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Ensaios de Política Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. João Paulo Duarte Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco O Pensamento Político e o Estado Liberal O Pensamento Político e o Estado Liberal • Conhecer as teses do liberalismo político econômico; • Conhecer os principais acontecimentos políticos liberais dos séculos XVIII e XIX; • Conhecer a reação ao pensamento liberal; • Conhecer o retorno do liberalismo com as teses do neoliberalismo. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • O Pensamento Liberal: Uma Introdução; • O Liberalismo Econômico; • O Pensamento Político e o Estado Liberal; • Revolução Inglesa; • A Independência dos Estados Unidos; • A Revolução Francesa; • O Liberalismo na América Latina e no Brasil; • A Reação Antiliberal; • O Neoliberalismo. UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal O Pensamento Liberal: Uma Introdução O pensamento político derivado do liberalismo encontra os seus fundamentos atrelados à emergência do capitalismo industrial e dos efeitos sociais produzidos por esse acontecimento econômico. Ele pode ser entendido como uma resposta filosófica e científica a uma urgência que aos poucos se impôs especialmente na Europa desde o século XVIII, e que alterou gradativamente o status quo das sociedades feudais e absolutistas que imperavam como norma econômico-política naquele contexto; a partir de então, sociedades caracterizadas como cerradas a “antigos regimes” que deveriam ser superados. Nesses termos é que podemos verificar a dinâmica existente entre o pensamento liberal e a reestruturação do Estado Moderno, um fenômeno social que alterou as bases de legitimidade para o exercício do poder político, e que replica suas decor- rências até os dias de hoje ao persistir na reivindicação da liberdade individual, da igualdade jurídica, da cidadania e, sobretudo, de descentralizações estatais para a garantia das liberdades econômicas. Contudo, é necessário o exame de um longo e não linear percurso histórico que demarca o surgimento e estabelecimento do Estado liberal para que possamos verifi- car, de um lado, as suas fundamentações e princípios elementares e, de outro lado, a sua fixação como modelo a ser adotado pelas diferentes sociedades do mundo, isto é, como nova norma econômico-política da contemporaneidade. Um percurso em que notamos não apenas a transformação nos argumentos que embasam a ideia de con- trato social, mas também redimensões na forma como se governam as populações. Tal será a tarefa aqui enfrentada nesta Unidade, que se dirige ao entendimento do liberalismo como pensamento político, objetivando traçar e delinear as suas bases fundamentais e, a partir disso, também ao exame histórico da imposição do Estado liberal em meio a restaurações, retrocessos e contradições. O Liberalismo Econômico O liberalismo econômico foi uma das teses defendidas no campo da doutrina libe- ral, tendo sido amplamente idealizado por Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823) e outros autores que, enfaticamente, proclamaram que a livre iniciativa conduziria a humanidade ao progresso social e à prosperidade econômica, uma vez que a desregulamentação política dos mercados levaria a uma autorregulação harmô- nica da economia (a ideia da mão invisível de Smith). As teses do liberalismo foram criadas na metade do século XVIII com a clara in- tenção de superar o mercantilismo, que era uma doutrina econômica que se firmou na Europa nos séculos XVI e XVII, e que se baseava na convicção de que a riqueza e o poder de um país dependiam, sobretudo, da quantidade de metais preciosos produzidos e acumulados. 8 9 A livre iniciativa, segundo os dizeres do famoso economista Frédéric Bastiat (1801-1850), faria com que os homens tratassem, negociassem, unissem-se e se combatessem em conformidade com os decretos da providência, da espontaneidade inteligente, o que faria com que resultasse na ordem, harmonia, no progresso e bem comum (que, como pudemos ver, é também, em tese, a finalidade maior do Estado). Se pudéssemos apresentar um breve resumo sob o ponto de vista teórico acerca do liberalismo econômico, resumiríamos que esta teoria se baseia em que: • O interesse individual acha o que lhe é vantajoso e, ao mesmo tempo, o que é vantajoso para todos; • A livre concorrência, com a lei da oferta e procura, estabelece bons preços, isto é, os preços geralmente mais vantajosos, suprimindo os lucros excessivos; • A chamada mão invisível do mercado ajusta os interesses individuais de modo a que se encontre o equilíbrio que garante o bem comum. De um ponto de vista mais prático, diríamos que o liberalismo, por ter como pressupostos os princípios advindos das revoluções burguesas – entre eles o da liberdade –, baseia-se em: • Liberdade de trabalho; • Liberdade de comércio; • Neutralidade do Poder Público, ligada ao chamado laissez-faire; • Preferência pelos impostos diretos sobre os indiretos. Laissez-faire: é uma expressão francesa que significa literalmente “deixai fazer, deixai ir, deixai passar”. É o símbolo do liberalismo econômico, cuja versão remete ao capitalismo mais puro, ou seja, ao mercado que deve funcionar sem interferência do Estado. O conjunto de tais teses que então passaram a ter implicações práticas, como apontado, foi amplamente desenvolvido por Adam Smith, filósofo e economista inglês que é considerado o “Pai da Economia Moderna” e um dos mais importantes referenciais do liberalismo econômico. Sua obra mais conhecida é Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações, na qual demonstra que a riqueza das nações é promovida, en- tre outros fatores, pelo trabalho dos indivíduos que se movem por interesse próprio, o que promove o crescimento econômico e o desenvolvimento tecnológico. Assim, o autointeresse rege a vida dos indivíduos e o mercado atua de maneira invisível sobre a iniciativa privada. Smith propunha a livre competição e especialização pro- dutiva como formas de baratear o preço das mercadorias, proporcionando maior poder de compra e circulação comercial mais eficaz, que seriam, ambas, benéficas para todas as nações. Segundo Adam Smith, cada homem, enquanto não viola as leis da Justiça, tem absoluta liberdade para defender o seu interesse da forma que mais lhe convenha 9 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal com os outros homens ou classes de homens. O governo, por sua vez, fica comple- tamente desonerado de maiores deveres. Se o Estado interfere na livre concorrência, ele provoca a desigualdade de oportunidades, gerando, assim, o privilégio e provo- cando desequilíbrios no mercado. Enquanto pensadores como François Quesnay defendiam que a prosperidade econômica se daria pela atividade rural, e Vincent de Giurnay dizia que se daria pelo comércio, Smith definia a geração de riqueza como sendo o produto do trabalho livre, sem ter, logicamente, o Estado como interventor. Além disso, Smith se questiona a respeito de como é possível aumentar a produti- vidade do trabalho, e encontra a sua principal resposta na divisão do trabalho, a qual, segundo ele, é o que permite que cada um se especialize no que faz de melhor e a troca desses produtos distribuirá a riqueza da nação entre todos. Smith argumenta esta sua teoria com o exemplo de dois vizinhos que precisem de trigo e de cabras, mas um se dá melhor cultivando o trigo e o outro criando as cabras, e que se cada um fizer o que faz melhor, e depois ambos trocarem os produtos, no final todos saem ganhando. Assim, são as necessidades dos homens individuais e a sua luta por satisfazê-las que movem a sociedade em direção à harmonia, e o mercado se regula sozinho para garantir esse equilíbrio. O Pensamento Político e o Estado Liberal O Estado moderno é uma invenção recente se considerarmos a amplitude histó- rica que registra as conformações políticas desde a Antiguidade. Ele data de aproxi- madamente 4 séculos atrás e se distinguiu pela reunião estratégica de elementos quepassaram a ser entendidos como essenciais para o exercício da política; a saber, o território, o povo e a soberania. Quadro 1 – Componentes do estado moderno Território Não há Estado moderno sem que haja uma demarcação clara e legalmente estabelecida de seu território. Além disso, o território é expressão do poder do Estado, sendo fundamental a proteção de suas fronteiras. Povo No Estado moderno, o povo é figura fundamental. É sobre ele que se exerce o governo e a sua unidade garante a existência da nação. Daí as iniciativas (muitas vezes violentas) de unificação cultural, por meio da língua, dos sím- bolos nacionais, do estímulo ao patriotismo. Soberania Cada Estado é soberano sobre seu território. Isso significa que ele não admite ameaças estrangeiras ou internas a seu poder. Ou seja, no âmbito interno a soberania estatal traduz a superioridade de suas diretrizes na organização da vida comunitária. No âmbito externo, a soberania traduz, por sua vez, a ideia de igualdade de todos os Estados na comunidade internacional, visto que não haveria, em tese, nenhum ente com autoridade efetivamente superior. Considera-se que um importante marco para o estabelecimento do Estado moderno foi a chamada Paz de Vestfália, que se constituiu com uma série de tratados que encer- raram a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Esses eventos são considerados pontos de inauguração do moderno sistema internacional por neles constarem noções e 10 11 princípios como a soberania estatal, a igualdade jurídica entre os nascentes Estados, a não intervenção entre esses entes, a territorialidade e o poder de gestão sobre a população que se encontra nesse território delimitado. O absolutismo pode ser considerado a primeira forma de Estado moderno. A formação dos Estados absolutistas não teve o mesmo percurso em todos os paí- ses europeus, sendo que a França é apontada como o país que o vivenciou em sua forma mais plena. O principal símbolo do absolutismo na Europa foi a centralização do poder real. Desde o seu início, o Estado se configurou como uma unidade que passou a orga- nizar demandas econômicas e sociais dirigidas à emergência do capitalismo mercan- tilista e que, com o tempo, ao longo de mais de um século, foi se redimensionando com a gradativa transformação do capitalismo, ocorrida a partir da Revolução Indus- trial. Foi nesse momento – não por acaso coincidente com o advento do iluminismo –, que se lançaram as bases de alguns princípios universais, como a liberdade, que repercutiram sobremaneira na dimensão estrutural do Estado. Nascia, pois, o chamado Estado liberal, uma configuração adaptada e atualizada do Estado moderno que podemos mais ou menos datar a partir da segunda meta- de do século XVIII, localizando tal surgimento na Europa e na América do Norte, especialmente em países como Inglaterra, França e Estados Unidos. Tratou-se de uma configuração do Estado que atendeu aos preceitos racionalistas do movimento iluminista, ao propor a superação do absolutismo, vigente desde o século XVI. Figura 1 – A Liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix (1930) Fonte: Wikimedia Commons Foram pensadores como John Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-1755) que, com suas elaborações teóricas, embasaram a emergência do Estado liberal. John Locke, conhecido como o “Pai do Liberalismo”, dizia que ao nascer, os homens já tinham direitos naturais – direito à vida, liberdade e propriedade. No estado de 11 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal natureza, antes da fundação do Estado, as pessoas já tinham esses direitos, mas não havia nada que os protegesse contra as invasões ao que ele entendia como as diver- sas formas de propriedade (os bens materiais, a própria vida e a própria liberdade). Devido a isso, houve a necessidade de um contrato social, que criou a sociedade po- lítica e instituiu o Estado. O Estado, para Locke, deve ser meramente um regulador, garantidor da paz. Ele não pode ter poder ilimitado e é preciso deixar bem evidentes quais são os limites desse poder, a fim de evitar a tirania. O limite mais importante ao Estado, segundo esse autor, é o direito. Nesse sentido, Locke defende que para garantir a liberdade é necessária uma lei maior, à qual até o Estado precise se submeter. É dessa ideia que deriva a proposta da Constituição. Locke diz que se o governo viola o direito, o povo tem o direito de resistir a ele, como forma de evitar a tirania, que seria qualquer ação do Estado para além do direito ou fora dele, visando bem particular – e não o bem comum. Montesquieu, por sua vez, teve como principal contribuição para o Estado liberal a discussão sobre as possibilidades de limitar o poder do Estado por meio das leis e da divisão dos poderes, assim como já defendia Locke, mas especialmente a partir do equilíbrio dos poderes. A teoria da separação/equilíbrio dos poderes de Mon- tesquieu propõe a seguinte divisão: o Poder Legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes; e o Poder Executivo daqueles que dependem do direito civil. O objetivo dessa separação é evitar que o poder se concentre nas mãos de uma única pessoa, para que não haja abuso, como o ocorrido no Estado absolutista, por exemplo, em que todo o poder se concentrava nas mãos do rei. A passagem do Estado absolutista para o Estado liberal caracterizou-se justamente pela separação de poderes, denominada tripartição dos poderes políticos. A partir desses e de outros autores, o liberalismo se desenvolveu com as seguin- tes características: • Crescente difusão de um pensamento pautado pela ideia de direito natural, ca- racterizado pelas declarações de direitos que surgiram pioneiramente em alguns Estados, entre eles, França e Estados Unidos; • Ideia da tripartição de poderes, que passou a reivindicar a formatação republi- cana aos poderes constituídos, separando-os nos setores Executivo, Legislativo e Judiciário, em contraposição à ordem absoluta do rei; • Surgimento de leis garantidoras da liberdade e igualdade jurídica dos homens, bem como da propriedade privada, derivadas de movimentos constitucionalistas e da ascensão da classe burguesa. Assista ao vídeo intitulado Liberalismo: por que tantos significados diferentes? Disponível em: https://youtu.be/uI6j5SWhb6g Segundo Dias (2008), com o surgimento do Estado liberal houve também uma clara divisão do que era competência do âmbito público, ou seja, daquelas atividades que eram de responsabilidade exclusiva do Estado: direitos à comunidade estatal, 12 13 cidadania, segurança jurídica, representação política, entre outros. Por outro lado, configurou-se aquilo que dizia respeito ao âmbito privado dos cidadãos, tais como a vida, liberdade, individualidade familiar, propriedade e o mercado (trabalho e capital). É preciso entender que essa divisão – público/privado – na formação do Estado liberal foi fortemente influenciada pelo pensamento político da época, dirigido à legitimação de uma forma de poder que valorizava a autonomia dos indivíduos e a proteção de seus direitos fundamentais. Assim, como já sinalizado, é preciso enten- der também que com o advento das cartas constitucionais, as relações sociais foram gradativamente reguladas a partir de uma legalidade que, ao dar autonomia aos ci- dadãos, buscou, ao mesmo tempo, fomentar a desregulamentação da economia por parte do Estado. Seguindo análises de Gonzaga e De Cicco (2011), é importante destacar que a história do liberalismo e sua influência na transformação do Estado moderno se confunde também com a história da democracia na Modernidade. Por se centrar na eleição do povo (ou de parte dele, a burguesia) como a verdadeira fundamentação do exercício legítimo do poder, o Estado liberal iniciou a implementação das democra- cias como a forma por excelência de concessão de autenticidade e licitude ao poder. Mas esse movimento não foi instantâneo, tampouco linear. O liberalismo, em razão das crescentes mudanças que ocorrerama partir do século XVIII, em especial na Europa, manifestou-se nos diversos países em momentos diferentes. Por exem- plo, na Inglaterra, manifestou-se, em sua etapa inicial, ainda no século XVII, com a Revolução Gloriosa de 1688 a 1689 – inclusive, com a participação do próprio John Locke. Na maior parte dos países da Europa continental, excetuando a França, é um fenômeno que se iniciou no século XIX. E, mesmo assim, a implantação real das democracias viria somente como consequência posterior, sobretudo no século XX. A partir dessa observação podemos dizer que o liberalismo é um fenômeno históri- co de implicações políticas, econômicas e sociais, que teve a sua gênese de formação na Europa; ou seja, trata-se de uma perspectiva ocidental. Uma nova orientação para a estruturação do Estado que reuniu as premissas de máxima eficiência econômica e liberdade individual. Um mecanismo argumentativo que estimulou a participação política dos cidadãos na vida social. Por isso, o Estado liberal se configurou como uma forma de combater o antigo regime absolutista, de atuação centralizadora do Estado. No século XVIII, muitos movimentos sociais e políticos passaram a se confi- gurar a partir de tais ideias implantadas pelo liberalismo – entre eles, podemos citar o movimento de Independência dos Estados Unidos, tema de nosso próximo tópico. Revolução Inglesa As revoluções Puritana, de 1640, e Gloriosa, de 1688, podem ser consideradas como partes de um mesmo processo de conflito entre o absolutismo e o liberalismo, entre o poder do rei e o do Parlamento, tendo como resultado o estabelecimento de uma monarquia parlamentar. Nesse sentido, os historiadores costumam considerá- -las como um fenômeno único: a Revolução Inglesa. Este é considerado o primeiro 13 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal movimento revolucionário contra o absolutismo, inaugurando uma série de revolu- ções burguesas, encabeçadas por essa classe social que havia se tornado expressiva- mente forte, do ponto de vista econômico, ao longo dos séculos XVI e XVII, e que precisava alcançar legitimidade política. A Revolução Inglesa antecedeu em quase um século a Revolução Francesa (1789), da mesma maneira que influenciou as ideias e as condições políticas que resultaram na Revolução Estadunidense e na Indepen- dência dos Estados Unidos (1776). Assista ao vídeo Revoluções Inglesas, disponível em: https://youtu.be/T9ISDaRR2KQ A Independência dos Estados Unidos Ao tratarmos das revoluções que ocorreram a partir do advento do iluminismo e que tiveram o liberalismo político como norteador fundamental, é impossível que não tenhamos em mente a revolução que culminou com a independência da América do Norte. Isto é, a independência que configurou os Estados Unidos da América, e que teve entre seus precursores Benjamin Franklin. Foi Franklin, por meio de interpre- tações da emergente doutrina liberal, que vislumbrou a possibilidade de as colônias norte-americanas se tornarem independentes em relação ao domínio dos ingleses, conformando-se em um novo Estado. O movimento de independência, por intermédio de seus líderes e em meio aos conflitos e litígios do processo revolucionário, afirmou na Declaração da Independên- cia, de 4 de julho de 1776, que: Consideramos evidentes por si mesmas as verdades seguintes: todos os homens são criados iguais; estão dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais se encontram a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Os governos são estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana do consentimento dos governados. Anos mais tarde, Franklin foi delegado das colônias independentes e foi a Paris a fim de, junto ao rei Luís XVI, conseguir ajuda militar à Convenção da Filadélfia, em 1787. Esse movimento teve por intenção redigir a nova Constituição dos Estados Unidos da América, documento em que podemos enxergar – e empiricamente ana- lisar – a conformação de um Estado liberal. As treze colônias, anteriormente vinculadas à Inglaterra, uniram-se na forma de Confederação. A Inglaterra, num ato para impedir a organização das colônias, conce- deu independência também ao Canadá pelo Ato de Quebec, pressionando para que não aderissem ao movimento das colônias da América do Norte. Essa ideia de liber- dade, difundida pelo liberalismo político, fez com que as colônias norte-americanas contassem com o apoio do marquês de La Fayette (chefe militar francês), da rainha Maria Antonieta e do rei Luís XVI. Ironicamente, membros da nobreza francesa que, em seguida, sofreriam também com a emergência de um processo revolucionário em 14 15 seu país, a famosa Revolução Francesa, que teve início em 1789 e que igualmente foi um movimento político de instrução liberal de importância decisiva na história. Foram as transformações em nome do ideal de liberdade – sempre atrelado ao princípio da propriedade privada – que fez das mudanças na velha Europa uma in- fluência também para o continente americano, permitindo aos poucos que os movi- mentos de independência das colônias ganhassem força. Estabelecida a independência estadunidense, um importante autor igualmente contribuiria para a composição da história política desse país: Alexis de Tocqueville (1805-1859). Ele foi aos Estados Unidos para uma viagem de estudos e acabou se interessando muito mais pelo funcionamento do sistema democrático do que pelo motivo de sua viagem, que era, a princípio, conhecer o sistema penitenciário. Tanto se interessou que, no ano de 1835, escreveu a obra intitulada A democracia na América. Foi nesse livro que discorreu sobre política e cultura estadunidenses. Nele, Tocqueville relata sua admiração pelo modelo político estadunidense, em especial no que diz respeito à participação política. Assista ao vídeo intitulado Democracia na América – Alexis de Tocqueville. Disponível em: https://youtu.be/HYKphUqm1fw No momento em que Tocqueville visitou os Estados Unidos, essa participação es- tava se organizando em associações políticas em níveis local, regional e nacional, de modo que ele ficou impressionado com a percepção de que os cidadãos estaduniden- ses estavam envolvidos nos debates políticos de forma mais extensa do que na Europa. A Revolução Francesa A influência do liberalismo nos regimes políticos encontra na Revolução Francesa (1789-1799) uma das suas primeiras e principais concretizações. Nesse período houve intensas agitações políticas e sociais na França, tendo um impacto duradouro na his- tória do País e, mais amplamente, em todo o continente europeu. A sociedade fran- cesa passou por uma grande transformação, quando privilégios feudais, aristocráticos e religiosos foram frontalmente atacados por grupos políticos radicais, pelas massas nas ruas e por camponeses na região rural do País. A reavaliação das bases jurídicas do Antigo Regime foi montada à luz do pensa- mento iluminista, representado, em especial, por Voltaire, Diderot, Montesquieu, John Locke e Immanuel Kant. Eles forneceram importantes análises para criticar as estruturas políticas e sociais absolutistas e sugeriram as bases filosóficas para uma maneira de conduzir o governo em um formato liberal burguês. Um importante momento da Revolução Francesa, o qual demonstra a influência do liberalismo político nesse processo foi a elaboração de uma Assembleia Nacional Constituinte, por meio da qual foi abolido o regime feudal e senhorial e suprimido o 15 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal dízimo. Outras leis proibiram a venda de cargos públicos e a isenção tributária das camadas privilegiadas. E, para dar continuidade ao trabalho, decidiu-se pela elabo- ração de uma Constituição. Na introdução, que seria denominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, os delegados formularam os ideais da Revolu- ção, sintetizados em três princípios: “liberdade, igualdade e fraternidade”. Inspirada na Declaração de Independência dos Estados Unidos(elaborada, inclusive, com a colabo- ração do então embaixador norte-americano em Paris, Thomas Jefferson), a primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi a síntese do pensamento ilumi- nista liberal e burguês. Nesse documento, defendia-se o direito de todos à liberdade, propriedade, igualdade (igualdade jurídica, e não social nem econômica, visto que a desigualdade social e de riqueza continuaram existindo) e de resistência à opressão. O Liberalismo na América Latina e no Brasil Enquanto as ideias liberais continuavam a ser difundidas e os ideais de liberdade se propagavam, outras revoluções ocorreram. Além das Revoluções na Inglaterra e na França e a Independência Estadunidense, ocorreram também movimentos de emancipação na América Latina. Como dissemos, os princípios políticos liberais, sobretudo com a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, foram difundidos de forma a influenciar muitos povos e nações que estavam se conformando durante esse período. Assim, é importante destacar, ainda que brevemente, que as ideias liberais influen- ciaram a Inconfidência Mineira, em 1789, os movimentos abolicionistas no Brasil no século XIX e os movimentos de independência das colônias espanholas, a partir do início do século XIX como, por exemplo, do Chile, do Peru e da Bolívia (Alto Peru), libertados por San Martin, em 1821. Todos os movimentos que invocavam a sua liberdade como princípio tinham em mente que era necessário não somente tê-lo como elemento norteador na formação efetiva dos Estados para que se tornassem independentes. Era necessário, também, que pudessem desfrutar de autonomia e autodeterminação, como forma de reafirmar a independência conquistada, pois isso ajudaria a confirmá-los enquanto Estados-Nação. A Reação Antiliberal Enquanto política econômica, o liberalismo recebeu muitas críticas e, segundo diversos autores, falhou na medida em que a liberdade desenfreada favoreceu o do- mínio econômico por uma única classe de pessoas (agora a burguesia) quando o que deveria acontecer – ao menos em tese – era o contrário. Cabe nos perguntar por que regimes liberais mantiveram grandes massas traba- lhadoras em situações de semiescravidão e um processo de pauperização? Isso por- que a liberdade, que para o contratualista Jean-Jacques Rousseau era um patrimônio 16 17 a ser usufruído por todos, tornou-se o privilégio de alguns. Na prática, porém, o que se viu foi a miséria excessiva redimensionar a falta de liberdade, e isso gerar desor- ganização social e descrença na figura do Estado liberal. A crise do liberalismo econômico eclodiu no século XIX devido aos constantes confrontos entre empregados e patrões. Foi também nessa época que a Igreja Ca- tólica, até então indiferente às questões sociais, por meio do Papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, defendeu alguns direitos dos trabalhadores. Opôs-se, por exemplo, à Lei de Bronze, que dizia que cada trabalhador deveria receber o suficiente para a sua manutenção, dizendo que o ideal eram salários compatíveis com sua dignidade. Na época, isso gerou um considerável avanço, na medida em que foram proibidas algumas condições insalubres de trabalho e emprego de meno- res em atividades árduas. E, mais adiante, abriria a possibilidade de oposição mais vigorosa ao liberalismo. Todas as mudanças ocorridas a partir das revoluções burguesas tiveram amplas repercussões, uma vez que influenciaram outras transformações políticas e sociais que ocorreram como decorrência nas décadas seguintes, especialmente na Europa. Em 1848, na França, os socialistas, que eram fundamentalmente antiliberais, reu- niram-se e por várias assembleias, manifestações e conflagrações conseguiram com que fosse proclamada a Segunda República Francesa. Conhecida como Primavera dos Povos, essa série de revoluções na Europa Central e Oriental eclodiram em função de regimes governamentais autocráticos, de crises econômicas e do naciona- lismo despertado na Europa. Esse conjunto de revoluções, de caráter nacionalista, liberal, socialista e democrático, foi iniciado por uma crise econômica na França, e foi a onda revolucionária mais abrangente da Europa, embora em menos de um ano, forças reacionárias tenham retomado o controle e as revoluções em cada nação tenham sido dissipadas. À época, muitos líderes socialistas surgiram com o intuito de denunciar as péssimas condições da classe trabalhadora, entre eles Pierre-Joseph Proudhon (1809-1850). Proudhon foi filósofo, político e economista. Nesse período de con- vulsões sociais, chegou a ser membro do Parlamento Francês, assim como um dos mais importantes teóricos do anarquismo. Anarquismo é um termo constantemente confundido, de maneira incorreta, com bagunça e seus sinônimos. Contudo, anarquia diz respeito à possibilidade de auto-organização da classe trabalhadora. Proudhon foi um pensador de grande importância, já que fomentou a associação de trabalhadores da indústria e do campo, defendeu ideias radicais para seu tempo e foi eleito membro da Assembleia Constituinte resultante dos movimentos de 1848, na França. Ele definia a propriedade como um roubo, o que influenciou a Constituição Francesa de 1848, que suprimiu a propriedade industrial. Suas principais críticas ao liberalismo dizem respeito ao seu sistema de propriedade e à organização hierarqui- zada do trabalho. Proudhon defendia o chamado mutualismo, que teria como base 17 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal as empresas de propriedade coletiva dos próprios trabalhadores. Nas chamadas com- panhias operárias, a reciprocidade nas relações de trabalho substituiria o trabalho assalariado, e o conjunto dos operários dividiria o produto do trabalho. Mas não foi só na França que as elaborações, tentativas e experiências de revolu- ção socialista aconteceram como contraposição à norma liberal. Na Alemanha tam- bém ocorreram importantes oposições a essa doutrina. Foi sobretudo com Karl Marx (1818-1883) que isso se sucedeu. Marx foi um grande intelectual e revolucionário ale- mão, fundador da doutrina comunista. Foi também economista, filósofo, teórico po- lítico e jornalista. O pensamento de Marx influenciou várias áreas do conhecimento. Assista ao vídeo intitulado Debate entre Karl Marx e Adam Smith. Disponível em: https://youtu.be/v_NQsFaB7UE Marx criticou o liberalismo por não estender liberdade, igualdade e fraternidade aos países colonizados e aos trabalhadores; por entender os direitos de maneira idea- lista, como se bastasse o direito formal – e não a garantia da igualdade e da liberdade reais e concretas –; especialmente, por defender o direito à propriedade privada, pois esta é fonte da desigualdade. Marx considerava que os outros problemas derivam da desigualdade social. Para sustentar suas posições privilegiadas, os membros domi- nantes da sociedade praticariam toda sorte de despotismos e injustiças. A corrupção, o roubo, a escravidão, exploração do trabalho, miséria, as formas mais cruéis de violência seriam, em última instância, produtos da desigualdade social e, portanto, da propriedade privada dos meios de produção. No início do século XX, o liberalismo entrou em séria crise, especialmente graças às duas grandes guerras, à Revolução Russa e a Crise de 1929. Como consequência, o capitalismo passou por reformas que deram muito mais legitimidade às interven- ções estatais sobre a economia e a vida dos cidadãos em diversos países da Europa e das Américas (o que se deu de diversas maneiras, democráticas ou autoritárias), incluindo o processo de expansão do socialismo real na parte oriental do Globo. Até a década de 1970, as propostas de restrição ao papel do Estado pareciam não ter qualquer espaço na agenda política e econômica dos países. Contudo, um novo episódio – a chamada Crise do Petróleo – trouxe fôlego para as propostas de limi- tação ao Estado. O Neoliberalismo Neoliberalismo é um termo que já teve muitos significados e, em que pese a falta deprecisão no conceito, de modo geral diz respeito às novas propostas de limitação à atuação econômica do Estado a partir da segunda metade do século XX. Essas propostas, que ganharam força no decorrer da década de 1980, tiveram como im- portante laboratório as políticas realizadas na ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, desde a década de 1970. 18 19 Essa corrente de pensamento se caracteriza por se aproximar mais do liberalismo clássico em seu sentido econômico e menos em seu sentido político, e isso pode ser visto nos economistas da Escola de Chicago, os quais não se importaram de que suas propostas liberais no campo da economia fossem aplicadas no governo ditatorial chileno, a partir da chamada “doutrina do choque”. Importante! A “doutrina do choque” se refere a uma série de intervenções econômicas desenvolvidas pela Escola de Chicago, com base nas propostas do economista neoliberal Milton Friedman (1912-2006). Conforme apontou Naomi Klein (2008), Friedman propunha que uma série de reformas econômicas (tais como desregulamentações, privatizações e cortes dos progra- mas sociais) deveriam ser realizadas na esteira de distúrbios sociais, grandes desastres ou outros momentos de crise. Diante da “confusão mental” que afetaria tais populações, seria mais eficiente criar a percepção de que havia a “emergência” e “inevitabilidade” em tratar reformas comumente impopulares. De modo geral, os economistas da Escola de Chicago pensam a economia como uma disciplina “exata”, como se fosse, em tese, mais próxima da Matemática do que das questões políticas, de modo que em meio à defesa de seus modelos matemáticos, raramente assumem as contradições de seus posicionamentos políticos. Eles consi- deram que é possível definir qual ação é melhor ou pior para a economia de um país a partir de modelos de análise, sem discutir os aspectos éticos ou políticos. Em termos políticos, o neoliberalismo é frequentemente associado aos governos de Pinochet no Chile, Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra. Entre as políticas econômicas promovidas por esses governos neoliberais estão as privatizações, a redução dos gastos do Estado com políticas sociais, a des- regulamentação financeira, a promoção de flexibilizações de direitos trabalhistas, a austeridade fiscal, o estímulo ao setor privado e as propostas ultraindividualistas. Trocando Ideias... Acho que atravessamos um período no qual muitas crianças e pessoas foram levadas a acreditar que, se tenho um problema, é a missão do governo resolvê-lo ou que conse- guirei uma subvenção para lidar com ele ou que, se sou um sem-teto, o governo deve dar-me moradia – de tal modo que essas pessoas estão arremessando seus problemas sobre a sociedade. Mas o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos e famílias (Margaret Thatcher, em entrevista à revista Woman’s Own, em setembro de 1987) (MAGNOLI, 2013). Nessa entrevista, o discurso de Thatcher assume um individualismo radical, que é marca das políticas econômicas neoliberais. Elas defendem o livre embate entre os indivíduos e as empresas na “arena econômica”. O sociólogo francês Pierre Bourdieu definiu o neoliberalismo exatamente por seu individualismo exacerbado. Segundo 19 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal Bourdieu (1998, p. 136), o neoliberalismo é um “[...] programa de destruição metó- dica dos coletivos”. Em Síntese Nesta Unidade estudamos como o liberalismo nasceu a partir das transformações eco- nômicas geradas pela Revolução Industrial, pela ascensão de uma nova classe social, a burguesia, e pelos movimentos de reação ao Estado absolutista. O liberalismo diz respeito a um conjunto de ideias e práticas bastante heterogêneas e que se deram em contextos bastante diversos, mas de modo geral é possível enxergá-lo em dois âmbitos, o econômico e o político. O liberalismo econômico defendia a mínima intervenção do Estado na economia, de modo a se opor aos privilégios concedidos pelos reis nas monar- quias absolutistas. O liberalismo político defendia os direitos e as liberdades individuais e buscava estratégias para evitar as diversas formas de abuso de poder. As ideias liberais transformaram o mundo, influenciando diversas revoluções na Europa e os movimentos de independência e abolição da escravidão nas Américas. E causaram controvérsia, sendo alvo de críticas por ter favorecido o domínio econômico e político por uma única classe de pessoas (agora a burguesia), quando o que deveria acontecer – ao menos em tese – era o contrário. Assim, torna-se cada vez mais essencial a necessidade de compreensão das facetas con- temporâneas desse fenômeno, tendo em vista que o neoliberalismo continua determi- nando muitas propostas atuais em prol da limitação da atuação econômica e social do Estado, o que tem gerado profundos impactos na tessitura social de diversas sociedades ao redor do mundo. 20 21 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura Adam Smith e o surgimento do discurso econômico CERQUEIRA, H. da G. Adam Smith e o surgimento do discurso econômico. Brazil Journal of Polit. Econ., v. 24, n. 3, 2019. https://bit.ly/34D2pYV Neoliberalismo, globalização e reformas do Estado: reflexões acerca da temática LEME, A. A. Neoliberalismo, globalização e reformas do Estado: reflexões acerca da temática. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, RS, n. 32, jun. 2010. https://bit.ly/3ltWAnd Liberalismo: o direito e o avesso MARTINS, C. E. Liberalismo: o direito e o avesso. Dados, v. 46, n. 4, 2007. https://bit.ly/36OapZR O projeto neoliberal e o mito do Estado mínimo MORAES, A. C. de. O projeto neoliberal e o mito do Estado mínimo. Lutas Sociais, São Paulo, n. 1, 1996. https://bit.ly/3lrqCrO 21 UNIDADE O Pensamento Político e o Estado Liberal Referências BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. Dicionário de política. 2 v. Brasília, DF: UnB, 2007. BOURDIEU, P. Contrafogos – táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. EAGLETON, T. Marx e a liberdade. Trad. Marcos B. de Oliveira. São Paulo: Unesp, 1999. (Col. Grandes Filósofos). ENGELS, F. A origem da família da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. GIANNOTTI, J. A. Marx: além do marxismo. Trad. Luciano Codato. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MAGNOLI, D. Essa coisa de sociedade não existe. O Estado de São Paulo, 11 abr. 2013. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,essa-coisa-de- -sociedade-nao-existe-imp-,1019492>. Acesso em: 07/11/2020. 22