Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Rodrigo Medina Zagni Revisão Textual: Profa. Esp. Vera Lidia Cicarone Entre natureza e cultura: O histórico de constituição da antropologia Nesta unidade, vamos tratar do tema “Entre natureza e cultura: o histórico de constituição da Antropologia”. Do debate acerca das diferenças morfológicas entre indícios de existência de distintos grupos humanos no tempo e no espaço, bem como das diferenças culturais guardadas entre os povos, desenvolveu-se a Antropologia, no Ocidente, junto das assim chamadas Ciências Sociais. O esforço engendrado, na tentativa de explicar essas diferenças, mobilizou uma série de autores com a intenção de compreender, em termos científicos, mais especificamente antropológicos, as mudanças biotípicas e as diferenças culturais. Sendo assim, este é um conteúdo fundamental, não só porque nos serve de base informativa para compreender as origens da Antropologia e das Ciências Sociais, mas também porque servirá de base para a compreensão de diferentes formas de se entender o objeto primordial da Antropologia: o Homem e suas obras. Atenção Para um bom aproveitamento do curso, leia o material teórico atentamente antes de realizar as atividades. É importante também respeitar os prazos estabelecidos no cronograma. Observe atentamente a fotografia ao lado. Ela foi tomada na Prisão de Abu Ghraib, no Iraque, por soldados da frente de ocupação estadunidense, que mantiveram ali encarcerados, até agosto de 2006, iraquianos suspeitos de terrorismo. As fotos revelam o tratamento degradante dado pelos soldados encarregados da guarda dos detentos, os quais eram submetidos, cotidianamente, a sessões de tortura e abuso sexual. Houve também evidências de vilipêndio a cadáveres, segundo o processo desencadeado pela própria Corte Marcial dos Estados Unidos, que levou à condenação de militares estadunidenses. Tratando desse tema, mediante uma perspectiva cultural, pode-se afirmar que esse tipo de violência resulta não só do estranhamento cultural, mas também da convicção de que uma cultura diversa é inferior e deve ser subjugada. Trata-se de um choque cultural entre Ocidente e Médio-Oriente, do qual resultou a bestialização da própria cultura iraquiana. Mas o que a Antropologia, ciência que estuda o Homem e suas obras, tem a contribuir para a compreensão desse tipo de ocorrência? Como é possível compreender, cientificamente, as diferenças que povos guardam entre si, entre distinções biotípicas e culturais, e que acabam sendo o cerne de condutas de estranhamento e de violência por parte de povos que se autodenominam superiores em termos rácicos ou culturais? Evidentemente, o caso da violência estadunidense contra iraquianos, referida na fotografia, envolve outras questões além do estranhamento cultural e das distinções biotípicas que guardam árabes e anglo-saxões, como questões econômicas, políticas e militares. Mas a dimensão racista e de estranhamento cultural da violência ali expressa é, de tal forma, evidente. Nesta unidade, enveredaremos pelo histórico de constituição da ciência antropológica, primordialmente focada na compreensão acerca das diferenças entre natureza e cultura e das quais fenômenos como o da violência referida na fotografia derivam. Convido-o, portanto, a enveredar pelo conteúdo teórico, a fim de tentarmos responder a estes e a outros questionamentos. Contextualização Fundamentalmente, podemos dividir a existência humana em duas dimensões essenciais: a existência física ou, melhor dizendo, biológica, que se refere aos caracteres que nos constituem em termos biotípicos (estatura, compleição física, cor da pele, cor e tipo de cabelos, cor e formato dos olhos etc.), e a existência cultural, que se refere àquilo que nos constitui em termos culturais (o idioma que falamos para nos comunicarmos, a indumentária que nos cobre o corpo, o penteado de nossos cabelos, a música que produzimos ou escutamos, a fé religiosa, as convicções e ideologias políticas e, mais amplamente, as visões de mundo que professamos). É evidente que resulta dificultoso separar, radicalmente, natureza de cultura, uma vez que aspectos considerados naturais podem ser culturalmente influenciados, ou vice-versa. Por exemplo, a compleição física pode ser alterada no indivíduo por conta da vigência de valores culturais que determinem um padrão estético como dominante e ao qual o indivíduo, para ser melhor aceito em sociedade, tenha que se adequar: é o caso das jovens que se submetem a regimes de fome para adquirirem uma compleição física estabelecida pela indústria da moda e da propaganda como “correta”, mesmo que sob o risco de morte por anorexia. É o caso, pela via contrária, da estética determinada ou limitada pela natureza, por exemplo, do indivíduo que adere aos penteados do tipo “Black Power”, que se referem, por sua vez, a uma identidade social construída por afrodescendentes nos Estados Unidos, caso em que elementos culturais estão relacionados à identificação com a mesma cor de pele ou tipo de cabelo (ainda que possa ser utilizado por distintas etnias). Material Teórico É evidente, também, que não apenas as dimensões física e cultural constituem a existência humana; dessa forma estaríamos ignorando o intelecto, ou seja, tanto as capacidades imaginativas da condição humana quanto o pensamento sistematizado como reflexão filosófica, nos moldes lógico-dedutivos, bem como as realizações por ele criadas. Mas atendo-nos à aparente oposição entre natureza e cultura, conseguimos identificar, nas diversas formas com que o Homem tentou compreender essas relações, os primórdios de um pensamento antropológico, tentando já delimitar seu campo de interesse entre a cultura e a ideia de “evolução humana”, conforme a célebre discussão que envolveu Robert Lowie, em 1917, contra aqueles que defendiam uma antropologia focada exclusivamente na dimensão biotípica do existir humano, determinando, inclusive, aspectos culturais. A questão é que pensar uma ciência que compreenda o Homem em termos totalizantes nos levaria, obrigatoriamente, ou a cindir essa ciência entre física e cultural, ou a propor uma visão integrada em que ambas as dimensões fossem articuladas ou mesmo confundidas. Podemos dizer, então, que a Antropologia, cuja etimologia refere exatamente o “estudo do Homem”, tenha se comprometido, desde os seus primórdios, com a compreensão do Homem exatamente na totalidade referida. “Antropo” é o radical de origem grega que refere o “Homem”, enquanto “logia” remete ao sufixo, de mesma origem, alusivo a “logos”, a saber, o tipo de conhecimento que designamos lógico- dedutivo, o princípio da razão humana, motivo pelo qual, comumente, palavras terminadas em “logia” designam um campo de conhecimento científico. Sendo assim, podemos aferir que a Antropologia consiste na área de conhecimento científico que tem, como objeto de compreensão, o Homem. Dizer isso não basta para que se saiba, em verdade, o que constitui a Antropologia, muito menos para saber seu histórico de estabelecimento, mas já nos dá importantes subsídios para que comecemos nosso percurso compreensivo. Referir uma área de conhecimento como ciência obriga-nos a esclarecer que o termo “ciência” teve distintos significados no tempo. No passado grego, com a consolidação da reflexão filosófica, entre os séculos V e III a.C., atributo principalmente da Escola Socrática ou Escola Clássica da Filosofia Antiga (constituída por Sócrates, Platão e Aristóteles), tem-se ciência na acepção pura do saber como “tomar ciência de algo”. Ocorre que o tipo de saber sobre esse algo em questãoé aquele que, segundo a professora Marilena Chauí, impôs a vitória da razão sobre a mitologia e o conhecimento religioso, até então Tobacco Card Illustration of Plato A tobacco card from Ogden's Leaders of Men series. The cards were included in packs of Ogden's cigarettes. IMAGEM: © PoodlesRock/Corbis DATA DE CRIAÇÃO 1923 COLEÇÃO Corbis Art Tobacco Card Illustration of Aristoteles A tobacco card from Ogden's Leaders of Men series. The cards were included in packs of Ogden's cigarettes. IMAGEM: © PoodlesRock/Corbis DATA DE CRIAÇÃO 1923 COLEÇÃO Corbis Art hegemônicos como sistemas explicativos na Grécia Antiga. Ciência desponta, neste caso, com o significado a partir de outro termo: consciência. A consciência, por sua vez, constitutiva do ser, como lugar da razão humana e de sua capacidade de discernimento (primordialmente de empreender juízos, no que resulta uma consciência moral) seria tarefa, segundo o filósofo contemporâneo Martin Heidegger, da “ratio”, ou seja, da própria razão. Sendo assim, essa ciência, como saber, encontra forma na própria reflexão filosófica, motivo pelo qual ciência e filosofia são campos que se confundem até, pelo menos, o séc. XVII. É importante frisar que a reflexão filosófica não consiste num mero divagar sobre problemáticas da natureza e da condição humana, mas numa tarefa racional sistematizada, ou seja, empreendida em etapas: a percepção sensorial sobre algo (sensorial, porque provém da capacidade de nossos sentidos perceberem esse algo, ou seja, por meio da observação, da audição, do paladar, do tato ou do olfato), no caso, algo restrito à qualidade de fenômeno, que, por sua vez, se refere apenas às ocorrências que podem ser percebidas por nossa limitada utensilagem sensorial, significando que poderia haver um número incontável de ocorrências para as quais não teríamos meios de percepção, ou, como escreveu William Shakespeare: “Há muito mais entre o céu e a Terra do que sonha nossa vã filosofia”. Após percebido, sensorialmente, o fenômeno, vem a etapa da problematização, que se resume na transformação da constatação sobre uma determinada ocorrência fenomenológica em um problema concreto, que leve à identificação de seus motivadores causais, ou seja, à pergunta sobre o “porquê” de o fenômeno ocorrer, ou sobre quais seriam seus modus operandi, melhor dizendo, sobre o “como” os fenômenos ocorrem. Por fim, segue-se a fase hipotética, que consiste na elaboração de hipóteses para a resposta da problemática elaborada, uma fase, portanto, especulativa. Até o séc. XVII, essa sistematização, que confundia filosofia e ciência, levou à constituição das Ciências Formais (Matemática e Lógica) e das Ciências da Natureza (Química, Física, Biologia etc.). Percebemos que, até então, não havia uma Antropologia sistematizada como ciência, sequer o termo existia, o que não significa, de nenhuma maneira, que não se tentasse compreender o Homem desde suas características físicas ou culturais. Dos caracteres físicos ocupavam-se a Biologia e a Medicina, primordialmente, enquanto, para os aspectos culturais, não haveria ciência, senão gêneros da literatura, na forma de ensaios sobre a condição humana e seus dilemas, confundindo-se o entendimento a respeito das diferenças culturais entre os povos com a arte, campo no qual também se encontravam a história, a psicologia e a geografia humana, por exemplo. Contudo, o séc. XVII assistiu a uma mudança significativa de paradigmas no campo das ciências, primordialmente com a publicação, em 1637, do tratado “Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência” (Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences), do matemático e filosófico René Descartes, na França. A consolidação do método, ou seja, do caminho (significado do sufixo grego “todos”) necessário para que fosse ultimado um objetivo (significado do radical grego “metha”) é responsável pela dissociação, até hoje vigente, entre ciência e filosofia. Mais especificamente, à percepção, à problematização e à especulação foram adicionadas etapas como a experimentação, ou seja, a realização de testes cujo objetivo seria validar as hipóteses elaboradas, verificando-se sua probabilidade ou improbabilidade; a teorização, a partir da identificação de leis que explicassem os motivadores causais e/ou o modus operandi do fenômeno estudado; e a generalização, a saber, a elaboração de leis e de uma teoria que não explicassem apenas um caso particular, mas, em termos gerais, todos os casos cabíveis naquela ordem de fenômeno, resultando em leis gerais e teorias gerais. O percurso seria o da indução (caso particular) para a dedução (caso geral). O método seria, portanto, o caminho a ser seguido rigorosamente, nas etapas aqui elencadas, para que, ao término, se chegasse a uma verdade científica cuja explicação para o fenômeno tivesse o peso de lei geral. A partir daí, Filosofia e Ciência consistiriam formas distintas, mas correlacionadas de conhecimento. Isso, porque a reflexão filosófica seria constituída de três etapas (percepção, problematização e especulação), enquanto a ciência, de seis etapas (percepção, problematização, especulação, experimentação, teorização e generalização). Vemos que a Filosofia não chega sequer à experimentação, portanto não pode chegar a nenhuma verdade conclusiva; sua tarefa consiste em perceber, problematizar e especular sobre a realidade, enquanto a ciência não só chega à teorização, pelo individual, mas inclusive à generalização de uma verdade, pela dedução. Mas não pensemos que a Filosofia seja menos importante que as ciências, pura e simplesmente por não ser ciência; isso, porque não poderia haver ciência sem Filosofia, uma vez que as três etapas iniciais de toda e qualquer ciência constituem-se como reflexão Engraving of french philosopher Rene Descartes from 1870. Fonte: http://www.ist ockphoto.com/ file_closeup/?i d=14182269&r efnum=419002 &source=sxchu 04&source=sxc hu04 Vasco da Gama's fleet at sea Da Gama's ship the Sao Raphael is the leading one of the two ships under sail in 1497. From "Livro de Lisuarte de Abreu," circa 1565. Located in the Pierpont Morgan Library, New York, New York, USA. Ann Ronan Picture Library. IMAGEM: © Heritage Images/Corbis COLEÇÃO Corbis Art filosófica. Sendo assim, a Filosofia não é Ciência, mas também não há Ciência sem Filosofia, motivo pelo qual a Filosofia acaba sendo a mãe de todas as ciências. Contudo, apesar de as diferenças culturais constituírem um problema muito maior para este novo período em relação aos anteriores, devido aos descobrimentos do séc. XVI (resultantes das grandes navegações), não se pode dizer, ainda, de uma Antropologia constituída como ciência, senão de práticas ainda muito embrionárias, sequer nominadas dessa forma. Mas a consolidação do método no século seguinte - o séc. XVIII - levou à passagem de uma era de antropocentrismo, na qual o Homem e sua razão ocupavam o cerne das explicações sobre os enigmas da natureza e da própria condição humana, para o cientificismo do séc. XIX, aquele no qual as ciências eram tidas como as ferramentas últimas pelas quais o Homem desvendaria todos os mistérios da humanidade. A consolidação do método nas ciências, no séc. XVIII, legou ao séc. XIX a convicção, ainda, de que sua utilização possibilitaria ao Homem compreender, em termos científicos, muito mais do que já haviam, até ali, possibilitado as ciências formais e da natureza. Isso, para dizer que o próprio Homem, em termos culturais, bem como as sociedades humanas poderiam ser, também, compreendidos a partir da utilização do método, possibilitando a uma gama distinta de ciências chegar às verdades últimas sobre fenômenos essencialmentehumanos e sociais. Inauguravam-se, assim, as Ciências Humanas e Sociais. História, Sociologia, Psicologia Social, Geografia Humana e Antropologia deixavam de ser, segundo seus objetos de interesse, meros gêneros literários para constituírem novas ciências. É claro que, à exceção da História, nenhuma das outras áreas aqui citadas eram reconhecidas, na literatura, com as designações que ganhariam como ciência; assim, por exemplo, não havia um gênero literário antropológico com este nome, mas sim uma perspectiva que, após o séc. XIX, ganhou a designação de Antropologia. Especificamente a Antropologia consolidou-se não somente na qualidade de Ciência Humana e Social, mas também constituída por um fortíssimo caráter de Ciência Natural. Enquanto Ciência Humana, enfocou aspectos como religiosidade, costumes, artes e tudo aquilo que pudesse revelar o Homem a partir das suas obras, materiais ou imateriais; Andreas Vesalius with dissected human body Andreas Vesalius, 16th century Flemish anatomist. Print after Steven van Calcar, originally published in "De humani corporis fabrica" ("On the Structure of the Human Body?), 1543. IMAGEM: © The Print Collector/Corbis COLEÇÃO Corbis Art enquanto Ciência Social enfocou a convivência humana na construção de teias de relações sociais e complexos de sociabilidade; e, por fim, como Ciência Natural privilegiou o estudo sobre os aspectos físicos da constituição e do desenvolvimento humano, privilegiando aspectos evolutivos, genéticos, anatômicos e fisiológicos. Mas quais os objetos dessa nova ciência, a Antropologia, que teve como berço o cientificismo desse séc. XIX? E no que esses objetos se distinguiriam daqueles sob enfoque das demais ciências? A questão é complexa, se levarmos em consideração que a Antropologia almejava enfocar o Homem na sua totalidade, biológica e cultural, fundamentalmente, confundindo-se, via de regra, ambas as dimensões como uma só. A complexidade deve-se ao fato de que a Psicologia Social também enfocava o Homem, especificamente seu comportamento em sociedade; enquanto a Sociologia se interessava pela dimensão social da existência humana, determinada pela relação interindivíduos, configurando grupos, instituições e estruturas sociais; e a História se interessava pela saga humana, focando a compreensão de processos de transformações sociais no passado. O que poderia conferir, para a Antropologia, então, alguma clareza e mesmo especificidade na delimitação de seu objeto de interesse? Como garantir que a Antropologia não se confundiria com as demais ciências humanas nesse momento ainda nascedouro? Para responder a esses questionamentos, cabe um recuo histórico sobre os marcos da própria constituição da Antropologia e das ciências sociais no Ocidente. Para isso, não podemos nos limitar a compreender o séc. XIX, em que se deu a formação da disciplina antropológica, apenas pelo viés epistemológico, ou seja, pelos caracteres que levaram à constituição da Antropologia como ciência; é preciso compreender este período desde uma perspectiva sócio-histórica. Nesse sentido, o séc. XIX foi caracterizado, por inúmeros autores que se debruçaram sobre a História Contemporânea, entre eles o historiador Eric J. Hobsbawm, como o século de ocorrência do nacionalismo, de consolidação da Revolução Industrial, do imperialismo e do neocolonialismo. É preciso, portanto, articular, para melhor compreender a relação entre esses processos históricos e o desenvolvimento da própria Antropologia. Sabemos que a Revolução Industrial, ocorrida a partir do final do séc. XVIII, na Inglaterra, consolidou-se por volta da Caricature of Eric Hobsbawm Caricature by John Minnion of Eric Hobsbawm, historian, author and Emeritus Professor of Economic and Social History at the University of London since 1982. IMAGEM: © John Minnion/Lebrecht Music & Arts/Corbis FOTÓGRAFO John Minnion COLEÇÃO Historical década de 1830, determinando uma nova natureza de relações entre países industrializados, que ocupavam papel central no sistema capitalista, e países não-industrializados, que ocupavam papel periférico no mesmo sistema. Fundamentalmente, entre os países centrais do capitalismo industrial, estabeleceu-se uma desenfreada concorrência pelo que determinaria a condição de liderança nos mercados já mundializados: mão-de-obra, matéria-prima e mercados consumidores. No bojo da concorrência capitalista, os países industrializados, como Inglaterra (líder no sistema internacional), Alemanha (após sua unificação em 1871), França e EUA, passaram a disputar não só mercados para escoação de sua produção industrial, mas, fundamentalmente, territórios fornecedores de matérias-primas e que constituíssem, também, mercados consumidores. Neste sentido, territórios perfiréricos, estritamente África, Ásia e América Latina, estiveram sob assédio dos países ricos, industrialmente desenvolvidos, interessados fundamentalmente nas possibilidades de extração de matérias-primas para a indústria, especialmente ferro, aço e minérios requeridos para as atividades fabris, e de consolidação de monopólios comerciais, garantidos ambos pela força. Desta forma, a consolidação da Revolução Industrial levou, pela concorrência capitalista, ao fenômeno do imperialismo pela via da dominação neocolonial. Quando pensamos em um “império”, pensamos, inicialmente, no exemplo de Roma, que, ao expandir-se no espaço, anexando territórios circunvizinhos, impunha um modelo de civilização a povos que eram designados, apenas por não pertencerem ao império, como “bárbaros”. O imperialismo, portanto, desde seu uso dado para referir o expansionismo romano, significa, em essência, um movimento de expansão para esse novo momento não tão somente de dominação de um território e de seu povo, perdendo estes a soberania e sendo reduzidos à condição de colônia dos países ricos, mas também de expansão, fundamentalmente, de mercados na nova economia industrial. A Inglaterra carecia, praticamente, de todo tipo de matéria-prima para sua indústria, à exceção do que estivesse relacionado à tecelagem; a Alemanha era carente de regiões mineradoras; os Estados Unidos, de açúcar e frutas; bem como a França. No entanto esses países ocupavam condição central no desenvolvimento capitalista industrial, isso, exatamente, porque engendraram sua expansão imperialista com base na dominação neocolonial de territórios inteiros. Enquanto Inglaterra, França e Alemanha se ocupavam da neocolonização do norte da África e sul-sudeste da Ásia, os EUA engendravam políticas imperialistas em relação à América Latina. O neocolonialismo, apesar de obedecer à ordenação de um novo tipo de capitalismo (o industrial), seguia a ordenação política do colonialismo imediatamente anterior (atinente ao capitalismo mercantil), aquele que ocorria também na África e na Ásia e, após a descoberta do Novo Mundo, na América, fruto das navegações do séc. XVI. Ou seja, seguia a natureza política da dominação exercida por metrópoles economicamente desenvolvidas, submetendo, pela força da ocupação, colônias pobres em termos econômicos, mas ricas em recursos An illustration of power plants to indicate progress IMAGEM: © ImageZoo/Corbis NOME DO CRIADOR Compass COLEÇÃO Alloy humanos e físicos, que serviam de retaguarda econômica das metrópoles fundamentalmente europeias e, para esse novo momento, também dos EUA. O contato de povos europeus, pela via da dominação neocolonial, com outros povos de constituição étnica completamente distinta (como africanos, asiáticos e latino-americanos) agudizou o problema do estranhamento cultural e levou à elaboração de sistemas explicativos focados na legitimação da ideológica convicção de uma superioridade branca, europeia, sobre demais povos, entendidos como inferiores. É nesse contexto que a ciência antropológicapassou a ser desenvolvida, a partir de uma perspectiva eurocentrista, como recurso da própria dominação neocolonial e como repertório pretensamente científico que legitimaria o próprio imperialismo e que se constituiria como uma ferramenta para a gestão dos povos dominados. Conhecer para melhor dominar. Pode-se dizer que esse tenha sido um imperativo fundamental para o desenvolvimento dessa primeira antropologia, primordialmente rácica. A ideia de que tipos humanos distintos poderiam ser divididos em raças provém da Biologia, especialmente após a publicação, em 1859, das teses de Charles Darwin, na célebre obra “Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida” (On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life). Na obra, desponta a teoria da evolução das espécies a partir da sobrevivência dos mais aptos, ou seja, daqueles cujas características possibilitariam sobreviver às transformações operadas no meio natural, transmitindo seus caracteres, pela hereditariedade, à prole, perpetuando sua espécie. Diferenças biotípicas no mesmo gênero animal possibilitariam distinguir raças, nesses termos, mais ou menos aptas à própria sobrevivência. A ideia rácica nasceu, então, já embebida num universo valorativo, distinguindo entre mais ou menos aptas as raças tidas, então, como superiores e inferiores. O impacto seguinte à publicação das teses de Darwin foi de tal forma avassalador que reverberou, significativamente, nas nascentes ciências humanas, primordialmente a partir da obra de Herbert Spencer, responsável pelo deslocamento do evolucionismo darwinista, com suas categorias rácicas, da Biologia para as Ciências Humanas e Sociais, mais especificamente para a Antropologia. O Spencerianismo ou o Darwinismo Social utilizava não somente as categorias rácicas, mas o próprio sistema valorativo entre seres mais ou menos aptos (superiores e inferiores), para explicar a distinção entre indivíduos e grupos humanos. Modern Human and Cro-Magnon skulls IMAGEM: © Carolina Biological/Visuals Unlimited/Corbis DATA DA FOTOGRAFIA 21 de junho de 2010 FOTÓGRAFO Carolina Biological COLEÇÃO Encyclopedia Povos passaram, então, a serem escalonados de acordo com suas características biotípicas, entendendo-se a cultura de forma determinada também por essas características, entre superiores (povos entendidos como civilizados) e inferiores (povos entendidos como incivilizados ou bárbaros). A perspectiva rácica validava, com o peso da fecha científica, a dominação que povos europeus engendravam contra asiáticos, africanos e, no caso dos estadunidenses, contra latino-americanos, criando um repertório científico que parecia tornar plausível o inimaginável: a tutela de povos tidos como involuídos por povos autorreferidos como civilizados, quando o que se verifica, em termos históricos, é o peso da violência neocolonial exercida em prol do desenvolvimento econômico e da força política dos países centrais do sistema capitalista industrial. Nesses termos, a violência que os ingleses empreenderam na Índia, na China e nas colônias africanas; os franceses, na Argélia; os alemães, em colônias na África; e os estadunidenses, nas inúmeras intervenções militares de caráter imperialista na América Latina (como em Porto Rico, Filipinas, Panamá, Haiti, República Dominicana etc.), segundo o discurso antropológico matizado pelas categorias rácicas, pareciam ser legítimas. Em função da vigência dessas categorias profundamente determinadas por ideologismos e convicções grandiloquentes de superioridade, países europeus, autorreferidos como portadores de sociedades evoluídas, comumente trataram sociedades periféricas como involuídas, referindo-as como infantis. A metáfora da infância remete-nos às etapas do próprio desenvolvimento humano, fazendo crer que as sociedades passariam, obrigatoriamente, pelas mesmas etapas de crescimento: nascimento, infância e juventude, designativas de imaturidade; e idade adulta, velhice e morte, por sua vez, designativas da maturidade seguida Trade card for Price's lighting tapers depicting the Indian Muti A trade card for Price's lighting tapers depicting the Indian Mutiny of Lucknow in 1857 with Sir Henry Lawrence in the vignette. He was killed on July 2nd, but the little garrison held out until September 25th when they were relieved, but was then besieged again. IMAGEM: © Michael Nicholson/Corbis FOTÓGRAFO Michael Nicholson COLEÇÃO Encyclopedia pela decadência. Sendo assim, povos autorreferidos como maduros (adultos) deveriam educar, inclusive pela via da força, povos apontados como intantis ou imaturos. Levou um tempo considerável até que a confusão inicial entre natureza e cultura conduzisse a adequadas distinções, ao passo que, hoje, voltam as duas dimensões da existência social a estarem profundamente imbricadas, mais uma vez se emaranhando. Tempo também foi necessário para que a Antropologia se libertasse dos esquemas explicativos de corte evolucionista, que marcaram a constituição da ciência nesse período formativo, mas que desvelam seu caráter inicial profundamente racista e seu desempenho como instrumento de Estados imperialistas e da dominação neocolonial que estes engendraram contra povos que ora a Antropologia se esforça em compreender, não mais em dominar. Caricature of Charles Darwin "Natural Selection." A caricature by James Jacques Tissot of British naturalist Charles Darwin from "Vanity Fair," 30 September 1871. IMAGEM: © The Print Collector/Corbis COLEÇÃO Corbis Art Para o caso de você desejar se aprofundar em algumas questões trabalhadas no conteúdo desta unidade, disponibilizamos, aqui, uma relação de materiais complementares que podem ser extremamente elucidativos. Livros: HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções – 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2008. __________. A era do capital – 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2005. __________. A era dos impérios – 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2008. Filmes: “Brincando nos campos do Senhor”; dir.: Hector Babenco “Queimada”; dir.: Gillo Pontecorvo “1900 – Homo Sapiens”; dir.: Peter Cohen “Criação”; dir.: Jon Amiel Material Complementar BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. CARVALHO, E. A. Antropologia. Sao Paulo: Objetivo, 1972. CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. DARWIN, Charles. A origem das espécies. Porto: Livraria Chardron, 1957. KUPER, Adam. Antropólogos e Antropologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. LAPLANTINE, Fraçois. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1998. MARGARIDA MARIA MOURA. Nascimento da Antropologia Cultural: A Obra de Franz Boas. São Paulo: Hucitec, 2004. MELLO, L. G. Antropologia Cultural: Iniciacao, Teoria e Temas. 11. ed. Petropolis: Vozes, 2004. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. ROONEY, A.K.; VORE, P.L. de (orgs). You and the others: Readings in Introductory Anthropology. Cambridge: Erlich, 1976. SPERBER, Dan. O saber dos antropólogos. Lisboa: Edições 70, 1992. Referências _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ Anotações
Compartilhar