolvimento. Piggle interessará particularmente àqueles já familiarizados com a obra do Dr. Winnicott, recentemente falecido. Seus comentários e outras obser- vações ocasionais para o leitor descrevem a evolução do tratamento e dão sua interpretação teórica do que está acontecendo. Os textos sobre o que ele falou, e como ele falou, ilustram, ao mesmo tempo, claramente, suas con- tribuições para a teoria e técnica psicanalítica no tratamento infantil. O livro, entretanto , não é enfadonho . É um relato vivo sobre duas pessoas trabalhan- do e brincando juntas com intensidade e anin1ação propositadas. Na opinião de Winnicott, "não é possível a uma criança dessa idade extrair o significado de um jogo,a menos que, antes de tudo, haja brinquedo e diversão". É através do divertimento , que a ansiedade é dominada e contida dentro da experiência total (13a. consulta). Os leitores perceberão o prazer desfrutado pelo próprio Winnicott no jogo com a criança. Ele percebe e aceita a transferência . Faz mais que isso : dá vida à transferência, interpretando os vários papéis que lhe são destinados. A dramatização do mundo interior permite à criança experimentar aquelas fantasias que mais a perturbam, enquanto brinca com elas. Isso ocorre em doses pequenas e num contexto que se torna suficientemente seguro, graças à habilidade do terapeuta. A tensão criativa na transferência é mantida, e o grau de ansiedade e expectativa é conservado dentro da capacidade da criança, de tal forma que o jogo possa continuar. Dr. Winnicott adaptava sua técnica às necessidades de cada caso es- pecífico. Se a psicanálise total era necessária e possível, ele fazia a análise. Do 10 The Piggle contrário, mudava sua técnica de sessões regulares em sessões "de acordo com a demanda", ou em consultas terapêuticas isoladas ou prolongadas. O método "de acordo com a demanda", foi utilizado, nesse caso. No manuscrito deste livro há uma anotação do Dr. Winnicott, lem- brando a si mesmo de fazer um comentário sobre a sua maneira de trabalhar com os pais da paciente. Infelizmente, ele nunca escreveu isso na íntegra, mas suas notas crípticas dão a perceber alguma coisa sobre o que ele sentia a respeito desse relacionamento. Suas anotações são como as seguintes: "dividir o material com os pais ~ terapia de familia não - estudo de caso não - psicanálise partagé (compartilhada). Nenhuma quebra de confiança da parte deles e eles não interferiram". Uma anotação também sugere que, tanto a participação dos pais, quanto o intervalo entre as entrevistas produziran1 o enfraquecimento do sentimento possessivo e deixaram cantinho aberto para que o relacionamento da paciente com seus pais se desenvolvesse como parte do processo tera- pêutico total. Os leitores deverão considerar que, no caso de Piggle, seus pais eram profissionais que tinhan1 conhecimento do campo da psicoterapêutica. A colaboração deles foi decisiva para o resultado do tratamento. A terapia prolongou-se por mais de dois anos e meio, com entrevistas esporádicas. Entre uma e outra entrevista, a paciente muitas vezes mandava, junto com as cartas dos pais, bilhetes e desenhos para o Dr. Winnicott, di- zendo-lhe como estava sentindo-se. Era vital para a tarefa terapêutica que as entrevistas fossem marcadas a . pedido da criança e essa técnica teve uma importância capital na manutenção do relacionamento. A intensidade da transferência manteve-se do princípio ao fim, e desfez-se, fmalmente, de uma forma convincente e enternecedora para satisfação de ambos. Clare Winnicott R. D. Shepherd Winnicott Publications Conunittee ( \ PREFÁCIO DO EDITOR DO ORIGINAL Apresentar este livro do Dr. Donald W. Winnicott, recentemente faleci- do, constitui uma honra e um privilégio. Ele escreveu este documento clínico, íntimo e fascinante, e deixou-o de lado por vários anos, antes de se decidir a submetê-lo à consideração de outros leitores, além da Sra. Clare Winnicott e dos pais de sua pequena paciente. Tomei conhecimento do manuscrito através de um desses acasos que somente um Winnicott poderia proporcionar, um ano e meio antes de sua morte em 1971. As anotações sobre minhas discussões prolongadas com ele, durante o verão de 1969, e nossa correspon- dência posterior, destinada a ajudá-lo na preparação do livro para publicação, serviram-me de roteiro para editá-lo em seu nome. Muito do· que ele somente poderia ter feito e planejara fazer, se tivesse tido tempo para · rever certas passagens e desenvolver anotações resumidas, ficará por fazer, a fun de conservar-se esta contribuição dentro do formato e do estilo originalmente estabelecidos pelo Dr. Winnicott. Tal como se encontra, entretanto, o livro está provavelmente destinado a permanecer, como exemplo eloqüente de uma rara perspicácia clínica e exemplificação inestimável da teoria e da técnica de um dos mais criativos e destacados mestres do tratamento psicanalítico da criança. Talvez seja necessário mencionar alguns fatos sobre Winnicott, especial- mente para aqueles leitores que provavelmente ainda não tiveram acesso a qualquer relato biográfico sobre ele. Filho de ingleses autênticos, foi educado sob condições favoráveis, tendo-se formado em medicina com pouco mais de vinte anos. Começou sua carreira como pediatra clínico do Paddington Green Children's Hospital, em Londres, onde trabalhou durante quarenta anos aproximadamente, período em que atendeu, de acordo com seus cálculos, cerca de 60.000 mães e crianças. Logo após ter iniciado o exercício da pediatria, entrou em contato com Ernst Jones, que o enca- minhou para análise com J ames Strachey. Referindo-se àqueles anos, Winni- cott escreve: ".Eu estava iniciando como pediatra conselheiro, naquela oca- 12 The Piggle sião, e pode-se imaginar como era empolgante fazer inúmeras anl1Jlll1eses e obter de uma classe de pais menos instruídos toda a confmnação necessária para as teórias psicanalíticas, que estavam começando a fazer sentido para mim, através da minha própria análise. Naquele tempo, nenhum outro analista era também pediatra, e, assim, durante duas ou três décadas, fui um fenôme- no isolado" 1 • Conheceu fama e renome mundial nos últimos quinze anos de sua vida. Não fundou uma escola nem liderou um grupo de seguidores que divulgassem seus ensinamentos. Obteve reconhecimento público pela maneira despreten- siosa, porém direta, pelo estilo simples, porém incomparável, que usou na apresentação de suas descobertas. Apresentava, em palavra escrita e falada, exemplos vivos de seu trabalho prático (evidência convincente de suas desco- bertas) aos círculos científicos e revistas especializadas em psiquiatria e psica- nálise, assim como, com mais freqüência, ao círculo mais amplo de pais, assistentes sociais, professores e todos aqueles que se interessavam pela educa- ção, saúde mental e bem-estar da criança. Winnicott ficou na história da ciên- cia da natureza humana ao descobrir o significado daquilo que outras pessoas sabiam desde muito tempo, sem que percebessem ou avaliassem sua importân- cia para o desenvolvimento e realização do homem. Uma bibliografia não atualizada de seus livros e trabalhos publicados chega a 190 títulos2 • Para resumir apenas os temas principais de uma contribuição tão volumosa seria necessário um livro inteiro; mas o essencial das contribuições de Winnicott pode ser encontrado na introdução de Masud Kahn à nova edição dos textos selecionados de Winnicott, Through Pediatrics to Psycho-Analysis3 • Donald Winnicott foi um dos professores a quem mais prezei, e durante quase vinte anos foi meu amigo e conselheiro. Como era de meu costume pas- sar por Londres todas as vezes que ia para o Congresso Internacional de Psicanálise na Europa, escrevi a Winnicott, em junho de 1969, para saber se ele teria tempo para um encontro e uma conversa comigo, antes de nos envolvermos com as atividades do "pre-Congress", no percurso para Roma. Ele me respondeu imediamente, sugerindo uma noite para o encontro, logo após minha chegada a Londres. Contudo, em correspondência posterior, entregue ao mesmo dia, recebi outra carta que dizia: '"Tenho algumas notícias para você. Você não sabe ainda, mas em 22 de junho, das 14:30 às 16:15 h, você vai supervisionar-me perante todos os 1 A Personal View of the Kleinian Contribution. In: The Maturational Processes and the Facilitating Environment. Nova Iorque: Internacional Universities Press; Lon· dres: Hogarth Press, 1965, p. 172. 2 Ver lista do Editor in The Maturational Processes and the Facilitating Environ- · ment. 3 Londres: Hogarth Press, 1975. Prefácio do Editor do Original 13 participantes do "pre-Congress"! "Acontece que, porcausa de minha doença, alguns de meus alunos tiveram de procurar supervisores em outros lugares e, por isso; não tenho nenhum aluno com um caso interessante que eu possa apresentar no Congres· so. Em vista disso, solicitei permissão para ser supervisionado e estou convi· dando-o para ser o meu supervisor". "Farei uma exposição sobre a análise de uma criança e você poderá achá-la bastante insatisfatória como análise, mas isso conduziria à discussão. Aguardo com ansiedade e entusiasmo essa experiência. Quando nos encontrar· mos, dir-lhe-hei tudo o mais que você desejar saber se for necessário. Espero realmente que você aceite o convite ." Logo após minha chegada a Londres, à noite, depois de um jantar suntuoso preparado por Clare, Winnicott falou-me sobre o trabalho que estava marcado para o dia 22 de julho, como parte do "pre-Congress Scientific Program", organizado pela British Psycho-Analytic Society. Quando pergun- tei se havia quaisquer anotações que eu pudesse ler, afunde me inteirar sobre o caso, ele, meio sério, respondeu-me que eu não precisava perder tempo preparando-me, nem precisava preocupar-me com outros pormenores além daqueles que iria apresentar; neles eu poderia basear minhas observações relativas à supervisão e dirigir uma discussão aberta no encontro. Foi somente depois de uma troca de brincadeiras que me entregou uma cópia completa das. notas datilografadas do caso do qual não tinha ainda escolhido a parte que iria apresenta r. Ao retornar ao hotel, preocupado com o possível desapontamento da Assembléia, ao ver que Winnicott não faria a supervisão, conforme fora anun· ciado, mas que seria, ao s.ontrário, supervisionado, e por um colega menos entendido no assunto, eu, apressadamente, passei uma vista de olhos sobre o manuscrito, para me informar a respeito do seu conteúdo e ver como a discussão preliminar se desenrolaria. Foi como se eu tivesse encontrado, por acaso, um tesouro escondido. A grande emoção e prazer que senti naquela leitura dissiparan1 minhas preocupações, e passei a ansiar pelo momento com alegiia antecipada. Este livro apresenta agora, para o leitor, aquele manuscrito. O grande anfiteatro esta repleto . Retardatários tiveram de contentar-se apenas com o espaço para ficar de pé. De acordo com uma relação disponível dos inscritos para o encontro, a audiência incluía psicanalistas provenientes dos quatro cantos do mundo e poucos da Inglaterra, uma vez que o "pre· Congress Scientific Program" se destinava principalmente aos participantes de outros países. Após explicar o motivo pelo qual não iria demonstrar uma supervisão realizada por ele, mas que ao contrário, iria ser supervísionado por mim, a convite dele, Winnicott prosseguiu, com sua voz mansa e sua ma· neim despretensiosa, introduzindo o caso e apresentando o trabalho que realizara durante a primeira sessão com a paciente. Um assunto que deu 14 The Piggle margem a debates na discussão subseqüente foi: o tipo de tratamento que Winnicott descrevia e chamava "psicanálise de acordo com a demanda", com suas sessões infreqüentes e irregulares, era análise ou psicoterapia? Winnicott respondeu, chamando a atenção para o que fez com a transfe- rência e o inconsciente, e não para os preparativos formais de uma situação de análise, ou a freqüência ou regularidade da sessões analíticas. Durante a discussão, ouviu-se um membro impaciente da audiência dizer, em sus- surro audível: "Se existe qualquer dúvida se é análise ou não, como é que o caso do pequeno Hans4 ainda é considerado um dos clássicos da literatura psicanalítica?" Na introdução que o próprio Winnicott fez para este livro, ele discorre sobre as vantagens do método "de acordo com a demanda". Na verdade, Winnicott já tinha defmido o seu ponto de vista do que é psicanálise, em 19585 , quando afirmou: "Fui convidado para falar sobre o tratamento psicana/(tico, e, para contrabalançar, um colega foi convidado para falar sobre a psicoterapia individual. Espero que nós dois comecemos pelo mesmo problema: como distinguir entre os dois? Pessoalmente, não sou capaz de estabelecer essa distinção. Para mim a questão se resume em saber se o terapeuta fez um treinamento analítico ou não. Em vez de contrastar os dois temas, um com o outro, poderíamos com melhores resultados contrastar os dois temas como o da psiquiatria infantil. No exercício de minha profissão, tenho tratado de milhares de crianças nessa faixa etária [de lactação] através da psiquiatria infantil. Tenho (como analista com treinamento), feito psicoterapia individual em centenas delas. Já tive certo número de crianças dessa idade, para psicanálise, mais de doze e menos de vinte. Os Jintites são tão indefmidos que seria incapaz de afirmar com exatidão." Alguns anos mais tarde (1962)6 , ele voltou ao assunto e disse: "Gosto muito de fazer análise e sempre aguardo com expectativa o fmal de cada uma delas. A análise pela análise não tem sentido para mim. Faço análise porque é disso que o paciente preçisa e aceita. Se o paciente não precisa de análise, faço, então, outra coisa. Na análise, pergunta-se: quanto é permitido fazer? Por contraste, em minha clínica, o lema é: quão pouco precisa ser feito?" 4 Freud, S. (1909). Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy:Standard Edition, 10:3-149. Londres: Hogarth Press, 1955. 5 Child Analysis in the Latency Period. In: The Maturational Processes and the Facilitating Environment. Nova Iorque: lntemational Univerties Press, 1965; Londres: Hogarth Press; p. 115. 6 The Auns of Psycho-Analytical, Treatment. In: The Màturational Processes and the , Facilitating Environment. Nova Iorque: lntemational Universities Press; Londres: Hogarth Press, 1965, pp. 166-70. ' I Prefácio do Editor do Original 15 Ele conclui o mesmo trabalho com a seguinte afirmação: "Em minha opinião, nossos objetivos no exercício da técnica padrão não são alterados, no caso de interpretarmos os mecanismos mentais que pertencem·aos tipos psicóticos de desordem e aos estágios prinútivos nas fases emocionais do indivíduo. Se nosso objetivo continua a ser o de verbalizar o consciente incipiente em termos da transferência, então estaremos fazendo análise; caso contrário, seremos então analistas fazendo outra coisa que consideramos apropriada à ocasião. E por que não? lshak Ramzy, M.A., Ph.D. Topeka, Kansas, outubro de 1964 INTRODUÇÃO O presente livro, cuja autoria é a mim atribuída, foi parcialmente escrito pelos pais de uma menina apelidada de Piggle1 . O livro é composto de excertos de cartas sobre Piggle, escritas pelos pais, e de minhas anotações clínicas, nas quais tento dar uma descrição pormenorizada das entrevistas psicanalíticas. Acrescentei comentários, mas espero que eles não sirvam de grande obstáculo ao desenvolvimento, por parte do leitor, de pontos de vista próprios sobre o material e sua evolução . Pode-se questionar se é lícito ou não publicar pormenores íntimos de uma análise; mas o fato de a paciente contar, neste caso, apenas dois anos e quatro meses, quando do início do tratamento, facilita a decisão. Acresce que, ao assumir parte da responsabilidade, os pais demonstraram não achar que a publicação da descrição do tratamento prejudicasse Gabrielle, caso ela deparasse com o livro quando estivesse mais velha2 • Não diria que este tratamento foi totalmente concluído. Vacilo em afirmar que a análise de uma criança pode ser dada por encerrada, quando a paciente é tão jovem que os processos de desenvolvimento se sobrepõem à análise no momento em que esta começa a alcançar êxito. Pode-se observar, nesse caso, que, a princípio, a patologia da criança domina a situação ; assim sendo, é fácil atribuir a mell1ora clínica ao trabalho realizado na análise. Com o decorrer do tempo, entretanto, a criança começa a se liberar do padrão de organização de defesas rígidas que constitui a doença; torna-se, pois, difícil distinguir a melhora clínica do desenvolvimento emocional,e o trabalho rea- lizado no tratamento dos processos de maturação que se tornaram livres. 1 Na Inglaterra, o apelido "Piggle" é um termo afetuoso usado geralmente para crianças de tenra idade . 2 Em data posterior, a mãe, sem ter em vista a publicação, forneceu alguns comen· tários sobre as transcrições das sessões. Alguns de·sses comentários foram incluídos nc livro. 18 The Piggle Os pais entraram em contacto conúgo em janeiro de 1964, quando Gabrielle tinha dois anos e quatro meses de idade. Atendi Gabrielle 14 vezes "de acordo com a demanda", começando, quando ela contava dois anos e ·cinco meses. Ela estava com cinco anos por ocasião da décima-quarta consulta. No caso específico desta análise, em decorrência do fato de a criança morar a uma distância considerável de Londres, o tratamento foi feito "de acordo com a demanda", o que influenciou a questão do seu término. Não há razão para não se dar continuidade ao método "de acordo com a deman- da", bem como para não incluir, esporadicamente, fases de tratamento intensivo. Não é possível nem necessário prognosticar um futuro remoto. Observar-se-á, com relação a isto, entretanto, que o analista é mais suscetível de tolerância da sintomatologia da criança do que os pais; estes tendem a achar que, uma vez que a criança entrou em tratamento, o aparecimento de sintomas deva significar um reinício do tratamento. Uma vez que se inicia um tratamento, o que se perde de vista é a rica sintomatologia de todas as crianças que são satisfatoriamente tratadas em suas próprias casas. É pos. sível que o tratamento de uma criança, de fato, interfira em algo muito valioso, que é a capacidade da famt1ia de tolerar e enfrentar os estados clíni- cos da criança, indicativos de tensão emocional, ou paradas temporárias no desenvolvimento emocional, ou o desenvolvimento propriamente dito. Sob esta perspectiva, o método "de acordo com a demanda" oferece vantagens sobre o método de sessões diárias cinco vezes por semana. Por outro lado, não se deve pensar que um meio-termo seja válido; ou a análise é feita em termos de sessões diárias, ou, caso contrário, a criança deve ser atendida a pedido. Os tratamentos com uma sessão semanal, que se tornaram um meio-termo de aceitação praticamente geral, têm validade questionável, pois ficam entre dois extremos e impedem a consecução de um trabalho de real profundidade. O leitor poderá achar que o estado clínico dessa criança é bem descri- to nas cartas que os pais escreviam nos intervalos entre uma e outra consulta. É possível verificar, através dessas descrições feitas sem visar a publicação e simplesmente para dar informações ao analista, que a patologia de Gabrielle se tornou um traço donúnante e assunúu, após as duas primeiras sessões, um padrão organizado como doença. Em seguida, gradativamente, a sintoma- tologia desaparece, cedendo lugar a uma série de estádios de maturação que tiveram de ser novamente trabalhados, embora, certamente, eles tinham sido satisfatoriamente vividos durante a primeira infância de-Gabrielle, isto é, antes •I da segunda gravidez da mãe. Contudo, é através da descrição do trabalho psicanalítico que o leitor poderá observar a saúde básica da personalidade dessa criança; esta característica foi sempre óbvia para o analista, mesmo quando, clinicamente e em casa, a criança se mostrasse realmente doente. O Introdução 19 tratamento exerceu uma influência especial que se evidencia desde o início e que, sem dúvida, se tornou mais conspícua pela confiança dos pais e da paciente no analista. As descrições do trabalho realizado demonstram que, desde o começo, Gabrielle vinha para uma atividade e que, toda vez em que ela vinha para o tratamento, trazia um problema que era capaz de revelar. Em todas as ocasiões o analista tinha a impressão de que a criança levava ao seu conhecimento um problema específico, embora haja muitos momentos de conversas ou comportamentos ou jogos indefmidos, nos quais parecia não haver nenhuma orientação. Essas fases de jogos indefinidos eram evidente- mente um traço importante , visto que um sentido de direção se desenvolvia a partir do caos, e que a criança se tornava capaz de comunicar em decorrên- cia de um senso de necessidade real; necessidade esta que a levava a pedir que houvesse uma outra consulta. Intencionalmente deixei vago o mater~al inde· fmido, tal qual ele me pareceu ná ocasião em que fazia as anotações. D. W. Winnicott, F. R. C.P. 22 de novembro de 1965 A PACIENTE TRECHO DA PRIMEIRA CARTA DOS PAIS, ESCRITA PELA MÃE 4 de janeiro de 1964 "Será que o senhor tem tempo para ver nossa filha Gabrielle, de dois anos e quatro meses de idade? Ela tem preocupações que a mantêm acordada à noite, e que al- gumas vezes parecem afetar sua vida em geral e seu relacio- namento conosco, embora isso nem sempre aconteça. "Aqui estão alguns pormenores. "É difícil descrevê-la como um bebê. Sempre pa- receu muito mais uma pessoa formada, dando a impres- são de dispor de grandes recursos interiores. Não há muito a dizer sobre a sua alimentação que transcorreu de maneira fácil e natural; o mesmo com relação ao desmame. Foi amamentada no seio matemo durante nove meses1 • Tinha grande equiltbrio - quase não caía quando estava apren- dendo a andar e raramente chorava quando isso acontecia. Desde muito cedo demonstrou sentimentos muito apaixo- nados com relação ao pai e certa arrogância com relação à mãe. "Nasceu-lhe uma irmãzinha (atualmente com sete meses) quando ela estava com vinte e um meses, o que considerei cedo demais para ela. Isso, e também (assim o creio) a nossa ansiedade a respeito2 , pareceu ter-lhe 1 Os itálicos são meus. D. W. W. 2 Somente muito mais tarde fiquei sabendo que a mãe, nessa mesma idade, tinha vivido a experiência do nascimento de um irmãozinho. D. W. W. 22 causado uma grande transformação. Ela se aborrece e fica deprimida com facilidade, o que não se notava antes, e tornou-se inesperadamente consciente de seus relaCionamentos e, de modo especial, de sua identidade. A angústia intensa e o ciúme mani- festo pela irmã não perduraram por muito tempo, não obstante a grande intensidade da sua angústia. As duas agora acham muita graça uma na outra. Com relação à mãe, cuja existência parecia antes quase ignorar, Ga- brielle demonstra maior afeição, se bem que, algumas vezes, maior ressentimento também. Tornou-se claramente mais reservada com o pai. ''Não tentarei dar-lhe qualquer pormenor a res- peito, mas apenas . contat-lhe as fantasias que a man- têm chamando por nós em voz alta, até altas horas da noite. · "Ela tem um papai preto e uma mamãe preta. A ma- mãe preta vem atrás dela à noite e diz: "Onde estão meus mamás"* (mamar = comer. Apontava, para os seus seios, chamando-os de mamás e puxava-os para fazê-los maiores). Algumas vezes, a mamãe preta coloca-a· dentro da privada. A mamãe preta, que mora em sua barriga, e com quem se pode falar pelo telefone, está sempre doente, sendo difícil tratá-la . . "O segundo elemento de fantasia, e que começou mais cedo, refere-se ao 'bebê-car'. Todas as noites, ela pede, repetidas vezes: 'Me fala do bebê-{;ar, tudo sobre o bebê-{;ar'. A mamãe preta e o papai preto estão freqüentemente juntos no bebê-car; ou algum homem sozinho. Ocasionalmente, há uma Piggle preta em evidência (nós chamamos Gabrielle de "Piggle"). "Até recentemente, embora isso já tenha passado, arranhava violentamente o rosto, todas as noites. "Algumas vezes fica animada, espontânea e cheia de vida. Dessa vez, entretanto, pensamos em recorrer ao senhor, pelo receio de que ela venha a acomodar-se e tornar-se insensível ante sua angústia, como a única maneira de en- frentá-la". The Piggle A doença clinicamente descrita *No original yams - palavra inventada pela criança para designar "seios" e "co- mer". Presume-se que tenha sido por analogia com a onomatopéia nham, também usada pelos ingleses para expressar coisagostosa. (N.T.) A Paciente TRECHO DE CARTA DA MÃE "As coisas não melhoraram nada, desde que escrevi para o senhor. Piggle, agora, quase nunca demonstra qual- quer concentração em seus brinquedos e dificilmente adnú- te ser ela mesma: ou é o bebê-car ou é, com mais freqüên- cia, a mamãe. 'A Piga foi embora, foi para o bebê-car. A Piga é preta. Os dois Pigas são ruins. Chora, mamãe, por causa do bebê-car!'" "Contei-lhe que tinha escrito para o Dr. Winnicott, ' que entende de bebê-cars e mamães-pretas'; desde então ela parou com as suas súplicas noturnas: 'Me fala do bebê- car' . Duas vezes me pediu, dir-se-ia que inesperadamente: - 'Mamãe, me leva ao Dr. Winnicott.'" 23 Um estudo clínico degenerativo I I PRIMEIRA CONSULTA (3 .de fevereiro de 1964) Os pais trouxeram "Piggle" e, a princípio, ficamos todos durante algum tempo no consultório. Gabrielle estava séria e, Jogo que pôs a cabeça na porta, percebi que tinha vindo disposta a trabalhar. Levei os três para a sala de espera, onde tentei trazer Piggle de volta à minha sala. Ela não se mostrava disposta a fazê -lo e no percurso disse para a mãe: "Eu sou tímida demais!" Em vista disso , chamei também a mãe, recomendan- do-lhe , entretanto, que não ajudasse em nada . As duas sentaram-se juntas no divã. Antes eu já tinha feito amizade com o ursinho que estava no chão, ao lado da mesa. Sentei- me no chão, no fundo da sala para brincar com os brinque- dos. Disse a Piggle (na verdade eu não conseguia vê-la): "Traz o ursinho para cá. Quero mostrar-lhe os brinquedos". Ela trouxe-o imediatamente e ajudou-me a mostrar-lhe os brinquedos. Logo, ela mesma começou a brincar com eles, tirando principalmente partes de trenzinhos daquela con- fusão. E dizia: "Eu tenho um ... " e assim por diante, nomeando o brinquedo que apanhava. Após cinco minutos aproximadamente, sua mãe saiu de mansinho da sala. A porta ficou aberta ; isso era importante para Piggle, que observava os preparativos. Então, ela começou a dizer repe- tidamente: "Aqui está um outro ... e aqui um outro". Isso se referia mais a vagões e locomotivas, mas não importava muito o que fosse: ela sempre fazia o mesmo comentário. Vendo que se tratava de uma comunicação, falei: "O outro bebê, o bebê Sush" 1 . Devo ter dito a coisa correta, porque Comunicação inicial Estabelecendo comunicação 1 t assim que Gabrielle chama sua irmã Susan, agora c.om oito meses. 26 ela começou imediatamente a falar da época em que o bebê Sush nasceu, tal como ela a lembrava: "Eu era um bebê. Eu estava no berço . Eu estava dormindo. Eu tinha acabado de tomar a mamadeira". Pensando ter ouvido alguma coisa sobre lamber, perguntei-lhe: "Você disse que estava lam- bendo?" Ela respondeu: "Não, eu não estava". (De fato, como descobri mais tarde, Gabrielle nunca tomou uma ma- madeira, mas tinha visto a irmãzinha fazê-lo). Então, eu repeti: "Havia então outro bebê" (eu o fiz afunde incenti- vá-la a continuar com a narrativa do nascimento). Ela apanhou um objeto redondo com uma peça no centro, que devia ter pertencido ao eixo de um vagão e per- guntou: "De onde veio isso?" Expliquei-lhe exatamente de que se tratava, perguntando-lhe em seguida: "De onde veio o bebê?". "O berço", ela respondeu. Nesse momento pegou uma figura de um homenzinho e tentou empurrá-la para dentro do assento do motorista de um carro de" brinquedo. Não conseguiu, pois ele era grande demais. Tentou passá-la por outros meios, inclusive pela janela. "Ele não entra, está agarrado". Pegou uma vari- nha, enfiou-a dentro da janela e falou: "A varinha en- tra". Falei algo sobre o homem pondo alguma coisa den- tro da mulher para fazer o bebê. Ela falou: "Eu tenho um gato. Da próxima vez vou trazer meu gatinho, outro dia". Nesse momento, ela quis ver a mãe e abriu a porta. Falei qualquer coisa sobre conversar com o ursinho. Perce- bia-se certa ansiedade que tinha de ser trabalhada. Tentei verbalizá-la: "Você está com medo; você tem sonhos que fazem medo?". "Sobre o bebê-car", ela respondeu. Esse nome já tinha sido mencionado pela mãe em associação com o bebê, o bebê Sush. Já então Gabrielle estava tirando a fita do carnei- rinho de brinquedo, colocando-a em volta do próprio pes- coço. Parece-me que falei: "O que o bebê-car come?" Ela respondeu: "Não sei. Eu tenho um azul. .. oh não, isso era um balão" (referindo-se a um balão vazio que tinha trazido de casa. Ela o manuseava displicentemente, e, na verdade, esse foi o ponto de partida para o jogo). Apanhou uma pequena lâmpada de superfície fosca, na qual estava desenhada a figura de um homem. Pediu: "Desenha homenzinho". Desenhei outra vez o rosto de um The Piggle Ansiedade mudança de assunto Contato com a mãe- alívio Primeira Consulta homem na lâmpada. Ela pegou as cestinhas de plásticos de morangos e perguntou: "Posso colocá-los ·aqui dentro?" Começou, então·, com modos decididos, a guardar tudo dentro das caixas. Havia bugigangas por todos os lados e, mais ou menos, oito caixas de tipos diferentes. Disse-lhe: "Você está fazendo bebês como se estivesse cozinhando: pondo tudo junto". Ela fez algumas observações: "Eu tenho de arrumar tudo. Não posso deixar o lugar desarrumado". Finalmente, tudo foi guardado, minuciosamente, den- tro das seis caixas. Enquanto isso, perguntava-me como fazer o que tinha de fazer. Introduzi, então, de forma bas- · tante óbvia, alguma coisa a respeito da mamãe preta: "Você alguma vez fica zangada com a mamãe?" Eu tinha associado a idéia da mamãe preta à sua rivalidade com a mãe, uma vez que ambas amavam o mesmo homem, o papai. Sua ligação profunda com o pai era bem evidente, por isso eu me sentia bastante seguro ao fazer essa interpretação. Num certo nível, isso deve estar certo. Após ter guardado tudo, ela falou: "Eu queria buscar mamãe e papai". E, enquanto caminhava para a sala de es- pera, acrescentou : "Eu arrumei tudo". Durante todo esse tempo Gabrielle tinha cooperado comigo, guardando todos os brinquedos debaixo da· estante, inclusive o seu próprio ursinho; amarramos, novamente, a fita no pescoço do carneirinho. Enquanto o pai tomava conta de Gabrielle na sala de espera, conversei com a mãe. ENTREVISTA COM A MÃE Segundo a mãe, Piggle tinha piorado muito, recente- mente. Ela não estava fazendo travessuras e tratava bem o bebê. Mas, ela não era ela mesma. Na verdade, ela re- cusava-se a ser ela mesma e dizia: "Eu sou a mamãe. Eu sou o bebê" . Não queria ser tratada como sua própria pessoa, tendo desenvolvido um modo de falar, em tom alto, que não lhe era peculiar. Se falava alguma coisa séria, sua voz tornava-se profunda. Piggle tinha sido um bebê excepcionalmente controlado e seguro de si. Quando Susan nasceu, a mãe tomou consciência, imediatamente, de que Piggle necessitava de muito mais atenção. Havia uma 27 Negação da desordem 28 canção 2 que estava associada à primeira infância de Piggle, mas quando os pais, recentemente, começavam a cantá-la, ela chorava amargamente e pedia: "Parem. Não cantem esta canção". (Comigo ela cantarolou uma canção e ficou muito contente quando eu disse: "Navios que passam".*Tinham- me informado que ela aprendera essa canção com o pai). A música que ela não gostava era alemã, com palavras adaptadas para o inglês, e estava estreitamente ligada ao relacionamento íntimo da mãe com o bebê. O alemão era a língua nativa da mãe. O pai era inglês. Quanto à mamãe preta e ao bebê-car, há pormenores que ainda não consegui compreender bem. Os pesadelos de de Piggle podem ser ou com bebê-car ou com um trem. Ela ainda não tinha controle esfmcteriano, mas quando o bebê nasceu, aprendeu por si mesma numa sema- na. Ela era o tipo de criança que não falava e, de repente, falou com o maior desembaraço. Costumava brincar todo o tempo, mas, desde sua transformação, vem demonstrando tendência para ficar somente no berço, chupando o polegar, sem brincar. Seu equilíbrio físico, antes excelente,também modificou-se. Ela agora está sempre caindo, chorando e reclamando dores. Costumava ser arrogante, e sua mãe existia para cumprir suas ordens. Desde os seis meses, adora o pai e, nesta idade, pronunciou "papai"- palavra que logo esqueceu ou não foi mais capaz de falar. Desde a transfor- mação, ela parece considerar a mãe como uma pessoa à parte, tendo-se-lhe afeiçoado. Tornou-se, entretanto, mais reservada com relação ao pai. Alguns dias mais tarde, durante uma conversa com a mãe, pelo telefone, fiquei sabendo que, depois da consulta, Piggle, pela primeira vez desde o nascimento da irn1ã, se permitiu ser um bebê, em vez de continuar constantemente protestando. Entrou no "moisés" e tomou uma quantidade enorme de mamadeiras. Mas não admitia que ninguém a The Piggle Mais porme- nores sobre a doença 2 Nota dos pais: "Nós transformamos uma melodia antiga numa canção de ninar, com o seguinte estribilho: ... 'e a mamãe e o papai estarão aqui' ... (Le., enquanto o bebê dorme). Durante muito tempo as lágrimas subiam-lhe aos olhos quando alguém cantarolava a canção. Agora nós mudamos a letra da canção (a original era uma canção de despedida); algumas vezes ela gosta de ouvi-la; outras vezes, entretanto, quando alguém começa a cantá-la, grita: "Pára!" *No original Ships that come sailing by. (N. T.) Segunda Consulta chamasse de Piggle. Ou era o bebê ou a mamãe. Os Piggles eram "ruins e pretos". "Eu sou o bebê". A mãe achava que Gabrielle não estava assim tão angustiada e, conforme explicou, a ftlha tinha uma maneira de simbolizar suas ex- periências. Os pais sentiam-se desorientados. Nenhum dos dois conseguia enxergar os aspectos positivos da capacidade da criança para resolver as coisas através de processos inter- nos. Por outro lado, eles tinham razão em não estar tranqüi- los com a situação atual. Piggle estendia-se na cama e chorava sem saber por- quê. Quando saíam do meu consultório, ela falou, como se tivesse esquecido alguma coisa: "O bebê-car". E acrescen- tou: "Dr. Winnicott não entende de bebê-cars - de bebê- car". Disse também que o ursinho queria voltar para Lon- dres e brincar com o Dr. Winnicott, mas que ela não queria ir não. Gabrielle quase ia esquecendo-se do ursinho entre os brinquedos, mas no último instante lembrou-se dele e le- vou-o de volta para casa. Era como se ela lamentasse todo o tempo de não ter sido capaz de falar com o Dr. Winnicott sobre o bebê-car. Os pais recordaram-se, então, da anterior tensão de agonia que ela teve com relação ao bebê-car e a mamãe preta, até o momento em que alguma "coisa se rompeu", por assim dizer. A mãe desconhecia a origem exata do bebê-car. Sabia apenas que ele estava associado à cor preta, à mamãe preta, ao se/f preto e às pessoas pretas. No meio de acontecimentos alegres, Gabrielle subitamente olhava preocupada e dizia: "O bebê-car", e isso estragava tudo. Isso é coerente com a idéia de que preto aqui signifi- cava a chegada do ódio (ou da desilusão). Há outro pormenor: de vez em quando, a mãe deve cair, ferir-se e ser tratada por Piggle. Surge aí uma evidência a mais, se fosse isso necessário, do ódio e do amor pela mãe, manifestando-se simultaneamente, e da capacidade de Piggle para tratar a mãe com agressividade. A isso deve-se acrescentar o problema: cair significa engravidar. Dessa for- ma, a agressão do pai está incluída. COMENTÁRIOS Senti que a entrevista e o relatório da mãe justifica- vam minha conclusão de que a palavra "tímida" era .. a pala- 29 Confiança no analista Desilusão Ambivalência \ 30 vra-chave. A paciente estava desenvolvendo um novo tipo de relacionamento com a mãe, que levava em conta seu ódio por ela, decorrente do seu amor pelo pai. A paixão dos seis meses pelo pai não fora assimilada em sua persona- lidade total e permanecia lado a lado com o relacionamento com a mãe, a qual, naquele tempo ainda era um objeto subjetivo3 • A transformação ocasionada pelo nascimento de uma nova criança trouxe a ansiedade, a falta de espontaneidade nos brinquedos, assim como pesadelos. Junto com isso, en- tretanto, houve a aceitação da mãe como um ser à parte e, em conseqüência, o estabelecimento do próprio eu com uma identidade e com um forte vínculo com o pai. A "mamãe \)teta" é, \)IOvave\mente, um ve1:.tigio de uma noção 1>Ubleti- va, "QieCQnce'o\.da, 1:.Q'ote a mãe. Quando ana\\1:.0 01:. \)onnenote1:. ua comu\ta, \)et\1:.0 q_ue o mais importante aconteceu no início, no momento em que Piggle respondeu à minha interpretação s~bre "outro bebê", defendendo sua posição como um bebe no berço e fazendo em seguida perguntas correlacionadas com o pro- blema da origem dos bebês. Há maturidade aqui, mas ela nem sempre se manifesta .claramente na idade de dois anos e cinco meses. As observações seguintes devem ser anotadas, devido à sua importância: 1. "Eu sou tímida", é uma evidência de força e orga- nização do ego, e do estabelecimento do analista como uma "pessoa papai". 2. Os problemas começaram com a chegada de um novo bebê, o que forçou Piggle a um desenvolvimento pre- maturo do ego. Ela não estava preparada para a ambivalência simples. 3. Indícios de elementos de loucura: bebê-car, siste- ma com referência a preto, etc., pesadelos. 4. Facilidade de comunicação. 5. Resolução temporária , através da regressão, tor- nando-se uin bebê no berço. ThePigg/e 3 Para discutir a expressão objeto subjetivo, ver Winnicott (1971), Playing and Reality , Londres: Tavistock Publications, p. 80. Também The Maturational Processes and the Facilitating Environment. Nova Iorque: International Universities Press ; Londres: Hogarth Press, 1965, pp. 180-181. Primeira Consulta CARTA DOS PAIS, ESCRITA PELO PAI Foi muita bondade sua receber-nos. Foi também providencial o seu telefonema, exatamente no momento em que tentávamos descobrir qual seria a melhor maneira de nos comunicarmos com o senhor. "Como o senhor já sabe, no dia seguinte à consulta, Piggle ficou no "moisés" chupando a mamadeira. Pare- ce-me, entretanto, que aquilo não a satisfaz plenamente na ocasião, porque desistiu logo. Ela agora é, ora o bebê, ora a mamãe grande (pessoa muito indulgente), mas nunca é ela mesma; não nos permite chamá-la pelo nome. 'A Pigga foi embora (diz ela). É preta. Os dois Piggas são pretos'. "Na hora de dormir, surgem sempre problemas. Ela usualmente fica acorda.da até nove ou dez horas, 'por causa do bebê·car'. Depois de ter-se · divertido muito durante o dia, falou duas vezes: 'Chora mamãe'. - 'Por quê?'.- 'Por causa do bebê-car'. O bebê·car parece estar sempre asso- ciado à mamãe preta, mas, nos últimos dias, entrou em cena, pela primeira vez, uma mamãe boa. Já não fala tanto com aquela vozinha formal, algo ansiosa e que não lhe é peculiar1 Usa-a principalmente quando quer dizer alguma coisa sobre o seu bebê, isto é, sua boneca e, não, sua irmã. Vem mantendo um bom relacionamento com a irmã (o 'bebê Sush') e, embora a maltrate de vez em quando, parece sentir por ela verdadeira compaixão. Quando estão juntas, fazem barulhos peculiares com os quais ambas se divertem. 31 Ela mencionou várias vezes, como se o lamentasse, que o Transferência Dr. Winnicott não entende de bebê-car. Também pediu: negativa 'Não me levem a Londres'. Houve igualmente qualquer -resistência coisa sobre uma informação errada que lhe foi dada: de que ela veio de carro. [Ela veio de trem ; embora éu não tenha entendido bem, não perguntei]. E o assunto não foi mencio- nado mais, até o dia em que ela, não conseguindo lembrar uma canção, pediu-me para levá-la ao Dr. Winnicott. No dia seguinte, pediu-me para não ir e brincou de levar trenzinhos carregados de brinquedos para Londres, 'para brincar e con- versar'. Nos últimos dias, eu tive de ser Piggle e ela a mamãe. 'Vou levar você ao Dr. Winnicott. Diga não'. -Por quê?" Ambivalência na - 'Porque é preciso você dizer não'. transferência "Nos dois ou três últimos dias, ela vem pedindo-meinsistentemente que a leve ao Dr. W.: da primeira vez foi 32 quando eu lhe disse que ela parecia estar triste, e ela me respondeu que tinha estado triste toda a manhã. - 'Leva eu ao Dr. W.'. Prometi, então, que escreveria ao Dr. W. con- tando-lhe que · ela estava triste. Na noite passada, depois de um pesadelo (com o bebê-car, a ma,mãe preta que queria seus mamás e fez Piggle ficar preta e com o pescoço duro), ela falou: 'O bebê-car é banco'*. Perguntei-lhe o que signi- ficava 'banco'. Ela respondeu que explicaria ao Dr. W. Há uma nova fantasia que ela repete com muitos floreados, so- bre todo o mundo fazendo splash, splash na lama ou brrr do mu**. Embora continue desatenta e triste, está brincando mais e já começou a demonstrar interesse maior pelas coi- sas, e isso parece-nos bastante animador. "Comparado com seu procedimento anterior ao nas- cimento de Susan, continua reservada com o pai; aliás, pelo que parece, só consegue ser carinhosa quando age como um bebê. Se algo novo ou excitante lhe acontece, ou ela se encontra com uma pessoa desconhecida, diz que aquilo já tinha acontecido antes: 'Quando eu era um bebezinho no meu "moisés" '. À noite, nós a ouvimos, por acaso, cha- mando seu bebê e conversando com ele, de maneira bas- tante carinhosa. "Penso que o senhor estava certo quando afirmou que fomos 'inteligentes' demais ao perceber sua angústia. O que houve foi qué nos sentimos muito envolvidos e culpa- dos pelo fato de termos arranjados outro filho tão cedo, e a sua súplica noturna na despedida - 'Fala-me do bebê-car' - levou-nos a dizer alguma coisa significativa. "Jamais lhe falamos sobre a primeira infância de Piggle; ela foi excepcionalmente bem comportada e segura de si mesma, dando a impressão de alguém que dominasse o seu mundo interior. Empregamos todos os esforços, e nisso parece que tivemos sucesso, para protegê-la contra influências que pudessem tornar o seu mundo por demais complicado. Quando Susan nasceu, Gabrielle pareceu-nos ter sido, de algum modo, afastada de sua natureza e isolada de sua fonte de sustento. Tivemos um pesar enorme ao vê-la tão diminuída e reduzida, e ela pode perfeitamente ter per- *No original The babacar is ' i te. (N. T.) ThePiggle Reflexo da confusão de brinquedos Lembrança da mãe pré·ambiva/ente e reprovação da atual verdadeira **No original moa (moo-cow) - palavra infantil para vaca. (N. T.) Primeira Consulta cebido isso. Houve também um período de tensão entre nós[ospais]. "Embora o senhor nos aftrme que ela não vai mal, ela não parece ainda ter voltado a ser o que era. Pensamos que talvez lhe interessasse ver algumas fotografias típicas, que poderão dar-lhe uma idéia de seu estado atual, de um modo melhor do que a nossa descrição". CARTA DA MÃE "Gostaria de dar-lhe mais algumas informações, antes do seu próximo encontro com Piggle. "Ela parece bem melhor agora: já percebe as coisas de modo mais razoável e de certo modo, bastante triste. Con- versa entreouvida quando ela se encontra na cama: 'Não chora bebezinho, o bebê Sush está aqui, o bebê Sush está aqui.' Ela diz que é bom ter uma irmã e outras coisas seme- lhantes ; mas sinto, por qualquer razão, que ela está domi- nando-se à custa de um grande esforço. "Ela passa a maior parte do seu tempo, arrumando, limpando e lavando. Lava tudo o que encontra à mão, ou, então, fica à toa e tristonha, e não brinca muito. Passa também muito tempo, consolando seu bebê [uma boneca, figura altamente idealizada]. "Anda muito mais 'desobediente', esperneia e grita na hora de ir para a cama, etc. Quando está com raiva, freqüen- temente desiste do fantasma e diz com insistência: 'Eu sou um bebê , eu sou um bebê'. À noite não consegue dormir e diz que é 'por causa do bebê-car'. ·~o bebê-car está 'passando o preto de mim para você e por isso eu tenho medo de você'. 'Eu tenho medo da Pigga preta' e 'Eu sou ruim' - são as frases que ela tem falado mais vezes recentemente (não temos o hábito de chamá-la de ruim .ou coisa semelhante). Ela tem medo da mamãe preta e da Pigga preta e diz : 'Porque eles me fazem ficar preta'. · "Ontem ela contou-me que a mamãe preta arranhou o meu rosto [da mãe], puxou meus mamás, sujou-me toda e matou-me com brrr*. Expliquei· lhe que devia ser porque 3.c Desenvolvimento do ego na capacidade de ser desobediente *Brrrrr - significa "fezes" , confonne é explicado em consulta posterior. (N. T.) 34 ela estava desejando ter uma mamãe limpa e bonita outra vez. Ela respondeu que teve uma mamãe assim, quando era um bebezinho. "Ficou muito contente ao saber que o senhor a rece- beria. Quando sente qualquer dificuldade, fala Jogo em chamar o Dr. Winnicott. E repete : 'Você é Piggle e eu sou mamãe. Eu vou levar você ao Dr. Winnicott. Diga não!' - 'Por quê?' - 'Para falar com ele sobre o bebê-cera' (falou essa palavra com um sorriso furtivo, como se quisesse disfarçar o bebê-car). "(A propósito, no caso de ser difícil compreender o que ela fala, . desejo esclarecer-lhe que ela não consegue pronunciar o R. Assim, em vez de dizer Romano, ela diz Iom ano). "Recebemos com grande alívio a notícia de que o senhor vai recebê-la. Só o fato de saber que o senhor está cuidando do caso, tornou, digo , tem tornado nosso compor- tamento mais natural, menos artificialmente tolerante com ela, o que parece estar produzindo bons resultados. "Ela diz que quer vê-lo para falar-lhe sobre o bebê-car. O bebê-car agora parece estar carregando o preto de uma pessoa para outra". TRECHO DE UMA CARTA DO PAI "Um padre, muito paternal e amigo, veio tomar chá conosco algumas semanas atrás, e Piggle estava muito tími- da. Ontem, quando conversávamos sobre ele, ela falou : 'Eu estava muito tímida' . Disse-lhe então que aquele padre era 'um homem muito p([[Jai' (palavra que ela tinha usado antes para descrevê-lo), e que isso pode realmente tornar as pessoas tímidas. Ela ficou em silêncio e, depois de muito tempo, falou : 'Dr. Winnicott', calando-se em seguida. E isso ~~~" . ThePiggle Referência à mãe subjetiva pré-ambivalente 4 Cçmlirmação posterior de que as palavras-chave para a ·sessão 1 foram : "Eu sou tímida". SEGUNDA CONSULTA (11 de março de 1964) Piggle (dois anos e cinco meses) chegou à porta em companlúa do pai e dominou a situação. (A mãe ficara em casa com Susan). A menina quis entrar no consultprio, mas isso não era possível no momento; ela dirigiu-se com o pai para a sala de espera, onde começaram a conversar. Ele es- tava provavelmente lendo para ela. Quando eu estava pron- to, ela entrou despreocupada, caminhando diretamente para os brinquedos que se encontravam atrás da porta, na meta- de posterior da sala. Apanhou um trenzinho e disse o nome do objeto . Em seguida, apanhou um objeto novo, um co- pinho azul de um vidro de loção Optrex para lavar os olhos. "O que é isso?" O trem voltou a interessá-la: "Eu vim de trem. O que é isso?" E repetiu: "Eu vim de trem". Seu modo de falar pareceu-me um tanto ou quanto esquisito, mas seus pais, acostumados àquela linguagem, compreen- diam-na perfeitamente. Apanhou a pequena lâmpada, com o desenho de um rosto, com o qual tínhamos brincado da última vez e falou : "Faz ela vomitar". Tive de desenhar uma boca no alto da lâmpada. Apanhou em seguida um balde cheio de brinquedos e esvaziou-o no chão. Pegou um brinquedo redondo com um orifício no meio, que ninguém sabia de onde tinha vindo. "O que é isso? Eu nunca vi isso". Apanhou um vagão- zinho e perguntou : "O que é isso? Você entende do bebê- car?" Duas vezes eu lhe pedi para explicar o que era o bebê-car , mas ela foi incapaz de responder. Seria o carro de Piggle? Seria o carro do be.bê?" Dei uma interpretação. Arrisquei. Falei: "É o lado de . dentro da mãe de onde o bebê nasce." Ela olhou aliviada e disse: "Sim, o lado de Palavra-chave para a sessão 36 dentro preto". Talvez, em virtude do que dissera, ela apanhou o balde e propositalmenteencheu-o de brinquedos até trans- ·bordar. Tentei encontrar uma significação para aquele gesto, dando-lhe diversas interpretações (ela fazia um gesto quan- do achava que eu tinha dito uma coisa boa ou má). De acordo com a interpretação mais usual, aquilo seria a barri- ga do Winnicott, e não um interior preto. Falei qualquer coisa sobre minha capacidade de ver o que estava lá dentro e lembrei-me, então, que da última vez eu tinha dito que fazer um bebê era como um balde que ficara cheio ao máximo, por ter comido vorazmente. Como o balde estava cheio demais, caía sempre alguma coisa - efeito delibera- damente planejado e que, a meu ver, significava vomitar, conforme ela já indicara ao pedir-me para desenhar uma boca maior na lâmpada. A partir desse momento, comecei a perceber o que estava acontecendo. Eu: Winnicott é o bebê de Piggle; ele é muito voraz porque gosta tanto de Piggle e de sua mãe, e comeu tanto que está vomitando. Piggle: O bebê de Piggle comeu demais. [Falou então qualquer coisa sobre o fato de ter vindo a Lon- dres num trem novo]. · Eu: A coisa nova que você quer tem relação com o bebê Winnicott e a "mãe Piggle"; e Winnicott an1ando Piggle [a mãe], comendo Piggle e vomi- tando. · Piggle: Sim, é. · Nesse momento, poder-se-ia dizer que o trabalho da sessão tinha terminado. · Fizemos então muitas caretas. Ela passou a língua em redor dos lábios. Eu imitei, e então nós nos comunicamos sobre a forme, o paladar, ruídos da boca e sobre a sensuali- dade oral em geral. Isso foi satisfatório. Eu disse que podia ser escuro do lado de dentro. Súia escuro dentro da barriga de Piggle? Eu: Você tem medo do escuro? Piggle: Sim. Eu: Você sonha que é preto do lado de dentro? The Piggle Impregnação oral Comunicação verbal e interpretação Segunda Consulta Piggle: Piggle tem medo. Piggle sentou-se por alguns momentos no chão e ficou muito séria. Finalmente, eu disse: "Você gosta de ver Winni· cott". Ela replicou: "Sim". Olhamos um para o outro durante muito tempo. Então, ela voltou para colocar mais brinquedos no balde, representando mais uma vez o vômito. Entregou-me a lâm- pada. Piggle: Põe mais olhos e sobrancelhas. Já havia olhos e sobrancelhas. Tornei-os mais nítidos. Ela então apanhou e abriu outra caixa. Dentro, encon- trou animais. Imediatamente examinou tudo e tirou os dois animais maiores e mais macios, um carneirinho e um veadinho, ambos de lã. Colocou os animais para comer o que estava na caixa e acrescentou outros brinquedos aos animaizinhos que lá estavam: "Eles estão comendo a comi- da deles". Cobriu a caixa de comida. pela metade, com a tampa da caixa. Houve aqui uma espécie de fenômeno transicional, no qual entre ela e mim estavam os ànimais grandes de lã, alimentando-se de sua comida; a comida cons- tituía-se, principalmente, de animais. Interpretei, portanto, como se ela me tivesse contado aquilo como um sonho. Falei : "Aqui estou eu, o bebê Winnicott, vindo do lado de dentro de Piggle, nascido ··de Piggle, muito voraz, rriuito faminto, gostando muito de Piggle, comendo os pés e as mãos de Piggle": Tentei também a palavra "seio" entre outros objetos parciais. (Eu devia ter dito "mamá"). Piggle continuou séria, de pé, com uma mão no bolso. Caminhou, então, vagarosamente para o outro extremo da sala que ela associa· va a pessoas adultas. Olhou demoradamente para as plantas na jardineira da janela. E, então, quase foi para a cadeira que associava com a mãe, mas dirigiu-se para a cadeira azul que associava com o pai. Sentou-se nela e disse que era como o papai. Falei outra vez sobre Winnicott como o bebê Piggle. Eu: Você é a mamãe ou o papai? Piggle: Eu sou a mamãe e o papai também. 37 Consolidando a transferência Na transferência Winnicott é o bebê canibalesco voraz 38 Observamos os animais comendo e, nisso, ela come- çou a brincar com a porta. Tentou fechá-la, mas ela não fechava facilmente (o trinco estava com defeito na ocasi- ão). Então, abriu a porta e foi até o pai na sala de espera. Creio tê-la ouvido dizer: "Eu sou a mamãe". Eles conversa- ram muito, e eu esperei durante muito tempo, sem fazer nada. Em dado momento, voltou com o pai, carregando seu chapéu, que era algo tecido, e fez um sinal para indicar que estava na hora de ir embora. Era evidente que a ansie- dade estava atuando . Voltou com o pai para a sala de espera. Entrou, então, com o casaco e disse: "Vou embora logo". Retornou à sala de espera. Reli minhas anotações. Após cinco minutos, Piggle aventurou-se a entrar na sala, onde me encontrou ainda sentado entre os brinquedos, perto do balde que estava transbordando e "vomitando no chão o tempo todo". Ela estava muito séria e perguntou : "Posso ficar com um brinquedo?" Percebi a situação com clareza, o suficiente para decidir um curso de ação. Eu: Winnicott bebê muito voraz; quer todos os brin· quedas. Ela continuou insistindo que desejava só um brinque- do, mas eu repetia o que se exigia que eu dissesse nesse jogo. Finalmente , ela levou um brinquedo para o pai na sala de espera. Creio que a ouvi dizer : "Bebê quer todos os brinquedos". Pouco depois trouxe o brinquedo de volta e parecia muito satisfeita, porque eu estava sendo voraz. Piggle: Agora o bebê Winnicott tem todos os brinquedos. Vou ficar com papai. Eu: Você tem medo do bebê Winnicott voraz, o bebê que nasceu de Piggle, que gosta de Piggle e que quer comê·la. Gabrielle voltou para junto do pai e, ao sair da sala, tentou fechar a porta. Percebi que o pai fazia grandes esforços para distraí-la, porque (obviamente) ele não sabia qual o seu papel no jogo. Chamei o pai para dentro da sala e Piggle entrou com ele. Ele sentou·se na cadeira azul. Ela sabia o que devia fazer. Subiu para o colo do pai e falou : "Eu sou tímida". The Pigle Precisando do pai para comu- nicar-se comigo Dúvida sobre a capacidade do pai para tolerar suas idéias Piggle não é voraz - Win- nicott infinita- mente voraz Piggle desempenhando o papel de mãe Segunda Consulta Logo mostrou ao pai o bebê Winnicott, o monstro que ela tinha dado à luz, e era por isso que ela estava com vergonha: "Aquela é a comida que os animais estão comen- do". Enquanto fazia acrobacias no colo do pai, contava-lhe todos os detalhes. Mas logo ela iniciou uma fase nova, e muito premeditada, no jogo. "Eu também sou um bebê", anunciou. E desceu de cabeça por entre as pernas do pai até o chão. · Eu: Eu quero ser o único bebê. Eu quero todos os brinquedos. Piggle: Você tem todos os brinquedos. Eu: Sim, mas eu quero ser o único bebê; não quero saber de outros bebês [subiu para o colo do pai e "nasceu" outra vez]. Piggle: Eu sou o bebê também. Eu: Eu quero ser o único bebê; [e, com um tom de voz diferente] devo ficar com raiva? Piggle: Si.n. Fiz um barulhão, derrubei os brinquedos, dei socos nos joelhos e falei: "Eu quero ser o único bebê". Ainda que ela parecesse um pouco amedrontada, isso agradou-lhe mui- to. Disse ao pai qu,e eram o papai e a mamãe carneirinhos que estava comendo a comida da tina. E continuou com o jogo: "Eu quero ser o bebê também" . Durante todo esse tempo ela chupou o polegar. E todas as vezes que era o bebê, "nascia" descendo entre as pernas do pai até o chão. Ela chamava isso "nascer". Por fim ela falou: "Põe o bebê na lata de lixo". Respondi: "Den- tro da lata de lixo é preto". Tentei descobrir quem era quem. E descobri que eu era Gabrielle e ela era todos os novos bebês, um após o outro, ou o novo bebê reduplicado. A certa . altura, ela falou: "Eu tenho um bebê chamado Galli-galli-galli" (Cf. Gabrielle). (Na verdade uma de suas bonecas tinha esse nome). Ela continuou "nascendo" do colo do pai para .o chão e ela era o bebê novo. Eu tinha de ficar zangado, porque eu era o bebê Winnicott, que tinha vindo do lado de dentro e nascido de Piggle - e eu tinha de ficar com muita raiva querendo ser o único bebê . . "Você não deve sero único bebê", disse Piggle. E, então, nasceu outro bebê. e mais outro e, em seguida, ela 39 Nascida do corpo do pai como se fosse do corpo da mãe Troca dos papéis entre o bebê e Gabriel/e 40 falou: - "Eu sou um leão" e fez barulhos de leão. Eu tinha de sentir medo, porque o leão ia comer-me. O leão parecia ser uma resposta à minha voracidade como o bebê Winni- cott que queria ter tudo, e ainda ser o único bebê . Conforme eu estava certo ou errado, Gabrielle res- pondia positivamente ou negativamente, dizendo, por exemplo : "Sim, é". Apareceu então um bebê-leão. Piggle: Sim, é (barulhos fortes de leão]. "Acabei de nascer. E não era preto lá dentro". Nesse momento, eu senti que tinha sido recompensado pela inter- pretação que havia feito na última vez, quando disse que o preto lá dentro tinh;1 relação com o ódio pelo novo bebê , que esteve dentro da barriga da mãe. Gabrielle tinha então desenvolvido uma técnica de ser bebê ao mesmo tempo que permitia que eu representasse ser ela mesma1 • Houve então nova evolução. Ela começou a usar um processo diferente para nascer do alto da cabeça do pai2 • Era engraçado . Tive pena do pai e perguntei-lhe se podia agüentar aquilo. Ele respondeu: "Está bem, mas eu gostaria de tirar o casaco". Ele estava sentindo muito calor. De qualquer maneira pudemos parar naquele momento, uma vez que Piggle tinha alcançado o seu objetivo. "Onde estão as roupas?" E ela pôs o chapéu e o casaco e foi aliviada e satisfeita para casa. COMENTÁRIOS Os temas que apareceram na sessão foram os seguintes: 1. Ter bebês em termos de vomitar. 2. A gravidez como uma conseqüência da voracidade oral, do ato de comer compulsivo (função cindida). 3. O preto interior, ódio do interior e conteúdo. 4. Resolução na transferência com Winnicott, trans- formando-se na Gabrielle perdida, o que lhe permitia ser o ThePiggle Primeiro alfvio da fobia pelo preto 1 Comentário da mãe : "É impressionante como a transferência ocorre no limite exato entre a participação e a interpretação." 2 Ser concebida, i. e., nascida como uma idéia de dentro da mente; desejada. D.W.W. Segunda c onsww novo bebê reduplicado. Identificação transitória com ambos os pais. 5. Através de Winnicott = Gabrielle = voraz = bebê tem direitos próprios. 6. O interior torna-se não preto. 7. Ser concebido, i. e., como na mente. A mente es- tando localizada na cabeça como se fosse cérebro. CARTADA MÃE "Quando Piggle chegou de Londres, não fez menção à consulta, mas brincou animada o resto do dia. Em geral, estamos sentindo que ela está muito mais livre desde a úti- ma visita ao seu consultório ; algumas vezes brinca sOzinha e fala com o que eu considero ser sua própria voz. "No mesmo dia em que esteve em seu consultório, na hora de doflT!-ÍI, ela falou: 'Dr. bebê estava com muita raiva. Dr. bebê chutou. Eu não o joguei no "mixo" ... (corrigiu) no lixo (i. e., lata de lixo); não pus a tampa em cima'. "No meio da noite, ela chorou. Disse que seu "pipi" es- tava doendo. Precisava ir ao médico. Eu disse que seu '"pi- pi" estava um pouco vermelho, ou porque ela tinha coçado, ou por causa da fralda. Ela confirmou que o havia coçado, e fez ruídos iguais aos de um trem, tichic, tichic, tichic, e que isso a faz ter medo à noite; isso a faz ficar preta. Falou então da mamãe preta. Esqueci o início da conversa, mas ela continuou falando sobre a mamãe preta, dizendo : 'Onde estão meus mamás?' - 'Os mamás estão na privada, desceram com a descarga'. - 'Mamãe preta deixou eu brin- car com os brinquedos dela, fez para mim creme com pas- sas' (eu tinha realmente posto passas no creme e ela gostara muito). Parecia muito perturbada e disse : 'Estou com raiva de papai'.- 'Por quê?' Porque eu gosto demais dele'. [Estou intrigada com essa recorrência da "bondade" da "mamãe preta". Isso não parece ter ligação com o fato de ver uma mamãe boa e uma mamãe má como uma só pessoa? Haverá aí alguma confusão entre as partes boas e as más do seu próprio eu? O tema de aplacar a mamãe preta repete-se]. "Na noite seguinte ela conversou na cama, excitada, durante muito tempo, mas não ouvi o que ela disse. "No outro dia, de manhã, contou-me : 'Eu fui a 41 Redescobrimento da própria identidade com o retorno do brinquedo Excitação erótica e fantasias edipianas 42 Londres ver o Dr. Winnicott. Tinha um barulho muito grande. Dr. W. muito ocupado. Ele era um bebê. Eu era um bebê também. Não falou sobre a mamãe preta. Ele era um bebê com muita raiva. A mamãe preta é muito impor- tante para o Dr. Winnicott'. Então, colocou um alfmete de fralda dentro da torneira e falou: 'Eu .vou melhorar isso com um alfmete'. Houve qualquer comentário sobre a água ser capaz de sair outra vez. Dirigindo-se a mim: 'Você veio e disse que isso não estava melhor?' Eu: 'Isso deve ter sido em seu sonho'. 'Sim, você veio e disse que isso não estava melhor. Tinha sujo nele'. Disse qualquer coisa sobre a ma- mãe preta, mas não ouvi direito o que foi. "Ultimamente ela tem me contado com freqüência que a mamãe preta vem e me faz (a mãe) ficar preta. Na hora de ir para a cama, tenho de 'telefonar' para a mamãe preta e para o bebê Sush preto. Mas a conversa limita-se a um 'alô'. Isso faz-me lembrar de uma coisa: um ou dois dias antes de ir ao. seu consultório (ela se queixara de pesadelos com a mamãe preta), perguntei-lhe: 'Você dormiu bem? A mamãe preta veio?' - 'A mamãe preta não vem. A mamãe preta está dentro de mim'". OUTRA CARTA DA MÃE "Em meados de abril, vamos ficar fora durante três semanas aproximadamente. "Piggle tem sido muito perseguida pela mamãe preta. Tem tido pesadelos e somente consegue conciliar o sono altas horas da noite . " 'Eu não falei com o Dr. Winnicott sobre a mamãe preta, porque ele é muito ocupado. Dr. Winnicott muito ocupado, ele era um bebê. Eu tinha medo de falar com o Dr. Winnicott sobre a mamãe preta. Ele está com muita raiva, ele era um bebê. Eu era um bebê também. Eu fiquei com vergonha de falar com o Dr. Winnicott sobre a mamãe preta'. "Sua maior queixa contra mamãe preta é a de que ela faz Piggle ficar preta e, então, Piggle faz todo o mundo ficar preto, mesmo o papai. "Na noite passada, ela acordou 'com medo da mamãe The Piggle Referência à masturbação c/itoriona Talvez referência aofuncionamento mental Segunda Consulta 43 preta' e pediu ao pai para 'dar passas para a mamãe preta' (Piggle adora passas). "Ela também acordou com medo do bebê Sush preto, que a faz ficar preta. (Na véspera ela havia dado um empurrão em Susan, o que provocou uma reação geral de desagrado). O bebê Sush preto continua aparecendo com freqüência e tem de ser chamado pelo telefone antes que ela vá para a cama. (O bebê Sush é uma referência a Susan). "Piggle é, com menos freqüência, a mamãe ou o bebê Maior tendência agora. Teima muito na hora de ir para a cama, etc., mas o para ser ela faz de maneira um tanto desconsolada. Há mais uma coisa: mesma 'Bebê bablã' - isso está assinado em todas as cartas que es- creve e desenhos que faz; tem de ser escrito nos envelopes. Não tenho a menor idéia do que isso possa significar. Penso já ter-lhe dito que a boneca de Piggle chama-se "Gaby Gaby", que pode ser "Gabrielle", nome que não consegue pronunciar. [Bebê Gabla (e não bablã). Acho que isso é outra versão de Gabrielle, como Galy - Galy ou Gâlli - Galli - não sei qual a diferença entre as duas versões]". MAIS UMA CARTA DA MÃE I "Piggle pediu para vê-lo e parecia ter bastante urgên- cia. Quando lhe disse que talvez não houvesse tempo antes da nossa partida para a França, ela respondeu violentamente que havia . "Acordou hoje numa verdadeira fúria de destruição, rasgando tudo que encontrava pela frente. Retirou-se em seguida para o seu "moisés" e dizia que queria ver Dr. Winnicott. Entrou então para dentro do quimono que eu estava usando e contou-me qualquer coisa sobre um sonho emque a mamãe preta a tinba comido. Ao sair do quimono, perguntou-me como se nascia. Expliquei-lhe então, como já havia feito várias vezes antes, como ela tinha saído, tinha sido enrolada numa toall1a e tinha sido entregue a mim. 'E você me deixou cair' -'Não, não deixei'. - 'Sim, você deixou. A toalha ficou suja'. "Ela anda infeliz ultimamente. Penso que deve ser-lhe bastante cansativo ficar tanto tempo em nossa companhia. Não há muitas crianças na redondeza. Estou procurando uma escola maternal que queira recebê-la apenas duas 44 manhãs na semana; a maioria somente a aceita diariamente e, a meu ver, isso pode ser demais. CARTA DOPAI "Gostaríamos de transmitir-lhe algumas impressões sobre Piggle. Nos últimos dias, ela anda num estado de grande agitação e ansiedade e tem falado coisas assim: 'Estou muito preocupada. Eu quero ver o Dr. Winnicott'. Quando lhe perguntamos por quê, ela s~mpre responde que é por causa do 'bebê-car', da 'mamãe preta' ou dos 'mamás pretos da mamãe preta'. Ela também está com medo do bebê Sush preto (= Susan): 'Eu fiz ela ficar preta'. Disse a mesma coisa, referindo-se à mamãe preta. Ainda repete com freqüência na hora de ir para a cama: 'A mrupãe preta diz: "Onde estão meus mamás?" ' E certa manhã pediu para mamar no seio na mãe. "Quase· todas as manhãs, ela quer entrar para dentro do quimono da mãe ou ser enrolada (como um rocambole) dentrg do tapete. Ela parece estar sofrendo gravemente daquele mal que se chamou uma vez de "sentimento de pecado". Preocupa-se exageradamente, quando quebra ou suja alguma coisa. Algumas vezes fica dando voltas e murmu- rando para si mesma, com uma vozinha muito artificial: 'Não tem importância, não tem importância'. O mesmo acontece quando dá pontapés em Susan, por quem mostra grande interesse, a despeito de lapsos ocasionais. Fez objeções às roupas que lhe compramos, porque 'tem branco demais; eu quero um pulóver preto'. Acrescentou que podia usar roupa preta porque era preta e má. "Embora ontem não tivesse acontecido nada fora do comum, fizemos várias anotações sobre Piggle. Ela estava pior do que habitualmente e' ficou conosco o dia todo. Temos uma faxineira, uma senhora idosa, que passa qua- . se todas as manhãs em nossa casa. Gabrielle chama-a de 'Wattie' e gosta muito dela. "De manhã, ela entregou-nos o seu ursinho querido. Tinha feito um buraco na perna dele e tinha tirado todo o seu enchimento. E estava muito angustiada com aquilo. Durante todo o dia pediu desesperadamente coisas que nor- malmente não lhe negamos, como se tivesse de travar uma The Piggle Ansiedade depressiva O preto relacionado ao sentimento de culpa Segunda Consulta grande batalha para consegui-las. Falou com a mãe que desejava casar-se e, quando lhe foi dito que seria uma boa idéia esperar, ela protestou veementemente. 'Não, não, sou uma moça agora'. E insinuou que estava velha demais para brincar. "Na hora de ir para a cama, fez a maior cena, o que, aliás , vem acontecendo com muita freqüência ultimamente. Ela diz que tem rriedo de a mamãe preta vir agarrá-la. Às dez horas da noite atirou as suas roupas de cama para o chão. Levantou-se e insistiu para apanhar a cadeira no quar- to ao lado. Disse-lhe que a cadeira era dela, mas que a cadei- ra precisava de uma almofada: 'Uma almofada preta; e então posso me sentar nela'. -'Por que você é preta?'- 'Sim, porque eu quebrei a mamãe preta em pedaços. Estou preocupada'. 'Não se preocupe' - 'Eu quero preocupar. Minha bunda está doendo. Pode me dar· um creme branco? Uma introdução recente: uma oração, pedindo principal- mente proteção, tem de ser repetida várias vezes. Nota adicional: " 'Eu jogo os brinquedos do Dr. Win- nicott fora, se eu quebrar eles'. Piggle disse isso no táxi, a caminho do seu consultório, quando foi vê-lo pela última vez. Na ocasião, não mencionei o fato por esquecimento." 45 Sentimento de culpa relativo à destruição compulsiva A magia usada para afastar idéias ameaçadoras TERCEIRA CONSULTA (10 de abril de 1964) Piggle (dois anos e 6 meses) parecia menos tensa do que antes, e esse estado permaneceu constante. Ela parecia mais distante das ansiedades reais das quais falava. De fato, agora eu compreendia o quanto tinha esta:do dentro delas antes, como uma criança psicótica. Fui à sala de espera onde a encontrei coni seu "bebê", que é uma bonequinha com fralda e alfmete. Estava com vergonha de acompanhar- me ao consultório; assim, entrei sozinho. Logo mais, fui buscá-la, e ela mostrou-me um saco onde tinha colocado areia e uma pedra. Aquilo tinha sído ·apanhado na rua. Ela não queria entrar, e então falei : "O papai vem também" (era o que ela queria). Ela entrou carregando o saco com a areia e a pedra, deixando o bebê. O pai sentou-se em sua cadeira na metade da sala reservada aos adultos e, metade do tempo, ficou separado de nós pela co.rtina. Piggle foi direto para os brinquedos repetindo exatamente o que tinha feito da última vez. Piggle: Pra que é isso? Eu: Você me perguntou o que era isso da vez passada e eu disse: "De onde veio o bebê?" Perguntei, referindo-me à pedra e a areia: "De onde veio isso?" Piggle: Do mar. Ela apanhou outros objetos e o balde e, certamente, lembrava-se de tudo. Examinou todos os pormenores; Piggle: O que é isso? Um trem. Uma máquina. Carros de il S(mbolo do desespero de ficar grdvida como um adulto 48 trem. Vagões. Chamou um deles de "leãozinho". Em seguida, apanhou um menininho. Piggle: Você tem outro menininho? Encontrou um homenzinho e sua mulher. Piggle: Eu gosto disso [o menino]. Tive de ajudá-la a colocá-la sentado. Então outra locomotiva. Piggle: Eu vim para Londres de trem para ver Winnicott. Eu quero saber por que a mamãe preta e ci bebê- car. Eu: Vamos tentar descobrir isso. Parei por aí. Ela continuou escolhendo brinquedos, o Pele Vermelha (de plástico azul). Piggle: Eu n,ão tenho nenhum desses carros. Ela estava tirando todos os brinquedos e arrumando- os um ao lado do outro. Piggle: O que será isso? O senhor tem· algum barco? Eu não acho lugar algum para este sentar. [Uma figura de plástico que podia sentar]. Winnicott não deve ser um bebê; ser um Winnicott. Sim, eu tive medo. Não ser um bebê outra vez. Ela estava obviamente entretendo-se com a idéia de repetir o jogo da última vez. Piggle: Posso tirar tudo de dentro do balde? Eu: Sim. Isso era o bebê vomitando quando Winnicott era um bebê. Ela falou sobre o vagão para carregar coisas. Então, outro trem. Apanhou dois carros exatamente iguais, com- The Pigglt Terceira Consulta parou-os e colocou-os juntos. Eu: Não igual a Piggle e o bebê porque Piggle é maior do que o bebê. Colocou grande parte dos brinquedos lado a lado e continuou: Piggle: Que é isso? Uma locomotiva. Eu vim de táxi. O senhor foi num táxi? Dois táxis. Para ver Winnicott. Para trabalhar com Winnicott. Ela quis então que eu enchesse o balão que, acho, ela tinha deixado comigo na primeira consulta. Não tive muito êxito. Ela esfregou o balão nas mãos, mostrou-me seu fecho ecler e falou : "Para cima e para baixo outra vez". Insistiu novamente comigo para que eu enchesse o balão. Disse · que tinha uma caneta, referindo-se (única vez), provavel- mente, ao fato de ver-me tomando notas com um lápis. Nesse momento achou os animais pequenos dentro de uma caixa, o que a fez querer o cachorro. Estendeu o braço para apanhá-lo . Ele não estava à vista, mas ela lembrou-se dos dois animais grandes e macios da última vez. Colocou-os juntos, lado a lado, e empurrou-os para baixo, de encontro ao chão. (Chamou os dois de cachorros, embora um deles fosse um veadinho). Piggle: Um cachorro estava com raiva. Os dois cachorros iam esperar o trem e ela apertou-os irnpiedosamente contra o chão. Pigglc: O senhor tem outro cachorro? Eu: Não. Foi mostrar ao papai três carrinhos de trem. Teve uma conversa com ele na qual falou algumacoisa sobre todos os tipos de cores. Então, deixou cair os brinquedos e disse : "Deixando cair o trem". Ela estava mostrando que aquilo era proposital e indicava defecação. Veio depois para junto de mim e tentou pôr o homenzinho e a mulher dentro do carro. 49 Confirmação de que trabalhamos. Nesse estágio o jogo é comuni- cação e não feito por prazer Ansiedade sobre a crueldade ou comportamento compulsivo 50 Piggle: Grande demais para entrar. Um dia vou achar um homenzinho. Eu: Um bebê menino em vez do papai? Foi para perto do pai e começou a usá-lo. Abri a cortina que o escondia para que ele se entrosasse mais no jogo. Subiu para cima do pai e ele (sabendo o período árduo que o esperava) tirou o casaco. Ela ficou acima da cabeça do pai, que a segurava. (Voltava agora o jogo da última vez). Piggle: Eu ser um bebê. Eu quero ser bryyyyyh. Isso, eu sabia, significava fezes (o pai disse que brin· cava com Susan aquele jogo de segurá-la acima de sua cabe· ça ; Piggle ficava muito intrigada e algumas vezes gostava de imitar a irmã. Era como se ela não aceitasse o fato de que era realmente pesada demais para aquele jogo). Piggle: Eu sou Piggle. Aos poucos, ela começou a "nascer", descendo para o chão, entre as pernas do pai. Piggle [para mim ]c O senhor não pode ser um bebê, por- que isso me faz muito medo. De algum modo ela conseguiu manter o controle da situa· ção, de tal forma que ela a representava em vez de ser parte dela. Da última vez ela foi parte dela. Finalmente pergun· tei : "Será que devo ser uma Piggle zangada? Ela respondeu : "Fica com raiva agora". Então eu fiquei e derrubei os brin· quedos. Ela aproximou-se e apanhou todos. Pigg/e: Por que o senhor está com raiva? Eu: Eu queria ser o único bebê e então eu vomitei. Mamãe tem um bebê bryyyyyh. Piggle: Mamãe não tem bryyyyyh, só pipi. Falou então sobre o bebê de Piggle: "Eu chamo meu bebê de ·Gaddy-gaddy-gaddy" (Cf. Gabrielle, bebê, galli· galli -galli). O pai disse que aquilo, provavelmente , tinha relação The Piggle Do processo primário para o secundário Terceira Consulta com Gabrielle. Ela estava referindo-se à boneca-bebê na sala de espera. Piggle deu-nos uma pista, dizendo: "Menininha- menininha-menininha" (Girlie-girlie-girlie), atribuindo outro significado à palavra. Começou a demonstrar vontade de ir para casa (ansiedade). Eu: Essas coisas fazem você ter medo, porque eu fui um bebê zangado. Piggle: Fica com muita raiva! [Eu fiquei. Eu falei sobre o bebê bryyyyyh.] Piggle: Não, um bebê Sush. Eu: Eu [Eu= Piggle = bebê] queria que Papai me desse um bebê. Piggle [para o pai): Você vai dar um bebê para Winnicott? Falei que Piggle estava com raiva, fechava os olhos, não via a mamãe que tinha ficado preta por'que ela estava zangada com ela, porque o papai tinha dado um bebê para a mamãe. Piggle: Na cama de noite eu tenho muito medo. Eú: Um sonho? Piggle: Sim, um sonho. A mamãe preta e o bebê-car me perseguindo. Nesse momento, ela apanhou uma roda com um eixo pontudo - ele tinha caído de um dos trens - e coloéou o eixo pontudo na boca. Piggle: Que é isso? [Poder-se-ia dizer que ela estava apa- nhando o único objeto perigoso entre os brinque- dos e relacionando-o com sua boca.] Eu: Se a mamãe preta e o · bebê-car pegassem você , será que eles conúam você? Durante todo o tempo ela punha as coisas em ordem e estava angustiada porque não conseguia tampar uma das .caixas, que estava cheia demais. · Eu: Quando você teve o sonho, que é que papai e mamãe estavam fazendo? Piggle: Eles estavam no andar de baixo com Renata, 51 Preferência por idéias genitais a idéias de gravidez pré-genital 52 comendo brócolos. [Renata era a nova estudante que estava morando com a fam!1ia.] Renata gosta de brócolos e de jantar. Durante todo o tempo, Piggle continuava guardando tudo bem arrumado . Eu: Será que nós sabemos alguma coisa sobre a mamãe preta e o bebê-<:ar? Piggle: Não. Eu quero ir onde está o meu bebê [a boneca]. O senhor pode esperar um minuto? Ela estava brincando com a porta. Piggle: Seja um Winrúcott. Papai vai tomar cónta do senhor. Você vai, papai? Se eu fechar a porta, Winrúcott vai ter medo. Eu: Eu ia ter medo da mamãe preta e do bebê-car. Ela fechou a porta o máximo que pôde e foi buscar o bebê. Quando voltou, eu disse que ·tinha tido medo da mamãe preta e do bebê-<:ar, mas que o papai tinha tomado conta de mim. Depois de voltar, ela brincou muito com o bebê (a boneca), e as palavras "abrir" e "fechar" eram usa- das agora com referência à fralda da boneca e ao seu enor- me alfinete. O pai ajudou. Ela levou muito tempo para colocar a fralda. Piggle: O senhor quer um bebê Winrúcott? O senhor pode ficar com o meu mais tarde. O papai continuou supervisionando a técrúca de colocação da fralda e ajudando. Piggle: Não fecha ele [o alfmete ]. Em seguida, combinou secretamente com o pai dar bolo e torta . para o bebê. Falou: "Ele é um bebê muito bryyyyyh" (o que significava que ele se tinha sujado todo e estava sendo trocado). Aproximou-se então e mostrou-me o seu polegar preto que, certamente, tinha ficado preso em illgum lugar. Tirou do bolso dois guarda-<:huvas de brinque- The Piggle Terceira Consulta do e pôs um em meu cabelo. Pegou o seu bebê e pôs os dois guarda-chuvas no cabelo dele. Tentou sentar o bebê na cadeirinha, mas teve inveja e ela própria sentou-se lá. Quis então mostrar ao bebê o quanto ela era engraçada no espelho. Eu: O bebê é Winnicott. Piggle: Não, Gaddy-gaddy-gaddy. Ela agora estava pronta para ir, com tudo arrumado. Foi buscar o casaco para o pai vestir e recolheu a areia e a pedra, que estava no saco. Eu: Está bem, mas já entendemos o que é a mamãe preta e o bebê-car? Olhou para todos os brinquedos cuidadosamente guar- dados e falou: "O bebê-car está todo arrumado". Pareceu-me então que ela estava dizendo que o bebê-cartinha a ver com o bryyyyyh e o pipi que pertenciam à mamãe preta, que é preta porque é odiada desde que o papai lhe deu um bebê. Continuei sentado no chão enquanto ela saía muito feliz pela porta da frente, em companhia do pai. COMENTÁ RIOS Os temas seguintes foram os pontos altos da sessão: 1. Retomada do jogo da sessão anterior, mas a demo- ra associada à ansiedade. 2. Nova capacidade para representar a fantasia ame- drontadora em vef. de participar dela (dessa maneira, en- frentando-a): (a) alívio e ampliação do campo; (b) perda da experiência direta. 3. Indo de encontro à ansiedade através do perigoso eixo pontudo em sua boca, sugeriu uma fantasia da experi- ência voraz oral da mãe pelo pênis do pai. 4. Agora seu bebê (a boneca) deu-lhe um lugai: como uma menina com identificação com a mãe = eu (sei[). 5. Resolução parcial, com base no preto, relacionado com o ódio envolvendo o fato de o papai dar um bebê à mamãe, mas um tanto intelectualizada. 5:? Esquecendo em defesa contra a confusão e ansiedade 54 6. O escuro foi guardado, isto é, esquecido. 7. Importância da minha incompreensão do que ela não tinha ainda sido capaz de dar-me indícios. Somente ela .sabia as respostas e, quando conseguiu apreender o signi- ficado de seus medos, tomou possível que eu os compreen- desse também. CARTADA MÃE "Gostaria de mandar-lhe algumas notícias sobre Piggle embora eu pense que meu marido lhe tenha falado sobre algumas delas pelo telefone. "Piggle voltou da última sessão muito mal-humorada; e, nos dias que se seguiram, houve muitas cenas, principal- mente na hora de ir para cama. Agora, parece ter-se acomo- dado outra vez. · "Durante vários dias quis ser o bebê de Susan, uma situação bastante frustradora porque Susan não corresporide. Ao lhe perguntarmos por quê, respondeu: 'Eu estou tentan- do gostar do bebê Sush'. "Durante um ou dois dias após a sessão, ficou muito agressiva com outras crianças. Ela tem um fantoche e falou-me, referindo-se a ele: 'Faz ele ficartímido, assim posso bater nele'. "Na no i te $Ós a sessão, disse-me : 'Eu tenho medo da mamãe preta. Eu tenho de ir ao Dr. Winnicott outra vez, o novo Dr. Winnicott.' Ela sempre refere-se às sessões de maneira formal, exceto da última vez, quando, logo antes de sair, cantou: 'Winnicott, Winnicott,' de um modo bastan- te afetuoso. "Ela já disse várias vezes que tem de ir ao Dr. W. por causa da mamãe preta. 'Por quê? Você não contou ao Dr. W.? - 'Não, eu falei com ele sobre o bebê-car. É de lá que vêm os bebês? O bebê-cera pela luz da vela'* Ela reclamou que o pipi estava machucado. - 'Você o coçou ou foi a fralda?' - 'Coçei. Está preto. Me dá um creme branco para sarar. Então posso coçar outra vez'. "Ficamos observando a escuridão que descia sobre as montanhas. 'Quando ficar escuro eu vou ter medo. Dr. * No original : The babacandle, by candlelight. (N . T.) The Piggle Terceira Consulta Winnicott não sabe que eu tenho medo do escuro'. 'Por quê? Você não contou a ele?' - 'Eu guardei toda a escuridão.' "Durante alguns dias após a sessão, eu fui realmente uma mamãe muito preta. Ela não acreditava em nada que eu dizia. Quebrou várias coisas, especialmente o açucareiro do qual estava sempre tirando "pedaços grandes de açúcar", embora isso fosse proibido. Parece que sofre demasiada- mente com qualquer destruição que cause e que não possa ser consertada imediatamente, mesmo que seja insignifican- te. Minha mãe está conosco no momento, e desde sua che- gada, a tendência é considerá-la a mamãe preta e, com isso, eu e Piggle temo-nos dado bem. Então eu sou Piggle e ela é a mamãe. Ela não está nem muito prestimosa nem muito cuidadosa agora. Duas conversas de ontem: 'Pigga, você gosta de mim?' - Eu: 'Gosto'. Ela: 'Você lembra quando eu quebrei a travessa?' -Ela: 'Você gosta de mim?' -Eu: 'Sim. E você?' - 'Não. Eu não gosto de você. Você é preta e então você vai me fazer ficar preta'." CARTADA MÃE ESCRITA DURANTE AS FÉRIAS NO EXTERIOR "Estamos lhe escrevendo outra vez, porque Piggle nos tem dado muita preocupação e gostaríamos que o senhor pensasse se ela realmente não precisa de uma análise com- pleta - embora não saibamos absolutamente como isso poderia ser feito, caso houvesse necessidade. "O que mais nos preocupa é o estreitamento de sua experiência; ela parece viver prisioneira dentro do seu pró- prio mundo, inaccessível à experiência exterior. Os únicos pensamentos que a preocupam, além de estar sempre que- rendo coisas e além de sua aparência pessoal, são as suas lembranças (coisas que ouviu contar, estórias de fam11ia) sobre o tempo em que era um bebê e não podia falar. "Fala com uma vozinha cada vez mais artificial e cada dia que passa está ficando menos autêntica e mais afetada. Ela agora usa de todos os recursos para chamar atenção sobre si mesma, 'criando freqüentemente cenas dramáticas. "Ainda sente muito medo à noite - fala menos sobre isso agora antes de ir para a cama - apesar disso acorda várias vezes durante a noite, às vezes .chorando. 55 Deterioração. Rigidez das defesas organizadas Doença agora organizada. O verdadeiro "self' oculto Expulsão do próprio mal 56 "Ela está chorando, diz, porque o escuro vai fazê-la ficar preta. (Uma vez veio ao meu quarto para ver se eu estava preta). Durante a noite, parece lembrar-se de todos os estragos que fez durante o dia. (No momento, mostra uma tendência para gestos de agressão repentinos, tais como atirar uma pedra em minha cabeça ou bater com uma ban- deja na mão de Susan). 'A mão de Susan está doendo?' 'Sua cabeça está quebrada?' 'Me dá uma agulha para eu consertar meu cobertor'. 'Você quer consertar minha cabe- ça?' 'Eu não posso consertar você, você é dura demais'. "Em outra ocasião durante a noite falou: 'Você lem- bra quando o médico me picou? (injeção)'. 'Devo ir ao médi- co. Estou doente. É aqui'- e apontou para o pipi." CARTA DA MÃE APÓS SEU REGRESSO "Gostaria de dar-lhe mais notícias de Piggle. "Não sei explicar como, mas sinto que ela está melhor. Ela atravessou um período em que esteve entediada, desatenta e insatisfei- ta e, às vezes, deliberadamente destruidora, rasgando, que- brando e sujando coisas. Agora ela dá a impressão de estar vivendo sua vida, e é menos afetada e artificial. "Somente agora tomei consciência do quanto ela vive perseguida pelo sentimento de culpa e responsabilidade por sua destruição. Ela menciona de maneira agoniada os estra- gos. feitos semanas atrás, de que mal tomei conhecimento na ocasião. Dei-lhe uma palmada quando ela insistiu em levantar minha saia dentro de uma loja, e me esqueci do fato. Duas semanas mais tarde, ela falou: 'Mamãe, eu não vou mais levantar sua saia'. Ou, quando eu estava carregando Susan, sua irmãzinha, esbarrei com ela na porta e ela chorou. Piggle : 'A culpa foi sua'. Eu: 'Sim, a culpa foi . minha' . Piggle, muito preocupada: 'Você vai sonhar com isso agora?' À noite, continua tão preocupada quanto antes com a idéia de que a mamãe preta e o bebê- carvão fazê-la ficar preta. "Falar em coisas mortas tornou-se assunto importante nos últimos dias. Na noite passada ela quis, com muita urgência, falar comigo sobre a mamãe preta. Começou na- quela vozinha monótona costumeira: 'A mamãe preta diz: Onde estão meus mamás? Onde estão meus mamás?' The Piggle Ansiedade depressiva Fantasias masturbatórias O contexto familiar proporciona o hospital mental em que podia atingir sua doença Terceira Consulta Depois: 'A mamãe .. preta tem uma praia e um balanço'. (Eu a tinha levado à praia pela primeira vez, e ela gosta muito de gangorras). Eu disse que ela não parecia desejar que a mamãe preta tivesse coisas tão boas: Ela : 'Não, eu quero estragar elas. Eu quero estragar as coisas de você'. Falou então que eu tinha mamás grandes e que ela queria eles. Pareceu-me então que ela se atrapalhou toda e disse que eu queria os mamás dela, e parecia muito confusa. Disse-lhe que ela tinha mamás pequenos, mas quando cres- cesse eles ficariam grandes. 'Sim, quando eu souber cozi- nhar'. (Eu lhe dissera ao entrar que tinha pressa porque estava preparando o jantar para mim e pll,ra o papai). Eu: 'Você já começou a aprender a cozinhar. De fato, você fez creme'. Ela: 'Sim, eu só sei cozinhar coisas mortas'. E falou (imitando-me): 'A vida é dura'. E acrescentou por conta própria: 'E me magoa'. Ela menciona o senhor ocasionalmente, de maneira bastante informal; por exemplo, diz, de repente, que deseja ir brincar com os brinquedos do Dr. W. e conversar com ele sobre a mamãe preta; ou, ao armar uma cidadezinha, uma casa é a casa do Dr. Winnicott". CARTADA MÃE "Esta é só para confirmar que Piggle irá ao seu con- sultório com o pai. "Por dois dias consecutivos, vem-me pedindo para chu- par meus mamás (seios), depois de já ter ido para a cama à noite. Pediu com tanta insistência que consenti. Eu: 'Por quê?' 'Eu quero chupá-los igual a um pirulito'. Mas tarde pe- diu-me qualquer coisa que pudesse chupar e mastigar e, en- tão, descer para dentro da sua barriga. Em seguida teve outra vez medo da mamãe preta e quis ir ao Dr. Winnicott. Quan- do eu lhe disse o dia em que ela iria, falou : 'E no dia seguin- te, e no dia seguinte'. Quando saí, ouvi um choro de cortar o coração : 'Eu quero meu bebê, meu bebê , meu bebê-galli- galli'. (Bebê-galli-galli é o nome de sua boneca em torno da qual se concentravam antes muitas de suas atividades, embo- ra isso não aconteça com a mesma freqüência agora. É tam- bém o seu modo de pronunciar o próprio nome, Gabrielle, o qual ainda não é capaz de pronunciar corretamente)." 57 Depressão meúmcólica QUARTA CONSULTA (26 de maio de 1964) Conforme fiquei sabendo mais tarde pelo telefone, Gabrielle (agora com dois anos e oito meses) fez a viagem de trem enroscada no colo do pai, chupando-lhe o polegar. Ela foi diretamente para o amontoado de brinquedos, falando: "Está quente aqui. Nós viemos de trem. O senhorviu ... " Apanhou os barquinhos e colocou-os sobre o tapete. Estendeu o braço para pegar um dos cachorros grandes e macios. Estava unindo locomotivas com carros. Então, espontaneamente, falou: "Eu vim por causa do bebê-car". Fui então ajudá-la em suas tentativas de unir as partes de alguns trenzinhos. Ela arrumava os brinquedos de Ul1). modo que não era suficientemente defmido para que eu entendesse. Falou: "A janela (da sala) não está aberta". Quando eu a abri, disse: "Nós abrimos a janela daqui". Recomeçamos o trabalho iniciado. Piggle: Olha que carro bonito! Eu gosto muito de vir aqui. Eu vim de trem. Papai está me esperando? Duas sa- las, uma para papai e uma para mim. O trem sacu- diu sacudiu mesmo. Apanhou uma cerquinha de madeira, quebrou-a e enfiou a varinha através da janela do · vagão-restaurante. Foi um ato muito intencional. Falei qualquer coisa sobre o papai tentando fazer bebês. (Usando o carro como uma ma- mãe) . Ela quebrou dois pedacinhos de madeira. Piggle: Como a sala está quente! Durante as férias estava quente. Ficamos morenos ... O bebê ficou moreno. Necessidade consciente de auxílio- Problema específico Recorre à objetividade 60 The Piggle Bebê Susan moreno, núnha irmã. Ela engatinha mesmo, até o andar de cima. Ela faz xixi no peni- quinho agora. Eu: Ela está crescendo, não está? Ela falou qualquer coisa sobre "crescer", e estava manuseando o carro. Disse : "Seja um bebê. Leva todos os carros embora". Estava brincando agora com os carros, dizendo as suas cores. Piggle: Dois carrinhos Sr. Winnícott. O senhor é o Sr. Winnicott!! Houve aqui alguma coisa que ela quis jogar fora. Piggle: O senhor ouviu o rouxinol? É uma pena o senhor ter mudado para tão longe. [Isso tinha a ver com o fato de que ela somente agora começava a perceber que eu não era vizinho próximo.] O senhor lem- bra ... . Eu: Há muito tempo que você precisa de mim. Piggle: Porque quero que o senhor encha o· balão pra mim. [Lá estava o balão velho e estragado com o qual ela brincou desatentamente durante muito tempo, em que, algumas vezes, eu ajudei.] Aqui tem uma igreja com um alto [torre] em cima. Arrumou a igreja com um carro em cada extremidade. Interessou-se por um objeto que, de fato, ela não podia saber do que se tratava. Era um objeto quebrado, achatado, redondo que tinha sido originalmente uma piorra. Piggle: De onde vem isso? [Isso tinha entrado na primeira sessão.] Eu: Não sei. Ela estava sorrindo e havia qualquer coisa relacionada com os brinquedos arrumados em forma de um berço. Piggle: Como a sala tá quente! Píggle tem um pulôver de algodão com um fecho-ecler. [Para ilustrar o que falava, puxou o fecho-ecler, batendo o cotovelo Romance, flerte. Transferência ("Father trans- [erence" no original) Quarta Consulta na porta. Foi uma batida leve. Achou que o machucado era até engraçado]. Piggle apanhou barquinhos de várias cores e disse que o branco era cor-de-rosa. Tentou colocar os barcos em pé, de cabeça para baixo, o que foi · impossível (brinquedo indefuúdo). Mais ou menos nessa hora, perguntei-lhe: "Por que você gosta de mim?" Ela respondeu: "Porque você fala comigo sobre o bebê-car." Tive uma conversa com ela sobre isso, porque eu havia dito a palavra errada e esta- va claro que eu não tinha compreendido corretamente. Queria que ela me ajudasse a ordenar os meus próprios pensamentos. Piggle: Tem a mamãe preta. Tentamos descobrir se a mamãe preta estava com raiva ou não. Piggle err.purrava um carrinho para a frente e para trás. Nesse momento, repeti qualquer coisa relacio- nada com a mamãe estar com raiva de Gabrielle, porque Gabrielle estava com raiva da mamãe por ter um novo bebê. Por isso a mamãe parecia ser preta. Tudo isso era bastante vago. Ela estava brincando sozinha com os brin- quedos, repartindo carrinhos diferentes para mim ou para ela. Piggle: Meu sapato está pequeno demais. Vou tirar ele. Ajudei um pouco. Houve uma conversa sobre pés cres- cendo. Piggle: Estou crescendo e ficando uma moça grande grande [e continuou] cande, cande cande. [etc., falando para ela mesma]. Tem uma senhora bonita esperan- do o carro. Uma senhora boa para vir buscar as crianças. A mamãe preta é ruim . Procurou uma locomotiva e colocou-a dentro de alguma coisa, sugerindo uma gente grande e um bebê. Pigg/e: V amos parar e guardar tudo [ansiedade]? Aquilo fica lá embaixo. 61 Primeiro sinal do tema Eu-não·eu Manifestação da ansil;!dade devido prova- velmente aos medos edfpicos 62 Jogou um lírio no cesto de papéis. (Esse lírio, feito de papel, era uma transposição da sessão anterior.) Arrumou todos os brinquedos. Não havia ansiedade evidente. Apanhou os sapatos e caminhou até o pai, na sala de espera. Por alguns minutos eu os ouvi conversando na sala de espera. Piggle: Eu quero ir, por favor deixa eu ir. E assim por diante. Eu estava observando o desenvolvi- mento considerávél da personalidade, pelo aparecimento da coerência e, pela primeira vez, de algo que se poderia chamar de equihbrio. Eu diria que ela estava feliz. Entrou para despedir-se. O papai tentava persuadi-la a ficar, dizendo: "Não, você não pode ir ainda". Piggle: Eu quero ir. Consegui que o pai se assentasse na cadeira na outra metade da sala, e Piggle subiu para o seu colo. Agora, desen- volveu-se outra vez o jogo no qual ela era um bebê, nascen- do do pai, entre suas pernas. Isso repetiu-se muitas e muitas vezes. Era um esforço físico muito· grande para o pai, mas ele prosseguia sem constrangimento, fazendo exatamente o que se exigia dele. Eu disse a Piggle que era importante ter um pai quando'ela tivesse medo de ficar sozinha com Winnicott, e quisesse brincar com o Winnicott um jogo semelhante àquele de nascer, usando um homem como uma mãe. Os sapatos do pai tiveram muita participação em tudo isso, criando-se um conflito se ele devia calçá-los ou tirá-los. Logo eles estavam no chão e ela agarrava-se ao pai. Eu dizia: "Não entendo de bebê-cars". Piggle sentia-se muito confiante com relação ao pai, ajoelhando-se e chupando o seu polegar.(Até aquele momen- to, eu ignorava que ela tinha vindo no trem, enroscada no colo do pai, chupando-lhe o polegar). Eu disse que ela esta- . va assustada por causa do jogo em que eu me tornava a Piggle zangada. Nessa altura, o pai já tinha tirado o casaco e tentava enfrentar a situação em mangas de camisa. Eu: Winnicott é a Piggle com raiva e Piggle era o bebê que nasceu usando o pai em lugar da mãe. Ela es- tava com medo de mim porque sabia que eu estava The Piggle Rejeição adiada da evidência de que eu trato outras crianças Observe equilíbrio físico na pri· meira infância (carta dos pais datada de janeiro de 1964) Recuperando·se da reação à imposição (Fracassos de fortalecimento do Ego) ("Failure of Ego Courage" no original) Sapatos como s(mbolos de seios O pai usado como mãe na transferência, liberando· me para outras jÚnções. Quarta Consulta com muita raiva, e o novo bebê estava chupando o polegar do pai [isto é, o seio da mamãe]. Olhou-me de um modo diferente e eu perguntei: "Eu fiquei preto?" Ela pensou muito e respondeu: "Não", e balançou a cabeça. Eu: Eu sou a mamãe preta. Píggle: Não [brincando com a gravata do papai]. Houve uma porção de puxões, e ela chupou várias vezes o polegar do pai, e eu dei uma interpretação bastante definida relacionada com o fato de ela querer o pai, total- mente, para ela própria, para a mamãe ficar preta, o que significava, com raiva. Parece-me que falei: "Ela quer pôr Gabrielle na lata de lixo" (observação arriscada). Gabrielle pareceu satisfeita com isso e continuou bripcando com a gravata do pai, tentando dar-lhe o nó. Falou qualquer coisa sobre fmgir que a mamãe preta não estava lá, e isso tinha qualquer relação com a noite escura. Tinha desamarrado o outro sapato do pai e, se lhe tivessem permitido, ela o teriadespido completamente. Havia, ao lado disso, a idéia de fazer a mamãe ficar preta. Falei qualquer coisa sobre nascer outra vez, do papai. Agora o papai estava amarrando os sapatos e Gabrielle estava subindo nas suas costas. Píggle: Posso subir no senhor outra vez? Continuei falando: "Fazendo mamãe ficar preta". Gabrielle então falou de maneira bastante decidida : "Mamãe quer ser a menininha do papai;'. Ela estava com muita energia e teria continuado com aquele jogo, mas o pai estava farto e começou a dizer não. Fazia muito calor. Esgotava-se o tempo que eu reservara para ela. 63 Conf'zança reassegurada ao lembrara si mesma que esta mãe era de fato um homem Agora o pai está sendo o pai verdadeiro Desenvolve-se tema alternativo com o pai como pai e o analista como mãe ciumenta Segundo tema estabelecido. Chave para a sessão Eu: A mamãe preta é agora Winnicott, e ele vai mandar Piggle embora. Ele vai pôr Piggle no cesto de papéis; como o lírio. Nesse ponto comecei a ficar indeciso se deveria chamá-/a de A sessão terminou e ela foi muito amável. Fiquei onde Pigg/e ou Gabriel/e, estava, como a mamãe preta zangada que desejava ser a me- por causa do tema 64 nininha do papai e que estava com ciúmes de Gabrielle. Ao mesmo tempo, eu era também Gabrielle com ciúmes do novo bebê com a mãe. Ela correu para a porta, eles saíram e ela acenou com as mãos. Suas últimas palavras foram: "Mamãe quer ser a menininha do papai". E essa foi a prin· cipal interpretação da sessão . Naquela noite fiquei sabendo pelo telefone que ela tinha vindo enroscada no colo do pai, chupando-lhe o polegar. Depois da sessão, ela transformou-se numa menina mais adulta. Sentia-se à vontade e mais feliz. Além disso, no trajeto para casa, foi obervando tudo, vendo gatos e outros animais; alimentava-se e não estava dando trabalho. Estava claramente · confiante de suas relações com o pai e tinha perdido o comportamento regressivo. À noite, brincou de maneira construtiva como não fazia recentemente. O tio apareceu. A princípio ela estava tínúda, mas depois ficou boazinha e amável. Finalmente, ao ir para a cama, falou inesperadamente: "Eu não sei quem é o tio Tom e quem é papai". Achei que era possível ver nisso uma capacidade cres- cente para deixar as pessoas representarem as figuras básicas de pai-mãe, e que aquela observação se referia à maneira como ela usava a mim e ao pai de acordo com a sua vonta- de, de tal forma que trocávamos os papéis à medida que o jogo se modificava. Em outras palavras, o que importava era a comunicação - a experiência de ser compreendida. Atrás de tudo isso1 o sentimento de segurança com relação ao pai e à mãe reais. Poder-se-ia dizer que se tinha desenvolvido um campo mais amplo para a experiência do jogo que envolvia a identificação cruzada, etc. Na representação compulsiva, houve uma série de atos em que se transformava em mãe, pai, bebê, etc., de tal forma, que o jogo pelo prazer estava fora de cogitação. Agora, ela brincava com prazer. Essa liberação da fantasia levou a uma liberdade maior na comunicação e na exploração de mau, de preto, de destrui- dor, e de outras idéias. COMENTÁRIOS Principais temas trazidos p:>r~ ~ sessão: The Piggle eu-não-eu que tinha sido introduzido Alívio resultante do trabalho feito r.a sessão Quarta Consulta 1. Vinda no trem, enroscada no colo do pai, chupan- do-lhe o polegar (eu ignorava isso). . 2. Dramatização do ato sexual sádico masculino. 3. Idéia do crescimento natural, maturação. 4. Sensação da distância entre nós, durante os inter- valos entre as sessões (fim da negação). 5. A idéia em evolução da mamãe ficando com raiva de Gabrielle por ser a menininha do papai - sobrepondo-se à idéia da raiva de Gabrielle com relação aos novos bebês nascidos do papai. 6. Erotismo uretr;li, excitação clitoriana, mastur- bação evidente como base funcional para formação de algu- mas fantasias e como parte da busca de informação. CARTADA MÃE "Piggle já pediu várias vezes para vê-lo e ontem brin- cou de levar muitos trens carregados de brinquedos para Londres. Ela sugeriu ficar com aavó (chamada Lá-lá-lá) que mora perto de Londres. Levou três horas para dormir. Já faz alguns dias que ela não me permi!e beijá-la, porque posso fazê-la ficar preta; mas tem sido mais carinhosa comi- go e tem-me beijado espontaneamente, o que nunca tinha acontecido antes. Numa noite dessas, falou-me · que eu era uma mamãe boa e, em seguida, começou a raspar-me. Disse que estava raspando para tirar o preto e logo tentou soprá-lo do travesseiro. · "Todas as noites repete-se a mesma cerimônia: "Se- rá que posso falar sobre o bebê-car . .. A mamãe preta diz: 'Onde estão meus mamás (seios)'? Uma vez perguntei impaciente: 'Afmal, onde estão eles?' - 'Na privada, com buracos'. Preocupa-se muito com mamás. Ontem, sem mais nem menos, falou: 'Pena que não tem leite nos meus mamás'. Quar1do vou dar-lhe boa noite, ela sempre abotoa o meu cardigã para que meus mamás não fiquem 'sujos e mortos'. Ultimamente tem estado muito preocupada com o 'estar morto'. Certa vez, disse-lhe: 'Seus mamás logo vão crescer'. Ela: 'E os seus vão morrer" . "Após a última sessão, falou, com muita convicção, que não iria mais a Londres. Quando perguntamos por quê, respondeu que o Dr. Winnicott não quer que eu suba no 65 66 papai. A propósito, subir no papru e uma coisa que ela nunca fez um casa quando era um bebê. Era, sua irmã, o bebê Sush . quem fazia isso, o que parecia divertir Piggle imensa- mente. "Disse-me em outra ocasião: 'Eu tentei várias vezes subir no papai. Dr. Winnicott disse: não'. Falou que Dr. Winnicott entendia do bebê-car." "Na noite da consulta, falou que não sabia dizer qual a diferença entre Tom - seu tio querido, que tinha visto apenas três vezes - e seu pai. Mais tarde, falou: 'Papai, Tom e Dr. Winnicott são todos homens-papai; não é engra- çado?' Repentinamente falou com o pai : 'Dr. W. tem brin- quedos engraçados' . E outra vez: 'Não sei dizer qual a diferença entre meus brinquedos e os brinquedos do bebê Sush . Brinquedos muitos gozados'. "Ela tem uma fantasia recente , que se repetiu por duas noites : se o papai ficar na cozinha, as garrafas quebram - a garrafa de Rose Hip Syrup (muito apreciado) e a mama- deira do bebê Sush. Haverá cacos por todos os lados e Piggle pode pisar neles. "De modo geral, intimamente, ela terri. estado às vezes bastante deprimida, e também deliberadamente destruidora e desordeira . Isso alterna-se com períodos de sensatez pre- coce para sua idade e situação, e de muita limpeza e ordem -- o que sobressai em nossa famiila tão informal." The Piggle A função mascu- culina igualada à agressão. Medo da identificação femi- nina que significa ser quebrada Depressão como evidência da in te- gração do eu ("unit-se/f"), em direção do reco- nhecimento do próprio impulso agressivo. Dentro da depres- são, a fantasia é o caos disfarçado que se manifesta na limpeza em fases de comporta- mento. QUINTA CONSULTA (9 de junho de 1964) Gabrielie estava agora com dois anos e nove meses, e Susan com um ano de idade. Era um dia quente, e a janela estava aberta. Isso trouxe o mundo exterior para dentro, em vários momentos. Minhas anotações estão relativamente obscuras por causa do calor e minha sonolência. Piggle estava ocupada com os brinquedos. O pai estava na sala de espera. Ela tirou os brinquedos. Piggle: Tudo tá caindo. Eu tenho um desses. Eu tenhc uma porção de brinquedos bonitos [manuseando uma cerca]. O senhor não teve férias. Eu: Tive. Piggle: Eu tenho uma irmã boazinha. Sai na sua cesta de dormir. Tantos trenzinhos. Por quê? [Ela estava engatando um trem e precisava de auxílio; estava realmente difícil.] Eu estou ficando maior e maior. Vou fazer três anos. Quantos anos o senhor tem? Eu: Sessenta e oito. Ela repetiu "sessenta e oito" cinco vezes. Piggle:Eu gosto do senhor ficar perto de nós [sugerindo que a distância entre minha casa e a dela era muito grande]. Será que vou ter três anos e um bebê que gosta de brincar -um bebê bonzinho que não vo- mita? [Aqui uma recordação do vômito representa- da pelo balde transbordando de brinquedos. Ela estava examinando uma figura.] Sim, eu gosto de Provavelmente uma referência à grande diferença de idade 68 brincar com os brinquedos. Bebê joga fora meus brinquedos. Ela estava tentando dar aos brinquedos disposições diferentes (interrompeu para ouvir um cavalo e uma car- roça na rua). Fez uma fileira com as igrejas (interrompida pelos sons uu-uu dos pombos). Piggle: Barulhos horríveis. Ficou pensativa aqui. Eu: Estas coisas perturbam você enquanto você tra- balha. Piggle: Meus sapatos estão quentes demais. Desatou então os cadarços duplos. Fez isso sozinha, o que era uma grande façanha. Piggle: Meus dedos do pé - dez dedos. Tem areia neles. Eu: Da França? Piggle: Não. Um avião sobrevoou, e ela parou novamente de brin- car. Falou: "Eu já andei de avião" . Tinha arrumado qúatro casas mais duas casas e tinha guardado duas igrejas , etc. A ansiedade começou a mani- festar-se no comentário: "Papai está pronto para ir? Papai está cansado" (uma referência à última vez). Respondi: "Ele está descansando na sala de espera" . Fez então barulho com os dentes e pergUntei-lhe o que ela estava mordendo. Piggle: Você gosta de pão com manteiga? Eu: Isso é quase como comer uma refeição . Piggle: Gansa , gansa, ganso*[recitou isso até o fun]. Aqui tem um brinquedo engraçado [outra vez os restos de uma velha piorra]. Posso bater com ele no chão ou não? The Piggle Imposições por causa da janela aberta (fracasso do apoio do ego) * No original: "Goosey, goosey, gander" (uma canção infantil com oito versos). ·N.L) . Quinta Consulta Bateu no botão de sua roupa. "Estou ouvindo a água ping-ping-ping" (significando pingar, um barulho de água pingando que descia pelo cano, do andar de cima). Apa- nhou o balde: "Não tem muitos brinquedos aqui dentro. Posso encher ele até ficar completamente cheio?" Nesse momento fiz uma observação sobre ter fome e ter menos fome , quando se fica cheio; e não gostar de comer mas encher a barriga para afastar a fome. Ela colocou as casas formando uma ftleira e falou : "Quem mora aqui? Um homenzinho, uma senhora também- a Sra. Winnicott". Nesse momento , calçou um sapato e amarrou-o. "Eu vou voltar para minha mamãe", e deu o endereço. Respondi : "Então você vai ficar com mamãe e papai". Ela recomeçou a brincar como se a ansiedade tivesse desaparecido ; isso estava relacionado com a idéia da Sra. Winnicott (introdu- zida no esquema das coisas, pela primeira vez) . Esvaziou o balde e pôs umas coisinhas no cesto de papéis. Nesse mo- mento mordeu com força o pneu de um carrinho. Tentou pôr uma roda num carro : "Dr. Winnicott, ajuda". Coloca- mos as duas rodas. Agora ela queria saber como encaixar alguns navios . Eu: Para encaixá-los quando papai e mamãe estiverem juntos? Pigile: Grande demais . Bebê está ficando grande demais agora. Isso foi interrompido por alguém do lado de fora da janela aberta e depois pelo ruído de um avião. Piggle mostrava ansiedade ao ter sua atenção desviada pelos barulhos externos , mas a janela aberta era um fator real, excepcional, que era difícil de excluir. Estava muito quente. Tudo isso era vago e indistintamente articulado. Deixei a coisa correr dessa fonna. Agora Piggle parecia começar a atividade do dia. Ela passou as mãos pelos cabe- los completamente lisos e falou : "Meu cabelo é anelado"! 1 Usei isso para uma interpretação. Eu: Você está querendo um bebê seu mesmo. 69 O vômito- resultado da voracidade compulsiva Comportamento compulsivo, controle da função cindida Simbolismo do cacho no cabelo, um bebê 1 Anotação da mãe : J:, Susan quem tem o cabelo anelado e, por isso, todo o mundo faz-lhe festa. 70 The Piggle Piggle: Mas eu tenho um bebê menininha, menininha. Eu: Não, não o bebê Sush. Piggle: Um bebê para ficar na minha cama . . Eu: Em seus cachos? Piggle: Sim. O jogo foi retomado, e ela apanhou dois navios e colocou um sobre o sapato, perto do pé. Quis ir até o pai para mostrar-lhe os dois navios. Piggle: Quem ama o papai? O bebê-car e a mamãe. Ela foi e mostrou os dois navios ao pai e fechou a porta. Piggle: Eu vou voltar em meio minuto. Me ajuda a fechar a porta. [Estava realmente difícil fechá-la; precisa- va consertá-Ia.] Deixou o buraco da fechadura aberto. Ela estava "comendo" os dois navios. Eu disse: "Comendo para fazer bebês" . Ela guardou todos os brinquedos e foi buscar o papai. Então falou : "E agora nós vamos" . Os brinquedos foram todos separados e colocados nos lu- gares certos. Eu interpretei: "Você estava com medo de achar que você queria fazer bebês comendo os na- vios". Piggle: Posso dizer "Alô" para o papai? [ela foi e voltou.] Não vou voltar mais. Eu podia ouvir o pai persuadindo-a carinhosamen- te a voltar e ela corria de uma lado para outro. O pai entrou , sentou-se na cadeira e tivemos uma conversa rá- pida, de que ele necessitava. Em seguida, ambos foram para casa. Escrevi, no final da consulta, que, embora as ano- tações estivessem fragmentadas e incompletas (em par- te devido ao calor e à minha sonolência) o ponto claro da sessão era o fato de ela ter o seu próprio bebê, atra- vés do ato de comer. Este foi o trabalho que ela veio fazer. Quinta Consulta COMENTÁRIOS 1. Muito calor e a conseqüência. 2. A observação sobre o cabelo anelado e minha interpretação. Parece que esse foi o trabalho importante do dia. Sua própria gravidez em fantasia pré-genital. 3. Fazer bebês comendo - ansiedades associadas a isso. 4. Progressão (processo de maturação) dos seios da mãe para o pênis do pai. 5. A Sra. Winnicott no esquema dos fatos. CARTA DA MÃE "Desde a última vez que Piggle esteve em seu consul- tório, a velha lengalenga de todas as noites sobre a mamãe preta praticamente parou, e não parece que ela tem medo de ir dormir. "Outro dia falou novamente sobre a mamãe preta, dizendo: 'Me leva ao Dr. Winnicott, ele vai me ajudar'. Ten- tando desencorajá-la na hora falei: 'Mas ele ajudou você'. 'Sim, mas eu guardei a mamãe preta'. Eu apenas fiz 'hum'. Houve, aí, algo sobre derrubar um cesto de papéis e um sonho sobre os sentimentos. Talvez o senhor saiba de que se trata. "Pediu duas vezes, com insistência, para chupar os meus seios e pareceu apreciar extraordinariamente a oportu- nidade. Confundia os possessivos 'meu' e 'seu' quando falava sobre eles. "Depois de uma briga por causa do mau tratamento que dispensava à irmãzinha, ela beijou o pai e a irmã, e então disse ao pai : 'Não me beija . Você me faz ficar preta. O que é preta, papai? "Meu marido não ficou sabendo ao certo qual a sua opinião sobre Piggle. Ela estava presente à conversa no final da consulta, e ele não pôde falar livremente. "Quando o senhor lhe disse que achava Piggle 'normal' com o senhor, mas sugeria a idéia de uma análise com um analista, fiquei sem saber se o senhor achava que a análise era necessária; e o senhor não podia fazê-la em nível sufici- entemente profundo. pela impossibilidade de dedicar a 71 72 Piggle um número maior de entrevistas, sugerindo então esse médico, ou se <O senhor não via necessidade de fazer nada além do que estava sendo feito, a menos que estivés- semos excessivamente ansiosos2 • Tenho certa tendência para deixar a coisa seguir o seu curso natural e não interferir a menos que isso seja realmente necessário . Piggle ainda tem (pelo menos é o que parece) depres- sões repentinas, quando ela se enrosca toda e chupa o polegar, ou assenta-se e grita coisas inarticuladas e não consegue fazer nada. Mas apesar disso, ela parece muito melhor, mais animada, embora eu não possa avaliar se ela tem chances de recuperar a profundidadeque parece ter perdido quando a irmãzinha nasceu. Parece ter havido na ocasião uma rup- tura súbita e dolorosa e ela pareceu ter amadurecido muito rapidamente, mas de um modo um tanto falso. Gostaria de saber se ela será capaz de encontrar, sem maior assistên- cia, o que deixou atrás. É possível que ela esteja realizando isso agora, mas eu não saberia julgar. Ou, talvez, isso nunca aconteça, sejam quais forem as circunstâncias. CARTA PARA A MÃE "Obrigado por sua carta. Estou respondendo, porque reconheço que disse as coisas de maneira bastante confusa para seu marido. O fato é que me doeu a consciência e pre- cisei ter a certeza de que não era eu quem a impedia de pro- videnciar uma análise completa para Piggle. Se lhe fosse fácil morar em Londres, tanto quanto o é para a senhora viver aí, creio que a senhora provavelmente faria isso, caso encontrasse alguém digno de confiança. Mas estou certo de que não lhe seria fácil mudar para Londres, e fazer muitas viagens seria muito complicado. É melhor pensar em termos de uma recuperação natural, com uma visita ocasional ao meu consultório para eu ir ajudando The Piggle 2 Exatamente na ocasião um analista sob minha supervisão pediu uma criança de três anos de idade. Pensei em encaminhar-lhe Piggle. Isso deu-me dor na consciên- cia, fez com que me sentisse culpado e atrapalhei-me todo ao discutir o assunto com o pai. Contudo, pensando bem, o fato de que as sessões fossem realizadas "de· acordo com a demanda", não alterava o fato de que a criança estava sendo analisada. D.W.W. Quinta Consulta um pouco, paralelamente. "Piggle, como a senhora sabe, é uma criança muito interessante. Talvez a senhora preferisse que ela não o fosse tanto, mas ela é, e espero que brevemente ela se aco- mode aos padrões comuns. Penso que muitas crianças têm esses pensamentos e preocupações, mas elas geralmente não são bem verbalizadas; isso, no caso de Piggle deve-se ao fato de vocês, os pais, serem ambos particularmente conscientes dos problemas da infância e bastante pacientes com as perguntas próprias da idade. "Tenho admirado muito a maneira como o pai de Piggle vem agüentando permanecer lá, sentado, com Piggle usando-o, embora grande parte do que vem acontecendo deva ser um enigma para ele." DE UM TELEFONEMA DA MÃE "Piggle esteve melhor por algum tempo; e, depois, ficou outra vez deprimida e desatenta, não dorme à noite e anda preocupada com o conceito "morto". Teve um sonho : 'As sementes não brotaram, ou apenas algumas, por causa de coisas más do lado de dentro'." COMENTÁRIO POSTERIOR DA MÃE "Será que este tema de morte está também associado à parte do seu próprio eu que tem de 'ser guardada', i. e., 'ser morta?' A parte predatória e invejosa por exemplo? "Estou interessada em saber quantas vezes ela 'guar- da' Dr. Winnicott ao deixá-lo numa sala e sair para a outra, a sala de espera, fechando a porta.3 3 Ser capaz de esquecer tem suas vantagens. D.W.W. 73 Ansiedades depressivas SEXTA CONSULTA (7 de julho de 1964) A paciente estava agora com dois anos e dez meses. Cumprimentei-a na porta com um "Alô Gabrielle". Dessa vez eu sabia que devia dizer Gabrielle, e não, Piggle. Ela dirigiu-se imediatamente para os brinquedos. Eu: Gabrielle vem me ver outra vez. Gabriel/e: Sim. Ela pôs junto os dois animais grandes e macios e falou: "Eles estão juntos e gostam muito um do outro". Ela estava também unindo dois vagões de um trem. Eu: E eles estão fazendo bebês. Gabriel/e: Não, eles estão fazendo amizade. Estava ainda juntando partes de trens e eu falei: "Você poderia estar reunindo todas as ocasiões diferentes em que você veio me ver. Respondeu: "Sim". Há, sem dúvida, muitas interpretações para a união de partes de trens, e pode-se usar isso de acordo com o que se pense ser mais conveniente no momento, ou pode-se exprimir os próprios sentimentos. Relembrei a Gabrielle a interpretação que eu fizera na sessão passada, sobre o fato de o cabelo anelado estar relacionado com o fato de Piggle ter um bebê dela própria. Gabriel/e: Coisas que eu penso. Fez, em seguida, uma distinção (de qualquer forma, Conceito de relação do ego 76 bastante clara) entre dizendo e mostrando (fazendo-me lembrar a canção "Mostra-me" de My Fair Lady*). Eu: Você quer dizer que me mostrar alguma coisa é melhor do que me falar sobre ela. Gabrielle apanhou uma garrafinha e fez um barulho semelhante ao barulho de água : "Elas fazem um círculo grande quando a gente faz um grande splash". Ela balbucia· va e, algumas vezes, era difícil entender o que dizia: "Eu tenho uma piscininha de patinhar lá fora (referindo-se ao jardim) e duas estufas. Tem nossa casa grande, e também minha casinha". Eu: A casa pequena é você. Gabriel/e: Somente você [repetiu isso três vezes]; e logo disse: Somente Gabrielle. Somente Winnicott. Engatou dois vagões. Eu: Gabrielle e Winnicott fazem anúzade, mas ainda assin1 Gabrielle é Gabrielle, e Winni- cott é Winnicott. Gabriel/e: Não conseguimos achar nosso gato, mas eu vi um passeando por aí. Eu vi um correndo em volta de tudo. Que que puxou isso? Fui ajudá-la, e ela falou : "Winnicott segurando minhas mãos". Houve uma espécie de estabelecimento de identidades nesse momento. Falei qualquer coisa sobre Gabrielle e seus diversos relacionamentos com Winnicott, papai, mamãe, e o bebê Sush. Gabrielle fez um barulho de Gabrielle e disse: "O bebê Sush faz um barulho uaa", e outro que ela imitou com a mão sobre a boca. Ela divertia-se com esse espetáculo de variedades, pondo a mão ora em cima, ora longe da boca. Ela tinha soltado um "pum" pouco antes, e eu falei: "Talvez aquele fosse um barulho de Gabrielle". Ela conversou então de um modo característico e inconfundível. Eu disse: "Isso tem a The Piggle Ela estava conduzindo-se na linha divisória entre a fusão e a separação *Musical baseado na peça Pygrnalion do dramaturgo inglês Bernard Shaw. (N. T.) Sexta Consulta ver com o papai". Piggle tinha usado esse modo especial de falar, em outras ocasiões, quando se encontrava fortemente identificada com o pai. Gabrielle: Não fala assim [mas nós conversamos sobre o papai]. O bebê Sush não tem idade pra falar. O que é essa coisa engraçada? Ela segurava um cabo que estava amarrado a um cor- dão. Queria que eu o prendesse ao trem, para que pudesse puxá-lo ao redor da sala. Ficou contente ao fazer isso. Falei qualquer coisa sobre o fato de aquilo ser o bebê Gabrielle de quem ela estava lembrando-se, e ela respon- deu: "Não, é uma irmãzinha", e, subitamente: "Olha que quadro lindo". (Um retrato de uma menina muito séria, de seis ou sete anos, bastante antiquado, que eu conservo em minha· sala). "É uma menina mais velha do que eu. Ela é mais velha do que eu, como eu sou mais velha do que o bebê Sush. Ela [Susan] sabe andar sem segurar em nada agora". (Demonstrou isto, andando e correndo, an- dando e depois caindo). "E ela sabe levantar" (demonstrou isso também). Eu: Então ela não precisa da mamãe dela o tempo todo agora. Gabrie/le: Não, logo ela vai ficar maior e não vai precisar da mamãe e do papai, e Gabrielle não vai pre- cisar de Winnicott e de ninguém mais. Alguém vai dizer: "Que é que você está fazendo?" Este é meu lugar. Eu quero ir pro meu lugar. Sai do caminho. Ela estava ilustrando um jogo do Rei do Castelo 1 , com. Gabrielle estabelecendo sua própria identidade e esperando que ela fosse desafiada.* Apanhou agora dois vagões e esfregou um no outro, roda contra roda. 77 Apoiando-se conscientemente na operação dos processos de maturação 1 Winnicott D.W. (1966) , Psycho-sqmatic lllness in its Positive and Negative Aspects. Intemat J. Psycho Anal, 4 7:51 o-s 16. *No jogo do Rei do Castelo, as crianças escolhem um lugar. elevado e correm para lá ; aquela que chega primeiro, fala: "Eu sou o Rei do Castelo - E você é o patife sujo" (ou " Desça daí, seu patife sujo"). (N. T.) 78 Eu:Eles estão fazendo bebês? Gabrielle: Sim. Algumas vezes deito de costas com as per- nas pra cima, quando tem sol. Não para fazer bebês.' Tenho uma jardineira e um short. Fez uma demonstração de como deitava de costas com as pernas levantadas para o ar, afunde tomar sol. Gabrielle: Eu tenho um sapato novo. [Não era o que estava usando no momento.] Estava desamarrando um dos sapatos e tirando a meia. Houve uma atividade de tirar-pôr, tirar-pôr. Ela queria que eu a olhasse, isto é, a meia, enquanto a descia, até o calcanhar grande e gordo. Eu: Você está me mostrando seios grandes. Gabrielle: Como os pés. Ela desamarrou o outro sapato e mostrou o outro calcanhar gordinho. Fez muita graça em torno de tudo isso, como se um dos pés tivesse desaparecido em alguma brinca- deira que inventou. Gabrielle: Está tudo de pé trocado [isso era uma piada]. Tinha trocado as meias, e foi até o balde com os brin- quedos. Falei: "Gabrielle devora o mundo todo e então ela come demais" (mas no momento, o balde não estava trans- bordando). Gabrielle respondeu: "Ela não tá vomitando". Tirara um sapato e fazia de conta que se esquecia da meia. Houve aqui uma atividade complexa relacionada com meias e sapatos e ela persistiu com muita habilidade, mas não teve êxito. Eu: É difícil, não é? Gabriel/e: Sim, é. Eu: Gabrielle ainda precisa um pouco da mamãe e não consegue ainda ser uma mamãe. Em seguida voltou sua atenção para um trem maior e falou: "Espero que a gente não tenha chegado cedo demais" . The Piggle Masturbação com fantasifJ de uma forma de relações sexuais entre as pessoas Reconhecimento da imaturidade e dependêncifJ relativa r • Sexta Consulta Explicou então porque ela e o pai tinham chegado antes da hora. Eles tinham, na verdade, andado pelas lojas, a flm de não chegarem tão cedo. Senti que nesse momento necessitava que eu ajudasse com um complicado cadarço do sapato. Ela permitiu, e ajudei com o outro também. Gabrielle: Estou ouvindo um barulhão [real]. Eu: Será que alguém está com raiva? Gabrielle: Não. O bebê Sush faz barulho. Depois sussurrou . que ia ver o pai, abriu a porta silenciosamente, fechando-a em seguida. Voltou logo, ela própria, sem precisar do pai. Ela estava guardando os brinquedos. Gabrielle: Os brinquedos estão todos atrapalhados. O que é que o senhor vai dizer? Eu: Quem? Gabrielle: Dr. Winnicott. Guardou os animais (cachorros) grandes e macios. A arrumação tinha sido meticulosa, com a separação dos brinquedos pelos tipos. Gabrielle: Oh, a parte de cima soltou. Não tem importân- cia. Mamãe está em casa? · Gabrielle guardou tudo cuidadosamente e falou : "O senhor tem um lugar bom para os brinquedos, né?" (De fato, o meu amontoado de brinquedos tem um lugar no chão, debaixo da estante) . Ela encontrou um ou dois brin- quedos excedentes, que tinham fkad ü de fora, e guar- dou-os : "Eu guardo os meus do lado de fora , dentro do cesto de papéis". "Agora estava saindo pela porta da sala, e não havia nenhum brinquedo em redor. Esteve algum tempo fora , com o pai, na sala de espera . Contou a ele o que tinha feito e ele falou sobre o assunto também. Quis, nesse mo- mento , que o pai entrasse. Disse-lhe : "Quero que você entre", mas ele detinha-se . E ele dizia: . "Vai para dentro, para o Dr. Winnicott" . 79 Identidades tornando-se esclarecidas 80 Já tínhamos completado quarenta e cinco minutos de consulta, e eu estava prestes a parar. O pai dizia: "Não, não, você é quem entra, para o Dr. Winnicott". Gabrielle: Não! Não! Não! Eu: Venha, porque está quase na hora de ir. Venha aqui dentro. Ela entrou e foi muito cordial. Perguntou-me se eu ia tirar férias e o que eu faria. Respondi que ia para o interior para divertir-me. A sessão terminou: "Quando vou voltar?" Repliquei: "Em outubro". Um pormenor importante nessa sessão, foi o momen- to . do estabelecimento da identidade, o jogo do Rei doCas- telo, seguindo-se as experiências com a separação a partir da fusão. COMENTÁRIOS 1. Saber que ela devia ser cumprimentada como Gabrielle. 2. Desenvolvimento gradual do tema da identidade. 3. Uma versão da afirmação do jogo do Rei do Castelo. 4. A representação de objetos parciais conduzindo à idéia de seios (jogos de tirar e pôr). 5. A voracidade transformando-se em apetite. 6. Da desordem para a ordem. Esboço do tema da confusão, que iria surgir. CARTA DA i\·IÃE "Ela dorme bem à noite outra vez. Seu único comen- tário sobre a sessão: 'Eu queria dizer ao Dr. Winnicott que meu nome é Gabrielle, mas ele já sabia'. Isso foi dito com satisfação 2 . The Piggle 2 Esse pormenor mostra como foi importante que eu tivesse recebido sua primeira mensagem, na entrada, e que eu soubesse que devia dizer Gabrielle e não Piggle, ou um nome que pudesse ter relação com um ou outro de seu muitos papéis. D.W.W. Sexta Consulta CARTA DOS PAIS, ESCRITA PELA MÃE3 "Não sei por quê tenho achado difícil escrever-lhe. Talvez eu ande bastante envolvida com Gabrielle e não totalmente separada dela, mas espero que isso se resolva por si mesmo. "Gabrielle parece bem melhor. Com isso, quero dizer que tem sido capaz de dar ao mundo exterior significados próprios e, ainda, de usar e gozar qualquer oportunidade que se lhe apresente. "Não está tão tímida, mas tem dificuldade para esta- belecer contato com outras crianças, embora anseie muito por isso .e sofra com as rejeições. Tem muitas desilusões, porque espera demasiado desses contatos. "Está se dando extraordinariamente bem com a irmã, a despeito de algumas agressões repentinas, tais como jogá-la no chão no meio da rua, declarando que está cansa- da de ter uma irmãzinha. Fora essas ocasiões, trata a irmã como gente, com uma compreensão compassiva bastante comovente. "Existe ainda bastante do que me parece ser uma fan- tasia algo deformada ; não sei até que ponto ela se ilude com isso e até onde isso é uma 'defesa legítima e eficaz contra pais inquiridores"4 • "Apenas nos últimos dias voltou a não dormir; tem sido visitada pela mamãe preta e tem falado mais em ir ao Dr. Winnicott. Parece muito preocupada com a idéia de ser envenenada. Comeu uma cereja, a qual ela insistia que era venenosa, e dissemos o quanto ia passar mal. Insiste também que seu 'brrr' está preso dentro dela, embora não pareça estar sofrendo de constipação intestinal. Mas nada disso se manifestou no fmal das férias. Significa muito para ela ter o número do seu telefone. "O senhor parece ter feito muito por ela, reativando coisas que pareciam estar reprimidas dentro de um círculo vicioso extremamente desgastante. Ela agora lembra mais a menina vigorosa de antes do nascimento de Susan, e de algum modo a continuidade parece ter sido restabelecida." 3 Conversas pelo telefone não foram relatadas aqui. 81 4 Poderia isso estar associado ao fato de que nada fiquei sabendo a respeito do: fenômenos pretos? D.W.W. 82 CARTA MINHA AOS PAIS "Recebi o postal de Gabrielle. Penso que vocês gosta- riam que eu a visse outra vez, e vou reservar-lhe um horário. Talvez sintam, entretanto, que seria uma boa idéia aguardar algumas semanas, e, nesse caso, fico esperando uma comuni· cação. "Pelo que tenho visto de Gabrielle e por sua carta, sinto realmente que não devemos pensar nela apenas em termos de doença. Há muito de saudável nela. Talvez a senhora pudesse dizer-me o que deseja que eu faça". (Devo lembrar aqui minha predisposição, pelo fato de não dispor de tempo livre para um novo caso; por outro lado, eu realmente sentia que aqueles pais tinham algum motivo especial para não confiar no processo de desen· volvimento que, nessa criança, poderia levá-la a vencer suas dificuldades independentemente de um tratamento). CARTA DOS PAIS "Gratos pela carta e pelo oferecimento de uma con· sulta. Teremos satisfação em comparecer. "Também achamos que Gabrielle não pode mais ser considerada como uma menina muito doente;muitas outras partes do seu próprio eu parecem ter renascido. Contudo, ainda há zonas bem acentuadas de angústia e ansiedade que, às vezes, parecem levá-la a eliminar todo e qualquer sentimento - vivendo então, uma vida articulada, mas em duas dimensões". "Quando lhe escrevemos pela última vez, ela estava exatamente recomeçando a apresentar dificuldades para dormir, depois de ter passado muito bem durante a maior parte do verão. Depois que se deita, t1ca acordada três ou quatro horas". "Agora tem uma 'mamãe preta boa' que apara suas unhas (talvez o senhor se lembre de como ela costumava arranhar o rosto à noite, quando estava angustiada. Vem fazendo o mesmo ultimamente). A mamãe preta, entretan- to, veio cortar o seu polegar com uma faca de trinchar. Disse que contaria ao Dr. Winnicott que a mamãe preta foi embora. The Piggle Sexta Consulta "No momento ela está extremamente preocupada com a idéia de os pais morrerem; mas refere-se ao asssunto de maneira bastante indiferente e vaga. Para a mãe: 'Eu gostaria que você estivesse morta' . - 'Sim. Mas você ficaria sentida' . - 'Sim, vou guardar seu retrato na minha maleta'. "Faz insinuações de que coisas extremamente desa- gradáveis estão ocorrendo entre os pais, e ficou profunda- mente chocada e transtornada quando viu o corpo da mãe, mais do que estava acostumada a ver, no momento em que ela tirava a roupa para tomar um banho. Embora essas preocupações pareçam bastantes comuns, sua angústia e a subseqüente eliminação de sentimento, e sua inquieta- ção à noite, por causa das mesmas, parecem-nos indicar que um pouco de assistência ainda é necessária. "Nós a colocamos numa escola maternal, onde, con- forme lhe dissemos, ela encontra dificuldade para estabele- cer qualquer contato, embora o deseje muito: 'Mamãe leva um livro. Vou ficar chateada e depois não vou saber o que fazer e depois não vou conhecer ninguém e depois não vou querer que ninguém olhe para mim'." 83 S:gTIMA CONSULTA (10 de outubro de 1964) Gabrielle (agora com três anos e um mês) veio com o pai; foi direto para os brinquedos, e sua cabeça tocou em meu cotovelo porque eu estava sentado no chão. Apanhou um brinquedo grande e macio. Gabrielle: Posso começar com a flleini de casas? O senhor ouviu minha campanhia? Toquei três vezes. Sr. Winnicott 1 , o que é isso? Eu: É um vagão. Gabrielle: Oh [e ela começou a uni-lo com algUma coisa]. Todos os problemas acabaram, assim não tenho nada para contar ao senhor. Eu: Estou vendo Gabrielle sem nenhum problema, apenas Gabrielle. Gabrielle: Eu tinha uma man1ãe preta que me aborrecia muito, rrias ela foi embora agora. Eu não gosta- va da mamãe, e ela não gostava de mim. Ela falava bobagem comigo. Arrumou uma ftleira comprida de casinhas, uma junto da outra, fazendo uma curva em forma de um s bem certinho, com uma igreja em cada extremtdade. Apanhou a lâmpada com o rosto desenhado e falou: "Esqueci isso". Aqui, houve qualquer comentário sobre ficar com raiva de o bebê ter nascido. Falou: "Uma menininha está entrando na igreja com a menina grande". Houve, nesse momento, qualquer brincadeira que não está registrada devidamente. A brincadeira tinha relação com o fato de colocar algo para 1 Começa aqui uma indicação recorrente de um Winnicott não terapeuta. 86 os cachorros e o gado - e qualquer coisa atrapalhou as casas em cada extremidade da curva em S. Gabrielle: Agora vamos fazer uma estrada de ferro. Apanhou duas pedras que trouxera anteriormente num saco de papel, e havia uma pedra maior no saco. Isso tinha qual- quer coisa a ver com a mamãe preta. Colocou a pedra grande em certa relação com as duas menores. Gabrielle: Sr. Winnicott, por que o senhor não tem mais trens? Procurou outros e encontrou-os, embora ela tivesse conhecimento deles. "Como é que eles vieram para o senhor, Sr. Winnicott?" Havia vagões, uma estrada e outra pedra. Ela afastou todos para longe e disse: "Este trem puxa os dois trens; agora ... mais barcos, trens (muito barulho, conversando com ela mesma de forma ininteligível) . Depois de algum teinpo, olhou para mim e sorriu com intenção de obter uma resposta . Provavelmente isso estava relacionado com a opscuridade do que estava aconte- cendo por causa do seu estado de alheamento e com o fato de ela estar brincando de maneira incompreensível para mim. Nesse momento, aproximadamente, ela pôs um trem em cima de um navio, o que era absurdo em certo sentido, uma vez que o trenzinho de brinquedo era muito maior do que o barco de brinquedo. Gabrielle: O senhor gosta de meus brinquedos? Eu gosto, eles são como os brinquedos franceses, né? Nós estivemos na França. Eu não queria que ninguém estivesse na França comigo. Aqui ela estava brincando com um trenzinho de ma- deira muito pequeno; apanhou pedacinhos de madeira e arrumou-os como raios de um círculo, enumerando-os, um, dois, três . Estava empurrando uma varinha para dentro do tapete, tentando fazê-la ficar em pé, mas não o conseguia. Ajudei um pouco e movimentei o trem para a frente. Ela qu.ase atirou em mim o trator engatado com o vagão, porque The Piggle Aqui ela estava reprimindo uma experiência de realidade interior pessoal, somente informando-me vagamente sobre os pormenores do conteúdo Questão: protesto por causa das férias Referência ao estado de alheamento A to agressivo, pondo seus impulsos para Sétima Consulta não queria que eu fizesse aquilo. Em seguida, arrumou os brinquedos de maneira muito deliberada. Havia uma linha divisória de casinhas, em forma de S, com uma igreja em cada extremidade; do seu lado, ficavam ela própria e muitos objetos que representavam seu próprio eu; e do outro lado, i. e., do meu lado da linha em S, o trator que tinha atirado em mim, eu mesmo e outros objetos. Isso era uma represen· tação do não-eu. Era uma comunicação absolutamente calculada e que mostrava que ela tinha alcançado essa separação com relação a mim, como parte do estabeleci· mente do seu próprio eu. Era também uma defesa contra nova invasão. Alguma coisa atravessou a linha. Alguns vagões passaram do seu lado para o meu e ela falou qual- quer coisa sobre "ninguém sabe como ... " Por fun, ela, evidentemente, percebeu que algo tinha acontecido, porque começou a cantar; e quando falei qualquer coisa referente ao fato de ela ter coisas em seu interior, completou a frase dizendo que elas estavam . guardadas em "lugar seguro" (eu fiz uma anotação especial de que esta expressão foi dela própria). Piggle estava conver· sando com ela mesma: "Um menininho teve de ficar com uma menininha para ir com a menininha; Richard meu anúgo ; e Sarah (e mais outros nomes de meninas). Havia agora duas linhas formadas com casas e outros brinquedos, os quais se encontravam numa das extremidades. Uma das meninas chamava-se Clare1 . Penso que isso tinha relação com as férias de verão. Ela estava falando-me sobre um lugar onde Clare morava. Gabrielle: Lá é onde eu vou algumas vezes. Não, não vou. Deu-me a entender , que no momento, havia caxumba naquele lugar, o que a impossibilitava de ir lá. Gabrielle: Assim não posso ir até eles mais, mesmo que eu queira ir. Eu não podia ver eles e eles não po· diam vir me ver. Eu não sei o que fazer. Então, fui para a escola brincar. E gostei. Tudo estava atrapalhado lá, por causa da caxumba. Eles não podem sair ou tomar banho. Eles querem , mas a 2 Por mera coincidê ncia, Clare era o no me da Sra. \\' innicott! 87 fora e para dentro de mim O tema da· quarentena é o mesmo que o da fronte ira defensiva entre o eu e o não-eu. 88 The Piggle caxumba deles não deixa. Mamãe. está preocu- pada que eu pegue um resfriado dei a. Por isso mamãe falou "não", então ela perguntou mes- mo, eu estava terrivelmente ... eu não sei o que fazer. Eu: Não entendo [eu tinha interpretado em termos de estabelecimento de identidades.] Gabrielle: Agora, onde está aquelebarco bonitinho? Onde pus os barcos? [Olhamos, mas não conseguimos encontrá-los.] Será que eles estão no balde? Não, não pode ser. Olha para minha mão suja [ela estava com os barcos na mão.] Mas onde estão os outros? Eu queria saber para onde eles foram. Aqui tem outro . Eu costumava saber onde os barcos ficavam. Eu costúmava estar acostumada com o senhor, mas agora não estou. Estou crescida. Eles andam e falam . Houve qualquer comentário sobre um pavão. Gabrielle: Mas eles não entendem. É "Baa". Os pavões só balançam a cabeça como quando falamos não. Eles nunca falam "que coisa!"* Gabrielle cantou uma canção para ilustrar o emprego de "que coisa!" Em seguida, arrumou uma série completa de barcos, apontando em direção oposta a ela. "Quem vai em todos estes barcos?" Agora ela cantava uma canção que falava de barcos. Fez um novo arranjo com os barcos e eu fiz outro com pedacinhos de madeira. "Nós dois fizemos barcos". Agora vamos guardar. Por que o senhor tem tantos barquinhos para mim? É engraçado". Ela continuou com a brincadeira em que havia muitos barcos em frente dela, apontando em direção oposta a ela. Havia uma fileira semelhante de vagões, mais ao longe, e uma porção de outras coisas no lado da linha que a sepa- rava do trator e de mim . Todos os arranjos desse lado da Pavão = D. W. W. linha foram cuidadosamente colocados, de tal forma que Defesa: objetos um não tocava no outro. E ela cantava que tinha carros de internos diferen· cores diferentes. ciados entre o *No original : "Oh dear". Expressão exclamativa que indica espanto. (N. T.) Sétima Consulta Gabrielle: Pra que é que é esse cordão? Vamos colo.car ele aqui. Tive de cortá-lo num tamanho exato, e ela puxou a loco- motiva de uma extremidade a outra da sala. Gabrielle: Para onde foram as tesouras? [Porque eu tinha usado uma faca]. Eu: Deixei minha tesoura lá em cima [eu sempre carrego uma tesoura no bolso]. Ela voltou para os brinquedos. Eu: Você está pronta para ir outra vez [porque vi que ela estava arrumando tudo]. Gabrieel: Onde ficam as casas? [e assim por diante]. Deu-me um trenzinho e começou a atirar coisas para mim, porque, afmal de contas, eu estava do outro lado da barreira. "Pega aí", disse muitas vezes "aí". Ela agora, na brincadeira, deu a entender que eu estava dentro de uma caixa. Também deu-me qualquer coisa para guardar, algo de qu,e gostava. Gabrielle: Quando eu voltar quero ver que o senhor arrumou tudo. Ela parecia ter-se libertado de alguma coisa, e por isso anotei: "Livre finalmente". Era alguma coisa relacio- nada com o bebê-car. Falou: "Espera um instante. Agora vou limpar tudo. Lá van1os nós". Guardou os carros com muito cuidado. "Não quero estragá-los". Contou os tren- zinhos. "Qual o melhor para os brinquedos?" Colocou-os no chão bem arrumadinhos. "Arrumar os trens". Depois foi a vez das pedras: "Agora guardar mamãe. Onde fica isso , Sr. Winnicott?" E continuou: "Guardar tudo direitinho". Brincou um pouco com o dispositivo de lavar olho optrex, e então disse: "Quem pôs a coisa escura nos brinquedos?" Parecia estar quase terminando; apanhou o rolo de barban- te e colocou-o no balde. Havia uma caixa cheia de bugi- gangas. "Isso aqui, agora, onde fica isso? Agora está um pouquinho arrumado". Haviá sobrado uma caixa. Colo- 89 vivo e o morto, sob controle D.W.W. do outro lado Ansiedade dirigida pelo estabelecimento e aceilQção do superego 90 cou-a assim mesmo. "Agora. Arrumar o tapete agora. Como o tecido desse tapete é bonito! Quem deu ele para o senhor? O tapete duro [um tecido grosseiro forrava o "bonito" tapete oriental] não é assim tão bonito. Serve só para proteger o chão. Muito bonito o tecido desse tapete. E esse também [aproximando-se da cadeira] e esse". Foi até o divã e examinou o tecido do divã e das almofadas. Seguiu adiante e falou: "Essa cadeira é muito linda". Em seguida, foi encontrar-se com pai para levá-la para casa. COMENTÁRIOS 1. Ela como ~la mesma, não por motivo de proble- mas. 2. Afirmação clara do eu e do não-eu . 3. Tentativas de intercomunicação. 4 .. Quarentena. Barreira defensiva entre o eu e o não-eu. 5. Controle dos objetos externos pela organização. 6. A objetividade com referência aos objetos externos. A tranferência positiva era agora parcialmente para um Sr. Winnicott real (isto é, não terapeuta) e sua sala (a esposa). É de se esperar que os fenômenos pretos também se transformem em aspectos de objetos do mundo real, exter- no ao seu eu e separado dela. O preto perseguidor pertence aos resíduos do amál- gama de forma regressiva, em defesa organizada. , CARTA DOS PAIS "Gabrielle gostaria de vê-lo outra vez; acredito que com bastante urgência, embora hesite em pedir. Ela sugeriu que eu devia mandar-lhe um presente . Queria também man- dar um presente para uma senhora que costumava trabalhar para nós, de quem ela gostava muito, e que nos deixou.3 "O tema da mamãe preta vem à tona de vez em quan- The Piggle 3 A gratidão implica aceitação da separação, bem como do princípio da realidade, um fruto da desilusão. D.W.W. Sétima Consulta do, mas de maneira diferente: 'Não escrevi para a mamãe preta ... Ela me deu um vaso lindo com alguma coisa den- tro que cresce' (Wattie, nossa faxineira, uma senhora de meia idade, querida por todos nós, deu-lhe um bulbo dentro de uma jarra de vidro). 'Eu tenho medo da mamãe preta. Não paguei a ela. Ela me deu um cálice lindo de madeira'. Pagar à mamãe preta tem sido mencionado com muita freqüência. "Recentemente começou a ter outra vez problemas para dormir . Precisa ter todas as suas bonecas, ursinhos e livros na cama, mal sobrando-lhe um lugar onde deitar-se. Durante o dia vem, ultimamente, demonstrando tendências para proceder mal, como se nossa autoridade e nossa pessoa de nada valessem. Talvez tenhamos sido um pouco relaxa- dos em nossa firmeza e defesa de nossos direitos, o que estamos tentando corrigir. Mas, quando Gabrielle está bem, está, de fato, muito bem.4 91 4 Dificuldade para lidar com a criança doente que está recuperando·se. A questão : quando ser firme e agir como se tratasse de criança normal? I. e., recuperação do super- ego patológico para se r uma criança espontânea no contexto familiar. D.W.W. OITAVA CONSULTA (1 de dezembro de 1964) Gabrielle (agora com 3 anos e 3 meses de idade) en- trou e disse : "Eu vou brincar primeiro com esses brinque- dos, depois com esse brinquedinho bonito". Ela trouxera um soldado de plástico bem grande - "Isso é bom. Vamos colocar eles todos na cidadezinha bonita". Fiz referências à existência também de coisas desagra- dáveis. Ela pegou o trator e disse: "Esse é bonito. Susan também tem um cachorro". Pegou um barbante e disse que o trator poderia ser amarrado ao trenzinho. "Nós an- damos no trem", e colocou o trenzinho atrás de nós (tentou mostrar que era espirituosa; havia outros indícios de analidade no material). "Muitos trenzinhos o senhor tem, Sr. Winnicott" * . Manifestou vontade de que eu a ajudasse a amarrar o barbante. Gabrielle: Isso é bom. Eu podia ter vindo aqui de tarde, né? Isso ia ser bom. Só pra visitar o senhor [ela estava colocando mais trenzinhos atrás dos outros trenzinhos]. Não empurra eles pra longe não, trenzinho. Eu: Onde moram os trenzinhos do Winnicott, aqui ou dentro de Gabrielle? Gabn"elle: Dentro dali [ela apontou]. O que que a gente põe nesse trenzinho? E nesse outro? [Achou um gancho que pertencia a um vagão]. Quando eu pus um trenzinho - ah! ah! ah! eu quase esma· guei o soldado e fiz ele chorar. Ele vem da minha casa. Oh! que trenzinho bonito ali atrás. *Ordem inversa no original. (N. T.) Tema da negação do que é desagradável 94 The Piggle Onde é a estação, Sr. Winnicott? [montei duas cercas.] Sim, aquela é a estação [ela estava unindo os vagões]. Essa é a estação da estrada de ferro. Eu recebo ajuda do Sr. Winnicott. O que é aquilo? Eu: Para bagageme outras coisas. Gabrielle: Esse aqui é um outro trenzinho velho com uma locomotiva grande. Eu tenho um sapato novo bonito. Esse vagão é para bagagem. É melhor colocar ele aqui (ela estava arrumando os vagões e a bagagem]. Susan é uma grande amolação. Quebra-cabeça muito complicado*. Ela chega perto e atrapalha tudo. Eu empurrei ela muitas vezes e .ela chegava perto. Ela é uma amolação. Quando ela for uma Susan maior, ela vai poder fazer o que eu faço. Ela fica só chegando perto e me atrapalhando. Eu queria um bebê novo que não chegasse perto e não levasse as coisas embora. Referi-me ao fato de fazê-la ficar preta. Gabriel/e: Não, faz ela chorar. Então eu grito alto, eu fico com muita raiva e eu grito m\lis alto, e ela chora outra vez, e então mamãe e papai ficam com raiva. Ela é como Kiko, que é um urso selvagem da França. Uma 'vez eles dois fizeram um urso como Kiko. Tinha uma mamãe Kiko carinhosa e bebê** estava do lado de fora da jaula e ela estava na jaula. Ela era enorme como um bebê dentro de uma mamãe. O bebê Kiko não ficou na jaula. Os macacos ficam, e leões e ursos. Eu: Que mais? Gabriel/e: Vacas e gírrafas, não. Cobras ficam. Cachorros ficam, eu acho, não. Gatos também. Nós temos um gato preto. Ele vem me ver toda noite. Eu vou para o apartamento. Tem o gato preto. Eu faço .carinho nele. Às vezes ele fica na *No original, "jigsaw puzzle", que é um quebra-cabeça formado por peças tão pe· quenas e irregulares que têm de ser cortadas com uma serra tico-tico ("jigsaw"). (N. T.) **Artigo omitido também no original. (N. T.) Oitava Consulta minha casa. A mamãe dá coisa de comer pra ele. Pra que que é isso? [Era um pedaço torto da parte fmal de uma casa]. Por que que isso tá assim? Isso foi feito de madeira torta. Eu: Feito por um homem torto [lembrando-me da canção infantil e reconstituindo a estória do fim para o princípio].* Nesse momento, ela estava comendo o homem de plástico. Eu disse que ela estava comendo o homem, por- que ela queria comer-me. Gabrielle: Onde que ele fica? Ele podia entrar na ca- sinha. Na torta não, nessa aqui [uma igreja] ou nessa aqui. É uma casa bem bonita. Reclinou-se no carneirinho. Continuou olhando para o soldado ao lado do trenzinho. Gabrielle: Esse cachorro é um bobo [o carneirinho ]. Quem amarrou uma fita no pescoço dele? · Tá bonito. Eu também sei amarrar fita, mas o bebê não. Susan não capaz.** Às vezes eu amarro um vestidinho em volta do meu bebê para fazer ele ficar bonito. E então eu fui com ele fazer compras. Oh! quem fez isso? [o outro brinquedo macio, o veadinho]. Eles não ficam em pé. Sim, eles ficam. Cachorros bonzinhos. Ela estava equilibrando-os, e nós latíamos e rosnáva- mos um para o outro. Falei alguma coisa sobre ela e o bebê Sush. Gabrielle: O senhor sabe que Susan era rabugenta [e ela produziu sons indicativos de mau humor], ela é rabugenta mesmo e ela chora. Quando eu estou com um pouco de raiva, eu choro um pouco. Eu choro de noite com os dedos na 95 * Canções infantis com reiteração de uma mesma idéia (o homem torto, mora na casa torta, feita de madeira torta, etc.). (N. T.) ** Construção elíptica no originaL (N. T.) 96 boca. Eu tenho de chorar com a boca aberta. De onde que é isso? Talvez uma rodinha que soltou de um vagão. Esse balde devia estar aqui. Essas casas são bonitas. Eu estou fazendo uma casinha pro cachorro. Todas as casas são pros cachorros. Eles brigam dentro da casa. Um outro cachorro entra. Aqui tem uma.outra casa [era uma casa separada]. Falei sobre a necessidade de ela e Susan terem quartos separados ou casas separadas, porque elas brigam. Gabrielle: Quando eu crescer, eu vou ficar velha antes que a Mamãe seja velha, antes' que ela seja velha. Pra que que é isso? [Pegou novamente o lava-olho e exàminou-o ]. Se a mamãe ficasse velha, eu ia ficar velha também. Faça isso virar uma casi- nha. Diga: entrem todos os cachorros [em ou- tras palavras, cada um tem uma casa] assim eles não brigam. Geralmente eles brigam, latem, barulho horrível. .. Eu acho que o Papai quer que eu vou embora. Eu: Mas você livrou-se dos seus medos? Gabrielle: Eu morro de medo da Susan preta; então eu brinco com os brinquedos do senhor. Eu odeio Susan. Sim, eu odeio ela muito só quando ela leva meus brinquedos embora [subentendido: aqui, na casa do Dr. Winnicott, ela faz uso dos brinquedos e Susan é excluída]. Essa casa é tão bonita. Quando Susan tá bem vestida, ela é tão bonita. Então ela ia adorar essa casa, e o senhor sabe o que ela faz? Quando ela gosta de mim, ela vem e agacha e fala aaah e me beija. Quando a mamãe está pronta para ir à cidade, é bondade: dela~ quando Susan gosta de mim. Eu: Você odeia e gosta da Susan, ao mesmo tempo. Gabrielle: Quando nós brincamos com a lama, nós duas ficamos pretas. Nós duas tomamos banho, nós The Piggle Conteúdo de ansiedade: provavelmente ódio da irmã Ambivalência ~·ontida A lama são as fezes, * Construção ambígua também no original; não podemos precisar se "dela" se refere à mãe ou a Susan. (N. T.) Oitava Consulta duas trocamos nossas roupas . Então, Mamãe às vezes pensa que ela está enlameada e Susan também. Eu gosto de Susan. Papai gosta da Mamãe. Mamãe gosta mais de Susan. Papai gosta mais de mim. Será que eu devia sair e falar pro Papai que não quero ir embora ainda? Eu não consigo abrir a porta, ah, con- segui. Foi até o pai (40 minutos após o início). Voltou: "Sr. Winnicott, são quantas horas?" Respondi. "Mais cinco mi- nutos. Bata a porta!" (ela o fez). "Como que põe isso? Eu vesti muitas roupas" (enumerou todos os detalhes). "Eu estou com calor demais. Como . . . "(repetiu isso muitas vezes). "Susan tira o vestido quando ela está com vontade de tirar ele (apanhou o barbante). Nós podíamos colocar isso no trem. Quando nós gostamos de brincar, nós brin- camos de rode-rode-a-rosa ~ O senhor coloca ele" (eu o faço). "Nós podíamos cortar isso. Corta isso! (eu o faço). Obrigada, Sr. Winnicott." Ela estava brincando com o trenzinho e o barbante: "Assim tá melhor, tá curto demais. Eu tenho de abaixar um pouco." Falou-me sobre o trem verdadeiro no qual ela veio. Ele tinha de ser movido por um barbante muito, muito forte. Gabriel/e: Brinque por favor ... [Havia uma carroça para alguns soldados]. Susan às vezes vira as coisas de cabeça pra baixo. Eu não fico com raiva por causa disso [empurra o trenzinho para longe]. Oh. . . o senhor quer que eu arrume as coisas? [Alusão óbvia.] Eu: Pode deixar por minha conta. Gabrielle saiu com o pai, deixando por minha con- ta toda a confusão e desordem. Confronte isso com sua arrumação cuidadosa e negação da desordem, anterior- mente . Gabrielle mostrou agora uma confiança crescen- te em minha capacidade de tolerar desordem, sujeira, coisas internas, incontinência e raiva. *Brincadeira de roda semelhante a "Atirei o pau no gato ... ". (N. T.) 97 i. e., amor integrado 98 COMENTÁRIOS 1. As palavras-chave foram "bonito" e "bom", pr;esságios do que é desagradável. Desagradável = integra- ção da expulsão agressiva com a doação com amor = de- pende de como ele será recebido. 2. Começa a lidar com a perda, através da incorpo- ração e sua conseqüência: ansiedade e apoio com relação aos objetos interiores. Defesa: adorno da parte exterior do eu (fita- pescoço). 3. Liberação de alguns objetos internos da separação (defesa- v. sessões anteriores). 4. Ambivalência e lama. 5. Pela primeira vez deixa a confusão por minha conta. CARTA DOPAI "No caminho de volta para casa, Gabrielle agiu como um "bebezinho" a maior parte do tempo; seu polegar estava enfiado na boca, e ela só falava "beh-eh" (chupa o polegar bastante agora, tendo começado a fazê-lo somente quando Susan nasceu). "Ao chegar à casa, quis ver Susan e quase chorou quando a viu dormindo. Então insistiu em brincar com um quebra-cabeça ("jigsaw puzzle"), antes de se acomodar para o almoço; pareciaser-lhe muito significativo ajuntar as partes. "Hoje de manhã, ela acordou tremendo, porque tinha sonhado com a Susan preta. A Susan preta "queria me fazer ficar cansada, queria me fazer chorar pra ficar acordada". CARTA DOS PAIS "Apenas uma observação antes de o senhor ver Gabrielle. "Há alguns dias ela disse: "Eu paguei a mamãe preta", e desde então repetiu isso uma ou duas vezes. "[Observação da mãe:] "Pagar a mamãe preta" sem- pre me preocupou. Gostaria de saber até que ponto is_so The Piggle "Paguei" quer dizer: "Eu deixei a lama, as fezes e a Oitava Consulta não é uma aplacação, o uso de energias preciosas, o uso de uma parte do seu próprio eu para fazer calar a mamãe preta e, dessa forma, ter a recompensa de não se tornar preta. E eu gostaria de saber se esse tipo de coisa pode levar a defesas rígidas contra a confusão entre o bom e o preto, ou a uma confusão verdadeira. "A mamãe preta acomodou-se. Isso, todavia, não fez com que ela conseguisse dormir mais cedo. Agora é impor· tunada pela Susan preta. Ela vem para mim à noite, porque ela gosta de mim, mas ela é preta . "Na realidade Susan é muito meiga com Gabrielle, mas muito violenta quando deseja alguma coisa. Chega a ser cruelmente dominadora". CARTA DA MÃE "Gabrielle perguntou várias vezes pelo senhor. Es tá extraordinariamente bem, mas, recentemente, começou a preocupar-se outra vez à noite e, durante o dia, parece não ser ela própria. Insiste que a chamem de Susan (o nome da irmã), e não por seu próprio nome; fica também chupando o po· legar, mostrando-se desatenta e desinteressada pela coisas. Chamou-me novamente no meio da noite passada. "Com que você está preocupada?" - "Eu mesma, eu devia me fazer morta, mas eu não quero, porque eu sou tão bonita." "Manifestou também o desejo de que eu estivesse morta e dormindo com o pai dela, "e então eu penso, mas eu quero só essa mamãe". "Ela quer levar Susan ao senhor, "porque o Dr. Winnicott é um ótimo melhorador de bebês". "Quando ela faz alguma coisa, tal como pintura, desanima-se rapidamente e, então, atrapalha tudo. Adora limpar e aprimorar as coisas." CARTA DO DR. WINNICOTT AOS PAIS "Aflige-me não poder marcar uma hora para Gabrielle imediatamente. Este período é muito difícil para mim. Seria possível vocês dizerem a ela que pretendo vê-la, 99 desordem, o que foi aceito. " 100 embora não possa fazê-lo de imediato? Não hesitem em telefonar-me ou escrever-me se acharem que eu me esqueci . Vocês podem transmitir o meu carinho à Gabrielle" . CARTA DOS PAIS "Gabrielle tem pedido tão insistentemente para vê-lo e parece-nos tão deprirrúda ultimamente, que resolvemos comunicar-lhe. "Numa das noites passadas, ela pediu que verificás- semos os trens noturnos para Londres, a frm de que pudesse ir vê-lo, "porque eu não agüento esperar mais ." Ela está cada vez mais relutante em ir dormir. Uma razão apresentada por ela é não querer crescer para que, não crescendo , não tenha bebês (isso mostra uma mudança de atitude - anteriormente ela desejava' ter bebês). Mais recentemente, no entanto, não quer dorrrúr, porque "eu quero sentir viva". "Chupa o polegar constantemente, e, em geral, parece triste e tensa. Acorda bem cedo pela manhã e, também, durante a noite, com as preocupações com a "mamãe preta" . "Tivemos de prometer à Gabrielle que lhe escrevería- mos; achamos também que alguma coisa deve ser feita para ajudá-la. Em anexo vai uma pintura feita hoje de manhã e que Gabrielle insistentemente deseja enviar-lhe". CARTA DOS PAIS "Sentimo-nos muito aliviados ao saber que o senhor conseguiu um horário para Gabrielle. Parece ter feito grande diferença para ela, quando lhe dissemos que iria vê-lo. "Assim eu posso pôr pra fora todas as minhas preocupações - mas não vai ter temposuficiente". Ela parou de chupar o polegar durante toda aquela manhã. "Gostaríamos de falar-lhe sobre uma preocupàção especial com relação à Gabrielle, mas não sabemos bem como explicar. Parece-nos que ela tem problemas com sua identidade. Ela não adrrúte ser ela própria, negando aberta- mente que tinha mordido as nádegas de Susan; ou ela é The Piggle Oitava Consulta Susan, recusando-se ser chamada por seu próprio nome, fazendo poças no chão e choramingando. "Há também uma parte dela que nos parece tão surpreendentemente amadurecida, que pode ocorrer que nossa resposta gere nela dificuldade em unir as duas partes distintas. "Ela está com um resfriado forte e tossindo. Espero que não haja inconveniente em levá-la". OBSERVAÇÃO DA MÃE "Não entendo absolutamente por que ela teve tanto problema com sua identidade e teve que ser a mamãe ou Susan, não a Piggle. Quando assoa o nariz, refere-se ao resfriado de Susan. Recordo-me de que mesmo naquela época em que respondia por seu próprio nome, ela dizia como Susan estava, quando lhe perguntavam como ela estava passando. Gostaria de saber se isso está relacionado com o fato de ela ter saído cedo do seu consultório e com o comentário "eu pus minhas preocupações ruins dentro do Dr. Winnicott, e peguei boas preocupações" - ou algo semelhante". 101 NONA CONSULTA (29 de janeiro de 1965) Gabrielle (agora com três anos e quatro meses) foi logo para a sala, em direção aos brinquedos, permitindo que o pai fosse para a sala de espera. Gabrielle: Eu já vi ele antes várias vezes [quando pegou um dos animais macios da confusão geral de brinquedos pequenos. Apanhando alguns tren- zinhos:] Isso aqui é de encaixar no vagão; às vezes Susan fica mesmo excitada de manhã. Eu grito para os adultos : "Susan tá excitada!" Ela fala: "Minha irmã grande tá de pé." Ela acorda mamãe e papai de noite; um monstri· nho. Mama! Papa! Ela tem de tomar uma ma- madeira de noite! [Quase descrevendo-me Susan ao invés de ela própria.] Durante todo esse período, ela estava ocupada com os brinquedos : "Não tem nada para encaixar nesse aqui" (mos- trando-me uma vagão sem gancho). "Esse tá todo bom ... " Tirou algo da desordem geral . Falei : "Lava-olho" (era o lava-olho Optrex azul, pelo qual ela sempre se interessou). Tirou algumas coisas do balde. Ela estava com um resfriado horrível e queria um lenço de papel, que lhe entreguei. Mas, na sua conversa, isso se misturava ao assunto sobre vagões. Ao assoar o nariz, ela falou : "Susan está com um resfriado forte". Eu: Imagino que eu estarei espirrando amanhã. Gabrielle: O senhor estará espirrando amanhã. Eu sei, Sr. Winnicott, o senhor encaixa isso aqui. 104 The Piggle Mostrei-lhe que ela estava tentando formar algo unindo muitas partes, e que isso significava formar alguma coisa unindo Susan, Winnicott, mamãe e papai. Essas Desenvolvimento coisas estavam separadas dentro dela, e ela não conseguia de conceitos sobre reuni-las em uma só coisa. Agora ela estava cantando, en- objetos totais quanto empurrava o trem, e segurou o barbante que estava todo enrolado numa das locomotivas de madeira. Referiu-se a uma embolação e fez com que eu a ajudasse . Gabrielle: Um pedaço de barbante. Põe ele lá. [Ela conver- sava consigo mesma]. Nós decidimos que Susan é de fato um monstrinho. Nós chamamos ela de Senhora Roçatudo. Simão e Rei 1 chutatudo ao redor e ao redor da fogueira; uma meni- ninha assando castanhas. Essa menininha tá demorando muito [evidentemente um comen- tário do pai sobre Susan]. Sobre a mamãe preta . Ela vem toda noite. Eu não posso fazer nada. Ela é muito cheia de ca- prichos. Ela vai pra minha cama. Eu não posso encostar nela. "Não, essa é minha cama. Eu vou ficar com ela pra mim. Eu tenho de dormir nela". Papai e mamãe estão na cama num outro quarto. "Não, essa é minha cama. Não! Não! Não! Essa é minha cama". Essa é a mamãe preta. Alguém tá querendo fazer bonito. Duas molequinhas [outra vez, evidentemente, um comentário de alguém sobre as duas crianças]. Papai pode dizer que eu sou maldosa. Eu: O que é ser maldosa? 1 A canção infantil: "O Vellio SenhorSimão, o Rei E o jovem Senhor Simão, o Escudeiro E a vellia Senhora Roçatudo Chutaram o Senhor Chuta tudo, Ao redor da nossa fogueira"! No original: "Old Sir Simon the King And Y oung Sir Simon the squire And old Mrs. Hickabout Kicked Mr. K.ickabout Round about our coai fue". (N. T.) Nona Consulta Gabrielle: Pessoas que são teimosas. Eu sou teimosa às vezes. [Aqui houve uma referência à viagem de trem para Londres.] Nós fomos no metrô. Olha! [pegou o brinquedo que é o animal ma- cio.] Susan ficou triste porque Gabrielle ia para Londres. Oh! [voz monótona] quando minha irmã grande vai voltar? Ela precisa da minha ajuda para usar o peniquinho. Hoje de manhã, eu destampei a privada; ela veio pra perto de min1 ; queria que eu tirasse alguma coisa para fazer cocô. Eu tenho uma grande preocupação toda noite. É a mamãe preta. Eu quero minha cama, Ela não tem uma cama. Não tem capa de chuva, então eu tenho de ficar molhada. Ela não toma conta das suas menininhas. Eu: Você está falando sobre sua mãe e que ela não sabia cuidar de você. Gabrielle: Mamãe sabe sim. É a mamãe com o rosto preto muito horrendo. Eu: Você a odeia? Gabrielle: Eu não sei o que está acontecendo comigo. Meu Deus, a mamãe preta me empurra pra fora da cama, e eu tenho uma cama tão gostosa. "Não, Piggle, você não tem uma cama gostosa" [aqui ela estava "dentro de" uma experiência]. "Não Piggle, você não tem uma cama gostosa". Ela fica com raiva da man1ãe. "Você arrumou uma cama tão horrenda para esta menina hor- renda! "A mamãe preta gosta de mim. Ela acha que eu estou morta. Terrível [necessariamente sem clareza). É touro [?] * me ver. Ela não entende de crianças ou de bebês. A mamãe preta não entende de bebês. Eu: Sua mamãe não entendia de bebês quando ela teve você , mas você lhe ensinou a ser uma boa mãe para Susan. 1QS Separando a mãe boa da mãe má Gabrielle: Susan fica terrivelmente triste se eu vou fazer Experiência de compras, e ela fica feliz quando eu volto. Oh! contacto entre mamãe, mamãe, mamãe! [falou isso com grande a self e a mamãe *Conforme o original. (N. T.) 106 tristeza]. Eu não quero uma irmã grande e boa que beija, quando ela fica triste e para ir embo· ra. Tem brinquedos atrás das costas do senhor. É difícil tirar eles. Aqui estão algumas casas. Susan me acordou de noite uma vez. Eu: Oh! que amolação! Gabrielle estava engatando uma locomotiva a alguns vagões, mas com dificuldade, porque eles não queriam en· caixar·se. Houve, então, um longo período de atividade indefinida; admito que eu poderia estar sonolento nesse período em que nada defmido ocorria (minhas anotações aqui são deficientes, o que indica minha própria dificulda· de). Ela estava resmungando algo sobre trens, algo sobre rodas, e depois disse: "Eu estou com frio. Eu tinha umas luvas". Meu alheamento aqui também deve ser levado em consideração. Esse alheamento poderia estar relacionado com o material indefmido, devido ao alheamento de Ga· brielle. De certo modo, "captei" a projeção dela, ou "apre· endi" seu estado de espírito. Nesse ponto, fiz uma anotação definida de que eu estava com sono; mas não tenho a menor dúvida de que teria despertado se algo estivesse acontecen· do. Esse período vago terminou, quando ela pediu-me que desenhasse um tigre na lâmpada elétrica amarela. Gabrielle: Isso é lindo. Eu já vi isso antes. Eu vou mostrar papai. Muito tempo mamãe não queria um bebê, e depois ela queria um menino mas teve uma menina2 • Nós vamos ter um menino, quando nós crescermos. Eu e Susan. Nós vamos ter de achar um homem papai para casar. Aqui estão umas botas. O senhor ouviu o que eu disse, Sr. Winnicott? Eu tenho uns vagões lindos para a bagagem. Fiz algumas interpretações aqui, colocando Gabrielle na posição de menino em relação a Susan no triângulo edí· pico. Ela prosseguiu: "Essa é a minha cama, então eu não The Piggle boa (antes da vinda da irmã· zinha) agora perdida. Experi· ência de perda, lembrança da experiência boa. 2 Observação da mãe: Ela sabia que eu não me importava se fosse menino ou menina quando ela nasceu, e que eu queria um menino quando tive uma menina, isto é, quando Susan nasceu. Nona Consulta posso ir de trem para o Sr. Winnicott. Não, você não quer ir para o Sr. Winnicott. Ele realmente entende mesmo de sonhos ruins. Não, ele não entende. Ele entende. Não, ele não entende". (Esse diálogo era entre ela mesma e uma outra parte do seu próprio eu). "Ele não quer que eu me livre dela". Referi-me à mamãe preta como a um sonho, tentando deixar bem claro para Gabrielle que a man1ãe preta pertence ao sonho, e que, ao acordar, há as idéias contrastantes da mamãe preta e das pessoas reais. Havia chegado um momen- to em que podíamos conversar sobre sonhos, ao invés de uma realidade interior, ilusoriamente "real" internamente. Gabrielle: Eu tava deitada completamente imóvel com minha espingarda. Eu tentei atirar nela. Ela simplesmente foi embora. O senhor sabe o que que as pessoas fazem comigo? Eu tava dormindo. Eu não conseguia conversar. Foi só um sonho. Eu. Sim, era um sonho com a mamãe preta no sonho. Perguntei-lhe se desejava que a mãe má fosse uma pessoa de verdade ou uma pessoa de sonhos. Gabrielle: O senhor sabe que na TV tem pessoas que atiram? (nesse momento ela "atirou", em- purrando o dedo muitas vezes no buraco na barriga do veadinho.] Eu queria saber por que ela fez um barullio tão esquisito. Alguém pôs palha dentro dela. Ela está chorando. Ela não está pronta pra fazer bebês. O senhor recebeu o cartão que eu mandei? Eu não queria dizer nada. O senhor sabe o que é que eu tenho? Eu tenho alguns dominós para ... [mencionou o nome de um menininho da vizinhança. Ela esta- va brincando com navios.] Alguém atirando e então eles não conseguem ficar em pé (pegou um vagão verde]. Essa cor é bonita (produziu um som melodioso]. Susan às vezes me faz cócegas. Gabrielle, então , falou alguma coisa parecida com 107 108 "Gagaguer". Isso estava relacionado com o diálogo entre ela e Susan: "O que é isso?" (Era um pedaço de uma cerca). "Sr. Winnicott, eu não posso ficar aqui muito mais tempo, então . o senhor podia me ver outro dia?" Seria fácil supor que ela estava insatisfeita comigo porque eu estivera com sono, mas, na realidade, é provável que todo o episódio (mesmo incluindo minha sonolência) estivesse relacionado com a grande ansiedade de Gabrielle, o que tornava impossível uma comunicação clara. A an- siedade estava certamente ligada ao sonho com a mamãe preta. Nesse momento, fiz indagações sobre sonhos e ela · disse: "Eu sonhei que ela estava morta. Ela não tava lá". Nesse instante fez algo que, tenho certeza, era altamente significativo, seja lá o que viesse a simbolizar. Minha afir- mação prende-se ao fato de ter havido uma alteração geral na qualidade da sessão. Tinha-se a impressão de que tudo mais havia parado para que isso acontecesse. Ela pegou o lava-olho azul e o colocava e tirava da boca, produzindo ruídos de sucção, e poder-se-ia dizer que ela sentiu algo muito próximo a um orgasmo generalizado. Gabrielle: Eu gostava muito dela. Baaah. Isso é bom. Quem atirou na mamãe? Papai tinha uma espin- garda, e ela está quebrada. A mamãe preta é mi- nha mamãe ruim. Eu gostava da mamãe preta [isso era um sonho representado sob a forma de brinquedo. Ela prosseguiu, falando sobre o vagão bonito:] Vamos brincar mais. Foi nesse instante que eu disse que estava na hora de ir. ·Em outras palavras, a ansiedade tinha sido superada de al- guma forma, durante a sessão - era um novo estágio para atingir a ambivalência. À noite, os pais telefonaram-me para perguntar se eu desejava fazer algum relato; disse que a sessão havia sido de difícil compreensão, mas que tudo convergiu para um ponto em que a mamãe preta morreu com tiros. Nessa situa- ção, a mamãe preta é a mãe boa que foi perdida. O inciden- te com o lava-olho e a experiência orgásticapareceram-me o ponto em que Gabrielle descobriu a mãe boa perdida juntamente com sua própria capacidade orgástica, a qual foi evidentemente perdida com a mãe boa. The Piggle Ansiedade rela- cionada com um tema ainda obscuro Este é o elemento significativo da experiência comportamental total da criança com o setting analftico Preto, agora, torna-se a negação da mamãe lumi- nosa ou branca ou idealizada da era pré-ambiva- lente, da mãe como um objeto subjetivo Nona Consulta OBSERVAÇÃO Há agora uma lembrança de uma mãe real; orgiasti- camente conúda e também morta com tiros em ambiva- lência, substituindo a divisão mais primitiva entre a mãe boa e a mãe preta, relacionadas entre si em decorrência da divisão entre o subjetivo e o que é objetivamente perce- bido. Alguns dias depois, os pais telefonaram-me para relatar uma grande mudança na criança. Tinha-se tornado "uma pessoa mais espirituosa e urna criança com mais entusiasmo". Agora brincava com a irmãzinha e sentia-se menos perseguida. A conseqüência disso é que a irmã- zinha não a agredia tanto. Tinha-se tomado carinhosa com a mãe e conseguia brincar com ela mais do que anterior- mente. Ela disse espontaneamente: "Eu passei núnhas preocupações ruins para o Dr. Winnicott e peguei umas preocupações boas" (beneficiando-se da nova separação de identidade). Essa melhora durou três semanas. Depois, a criança começou a preocupar-se novamente com a mamãe preta. Durante essas três semanas, houve tanta melhora que os pais se animaram. A criança tinha ficado doente fisicamen- te, mas, apesar disso, continuou mais cheia de vida do que antes e brincava com sua irmã. Ela tinha falado repetidas vezes : "Quando é o aniversário do Winnicott? Eu quero mandar um presente para ele, mas não pode ser embrulha- do". Certa vez, ela disse à mãe: "Você vira uma mamãe pre- ta, quando você está com raiva" . Na camada mais profunda, no entanto, a mamãe preta é a mamãe boa original ou sub- jetiva. COMENTÁRIOS (Um resfriado forte.) 1. Problema com objetos interiores ou objetos de sua experiência atual, em termos da realidade psíquica interna. 2. Mamãe preta: são rivais com relação à cama, con- ceito de ser "maldosa". 3. Mamãe preta como uma versão cindida da mãe, aquela que não compreende os bebês, ou aquela que os 109 Embrulhado significaria obscurecido por mecanismos de defesa, tal qual o significado do seu brinquedo, quando ela se mostra a/heÜJ ao mesmo 11 o compreende tão bem que sua ausência ou perda faz tudo ficar preto. 4. Elemento positivo na mamãe preta. Tristeza em "mamãe, mamãe, mamãe" == lembrança. 5. Momentos de enfado na entrevista: recíproco. 6. Mamãe preta agora em termos de sonho: fantasia. 7. Lembrança transformando-se em experiência eró- tica oral com qualidade orgástica. 8. Morte da mamãe preta querida (morta com tiros). Isso é raiva da mamãe que foi perdida: acompanha a alterna- tiva de incorporação da raiva. 9. O presente para o Dr. Winnicott- sem embrulhar -isto é, aberto, natural, óbvio (bebê). CARTA DOS PAIS, ESCRITA PELA MÃE "Gabrielle gostaria que lhe escrevesse pedindo para vê-la. Não apresentou, como de costume, nenhuma razão, mas parece-me que ela considera isso urgente. Sua solici- tação foi feita na noite do meu aniversário; parece tê-la magoado muito que o aniversário não era dela, embora ela tenha feito o máximo para que o aniversário fosse um êxito; veio até mim várias vezes para dar-me tapinhas de brincadeiras e não conseguiu dornúr, "por causa do meu aniversário". "Pareceu-nos muito bem desde a última entrevista com o senhor; dá a impressão de uma robustez e certeza maiores do que anteriormente. "As únicas coisas negativas para relatar, das quais me recordo, são o fato de ela chupar o polegar e a forma pela qual chama atenção para sua pessoa na companhia de adultos, gritando numa linguagem inarticulada e ficando geralmente excitada; com as crianças, mostra-se tímida. "Com a irmãzinha ela é tão indulgente e compreensi- va que às vezes me envergonho de mim mesma". "Percebo que não lhe disse nada realmente impor- tante dessa vez; a vida dela é muito individualizada e vivida dentro do seu próprio eu. "(Desde que isso foi escrito, Gabrielle mandou dois desenhos para o senhor, que enviamos em anexo. No enve- The Piggle Ligação entre chupar o polegar e a experiência orgástica com o objeto Nona Consulta lope estava escrito 'Lembranças para o Sr. Winnicott')". CARTA DA MÃE "Gabrielle não voltou em absoluto ao que era antes. Dá·nos a impressão de estar muito mais integrada, embora, às vezes, isso pareça ser conseguido através de uma deter- minação inflexível dela. "Ela demonstrava urgência em querer vê-lo. "Como é que se pode levar bebês ao Dr. Winnicott? Eu quero levar Susan". Gostaríamos de saber até que ponto Susan passou a ser uma parte de Gabrielle. Está sempre falando sobre Susan, principalmente sobre seu atrevimento e travessuras, embora as pessoas lhe perguntem sobre ela própria. "Se eu estivesse alerta . às preocupações com ela, insistiria no seu freqüente e melancólico chupar de polega- res, e nas explosões de destruição proposital. Ao contrário de sua irmã, não é destruidora de modo fortuito; ela é meti- culosamente cuidadosa com suas coisas, separando-as e la- vando-as sempre. A destruição parece recair subitamente sobre ela, quando despedaça e rasga as coisas, dando a im- pressão de fazê-lo quase desapaixonadamente, apenas com uma determinação inflexível. "Mas ela também brinca agora com mais criatividade e com maior freqüência do que antes". 111 Tomada por uma agressão cindida e desintegrada D.bCHv1A CONSULTA (23 de março de 1965) Gabrielle (agora com três anos e seis meses) foi tra- zida pelo pai, e precisei fazê-la esperar um pouco. Ela tinha dito repetidas vezes: "Volte para seus brinquedos". Iniciou as atividades como de costume, nós dois no chão; ela estava balbuciando o tempo todo. Houve alguma coisa como: "O livro de Susan no trem. Meu livro favorito. Natalie Susan, um nome bonito. É italiano. Eu sou Deborah Gabrielle". Divertia-se ao articular esses nomes' . Ela estava entre os brinquedos e, ao apanhar um deles, disse: "Que diabo que é isso? Todos os tipos de coisas que eu não tenho . .. ". E, enquanto unia os vagões, disse : "Tantos brinquedos. Meu Deus, que quantidade de brinquedinhos". (Eu não tinha acrescentado brinquedo algum desde sua primeira visita , exceto o lavo-olho Optrex, conforme relatado). Conversava consigo mesma, muito satisfeita. Pros- seguiu : "Diacho, o que é ... ?" Ela estava apanhando um outro trenzinho e unindo os vagões. Comentei, nesse ponto, que ela estava unindo-nos, sua própria pessoa e a minha. Gabriel/e: No trem ... suco de maçã . .. nós divertimos muito no trem, todos juntos. Tinha um trem longo, longo. Esse aqui é longo [houve um gesto com o braço para descever o comprimento]. Eu: Essa distância longa está relacionada com o tempo que passou entre hoje e sua última visita, e Gabrielle está demorando muito para desco· brir se eu estou vivo. 1 Confronte com a orgástica colocação do objeto na boca na última sessão. 114 Isso pareceu-lhe uma espécie de indício. Gabriel/e: Quando é o seu aniversário? Eu quero dar al- guns presentes pro senhor. Nesse momento, senti-me preparado para a idéia de unir nascimento e morte . Eu: E o que você me diz do dia da minha morte? Gabriel/e: Nós vamos ver o que nós podemos arranjar para o senhor. Mamãe escreveu uma carta para a França; leva três horas quase um dia pra che- gar lá. Eu: Se eu estivesse morto, demoraria mais ainda. Gabriel/e: O senhor não ia abrir ela, porque o senhor esta- va morto. É horrível. Então fez referências à semelhança com um tiro, um embrulho amarrado com barbante. Abaixa-se o objeto e a pólvora explode; é muito perigoso; eles só morrem se uma cobra mordê-los. Prosseguiu de certa forma com o temada morte (anotado sem exatidão). Gabriel/e: É horrível. As cobras são terríveis. Mas só se alguém machucar elas. Aí elas mordem. Mamãe foi uma vez ao zoológico, e lá tinha um papagaio que falou : "Ei, querida" [ela falou isso como um papagaio, de modo muito engraçado]. Eu: Você quer dizer que havia outras coisas no zo- ológico, como cobras. Gabriel/e: Eu disse pro meu papai: "Essas são venenosas?" Eu já ia pôr a mão para fazer carinho nela, mas papai me puxou [houve aqui alguma referência a uma menininha:] A gente podia dizer que ela tava feliz pelo seu rosto. Eu: Você é uma menininha feliz? Gabrielle falou alguma coisa sobre Susan. Gabriel/e: Eu quero destruir se eu construo alguma coisa. Mas ela não quer fazer isso. Ela tomava mama- deira com um bico. Primeiro, eu comecei a 7he Piggle Lidando com o conceito do objeto retaliatório, relacionado com o sadismo oral e e ambivalência Décima Consulta dar de comer a ela, mas ela ia embora e não deF xava. Ela é um bebezinho bom. Eu: Às vezes você atira nela. Gabrielle: Não, às vezes eu fico em paz com ela. Eu: Esta é uma razão pela qual você gosta de vir aqui, para fugir dela. Gabrielle: Sim, eu não posso ficar muito tempo, porque daqui a pouco eu vou almoçar; então eu posso vir outro dia? Nessa ocasião, ela estava demonstrando sua ansiedade usual com relação ao fato de viver uma vida que é separada de Susan e ter-me para ela, o que lhe é tão importante. Prosseguiu: "Desculpa porque nós chegamos cedo, porque eu não podia mais ficar em casa, porque eu tava com muita vontade de ir para o Sr. Winnicott. Susan quer demais ir para o Sr. Winnicott. Ela fala "Não! Não! Não!" ; ao invés de "sim" da fala "não" e ela acorda de noite. Ela acorda todos os bebês. É terrível. Ela não me acorda. Eu nem escu- to. Eu quase não escuto ela. Ela fala? "Mamãe mamãe papo- la papai papai papola mamãe mamãe mamelo osso de galinha" . Gabrielle estava dispondo as casas, como as palavras, uma depois da outra, com uma torre no final: Acho que issÕera um trem .. Ela comentou : "Os cachorros não podem comer ossinhos, porque eles têm um tipo de lasca dentro deles". Nesse ponto, ela estava esfregando a mão debaiXo das rodas do trem, de uma maneira que parecia demonstrar algo que faz consigo própria. Ela disse: "Dói muito. O senhor tem um cachorro?" Eu: Não. Gabrielle: Vovó tem, ele chama Fofinho. Ela fez uma disposição com os brinquedos, espalhan- dos-os de tal forma que cada um ficou separado3 • Chamei sua atenção para o fato, e ela disse': "Sim", e depois algo 2 V. carta da mãe, logo depois da Segunda Consulta. 11 5 Ansiedade com relação. ao prazer comigo e meus brinque- dos, livre de Susan A caminho da masturbação2 3 Confronte com os brinquedos separados no seu lado da linha, quando estabele· cia sua própria identidade; v. Sétima Consulta. 116 sobre "bater outra vez". Tocou meu joelho, mas saiu pulando e dizendo: "Eu tenho de ir até o papai. Eu vou voltar. Eu quero trazer minha boneca." Era uma boneca mUito grande chamada Frances. Trouxe a boneca para que eu a cumprimentasse. Ela estava acariciando meu sapato. A ansiedade tinha-se manifestado paralelamente aos con- tactos afetuosos. Nesse sentido, a separação de cada objeto, uns dos outros, era uma defesa. O contacto comigo era fundamental, e apareceram várias modalidades de senti- mento de culpa com relação a isso - sentimento de culpa, porque Susan não estava lá; sentimento de culpa também pela destruição do objeto que foi encontrado -poder-se-ia dizer que, atrás dessa separação de um objeto do outro, havia um estado caótico interior composto de partes frag- mentadas do objeto. Gabriel/e: Uma noite eu tive um sonho ruim. Era sobre ... Eu fechei os olhos. Eu vi um cavalo bonito. Ele chamava Garanhão*. Ele tinha ouro nas orelhas e na crina. Ele era tão bonito. Ouro, ouro boni- to e brilhante [ela pôs a mão entre as pernas]. O cavalo bonito ia chegando e pisando no milho [ela explicou que o milho é um tipo de cereal). Eu: Você está descrevendo papai e mamãe, quando eles estão fazendo novos bebês, alguma coisa relacionada com o amor. Gabriel/e: Sim. Eu: Talvez onde a mamãe tem cabelo [referindo-se ao milho]. Então, ela falou algo sobre entrar no quarto do papai e da mamãe para fazer o cavalo parar de pisar no milho; interpondo-se entre eles. Acrescentou: "Às vezes eu tenho permissão de parar para o jantar", dando-me, dessa forma, um cenário real para o sonho no qual ela impede a relação sexual - também um cenário no qual Susan é excluída, uma vez que Susan representa uma complicação à qual ela não faz concessões. The Piggle Separação de um objeto do outro, e o oposto: o chocar-se contra Relato de um sonho *A palavra "Stallion" em inglês, que traduzimos por "Garanhão, denota simples- mente um cavalo destinado a reprodução, não tendo a conotação pejorativa do sentido figurado de "garanhão" em português. (N. T.) Décima Consulta Gabriel/e: Nós gostamos de ficar sentadas na cama, mas de manhã nós ficamos cansadas por causa disso [apanhando uma figura minúscula]. Esse homem não consegue sentar. Papai [confronte com Garanhão] é bonito. Gabrielle tinha agora disposto os brinquedos de modo diferente, com todas as árvores e figuras de pé; havia uma impressão geral de vida nessa disposição. Gabrielle: Papai é bonito. Tem um quadro na parede lá de casa com duas pessoas caminhando e alguém apenas parado lá em pé. Comparei essa descrição com o sonho no qual algo está pisando em alguma coisa. Eu: Você veio me falar sobre o garanhão que pisa no milho. Gabrielle fez nova disposição com os brinquedos, de tal forma que havia uma flla longa e curva de casas, e uma outra ma longa de casas parecia dirigir-se diretamente para dentro da curva. Ela referiu·se a Susan, que destruía tudo, dessa forma usando Susan como uma projeção de suas pró- prias idéias indesejáveis de destruição. Gabrielle: Susan abre as bolsas das mulheres e tira o pó-de-arroz e cheira, e ela atrapalha a mamãe, quando ela está vestindo. É horrível. Eu: Faz você ter vontade de atirar nela. Gabrielle: Mamãe tem uma estátua bonita. Nesse instante, ela pôs o cachorro ( carneirinho) de pé, mas apanhou também o outro cachorro grande e macio (veadinho), começando a espremê-lo para tirar a serragem de sua barriga, dando continuidade às atividades destrutivas da última sessão. Enfiou o dedo nele delibera- damente, puxando o enchimento que caiu no chão. Sua ansiedade manifestou-se pela busca de contacto com o·pai, ocasião em que ela saiu para dizer-lhe para não gritar "Tá na hora". 117 O trabalho da sessão 118 Eu: Hoje você veio sem ser chamada. Ela mostrava-se satisfeita, como se alguma coisa ti- vesse sido corrigida, e voltou para a disposição dos brin- quedos, colocando os animais e tudo mais de pé no tapete. Referiu-se a um segredo, e colocou as mãos entre as pernas. Gabriel/e: Querido Sr. Carregador. Eu estava lendo a re- vista "Everybody's" e fui levada para Crewe. Vou levar comigo no trem. Eu vou carregar o Sr. Crewe. Ela estava fazendo nova disposição com os brinquedos, de forma ordenada, e repetindo "Lendo a revista "Every- body's", fui levada para Crewe"4 . Gabriel/e: Não espere por mim. Vou pro Alabama tocando o meu bandolim*. Música bonita. Eu reconhecia as várias canções. Agora ela estava cantando de modo alegre e despreocupado, introduzindo suas próprias variações. Gabriel/e: O senhor podia ir passando algumas coisas para mim? Ele está fazendo seu brrrrrrh [signi- ficando fezes]. e ela esvaziou, tanto quanto pôde, a serragem da barriga do veadinho. Gabriel/e: Olha ele! Eu: Ele fez muito brrrrrh na cesta e no tapete. Gabriel/e: Desculpa. O senhor importa? Eu: Não. The Piggle Isso marca o fim da fuga 4 "0h Sr. Carregador, o que vou fazer? Eu estava lendo "Everybody's" e fui levada para Crewe" (slogan de propaganda comercial da época anteriorà Primeira Guerra Mundial). No original: "Oh Mr. Porter, whatever shall I do? I was reading Everybody's and got carried on to Crewe". * A tradução literal do trecho da canção seria "Vou pro Alabama com banjo no meu joelho". (N. T.) ( ' Décima Consulta Eu: Não. Gabriel/e: Cheira mesmo. Eu: Você está retirando os segredos dele. Ele ainda tem mais um pouco de brrmh. Gabriel/e [pouco depois]: Está na hora de ir? Piggle soltou um cheiro horrível. Eu: Soltar um cheiro é revelar segredos [ela pôs um pouco do brrrrrh no trator, nos vagões e em to- dos os lugares]. Coisas de ouro [relacionando com o quadro l Gabrielle, então, pegou todos os brinquedos e os ajun- tou, fazendo uma aglomeração. Eu: Agora todos estão em contacto um com o outro e nenhum está sozinho. Referiu-se ao cachorro esvaziado (veadinho): Gabrielle: Seja bondoso com ele. Deixa ele bater todo o leite e comer toda a comida. Eu: Agora você tem de ir logo. Gabriel/e: Eu tenho de ir agora [e comprimiu a serra- gem dentro do vagão). Eu vou tomar um trem para voltar. Agora nós temos de ir. Eu vou simplesmente deixar a confusão toda pro o senhor. Deixou também sua enorme boneca, Frances, porém vol- tou para apanhá-la, encontrando-me ainda (deliberadamen- te) assentado no chão, em meio à mesma confusão consi- derável que ela fizera. Na realidade não levou consigo nenhum trenzinho. COMENTÁRIOS 1. Fácil restabelecimento do relacionamento comu- nicado deliberadamente através do brinquedo. 2. Meu aniversário. Interpretação: dia da morte. 3. Separação (brinquedos separados), e o chocar e o bater como contacto. 4 . Sentimentos de culpa em decorrência dos impulsos 119 da fantasia intestinal para a idéia dos adultos e sua capacidade de dar a luz a bebês de verdade, isto é, aceitação do que está do lado de dentro, entre o comer e a defecação Contraste com a separação 120 destrutivos com relação ao bom objeto. 5. O mesmo, em termos do homem e da mulher, na experiência sexual. 6. Identificação com o homem, sadismo com relação à bàrriga e ao seio (recipiente). 7. Cheiros secretos e confusão ; dourado e bonito. 8. Coisas internas liberadas da função dupla- isto é, a de representar sua realidade psíquica interior, agora comu- nicável sob forma de sonho. CARTADA MÃE "Gabrielle gostaria de ver o senhor novamente; há algum tempo ela tem perguntado se o senhor poderia vê-la, e eu adiei bastante em levar isso ao seu conhecimento. "Sob certos aspectos, ela parece estar bem - come- çou a freqüentar uma escola maternal durante duas horas e meia por dia, o que adora. Ela brinca ao lado, ao invés de com, as crianças, e isso a satisfaz. No entanto, ela tem mui- tas ansiedades, e nós temos a impressão de que sempre tem dificuldades em usar todo o seu eu, e que uma parte parece permanecer presa e congelada. "Dar-lhe-ei uma descrição do que ocorreu no dia em que pediu urgentemente para vê-lo, caso isso esclareça alguma coisa. "Na noite anterior, pediu-me para mamar no meu seio. Ela o tinha pedido várias vezes, e eu protelava, mas dessa vez permiti que ela o fizesse. Sugava com grande prazer, em todas as posições e modos, com ansiedades ocasionais de estar mordendo-me. "Na noite seguinte, teve um sonho muito ruim, que a fez deixar o quarto, e foi encontrada soluçando debaixo de um tapete, num canapé, na manhã seguinte. Perguntou se as bruxas tinham seios. Ela disse que ela era tão travessa que seria uma ladra, quando crescesse, e Susan seria a chefe dos ladrões. "Na manhã seguinte, perguntou-me se eu tinha um pipi grande. Falou que ela achava que sim. Eu disse que eu era mulher como ela seria. "Eu acho que a senhora usa saias e blusas" (falou com dúvida); Perguntei de onde ela achava que eu tinha conseguido meu pipi grande. "O The Piggle Décima Consulta papai". "E o papai?" - "Dos alunos dele"*.- "Eu posso ver o Sr. Winnicott?" -Mais tarde: "É Doutor Winnicott? Ele melhora as pessoas?" - "Ele não faz você melhorar?" - "Não, ele só me escuta. Ele não me faz melhorar". "Quando nós viajamos recentemente, ela domúa num quarto ao lado do nosso, interligado por uma porta. Isso foi muito excitante para ela, e causou bastante problema". CARTADA MÃE "Meus agradecimentos pelo horário marcado para Gabrielle. Ultimamente ela tem ido a Londres muitas vezes para vê-lo, e é com dificuldade que a persuadimos de que não pode vê-lo exatamente no momento em que desejar. "Vista externamente, ela dá a impressão de estar bem sob muitos aspectos, porém mostra-se deprimida· com fre- qüência. "Não, eu não estou cansada, só triste". Quando a pressionamos, diz que é por causa da mamãe preta, mas não fala nada além disso. "Ultimamente tem havido conversas e especulações constantes sobre bebês". 121 *O original, "From his studentes" , é uma construção ambígua, que poderia também ser traduzida por "Das alunas dele". (N. T.) D:gCIMA-PRIMEIRA CONSULTA ( 16 de junho de 1965) Gabrielle (agora c.om três anos e nove meses) foi tra- zida pelo pai. Entrou na sala num estado que poderia ser cha- mado deleite tímido. Dirigiu-se imediatamente para os brin- quedos, como costumava fazer; conversava todo o tempo com uma voz acentuadamente adenoidal, começando por: "A ota noite eu acordei e tive um sonho com um trenzinho. Eu chamei Susan no quarto do lado. Parece que Susan entende. Foi aniversário dela, e ela agora tem dois anos". Continuou brincando com os trenzinhos, dizendo: "Agora nós precisamos de um vagão porque os trens não andam sem vagões. Susan entende melhor" (sugerindo "melhor do que D.W.W."). Gabriel/e: Ela não sabe falar. Eu: Seria melhor se eu não falasse? Gabriel/e: Se o senhor ouvisse, isso seria o melhor [ela estava dando andamento ao processo de unir as partes do trem]. Eu: É para eu falar ou ouvir? Gabriel/e: Ouvir! Às vezes Susan e eu ficamos caladas feito uma porta. Essa locomotiva não encaixa nes- se .. . [um dos ganchos não queria entrar no aro.] Eu estou fazendo isso aqui ficar muito . comprido. Nós vimos uns trens que não tinham isso atrás. A mão de Gabrielle acariciava a locomotiva que colo- . cara na parte de trás do trem que estava montando. Ela estava com uma respiração ruidosa, devido talvez à ade- nóide e à necessidade de respiração pela boca. Compare com a timidez inicial 124 Naquele momento, ela queria que eu a ajudasse com um gancho problemático; consegui alargar o aro com minha tesourinha. Enquanto eu estava de costas para ela, ela disse: "Dr. Winnicott, o senhor tem um paletó azul e o cabelo azul." Virei-me e vi que ela olhava o mundo através do co- pinho Optrex de vidro azul, aquele que fora altamente sigrú· ficativo na última vez que viera (de fato, agora havia dois deles). Agora ela voltara ao brinquedo com o trenzinho, colocando de lado pedaços de trens que não podiam ser engatados em decorrência de defeitos. Ela sussurrava "sopra trem"; "olha o que que tava aqui"; "sim, é gozado!' - e colocou o outro copinho Optrex azul sobre um dos vagões. Tinha ela, então, quatro conjuntos de trens; colocou esses copinhos nos olhos novamente e cantou: "Dois bal· dinhos colocados na parede./Dois baldinhos pendurados na parede." Mostrava-se bem descontraída, terminando a canção com um chiado: "Dez gatinhos pequenos foram ... " Ela uniu pedaços de trem para fazer um trem princi- pal, sussurrando e conversando consigo mesma, aglutinando as palavras e, às vezes, entoando canções infantis. Gabriel/e: Sally gira ao redor do cano da chaminé, num sábado à tarde. Olha esse trem comprido agora. Eu: O que você está me dizendo sobre este trem? [lembrando-me do meu papel de ouvinte.] Gabriel/e: É comprido feito uma cobra [ela disse isso várias vezes.] Eu: É como uma coisa grande do papai? Gabriel/e: Não, uma cobra. As cobras são venenosas se elas picam. Se a gente não sugar o sangue, o homem morre. Ela pode me picar. Sim, se eu mexer. Se eu não mexer, ela não memorde. Eu devo tomar cuidado então [pausa]. Esse trem é muito comprido [procurando mais vagões). Soprador sopra - bufa-bufa-bufa-soprador so· prador soprador [cantando] sopra bufa. Gabrielle cantou até o final a música "Sally ligue a chaleira" - alterando o último verso para alguma coisa relacionadà com "Susan tire-a outra vez". Gabriel/e: Susan não sabe falar "Sumiu", então ela fala The Piggle Sugerindo a transferência de seus senti· mentos com relação ao copo Optrex para mim como um todo. Identificação com o analista Aqui é um vislumbre de [e/ação e sadismo oral (v. abaixo) aparecendo de forma projetada Décima-Primeira Consulta "Miu". Ela é boba. Eu: Você também já teve dois anos e agora você tem quatro. Gabrie/le: Não, três e três quartos. Eu sou muito grande; eu não tenho quatro anos ainda. Eu: Você quer ter quatro anos? Gabrielle: Sim. Ah! Ah! Apanhou o objeto circular quebrado e brincou com ele, cantando. Gabrielle: Bata-o-bolo, bata-o-bolo, seu padeiro, Bata o bolo para mim muito ligeiro. Eu: Para que tamanha pressa? Gabrielle: Bem, ele tem que ficar pronto antes da meia- noite, quando todo mundo estiver deitado. Puxa ele e bata ele e faz ele com b. Põe no for- no para Susan e pra mim [ela repetia isso, substituindo "mamãe" por "Susan"]. Eu: Talvez as panquecas são os seios da mamãe? Gabrielle: Sim [disse-o sem convicção - talvez seria me- lhor eu ter dito "mamás"]. Vai soltar? [ela estava tentando colocar alguma coisa na parte fmal do trem]. Não quer pregar. Gabrielle, então, contou de um até "dezonze", tendo pulado alguns números. Houve um clímax no número oito, relacionado com o comprimento do trem. "Quanto que vai ser se eu colocar mais um, nove? Não, ver ser quatro" (isso parecia um disparate). "Ei, eu não posso entrar aqui". Então esticou o braço além de mim para apanhar o animal macio (veadinho), cujo interior ela praticamente esvaziara na última sessão. Pegou esse animal, agora colocado do ou- tro lado dos brinquedos, e sistematicamente esvaziou mais uma boa porção do enchimento, fazendo uma confusão razoavel. Verbalizou isso até certo ponto, falando sobre apanhar coisas do interior dos cachorrinhos e fazer uma confusão no chão. Gabrie/le: Vou fazer um pouco mais. Vou abrir o edre- dão. Ela vai ter que fazer um pouco mais. Cheira gostoso. Um cheiro gostoso de perfume. 125 Como se ela registrasse o número de sessões até agora 126 Por que o que tem do lado de dentro cheira bom? Bem, o senhor vê aqui, é de um monte de feno . [apanhando serragem com um dos copi- nhos]. Hoje é aniversário do menino do vizinho. Gabrielle falou que ele se chamava Bernard, e tam- bém sobre um outro chamado Gregory, etc. A essa altura,. havia uma grande confusão de serragem (ou feno seco, ou seja lá o que for). Gabriel/e: Agora tem bagunça em todo lugar. [Copinho de vidro no olho:] O senhor consegue me ver? Algum objeto caiu no chão. Gabriel/e: Foi bum no chão e fez um tremor na sala. Para acordar os trens pra eles andarem outra vez. Nós fomos num trem. Londres é tão longe. Eu: O que você está me dizendo através do trem é que suas partes formam Piggle, três e três quar- tos; e também é a coisa comprida do papai. Era um trem muito longo agora (ela tinha unido os carros e os vagões). Manejando o trem, ela fez com que ele voltasse um pouco e disse: "Nosso trem andou para trás (isto é, os trens nos quais ela e o pai vêm. Ela fizera uma curva aberta com o trem). Esse carro precisa de bar- bante". · Nós o arrumamos, para que ela pudesse puxar o tren- zinho. Mencionou a idéia de amarrá-lo, e fez gracejos com a palavra abocanhador, talvez porque eu estivesse usando a tesoura para cortar um pedaço daquela massa embaraçada de barbante para ela. Gabrielle disse, "Um pipi grande, cortado fora; não" (área obscura aqui). Isso estava rela- cionado com um sonho com trens. Pedi-lhe que falasse mais sobre o sonho. Gabriel/e: Puxando um trem comprido; oh, ele sai, faz ele tentar acertar alguma coisa, oh Deus. Agora começa tudo outra vez. Ela ajuntou todo o trem deliberadamente, dessa for- The Piggle Décima-Primeira Consulta ma desmontando-o e fazendo uma confusão, longe dela e na minha direção. No sonho, tudo se recomeça. Gabrielle: Um dia tinha uma bruxa, uma bruxa do mar, uma bruxa mulher, não uma bruxa homem [jogo de palavras]; horrível abraçadora-de- bebês. Eu não consigo achar o buraquinho para isso passar dentro dele . As mulheres têm dois buracos, uma para xixi e outro para bebês [nesse instante, ela pôs um trem numa carroça, como se por representação]. Pipi do papai dentro de um buraco de mo- ça; olha, saiu [referindo-se à chaminé do trem]. Então Gabrielle falou-me de umas crianças que colo- cam pedras na estrada de ferro . Um homem deu uma batida terrível. Os meninos eram levados. Eles gostavam de fazer isso. Eles estavam com raiva do pipi do papai? Gabrielle: Sim. Eram os homens que estavam tentando trabalhar na estrada de ferro, não era o maqui- nista. Ela estava manuseando o volante do trator, dizendo: "Eu vou sentar no banco do trator" (e ela o fez, embora o assento do trator tenha apenas uns dez centímetros d.e comprimento): "Eu estou dirigindo ele" (o trator estava debaixo dela e próximo do seu "buraco de moça"). Ela fez com que o trator andasse até o D.W.W. "Eu não consigo levantar. Eu levantei ele" . Nesse momento, ela fez um jogo muito rápido, primeiramente colocando o trator acima da posição do meu pênis, e depois subindo rapidamente para o peito (eu sabia que ela vira o seio da mãe recentemente e tivera grande reação). Ela estava fazendo jogos de palavras todo o tempo. Gabrielle: Tomam, tombam, tamborilam, gotas de chuva, eu ouço o trovão, eu ouço o trovão*. Gotas 127 * No original "Tipple, topple, pitter, patter, raindrops, I hear thunder, I hear thunder". (N. T.) 128 de chuva tamborilam. Aqui está um homem de óculos [eu estava com óculos, bem como o homenzinho de brinquedo]. Ele vai dirigir o trator. Esse homem é engraçado. Falei que ela estava rindo de mim por ser um homem com um pipi ao invés de seios. Ela dobrou a figura do ho- mem para trás e empurrou ·o dedo no lugar onde deveria estar o seu pênis, com o homem totalmente sob seu poder, dizendo: "Desenhe na lâmpada elétrica! " 1 • Desenhei o rosto de um homem como antes - ela disse alguma coisa que incluía "um pipi grande, como um seio". Gabriel/e: O que é isso? O que é isso? Eu: Você está com raiva do pipi do homem; ele não devia ter isso. Gabriel/e: O homem é um grande ladrão; ele é terrível. Eu disse que ela estava falando sobre o homem usar seu pipi de um modo terrível para fazer bebês (lembrando- me do esvaziamento do cachorrinho). Nesse instante, iniciou deliberadamente um novo brinquedo, colocando uma longa ma de casas num ângulo com outra ma, para que houvesse um quintal (estava na hora, mas ela não estava pronta para ir ainda). Eu: O que eu ouvi hoje? Gabriel/e: Um dos vizinhos fala, "Você me fala que eu lhe falo." Repetiu isso várias vezes porque se divertia. Ignorou meu pedido para que ela se fosse, porque ela não tinha terminado. Fez uma procura deliberada dos animais peque- nos e, ao encontrá-los, colocou-os no meio do quintal. Fiz aí minha interpretação principal, e pareceu-me ser o que ela desejava. Eu: O homem é um ladrão. Ele rouba os seios da mãe. Ele, então, usa o seio roubado como uma coisa comprida (como o trem), um pipi, que ele 1 V. Décima Consulta. The Piggle Controle de um homem: de- fesa contra a ansiedade com relação à função sexual masculina sádi· ca e cindida Inveja do pênis Um piada boa Trabalho prin- cipal da sessão Décima-Primeira Consulta coloca no buraco de bebê da moça, e lá dentro ele planta bebês [animais no brinquedo]. Assim, ele não se sente tão mal em ser um ladrão.2 Ela estava então pronta para ir e foi buscar o pai. Gabrielle: É melhor nós irmosagora, porque nosso trem vai estar nos esperando para ir, e é melhor nós corrermos. E não se convenceu, quando o pai tentou explicar que não havia pressa, porque eles teriam que esperar de qualquer forma. Piggle mostrava-se muito feliz, quando saiu com o pai, e não precisou de dar adeus mais do que normalmente. COMENTÁRIOS 1. D.W.W. para ouvir. Inclui controle sobre D.W.W. 2. Controle da função sexual masculina cindida medo do pênis , incluindo: 3. Inveja do pênis mostrada claramente. 4. Interpretação do homem e de sua função sexual masculina, incluindo fantasia sexual, isto é, fun da função sexual cindida. 5. Incluindo a reparação do homem com relação ao sentimento de culpa decorrente da agressividade (v. sessões anteriores e sua própria posição depressiva). CARTA DA MÃE 10 de julho de 1965 "Gabrielle pediu para vê-lo novamente. Voltou subita· mente à tristeza e ao tédio depois de se mostrar notadamente tão bem. "Uma das coisas que achei merecedora de preocupação é a ferocidade com que ela se bate, quando a repreendo, por exemplo, por fazer barulho e acordar a irmã. Ela fica excessivamente "boa" e depois tem desejos súbitos de fazer o mal a qualquer preço. É muito difícil enfrentar sua irmã, 2 V. trabalho de Melanie Klein sobre a reparação e a potência masculina. 129 130 cujo choro é tão cheio de cólera e reprovação desalentada, que Gabrielle fica imóvel com as mãos nos ouvidos depois de se defender, e sempre desiste . Elas se dão excessivamente bem e dividem espontaneamente entre si qualquer pilhagem, como chocolate ou biscoito. "Há um outro assunto do qual gostaria de tratar com o senhor; são suas idéias sobre ser uma menina. Ela pergun- tou onde é o buraco por onde o bebê entra, e então pergun- tou se eu também queria ser um menino; ela deseja bastante ser menino, mas não explicou por quê. Diz que na escola ela não gosta "dos meninos". Não sei se isso seria relevante; nós perdemos a chave do banheiro; dessa forma, quando o pai está no banho, Gabrielle e Susan amontoam-se no banho e ficam um pouco excitadas." CARTA MINHA PARA OS PAIS 12 de julho de 1965 "Devo perdir-lhe para dizer à Gabrielle que não posso vê-la no momento. Será necessário esperar até setembro3 . "Não me desespero em absoluto pelo rumO que as coisas estão tomando. As crianças têm realmente que lidar com seus problemas em casa, e não me surpreenderia se Gabrielle achasse um caminho dentro da fase atual. Natural- mente ela pensa em vir ver-me porque já o fez em muitas ocasiões, e eu certamente a verei novamente, embora não o faça no momento". CARTA DA MÃE 13 de julho de 1965 "Eu estava apenas transmitindo o pedido de Gabrielle e não dando a minha opinião sobre a necessidade de ela vê-lo. Isso eu acho quase impossível de avaliar, uma vez que eu estou muito envolvida. "Gabrielle está deprimida e chorosa, mas tenho certeza de que ela é bem capaz de enfrentar isso e outras coisas a curto prazo. A úrúca coisa realmente importante e difícil de avaliar é se a longo prazo uma parte suficiente do seu eu estará disponível para que ela faça um uso criativo da mesma. The Piggle 3 O verão de 1965 foi um período que exigiu demais de mim e que incluiu uma temporada de doença. Décima-Primeira Consulta Ela parece-me artificial às vezes, diferente dela mesma, como se não houvesse investido todo o seu eu no que faz e diz. Mas talvez não seja este o momento de falar-lhe sobre essas preocupações a longo prazo. "O recado em anexo, de Gabrielle, é exatamente conforme as instruções dela". RECADO DE GABRIELLE (DITADO) "Querido Sr. Winnicott, Querido Sr. Winnicott, Que- rido Sr. Winnicott, eu espero que o senhor esteja bem (não sei escrever)". CARTA DA MÃE (DOIS MESES MAIS TARDE) "Gabrielle parece bem adaptada agora, embora eu não saiba em que base. Ela tornou-se uma menininha muito ordeira, e que exerce muito controle, com muitas conside- rações prudentes antes de entrar em algum curso de ação. "Ela adora a escola maternal - onde fica duas horas e meia por dia - e anseia por um amigo, mas acha muito difícil fazer amizades e, geralmente , brinca sozinha, embora brinque de forma criativa. Ela parece um pouco dependente da companhla da irmã e é muito íntima dela. "Ela tem agora uma visão muito mais benevolente da mãe do que anteriormente. "Como sempre , surpreendem-me o seu insight com relação às pessoas e às situações (incluindo a minha própria pessoa) e a sua capacidade de formular suas percepções. "Quando o nome do senhor é mencionado, suas feições se endurecem e ela muda de assunto. Essa foi tam- bém sua reação, quando lhe disse que o senhor telefonou para informar-se dela (mas, via de regra, não menciono nossas conversas por telefone). Alguns rrúnutos depois disso , disse-me 1 razão pela qual ela pensava que a "Wattie" - nossa muito estimada ex-faxineira - foi embora ; é por- que a Wattie parou de gostar de Gabrielle. Diz também que as crianças da escola não gostam dela. · "Ela passou por um período muito difícil no final de julho e início de agosto; parecia muito deprimida e ficava . 131 132 acordada metade da noite . A princípio, ela não conseguia acreditar que não poderia vê-lo. Ela tinha um sonho recorren- te, em que sua mãe e o pai foram cortados em pequenos pe- daços e fervidos em algum recipiente; sempre que fechava os olhos, a imagem voltava, o que a levava a tentar ficar acordada. "A conversa seguinte eu anotei no dia 7 de agosto, de- pois que isso já vinha acontecendo há certo tempo: "O sonho voltou, o dos pedaços". "Vocês não pode tentar ajuntá-los, melliorá-los?" "Não, não posso . Eles são muito pequenos, em lascas, e eu machuco com a água fervendo. Tão pequenos como essas coisinhas que machucam a boca. Eu tenho de ir ao Sr. Winnicott. Dr. Winnicott. Ele desadoece as pessoas doentes? Eu acho que ele não gosta de ninguém o mesmo tanto que ele gosta de mim. Ele tem muitas coisas delicadas lá. Eu não ia poder lévar Susan, ela ia quebrar elas". "No dia seguinte, ela mencionou haver tentado unir os pedaços, mas alguém sempre os separa. Eu não sei qual será o destino fmal dessa fantasia; parece que esta só se apaziguou. "Alguns dias mais tarde, ela anunciou: "Eu receio não ter sido uma menina tão boa como eu sou. Eu sou uma me- nina arrumada; eu arrumo as coisas" (o que de certa forma é uma benção numa fam11ia tão desorganizada). Eu sinto que faço parte do cenário só no nível mais superficial." CARTA DA MÃE (TRÊS SEMANAS MAIS TARDE) "Gabrielle pediu para vê-lo várias vezes. Não consigo imaginar o grau de urgência. "Anteriormente ela pedira que lhe dissesse que estava com raiva do senhor e que não lhe pedisse para vê-la. Quan- do lhe falei para ela mesma fazê-lo ou para ditar uma carta, ela disse que era muito tímida. "Ela está muito destruidora nos últimos tempos; insistentemente deseja achar coisas "levadas" para fazer, e o anuncia com orgulho. Geralmente é sob a forma de rasgar ou cortar coisas, ou fazer uma confusão com elas. Isso é novidade como um todo. Ela está menos ansiosa com relação às coisas, quero dizer, menos obviamente ansiosa. Ela passa muito tempo chupando o polegar e torcendo o cabelo; então, deve estar com algum problema". The Piggle D:gCIMA-SEGUNDA CONSULTA (8 de outubro de 1965) Encontrava-me à porta, quando o pai e a criança (agora com quatro anos e um mês) chegaram de táxi. O pai dirigiu-se logo para a sala de espera, e eu disse: "Olá Gabrielle". Ela fixou os olhos em mim e entrou diretamente no cômodo onde os brinquedos estavam, empilhados debai- xo da estante, como de costume. Ela estava com uma bolsa de couro bem pesada, pendurada, pela alça, no om- bro. Depois de olhar-me suficientemente, assentou-se no chão e disse: "Bem, vamos ver os brinquedos". Então apanhou o carneirinho. Gabriel/e: Nós temos um desse lá em casa. Desculpa que nós chegamos tão tarde, mas o trem parou e parou, e parou, e depois a parte de trás do tremincendiou, mas felizmente ninguém ficou ferido (linguagem bem de adulto!]. E então o trem parou muito muito tempo. Os trens devem andar rápido e não parar, mas o trem parou mesmo. Enquanto ela falava isso, unia um trenzinho; depois ela estava brincando e conversando consigo própria num sussurro ... Fez uma espécie de amontoado de trens curtos, incluindo uma carroça com cavalo e um trator. Ela estava um pouco intrigada, porque alguns dos vagões não tinham conexão, e ouvi isso repetindo-se no seu sussurro ... De alguma forma ela os arrumava ou abandonava .. Dessa vez, eu estava assentado na cadeira pela primei- ra vez, não no chão, fazendo anotações como de costume. Foi surpreendente o modo com que ela, como sempre, teve 134 confiança imediata em mim e na situação . Ela era como uma representação da "capacidade de estar sozinha na presença de alguém" , assentada no chão, brincando, mur- murando, e obviamente consciente de minha presença. Observei que, por acaso, ela encostou o corpo na minha perna, quando se abaixou para apanhar os brinque- dos novos. Isso não foi absolutamente exagerado, não havendo qualquer retraimento, quando isso aconteceu. Ela é assim com o pai. Às vezes, ela quase se assentava no meu sapato, conversando um pouco alto consigo mesma e produzindo alguns ruídos de trem. Depois de quinze minutos ela disse : "Ufa!" Isso queria dizer que estava bem quente. Por acaso, colocou a cabeça contra o meu joelho, bem naturalmente e sem exagero. Continuei sem dizer nada. Sua bolsa continuava atirada sobre o ombro. Ela sempre apoiava uma mão na bolsa, quando ia levantar-se. Formou um quadrado com quatro casas compridas e pôs uma outra no centro. Eu sabia que isso significava algo importante, relacionado com sua capacidade de ser um recipiente, e, mentalmente, associei isso com o fato de ela agora carregar uma bolsa. A essa altura, tirou a bolsa e depois o cardigã; durante todo esse tempo, havia possibi- lidade de ela roçar o meu joelho, uma vez que eu estava assentado na cadeira. Falou que estava fazendo calor, o que era um fato. Depois, ela brincou com os pedaços de uma piorra. Nesse momento, houve o primeiro sinal de uma leve ansiedade, embora, de fato, a ansiedade não fosse evi- dente durante toda a consulta. A ansiedade manifestou-s~ quando ela olhou para mim, enquanto eu escrevia. O peda- ço de uma piorra é um dos vários brinquedos daquele amontoado que teve um papel tão importante no passado. Tirou, separadamente, objetos de outra cesta, pedacinho por pedacinho, enquanto conversava consigo mesma, usando os lábios, mas não audivelmente, exceto no caso de algumas palavras como "brinquedos". Então virou-se e sorriu ; eu sabia que algo especial estava acontecendo. De fato, tinha ela encontrado a velha lâmpada elétrica pe· quena que teve um grande papel em sessões anteriores. Gabrielle: Põe uma saia ao redor dela. Amarrei um papel ao redor da lâmpada, que era agora The Piggle Décima.Segunda Consulta uma senhora, e ela colocou-a na estante, à nossa frente. Eu: É a mamãe? Gabrielle: Não. É característica desta criança que "sim" e "não" têm sentido exato nas sessões. Eu: É nisso que um dia Gabrielle quer se transfor- mar quando crescer? Gabrielle: Sim. Houve um pouco mais de contacto comigo, e, pelo que estava acontecendo, pude detectar ansiedade. Vi que ela estava esfregando um carrinho com o dedo. Eu sabia que ela se referia à masturbação, e continuei sem dizer nada. Gabrielle: Esse carro é um carro bobo. Ele vai pra esse lado e pro outro e ele não devia fazer isso. E ela rolava o carrinho de um lado para o outro nas suas mãos. Depois, pegou um figura pequenininha que usava como mulher. Gabrielle: Essa senhora tá sempre deitada. Ela deita outra vez e outra vez e outra vez. Eu: Esta é a mamãe? Gabriel/e: Sim. Tentei obter maiores informações, sem lograr êxito. Continuou brincando e disse: "Agora o que que nós temos aqui?" Ela estava conversando consigo mesma: "Por favor, eu posso ficar com isso ... e isso ... e isso?" E, então, falou com alguns dos animais: "Você levante-se." Introdu- ziu a palavra "preto" com relação a um dos animais. "Pre- to é nada. O que é isso?" Eu me interesso muito pelo uso que Gabrielle faz da idéia de "preto", e aqui havia uma nova versão desse tema. Eu: Preto é aquilo que você não vê? 135 136 Gabriel/e: Eu não consigo ver o senhor, porque o senhor é preto. Eu: Você quer dizer, então, que eu sou preto quando eu estou longe e você não consegue me ver? Então, você pede para vir ver-me e você olha bem para mim e · eu fico claro ou qualquer outra coisa que não seja preto? Gabriel/e: Quando eu vou embora e olho para o senhor, o senhor fica todo preto, né, Dr. Winnicott? Eu: Então, depois de certo tempo você tem que me ver para me fazer ficar branco outra vez. Parece que ela já tinha lidado com essa idéia, e conti- nuou com um brinquedo minucioso. Ela estava tentando fazer uma figurinha ficar de pé num vagão, uma tarefa impossível, e, ao fazê-lo, bateu com a cabeça contra o meu joelho. Não entendi plenamente o que estava ocorrendo. Eu: Se tem um intervalo grande, então você começa a ter preocupações com esta coisa preta que sou eu que fiquei preto, e, então, você. não sabe o que é a coisa preta. Aqui estava referindo-me à mamãe preta e aos objetos pretos dos seus estados de ansiedade. Gabriel/e: Sim [de modo razoavelmente convicente ]. Eu: Então, quando você veio, você olhou bem para mim para me fazer ficar branco outra vez. Gabriel/e: Sim. Em seguida, passou para o assunto da bolsa, que esta- va no chão, onde se assentava. Gabriel/e: Eu tenho uma chave na minha bolsa. Está den- tro daqui. Espero que esteja lá dentro [e ela apalpava a bolsa para localizá-la]. Ela destranca a porta. Eu tranco ela pro senhor, se o senhor quiser sair. O senhor não tem chave aqui, né? Ela demorou-se muito para apertar o fecho da bolsa, mur- murando: "Não consigo; sim, eu consigo". Continuou The Piggle Aqui preto é em parte uma defesa, i e., é o não ver-me quando estou ausente, ao invés de lembrar-se de de mim, na minha ausência Décima-Segunda Consulta apertando-o e exagerando nos movimentos ne.cessários. Ao conseguir terminar de fechar a bolsa, deu um suspiro, indicando que tinha trabalhado muito (trabalhando contra o conflito) . Voltou para os brinquedos, contemplando uma cesta pequena. Continuei sem dizer nada, além do relatado. Ela pegou o cachorro ( carneirinho) e apertou sua barriga. Lembrei-me do que ela fizera nas duas ou três sessões anteriores, o que culminara na terrível bagunça da última sessão. Tinha ela enfiado o dedo na barriga do outro anin1al e esvaziado o conteúdo pelo chão. Ela, naturalmente, lem- brou-se da mesma coisa e disse: "Sr. Winnicott, onde está aquele cachorro?" Apontei para um envelope grande que, de fato , guardava o cachorro vazio. Ela disse: "ah!" Ela estava novamente manuseando o carro e colocan- do-o no nariz e na boca. Pegou um lápis, que, por acaso, era um cray on vermelho, e bateu na própria barriga com ele ; e, então, usou-o para colorir a saia da senhora da lâm- pada, e colocou um chapéu na lâmpada (o copinho da loção Optrex). Batia na cabeça da lâmpada com o lápis, prova- velmente tentando colori-la. Em seguida, tirou a saia da lâmpada, a qual, ela disse, representava-a como uma senhora adulta , e começou a riscar a parte de baixo com o lápis. Depois recolocou a saia. Havia agora uma cor vermelha na saia. Em seguida, apoiou uma figura pequena contra uma casa grande . Eu: O que é isso? Gabrielle: Ele está disparando para dentro da igreja*[ então ela expressou o que estava em sua mente todo o tempo]. O que que acontece com o cachorro no saco? Onde que ele está lá dentro? Eu: Olhe se você quiser. Gabrielle: Tá bem. Exalllinou-o com a máxima cautela, demorando bas- tante , e, mesmo no final , não o tirou do envelope. Final- mente , torceu-o e colocou-ode volta no seu lugar debaixo da estante, dizendo : "O nariz dele soltou ; ele perdeu o nariz; um cachorro num saco". *Construção amb ígua também no original. (N . T.) 137 Pré-visão da puberdade 138 Eu: Na última vez, você tirou toda a parte de dentro e deixou espalhar pelo chão todo. Gabrielle: Sim. Comecei a tentar interpretações: "É um seio se eu sou a mamãe, ou um pipi se eu sou o papai". Ela disse, bem categoricamente: "Não, é uma coisa pipi" (o "não" queria dizer que não era um seio). Eu: Você queria fazer um bebê a partir desta con- fusão. Gabrielle: Sim. Eu: Mas você não sabe como, exatamente. Gabrielle: Não. Nesse ponto, ela estava brincando com um trenzinho, e começou a mostrar certa ansiedade, embora não fosse de modo evidente. Gabrielle: Eu: Agora nós vamos no trem logo. Nós deixamos Susan em casa. Susan pode ficar com muita raiva porque nós ficamos tanto tempo fora. Então você começou a ficar com um pouco de medo, ao pensar que o papai era só seu no trem, principalmente quando você pensa no que você deseja fazer com ele; porque você quer fazer com o papai o mesmo que você estava me mostrando quando você tirou o enchimento do cachorro. Quando você gosta de mim, você fica com vontade de comer meu pipi [isso se manifestou primeiro no medo da cobra que picava, v. acima]. Ela falou com um dos carros que estava manuseando : "Não segura na minha saia!" E, então, começou a vestir o cardigã, uma manobra que levou um tempo considerável. Eu: De fato, você estava com um pouco de medo, justamente quando você pensou em comer o que tem dentro do pipi. Gabrielle: Sim. Ufa! [através dessa exclamação ela queria de fato dizer : "Está fazendo um calor, né? E eu estou tão cansada!"]. The Piggle Décima-Segunda Consulta . Eu: Você precisa de ajuda? Gabriel/e: Não. Fiz então um bom número de interpretações. Eu: Você ficou com um pouco de medo de pensar no Winnicott preto, que estava lá, mas não po- dia ser visto; ou, de fato , ele não estava lá, e você ficou com raiva dele por não estar lá. Você estava com medo também por causa do nariz do cachorro que soltou, porque isto era morder e arrancar meu pipi. Você estava com raiva de mim, por eu não ser sempre seu. Você ficou com medo de pensar que, quando você gosta de mim, você arranca o enchimento do meu pipi. Gabrielle: Sim. Eu: Se for o seio da mãe, você tira o que tem lá dentro para engordar e crescer; mas, quando é um pipi, você quer realmente ficar com o recheio para transformar em bebês. Gabriel/e: Oh! Sim. Eu: A chave na sua bolsa é como ter um lugar lá dentro para você guardar o que você tirar de mim, um pipi que é seu para sempre, alguma coisa que possa virar um bebê. Todo o tempo, ela prosseguia com a manobra com o cardigã. Já tinham transcorrido quarenta e cinco minutos, e ela falou alguma coisa sobre tudo estar terminado agora. Já vestira o cardigã. Estava cansada. Levantou-se, com a mão na bolsa. Abriu a bolsa, pegou a chave e raspou o fecho com ela. Eu: Se você fosse um homem, você empurraria seu pipi para dentro do buraco que a saia cobre. Gabriel/e: O senhor sabe que eu vou beber suco de laranja no trem? Papai falou que nós temos de lembrar de levar um pouquinho para Susan. Eu: Você ficou com medo de eu estar, realmente, 139 Ansiedade: Regressão defen- siva atrdves de ' idéias 140 só por sua conta. Quando você está sozinha conúgo ou com o papai, o pipi entra e faz bebês, então você não tem de ir até ele e esva- ziar o enchimento dele; assim, você não se sente tão mal, mas então você acha que Susan vai fi. car com ciúme porque é tão bom. Gabrielle retomou o brinquedo. Durante todo esse tempo não houvera ansiedade evidente, apenas a ansiedade que o observador poderia postular com base no comporta- mento e observações verbais. Ela brincou com dois, depois três, e depois quatro objetos. Concluí que ela estava mostrando-me que poderia pôr duas pessoas juntas e que ela poderia colocar-se entre o papai e a mamãe para uni-los ou separá-los, e que isso seriam três. Todavia era demais para ela encaixar também Susan - um quarto elemento não se encaixava. Isso pare- ceu-me correto. Gabriel/e: Sr. Winnicott, eu vou só ao banheiro. Eu vou voltar num minuto. E ela saiu, deixando a bolsa no chão, junto aos brinquedos, com absoluta confiança. Fechou a porta cuidadosamente (a qual, quando ela vinha anteriormente, era difícil de fechar; a mesma tinha sido consertada, e parece que ela notou a mudança). Voltou dentro de três minutos, nova- mente fechou a porta c9m cuidado, e retomou o brinquedo. Gabriel/e [enfiando a mão na bolsa]: Pus ela; onde eu pus ela? Onde pus ... ? [repetidamente]? A chave devia estar lá dentro, mas não está. Ah! Tá ali [achava-se jogada entre os brinque- dos]. Então ela pegou a chave e experimentou-a na núnha porta (o trinco cobre o buraco da fechadura e não pode ser mo- vimentado, porque está preso pela tinta. Tentei ajudar, mas não consegui). Eu: Você pode tentar do outro lado [lado de fora]. Gabriel/e: Mas eu ia ficar presa do lado de fora [piada The Piggle Décima-Segunda Consulta intencional). E eu queria estar do lado de den- tro. Então, quando eu tentasse ir, eu destran- cava ela do lado de fora ... [dando a entender: esta idéia simplesmente não dá certo]. Eu não ia poder entrar para me deixar sair. Eu só ia poder sair se eu me trancasse do lado de dentro. E logo . . . Eu: Logo estará na hora de ir. Gabrie/le: Sim. Se eu fechar pelo lado de fora, eu tranco o senhqr do lado de dentro. Eu: E eu ficarei como a chave dentro da bolsa. [Isso quase não precisava ser dito.] Está na hora de ir. Ela já estava pronta para ir, então apanhou a bolsa com a chave bem segura dentro, no compartimento certo. Mas deixou cair da bolsa um cartão postal. Chamei sua atenção para isso, e ela mostrou-me o cartão : "Alguns coelhinhos atravessando o rio; às vezes, nós fazemos isso quando nós saímos para passear". Saiu e fechou a porta, usando sua chave mágica e dizendo "adeus"; e, também, continuou a dizê-lo com a porta fechada, depois de buscar o pai, e quando os dois saíram juntos. COMENTÁRIOS Eu na cadeira - primeira vez. 1. Tema do recipiente com objeto internalizado = D.W.W. seguro e preservado. 2. Ela própria como uma moça de saia. 3. Atividade masturbatória clitoriana fenúnina. 4. Idéia da mulher sempre deitada (preparação para o tema da menstruação). 5. Preto como negação da ausência (ato de olhar como negação de não ver), encobrindo a lembrança do objeto ausente. 6. O fecho da bolsa. Chave na porta. Vermelho na saia (fluxo menstrual) . Idéia do erotismo genital fenúnino - vulvar, vaginal. 7. Cautela com relação ao ataque sádico à barriga do veadinho (ou do cachorro). 8. Bebê vindo do homem. Imaturidade para ser acei- 141 142 tável. 9. Tema da quarta pessoa - não há lugar para a irmã (Susan). CARTADA MÃE "Desejava agradecer-lhe muito por ter-me enviado o texto datilografado da sua última sessão com Gabrielle. Foi uma grande gentileza sua, e eu fico satisfeita em saber que o senhor percebeu o quanto essa leitura me agradaria. "Creio que meu marido lhe falou pelo telefone que ela está muito mais tranqüila, desde a última entrevista com o senhor - chupa o polegar com menos freqüência, as explosões de destruição são raras, e consegue encarar suas fraquezas com mais humor. "Ocorreu-me outro dia que nós sempre escrevemos ao senhor sobre o que está errado com Gabrielle, e não sobre o que está bem e que tenha chegado nos eixos; mas na oca- sião é o que nos parece urgente. "Gostaria de dizer-lhe - embora o senhor deva sabê· lo - o quanto me tem ajudado escrever-lhe; de algum modo dar forma às minhas perplexidades e receios, com o conhe- cimento de que eles serão recebidos com grande compreen- são, assim como a sensação de estar em contato com o senhor - tenho certeza, tudo isso me ajudou a suportar nossas ansiedadescom relação a Gabrielle e a novamente encontrar nosso relacionamento correto com ela. Minhas ansiedades eram muito intensas na época do nascimento de Susan - não me recordo se lhe disse que tenho um ir- mão, do qual eu me ressenti imensámente, que nasceu quando eu tinha exatamente a mesma idade que Gabrielle, quando Susan nasceu". CARTA DA MÃE "Sua carta chegou quando me assentava para escre· ver-lhe. Pàrece que Gabrielle está bem; resta pouco daquele desolado chupar de polegares e ela tanto brinca com entu- siasmo quanto encontra seus próprios divertimentos. "Há dois ou três dias atrás, ela reclamou de sonhos The Piggle Décima-Segunda Consulta ruins: "O Dr. Winnicott não ajuda."- E depois: "Como que os homens colocaram a antena da televisão depois que ela tinha caído?" "No dia seguinte, à hora do almoço: "Quanto mais eu vou ao Dr. Winnicott, mais sonhos ruins eu tenho". Eu, um pouco pomposamente: "Talvez, eles queiram di- zer-lhe alguma coisa, e você deveria escutá-los". "Eu não quero". Para Susan: "Nós vamos mandar uma faca para o Dr. Winnicott recortar os sonhos dele." Para mim: "Por que Doutor Winnicott? (ela faz esta pergunta freqüentemente)- "Porque ele é médico." Depois houve uma brincadeira com a palavra "docdoc" *, que é a palavra que Susan usa para designar chocolate. "Depois do almoço, ela ditou a carta em anexo. Mais tarde ela disse: "O Dr. Winnicott vai achar engraçado receber essa carta" - Eu: "É para ser engraçado ou muito sério?"- "Um pouco dos dois"." CARTA DE GABRIELLE "Nós vamos mandar uma faca para o senhor re- cortar seus sonhos, e nós h vamos mandar nossos dedos para levantar as coisas, e nós vamos mandar para o senhor algumas bolas de neve para lamber quando a neve che- gar, e nós vamos mandar para o senhor alguns lápis cra- yon para o senhor desenhar um homem. Nós vamos man- dar para o senhor um terno para o senhor usar quando o senhor for para a faculdade. "Lembranças às suas flores e suas árvores e seu peixe no aquário. O carinho de (Assinatura) Gabrielle" "Nós vamos ver o senhor com os melhores votos nas nos· sas cabeças". (Na realidade, não tenho um jardim, mas da janela de trás do consultório pode-se ver um pequeno jardim no terraço de um prédio.) · 143 *A palavra "doe", que é uma fonna reduzida de "doctor", é um vocativo comum no inglês coloquial (N. T.) 144 CARTADA MÃE "Desde a última vez que lhe escrevi - há apenas três ou quatro dias - Gabrielle está muito triste, deitan- do-se no chão, sempre chupando o polegar, com os olhos cheios de lágrimas à menor provocação, e não dorme à noite. Pediu para vê-lo insistentemente. Peguntou várias vezes o que tinha ela mandado na carta que lhe escreveu ; esclareceu que tinha se esquecido . "No dia seguinte àquele em que lhe escreveu, ela es- tava deitada no chão com o polegar na boca. "Cansada?" - "Não, triste" - "?" - "Por causa do Dr. Winnicott, por causa do pipi do Dr. Winnicott." - "Eu quero ver o Dr. Winnicott amanhã. Desta vez eu vou mesmo falar com ela falar qual é o problema".- "Que sorte a sua, que você sabe; muitas pessoas não sabem." - "Eu não sei, mas eu posso sempre dizer a ele." "Por acaso" ela deixou uma cesta de maçãs cair em Susan do alto da escada, e quebrou seu telefone. Depois ela fica muito violenta consigo mesma, pede a Susan para dar tapas nela, e bate em si própria com grande intensidade. Julgo a violência de suas auto-recriminações um pouco ame- drontadora, embora elas .não estejam outra vez em evidên- cia, exceto muito recentemente. "P. S. Ao reler esta carta, percebi que pintei um qua- dro muito negro. O que descrevi é apenas o que veio à tona muito recentemente e bem de súbito, embora, ao lado de tudo isso, eu sinta que ela está geralmente bem, desde a última sessão com o senhor". Th e Piggle DÉCIMA-TERCEIRA CONSULTA (23 de novembro de 1965) Ocorreu uma entrada bem singular, caracterizada por timidez; Gabrielle estava agora com quatro anos e três me- ses. Quando entrou no consultório, fechou a porta e foi di- retamente para os brinquedos. Encontrava-me novamente assentado na cadeira, escrevendo na mesa. Gabriel/e: Sai [e tirou todos os brinquedos e colocou-os no chão, conversando muito consigo mesma]. A igreja fica ali, não é, Sr. Winnicott? [Havia disposições especiais de casas]. As casas peque- nas, numa ma, e as casas grandes, numa outra ma. Referimo-nos a estes objetos agrupados como mas de crian- ças e adultos. Gabrielle: Sim, esses são os adultos, e esses aqui são as crianças [e daí por diante]. Então, ela fez uma divisão proporciof)al de crianças e adultos. Gabrielle: O senhor sabia, quando Susan estava esperando o jantar, ela caiu do carrinho e cortou o lábio. Ela estava jantando. Seu lábio foi mordido. Ele foi curado. Isso não é engraçado? Curado. Eu: Você fica curada? Gabriel/e: Não. Eu tive um machucado que eu arranhei muito muito tempo. Ela demonstrava que era o oposto de Susan, ao man- 146 ter as feridas abertas. Eu podia perceber que ela estava falando sobre mim, nos meus vários papéis. Eu: Susan não veio ver·me. (Eu sabia que ela sempre teve vontade de trazer Susan, mas era muito importante para ela não trazer Susan e me ter totalmente a seu dispor). Continuou brincando, · e disse: "Olha agora, isso soltou do trem; eu mesma sei consertar". E ela o fez. Eu: Você sabe consertar as coisas, então agora você não precisa de mim para consertá-las. Logo, eu sou o Sr. Winnicott. Gabriel/e: Alguns homens estavam fazendo um conserto no trem. O senhor sabia que não tinha lugar, e nós tivemos que ficar de pé e nós andamos e andamos e então nós achamos um lugar e nós sentamos num lugar onde tinha uma bolsa; alguém tinha deixado a bolsa lá. Ela estava dispondo dois vagões; às vezes, colocava pon- ta com ponta; outras vezes, cabeça com cabeça. Em seguida, ela disse: "Todos os Cavalos do Rei não conseg:Jiam ... " Eu: Eles não conseguiram consertar Humpty Dumpty*. Gabriel/e: Não, porque ele era um ovo. Eu: Você acha que você não pode ser consertada 1 • Gabriel/e: Toda noite Susan quer um ovo, ela gosta demais deles; eu não gosto muito de ovo. Susan gosta tanto de ovo que ela não come nada a não ser ovo. Isso não é engraçado? A essa altura, encontrava-se em dificuldades com um con- serto verdadeiro. Gabriel/e: Eu não tenho lugar nenhum para prender isso. The Piggle * Humpty Dumpty é uma personagem de Alice no Pafs das Maravilhas. (N. T.) 1 Acho que isso foi falado no momento errado; eu deveria ter esperado por uma volução. Décima-Terceira Consulta Não tem gancho. Nós podemos achar um? Havia uma disposição diferente de brinquedos, com vários trens, vagões e casas colocados em linhas paralelas, de modo ordenado, mas sem uma precisão obsessiva. Gabrielle co- mentou : "O Dr. Winnicott tem muitos brinquedos para eu brincar", e continuou a manusear os trenzinhos, separan- do-os da confusão na qual se encontravam. Gabrielle: O gancho soltou desse aqui; ele não é um bobão? Eu estou consertando ele [e ela o fez, com muita habilidade). Eu consigo mesmo co- locar ele de novo. Eu: Gabrielle também sabe consertar as coisas. Gabrielle: Papai sabe consertar as coisas; nós dois somos in- teligentes. Mamãe não é inteligente de jeito nenhum. Na escola eu flz um trator para mim e então eu fiz um para Susan também. En- quanto eu fazia ele, eu ficava cheia de cola. Tinha uma bagunça de cola. Era um trator bonito. Um para Susan, mas eu deixei ele na escola. Depois foi a metade do semestre, e eu não pude apanhar ele. Sabia, Sr. Winnicott, que o trem foi devagar, mas ele não parou no caminho todo para Londres [neve no chão hoje]. Depois ele andou rápido outra vez. Subitamente Gabrielle notou o vaso grande na estan- te, acima de sua cabeça. Gabrielle: Eu gosto daquele vaso com o desenho chinês. E descreveu todos os pormenores dos jogos, pintados no vaso, com os quais as crianças brincavam. Tivemos de virá-lo várias vezes.Ela disse: "Uma das crianças caiu." Observou tudo e ficou satisfeita. Gabriel/e: [cantando) : Eu não vejo o senhor tem muito tempo, então eu estava tínúda quando eu vim ver o senhor, e eu não vou ver o senhor amanhã nem amanhã nem amanhã. Eu: Você fica triste com isso? 147 148 The Piggle Gabrielle: Sim. Eu gosto de ver o senhor todo dia, mas eu não posso, porque eu tenho que ir à escola. Eu devo ir à escola. Eu: Você vinha aqui para ser consertada, mas agora você vem porque gosta. Quando você vinha para ser consertada, você vinha, indiferente de ter de ir à escola ou não. Mas agora você vem porque gosta, então você não pode vir tantas vezes. Isso é triste . Gabrielle: Quando eu venho ver o senhor, eu sou sua visi- ta. O senhor é minha visita, quando o senhor vem a Oxford. Isso não é estranho? Talvez o senhor vem depois do Natal. Eu: Tem alguma coisa para consertar em você, hoje? Gabrielle: Não, eu não quebro mais. Agora eu quebro as coisas em pedacinhos. Esse parafuso entrou. Eu: Sim, você o consertou sozinha, e você pode consertar você mesma2 • Gabrielle: Hoje, Susan entrou na casinha do cachorro. Esse é um brinquedo novo. Ela estava pisando no elefante; o elefante guinchou. Então, pediu-me para ajudá-la a consertar o tren- zinho com o qual ela tinha dificuldade. Gabrielle: O senhor é um médico, um médico de verdade, é por isso que o senhor é chamado "Dr. Winni- cott". Eu: Você quer ser consertada, ou você quer vir por prazer? Gabrielle: Por prazer, porque assim eu posso brincar mais [ela disse isso muito positivamente]. Eu estou ouvindo alguém assobiar lá fora. Como não tinha ouvido o assobio, eu disse: "Ou era eu escrevendo?" Gabrielle: Não. Alguém tá buzinando agora [verdade]. Não tem ganchos suficientes. Quando nós está- 2 Eu poderia ter dito : "Você tem dentro de você um Winnicott que conserta, que você carrega de um lado para o outro", etc. Décima-Terceira Consulta vamos vindo para o senhor, estava cedo, então nós demos uma volta, então eu tenho de com- prar alguma coisa para Susan e mamãe. Eu gos- to de Susan e da mamãe. Eu: Aqui só tem Gabrielle e eu. Susan fica com rai- va quando você vem ver-me? Gabrielle: O senhor sabe que Susan ... ela gosta de me ver dançar. Quanto anos ela teni? Ela tem dois. Eu tenho quatro. No outro aniversário eu vou ter cinco e Susan vai ter três. A essa altura, tinha ela disposto quase todos os brinquedos em linhas paralelas, aproximadamente dez ou doze linhas; tinha, também, formado um ângulo com um conjunto de três casas. :Cabriel/e: Dr. Winnicott, eu vou só ao banheiro. O senhor toma conta dos brinquedos. Não deixe Papai entrar. Fechou a porta cuidadosamente ao sair, demorando-se três minutos no banheiro. Gabriel/e: Pronto. Sr. Winnicott, eu vou ficar um pouco mais do que eu fico normalmente. Eu posso brincar mais, se eu tiver mais tempo. Eu não pre- ciso de correr. Eu: Às vezes, você fica com medo de alguma coisa, e, então, você acha que tem de ir de repente. Gabriel/e: Porque fica tarde. Eu não consigo desfazer isso [eu o desfiz para ela]. O senhor acha que isso podia ficar ali em cima? (isto é, na estante, ao lado do retrato de uma moça de dezessete anos]. Isso podia ficar lá em cima também. Não tira eles de lá não, tá? - Deixa eles lá. Eu: Até você vir a próxima vez. Você sente que isso dá a você alguma esperança de voltar até mim outra vez. · Gabriel/e: Para sempre. Então, ela olhou para o retrato, colocado como estava numa moldura oval, e disse: "Olha, ela está num ovo." 149 Capacidade de auto-indulgência, mas que, também, gera ansiedade 150 Eu: Se ela não tivesse um lugar para ficar, ela seria como Humpty Dumpty e se despedaçaria; mas você tem um lugar aqui, onde você pode ficar. Nesse momento, ela deu-me uma aula sobre ovos. Gabrie/le: Se alguém quebrar um ovo sem cozinhar ele, quando ele está mole, ele escorre pra todo lugar e tudo fica sujo; mas se alguém cozinhar ele bem e quebrar ele, ele só despedaça. Eu\ Eu ponho um ovo ao redor de Gabrielle, e ela se sente bem. Gabrie/le: Sim. Pegou, então, todas as casas azuis e colocou-as num círculo, com a casa vermelha no centro, e disse: "Eu vou fazer uma fila de casas como essa", e pôs todas as casas umas contra as outras numa fila cerrada. Gabrielle: Se eu encontrar outras, eu vou colocar elas na fila_ Ela estava então apanhando figurinhas de pessoas, árvores e animais: "Muitas coisas" (falava durante todo o tempo). Colocou-as de pé no tapetç, o mais longe possível. Eu não conseguia ouvir o que ela dizia, porque conversava consigo mesma, feliz, à vontade, satisfeita, com criatividade e imaginação. Encontrava-se de costas para mim, e disse alguma coisa assim: "Eu vou deixar isso assim. Sr. Winni- cott, eu posso levar esse aqui e esse aqui e esse aqui? Eu devolvo eles. Eu vou levar dois. Eu deixo três ou quatro para o senhor.! Eu estou com três." (Na realidade, no fmal, ela não tinha pecessidade de levar nada, e tinha, aparente- mente, esquecido o assunto). Gabrielle: De quem que é a vez de limpar o banheiro, agora? Parecia haver uma resposta complexa para essa pergunta. Relacionava-se com a competição com a irmã por esse privilégio. Não aceitei de imediato que havia realmente competição, nessa área, em casa, considerando-se o ponto The Piggle i j Décima-Terceira Consulta de vista dos pais. Ela estava fazendo ruídos de animais com alguns dos animais na mão. Gabriel/e: Eu gosto de limpar o banheiro. Você fica lá [conversava com os animais]; você não, vaca; você, cachorro; você vaca, não se mexa de jeito nenhum; senão ... você vai ser transformada em bruxas. Eu: Você está me contando um sonho? Gabrielle: Sim. Eu não gosto dele. É terrível. Ser transfor- mado numa pessoa pequena, com pés muito pequenininhos. Eu me transformei num gigante de manhã. Antigamente não tinha lojas. Eu: Bem? [eu a estimulei a continuar]. Gabrielle: Bem, eles não construíram lojas, e, se eles ven- diam lavanda, eles saíam andando e cantando: "Quem vai comprar minha lavanda?" ... [can- tando) . Um centavo pode gastar. Se Susan não deixar alguém subir a escada, eles têm de pagar seis centavos; isso é muito, né? Eu só faço eles pagarem um centavo, isso não é muito, né? Tentei entender o que ela queria dizer; relacionava-se com o fato de Susan ser avarenta. Nesse instante ela olhou para o lado de fora da janela. Gabrielle: Alguém tem um jardim no terraço; isso é engra- çado; eu não posso subir lá. Eu fico imaginando como que eles molham as flores. Ela abrem aja- nela com uma vara de ferro e então fazem a água subir por uma chaminé . Eles deixam ela esguichar em todas as flores, assim fica tudo molhado. Eles levantam uma colher pela cha- miné e trazem toda a água para baixo, e então eles fazem isso outra vez . [Depois de certo tem- po:] Aquele é o barracão de ferramentas do senhor? Oh, o senhor não pode chegar lá, né? Essas flores são de plásticos? Eu: Não, elas são de verdade. Gabriel/e: Eu gosto de plástico. Essas são de plástico [não é verdade]. Eu: Você gosta de crianças e animais de plástico, 151 152 The Piggle ou de verdade? [Aqui ela optou pelo real]. Gabrielle: Que que é aquele negócio de madeira? [Tinha descoberto a ponta de uma régua cilfudrica de madeira que outra criança deixara aqui e que se encontrava entre os livros.] Eu posso tirar isso? Eu: Sem dúvida. · Gabriel/e: Pra que que é isso? Eu: É uma régua. Gabrielle usou a régua como um rolo, como se fosse exata- mente o que estivesse procurando. Antes de tudo, o rolo era para abrir massas. Aqui ela representava um outro papel, o de cozinheira; chamei sua atenção para o fato. A ação de rolar transformou-se num jogo que envolvia todo o consul- tório. Gabrielle: Quando a mulher vem consertar as coisas, a cozinheira fmge que vai dormir. A gente tem de falar com ela para acordar, e aí ela cozinha um pouco mais. Ela estava tentando expressaro que acontecia com os outros papéis do Winnicott, quando o Winniccot está repre- sentando um determinado papel. O Dr. Winnicott que con- serta foi viajar de férias, então existe o Winnicott que cozi- nha. Quando ela precisa de conserto, então o Dr. Winnicott volta. Dirigiu-se à lareira a gás. Gabriel/e: Como o senhor acende a lareira a gás? Dirigi-me até lá e mostrei. Eu: Agora o Winnicott que conserta e o Winnicott que cozinha foram embora, e tem o outro Winnicott que ensina. E então tem o Winnicott que brinca. (Pessoamente, na situação, eu não tive dúvida de que o mais valioso dos quatro papéis era o papel de brincar, principal· mente quando ela representa o que descrevi como "sozinha em minha presença".) Houve um outro papel do qual ela \, Décima-Terceira Consulta se lembrou e que se relacionava com o uso da cesta de lixo; poder-se-ia dizer que era um Winnicott q_ue a ajuda a livrar- se do que não mais lhe interessa (Winnicott "Lata de Lixo"). No decorrer do tempo, Gabrielle desenvolveu um jogo organizado; ela rolava a régua de um lado para o outro e aproximava-se cada vez mais de mim, de tal forma que a régua bateria contra meus joelhos, quando ela a rolasse. Naquele momento, ela estava indicando uma quinta forma pela qual eu tinha sido importante para ela - uma pessoa em quem ela batia quando se movimentava e que, dessa forma, poderia ser usada no seu esforço para distinguir entre o que não era ela própria e o que era realmente o seu eu. Num momento em que a régua bateu no meu joelho, virei- me de costas e participei do jogo com prazer, para lhe dar a satisfação que precisava. (Não é possível para urna criança dessa idade extrair o significado de um jogo, a menos que, antes de tudo, haja brinquedo e diversão. Como princípio, o analista sempre permite que se Lrltroduza a diversão antes de se usar o conteúdo do jogo para interpretações.) Parece que Gabrielle tinha terminado sua lista dos meios pelos quais tinha ela me utilizado. Houve um período no fmal da sessão em que teve a sensação de estar ficando um pouco mais do que de costume, simplesmente porque ela gostava de ficar comigo quando não sentia medo, e quando conse- guia obter prazer e expressar de modo positivo seu relacio- namento comigo como pessoa. Bem no fmal, ela acrescen- tou mais um papel à lista, e disse : "Eu vou deixar as coisas para o senhor guardar:'. E então saiu e, com cuidado, fechou a porta completamente. Alcançou o pai na sala de espera. Naquela ocasião, eu, de fato, abri a porta e me despedi de ambos, o que era, até certo ponto, um gesto que devia ao pai ; tive a impressão de que Gabrielle termina- ra o que tinha a me dizer. COMENTÁRIOS 1. Divisão proporcional de adultos e crianças - ter- me a seu total dispor. 2. Desenvolvimento da capacidade de "consertar-se" por conta própria. 3. O trem (análise) movia-se lentamente, mas todo o 153 154 tempo em direção a Londres = seu destino. 4. Tristeza pela perspectiva de terminar. 5. Segurança com relação ao seu lugar na minha vida. 6. Expressão de estar solidamente unida; agora ela se mostra satisfeita e criativa. 7. Revisão dos vários papéis para os quais ela usou o D.W.W. CARTA DOS PAIS (ESCRITA NUMA VIAGEM DE FÉRIAS AO EXTERIOR) "Gabrielle mostrou-nos a carta do senhor; é muita bondade sua arrumar-lhe um horário para consulta. "Sob vários aspectos, elà está em boa forma: robusta, exuberante, e, de certa forma, criativa na invenção de jogos e canções. "Aqui, ela faz caminhadas -durante muitas horas, pedala na água das geleiras e aprecia passar por caminhos difíceis ; está sempre em contacto com o lado do seu eu que ela designa de "menina tquro". "No contacto com estranhos, principalmente homens, mostra-se tímida, muito afetada e reage com um tipo emba- raçoso de feminilidade espúria. Geralmente os estranhos se afeiçoam mais rapidamente a sua irmã Susan, que tem cabe- los ondulados,~ é extrovertida e bochechuda, do que a Gabrielle, com seus olhares inquisitivos. "Gabrielle é muito chegada a Susan, lida com ela com grande prudência, adula-a, e é sempre a mediadora entre ela e nós. Surpreendemo-nos pela freqüência com que ela tenta conseguir o que deseja, desviando a atenção de Susan, ou através de alguma invenção, ao invés de usar um ataque direto, embora, às vezes, um ciúme triste e derrota- do de Susan a consuma, e.Susan não pode fazer nada certo. Outro dia, em meio a uma briga feroz, ela beijou Susan subitamente e disse : "Mas eu gosto de você". Isto é bem diferente de Susan, que oscila entre um respeito ardente por Gabrielle e um desejo cruel de destruir sua superio- ridade." The Piggle I . DÉCIMA-QUARTA CONSULTA (18 de março de 1966) Gabrielle (agora com quatro anos e seis meses) foi trazida pelo pai. Sem dúvida, estava muito satisfeita por estar novamente à porta de entrada. Permaneci imóvel; pouco a pouco, ela arrastou-se por trás do pai e entrou na casa, assim despercebida. Foi diretamente para o consul- tório e disse: "Vou tirar meu casaco", e jogou-o no chão, apanhando, imediatamente, os brinquedos. Ela conversava durante todo o tempo em que fazia disposições com os brinquedos: "Exe, exe, lá; oh, ficou tudo embolado". Percebi que ela estava com o nariz muito congestionado. Não tardou que ela estivesse também tossindo, mas, exceto isso, fisicamente, ela se mostrava muito bem. Gabrielle: Assim. Assim. Certo! Estava totalmente ocupada no chão, de costas para mim, restabelecendo o elo de ligação com as outras sessões. Suas palavras descreviam o que ela fazia. Em dado momento, perguntou : "É assim mesmo que faz isso ou não?" Ela mostrava um superego com o qual facilmente se identi· ficava. Respondi: "Sim, eu acho que é, mas você pode fazê-lo como quiser." Gabrielle continuou a descrever como os brinquedos se encontravam. Como se ela os tivesse deixado dentro de um só pacote, dessa vez encontrou dois brinquedos em um pacote e dois num outro. Ela estava tentando estabelecer relações entre os vagões de tipos diferentes de trenzinhos. Então deu-me algo para consertar, tal como fizera anterior- mente. Enquanto eu o consertava, foi em direção a um brinquedo novo na estante, um menininho puxando um 156 trenó com uma garotinha dentro . Gabriel/e: Isso é do Natal? É bonito. Funciona? Eu: Ele só funciona, se você imaginá-lo funcio- nando. Em seguida, voltou para apanhar o que eu tinha consertado. Gabriel/e: Obrigado. Eu vou tirar todos os brinquedos. Puxou tudo, fazendo uma pilha grande no chão e, dessa forma, renovava o contacto com seus velhos amigos. Gabriel/e: Olha, essa cesta tá com manchas de morango, e essa aqui também. Logo, ambas eram cestas de morango. Com um ruído excla- mativo, pegou a cesta e esvaziou todo o seu conteúdo sobre os outros brinquedos. Gabriel/e: Esse devia ficar lá, né? Separou o burro e a carroça que, normalmente, ficavam na estante. · Eu: Mas como que isso foi parar no meio das outras coisas? Gabrielle: Uma vez nós tiramos ele de lá de cima. Nesse momento, ela estava encostada na minha perna. Pegou o carneirinho e perguntou: "O que que aconteceu com o cachorro?" Entreguei-lhe o envelope com os restos do cachorro. Gabrielle: Por que ele está lá dentro? [olhou lá dentro]. O senhor não consertou ele ainda. O senhor é teimoso! O senhor tem mesmo de mandar consertar ele. Em seguida, pegou o objeto rrústerioso e perguntou: "Que que é isso?" Nós nunca soubemos o que é; provavelmente é uma parte de uma piorra. The Piggle Décima-Quarta Consulta Gabrielle: O que é isso? Não vale nada. Eu expliquei que era um navio petroleiro. O que ela queria dizer é que ele não tinha ganchos. Ela estava agora acaban- do de fazer o con tacto de renovação, e disse: "O senhor tem um búzio? Eu quero o som". A essa altura, ela estava assen- tada no meu pé, e eu falei sobre ela assentar-se na praia com o pai. Foi como se ela sentisse uma ligação com tudo que a praia pudesse representarpara ela; não conseguiu acreditar que não houvesse nenhum som do mar. Ela apanhou um trenzinho de muitas rodas e enume- rou-as, dando-lhe cores. Acariciou a locomotiva amorosa- mente, colocou-a na boca, esfregou-a através das coxas e depois sobre a cabeça, de trás para a frente. Isso transfor- mou-se em tal jogo que a locomotiva descia pelo seu rosto e caía no chão, seguindo-se um barulho que tinha um clí- max. Tentou engatá-la ao vagão, mas não logrou êxito. Pegou as figurinhas do velho e do menino e colocou-as assentadas, dizendo: "Você senta aqui. Você senta ali". Então, ainda renovando velhos pormenores, ela disse: "O senhor podia desenhar [na lâmpada]? Faça um zigue- zague para cima e para baixo. Isto é uma lâmpada mesmo." Eu a deixei cair. Gabrielle: Ela devia ficar na luz. Agora tinha ela praticamente parado com os brinquedos; depois, perguntou : "O senhor vai à igreja?" Não sabia o que devia responder. Eu: Bem, às vezes. E você? Gabrielle: Eu gostaria de ir, mas mamãe e papai não gosta- riam de ir. Eu não sei por quê. Eu: Por que as pessoas vão à igreja? Gabrielle: Eu não sei. Eu: Tem alguma coisa a ver com Deus? Gabrielle: Não. Ela, nesse momento, tinha colocado uma casa na boca. Então lembrou-se de alguma coisa da última sessão e per- guntou : "Onde tá aquela coisa que rola?" Era a régua ci- líndrica deixada por algum outro paciente. Encontrei-a, 157 158 e ela instituiu um jogo que foi a parte principal de sua comunicação. Como o jogo tinha raízes com o passado, pudemos usar todos os tipos de atalhos. Ajoelhamo-nos bem próximos e de frente um para o outro na sala anterior. Ela rola a régua para mim e isto me mata. Eu morro e ela se esconde. Então volto a viver e não consigo encontrá-la. Gradualmente, fiz uma espécie de interpretação. Quando já tínhamos feito aquilo muitas vezes, e, ocasio- nalmente, era eu quem a matava, ficou muito claro que isso se relacionava com a tristeza. Por exemplo, se ela me mata: va, quando me restabelecia, eu não podia lembrar-me dela. Ela representava isso escondendo-se, mas, de fato, fmalmen- te eu a encontrava, e, em seguida, eu dizia: "Oh, eu melem- bro do que é que eu tinha esquecido." Embora aquele jogo trouxesse grande prazer, a ansiedade e a tristeza estavam latentes. Aquele que se escondia tinha que deixar uma perna ou qualquer coisa à mostra, de tal forma que a agonia de não ser capaz de lembrar-se da pessoa perdida não fosse prolongada ou absoluta. Isso se relacionava, entre ou- tras coisas, com o que ocorria, quando ela não me via duran- te um longo período de tempo. Pouco a pouco, o jogo alterou-se, pois o aspecto do esconder-se tornou-se mais especializado. Por exemplo, eu tinha de rastejar pela parte de trás da escrivaninha onde ela estava escondendo-se, e então nós dois nos encontrávamos lá. Finalmente, ficou bem claro que, através do jogo, ela representava a idéia de nascer. Em determinado ponto, esclareci que urna razão pela qual ela estava feliz era que ela me tinha .só para ela. Com relação a esse pormenor, quando saiu pela porta da frente, ouvi-a dizer ao pai: "Onde está Susan?" Vez por outra, eu tinha de repetir uma saída brusca de debaixo das cortinas, o que parecia ser uma espécie de nascimento. Então eu tinha de transformar-me numa casa, · para dentro da qual ela rastejava, rapidamente tornando-se maior, até gue eu não podia mais contê-la e a empurrava para fora. A medida que o jogo se desenvolvia, eu disse: "Eu odeio você", enquanto eu a empurrava para fora. Ela achava esse jogo excitante. De repente, sentiu uma dor entre as pernas e, logo depois, saiu para urinar. O clímax disso era entrar em contacto com a necessidade que a mãe tem de livrar-se do bebê, quando ele fica grande demais. Associada a isso, está a tristeza por tornar-se maior ThePiggle Trabalhando as várias reações à separação e ao término Décima-Quarta Consulta e mais velha, e por achar mais difícil representar esse jogo de estar dentro da mãe e nascer. A sessão terminou com um período em que ela pegou as duas cortinas no meio do consultório e correu com elas para a frente e para trás. Gabrielle: Eu sou o vento, cuidado! Não havia muita hostilidade no jogo, e eu me referi à respiração, o elemento essencial para estar-se vivo e do qual não se poderia gozar antes do nascimento. Nesse momento, ela mostrava desejo de sair. COMENTÁRIOS 1. Em harmonia com o superego. 2. Evidência de capacidade potencial de prazer genital. 3. Elaboração das reações a separações prolongadas e preparação para o término. 4. O tema do nascimento. 159 DÉCIMA-QUINTA CONSULTA (3 de agosto de 1966) Gabrielle (agora com quase cinco anos) chegou com o pai; seu aspecto era muito bom e ela mostrava-se segura de si. Estava ávida e cheia de expectativas. Conversamos um pouco sobre as férias que ela tivera há pouco tempo atrás, e sobre minha casa que, obviamente, estava sob os cuida- dos dos bombeiros. Foi diretamente para os brinquedos (enquanto o pai se dirigia para a sala de espera); antes que eu tomasse meu lugar na cadeira baixa, ao lado da escri- vaninha onde se encontravam os papéis nos quais faço anotações, ela pegou uma parte da piorra velha e disse: "Cachorrinho booito. Eu tenho quatro anos agora - em agosto" (querendo dizer que ela estava na iminência de com- pletar cinco anos). Aconteceu muita coisa que não pode ser transcrita, por ser uma espécie de versão simplificada do contacto com as minúcias na confusão de brinquedos. Gabrielle: Navios. Minha calcinha tá aparecendo. Onde tá o rolo? Mostrei-lhe a régua cilíndrica, que ela usara naquele jogo especial da última sessão. Gabriel/e: Isso é bom. Nós vamos fazer o jogo ... Dirigi-me à parte principal do consultório, e nós tomamos posições. Fingi não saber as regras do jogo, e ela mostrou- me como nós mandamos o rolo de um lado para o outro. O rolo matou-me quando bateu no meu joelho, e eu caí morto; em seguida, brincamos durante certo tempo com o jogo de esconder. Enquanto eu anotava essas coisas, ela disse: "O senhor sempre escreve." Disse-lhe que eu 162 fazia anotações para que pudesse lembrar-me dos por- menores do que acontecera. Eu: Eu me lembro de tudo sem anotações, mas não consigo chegar às minúcias, e eu gosto de me lembrar de tudo para que eu possa pensar sobre tudo. Primeiramente, fizemos o jogo de mandar o rolo de uma lado para o outro, seguindo-se um jogo de esconder que se iniciava quando ela me matava. Depois eu a matava, e me escondia para que ela me encontrasse. Expliquei que ela me mostrava que se esquecia de mim e que eu me esque- cia dela, quando estávamos longe um do outro ou em férias, mas, na verdade, sabíamos que poderíamos encontrar-nos um com o outro. - Não tardou para que ela terminasse o que tinha a dizer, através dessa linguagem de jogo de esconder, e vol- tasse aos brinquedos. Nesse momento, ela fez algo de as- pecto propositalmente sedutor. Pegou a lâmpada elétrica com o rosto desenhado e colocou-a na boca, olhando para mim de modo signiflcativo; em seguida suspendeu a saia e colocou a lâmpada na calcinha. Parecia um convite de teatro de revista. Concomitantemente, ela disse que conhecia um modo travesso de cantar Bom Rei Wences- laus*, que sua mãe conhece: Gabriel/e: O bom Rei Wenceslau pela janela olhou o banquete de Estêvão. Uma bola de neve acertou seu focinho. que flcou como um pimentão; A lua brilhava muito aquela noite *Canção de Natal. (N. T.) No original: Good King Wenceslas looked out on the feast of Stephen. A snowball hit him the snout and made it all uneven; . Brightly shone the moon that night though the pain was cruel. Then the doctor carne in sight, riding on a mule ... ThePiggle Separação sem desespero Décima-Quinta Consulta embora cruel fosse a dor. Aí então apareceu o doutor montado numa mula ... No decorrer desse episódio, que tinha em si uma excitação generalizada, eu desenhara o cachorro,cooperando com ela. Ele começou como uma cópia do rosto na lâmpada. Gabriel/e: Vou mostrar ao senhor o que eu sei desenhar. Raramente coloco orelhas; tem cabelo compri- do, muito bonito - olha, eu derramei em cima do outro papel e em cima da mesa. É um pe- queno rabisco . . . Expliquei, então, que era como se ela estivesse desenhado para mostrar-me um sonho, e parte do sonho se tinha der- ramado para a vida acordada. Parece que isso era o que ela desejava, pois, em seguida, contou-me um sonho; tinha-se a impressão de que ela veio, talvez, para contar-me aquele sonho. Gabriel/e: Eu tive um sonho com o senhor. Eu bati na porta da sua casa. Eu vi o Dr. Winnicott na piscina de sua casa. Então eu mergulhei. Papai me viu na piscina abraçando e beijando o Dr. Winnicott, então ele também mergulhou. Então, mamãe mergulhou, depois Susan e [aqui enumerou todos os outros membros da fam11ia, inclusive os quatro avós]. Tinha peixes e tudo. Era uma água seca molhada. Nós todos saúnos e caminhamos no jardim. Papai desembarcou na praia. Foi um sonho bom. Senti que ela trouxera, então, tudo na transferência e tinha, daquela forma, reorganizado toda sua vida em termos da · experiência de um relacionamento positivo com a figura subjetiva do analista e seu interior. Eu: A piscina é aqui nesta sala, onde tudo aconte- ceu e onde tudo pode acontecer na imaginação. ~eferiu-se ao fato de suas mãos estarem molhadas porque 163 Resumindo o trabalho da análise 164 ela estava nadando. Gabriel/e: Eu vou desenhar o que eu sei, na lâmpada. Mostrava-se, então, bem feliz e calma. Tirou todos os brinquedos pequenos e pedaços de brinquedos, enquan- to cantava o tema da música "Juntos". Gabriel/e: Que confusão no seu chão! Tive de consertar um gancho. Ela conversou muito, enquanto, pouco a pouco, usava todos os brinquedos. Em seguida, pegou a figurinha do pai (de aproximadamente oito centímetros de comprimento, de aspecto muito real, feita sobre a base de um limpador de cachimbo) e come- çou a maltratá-la. Gabriel/e: Eu estou torcendo as pernas dele [etc.]. Eu: Ai! Ai! [como uma interpretação do papel atri· buído a mim]. Gabrielle: Eu estou torcendo ele mais - sim - o bra~o dele agora. Eu: Ai! Gabrielle: Agora o pescoço dele! Eu: Ai! Gabriel/e: Agora não sobrou nada- ele tá todo torcidinho. Eu vou torcer o senhor Il}ais um pouco. O senhor chora mais. Eu: Ai! Ai! Uiliili! Ela estava muito satisfeita. Gabriel/e: Agora não sobrou nada. Tá todo torcidinho, e ·a perna dele soltou, e agora a cabeça dele soltou, então o senhor não pode chorar. Eu vou jogar o senhor fora. Ninguém gosta do senhor. Eu: Então eu nunca vou poder ser de Susan. Gabriel/e: Todo mundo odeia o senhor. Nesse momento, ela pegou uma figurinha de um menino, 3emelhante à anterior e repetiu a operação. The Piggle Ódio por ódi~ (cf. sessão anterior) Décima-Quinta Consulta Gabriel/e: Eu estou torcendo as pernas do menino [etc.] . Em meio a tudo aquilo, eu disse: "Então o Winnicott que você inventou era todo seu, e agora ele está todo acabado, e ele nunca vai poder ser de mais ninguém." Ela estava insistindo para que eu chorasse mais, porém argumentei que não sobrou mais choro nenhum. Eu: Acabou todo. Gabriel/e: Ninguém nunca vai ver o senhor de novo. O senhor é médico? Eu: Sim, sou médico, e eu podia ser médico de Susan, mas o Winnicott que você inventou está acabado para sempre. Gabriel/e: Eu ftz o senhor. Ela estava manuseando o trenzinho (fazendo barulho de trem). Gabriel/e: Eu quero tirar isto. Eu: Isto não sai. De fato, ela sabia que o trator estava preso à carroça de feno e que não podia ser destacado. Gabriel/e: Oh, Deus, ele não sai. Então, ela disse que tudo estava azul; tinha apanhado os dois copinhos de loção Optrex e estava olhando o mundo através deles. Perguntou como eles poderiam ser atados aos seus olhos. Aquilo dava-lhe a impressão de estar nadan- do ou de estar sob a água. Então franzimos nossos olhos um para o outro. Eu sabia firmar os copinhos com os mús- culos orbiculares, e depois de certo treino ela conseguiu firmar um deles. Gabriel/e: Eu queria levar eles para casa comigo. Em seguida, começou a conversar sobre fragmentos dé cerâmica encontrados ao longo das estradas na França, dando o ponto de vista de uma criança sobre arqueologia, ao descobrir o que pertenceu à vida há muito tempo atrás. 165 166 Ela, então, explorou a lata de crayons e achou ou redesco- briu o tubo de Seccotine (uma cola). Era aquilo que ela queria, e iniciou seu último brinquedo (mas tinha outras coisas para dizer-me - eu recebi a carta que ela me enviou? E assim por diante). Pegou uma folha de papel e pôs cola Seccotine no meio e formou, também, uma moldura quadrangular com a cola. Desejava saber quantos pacientes eu veria ainda. Eu: Você é a última, antes de minhas férias. Gabriel/e: Eu vou fazer cinco anos - dentro de bem pou- cou tempo. Manifestou que desejava ver-me para fazer este trata- mento - Winnicott acabou, enquanto ela ainda tinha qua- tro anos. Eu: Eu gostaria de encerrar com você também, para que eu possa ser todos os outros Winnicotts e não ter de ser este Winnicott que você inventou especialmente para tratamentos. Percebi que o que ela estava fazendo com a cola Sec- cotine era uma espécie de túmulo ou monumento comemo- rativo do Winnicott que tinha sido des"truído e morto. Acei- tando sua intimação, peguei um pedaço de papel e desenhei nele uma Gabrielle. Então torci os braços, pernas e cabeça e perguntei-lhe se doía. Ela riu e disse: "Não, faz cócegas!" Ornamentou bastante ao redor da moldura de cola Seccotine, incluindo . a cor vermelha. Aquilo era para levar para casa. Seria bom para Susan. Gabriel/e: Eu devo pôr um pouco mais de azul. O papel dobrou-se, e toda a cola Seccotine tinha acabado; tive de ajudá-la a fazer um buraco para que se pudesse prender um barbante. Era agora um papagaio de papel. Gabriel/e: Eu tenho que ir ao Papai e pedir dois azulejos bonitos, com o menino alegre neles. Deixando-me a cuidar do papagaio, ela foi à sala de espera e The Piggle Décima-Quinta Consulta trouxe dois azulejos antigos (menino alegre) que o pai tinha comprado e que estavam embrulhados como se fossem um presente - presume-se para a mãe. Abri-os e adnúrei-os. Ela prosseguiu, explicando ao pai : Gabrielle: Ele acabou. Ninguém quer ver o Winnicott. Acabou todo . Eu rasguei ele. Eu ftz isso de presente para Susan. É fedorento, é horrível - eu acabei com o tubo todinho de cola Secco- tine . Você vai ter que comprar mais, não sai mais nada. Acrescentei algo sobre puxar a tomada para mostrar o signillcado fecal das ftguras masculinas destruídas e do mo- numento comemorativo. Isso agradou a ela. Gabrielle: Tá espalhado na minha mão toda. Eu estou brincando com essa coisa horrível, fedorenta e grudenta. Qual é o nome dela - ah sim, Seccotine, nome horrível, cheiro horrível. Nós usamos cola Yoohoo, nenhum cheiro, o senhor sabe ... Percebi que ela viera para liquidar comigo em todas as camadas e em todos os sentidos, e disse o que pensava. Ela falou: "Sim, para acabar com o senhor". Eu: Então, se eu fosse visitar sua casa, se eu visse Susan, seria um Winnicott diferente -não este que você inventou que era todo seu e que agora está acabado. Gabrielle: Agora a cola acabou toda - o que nós vamos fazer? Todo o Winnicott todo em pedacinhos, o que nós fazemos quando tudo tá acabado? Feliz de não ver o Winnicott se ele fede e é grudento assim. Ninguém quer ele. Se o senhor vier pra nossa casa, eu vou dizer: "O homem grudento já vem." Nós íamos fugir. Ela deu aquilo por encerrado. Gabrielle: Eu gosto de fazer pintura quando eu vou ao . .. 167 168 The Piggle Esse papel é bonito. Tá na hora d'eu ir? Eu: Sim quase. Gab.rielle: Eu tenho que me lavar - eu vou voltar para ver o senhor. Colore ele de vermelho [o papagaio]! Segurei-o pelo barbanteenquanto ela se lavava. Voltou para buscá-lo e saiu com o pai, arrastando e tentando fazer voar seu papagaio pesado, molhado e pegajoso. COMENTÁRIOS 1. Maturação desbrochando na idade apropriada. 2. Resiste à separação e sabe que a re-união é possível. 3. Exercitando a sedução feminina. 4 . Resumindo a análise, tendo reorganizado sua vida dentro de uma transferência positiva. 5. Desta forma, o ódio pode ser sentido e exercitado com segurança, uma vez que o mesmo não destruiria a boa experiência interanalítica. DÉCIMA-SEXTA CONSULTA (28 de outubro de 1966) Gabrielle contava agora cinco anos e dois meses de idade. Esta sessão foi diferente das anteriores. Na reali- dade dava mais a impressão de ser uma visita de um amigo a outro amigo. Depois de esperar com o pai durante cinco minutos, pois tinham chegado cedo, o pai dirigiu-se para a sala de espera; ela rapidamente percebeu as várias mudanças no consultório e iniciou o que obviamente desejava fazer. A hora que passamos juntos foi dividida em três par- tes, sendo que a primeira foi a mais importante delas . Ela perguntou pelo rolo compressor. Trata-se da régua cilín- drica. Ficamos 25 minutos no conhecido jogo, do qual participou sem grande excitação, mas com uma intensi- dade que é própria dos jogos na idade de cinco anos. Ela rodava o rolo compressor na minha direção e, quando ele ati.tigia meu joelho, eu morria. Quando eu estava morto, ela se escondia. A essa altura já conhecíamos muito bem todas as várias direções. No decorrer do jogo, ela tomava suas posições uma após a outra; eu tinha de voltar a viver, começar a lembrar-me de que havia outra pessoa da qual me esquecera e, então, aos poucos, procurar por ela. Em seguida, fmalmente eu a encontraria. As vezes, era ela quem morria da mesma forma e então procurava por mim. Pros- seguiu até ficar satisfeira por ter brincado suficientemente com esse jogo. Em seguida, entrou na segunda fase. Enquanto eu permanecia assentado na cadeirinha, fazendo anotações como das outras vezes, ela assentava-se no chão de costas para mim - "sozinha em minha presen- ça". Ela conversava com os animais e os brinquedos, e só ocasionalmente deixava claro para min1 que eu deveria escutar. No início, ela pegou o carneirinho e perguntou: 170 '.'Onde está o cachorro?" Encontrei o envelope onde ficam os restos do cachorro, e ela me contou tudo sobre o buraco nele existente, explorando-o com o dedo. Falou que o cachorro não estava tão vazio a ponto de não poder ficar em pé; e ela colocou-o de pé ao lado do carneirinho. Então começou a tirar os brinquedos, esvaziando o balde. Durante certo tempo, ela estava engatando um trenzinho, enquanto conversava de modo inteligível, mas com ela mesma. Em dado momento, ela disse : "Olha um trem com- prido que eu fiz!" Mas, na realidade, não era longo ; ela estava apenas lembrando-se de como ele era nas sessões an· teriores, e não, brincando com a fmalidade de comunicar-se. Eu: Você está se lembrando do que os trens signifi· cavam para você quando você era a pequena Piggle ao invés de uma Grabrielle grande. Gabriel/e: Vamos brincar outra vez. E, cuidadosamente, guardou outra vez alguns brinquedos que tinha tirado, e arrumou-os debaixo da estante. Enquan· to isso, manuseando uma cesta e outros brinquedos de modo carinhoso e dizia coisas como: "Assim". Naquele ínterim sua cabeça tocou meu cotovelo. Não foi de propó- sito, e ela não se retraiu. Simplesmente aconteceu. Ela guardou o cachorro no envelope e disse adeus. E colocou o carneirinho ao lado do envelope. Então, falou : "Agora!" - querendo dizer que passaríamos a algo diferente. Levantamo-nos, e a princípio parecia que teríamos mais da brincadeira com o rolo compressor (jogo de escon- der). O que fez, no entanto, foi encontrar um livro de gravuras para crianças. Assentei-me com ela e folheamos o livro. Ela olhava o livro com grande cuidado e parecia gostar dos fragmentos da estória que eu conseguia contar. Então olhamos um outro livro que tinha muitas gravuras, mas aquele era um pouco complicado; então trocamos outra vez e achamos um livro de estórias ilustrado. Repeti· lhe a estória, enquanto ela passava as páginas. No fmal, escolheu um livro de animais para examinar. Sempre que possível ela dava o nome dos animais, e estava muito alegre e satisfeira. Dei-lhe a ·oportunidade de conversar comigo sobre as coisas; a palavra "preto" apareceu em uma das estórias e eu lembrei-lhe a mamãe preta. The Piggle . ( Décima-Sexta Consulta Eu: Você está com vergonha de me dizer as coisas que voéê pensa. Ela concordou, mas pareceu-me fazê -lo sem entusiasmo. Eu: Eu sei quando você está realmente com ver- gonha; é quando você quer me dizer que gosta de mim . Ela foi bem positiva no seu gesto de assentimento. Agora estava na hora de ir, e ela já estava bem pre- parada para ir buscar o pai. Obviamente ela gostara da visita; não consegui achar qualquer evidência de ela estar decepcionada por ter desejado alguma coisa que não tivesse feito . Ela mostrava-se totalmente natural ao dizer adeus, e tive a impressão de ser ela uma menina de cinco anos realmente natural e normal, em termos psiquiátricos. 171 POSFÁCIO Pelos pais de Piggle Os leitores talvez se interessem por algumas observações sobre a experi- ência dos pais neste caso e desejem saber algo atualizado sobre a criança. O fato de os pais poderem participar de um processo de crescimento e reparação foi-lhes de grande valor. Tal participação evitou o que se pode freqüentemente observar: os pais sentem que foram ignorados e, dessa forma, talvez se predisponham a sentimentos de rivalidade e competição com o terapeuta; talvez tenham inveja do terapeuta e da criança, ou, alternadamen- te·, para evitar tais sentimentos penosos, assim como para evitar a conduta obstrutiva insidiosa que pode deles resultar, os pais se retraem, saindo do campo de influências de um relacionamento vivo com a criança, simples- mente entregando~a a um profissional com mais conhecimento e prática. Embora o perigo de uma mistura não profissional possa ocorrer a alguns leitores, parece que isto foi evitado pelo uso tático de "achar, ter a impressão de" e pela longa experiência do analista; esta experiência parecia fundar-se num conhecimento tão grande que poderia ser novamente esqueci- da e usada de uma maneira espontânea e livre, com uma certeza total, na qual se podia confiar. Talvez deva-se permitir aos pais que opinem em discussões posteriores sobre os prós e os contras de um tratamento "de acordo com a demanda". Naquela época, não podíamos aceitar um tratamento em outros termos. Além do mais, o consenso que se criou, que aquele era o momento adequado para uma outra sessão, é digno de nota; ficamos de fato surpresos ao ler o manuscrito e perceber como a paciente retomava os fios da sessão anterior, como se nenhum tempo tivesse transcorrido entre as duas sessões, ou como se ela estivesse, no momento; preparada para a próxima etapa. No entanto, dentro deste esquema, quando o tratamento não pode ser feito no momento da demanda (como ocorreu entre a décima-primeira e a décima-segunda sessões), as repercussões podem ser muito violentas e, como pode parecer neste caso, por pouco não se conseguiria evitar um 174 ThePiggle desastre interno para a paciente. Os leitores, talvez, desejem saber também como a paciente está agora e quais são os resultados a longo prazo de tal processo de tratamento. Gabrielle não é uma moça constrangida - é espontânea e membro bem ativo de um grupo de colegas na escola. Tem-se a impressão de que ela recuperou o equilíbrio que perdera antes de iriiciar o tratamento. Por volta dos oito anos de idade, ela teve certas dificuldades de aprendizagem (mos- trava-se entediada na escola e não aprendeu a ler com facilidade); todavia, é agora muito competente no seu trabalho e é sempre capaz de encontrar algo interessante nele . Ela tem uma índole maiscaseira do que estouvada. Sua aspiração atual é, ao que parece, ser professora de biologia. Seu hobby principal é o cultivo de plantas para interiores. Sua certeza de valores, sua independência interna de julgamento e, também, talvez seu modo de entrar em contacto com as pessoas em vários níveis e situações levam-nos a pensar que a influência da experiência gratificante de ser compreendida, a nível profundo, ainda continue atuando. Praticamente, não houve comentários posteriores sobre as sessões - muito raramente, talvez, haja uma risada em decorrência de uma lem- brança ou algum pormenor de um jogo. A triste notícia do falecimento do Dr. Winnicott foi dada fortuitamente por um visitante; as reações dela foram encobertas pela situação social. O Dr. Winnicott tinha preparado Gabrielle para a eventualidade de sua morte de modo bem sensato; desde então, ela mencionou essa sessão uma ou duas vezes, uma vez que aquilo, de certo mo- do, se enquadrava à situação. O Dr. Winnicott tinha o hábito de fazer anotações durante as sessões, e Gabrielle pensa que ele estava escrevendo sua autobiografia e que ela, de alguma forma, estava envolvida numa parte dela. "Ela costumava escrever e eu costumava brincar". Quando se discutiu com ela a publicação deste material (que ela ainda não viu), hesitou a princípio; depois refletiu que poderia ser útil aos outros -como, de fato, se espera que seja. Ela deu sua aquiescência. 1975 ( I 20140110073728575 20140110073945419 20140110074034786