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Edição em formato digital: junho de 2023 MIKA NA VIDA REAL Título original: Mika in Real Life Texto © 2022, Emiko Jean Publicado por William Morrow, uma chancela de HarperCollins Publishers, Nova Iorque. Todos os direitos reservados. © desta edição: 2023, PRH Grupo Editorial Portugal, Lda. Topseller é uma chancela de Penguin Random House Grupo Editorial Portugal. Rua Alexandre Herculano, 50, 3.º, 1250-011 Lisboa, Portugal correio@penguinrandomhouse.com Penguin Random House Grupo Editorial Portugal apoia a proteção do copyright. Sem a prévia autorização por escrito do editor, esta obra não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, por meio de gravação ou por qualquer processo mecânico, fotográfico ou eletrónico, nem ser introduzida numa base de dados, difundida ou de qualquer forma copiada para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas. Tradução: Maria Ferro Revisão: Catarina Sacramento Capa: adaptação de Wonder Studio sobre design e ilustração de Vi-An Nguyen ISBN: 978-989-787-180-1 Composição digital: M.I. Maquetación, S. L. mailto:correio@penguinrandomhouse.com Composição digital PRHGEP: Luís Gomes Site: penguinlivros.pt Twitter: @PenguinLivrosPT Facebook: topseller.editora Instagram: topseller.suma Instagram: boldreadspt http://www.penguinlivros.pt/ https://twitter.com/PenguinLivrosPT https://www.facebook.com/topseller.editora https://www.instagram.com/topseller.suma/ https://www.instagram.com/boldreadspt/ Índice Mika na Vida Real Créditos Dedicatória Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Capítulo 34 Capítulo 35 Agradecimentos Sobre este livro Sobre Emiko Jean Para a Yumi e o Kenzo por me inspirarem a escrever este livro Querida Penny, Chovia no dia em que nasceste. No exterior da maternidade, o céu estava da cor da cinza líquida e havia um cartaz que dizia: OS NASCIMENTOS SÃO A NOSSA ESPECIALIDADE. Concentrei-me nele enquanto dava à luz, enquanto as enfermeiras e a médica berravam à minha volta. «Está quase», exclamou uma enfermeira. Tremi e fiz força para baixo, só queria que aquilo acabasse. Um grito escapou-me da boca. Fiz força. A médica puxou. E lá estavas tu. Lá. Estavas. Tu. Erguida no ar sob um abrasador cone de luz. Seguiu-se um silêncio terrível, um segundo agonizante que se estendeu até à eternidade. Como se estivesses a decidir como é que seria a tua entrada no mundo. Finalmente, soltaste um choro, tão agudo e penetrante que até a médica comentou. «Esta aqui já tem muito a dizer», disse ela. Secretamente, fiquei satisfeita com a fúria na tua voz. Isso era um bom presságio para ti, acreditei. Não serias facilmente silenciada. A médica cortou o cordão, e eu estendi os braços para pegar em ti. Por alguns instantes, esqueci-me de que não podia ficar contigo por não seres minha. Ela pousou-te nos meus braços. Fiquei maravilhada com as tuas mãozinhas minúsculas, o teu cabelo preto, a tua boca em forma de arco, o teu nariz que parecia o de um touro quando as narinas se abriam. O meu corpo tinha um propósito, e eras tu. No espaço de uma única respiração, eu fiquei desfeita e reconstruí-me. O que se seguiu foi uma imagem difusa: pontos, roupa de cama lavada e empanturrar-me até mais não. A Hana estava lá. Tinha estado desde o início. Uma enfermeira tinha olhado para mim e para a Hana, para as nossas carinhas de 19 anos, para quão jovens éramos, e fez um estalido com a língua. «Bebés a terem bebés», dissera ela. Era fácil perceber o que ela queria dizer — raparigas idiotas, raparigas irresponsáveis, aquelas raparigas. Ela viu a Hana a tratar a ementa do serviço de quartos como se fosse a sua máquina de venda automática pessoal, viu-a a surripiar pratos em forma de rim, viu-a a encher os bolsos com pensos higiénicos. Mas não viu a Hana a ajudar-me a tomar banho, quando fiquei zonza ao tentar pôr-me em pé. Não me viu a chorar na casa de banho, a murmurar «desculpa» vezes e vezes sem conta enquanto a Hana descrevia círculos com o sabonete no meu corpo, me limpava debaixo dos braços e suavemente entre as pernas. E não viu a forma como a Hana respondia com um sorriso, como se não fosse nada de especial. A Sra. Pearson, a agente de adoção responsável pelo meu caso, apareceu na altura em que o meu cabelo ainda estava a secar. Tirou alguma papelada da mala. Já estava pré- preenchida. Tudo o que eu tinha de fazer era assinar. Tocaram os sinos, ecoando pelo corredor do hospital. Uma canção chamada Breath of Life que tocava sempre que nascia um bebé. Quando peguei na caneta, a Hana apertou- me a mão. «Tens a certeza?», perguntou. Tudo o que consegui fazer foi assentir com a cabeça. Respirar. Virando as páginas, rabisquei o meu nome. Ignorei os barulhinhos que fazias durante o sono. Ignorei a forma como o quarto todo cheirava a antissético. Prestei toda a minha atenção à seta cor-de-rosa fluorescente que indicava onde a minha assinatura final deveria ficar. Em cima havia um aviso com letras em negrito. «Após a cedência, a certidão de nascimento original será selada e será emitida uma nova» — uma certidão com os nomes dos teus pais adotivos. Assinei, apagando-me da tua vida. Estava feito. Depois, abracei-te uma última vez. Desembrulhando a manta que te embrulhava, beijei cada um dos teus dez dedos, as tuas duas bochechas, o teu narizinho. Por fim, encostei a palma da minha mão ao teu peito. Estavas quente, e senti que me marcavas. «Tenho tanta pena», sussurrei, desculpando-me por aquilo que desejava, mas não podia manter. Abracei-te durante mais alguns instantes. Depois, larguei-te. Deixei a Sra. Pearson levar-te. Não consegui ver. Em vez disso, baixei a cabeça e tentei agarrar-me à memória da primeira vez que te vi numa ecografia — com uma grande barriga, as mãos a abanar, o cordão umbilical a flutuar — uma pequena mergulhadora. Vi- me, então, como um daqueles bezerros que se movem em círculos nas águas rasas e estão sempre a ficar encalhados, falhando uma e outra vez. Eu não queria que tu nadasses em vão. Queria que encontrasses o alto-mar, que mergulhasses fundo, que a tua vida fosse uma linha única, reta, perfeita. A porta fechou-se, e lembro-me do estalido silencioso, do som que eras tu a afastares-te de mim. Quando te foste embora, o quarto do hospital pareceu tremendamente vazio; pensei que morreria de solidão. Outra pessoa iria ver-te a dormir. Outra pessoa tocar-te-ia no peito e certificar-se-ia de que estavas a respirar. Chorei com um abandono tão selvagem que a Hana pensou que eu tinha rasgado os pontos. E foi isto. Isto é tudo. Todos estes momentos ainda vivem em mim. Tu ainda vives em mim. Metade das minhas respirações, um quarto de cada batida do coração, são tuas. Acho que é isso que acontece quando se tem filhos… eles levam um pedaço de nós. Não pensei no futuro naquele dia. Não pensei nos Calvins, a tua nova mãe e o teu novo pai, no quão brancos eles eram. Quem é que te iria ensinar a seres um corpo amarelo na América? Não pensei no que te poderia dizer se viesses ter comigo e me perguntasses: «Porquê, quem és tu, quem sou eu?» Claro, sonhei que podia fazer parte da tua vida, mas da mesma forma que alguém pede um desejo a uma estrela- cadente ou compra bilhetes da lotaria. Nunca acreditei que isso pudesse realmente acontecer. E nunca acreditei que iríamos estar de volta ao mesmo hospital — tu com 16 anos, eu com 35 — ou que tu estarias na cama desta vez, e eu estaria a pedir-te desculpa novamente. Desculpa, Penny. Estraguei tudo. Magoei-te. Não posso prometer que nunca mais te vou magoar. A verdade é que não há muito que eu possa prometer-te. Ainda assim, ainda assim. O pouco que tenho é teu. Aconteça o queacontecer. Quer me perdoes quer não. Quero que saibas que vou estar sempre por perto. Como qualquer mãe ou pai, vou estar aqui, à espera de que a minha filha volte para casa. Mika Sete meses antes... D CAPÍTULO 1 espedida. Mika pestanejou. — Peço desculpa... como assim? — perguntou a Greg, na caixa de sapatos que lhe servia de escritório. Na verdade, não era realmente um escritório. Era um cubículo recortado na grande sala das fotocopiadoras da Kennedy, Smith & McDougal Law. Mas Greg dominava o pequeno espaço como se fosse um gabinete de canto no trigésimo andar. Chegara até a decorá-lo: um bonsai no canto da secretária, uma espada de samurai barata, mal presa à parede. Greg era branco e um autoassumido nipófilo. Em mais do que uma ocasião, tentara conversar com Mika em japonês, e ela hesitara — ela era fluente, só não era fluente para ele. Pois bem, esse tipo. Greg recostou-se na cadeira. — Isto não deve ser uma surpresa para ti — disse ele, formando uma pirâmide com os dedos e colocando-os debaixo do queixo sem um único pelo. — Tenho a certeza de que já ouviste os rumores. Mika anuiu com uma expressão vaga. Um sócio sénior, daqueles que atraem muitos clientes para a empresa, tinha saído recentemente para outra firma. As margens de lucro não estavam famosas. Ela abriu as mãos. — Mas eu ganho vinte dólares à hora. — Uma ninharia em comparação com os outros empregados assalariados. Será que os mandachuvas acreditavam que despedir uma administrativa iria fazer mossa nas suas preocupações financeiras? Greg acenou com uma mão. — Eu percebo — disse ele. — Mas tu sabes como são estas coisas, os últimos da hierarquia... — A sua voz desvaneceu-se. — Por favor. — Ela detestava implorar, especialmente a Greg. — Eu preciso deste emprego. — Mika gostava da Kennedy, Smith & McDougal. O trabalho era fácil. O salário era bom. O suficiente para conseguir pagar a renda e as despesas fixas todos os meses, sobrando-lhe alguma coisa para ir ao supermercado fazer compras, a maioria das quais pertencia à variedade de queijos de pasta mole. Além disso, o prédio situava-se perto do museu. Ela ia lá no intervalo do almoço, e fazia a digestão enquanto olhava para quadros de Monet e passeava pela secção de antiguidades, descansando a alma. — Então e a Stephanie? — A Stephanie tinha sido contratada depois de Mika. — A Stephanie tem mais experiência como assistente jurídica do que tu. A decisão resumiu-se a saber quem era um melhor ativo para a empresa. Olha, tenho a certeza de que vais encontrar outra coisa. Infelizmente, não te qualificas para o subsídio de desemprego, uma vez que estás aqui há menos de um ano, mas vou escrever-te uma bela carta de recomendação. Greg começou a pôr-se de pé. Fim da discussão. — Eu aceito um corte no salário — soltou bruscamente Mika. O seu olhar cravou-se no chão, mais ou menos onde estava o seu orgulho. Não estava a conseguir lidar com a situação. As lágrimas ameaçavam escorrer. Tinha 35 anos e era despedida de mais um emprego. Outra vez. Greg abanou a cabeça. — Sinto muito, Mika. Não vale a pena. Hoje é o teu último dia. * * * O ténue odor a pipocas bafientas. As velas para cura emocional em liquidação. O que é que tinha esta loja de especial que tanto atraía Mika para o seu interior? Ficou na secção de produtos para o lar, a examinar uma almofada bordada com o ditado «O DINHEIRO PODE COMPRAR UMA CASA, MAS NÃO UM LAR». Ao telemóvel, Hana ria- se. — Então, deixa-me ver se percebi bem. Ele convidou-te para sair enquanto estava a despedir-te? — Logo a seguir — corrigiu Mika. Greg acompanhara-a até à secretária, ficara a vê-la a arrumar as suas coisas e depois tinha- lhe perguntado se ela gostaria de ver um filme mais tarde ou talvez ir ao Festival das Cerejeiras em Flor na universidade, no fim de semana seguinte. A humilhação irada foi profunda. Hana soltou outra gargalhada. A boca de Mika esboçou um sorriso. — Por favor, não faças isso. Estou num lugar muito vulnerável neste momento. — Estás num Target — salientou Hana. Mika inclinou a cabeça, a contemplar a almofada. Fora desenhada por um casal que tinha ficado podre de rico fazendo casas novas parecerem velhas. Tinha tudo que ver com tábuas de madeira. A almofada podia ser dela por 29,99 dólares. — Nunca pensei que pudesse ser despedida e assediada sexualmente no mesmo dia. É uma novidade. Mika deixou a almofada para trás e dirigiu-se à secção de vinhos. A sua carteira estava mais leve, mas uma garrafa de vinho de cinco dólares era uma necessidade. Hana emitiu um som de solidariedade. — Podia ser pior. Lembras-te de quando foste despedida daquela loja de donuts por guardares donuts com xarope de ácer no congelador e comê-los entre uma encomenda e outra? — Isso foi na faculdade. Mika encaixou o telemóvel entre a orelha e o ombro. Tinha acabado de escolher o vinho, agora estava no corredor da comida, a encher o cesto com crackers de queijo. Era só classe. — Ou daquele trabalho que tinhas como ama, por veres o The Shining com os miúdos? — Eles disseram que queriam uma história de fantasmas — defendeu-se ela. — Então e quando escreveste aquela fanfiction para adultos baseada no filme O Predador, e depois deixaste a janela aberta no teu computador do trabalho? A confusão estampou-se no rosto de Mika. — Isso nunca aconteceu. Hana riu-se outra vez. Mika esfregou a testa, sentindo-se como se tivesse caído de uma árvore aziaga, acertando em cada ramo ao longo da queda, e depois aterrando num fosso de cobras e ursos. — O que é que eu vou fazer? — Não sei. Mas estás em boa companhia. Descobri esta manhã que os Pearl Jam escolheram o Garrett para a digressão de verão. — Hana era intérprete de língua gestual para bandas, e Garrett, tendo vindo recentemente do circuito de rock alternativo cristão, tinha invadido o território de Hana. — Vou provavelmente ter de fazer um monte de espetáculos dos Earth, Wind & Fire agora. Cabrão do Garrett. Vem para casa. Vamos comer e beber para chorarmos as nossas mágoas juntas. — Combinado. Mika desligou e atirou o telemóvel para dentro da mala. Passou um minuto. Mika vagueou pela loja. O telemóvel tocou. Podia ser Hana outra vez. Ou a mãe, Hiromi, que já tinha deixado uma mensagem naquela manhã. Passei pela igreja e conheci o novo membro da congregação. Chama-se Hayato e trabalha na Nike. Dei-lhe o teu número. O telemóvel tocou outra vez. Às vezes, Hiromi ligava duas, três vezes seguidas, induzindo o pânico. Da última vez, Mika atendeu sem fôlego, já a pegar nas chaves, pronta para ir para o hospital. «O que é que se passa?» Hiromi respondera: «Nada. Porque é que pareces estar sem fôlego? Queria dizer-te que o Fred Meyer está com o frango em promoção...» Mika ouvira, o mau feitio a crescer. «Não podes ligar tantas vezes. Pensei que tinha acontecido alguma coisa», dissera. Ao que Hiromi zombara: «Lamento não estar mais morta para ti.» O telemóvel continuou a tocar. Mika tirou-o da mala e olhou para o ecrã. Um número privado. Curiosa, deslizou o dedo para atender. — Estou? — disse ela, com as sobrancelhas franzidas a unirem- se. Merda, pensou tarde demais. Podia ser o novo membro da congregação, o tal Hayato. Rapidamente, percorreu possíveis desculpas. O meu telemóvel está a morrer. Eu estou a morrer. — Oh, uau! Atendeu! Não tinha a certeza se ia atender! — disse uma voz jovem e muito animada. A ligação ficou abafada, como se uma mão tivesse sido colocada sobre o altifalante do telefone. — Ela atendeu. O que é que eu faço? — disse a voz a alguém ao fundo. — Estou? — disse Mika mais alto. — Desculpe, a minha amiga Sophie está aqui. Sabe, para dar apoio moral? Estou a falar com a Mika Suzuki? — É a própria. — Mika pousou o cesto aos pés dela. — Quem fala? — Chamo-me Penny. Penelope Calvin. Acho que sou sua filha. * * * Mika conseguiu segurar o telemóvel mesmo quando os seus membros perderam totalmente as forças. Mesmo quando o sangue começou a galopar-lhe nas veias e a visão ficou turva e depois afunilou. Mesmo quando voltou atrás no tempo, de regresso aohospital, de regresso a Penny recém-nascida. O dia veio-lhe à memória em lampejos dilacerantes. Mika a aconchegar Penny na curvatura do seu braço. A beijar-lhe a testa. A afastar- lhe o cabelo para lhe pôr um fino gorro às riscas azuis na cabeça. Tudo tão insuportável e belo. — Ainda aí está? — perguntou Penny. — Estou a falar com a Mika Suzuki certa? Eu paguei uma daquelas coisas de pesquisa online. Usei o cartão de crédito do meu pai para um teste grátis. Ele vai matar-me se descobrir! Mas, sem stress, vou cancelar antes de cobrarem. Seguiu-se o silêncio. Penny estava à espera de que Mika dissesse alguma coisa. Ela fechou os olhos e abriu-os. — Isso foi muito inteligente — murmurou ela, a tremer. Sentar- se. Precisava de se sentar. Mika cambaleou para trás até dar com uma cadeira de plástico para exterior, agarrando-se ao apoio de braços para recuperar o equilíbrio, com os nós dos dedos a ficarem brancos. Como é que ela tinha ido parar à secção de jardim? — Eu sei, não é? O meu pai diz sempre: «Se ao menos usasses os teus poderes para o bem!» — Penny baixou a voz uma oitava, fazendo-se passar pelo pai dela. Mika quase sorriu. Quase. — Então, estou a falar com a Mika Suzuki certa? Não há muitas no Oregon. As outras únicas duas candidatas eram mais velhas. Quero dizer, acho que elas podem ser a minha mãe biológica. Havia, tipo, aquela senhora que deu à luz gémeos aos 50 anos? Mas eu tinha quase a certeza de que era a senhora... Ainda aí está? Mika estava a transpirar, sentindo o telemóvel escorregadio ao ouvido. Inspirava e expirava. Para dentro e para fora. — Estou aqui. — E é a Mika Suzuki? Deu um bebé para adoção há dezasseis anos? Sentiu as têmporas a latejar. — Sou, sim. Dei, sim — disse Mika, com a garganta seca. Secretamente, tinha sonhado com este momento. O dia em que poderia ouvir a voz da filha. Falar com ela. Às vezes, a fantasia beirava o delírio. Ao longo dos anos, pensou que tinha visto Penny algumas vezes. O que era ridículo. Sabia que Penny vivia no Midwest. Mas quando via uma menina de cabelo preto e franja muito direita, o corpo de Mika inflava com a certeza. Sentia um puxão invisível. É a minha menina, pensava, desiludindo-se depois quando a menina se virava e o nariz não era o certo, ou os olhos eram verdes, não de um castanho profundo. Não era Penny. Era uma impostora. Mika afrouxou o aperto ao braço da cadeira de jardim, as pernas a tremer ao tentar pôr-se de pé. Começou a vaguear pelos corredores. Precisava de se mexer. Isso ajudava-a a manter-se focada, a manter-se no presente. Ajudava a exorcizar a tempestade de emoções que se formara. — Isto é fantástico! — guinchou Penny. — Não acredito que me encontraste — disse Mika, ainda totalmente atordoada. Passou por um expositor com pastilhas de magnésio dentro de frascos roxos. — Não foi difícil. O seu nome é súper único e fixe. Quem me dera ter um nome japonês — suspirou Penny com melancolia. — Oh. — Mika franziu o sobrolho, sem saber o que dizer. Ela tinha escolhido o nome Penny. Tinha feito um grande alarido por causa disso, tinha insistido para que isso fizesse parte do acordo legal. Podem ficar com a minha filha, mas não podem ficar com o nome dela. Embora a Sra. Pearson se tivesse esforçado por fazer a adoção parecer menos transacional, certas partes não podiam ser evitadas. Houve advogados. Negociações. Papelada rigorosa que tendia ligeiramente a favor da família adotiva. Mas o nome... o nome era de Mika. Inicialmente, tinha considerado Holly, uma planta que floresce no inverno. No Japão, era tradição os pais escolherem o nome com base nas suas esperanças para a criança. O nome Mika em kanji traduzia-se por «bela fragrância». Isso dizia muito a Mika sobre o valor que tinha para a sua mãe. Era como um acessório. Como algo destinado a atrair. Mika não quisera isso para a sua filha. Então, finalmente, decidira-se por Penelope, que significa «fiandeira» na Odisseia de Homero. Era um nome forte, resiliente e aspiracional; encaixava na vida que Mika queria para a sua filha. A pessoa que ela pensava que podia vir a ser. A família a que poderia pertencer. Mika também esperava que um nome mais americano pudesse facilitar a vida a Penny. Mika tinha anos de erros de pronúncia e de ortografia às costas. Tinham-lhe chamado Mickey um número infindável de vezes. Ela queria que Penny se enturmasse. Mas não parecia ser a altura certa para dizer tudo isto. Em vez disso, disse: — Lamento o que aconteceu à tua mãe. Quando a Sra. Pearson informara Mika, cinco anos antes, de que Caroline Calvin tinha cancro e estava a morrer, ela implorou para ser posta em contacto com Penny, jurou que podia sentir a dor da filha a pressionar-lhe a pele como um ferro em brasa. «Ela precisa de mim», dissera Mika. «Vou tentar», respondera a Sra. Pearson, a agente de adoção. Mas depois, Thomas Calvin negou o pedido. «Lamento, Mika», disse a Sra. Pearson, «a Caroline não tem muito tempo. Cancro. Estádio quatro. Muito de repente. Ele quer que sejam só eles os três nestes últimos dias». — Sim. — A voz de Penny esbateu-se. — Passámos um mau bocado. Acabámos de assinalar o quinto aniversário. Não acredito que já passou tanto tempo. O silêncio voltou a abater-se na chamada. Mika continuou a andar. Sem destino conhecido. Tinha o corpo todo em alvoroço. Passou pelo corredor dos testes de gravidez. Há quase dezassete anos, andara à cata de trocos no carro de Hana para encontrar dinheiro suficiente para comprar um teste na loja de um dólar, depois urinara para cima do teste na casa de banho de um supermercado próximo. Ainda mal se tinha limpado quando as duas linhas cor-de-rosa apareceram, quando o mundo dela se desmoronou. Mika percebeu que tinha ficado em silêncio por muito tempo. — Ela escrevia-me cartas, a tua mãe, e enviava-me pacotes com fotografias tuas, desenhos que tinhas feito. Ela tinha uma caligrafia bonita — saiu-lhe atabalhoadamente. Mika não sabia muito sobre o casal que tinha adotado Penny. Escolhera-os de entre dezenas de perfis de famílias em álbuns de recortes. Ganhou o hábito de olhar fixamente para as fotografias dos futuros pais de Penny. Para Thomas, um advogado especializado em direitos de autor, fotografado na faculdade, com a sua equipa de remo. Focara-se nas mãos dele à volta dos remos, na covinha formada pelas rugas entre os seus olhos verdes. Ele é forte, lembrava-se Mika de ter pensado. Ele defenderia Penny. Depois, olhava para Caroline, também na faculdade, a sua camisola com letras gregas, o seu sorriso largo. Era fácil imaginá-la a sorrir da mesma maneira para Penny, a dizer-lhe coisas maravilhosas, como Estou orgulhosa de ti. Estou tão feliz por seres minha. Atravessaria o escuro às cegas por ti. — Ela tinha mesmo uma letra bonita. Era perfeita — disse Penny carinhosamente. Isso não surpreendeu Mika. Caroline parecia perfeita em todos os aspetos da sua vida. — A minha é tão desleixada. Sempre me perguntei se isso era algo genético. Mika não pensava que fosse. Mas ansiava por uma ligação a Penny, alguma forma de as unir. — A minha caligrafia também é terrível. — Ai, é? — Uma nota de esperança na voz de Penny. Mika abrandou. Acalmou-se um pouco. — Gosto de pensar nela como a minha própria fonte. Podia chamar-se «café e donuts a mais». Penny riu-se. Era um som agradável, encorpado e sincero. A sua filha. — Ou «Arruma essa tua confusão». Finalmente, Mika fez uma pausa no corredor dos detergentes. Não havia lá ninguém. Recostou-se, inalou o cheiro a roupa lavada. Acreditara que, com o tempo, a memória de Penny, daquilo que acontecera antes, poderia desvanecer-se, mas só ficou mais nítido em contraste com as memórias desfocadas, menos importantes, do seu passado recente. Terminar a faculdade, o seu primeiro emprego remunerado, até mesmo parte da gravidez... o relógio imparável alisara todas essas arestas ásperas. Mas Penny, a bebé, a bebé de Mika, tinha perdurado, uma mão moldada em betão. Desejava ter sabido na altura aquilo que sabia agora. Que todos os dias iria acordar e pensar em Penny. Na idade queteria. No que poderia trazer vestido. Para quem poderia estar a sorrir. Que o seu amor se agarraria com unhas e dentes, incapaz de capitular. — A senhora está bem? — disse uma mãe com dois filhos que entrara no corredor. Mika endireitou-se num pulo. — Perfeitamente. Está tudo bem. Uma das crianças tinha chocolate pela cara toda. Lambeu um círculo lento à volta dos lábios. A mãe esperou até Mika começar a andar antes de ela própria se deslocar. — Está mais alguém aí consigo? — perguntou Penny. — Não. Estou a fazer compras. Estou num Target — disse Mika sem se dar tempo para pensar. Quis esmurrar-se na cara. Com força. O que iria pensar Penny? Uma mulher adulta num Target, numa quarta-feira à tarde. Será que ela estaria a perguntar-se porque é que Mika não estava no emprego? Penny praguejou. — Desculpe. Devia ter perguntado se era boa altura para falarmos. É melhor eu desligar. Mika não gostou do som daquelas palavras. A ameaça de este pequeno fio ténue ser cortado novamente. Será que Penny também o sentiu? Este fluxo de êxtase, como se fosse energia a passar entre elas. — Não. Está tudo bem. — Eu tenho de ir, de qualquer maneira. O meu pai está quase a chegar a casa. Não. Continua a falar. Até te ouvia a leres o Guerra e Paz. Mika abafou a súbita vontade de chorar. — Claro que sim. Foi bom falar contigo. — Mika saiu da loja. O céu estava cinzento; era primavera em Portland. Dois corvos bicavam no lixo no parque de estacionamento. Mika pestanejou e, no interior das pálpebras, viu outro conjunto de corvos. Há muito tempo, a lutarem por uma embalagem de melancia deitada ao lixo. Tratou de afastar a memória. — Se alguma vez precisares de alguma coisa... Se eu alguma vez puder fazer alguma coisa... — Na verdade… — Penny exalou bem alto. — Eu gostaria de continuar a falar. Gostava de lhe ligar outra vez. Talvez até por Skype? Seria bom vermo-nos cara a cara. — Oh — disse Mika, demasiado atordoada para respirar, demasiado abalada pela incredulidade. Penny queria-a. Penny queria-a a ela. E Mika foi trespassada por um desejo tão agudo que temia que se pudesse desfazer. Então, falou por impulso, por desejo furioso, e respondeu: — Sim, é claro que sim. Ia gostar muito. M CAPÍTULO 2 ika foi para casa num estado de fuga dissociativa. Não se lembrava de ter enfiado a chave na ignição, ligado o carro, saído do estacionamento, não se lembrava dos postes de iluminação pública, dos piscas, das ruas em que virara, nem de ter estacionado o carro junto ao passeio. Assim que estacionou, permaneceu sentada no banco do condutor, com o motor desligado. A chuva salpicava o para-brisas. — Penny — sussurrou para o silêncio. Dizer o nome da filha parecia uma oração, quase um segredo, um sino a tocar, a chamá-la para casa, que são horas de jantar. — Penny, Penny, Penny — disse ela, vezes e vezes seguidas. A boca elevou-se-lhe nos cantos, formando um sorriso completo, quando saiu do carro. Ervas daninhas e várias plantas espinhosas espreitavam por uma cerca branca lascada e com a tinta a descascar. O caminho de acesso à casa mal se via. Mika vivia numa pequena moradia. Uma das portadas da casa estava descaída, presa apenas por um único prego. Monstruosidade seria um termo generoso. Mika destrancou a porta e empurrou-a... só que... havia alguma coisa a bloqueá-la. Depois de muitos grunhidos, Mika cambaleou porta adentro, afastando caixas do seu caminho. A irritação conseguiu manchar a alegria. — Uau! Acordaste esta manhã e disseste: «É mesmo hoje que vou levar esta merda ainda mais longe e barricar-me até encontrarem o meu esqueleto daqui a vinte anos»? — Mika deu um abraço a Hana. Hana manteve os olhos focados na televisão, com um bolo meio comido no colo. — Tão estranho. Foi exatamente isso que disse a mim mesma. Estás atrasada. — Hana enfiou-lhe um bocado de bolo na boca. — Comecei sem ti. Também tenho estado para aqui a pensar. Acho que devíamos arranjar um cão e ensinar-lhe que «cagar» significa «Garrett». Tipo, em vez de dizermos «vai cagar», dizemos «vai ao Garrett». Depois, eu filmo e envio-lhe. — Ela levantou os olhos. — Onde está o vinho? — Nada de cão. Nada de filme. Nada de enviar ao Garrett. E esqueci-me do vinho. Mika contornou caixas por abrir e plantas mortas, depois atirou ao chão a pilha de revistas que estava em cima de uma cadeira para se sentar nela. Durante algum tempo, Hana conseguira controlar a sua compulsão para guardar tudo. Tinha comprado a casa com a namorada, Nicole. Tinham ficado contentes, enchendo-a com achados que arranjavam em vendas de garagem e feiras. Até tinham adotado um cachorrinho. Depois, Nicole traiu- a. Hana ficou com a casa. Nicole ficou com o golden retriever que era das duas. Mika, tendo acabado de romper a relação com Leif e estando com pouco dinheiro, ofereceu-se para ir viver com Hana. Juntas, afogaram os seus corações destroçados em vinho e comida cara e chegaram à conclusão de que a amizade delas era muito melhor do que aquilo que tinham tido com qualquer dos amantes anteriores. Elas compreendiam-se melhor uma à outra. Mika não se importava que Hana tratasse as compras online como se fosse o seu dever patriótico. Hana não dava importância ao péssimo historial laboral de Mika. Ninguém era perfeito. Abraçar os defeitos uma da outra tinha sido a base sobre a qual a amizade delas fora construída. Por isso, Mika não ficou perturbada por ver Hana no sofá, a queixar-se de um colega de trabalho e a ver... — Monstro? Estás mesmo a ver o Monstro? Um filme sobre assassinas em série lésbicas? — Mika encontrou o comando entre as latas de Red Bull e Mountain Dew. Desligou a televisão. — Então?! — exclamou Hana. — Há para aqui muita coisa para desempacotar. — Mika fez um gesto que englobou o caos generalizado: a tralha amealhada, os bolos semicomidos e o filme a dar no televisor. — E eu não tenho tempo. Tenho de te dizer uma coisa. Hana sentou-se e pousou o bolo. — Estou curiosa. Havia um bocadinho de cobertura de bolo na camisola de roller derby1 que lhe deixava a barriga à mostra. — A Penny telefonou-me. — Ah! — Hana ladrou uma gargalhada. Depois, quando viu a expressão no rosto de Mika, disse: — Cum caraças. Estás a falar a sério. Mika só conseguia acenar com a cabeça. Sentia o estômago às voltas só de pensar nisso. Ela tem cheiro de bebé acabado de nascer, ronronara Hana no hospital enquanto segurava a recém- nascida Penny, esfregando a sua face na dela. Hana recostou-se. — Uau! Grande cena! — Eu que o diga. — Mika abriu a boca, mas o seu telemóvel apitou: acabara de receber uma mensagem. Seria Penny outra vez? — É ela? — Hana inclinou-se para a frente, lendo os pensamentos de Mika. Mika olhou para baixo. — Não, é a Charlie. — Leu a mensagem. — Está a pensar em oferecer ao Tuan um retrato em tamanho real feito de Lego. — Tuan era o marido de Charlie. Hana revirou os olhos. — Ignora-a. Como é que a Penny te encontrou? Hana pegou numa caixa de madeira que estava em cima da mesa de centro e abriu-a. Lá dentro, havia um pequeno saco de plástico cheio de erva e alguns papéis. Preparou-se para enrolar um charro entre os dedos longos. Mika encolheu os ombros. — É a Internet, explicou a Penny. Hoje em dia, consegues encontrar qualquer pessoa. Mas, pensando melhor... como é que Penny a encontrara mesmo? Mika tinha escolhido uma adoção fechada: a sua identidade permaneceria secreta e, em troca disso, receberia atualizações anuais. Algo mais do que isso teria sido demasiado doloroso. Contentara-se com tão pouco, migalhas mesmo, porque sabia que, de outra forma, não se conseguiria manter afastada. Para ela, era indiferente se tinha sido Thomas Calvin a revelar a Penny o seu nome ou se a jovem tinha tropeçado na informação ao bisbilhotar nas coisas dos pais. O que importava era o aqui e agora. Que Penny tinha telefonado a Mika. Que Penny queria conhecer Mika. — É verdade. — Hana lambeu o papel e selou o charro. Melhor do que ninguém, a melhor amiga de Mika havia de saber como era fácil encontrar pessoas online. Há alguns anos, ela tinha encontradoa sua antiga professora da escola. A tal que tinha chamado à cor da sua pele «meia de leite». Hana era metade negra, um quarto vietnamita e um quarto branca: húngara e irlandesa. Assediou tanto a mulher que a fez abandonar as redes sociais. Hana acendeu o charro, deu uma passa e ofereceu-o a Mika. — Como é que ela é? Mika segurou no charro entre os dedos e olhou para o teto. Havia uma racha que o atravessava e que se arrastava para baixo, dividindo a parede. Mika tinha quase a certeza de que aquilo significava que tinham problemas nas fundações. — Não sei. A conversa foi curta. Ela é jovem, cheia de esperança, positiva. — Uma força da natureza. — Usou o cartão de crédito do pai para se inscrever num website que faz testes grátis para encontrar pessoas. — Mika dirigiu um sorriso maroto a Hana e levou o charro aos lábios. — Ela disse que ia cancelar o pagamento antes de o pai descobrir. Mika passou o charro de novo a Hana. — Faz-me lembrar como nós éramos. — Hana sorriu e deu uma passa. — Então — disse ela, exalando —, o que é que ela queria? Mika mordiscou o lábio de baixo. A porta do seu quarto estava aberta. A cama estava uma confusão, o edredão empurrado até ao fundo. Não valia a pena fazer a cama se ia escorregar para o meio dos lençóis umas horas depois. No chão, estava a sua t-shirt preferida com um Gudetama, um desenho animado dos criadores da Hello Kitty. Aquilo que parecia ser uma bolha amarela disforme era um ovo preguiçoso. — Ela quer conhecer-me. — As rodinhas de Mika começaram a girar. Avaliou rapidamente o seu ambiente, a sua vida, avaliou-se a si mesma e arrependeu-se de imediato. O que poderia ela oferecer a Penny? O que é que tinha alcançado na vida? A sua vida amorosa era anémica. Alguns namorados, uma relação séria com Leif que acabou com as coisas dele queimadas num caixote de lixo. E a sua vida profissional era igualmente insubstancial. Uma série de empregos que não a deixaram sentir-se realizada. Todos eles posições facilmente substituíveis. Encarava-se a si própria como uma pedra a saltitar sobre a água turva. O tempo passava sem consequências, sem pensar, permanecendo na mesma, afastando-se cada vez mais da costa. Mas um seixo nunca chega ao outro lado. Acaba sempre por ir ao fundo. Quando é que eu fui ao fundo? O estômago de Mika afundou-se. — Eu disse-lhe que podíamos voltar a falar, mas agora… não sei. Sentiu-se tão inadequada como naquele dia no hospital. — Desenvolve. — Hana apagou o charro. Mika desviou o olhar da casa e concentrou-se no seu próprio colo. Quais eram os riscos de estabelecer uma ligação com Penny? — Ela pode detestar-me. Eu posso detestá-la a ela — pensou Mika em voz alta. Embora não se conseguisse ver a odiar Penny. Penny podia matar alguém, e Mika levar-lhe-ia uma pá para enterrar o corpo. Ela iria dar sempre a Penny o benefício da dúvida. Acreditar nela. — Tenho a certeza de que ela tem perguntas. Montes de perguntas. Ela parece... persistente. Talvez queira saber mais sobre o seu pai biológico. E ela gostava de ter um nome japonês. Hana inalou. Deslizou pelo sofá, aproximando-se de Mika. — É claro que há de estar curiosa. Todos nós queremos saber de onde viemos. Mas ela não tem direito a essa informação até tu estares preparada. Nos termos da lei, Mika havia assinado um formulário a atestar que não sabia nada sobre o pai biológico da sua bebé, como a sua idade ou a sua localização, ou o facto de ele ter um sinal de nascença com a forma do estado do Maine no peito. — E se ela estiver zangada comigo? — perguntou Mika num fio de voz. Hana inalou. — Posso dar-te um conselho, mesmo sem teres pedido? — Nunca te acanhaste. — Quando a Nicole me enganou, a Charlie fez-me sentar e disse-me: «É preciso força para sair e força para ficar.» — Hana sacudiu cinza do joelho. — Tenho quase a certeza de que apanhou isso de um daqueles gurus de autoajuda. Mika franziu o sobrolho. — Não estou a perceber. — O que eu quero dizer é que terias mostrado força se tivesses ficado com a Penny, mas também mostraste força ao abrires mão dela. E se a Penny for tão inteligente como parece ser, não se vai importar com o que fizeste; vai importar-se com quem és. — E quem sou eu? — perguntou Mika em tom de desafio. Pensou no seu currículo pouco impressionante. Entusiasta do desemprego. Fumadora de erva. Mãe biológica. Hana começou a elencar com os dedos. — Primeiro, és leal. Em segundo lugar, és solidária. Em terceiro lugar, tens um coração de ouro. Em quarto lugar, és uma artista incrível que sabe todo o tipo de coisas sobre arte, especialmente coisas realmente desinteressantes, tipo quais as cavernas que têm pinturas de pilas de homens das cavernas. Em quinto lugar… — Já chega. — Mika levantou as mãos, interrompendo Hana. — Não estou exatamente preparada para isto emocionalmente. — Hana sabia a confusão que aquilo podia gerar. Todos os anos, por volta do aniversário de Penny, chegava um embrulho. Mika lia a carta de Caroline ou de Thomas, olhava para as fotografias de Penny com a família feliz, esfregava os polegares nos desenhos de Penny e depois espalhava tudo à sua volta num abraço sufocante. Mika passava o dia todo na cama. Hana também. Punha-se atrás de Mika, sem dizer uma palavra, e enrolava os braços à sua volta num casulo de luto. Choravam juntas. Mika por Penny. E Hana por Mika. — Alguma vez se está preparado? Esse é o objetivo das emoções. Quanto menos se espera delas, mais intensas são. Essa é a beleza dos sentimentos. — Isso é parvo. — Mika encostou a cabeça à cadeira. Toda a situação era esmagadora em todos os sentidos. Mas Hana estava lá. Tinha sempre estado lá. — Adoro-te, miúda — disse ela à sua melhor amiga. Essas duas palavras tinham sido o mantra de ambas desde que se conheceram quando eram caloiras na mesma escola secundária alternativa, o tipo de lugar para onde mandam os alunos quando não esperam muito deles. Assim que Mika vira Hana, percebera que eram almas gémeas. As duas eram ramos rebeldes que haviam rebentado nas suas árvores genealógicas. — Também te adoro, miúda. Mika apalpou a almofada à procura do telemóvel. Mesmo antes de desligar, Penny dera-lhe o seu número. Agora, enviou-lhe uma mensagem. Entusiasmada com a ideia da videochamada. A que horas dá para ti? Pronto, estava feito. Afastou o telemóvel de si. Tamborilou com os dedos nas coxas. Vai correr tudo bem. Surgiu-lhe novamente um lampejo do hospital. Quando vira Penny pela primeira vez embalada nas mãos do médico. Sim, ia correr tudo bem. Porque é que não haveria de correr bem? Penny e Mika tinham sido uma história de amor desde o início. 1 Jogo disputado por duas equipas, que patinam à volta de uma pista. [N. T.] U CAPÍTULO 3 ma semana depois, Mika foi à igreja. Com os pais. Espremida num canto do banco, Mika olhou de relance para a mãe. Hiromi Suzuki olhava em frente. Os seus olhos pretos como botões estavam focados no púlpito. O seu corpo era pequeno, com traços delicados, e a boca era mais carrancuda do que sorridente. Em casa, tinha um armário cheio de fatos de treino aveludados. Hoje, trajava beringela. A roupa complementava o cabelo curto e escuro, com uma permanente que formava duas meias cúpulas que o afastavam da cabeça, como o da rainha de Inglaterra. Ao lado de Hiromi, o pai de Mika, Shige, dormitava. O sermão continuou, qualquer coisa sobre amizade, e Mika pegou no telemóvel, abrindo o seu perfil no Instagram. Apresentava exatamente cinco fotos. Os dedos dos pés na areia numa viagem que fizera a Porto Rico com Leif, mesmo antes de se separarem. Outra dela e Leif, na mesma viagem, todos aperaltados para saírem à noite. O jardim das traseiras de Hana depois de Mika se ter mudado para casa dela — penduraram luzinhas decorativas e beberam margaritas com tequila da mais cara. Uma foto sua como dama de honor do casamento de Charlie. E uma fotografia de uma salada de beterraba e queijo de cabra. Era tudo. Penny colocara um gosto em todas elas. Elas tinham combinado uma chamada para o dia seguinte, a primeira reunião das duas por Skype. Mikasaiu do perfil e clicou na lupa — a barra de pesquisa. O seu ecrã encheu-se com publicações, o algoritmo devolvia-lhe conteúdo com base nos cliques e nas pesquisas anteriores. Havia muitas mulheres com rostos simétricos que combinavam com as casas bege perfeitas em que viviam. Um anúncio para celebrar um novo feriado federal comprando papel higiénico comemorativo. Uma celebridade que Hiromi adorava porque não tinha uma ama. Que impressionante. Na barra de pesquisa, inseriu a palavra adoção. O ecrã voltou a encher-se. Principalmente com mães adotivas a descreverem a sua epopeia. Finalmente está em casa. O Mateo (temos estado a chamar-lhe Matty!) tem 6 semanas e nunca lhe pegaram ao colo. Para o ir habituando, tenho usado o Ring Sling (não é um patrocínio pago) tanto quanto possível. As minhas costas estão cansadas e eu estou cansada em geral — o Mateo tem acordado de duas em duas horas. Alguma outra mãe por aí também se sente um pouco sobrecarregada hoje? As pessoas comentaram: Tu consegues fazer isto! Tu consegues! Experimenta a receita deste smoothie para te dar energia extra. Mika franziu o sobrolho quando sentiu as entranhas a revirarem-se. Ninguém dizia Não há problema em parar. Não há problema em admitires que não consegues. Isto está para lá das tuas forças. Era dada tanta ênfase às mulheres que fazem tudo sozinhas. Diziam-lhes para continuarem, mesmo que estivessem cansadas, pobres, agarradas por um fio. Olhou novamente para a fotografia da mulher com o seu filho recém-adotado ao colo. A sorrir como uma heroína. Teria sido isto que Thomas e Caroline pensaram, que tinham resgatado Penny? Uma mão serpenteou por trás do braço de Mika e beliscou a pele fina de dentro. — Presta atenção — disse-lhe a mãe no mesmo tom que usava quando mandava Mika para o quarto na escola primária. — Ai — ciciou Mika, esfregando o braço e olhando para a mãe. E isto é melhor aqui do que visitá-los em casa. Quando pensou na casa onde passara a sua infância, a ansiedade de Mika começou a fazer alongamentos como se estivesse a preparar-se para um sprint. A casa em si não era particularmente intimidante. Um bangalô dos anos 70 com todo o seu charme original: um tapete verde-vómito, candeeiros em forma de orbes amarelos e uma salinha forrada a madeira. No exterior, era semelhante a todas as outras casas do quarteirão, a arquitetura banal — decididamente nada digno de nenhum livro de História da Arte. Porém, no interior, tinha todos os toques clássicos japoneses: pacotes de molho de soja e talheres de plástico enfiados nas gavetas, chinelos bem alinhados junto à porta da rua, um estendal no jardim das traseiras, um montinho de cascas de pistácios que o pai gostava de comer enquanto via a NHK ou basebol japonês, sendo os Hanshin Tigers a sua equipa favorita. Apesar da desordem, do cheiro a incenso e da decoração datada, o impulso para a perfeição persistia dentro daquelas paredes. Estava no quimono empoeirado que Mika se recusou a usar depois de ter deixado de praticar odori. Nas molduras vazias que deviam conter o diploma de uma faculdade de renome a comprovar a licenciatura de Mika e as suas fotos do casamento. Nas panelas e nas frigideiras nas quais Mika nunca aprendera a cozinhar. No quinto mês de gravidez de Mika, a barriga já se notava. Mika já não conseguia esconder, nem queria. Ela e a mãe estavam a limpar a cozinha de azulejos verde-lima quando Mika contou a verdade. — Estou grávida. O pai de Mika estava a ver televisão na sala ao lado. Todas as portas do corredor estavam bem fechadas. Só se via aquilo que Hiromi queria que se visse. Hiromi parou de limpar a bancada. Por um único momento, ficou imóvel. Incapaz de abarcar esta nova realidade. — Ouviste o que eu disse? Eu disse que estou grávida. No interior da barriga de Mika, Penny mexeu-se suavemente, como asas a bater. Os primeiros movimentos do feto, como lhe dissera o ginecologista da clínica de saúde gratuita do campus. Hiromi pestanejou uma vez. Endireitou-se. — Quem é o pai? — perguntou friamente. A casa cheirava a sukiyaki — carne de vaca e legumes cozidos em mirin, molho de soja e açúcar. Eles comiam sempre a tradicional refeição quente quando o tempo ficava frio. Naquela noite, estava prevista neve. — É uma menina — disse Mika. Hiromi espremeu a esponja no lava-loiça. — As meninas são difíceis. — Tu és difícil, era o que Hiromi queria dizer. Alguém se riu na televisão. — Vou dá-la para adoção. A declaração foi espontânea. Mika não tinha decidido nada. Ainda estava a processar a gravidez, um pêndulo que oscilava entre a incredulidade e o medo. O que é que ela esperava que a mãe dissesse? Tarde demais, Mika apercebeu-se de que queria que Hiromi lhe dissesse para ficar com o bebé. Que lhe prometesse que ajudaria a criar aquele monte de células. Mas Mika já devia saber. O apoio de Hiromi vinha sempre com um preço alto, e Mika nunca soubera como pagar. Mesmo assim, Mika não podia deixar de ir ter com a mãe, de lhe servir a sua necessidade crua numa bandeja, na esperança de mais, de melhor, de que a mãe mudasse — de que cuidasse dela. A palavra adoção foi mencionada numa espécie de desafio. Hiromi abriu a torneira para despejar restos de comida pelo cano abaixo. A água quente queimou-lhe as mãos até ficarem vermelhas e o vapor amoleceu o vazio que se lhe formara na garganta. — Provavelmente, é o melhor que fazes. O que sabes tu sobre criar um bebé? — Era mais uma das muitas maneiras em que ela tinha desiludido a mãe. Hiromi tentara ensinar-lhe a ser uma boa dona de casa, a cozinhar, a ser uma boa anfitriã e a cuidar da casa. Tudo em preparação para o dia em que ela teria o seu próprio companheiro e o seu próprio filho. Mas Hiromi nunca tinha explicado a Mika nada sobre controlo de natalidade, sexo ou amor, ou o que fazer se se encontrasse subitamente grávida. Porque esse seria um resultado indesejável. E não se falava daquilo que não se queria que acontecesse. Na cozinha, Mika ficou atordoada por um momento. A deceção sufocou-a como se tivesse um bocado de arroz demasiado cozido na garganta. — É só isso? É só isso que me queres dizer? Os olhos de Hiromi viraram-se para Mika e depois dedicaram-se à barriga dela. Tinha a mesma expressão que usava quando a filha chegava a casa com roupas compradas numa loja que as vendia em segunda mão nos tempos do ensino secundário. Era esse o seu estilo naquela altura: calças de ganga rasgadas, camisas de flanela, t-shirts que mostravam a barriga. «O que é que as senhoras da igreja vão pensar?», dissera Hiromi, concentrando-se na pele exposta de Mika. — O que mais queres que eu diga? Vou falar disso ao teu pai. — Isso. Foi assim que Hiromi se referiu a Penny. Ela afastou-se de Mika, os punhos cerrados. — Queres o que sobrou do jantar para levares contigo para o dormitório? Mika envolveu a barriga com as mãos. — Não. Não, obrigada. Ela só voltou a ver os pais depois de Penny nascer, depois de ter chumbado em parte dos dois primeiros anos da faculdade. Isso tornara-se uma coisa inominável, contida atrás de uma das portas fechadas da casa de Hiromi. Agora, Mika estava novamente reclinada no banco da igreja. Do lado de fora dos vitrais, uma bandeira do movimento Black Lives Matter com um arco-íris ondulava ao vento — Hiromi e Shige toleravam a visão progressista da Igreja e iam à missa todos os domingos. Mika nem tinha a certeza de eles acreditarem num Deus cristão. Havia estátuas de Buda e butsudan, pequenos altares espalhados pela casa. Eles iam à igreja para beber ocha, para confraternizarem com a congregação de 99 por cento de japoneses e para combinarem encontros para Mika. — Estamos à procura de alguém para tratar das nossas contas nas redes sociais — anunciou a pastora Barbara do púlpito. — Alguém que as mantenha atualizadas com todos os acontecimentos. Branca, mas fluente em japonês, a pastora Barbara era uma mulher robusta com uma voz suave. Gostava de pegar nas duas mãos das pessoas enquanto falava com elas. Atrás dela, estava um Jesus asiático feito por encomenda — o marceneiro usaraapenas troncos caídos encontrados em terras não-tribais e peças de plástico recuperadas da ilha de lixo flutuante do oceano Pacífico. Na verdade, a mãe de Mika é que deveria ser aplaudida por levar uma vida sustentável. A mulher usava a mesma caixa de natas ácidas como tupperware há vinte anos. Também reutilizava papel de embrulho como se a sua vida dependesse disso. Durante cinco aniversários seguidos, a prenda de Mika foi embrulhada no mesmo papel com desenhos de O Meu Pequeno Pónei. Os pais de Hiromi tinham sobrevivido à Segunda Guerra Mundial no Japão, tinham crescido numa época em que a fruta era apenas uma memória e as suas vidas haviam sido moldadas pela guerra e pela fome. Tinham ensinado Hiromi a poupar cada pedacinho de papel, a fritar ervas do campo, a pegar em solo enegrecido pelas bombas e torná-lo rico novamente. — Também estamos à procura de voluntários para o bazar anual de preparação de alimentos — prosseguiu a pastora Barbara. — Mas aquilo de que realmente precisamos é de tocadores de taiko ou dançarinos para a parte da exposição. Se algum de vocês tem um talento especial, agora é a hora de deixá-lo brilhar! Uma vez por ano, na primavera, a igreja realizava uma angariação de fundos. Erguiam-se tendas no parque de estacionamento. O frango ficava a marinar em tinas com molho teriyaki. A massa soba crepitava nos woks. Vendiam comida de rua japonesa no exterior. No interior, o artesanato era exposto em mesas — pegas em croché, bonecos kokeshi, yosegi. À noite, os congregantes dançavam e tocavam música, expondo os seus talentos. Mais um beliscão da mãe dela. — Devias participar. Ajudar com a comida ou a dançar na festa. — Hiromi acotovelou Shige, que acordou sobressaltado. — Lembras-te de como a Mika dançava? — Antes de Shige a ter arrebatado, antes de se tornar uma esposa, a mãe de Mika tinha sido treinada como maiko, uma aprendiza de gueixa. E quando se mudaram para os Estados Unidos, Hiromi localizou um sensei para ensinar Mika. Se Hiromi não podia ser uma maiko, Mika seria uma dançarina. Hiromi queria compensar. Mika queria libertar-se. Ele acenou com a cabeça, atordoado. — Sim, sim, claro. Mika afastou-se até ficar encostada ao fundo do banco. Não disse nada. A recusa estava patente na linha cerrada formada pela sua boca. Mika dançaria novamente no mesmo dia em que Hiromi usasse um micro-ondas. Ou seja, nunca. — Todas aquelas lições. Que desperdício. — Hiromi emitiu um estalido com a língua. Escola. Tarefas. Dançar. Houve uma época em que o mundo de Mika não passava de uma maquete feita de fósforos na palma da mão da mãe. Depois da missa, Mika dirigiu-se à mesa dos refrescos. Encheu um prato com dorayaki, pequenos quadrados de bolo chiffon e bolo de matcha até não caber mais... tudo isso, enquanto equilibrava uma chávena de chá numa mão. As suas têmporas latejavam. A desculpa oficial era uma dor de cabeça, não uma ressaca do vinho de pacote da noite anterior. Mika enfiou um bolo de batata-doce na boca. — Pai, o que tens andado a fazer ultimamente? Shige virou-se para ela. — Vi um documentário sobre os Correios dos Estados Unidos. — Ah, sim? — Mika fingiu interesse. A mãe perscrutou a sala, fez uma vénia a uma amiga e depois continuou, claramente à caça de outra pessoa. O pai bebeu o chá dele, servido pela mãe de Mika. Como já não era uma maiko, Hiromi era agora uma sengyō shufu, uma dona de casa profissional. Esta era a sua ikigai, a sua motivação para viver, receber pessoas e cuidar. Mika não se conseguia lembrar de uma refeição ou mesmo de um lanche que o pai tivesse alguma vez preparado. — Sabias que podes mandar pássaros pelo correio? — perguntou Shige com um sorriso, sendo encantador de uma forma desarmante. Durante o crescimento da filha, ele sempre fora bom para ela, mas mantivera-se afastado da paternidade. Mika compreendeu. Hiromi Suzuki era uma força que Shige havia decidido não enfrentar. Infelizmente, isso deixava Mika sozinha para resistir às tempestades da mãe. Quando andava na carrinha Ford Taurus dos pais, Mika costumava escrever «Ajudem-me, fui raptada» na condensação da janela, na esperança de que alguém os mandasse parar. Mika também sorriu, fortalecida pelo seu bom humor. A mãe dela foi momentaneamente distraída pela Sra. Ito, que lhe mostrava fotografias da sua viagem ao Japão. Hiromi e a Sra. Ito eram as melhores amigas e inimigas mortais. Tinham reduzido a maternidade a um desporto de competição. Correção: a uma guerra. Em que a arma de tortura preferida era fazer juízos de valor. De qualquer forma, agora era o momento perfeito. Ela tinha a atenção do pai e não tinha a da mãe. — Otōsan… — começou Mika. — Tive um pequeno contratempo. O rosto de Shige enrugou-se. — Outra vez, não. Mika nunca tinha sido muito boa a poupar. Vivia a vida de forma impulsiva, de ordenado em ordenado. Funcionava com o lema «Não podes levar o dinheiro contigo». Os fundos tornaram-se escassos muito rapidamente. Em poucos dias, as circunstâncias dela começaram a piorar. Tinha de pagar a renda. Água e luz, também. O plano A, arranjar outro emprego o mais rápido possível, não tinha funcionado. O plano B, não comer, durou um total de quatro horas. Agora, estava na altura do plano C, pedir dinheiro aos pais, o que, tinha de assumir, era uma merda. Mika humedeceu os lábios e seguiu em frente. — Estou farta de enviar candidaturas para novos empregos. Tenho a certeza de que vou conseguir alguma coisa em pouco tempo. Só preciso de uma ajudinha para chegar ao fim do mês. Desculpem — disse ela. Era um pedido de desculpa global: por todas as suas falhas, por pedir dinheiro num lugar público. Não suportava visitá-los e pedir em casa. — O que se passa? — Hiromi aproximou-se, assim que se despachou da Sra. Ito. Por um momento, o pai dela não disse nada. Olhou em redor, certificando-se de que não seriam ouvidos. — A Mi-chan pediu-nos dinheiro — disse ele, em voz baixa, quase inaudível. O rosto de Hiromi enregelou. Mika conhecia aquele olhar sem expressão; estava tudo nos olhos. Era algo que a perfurava, aquela deceção escondida. Mas também o medo. Quem é essa mulher-criança que eu criei? Tão ignorante. Tão desligada do seu passado, como pode ela ter um futuro? Estou tão arrependida. Envergonhada e a sentir-se pequena, Mika baixou os olhos para o prato. — De quanto é que precisas? — perguntou Shige. Mika esfregou os polegares no prato. — Uns dois mil. Eu depois pago-te. Hiromi desconsiderou com um aceno da mão. — Pois. É o que estás sempre a dizer. Mika ficou calada. Jurou a si mesma que nunca mais pediria dinheiro aos pais. Quantas vezes tinha quebrado essa promessa? O olhar de Hiromi pousou em alguém. — Pousa esse prato — ordenou ela, olhando para a quantidade de comida no prato de Mika. A Sra. Ito comentara muitas vezes que Mika era um bom garfo. — Estou a ver o novo congregante. — Verificou a roupa que Mika trazia vestida: umas calças e uma blusa sem um botão, as últimas peças de roupa limpa no seu armário. — Vieste assim vestida? Mika franziu o sobrolho. — Eu não quero conhecer ninguém. — Quando Mika acabara com Leif, Hiromi perguntara-lhe: «Como é que vais sobreviver?» — E em relação ao empréstimo… — Cala-te — disse Hiromi. — Vai toda a gente ver-te a discutir comigo. Vais conhecer esta pessoa. — Os olhos de Hiromi faiscaram. — E o teu pai vai passar-te um cheque. Mika estava à espera desta parte, sentir o puxão dos cordelinhos a que o dinheiro estava atado. Namorar com alguém que a mãe aprovava era tão apelativo como ser revistada em todas as cavidades corporais. — Kaasan… — Ouve a tua mãe. Mostra-nos que estás disposta a mudar — disse o pai. Quando tinha de tomar partido, Shige tomava sempre o da esposa. — Tens de começar a levar a tua vida mais a sério, o que inclui procurar o parceiro certo. Mika engoliu e pousou o prato. — Está bem. Hiromi sorriu como um gato e conduziu Mika até junto do novo congregante. Ele estava a falar com a pastora. — Mika-san — disse a pastora, pegando nas duas mãos de Mika. O sorriso dela era caloroso. — Como estás?— Vim apresentar a Mika ao nosso novo membro. — Hiromi sorriu com doçura. Apertou o braço de Mika como se tivesse acabado de ganhar a sorte grande. — Oh, mas é claro! — disse a pastora, soltando as mãos de Mika. — Este é o Hayato Nakaya. Acabou de ser transferido da Nike Japão para a nossa bela cidade. — Como estás? — Hayato fez uma vénia. Era magro e mais alto do que Mika, o que não queria dizer muito. Mika tinha um metro e cinquenta e sete num dia bom. Ele tinha um sorriso bonito, achou ela. — Pastora, preciso de falar consigo sobre o bazar — disse Hiromi com seriedade. — A Esther Watanabe quer usar a receita de tempura dela outra vez. Será que conseguimos persuadi-la numa direção diferente? — Claro, claro. A pastora acenou com a cabeça, e afastaram-se ambas, deixando Mika sozinha com Hayato. — Bem, isto é desconfortável — disse Hayato num inglês perfeito. — Cresceste no Japão? — perguntou Mika por boa educação. — Não, na Califórnia. Los Angeles. — Ele balançou-se nos calcanhares. — A minha mãe é nipo-americana de primeira geração. E tu? — A minha também. Eu nasci em Daito, nos arredores de Osaka. — Mika só tinha memórias muito vagas da sua casa no Japão. O telhado inclinado com telhas curvas. O revestimento de plástico à volta do alpendre. O quintal lamacento que fazia fronteira com uma quinta de batata-doce. O baú tansu deixado por um dono anterior, que a mãe de Mika adorava, mas cujo transporte para os Estados Unidos era demasiado caro. — Mudámo-nos quando eu tinha 6 anos. Lembrava-se do dia em que haviam chegado aos Estados Unidos. A sua pequena família composta pelos três, desgrenhados e irritáveis devido ao voo de aproximadamente quinze horas. Em que dia é que foi? A que horas? Não dava para perceber no corredor da alfândega sem janelas. As ventoinhas tinham rebentado e o ar estava estagnado com a respiração dos viajantes. Um homem de uniforme azul atrás do acrílico examinou os passaportes enquanto Shige falava do seu trabalho, explicando que tinha arranjado o seu visto de trabalho, até um apartamento. Hiromi olhou para o agente como se ele estivesse na mira do cano de uma arma. E Mika escapuliu-se. Ela lembrava-se dos passos. Um. Dois. Três. Como andar na corda bamba até chegar a uma parede e olhar para cima. E ver um retrato a óleo de Louis Armstrong. Era como se uma porta no céu se tivesse aberto, e Mika estivesse a espreitar para outro mundo. Teve de conter as lágrimas. Algo se agitou dentro dela e transformou-se em vida. Um milagre, Mika lembrava-se de ter pensado enquanto seguia as pinceladas com os olhos. É um milagre. Foi o dia em que o seu mundo entrou em colapso e voltou a erguer-se. As estradas eram linhas para desenhar. As árvores eram cores para serem preenchidas. O sol era luz para ser usada. Possibilidades infinitas. Tal como o amor de Mika por Penny, o seu amor pela pintura era instintivo, anterior ao desenvolvimento da linguagem. Mika deixou de ser uma pessoa — ela era uma pincelada, um frasco de tinta, uma tela em branco à espera. — Bem me parecia. Conheço bem esta cena de obrigarem dois solteiros a unir-se na esperança de produzirem descendência, fruto do amor japonês — disse Hayato, arrancando Mika do passado. Mika forçou um sorriso. — Eu sei que a minha mãe te deu o meu número de telemóvel no outro dia. Mas não quero sair com ninguém neste momento. Sem ofensa. — Não me ofendes minimamente. Na verdade, só estou interessado em sair com homens. — Hayato abriu as mãos e apontou para si mesmo com dois polegares. — Súper gay. O sorriso de Mika era genuíno agora. — Olha, olha. — Olha, olha — replicou Hayato, calorosamente. Conversaram durante algum tempo. Combinaram encontrar-se um dia. Talvez Mika o convidasse para a festa de inauguração da casa de Charlie, dali a umas semanas. Depois da igreja, o pai passou-lhe um cheque no parque de estacionamento. — Se saíres com ele — disse Hiromi, referindo-se a Hayato —, leva um vestido. Talvez um pouco de perfume. Nada muito pesado. — Ele não está interessado — disse Mika, arrancando o cheque dos dedos de Shige. — O que é que queres dizer com «ele não está interessado»? O que é que fizeste? — A voz de Hiromi ficou estridente: o som de gaivotas a lutarem por um peixe podre. Mika ficou petrificada. — Eu não fiz nada. — Tens de o fazer interessar-se — insistiu Hiromi. — «Não» significa não — respondeu Mika com firmeza. — Ei! — Shige esfregou o sobrolho. — Será que vocês as duas podem passar cinco minutos sem discutir? Parecem duas labaredas, sempre a queimar tudo à vossa volta. O maxilar de Mika ficou tenso, mas ela permaneceu em silêncio. Dobrou o cheque e enfiou-o no bolso, conseguindo espremer um agradecimento silencioso antes de se ir embora. U CAPÍTULO 4 ma videochamada. Mika só se apercebeu alguns minutos antes de marcar o número de Penny de que iria ver a filha ao vivo pela primeira vez em dezasseis anos. É claro que tinha visto as fotografias incluídas nas cartas de Caroline uma vez por ano. Mas tinham sido peças estáticas. Momentos congelados no tempo, presos no âmbar espesso. Mika não conseguia observar os tiques faciais de Penny. A forma como as mãos dela se moviam quando estava entusiasmada, triste ou assustada. Nem ouvir o som da sua voz quando falava, o modo como a entoação mudava. Desde que Penny era bebé que não a via em movimento. Mika sentou-se à mesa na cozinha. Hana tinha saído depois de a ajudar. Mika virou-se para a câmara e examinou-se. A camisola tinha um pequeno buraco na manga. Fora Hana quem a escolhera, vasculhando nas roupas de Mika, à procura de uma peça que não a ofendesse. — Isto vai ter de servir — disse ela, enquanto sacava a camisola de malha azul-escura e a entregava a Mika. Depois, deixou Mika sozinha com o ecrã, o coração a bater depressa e as palmas das mãos a transpirar. Faltava um minuto. Tinham marcado a chamada para as quatro da tarde, sete da tarde no fuso horário de Penny. Mika preencheu as credenciais de acesso e marcou o número de Penny. Tocou uma vez. E lá estava ela. Lá estava ela: a sua filha. Mika maravilhou-se com as suas maçãs do rosto, as suas narinas largas, o seu cabelo brilhante. Fui eu que a fiz. O sentimento semelhante a quando Mika deu à luz e pegou em Penny ao colo pela primeira vez. Uma sensação de espanto e fascínio. Um pedaço da alma de Mika a reconhecer- se a si própria. Mika sorriu para Penny como se fosse uma velha amiga. — Olá. — Uau! — O sorriso de Penny era largo e aberto, com todos os dentes à mostra. Mika já tinha sorrido assim antes. Quando tinha 16 anos. Quando o mundo estava aos seus pés. Quando temos o equilíbrio do tempo nas nossas próprias mãos. Era uma sensação especial, de não ter nada a perder. — Pareces tão jovem — disse Penny. — Sim, bem... sabes, os asiáticos não ganham rugas. Penny riu-se. — É tão estranho, mas neste momento só consigo pensar: «Ela tem a minha cara, ela tem a minha cara!» Mika alargou o sorriso. Ficaram ambas em silêncio. Estava quase escuro no local onde Penny se encontrava. Os últimos raios de sol preciosos entravam por uma janela, obscurecendo-lhe o rosto quando se movia para um dos lados. Noutros tempos, quando Mika ainda pintava, poderia ter tirado um instantâneo daquele momento, poderia ter desenhado Penny a lápis, usando o ponto mais nítido na curva ascendente da sua boca sorridente. Em vez disso, Mika pensou sobre o tempo na rua, a noite que se aproximava, a chuva que batia nas janelas, a estranheza de conhecer Penny antes e agora. Ambos os momentos davam a sensação de estarem a ser vividos pela primeira vez. — Sempre me interroguei sobre ti — admitiu Penny como se fosse um segredo cabeludo. Penny estava no seu quarto. Tinha um papel de parede com cerejeiras cor-de-rosa em flor por trás dela. Quando Mika estava grávida, Caroline prometeu integrar a herança japonesa de Penny nas suas vidas. Chegara uma carta a descrever um berçário temático de flores de cerejeira e uma aula de sushi em que o casal se tinha matriculado. Mika tinha a certeza de que a maior parte daquilo que os Calvinsaprenderam sobre o Japão vinha de uma página da Wikipédia. — Aqui estou eu. Os teus… O Thomas e a Caroline contaram-te alguma coisa sobre mim? — Escondidos pelo ecrã estavam dois lenços de papel amarrotados com que Mika tinha acabado de secar as axilas. — Não muito. — Penny bebericou de uma caneca a fumegar. Café? Não, chá. Mika desejou ter trazido um copo de água. Perto de Penny havia também uma tigelinha de pretzels e um bloco de notas com uma caneta. Penny veio mais preparada. — Eras súper jovem. Dezanove anos. Estavas a começar a faculdade e não querias um bebé. Queria? Não se tratava de não querer Penny. Mas de não poder tê-la. O que ela queria era que Penny vivesse e crescesse com uma família melhor do que a dela. Melhor do que eu. Mika amava Penny e tinha vergonha de não conseguir tomar conta dela. De não ser o suficiente para ela. O que sabes tu sobre criar um bebé? O fantasma das palavras de Hiromi assombrava-a. — Seja como for — continuou Penny, baixando a caneca. — Eles nunca tentaram escondê-lo de mim. Quero dizer, «Olá?» — Ela apontou para o seu próprio rosto. — Estava literalmente na cara. Uma miúda meio japonesa. Pais brancos. Na verdade, durante algum tempo pensei que todas as crianças fossem adotadas. — Penny riu-se. — Como se houvesse um lugar onde os pais fossem escolher bebés. Mas depois a minha amiga Sophie, que conheço desde o jardim de infância, disse que tinha um dedo do pé esquisito virado para fora que tinha herdado do pai. Eu fui para casa e perguntei o que é que eu tinha dos meus pais. Eles explicaram coisas como sentido de humor, gentileza, etc. — Penny bateu com os punhos cerrados na mesa. Mika endireitou-se. Teria ela sido tão autoconsciente aos 16, aos 18 anos? Lembrava-se de estar entusiasmada, vulnerável, sozinha. Não estava preparada. Não, Penny tinha sido criada de forma diferente. Ela era tão… segura de si mesma. — Mas eu estava, tipo, não, fisicamente, que parte de mim é que vem de vocês os dois? Então eles explicaram tudo. Nós não tínhamos o mesmo tipo de sangue. Ou mãos. Ou pés, ou o que quer que fosse. Alguém mais no mundo possuía o meu ADN. Desde então, nunca mais deixei de pensar nisso. Sobre o facto de uma parte de mim poder existir noutro lugar. Quero dizer, quem sou eu? — Mika apertou os joelhos. Quem sou eu? Mika não conseguia responder a essa pergunta da filha. Nem conseguia responder a si mesma. Outra falha. — Beeeem — terminou Penny. — Parece que sou só eu a falar. Desculpa. Estou habituada a ser o centro das atenções. — Apontou para o peito. — Filha única, estás a ver? — Não faz mal — assegurou-lhe Mika. Claro que não fazia mal. Ao ouvir Penny, ao vê-la, Mika sentia-se como se tivesse sido resgatada do fundo da parte mais fria do oceano, e conseguisse sentir o sol novamente. — Eu gosto de ouvir coisas sobre ti. — Ótimo — disse Penny, animando-se. — Eu também quero saber tudo sobre ti. Mika tinha pensado nisto. Prendeu o cabelo atrás da orelha. Viu os pratos empilhados no lavatório, as pilhas de caixas, a carta no balcão a dizer que o pagamento do telemóvel estava atrasado. — Não há muito para contar. Receio ser um bocado chata, na verdade. — Ainda vives no Oregon? Mika anuiu com a cabeça. — Em Portland. — Um lugar com mais casas de strip per capita do que qualquer outra cidade. Mas também tinha uma loja de donuts que vendia éclairs de zombies e o maior mercado ao ar livre a funcionar continuamente nos Estados Unidos. As pessoas vinham para comprar cânhamo e joias e comer comida de rua. Um em cada quatro carros tinha um autocolante onde se lia: MANTENHAM PORTLAND ESQUISITA. — Moro no bairro de Alberta. — Um lugar que era tipicamente Portland. — Há algumas lojas nas ruas. Estúdios onde se faz goat yoga cujos donos são hipsters barbudos que vendem café biológico sustentável e bom para orangotangos, esse tipo de coisas. — Isso é tão fixe. — Penny sorriu. — A tua casa pareceu-me súper bonita. — Súper. Penny usava muito aquela palavra, e isso combinava com ela. Em qualquer situação. Maior do que a vida. — Bem, o jardim, pelo menos. Foi tudo o que consegui ver no Instagram. Pela janela, Mika via o jardim das traseiras, a cerca a cair, a relva por cortar, os móveis de jardim virados de pernas para o ar e as garrafas de cerveja atiradas para o chão e cheias de caracóis. Então, apercebeu-se de que Penny tinha dito a tua casa. Como se a casa fosse de Mika. Ela procurou corrigi-la. — Não é realmente... — Mal posso esperar para ter a minha própria casa — interrompeu Penny. — Vou candidatar-me por toda a Costa Oeste e Costa Leste. Em lado nenhum no Midwest. Não me interpretes mal, eu adoro viver em Dayton, no Ohio, quero dizer. Mas é tão pequeno, sabes? Eu e a Sophie vamos ser colegas de quarto para onde quer que acabemos por ir. — Finalmente, uma semelhança. Aos 16 anos, Mika e Hana trabalhavam num Taco Bell. Ouviam hip-hop enquanto despejavam sacos de carne nos tabuleiros onde eram aquecidos, conversavam sobre o futuro, unidas por serem asiático-americanas. Quantas vezes lhes perguntaram: «De onde és?». «Um dia hei de viajar e pintar», gabava-se Mika. Tinha engendrado tantos planos. Passear de motorizada pela América do Sul. Andar à deriva pelos canais de Veneza numa gôndola. Comer croissants com chocolate em Paris. — Que mais? — Penny batucou com os dedos. — E o teu trabalho? E, oh, meu Deus, era o teu namorado na fotografia? — Leif, queria ela dizer. Mika já não o via há dois anos. Dizer que as coisas acabaram mal era como dizer que Van Gogh era apenas um pintor. — Ele é giro. Vocês também viajam? Onde andaste no secundário? Penny parou. Respirou fundo. Claramente a preparar-se para mais. Mika riu-se. Levantou uma mão. Esquivou-se. — Espera. Calma. Quero ouvir mais sobre ti. A testa de Penny sulcou-se. Mika tinha uma fotografia em que ela estava a fazer essa mesma expressão. Era uma das suas preferidas. Caroline tinha enviado uma fotografia de Penny a segurar num cone vazio, com duas bolas de gelado a derreterem no pavimento. Ela envergava um vestidinho branco com flores cosidas à mão, e o cabelo ondulava com a brisa de verão. — Faço corta-mato. Leio muito. Mas nada, tipo, súper digno de nota ou importante. Embora há pouco tempo o meu pai me tenha dado o livro The Loneliness of the Long-Distance Runner. Acho que ele o comprou só pelo título, e eu pensei que seria súper sombrio. Mas acabei por gostar dele. Tem toda a questão do antissistema. — Nunca o li. — É bom. Devias pegar nele. Como foi o secundário para ti? Estou tão curiosa. Mika remexeu na orelha. Ela tinha sido desajustada e solitária enquanto jovem. O vazio tinha sido preenchido por Hana e pela pintura. À noite, escapulia-se, aninhando-se debaixo do edredão com uma lanterna, um lápis e um bloco de desenho. Começara por desenhar a própria mão, depois as mãos dos outros, explorando as veias deformadas dos dedos da mãe, as manchas da idade nas do pai. A arte era como o ar para Mika. O seu ikigai. Guiou-a através da escuridão até ao amanhecer. Mas Mika já não pintava. Isso fora antes. Porquê falar nisso? — Andei numa escola de ensino especializado. Era para alunos que não se enquadravam necessariamente no ensino normal. — A maioria das crianças dormia durante as aulas, e os professores fingiam não ver. — Eu adorava a Geração Beat quando era mais nova: Jack Kerouac, Gary Snyder, Neal Cassady. — Penny tomou outra nota, repetindo as palavras Geração Beat. — A minha melhor amiga, a Hana, andou lá comigo. Ela estava ao meu lado quando tu nasceste, na verdade. — Estava? — Penny animou-se. — Estava. — Penny ficou em silêncio. Mika hesitou em acrescentar mais. O que poderia ela dizer? As enfermeiras odiaram-nos porque não parávamos de pedir comida. Ainda faço um pouco de chichi sempre que me rio demais. Os meus seios são como marionetas feitas com meias. Choro todos os dias. Mika contentou-se com: — Ela pegou em ti ao colo. Depois de eu te ter pegado, quero dizer. Penny pensou por um momento. — Achas que eu podia ver uma fotografia dela? — Claro. Não tenho nenhuma à mãoneste momento. — Havia uma numa moldura na prateleira da chaminé, encafuada atrás de umas jarras feitas de cabaças. Mas estavam vestidas de freiras para o Halloween, com um cachimbo de haxixe na mesa entre elas. — Mas eu envio-te uma. — Fantástico. — Penny sorriu para Mika. Mika sorriu de volta. — Onde é que trabalhas? — perguntou Penny finalmente. — Estou a modo que entre uma coisa e outra, neste momento. — Perante aquela resposta, Penny mordiscou o lábio, ficando o seu rosto preso num momento frágil na esperança de haver mais, mas a contar com menos. Mika imaginou essa expressão a mudar, a transformar-se numa que a mãe dela arvorava demasiadas vezes quando estava perto de Mika. Uma deceção flagrante. O que é que fazia uma mãe perfeita? Uma mulher perfeita? O que quer que fosse, Mika percebia que era o oposto de si mesma. — Quero dizer, há pouco tempo, deixei o meu antigo emprego para me lançar por conta própria. — Mika fechou os olhos. Ela tinha 35 anos. Um terço da sua vida tinha passado. Já devia ter feito alguma coisa. Em que alhada é que se enfiara? Abriu os olhos. A mentira saiu aos trambolhões, tropeçando-lhe na língua. — Eu adoro arte, e... e ando à procura de galerias, a ver se encontro alguns artistas para representar e lançar o meu próprio negócio. Está numa fase muito inicial... Penny basicamente resplandeceu. — Isso é incrível. Mika corou. Sentia-se demasiado envergonhada e insegura para se confessar. Além disso, queria que Penny continuasse a vê-la daquela maneira. Como se ela fosse boa, bondosa e especial. Uma mentirinha de nada nunca fez mal a ninguém, seja como for. — Bem, suponho que sim… Mãe e filha trocaram perguntas durante algum tempo. Fizeram conversa fiada. Penny era uma corredora medalhada. Do tipo que ganha bolsas de estudo. A amiga dela, Sophie, também praticava atletismo e tinha seis irmãos. — Mórmones, sabes como é — disse Penny. Mika não sabia. Mas sorriu como se soubesse. Antes que dessem por isso, tinha passado uma hora. A conversa diminuiu. — Podemos voltar a conversar? — perguntou Penny. — Adoraria — disse Mika, com sinceridade. No início, as suas expetativas eram baixas. Só queria saber que Penny estava em segurança e era amada. Que não tinha arruinado a vida dela. Mas agora, não conseguia diminuir o desejo de falar com a filha novamente. Querer mais fazia parte da natureza humana. — Vai dando notícias — disse Penny, colocando o dedo indicador para cima quando Mika estendeu a mão para terminar a chamada. Mika fez uma pausa, não compreendendo o gesto. — O quê? — É uma coisa que a minha mãe... — Penny baixou os olhos, as pestanas a criarem sombras de meia-lua nas bochechas. Depois ergueu o olhar, observando Mika de perto. — É uma coisa que costumávamos fazer. Estendíamos os indicadores e tocávamos com um no outro. É uma parvoíce… — Não é nada uma parvoíce. — Mika engoliu em seco. Pressionou o dedo contra o ecrã. Penny fez o mesmo. — Vai dando notícias, Penny. ADOÇÃO NA AMÉRICA Gabinete Nacional 56544 W 57th Ave. Suite 111 Topeka, KS 66546 (800) 555-7794 Querida Mika, Espero encontrar-te bem. Em anexo, encontram-se os itens definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika Suzuki (a mãe biológica), e Thomas e Caroline Calvin (os pais adotivos), relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O conteúdo inclui: • Uma carta anual dos pais adotivos a descrever o desenvolvimento e o progresso da adotada • Fotografias e/ou outros itens memoráveis Liga-me se tiveres alguma dúvida. (Desculpa se o acima mencionado soa formal… linguagem legal, sabes?) Atenciosamente, Monica Pearson Coordenadora de Adoções Querida Mika, Não acredito que já passaram seis anos desde que a Penny entrou nas nossas vidas. O tempo passou a voar. A Penny tem crescido muito. Ela é uma criança precoce e com tendências atléticas. No outro dia, quase venceu o Thomas numa corrida! Sinto que se projetássemos o cérebro dela num ecrã, tudo o que veríamos seria a palavra partida. Há um mês, ela pregou-nos um pequeno susto. Deixou de responder quando a chamávamos pelo nome. O pediatra encaminhou-nos para um audiologista. Passámos uma tarde inteira no hospital pediátrico. Fizeram-lhe um monte de exames, colocaram-lhe grandes auscultadores nos ouvidos e disseram- lhe para premir botões quando ouvisse certos sons. Depois, esperámos pelos resultados numa salinha. Estávamos tão nervosos. O Thomas não parava de abanar o joelho e estava sempre a falar em ir de avião com a Penny até à Califórnia. Estava à procura de especialistas no telemóvel quando o audiologista chegou. «Verificámos todos os exames da Penny. Parece que a vossa filha tem audição seletiva», disse ele, dando ênfase a seletiva. No estacionamento, fizemos cara séria e tivemos uma conversa com a Penny sobre a importância de prestar atenção e a enormidade do que se tinha passado. Todos os testes poderiam ter sido evitados, explicámos-lhe. No carro, o Thomas desatou a rir, e eu também. Não conseguimos parar. Uma coisa é certa: as nossas vidas nunca irão ser aborrecidas, agora que temos a Penny connosco. Como sempre, seguem algumas fotografias. Incluindo um autorretrato da Penny criado com mostarda e uns bocados de pão. Um abraço, Caroline D CAPÍTULO 5 urante três semanas, Mika e Penny conversaram sem parar. Ficaram acordadas juntas, noite após noite, com as suas conversas a seguirem um caminho labiríntico. Penny mandava mensagens: Podes falar? E Mika respondia: Claro! Não se tratava de não ter mais nada para fazer. Tratava-se de não estar a fazer nada. Elas celebraram os feitos uma da outra, abrindo garrafas de sidra de maçã para Penny e champanhe para Mika. Penny ganhara uma grande corrida de corta-mato, e Mika fingiu que tinha encontrado o espaço de galeria perfeito para um novo artista que ela queria expor. A abertura oficial seria dentro de algumas semanas — tão emocionante, mal podia esperar. Na realidade, Mika estava a candidatar-se a empregos mais bem pagos, mas ainda não tivera respostas. Via o dinheiro a escorrer da sua conta com um pânico resignado. Penny acabara com o namorado, Jack, porque ele só queria estar com ela em sítios com colchões. Quando Penny fazia perguntas sobre Leif, Mika dizia que ele a tinha levado a um jantar romântico, a fazer uma caminhada, a ver uma exposição num museu… A cada mentira, Mika pintava a sua vida com cores mais brilhantes — um emprego de sucesso, um namorado dedicado. Nos últimos dezasseis anos, parecia que vivera no exílio. Com Penny, Mika tinha desembarcado da sua vida atual e embarcado num novo navio, navegando em direção a um destino com o qual sempre sonhara, mas que nunca conseguira alcançar. Próxima paragem: amor, carreira, família, casa. Uma vida que ela poderia ter tido, antes de ter Penny, antes de deixar de pintar. Fazia Penny sentir-se bem. E Mika também se sentia bem. Era muito mais fácil uma pessoa falar das coisas tal como desejava que fossem. Pela primeira vez em muito tempo, Mika estava satisfeita. Sentia-se realizada. — Uf, parece que a Charlie deixou o Tuan escolher a música outra vez — queixou-se Hana do lado de fora da porta recentemente pintada da casa de Charlie. Nessa noite era a festa de inauguração da casa de Charlie e Tuan. O casal mudara-se há um mês. Mika e Hana tinham ajudado a preparar a casa para a inauguração — dando a sua opinião sobre assuntos tão importantes como que quadro pendurar sobre a lareira, como é que os móveis deviam estar dispostos, e purificando toda a casa com sálvia, porque o candeeiro da cozinha não parava de tremeluzir. Tuan tinha chegado a casa por volta da hora em que elas estavam a fumegar os cantos da sala. «Verificaram a lâmpada?», perguntara ele. «Claro que sim, Tuan», responderam elas. «Não achas que tentámos isso primeiro, Tuan? Nós não somos estúpidas, Tuan.» Quando ele saiu para dar uma volta de bicicleta, Charlie trocou a lâmpada e todas elas juraram guardar segredo. Pela porta, Mika podia ouvir os sons graves do R&B, ou seja, os slow jams — a música que Tuan gostava de pôra tocar nas festas e fazer amor depois, segundo Charlie. Havia algumas coisas que Mika preferia passar uma vida inteira sem saber. Também se ouvia o burburinho da conversa e o tilintar de copos. A festa estava em pleno andamento. Naturalmente, Mika e Hana estavam atrasadas. Soaram passos no pavimento atrás delas. — Mika. Oi. Desculpa, estou atrasado. O trânsito estava do caraças. Mas não tão mau como em Los Angeles. — Hayato estava vestido com uma camisa e calças, trazendo a sua fita com o cartão do emprego ainda à volta do pescoço, com um grande símbolo da Nike preto proeminente por cima do seu nome e da sua função. Debaixo do braço, trazia uma garrafa de vinho. — Conseguiste! — Mika e Hayato tinham andado a trocar mensagens desde aquele dia na igreja. Tinham passado um sábado inteiro a trocar histórias sobre as suas mães japonesas. A comparar os pontos que elas tinham em comum: recusarem-se a usar a máquina de lavar loiça, enviarem-lhes o almoço dentro de elaboradas lancheiras com divisórias… esse tipo de coisas. Agora, Mika abraçou Hayato, virando-se depois para Hana. — Hayato, Hana. Hana, Hayato. Hana e Hayato cumprimentaram-se. — Engraçado — disse Hayato, apontando para a planta que Hana trazia nas mãos. O presente para a inauguração da casa trazido por Mika e Hana era uma agave parryi com as palavras BELA CASA, PALHAÇOS escritas no vaso. Hana franziu o sobrolho. — Aposto vinte dólares em como a Charlie a põe no quarto de hóspedes. — O quarto de hóspedes é para onde vão os maus presentes, destinados a morrer — explicou Mika a Hayato. Entre os itens mais populares encontravam-se: o retrato de vinte e oito por trinta e cinco centímetros de Tuan quando era bebé pintado pela sogra de Charlie, uma cruz gigante de cristal que também servia de suporte de pot-pourri da mãe de Charlie e uma guitarra acústica, um presente de Tuan para si mesmo. Também escondido num armário estava um coelhinho de peluche com as orelhas mais macias do mundo. Charlie encontrara-o numa loja de brinquedos. Na altura, ela encolhera os ombros, murmurando: «Um dia.» Hiromi adorava Charlie. Charlie fazia tudo bem e na ordem certa. Assim que terminou a licenciatura, saltou diretamente para o mestrado — um mestrado em ensino. No dia em que ela conseguiu um emprego, Tuan pediu-a em casamento. Casaram- se um ano depois. No ano a seguir, compraram esta casa e estavam agora a planear constituir família. «Porque não consegues ser como a tua amiga Charlie?», perguntava Hiromi frequentemente. Ser era o verbo preferido de Hiromi para invocar na presença de Mika. «Não podes ser tão barulhenta», ordenava-lhe Hiromi, com o seu hálito rançoso, quando Mika era pequena e chorava. «Tens de ser uma dançarina», dizia Hiromi, apertando o obi em redor da cintura de Mika até a sua respiração não ser mais do que uma espécie de suspiro, preparando-a para o odori. Ser. Ser. Ser. Ser para mim. Ser tudo menos ela própria. Hayato riu-se, olhou para a porta com a aldraba de ferro. Tirou a fita do pescoço e enfiou-a no bolso. — Esta é a casa da tua amiga? É agradável. Tens a certeza de que não faz mal eu estar aqui? A casa era linda. Construída em 1909, num lote de esquina, havia sido totalmente remodelada por dentro e por fora. Um enorme alpendre em redor da casa enfeitado com cadeirões de madeira e janelas originais de chumbo dominavam a fachada. Charlie e Tuan tinham passado horas a dar um tratamento paisagístico ao jardim, escolhendo plantas nativas do Pacífico Noroeste — gramíneas altas, áceres e fetos frondosos. — Claro que não faz mal — disse Hana. — A Charlie é um espetáculo. É casada com o Tuan, e ele é uma joia. Estão completamente apaixonados um pelo outro. — Hana pôs a mão na maçaneta da porta e girou-a. A luz inundou o alpendre. Ela fez uma pausa e baixou a voz para um sussurro. — Ouçam. Se algum de vocês ficar com fome, tenho sandes na minha mala. — Trouxeste sandes para a inauguração da casa da nossa melhor amiga? — respondeu Mika também num sussurro, entrando ao lado de Hana, seguida de perto por Hayato. A porta fechou-se atrás deles. — Tu sabes que ela nunca tem comida suficiente nestas coisas — disse Hana. Os olhos de Hayato brilhavam, divertidos. Loura com grandes olhos castanhos, Charlie atravessou a sala. — Chegaram! Hana e Mika tinham conhecido Charlie no primeiro ano da faculdade. Charlie era viciada em tomar o partido dos mais fracos, o que explicava a sua atração por Hana e Mika. Obviamente, Mika e Hana colaram-se a ela como dois filhotes de lobo. O quarto de Charlie ficava em frente ao delas e, tal como acontecia com a maioria das estudantes no dormitório, Mika era, para Charlie, uma espécie de alvo de fascínio, estando grávida na faculdade e vivendo em acomodações estudantis. Um dia depois de voltar do hospital, dera-se a subida do leite de Mika. Charlie tinha visto Hana e Mika na casa de banho, a encherem freneticamente o soutien de Mika com papel higiénico. Mika tinha sido tola ao pensar que, uma vez assinados os papéis da adoção, tudo desapareceria, que as coisas voltariam a ser como eram dantes. Em vez disso, pioraram. O leite era um sinal do corpo dela. Abrir mão do próprio bebé não era um processo natural. «Não consigo fazê-lo parar», dissera Mika a chorar. «Devias arranjar uns discos de amamentação», sugerira Charlie calmamente, com o seu kit do banho na mão. «A minha irmã teve um bebé no ano passado. Era o que ela usava.» Depois, Charlie ligou à irmã e descobriu como fazer parar o leite de Mika. Sendo uma distribuidora de abraços em série, Charlie enrolou os braços em redor de Mika, depois de Hana, depois de Hayato. — És tu o amigo da Mika, lá da igreja? A Mika disse que acabaste de te mudar para cá — disse Charlie, espremendo Hayato. Ela era pequena, mas surpreendentemente forte. Aulas de spinning três vezes por semana, e Krav Maga duas vezes, fazem isso a um corpo. — Estás interessado em adquirir uma grande cruz de cristal barra suporte para pot-pourri? Era capaz de ficar giro em tua casa. Hayato tossiu para a mão. — Não é bem a minha onda, mas obrigado. — Bolas — disse Charlie, fazendo beicinho. — Desculpa — disse Mika a Hayato. Charlie encolheu os ombros, como se não custasse nada tentar. — Feliz inauguração da casa. — Hana entregou-lhe a planta. Charlie estudou-a enquanto Mika observava a ilha de mármore. Havia muita bebida acompanhada por um buffet de aperitivos pouco entusiasmantes — mini-hambúrgueres em pão brioche, espetadas de frutas, alguns vegetais e molho. Mika sabia que, enfiadas na despensa, estavam uma lata de Pringles camponesas e sobremesas com quantidades irresponsáveis de manteiga para quando todos saíssem. As três mulheres aconchegar-se-iam, então, no sofá. Tuan resgataria a sua guitarra do quarto de hóspedes e tocaria a única música que conhecia, Stairway to Heaven. — Tuan — chamou Charlie. — Anda cá ver o presente que a Hana e a Mika nos trouxeram. Tuan juntou-se ao grupo. Era vietnamita, assim a dar para o alto, com o corpo de um atleta e cabelo preto que estava sempre a pentear para trás. — Olá, Tuan. Ele apertou a mão a Hayato, apresentando-se. Charlie batucou nos lábios. — Já estou a ver qual é o sítio ideal para isto. O quarto de hóspedes precisa de uma planta, não achas? — perguntou ela ao marido. — Não sei. — Ele empurrou o cabelo para trás. — Talvez em cima da lareira? — Charlie lançou a Tuan um olhar de tenho- vontade-de-te-dar-um-soco-nos-tomates. Tuan fez um meio sorriso e beijou Charlie no nariz. — A casa está bonita — interveio Mika. — Obrigada! — Charlie esboçou um sorriso luminoso a Mika. A divisão era um open space, ostentando eletrodomésticos em aço inoxidável extremamente brilhantes e bancadas em mármore. Um sofá cinzento em forma de L dominava a sala de estar. Na lareira, ardia um tronco. As luzes eram controladas por reguladores, para criar ambiente e uma boa atmosfera — a estética desta noite: pouca luz, acolhedora e com um toque de romantismo. Vinhos e cervejas exibiam regiões de todo o mundo. Há muito tempo, Mika bebera cerveja. Masnunca depois da faculdade. Não, aqueles dias de barris e copos de plástico tinham desaparecido. Ela contornou as garrafas castanhas e serviu-se de um copo de vinho saudável, suficiente grande para matar qualquer má memória. * * * Dois, três, quatro copos de vinho mais tarde — quem é que estava realmente a contar? —, Mika estava embrenhada numa conversa profunda com Hayato. Sentaram-se no sofá, perto um do outro. A alguns metros de distância, Hana dançava lentamente com uma colega de trabalho de Tuan. Hayato tinha acabado de inteirar Mika sobre o seu trabalho, que consistia em criar materiais de marketing e desenhar ténis para a Nike. Hayato fez girar o vinho no seu copo. — Em que é que trabalhas? Mika acenou com uma mão. — Infelizmente, estou desempregada. — Oh! Perante o tom solidário de Hayato, ela disse: — Está tudo bem. Perfeitamente bem. — Mika tinha o dinheiro dos pais. — A que é que tens estado a candidatar-te? Mika bebeu o seu vinho, o chardonnay que tinha aquecido por ela se recusar a pousar o copo. — A nada de especial. — Nas poucas semanas em que andara à procura, não tinha encontrado nada sequer remotamente apelativo. — Mas decidi ver isto como uma oportunidade. Sabes, se uma porta se fecha, há outra que se abre. — Gosto da atitude — disse Hayato. — Dá uma olhadela na Nike e vê se alguma coisa se encaixa nas tuas qualificações. Não me custa nada dar lá uma palavrinha. — Uau! Obrigada, isso seria ótimo — disse ela, grata, mas com dificuldade em imaginar. Abateu-se o silêncio sobre eles. Ela repousou a cabeça na parte de trás do sofá e espreitou para o teto. Pensou em Hana e na sua carreira, em Charlie e no seu casamento. Como os seixos das amigas tinham chegado ao outro lado do rio. A voz de Charlie irrompeu pela sala. — Olha lá! — disse, chamando a atenção de Mika. — O teu telemóvel está para aqui a tocar que nem um maluco. — Charlie atirou o telemóvel a Mika, no momento em que o toque se interrompeu. Três chamadas perdidas de Penny. — Dás-me licença por um momento? — disse ela a Hayato antes de sair pela porta das traseiras. Penny tinha deixado duas mensagens de voz. Ao sair para a noite fria da primavera, Mika encostou o telemóvel ao ouvido, ouvindo a primeira mensagem de Penny. — Olá, sou eu. Liga-me quando ouvires isto. Tenho uma surpresa para ti. Depois, a segunda mensagem. — Pronto, não aguentei esperar. Estou aqui mortinha. Mortinha. Lembras-te de quando te disse que no meu décimo sexto aniversário os meus avós me tinham enviado um cheque de quinhentos dólares e eu andava a tentar descobrir o que fazer com ele? — Houve uma pausa. Provavelmente, para Penny respirar. Mika encontrava-se muitas vezes sem fôlego depois das chamadas de Penny. — Ia usá-lo para um telemóvel novo, mas depois tive uma ideia brilhante! Vou visitar-te nas minhas férias da primavera! Mika colocou uma mão contra a cerca para se aguentar de pé. Portland não tinha muitos terremotos, mas ela estava certa de que um tremor de terra acabara de abalar o chão. Penny continuou: — Vamos conhecer-nos oficialmente dentro de duas semanas! Não acredito que comprei um bilhete. Meu Deus, o meu pai vai arrepender-se tanto de me ter dado o meu próprio cartão de débito. Não te preocupes, vou dizer-lhe hoje à noite. Não posso acreditar que te vou ver! Mal posso esperar para ver a tua casa e a tua galeria. Eu vou estar totalmente lá para a grande inauguração. E quero conhecer o Leif! — Guincho. Um guincho a sério. — Estou tão entusiasmada. Mika ouviu a mensagem de voz mais três vezes. As palavras não mudavam. Mas o efeito com que assentaram nela fizeram-na sentir-se indisposta. O seu coração mentiroso contorceu-se no peito, depois torceu-se novamente com culpa. Meu Deus, Penny vinha a Portland. Penny, que ela amava. Penny, que pensava que Mika era uma pessoa totalmente diferente. Ela espreitou para o céu. Esperou para ver se nuvens trovejantes estavam a aproximar-se. Se homens de peito ao vento em cavalos gigantescos cavalgavam em debandada pelos céus. Nada. Confirmava-se. Não era o fim dos tempos. Era bom saber que ela era a única pessoa lixada a um nível bíblico. M CAPÍTULO 6 ika irrompeu pela casa adentro. Primeira paragem, Hana. — Desculpa. — Puxou o braço de Hana, separando a sua melhor amiga da mulher de cabelo azul com quem ela dançava lentamente. — Ei! — A mulher franziu o sobrolho. — Disseste-me que eras solteira. — E sou — explicou Hana timidamente. O pânico arrastava-se pela espinha de Mika acima. As palavras da mensagem de Penny atravessavam a mente de Mika como sinais de aviso antes de um penhasco. Eu vou ter contigo. Duas semanas. — Emergência. Alerta vermelho. Preciso de ti. As sobrancelhas de Hana arquearam-se. — Estou curiosa. Lily... — Chamo-me Lola. O sobrolho carrancudo da mulher de cabelo azul intensificou-se. Hayato ainda se encontrava na sala de estar, onde mantinha uma conversa animada com Tuan e alguns outros tipos. — Lola — disse Hana, fazendo-lhe uma saudação. — Foi bom. E lá foram as duas, Mika a arrastar Hana para o quarto de Charlie. Lá dentro, Mika fechou a porta, abafando o som da festa. — Ouve isto. — Mika aumentou o volume do telemóvel, pôs a soar a mensagem de Penny e pousou o aparelho na cama king- size. A voz doce de Penny preencheu o quarto escuro. Enquanto ambas ouviam, o coração de Mika caiu-lhe aos pés. Ela devia saber que isto ia acontecer. Tinha anos de experiência com tudo a correr bem e, de repente, tudo a correr mal. Nunca nada era garantido. — A Penny vem visitar-nos. Isso é ótimo! — disse Hana. Depois, perante a expressão de Mika, corrigiu: — Não é ótimo? — O sobrolho de Hana cerrou-se rapidamente. — Espera aí. Ela disse a tua galeria? E o que é que era aquilo sobre o Leif? Mika sentou-se na cama, ou melhor, deixou-se desabar. Dobrou os joelhos, fletiu as mãos. Nada a fazia sentir-se melhor. — É por causa disso que preciso da tua ajuda. Posso ter empolado a verdade nas nossas conversas. — Ela juntou o indicador e o polegar. — Um bocadinho. Hana pestanejou. — Um bocadinho de que tamanho? — Bem… — Mika sacudiu a manga da camisa; estava a começar a transpirar outra vez. — Disse que me tinha licenciado em História da Arte. — Outrora, há muito tempo, ela sonhara em terminar o curso de arte e viajar pela Europa ou pela América do Sul. Em vez disso, licenciara-se em Gestão. Tinha levado sete anos, em vez dos habituais quatro. — Está bem. A expressão no rosto de Hana fazia parecer que não era assim tão mau. Mika encolheu as bochechas. — Talvez com louvor e distinção. Hana riu-se, a cabra. — Que mais? — Sei lá. A minha própria galeria e casa, andar a viajar pelo mundo, namorado muito bem-sucedido, acho que até disse que vou de bicicleta para todo o lado. As sobrancelhas da Hana arquearam-se. — Então, és uma mentirosa aldrabona que mente? — Outra vez. Prefiro o termo «empolar a verdade». Hana fez uma careta. — Mas porquê? Era difícil para Hana entender, supunha Mika. Além das terríveis habilidades domésticas, Hana realmente não tinha nada a esconder. Tinha um ótimo trabalho. As mulheres atiravam-se a ela. Como é que Mika conseguiria explicar? — Posso ser sincera? — perguntou Mika. — Sabes bem que sim — respondeu Hana imediatamente. — É quem eu quero ser. Quem eu pensava que poderia ser… antes. — Existia na ficção uma espécie de esperança segura. As possibilidades eram infinitas. A sua vida, diferente. Uma linha temporal mais positiva. Se ao menos. Se ao menos… Além disso, ela queria dar a Penny o que tivera de procurar há dezasseis anos em Caroline: uma boa mãe, uma mãe em condições. — Mika — suspirou Hana. Finalmente, ela levantou-se, aproximando-se da porta como se fosse sair. O pânico cortou através de Mika como uma faca de santoku. — Aonde é que vais? Hana virou-se. — Vou buscar a Charlie. Vamos precisar de reforços. * * * Alguns minutos depois, Charlie, Mika e Hana estavam sentadas na casa de banho de Charlie — porque Hana tinha as suas melhores ideias na sanita. — Disseste-lhe que tinhas estado nos bastidores para a atuaçãode abertura do Hamilton? — perguntou Charlie. Ela estava sentada na sanita fechada, com o portátil ligado e a folha de cálculo do Excel aberta. E, porque Charlie era Charlie, tinha decidido classificar as mentiras de Mika por categoria: Escola e Carreira, Passatempos, Vida Amorosa, etc. Mika franziu o sobrolho. — Também não lhe disse que estive na produção. Só disse que o Leif me tinha levado a Nova Iorque e me tinha surpreendido com passes para os bastidores para conhecer o elenco na noite de abertura. Hana escarrapachou-se dentro da banheira com pés em formato de garra, de copo de vinho na mão. — Isso é estranhamente específico. — O diabo está nos pormenores — respondeu Mika. — Estou a arquivá-lo na categoria Passatempos — disse Charlie. Alguém gritou na sala de estar. Aparentemente, estavam a decorrer jogos de tabuleiro. — Tens a certeza de que não devias estar lá fora com a tua malta? — perguntou Mika a Charlie. — Vocês são a minha malta — disse Charlie, acintosamente. — Além disso, está tudo controlado. O Tuan assume o meu lugar. Ele compreende perfeitamente. — O Tuan é fantástico. Mika desejava ter um parceiro como Tuan. Ele já tinha entrado numa corrida de bicicleta pela Califórnia. Estava em posição de ganhar muito dinheiro, mas tinha desistido porque sentia falta de Charlie «como o caraças». Ser amada assim, pensou Mika com um pouco de melancolia. Outrora, ela acreditara que estava apaixonada. Caloira da faculdade. Tinha sido tola na altura. Tão ingénua. Tão facilmente ludibriável. Com um abanão de cabeça, Mika esmagou uma imagem do pai biológico de Penny. Não, ela não gostava de se lembrar dele. Charlie fez um gesto de desdém com a mão. — Não estás a perder nada. Sempre que ele passa por mim depois de eu sair do duche, fala em «mamocas». — Ela mostrou as palmas das mãos como se estivesse a segurar em dois melões. — E depois passo um tempo excessivo a tentar atingi-lo nos genitais com o seu próprio braço. — Ela sorriu, a tola apaixonada. — Concentrem-se. — Hana voltou a recostar-se na banheira. — Que mais? Mika percorreu a sua memória. Passou mais uma hora. A festa acalmou, a porta da frente abriu-se e fechou-se. Tuan bateu à porta e disse que ele e Hayato iam a um bar no fundo da rua. A lista cresceu. ESCOLA E CARREIRA Licenciada em História da Arte Estágio num museu de arte local Contratada por um museu de arte local Avança lentamente no caminho de ser curadora Poupou dinheiro suficiente para se tornar proprietária de uma galeria de arte Grande inauguração (daqui a duas semanas!) PASSATEMPOS Viagens (já esteve em toda a Europa e América do Sul) Andar de bicicleta VIDA AMOROSA Namorado: Leif, empresário Leif pede-a regularmente em casamento, mas Mika não está pronta para assentar Charlie ofereceu-se para fazer uma espécie de fluxograma. Mika recusou. Finalmente, Charlie respirou fundo e fechou o portátil com um clique decisivo. — Do meu ponto de vista, há duas opções. — Está bem — disse Mika com seriedade. — A primeira, contas a verdade à Penny. Pões tudo em pratos limpos. Mika considerou-a por menos de um segundo. — Pois. Não adorei a ideia. — A segunda, nós criamos esta vida para ti. — Sou toda ouvidos — disse Mika. Sentiu um nó na garganta. Um desejo profundo cresceu-lhe no peito, provocando-lhe dor. Desde que dera Penny para adoção, Mika sonhara conhecê-la um dia ao vivo. É verdade que a fantasia geralmente envolvia Mika a caminho de um destino fabuloso, talvez a instalação da sua primeira peça de arte no Met, com uma breve passagem por Dayton. Tempo suficiente para almoçar e ver a cara de Penny a brilhar de orgulho por ter saído de Mika — por ser feita do mesmo material que ela. Penny nunca olharia para Mika assim, se soubesse que a vida dela se assemelhava a uma torre Jenga em fase adiantada. Hana acrescentou: — Como é que vamos fazer isso? Charlie bufou. — Bem, a maior parte disto parece exequível. Tipo a casa... — A Mika vive comigo — acrescentou Hana, prestável. Mika pestanejou, visualizando a casa de Hana. O relvado com ervas daninhas e plantas espinhosas variadas. O interior cheio de caixas e pilhas de revistas cheias de pó. O frigorífico com um cheiro estranho. O nível de vergonha de Mika atingiu o pico máximo. — Sim e tu vives numa casa — enunciou Charlie lentamente. — Ou tenho quase a certeza de que é isso que aquilo é. Será que um edifício prestes a ser demolido ainda é considerado um domicílio? — Olha a piada que ela tem — respondeu Hana com o rosto inexpressivo. Mika encostou a face à banheira fria. Veio-lhe à memória o momento em que enfiou as mãos nos lençóis frios do hospital no dia em que entregou Penny. O toque tem memória, afinal. Concentrou-se noutra coisa. No aqui e agora. As argolas de ouro que Hana tinha nas orelhas. A lâmina de barbear de Tuan equilibrada na beira do lavatório. Charlie a abanar a cabeça. — Esquece isso — anunciou Charlie. — Vamos chamar-lhe uma casa. Tudo o que precisamos de fazer é arrumá-la um bocadinho. — Charlie sempre fora otimista. — No que diz respeito a passatempos, o Tuan anda de bicicleta e tenho a certeza de que ele te pode dar algumas dicas, alguns termos para usares. — E o espaço da galeria? — perguntou Hana. Ao contrário de Charlie, Hana sempre tivera mais tendência para ser pessimista. — Não sei — disse Charlie. — Mas podemos pensar em qualquer coisa. Agora, sobre a história com o Leif... — Charlie comprimiu os lábios, a pensar. Penny tinha visto fotos de Leif. Mika já não podia contratar um acompanhante, mesmo que pudesse pagar, o que não podia. Charlie inalou como se se preparasse para invocar uma espécie de demónio antigo. — Devias telefonar-lhe. Mika fez uma careta. — Ui. Leif não sabia de Penny. Mika tivera o cuidado de manter essa parte da sua vida em segredo. Teria de lhe contar. Teria de voltar a vê-lo. Era preferível que o resto da sua vida decorresse sem ter de voltar a falar com Leif. — Calma — disse Charlie. Duas palavras descreviam melhor a relação entre Mika e Leif: terra queimada. Todos os seus amigos sabiam que não deveriam entrar naquele território hostil para não saírem chamuscados. — O Tuan está muitas vezes com ele. — Mika não comentou a amizade de Tuan com Leif. Sabia que os dois ainda eram amigos. Tuan fazia amigos como as calças de ganga agarram o cotão. Charlie continuou: — Ele está a dar-se muito bem desde que a erva foi legalizada. Tem uma loja e tudo. — Mika manteve os lábios comprimidos. Tinha tanto gosto que Leif se estivesse a dar bem como em ter verrugas genitais. Nesse preciso momento, o telemóvel de Mika tocou. Um número desconhecido piscou no ecrã. — É do Ohio — sussurrou Mika, reconhecendo o indicativo. — É a Penny? — perguntou Hana. Mika abanou a cabeça. — Não. Ela tinha gravado o número de Penny nos seus contactos. — Não atendas — disse Hana. — Atende — disse Charlie. Mika deslizou o botão para atender a chamada e pôs o telemóvel em alta-voz. — Estou? — Olá. Mika Suzuki? — É a própria — disse ela, sentindo um horrível nó de pavor a formar-se-lhe na garganta. — Daqui fala Thomas Calvin. O pai da Penelope. — A voz dele era profunda, um pouco proibitiva. Demasiado severa, grave. Um antídoto para a vivacidade de Penny. Era este o homem que criara a filha de Mika? Mika não disse nada. Pôs-se de pé abruptamente. O vinho entornou-se do seu copo, e ela lambeu os dedos enquanto equilibrava o telemóvel na palma da mão. — Estou sim? Está aí? — disse Thomas. — Estou aqui — respondeu Mika, com as faces a escaldar. — Pode falar agora? É boa altura? Parece que está num túnel. Há um eco. — Estou na minha galeria. Hana voltou os dois polegares para cima. Charlie escondeu o rosto nas mãos. — Olhe, peço desculpa por estar a telefonar assim do nada. A Penny informou-me de que tenciona ir visitá-la. Eu nem sabia que vocês as duas tinham falado. Eu nem sabia que ela sabia o seu nome. — Mika encolheu-se. Oh, Penny, o que é que foste fazer? Nunca lhe tinha ocorrido perguntar o que é que o pai adotivo de Penny sabia, o que é que ele sentia por elas andarema conversar. As conversas delas tinham estado singularmente focadas uma na outra. As suas semelhanças, o facto de ambas recorrerem à comida em busca de conforto emocional. Felicidade, tristeza, tédio: todas as emoções eram uma boa desculpa para um bolo. O facto de ambas adorarem cães, mas serem alérgicas, mesmo aos que tinham pelo curto. Tinham bloqueado o resto do mundo, existindo apenas uma para a outra. — Peço desculpa, mas estou chocado. Não é típico dela guardar segredos de mim. E agora comprou um bilhete de avião para Portland. Eu... bem, estou com receio de que ela não tenha pensado bem nas coisas. — O que é que há para pensar? — disse Mika, automaticamente na defensiva. As suas faces aquecidas com inseguranças. Será que Thomas estava a interrogar Mika? Quem era ela? Quais as suas qualificações para estar na vida de Penny, para ser mãe? — Tudo — respondeu ele com clareza. — Ela gastou todo o dinheiro do seu aniversário no bilhete. Devia ter posto esse dinheiro de lado para juntar à poupança para a faculdade. — Fez uma pausa, deixando as palavras penduradas no ar. — Eu simplesmente… Vou dizer à Penelope que falámos e que agora não é boa altura para ela a visitar. Está bem? — Sim — disse Mika. — Excelente — disse Thomas, e depois ficou silencioso. — Quero dizer, não — disse Mika abruptamente, surpreendendo-se a si mesma. — Peço desculpa? — Era claro que as pessoas não discordavam de Thomas muitas vezes. — É que, por acaso, acontece que a minha agenda está livre — disse Mika, animada. Penny queria vir a Portland. E Mika queria conhecer Penny pessoalmente. — Eu iria adorar conhecer a Penny. Poder conhecê-la melhor em pessoa. — Está a falar a sério? — Totalmente. — Senhora Suzuki... — Mika, por favor. — Senhora Suzuki, agradeço-lhe por querer ajudar. Mas, com todo o respeito, a senhora não conhece a minha filha. A Penelope é impulsiva. Precisa de orientação. Ela tinha outros planos para as férias da primavera, outros planos para aquele dinheiro… Como lhe disse antes, acho que ela não pensou bem nisto. A senhora não conhece a minha filha foi a única coisa que Mika ouviu. E isso feriu-a profundamente. Esforçou-se para esconder a dor, para manter um tom equilibrado. — Sabe, quando as pessoas correm numa direção, muitas vezes isso significa que estão a fugir de outra. — O que é que isso quer dizer? Ela esticou um braço. — É apenas uma consideração genérica sobre a vida. Talvez seja mais do que impulsividade. Talvez a Penny esteja a tentar compreender algumas coisas. Mika lembrou-se de si mesma aos 16 anos. A desenhar, a passar tempo com Hana, à procura de uma vida melhor. Não é isso que toda a gente faz? O que é que os pais de Mika tinham feito quando vieram para os Estados Unidos? O que é que Mika fizera na faculdade? Mika ansiara por mais. E Penny também. E Mika compreendia profundamente a atração emocional de algo maior, quão irresistível podia ser. Ele suspirou e suavizou infimamente o seu tom. — Isso pode ser verdade. Ela… Eu pensei que estava tudo bem. Mas a mãe dela — Mika engoliu em seco quando ouviu a palavra mãe — escreveu-lhe uma carta para ser aberta no seu décimo sexto aniversário. Ela não me deixa lê-la, mas, desde então, tem agido de forma diferente. Esta viagem… vê-la, conhecê-la, pode levantar muito mais perguntas do que respostas. — Thomas. Posso tratá-lo por Thomas? — Mika começou a passarinhar pelo minúsculo espaço da casa de banho. Três passos para a frente. Girar. Três passos para trás. — Agradeço a sua preocupação. Mas eu não vou desencaminhar a Penny. — Se ela for. — O tom dele mudou. — Ela não vai sozinha. Eu vou acompanhá-la. — Ótimo — disse Mika, sentindo-se perversamente bem e com um brilho ultrajante nos olhos. — Quantos mais, melhor. Por favor, dê cumprimentos meus à Penny. Estou ansiosa por vos conhecer a ambos. Agora, tenho de ir. — Mika estava a transpirar. Tanto. — Gostei de falar consigo. — Espere… Mika desligou. — Uau! — exclamou Charlie. — Cum caraças — disse Hana. — Então, segunda opção? — perguntou Charlie, passando suavemente com as mãos sobre o portátil. — Segunda opção — disse Mika, ainda a olhar para o telemóvel. Hana ergueu o copo de vinho bem alto. — Vou brindar a isso. M CAPÍTULO 7 uito aconteceu nas quarenta e oito horas seguintes. Penny enviou os detalhes do seu voo. Depois, mandou-lhe uma mensagem. Argh, o meu pai também vai. Mas tenho a certeza de que vamos conseguir livrar-nos dele. Ele quer o teu e-mail. Posso dar-lho? Ele deixa qualquer um LOUCO. Desculpa. Mika concordou que Thomas podia ter o e-mail dela. Que mais poderia ela fazer? Pouco tempo depois, Thomas enviou uma confirmação a dizer que seguiria no mesmo voo de Penny. Também incluiu uma sugestão de itinerário, deixando em aberto alterações no documento Word para que pudessem discutir, ou seja, negociar, o horário. Raios partam os advogados. Os detalhes foram acordados. Dia 1 (domingo): Chegada no voo 3021, às 10h21 da manhã. Demorariam cerca de quinze minutos a ir até à recolha da bagagem, onde Mika os apanharia. De malas na mão, seguiriam diretamente para o almoço. A Penny insistiu em roulottes de comida?, escreveu Thomas, desconcertado com tal ideia. Depois do almoço, Penny e Thomas passariam a tarde no hotel a descansar e a jantar porque, aparentemente, Thomas era um velho embirrento a viver dentro do corpo de um embirrento mais jovem. Segundo dia (segunda-feira): Visitariam o Museu de Arte de Portland, onde a falsa-Mika tinha estagiado, e jantariam em casa de Mika, onde Leif, o charmoso namorado da falsa-Mika se juntaria a eles. E por aí fora. Terceiro dia (terça-feira): jantar num dos restaurantes com estrelas Michelin de Portland. Dia 4 (quarta- feira): Almoço com Hana… culminando no quinto dia (quinta- feira): Abertura da falsa galeria de Mika. Aquela sobre a qual ela tanto tinha falado com Penny. «Eu tenho o melhor artista. Ele é brilhante. Não acredito que ele não tenha sido agarrado por outra galeria. Já viste a minha sorte?» Mika vacilava entre o pânico e o entusiasmo. Catorze dias, não, doze dias. Ela tinha menos de duas semanas para falsificar a sua vida. Menos de duas semanas até voltar a encontrar-se com Penny pessoalmente. A contagem decrescente tinha começado. Charlie e Hana prometeram apoiá-la ferozmente. Esvaziaram das suas agendas as noites e fins de semana para a ajudar a preparar-se. Charlie até tinha intenção de pedir ao informático da escola onde trabalhava para criar algumas fotos de Mika nas suas viagens pelo mundo fora. A casa. Os passatempos. Tudo tratado. Ou em processo de ser tratado. Faltavam ainda duas peças. O espaço da galeria e Leif. Das duas, Leif parecia a mais fácil, o fruto que se encontrava no ramo mais baixo. E Leif não atendia os telefonemas nem respondia às mensagens de Mika. Sacana. Tinha tentado meia dúzia de vezes. Nada. Ele lera as mensagens dela. Ela tinha a certeza. O balãozinho com três pontos apareceu e reapareceu como se ele estivesse a decidir o que dizer, depois acabou por assentar no silêncio passivo-agressivo. Ele não lhe deixara escolha. Mika estava especada na Northwest Twenty-Third Avenue, num bairro comercial de luxo, na moda. Quando Tuan lhe deu o endereço, ela ficara surpreendida. Pensava que a loja dele seria algures no norte de Portland, perto de um bar de striptease com um nome tipo O Saque do Pirata. Vista de fora, não parecia ser uma loja de erva. As janelas estavam cobertas com sombras de bambu bege. O nome, Twenty-Third Marijuana — pouco inventivo, pensou Mika presunçosamente — estava escrito em letras de madeira e suavemente retroiluminado. Mika suspirou e abriu a porta. Que se lixe. Um tipo branco enorme, com tatuagens no pescoço, encontrava- se junto da entrada. — Identificação. Mika tirou a carta de condução da mala. — Estou aqui para ver o Leif. Ele fez brilhar uma luz na identificação de Mika, olhou para ela, olhou para a identificação e depois devolveu-lha. — Fala com a Adelle. — Apontou para uma miúda branca fixe com cabelo comprido e franja. — Ela trata da agendadele. Se quiseres comprar alguma coisa, é só em dinheiro. O multibanco fica na esquina. — Obrigada. — Mika enfiou a carta de condução na carteira e aproximou-se de Adelle. Leif era dono daquilo? Aquela mistura entre loja da Apple e spa? Ouvia-se música new age. Enya, talvez. Balcões de vidro emoldurados em madeira clara, com todo o tipo de parafernália, bálsamos, produtos cozinhados. Estava apinhada. A loja zumbia com o burburinho da clientela a girar em torno de diferentes tipos de pedradas. — Deseja algo suave? — ouviu um empregado dizer. — Sim — respondeu o miúdo com uma camisola da Universidade de Portland. — Apenas uma coisa só para relaxar. Adelle trazia uma prancheta, na qual estava a rabiscar. Ao ver Mika aproximar-se, ergueu o olhar para ela. — Posso ajudá-la? Tinha um crachá com a palavra Gerente. — Preciso de falar com o Leif. Adelle inclinou a cabeça, mascando uma pastilha. — Tem marcação? — Hum, não. — Peço desculpa. O Leif só atende as pessoas por marcação. E ele não está, de qualquer maneira. Voltou a olhar para a prancheta. Ela tinha uma tatuagem de uma carpa koi no braço e alguns kanji. — Tem aí uma bela tatuagem. O que é que diz? — Oh! — Adelle levantou os olhos. — «Destemida». Népias. Mika estudara caligrafia durante uma década. Era doninha em kanji. — Olhe, eu sei que o Leif está aqui. A carrinha que ele converteu para funcionar com óleo vegetal reciclado está estacionada lá atrás. — Mika endireitou-se, sentindo-se corajosa e assertiva. — Por favor, diga-lhe que a mulher que uma vez lhe rapou as costas está aqui. A boca de Adelle abriu-se e fechou-se. Ela rebentou um balão de pastilha elástica. Depois pegou num telemóvel e carregou num botão. — Sim, olá. Desculpa o incómodo. Está aqui alguém para te ver. — Ela avaliou Mika. — Asiática, baixa e meio zangada… Claro. — Adelle desligou. — Pode ir lá atrás. — Fez um gesto para uma porta branca com uma placa que dizia SÓ PARA FUNCIONÁRIOS. — O escritório dele é o último à direita. Mika colocou a mala ao ombro. — Prazer em conhecê-la. Ela já estava a passar pela porta antes de Adelle lhe conseguir responder. A porta do escritório de Leif estava entreaberta. Mika não se deu ao trabalho de bater. Ele não se deu ao trabalho de se levantar de trás da secretária. Ela concentrou-se primeiro no escritório. Não havia muito para ver, na verdade. Bastante simples, com uma secretária branca e um computador gigante. Sem janelas. Depois, sem outro sítio para onde viajarem, os olhos dela concentraram- se em Leif. Ele recostou-se na cadeira, ajustando o seu corpo volumoso. O seu corpo novo e mais magro. A barriga proeminente e as faces inchadas tinham desaparecido. Agora as bochechas dele eram ângulos afiados sob uma barba por fazer aparada. O seu longo cabelo loiro tinha sido cortado e despenteado numa confusão deliberada. O coração de Mika parou por um momento. Da primeira vez que ele a beijou, pedira-lhe permissão. Com as mãos suaves que cultivavam plantas, envolvera-lhe as faces. «Eu quero beijar-te agora mesmo, posso?» — Ora, ora, ora. — A voz dele cortou através da memória de Mika. — Olhem só quem decidiu agraciar-me com a sua presença. — Dale. — O verdadeiro nome de Leif. Ele detestava-o. — É bom ver-te. Os lábios dele curvaram-se num sorriso trocista, revelando dentes mais brancos do que Mika se lembrava. — Mik. — Ela detestava a alcunha. Era demasiado parecida com Mickey. — Quem me dera poder dizer o mesmo. Ela fingiu um sorriso. Ele fingiu um sorriso. Era uma espécie de duelo. Mika entrou no escritório, infatigável. Sentou-se numa cadeira. — Põe-te à vontade — resfolegou Leif. — Este sítio é agradável — disse ela com firmeza. — Foi construído por mim. — Leif inchou um pouco. — Os painéis solares no telhado mantêm as nossas contas de energia em menos de cem dólares por mês. Também somos uma instalação de desperdício zero. Fazemos compostagem de quase tudo. — Uau! Estás muito longe de quando dormias num futon e jogavas disc golf o dia todo. — Ela fez uma pausa. Levantou o nariz no ar. — Tenho andado a tentar falar contigo. — Eu sei. Tenho andado a evitar-te ativamente. — Ele inclinou- se mais para trás na cadeira e abriu bem as pernas. Parvo. Este não era o seu Leif. O seu Leif viu O Projeto Blair Witch pedrado em roupa interior. Os seus três maiores valores eram: não ter conta bancária, casas minúsculas e jogar futebol com bolas de pano. O seu Leif odiava o Ronald Reagan. Comia burritos em jacúzis e tinha um amigo chamado Mustache, cujo verdadeiro nome ele não conhecia. O seu Leif sempre se certificou de que a porta da frente estava trancada, as janelas também — principalmente porque temia que alguém lhe pudesse roubar o produto escondido. Mas isso fazia Mika sentir-se segura. E ele não se importava que ela gostasse de deixar a porta do quarto aberta quando faziam sexo. Uma das manias dela, Leif sempre pensou, como o facto de odiar a canção Return of the Mack. Quem é que não adora essa canção? E sempre que era despedida de um emprego, Leif vestia roupas pequenas demais para ele e dançava pelo apartamento a cantar «gajo gordo com casaco pequeno»2. Este era o novo Leif. O novo Leif usava calças de ganga com corte à medida, pulseiras de couro e bebia sumo verde. O novo Leif provavelmente passava a maior parte do tempo a fazer exercício enquanto puxava o lustro à sua raiva para com a ex como se se tratasse de uma adaga maligna. Mika amaciou o tom de voz. — Preciso de um favor. Leif pestanejou. — Não. Ela esperou que ele desenvolvesse. E esperou. Portanto, não ia acontecer. — Tem um bom dia. — Ele pegou no telemóvel que estava na secretária e começou a deslizar o dedo pelo ecrã. — Leif. — Mika esforçou-se bastante para manter a voz firme. — Estás em dívida para comigo. Por causa de Porto Rico. Ele deixou cair o telemóvel e pressionou uma mão no seu belo peito coberto por uma t-shirt. Leif agora tinha peitorais? — Estou em dívida para contigo? — A elevação da voz dele fez Mika vacilar. — Como assim? A raiva trespassou Mika com tanta força e calor como se fosse eletricidade. — Eu transportei as tuas drogas — sussurrou ela. No aeroporto, ele tinha-lhe atirado com o saco, de olhos brilhantes como quem descobrira algo novo e totalmente desconhecido, algo que mudaria o curso do próprio mundo. «Põe só isto na tua mala, querida. Por favor, isto pode ser a chave para o meu negócio levantar voo, uma nova variante. Podemos ficar ricos.» E ela fizera isso. A transpirar durante todo o voo e na fila da alfândega. — Sementes — disse Leif como se estivesse ofendido, como se Mika estivesse a exagerar. — Eram sementes. Ele passou uma mão pelo cabelo. Abanou a cabeça. Recompôs- se. Uma vez, em casa, Leif estava triste, mal-humorado. «Tu nunca apoias os meus sonhos», dissera ele. Desorientada, Mika respondeu-lhe: «Mas eu transportei as tuas sementes.» Leif assumiu um tom petulante. «Mas não querias. Acho que não consigo estar com alguém que não está do meu lado.» «Estás a gozar?», cuspira Mika, atordoada. «Estás a acabar comigo porque eu transportei drogas para ti, mas não queria?» Correu tudo muito mal e muito depressa a partir daí. Pronto, talvez ela tenha acusado os pais dele de serem primos direitos. Depois, quando isso não se revelou um golpe suficientemente profundo, chamou estúpidos aos sonhos dele. «Porque é que tens tanta tesão por casas minúsculas?», dissera ela, enfiando a roupa em sacos de plástico com uma força digna de um furacão. Mika telefonara a Hana para a ir buscar. «Nunca irás abrir uma loja de erva. É um absurdo. Trinta e dois anos e ainda a perseguir o arco- íris.» «Pelo menos, eu tenho sonhos», retorquira ele. Ao sair de casa, ela enfiara no bolso as sementes que tanto significavam para Leif, e depois filmou-se a despejá-las pela sanita abaixo. Enviou o vídeo a Leif. Ele devolveu uma única palavra… Cabra. Ao que ela respondeu: Vai à merda imediatamente e para sempre, Leif. E foi nesse ponto que eles deixaram as coisas. A vergonha queimava o rosto de Mika. Ela esfregou as mãos nos joelhos.— Olha, desculpa ter insinuado que os teus pais eram primos direitos e… por tudo o resto. Agora percebo como éramos desajustados um para o outro. — A relação deles tinha sido como um pequeno acidente de trânsito. Tinham embatido a fazer marcha-atrás um contra o outro, e depois acabaram unidos de uma forma que nenhum dos dois tencionava. Eles não estavam destinados a durar. Na maioria das vezes, Leif estava pedrado (às vezes, também tomava comprimidos). Mika era fechada emocionalmente. Leif não sabia da existência de Penny, mas ela estava sempre lá, uma barreira de vidro entre eles. Ele sentia isso de vez em quando. Quando Mika ficava em silêncio. Quando olhava vagamente para dentro de um tacho ou panela, com a comida a queimar. Mas ela não conseguia contar-lhe. Deixá-lo ver todos aqueles espaços escuros dentro dela. O que é que ele iria pensar? De qualquer maneira, Leif queria estar entorpecido; Mika já estava. Ela não se sentia viva desde... bem, há muito tempo. — Nisso, tens razão. — Ele abanou a cabeça, em sinal de mil arrependimentos. Limitaram-se a ficar sentados durante alguns instantes. O silêncio, denso e pesado, instalou-se na sala. — Preciso da tua ajuda — acabou ela por dizer. Agora era a sua vez de implorar. Sentiu o estômago a revirar-se. Leif tinha-a onde a queria, de barriga para cima e a acenar com uma bandeira branca de rendição. Se ele dissesse que não outra vez, ela ia para casa inventar mais uma história para contar a Penny. O Leif teve um acidente de barco. Está desaparecido no mar, presumivelmente morto. É triste, mas vou seguir em frente. Conheces algum homem solteiro com 30 e poucos anos? Mas sinceramente, ela queria que Penny a visse com Leif. Para ver Mika a ser amada por alguém. Digna do afeto de alguém. — Há dezasseis anos, dei um bebé para adoção. — As palavras foram ditas antes que ela as conseguisse recuperar. Ficou a olhar especada para ele. Tentou ler-lhe a expressão. O músculo do maxilar dele contraiu-se. Após o que pareceu uma eternidade, Leif levantou-se abruptamente e pegou nas suas chaves pousadas na secretária. — Por favor, Leif. — Mika levantou-se, bloqueando-lhe a saída. Ele baixou os olhos para a encarar. — Anda lá, Mika. — A voz dele era de veludo e demasiado simpática. — Ainda não comi. Vamos comer qualquer coisa. Pago eu. Mika ficou sem palavras. Não sabia o que fazer com este novo Leif. Não sabia o que fazer consigo mesma. — Está bem… — disse ela com incerteza. Os cantos da boca dele ergueram-se, algures entre o sorriso de um engatatão e o do velho Leif. — Bem me parecia. Nunca recusas uma refeição grátis. Odiava quando ele tinha razão. * * * Leif guiou Mika até um restaurante ao fundo da rua. Ela pediu uma pilha dupla de panquecas com um extra de bacon. Leif comeu uma salada, sem molho, e pareceu confuso quando viu que não tinham caldo de osso. Entre garfadas, Mika falou a Leif sobre Penny, sobre as mentiras. Contou a história toda. Quando acabou, Leif pegou no seu copo de água, bebeu e olhou para ela por cima da borda. — Então? — Mika rasgou o guardanapo, fez bolinhas e alinhou- as ao longo da mesa como se fossem soldadinhos. Ele pousou o copo, passou uma mão na cara. — Credo, dá-me um minuto. Atiraste-me com muita informação para cima. Sempre me pareceu que estavas a esconder-me alguma coisa. — Leif processou as coisas em voz alta. — Pensei que talvez não gostasses de mim e que gostasses da Hana… Mika ergueu as sobrancelhas num olhar mistificado. Ele estava a falar a sério. Ele não podia estar a falar a sério. — A sério? Foi esse o teu raciocínio? Isso tem estado a viver na tua cabeça este tempo todo? — É mesmo à homem presumir uma coisa destas. Ela não está interessada em mim, por isso deve ser lésbica. — Por favor, diz-me que o teu ego não é assim tão frágil. Linhas cor-de-rosa ténues percorreram-lhe as faces. — Tens razão. Desculpa. Mas não estava tudo na minha cabeça, certo? Não gostavas da Hana, mas confiavas nela de uma forma que nunca confiaste em mim. — Isso é verdade, acho eu. — Mika virava-se para Hana em tempos de dificuldade. Todos os anos, por volta do aniversário de Penny, Mika fazia as malas. «Viagem só para raparigas», dizia. Depois passava a semana em casa de Hana, ignorando as chamadas de Leif e abrindo-se à injustiça da vida. À inexplicável tristeza. — Então e, quero dizer, posso perguntar sobre o pai biológico da Penny? Ele sabe que ela existe? — Ele não tem nada que saber da existência dela — afirmou Mika com firmeza. — Está bem — disse Leif com cuidado, observando-a. — Não é dele que se trata — disse Mika atabalhoadamente. — Trata-se da Penny, e ela vem à cidade, e pensa que és o meu adorável namorado. — Mika — disse Leif, com uma dor tão crua no rosto que Mika teve de desviar o olhar para não se desfazer. A empregada trouxe a conta. Leif tirou um maço de notas da carteira e pousou-as na bandeja. — Preciso de apanhar ar. — Ele saiu, Mika agarrou a porta que se fechava atrás dele e seguiu-o pela rua. Esta parte da Twenty-Third Street não era muito movimentada. Um ciclista passou a toda a velocidade. Uma mãe ziguezagueava com uma criança de colo que estava a dar os primeiros passos. — Leif — disse ela, no momento em que ele fez uma pausa na esquina. — Não consigo fazer isto sem ti. — Teve de engolir em seco. — Preciso de ti… Preciso disto. Durante cinco longos e agonizantes segundos, Leif olhou para ela, com a cabeça inclinada, perscrutando-a com o olhar. — Está bem — concordou, embora não parecesse estar nada bem. — Eu faço isso. — Fazes? — Mika sorriu de orelha a orelha. — Para que conste, isto vai contra o meu bom senso. — Ele abriu as mãos. — Mas se significa assim tanto para ti… — Sim. Mais do que tudo. — Diz-me o que tenho de fazer, então. Mika deu-lhe a data e a hora e ele anotou no telemóvel. — Talvez devas usar um fato ou algo assim. Vou mandar-te uma nota com tudo o que disse à Penny. Mas os pontos altos são: estamos loucamente apaixonados, vou abrir a minha própria galeria e tu trabalhas na agricultura, mas não especifiquei de que tipo. — Fez uma pausa. — Depois posso arranjar-te desculpas para o resto da visita deles. — Está bem. Combinado — respondeu Leif, com um suspiro. — Também me levaste à noite de abertura do Hamilton. — Ela fez uma pausa. — Fomos conhecer o elenco. — Uau! — Foi muito romântico. Surpreendeste-me, e depois beijámo- nos na Times Square. — Estou impressionado comigo mesmo. Ela observou-o com os olhos semicerrados. — Vai correr tudo bem. Leif fez rodopiar as chaves. — As hipóteses de isto rebentar na tua cara são de cinquenta por cento — comentou ele, jocoso. — Como é que vais fazer com o espaço para a galeria? — Ainda não tenho essa parte resolvida. Pensei dizer à Penny que está a ser remodelada ou assim. — Ela vai querer vê-la. — Não sei. — Mika sacudiu a mão. — Posso dizer-lhe que tem amianto ou algo do género. — Quão fácil era mentir agora? Demasiado fácil. Consolou-se com a ideia de que as mentiras não eram significativas. Era o amor que ela e Penny partilhavam. Isso é que era real. Isso era o que mais importava. — Talvez eu tenha um espaço para ti. É um lugar que tenho na zona norte da cidade… um armazém. Tinha pensado usá-lo como espaço de cultivo. Mas depois muitos artistas começaram a abrir estúdios ao fundo da rua porque a renda era barata. Decidi alinhar com o que o Universo me estava a dizer e converti o espaço em estúdios. — Mika pestanejou, surpreendida: uma zona industrial convertida num antro de artistas. Leif coçou a nuca. — Seja como for, um amigo meu é artista, e tem estado a usar o espaço. Ele provavelmente deixava-te expor o trabalho dele, se quisesses. Sem pensar, Mika envolveu Leif num abraço. — Obrigada. Encostou o rosto ao peito dele. Leif ainda usava o mesmo sabonete. Mas já não tinha a gordurinha à volta da cintura. Ela sentiu falta das ancas rechonchudas. Ele confessara uma vez que os miúdos gozavam com ele na escola: beliscavam-no e espetavam-lhe dedos. Mika devia ter-lhe dito o quanto adorava o corpo dele. Como o sexoera sempre melhor quando o seu parceiro era um pouco imperfeito. Isso deixava-a menos inibida. Isso fazia com que não se importasse que ele visse todas as partes flácidas dela. — De nada. Ele retribuiu o abraço com um braço. Mika chegou-se para trás e semicerrou os olhos por causa do sol. — Lembras-te daquela vez na Whole Foods quando pediste à pessoa da caixa para escrever os códigos de barras porque não querias lasers a tocar na tua comida? — Lembro-me, pois. Os olhos dele brilharam, divertido. — Foi o mais irritante que alguma vez te vi. Ele afastou-se dela. — Vou pedir à Adelle para te enviar alguma literatura sobre lasers e manipulação de alimentos. — Faz isso. — Mika já ia a meio da rua quando se virou para trás e gritou: — E já agora, diz-lhe que o kanji que ela tem no braço significa «doninha». Lançou a Leif um aceno bem-disposto. — Depois diz-me da galeria. 2 Uma cena do filme Tommy Boy. [N. T.] - B CAPÍTULO 8 om dia, alegria. No sábado de manhã, Mika aproximou-se da cama de Hana com duas canecas na mão. Hana resmungou. — Vai-te embora. — Levanta-te, temos muito que fazer hoje — chilreou ela. — Tenho uma vida inteira para falsificar e apenas... — Mika olhou para o pulso, onde não estava nenhum relógio — oito dias para o fazer. Eu. Estou. A. Passar-me. Além disso, a tua maminha está à mostra. Hana resmungou e sentou-se, ajeitando a t-shirt para se cobrir. — Vou mandar pôr uma fechadura na minha porta. Estás a usar um fato-macaco? — Gostas? — Mika fez uma pose. — Não, não gosto. Temos de fazer alguma coisa em relação ao teu guarda-roupa antes que a Penny chegue. Não acho que o teu estilo Walmart dê conta do recado. Mika passou uma caneca a Hana. — Não te preocupes. A Charlie vai vestir-me com a sua melhor roupa casual-profissional que berra sou-educadora-num-jardim- de-infância, ou seja, basicamente, o meu pesadelo Ann Taylor. As roupas fazem a mulher. Ou desfazem-na. Vamos lá. Estamos prestes a embarcar numa viagem sem despesas pagas para limpar a casa. Hana bebeu um gole e cuspiu de volta para a caneca. — Mas que merda é esta? — É kombucha de maçã tépida. Comprei no estúdio de goat yoga ao fundo da rua. — É nojento. — É o que a Mika 2.0 anda a beber agora. Ela gosta muito de probióticos e de uma vida saudável. Não se cansa de andar de bicicleta, e gosta particularmente daqueles assentos minúsculos que se cravam na sua extremidade traseira. Gosta sobretudo desses. — Mika pousou a caneca no chão, enfiando-a entre uma caixa de uma máquina de fazer pão e quatro plantas mortas. Inclinou-se e pegou numa t-shirt, sacudindo-a. — Esta t-shirt cheira a fumo e más decisões. — Atirou-a a Hana. — Veste-a. — Por favor, para de te referir a ti mesma na terceira pessoa. Hana tapou os olhos com um braço. — Hana — disse Mika, fingindo que estava a falar a sério. — Vamos lá agarrar a vida pelos tomates. — Oh, meu Deus, nunca mais uses esse termo. — Anda lá, tenho donuts na cozinha. Isso pôs Hana em movimento. Saiu do quarto, com uma camisola vestida e sem calças. Encostou-se à bancada e mordiscou uma barra de ácer. — Qual é o plano? — A Charlie e o Tuan vêm a caminho com uma carrinha. E o Hayato também, porque não tem nada melhor para fazer. Vamos começar por… — Mika procurou a frase correta. Fazer um exorcismo? Queimar tudo até ao chão? — Desatravancar. Depois, esta tarde, vamos trabalhar um bocado no jardim. Não vamos conseguir acabar tudo hoje. Hana pôs a barra de ácer num pires que tinha comprado na venda do recheio de uma das casas da rua. Tocou numa caixa, envolveu uma pilha de revistas da Architectural Digest com as mãos. Tinham o nome da ex-namorada, Nicole, escrito nelas. — Não sei — disse, com uma pontada de teimosia na voz. Mika arrancou gentilmente os dedos de Hana da pilha de revistas. — Talvez devêssemos começar com coisas pequeninas, como os sapatos no forno? Hana inspirou pelo nariz. — Está bem. Está bem. Mika convenceu Hana a vestir calças e, vinte minutos depois, Charlie e Tuan chegaram numa carrinha verde-brilhante: B. J. LEVA A TRALHA. Hayato também apareceu por volta dessa hora, fazendo comentários sobre o facto de as mudanças serem a pior coisa do mundo. Ninguém o corrigiu. Hana morava naquela casa há anos. Trabalharam o dia todo. Limparam os pedaços de rolo de carne petrificado no frigorífico, bem como leite coalhado e kimchi solidificado. Abriram caixas e desempacotaram-nas. Colocaram os artigos para guardar na mesa da cozinha limpa e os artigos para descartar na carrinha que Tuan tinha pedido emprestada. Estava uma confusão maior do que quando tinham começado. Tuan instalou um suporte para bicicletas, e Charlie tinha trazido roupas para Mika usar, além de algumas roupas para andar de bicicleta. — A Penny não vai mexer nas minhas gavetas — disse Mika enquanto Charlie enfiava t-shirts e calções de licra na cómoda. Charlie exibiu um punhado de peças de vestuário. — Isto é spandex para dar confiança. Quando a casa ficou demasiado quente e abafada, mudaram-se para o jardim. Charlie calçou um par de luvas de jardinagem e começou a arrancar ervas. Tuan e Hayato podaram o carvalho gigante no jardim da frente — a cada outono, deixava cair tantas folhas mortas e sujas que os vizinhos reclamavam. Mika foi até ao jardim, onde encontrou Hana. — A Charlie quer dar um pulo à loja de artigos de jardinagem para ir buscar algumas anuais? Pelo menos, acho que foi isso que ela disse. Presumo que esteja a referir-se a flores. Queres ir com ela? O que é que estás a fazer? — Hana estava de costas para Mika e tinha uma mangueira na mão. Mika contornou Hana, de modo a ficar de frente para ela, sentindo a erva desidratada a crepitar debaixo dos pés. — Tenho quase a certeza de que essa árvore está morta. — Hana estava a regar um pequeno ácer castanho desnutrido. — Eu e a Nicole plantámo-lo. Foi a primeira coisa que fizemos quando nos mudámos para cá. Mika olhou-a com cuidado. — Não sei se dá para o salvar. Hana abanou a cabeça. Um vinco minúsculo entre as sobrancelhas. Tristeza. — Vou trazê-la de volta à vida com a força do amor. Charlie irrompeu em direção a elas. — Esquece a loja de jardinagem. — Ela tirou as luvas. — Estou de rastos. Alguém quer beber alguma coisa? Hana deixou cair a mangueira. — Vou buscar os copos. Ao final do dia, Mika sentia dores em músculos que nem sequer sabia que existiam. Ficou deitada na cama, a ver a ventoinha do teto girar em círculos preguiçosos, não tinha energia sequer para tirar os sapatos — a sua mãe morreria. A cozinha e a sala de estar estavam uma confusão, mas todas as caixas tinham desaparecido. Progresso. O seu telemóvel emitiu um som. Mika procurou-o pela cama. Duas mensagens. A primeira era de Leif. Uma morada seguida por: O Stanley não se importa que exponhas o trabalho dele, mas ele vai estar a trabalhar lá esta semana, por isso não vais conseguir entrar já no espaço. A outra mensagem era de Penny. ‘Tou tão entusiasmada por te ver, falta pouco mais de uma semana! FaceTime amanhã? Mika respondeu: Sim, FaceTime amanhã. Súper entusiasmada também. Passei o dia de hoje a preparar a minha casa para a veres. Os olhos de Mika começaram a fechar-se. O telemóvel voltou a tocar. Penny outra vez. Espero não ir dar-te trabalho. Tudo o que Mika conseguiu fazer foi rir. * * * Cinco dolorosos dias depois, Hana, Charlie e Mika reuniram-se para jantar na casa recém-lavada. O chão tinha sido esfregado. As paredes haviam sido pintadas. A relva tinha sido cortada e pequenas plantas com flores acompanhavam o passadiço até à porta da frente. Tuan até tinha reparado a racha no teto. Tinham disposto a mobília à volta da lareira e colocado na prateleira fotografias de Mika por todo o mundo — adulteradas pelo informático da escola de Charlie. Havia uma poltrona aconchegante em que uma pessoa se podia imaginar a ler livros num dia de chuva. O quarto de Mika tinha um edredão branco novo e um pequeno candeeiro de cristal com um prato para joias em cima da mesa de cabeceira. As bancadas da cozinha tinham sido arrumadas e o ar estavarefrescante e luminoso, com uma grande janela com vista para o jardim das traseiras. Tinham pendurado as luzinhas decorativas novamente e pintado com spray uma velha mesa de piquenique, enchendo-a de jarras cilíndricas e velas brancas, recriando a imagem do Instagram de Mika. Pequenos eletrodomésticos novos e brilhantes agraciavam a bancada de granito. Tudo graças às compras que Hana fizera nas televendas pela noite dentro. «Eu estava a compor um lar para a Nicole», disse ela enquanto os ligavam. Um delicado feto verde e uma orquídea branca adornavam o centro da mesa de jantar. Era tudo pão fresco e noites junto à lareira e dias ensolarados a fazer compotas. O coração de Mika animou-se num sorriso ao ver tudo aquilo. Ela poderia ter criado um bebé ali. Poderia ter ido para ali depois de viajar pelo mundo ou no fim de um dia duro de trabalho na sua galeria. O processo fez Mika lembrar-se de quando frequentara a escola secundária. Costumava comprar pinturas nas lojas solidárias porque não tinha dinheiro para comprar telas novas. Removia a tinta ou pintava por cima delas. Criava algo novo. Algo melhor. — Nada mal, nada mal mesmo. — Charlie deixou-se cair no sofá. Esta noite, elas iam comer pad thai e pho. Um último momento de relaxamento antes de Penny chegar. Entre garfadas de massa, Mika dispôs fotografias num álbum para Penny. Charlie e Mika tinham espalhado fotografias na mesa de centro para as escolher. Hana estivera estranhamente distante na última hora, concentrando-se no seu vinho, optando por simplesmente beber durante o jantar. — Oh! Tens mesmo de pôr esta aqui. — Charlie entregou uma fotografia a Mika. A fotografia reluzente era dela na idade de Penny. Aos 16 anos e em frente a um cavalete, com um esboço a carvão atrás dela. Agora, Mika estava a esfregar as pontas dos dedos, a lembrar-se da textura rugosa do carvão entre os dedos. Como se sentia bem a criar. Aquela sensação explosiva como se fosse sair da nossa pele. Mika pousou novamente a fotografia na mesa. Perante o retrato, Hiromi aproximara os olhos do papel e fungara. «Desenhaste isto? Não copiaste por cima?» Mika tinha passado uma boa parte da sua infância a convencer a mãe de que sabia desenhar, depois o seu primeiro ano de faculdade a convencer Hiromi de que merecia lá estar. — Esta não. Charlie franziu o sobrolho. — Está bem... — disse ela com cuidado. Para Charlie, era um mistério: porque é que Mika já não pintava? Só Hana sabia a verdade. — Tu eras tão boa. Eras. A palavra-chave. Tudo isso, as pinturas, as viagens, era agora uma vida fantasma. Algo que poderia ter sido, mas que nunca esteve destinado a ser. — Há alguma dos meus pais? — perguntou Mika. Hana voltou a encher o copo. — Aqui. — Charlie entregou outra fotografia. Esta com Mika, aos 6 anos, com Hiromi e Shige, a posarem junto a um televisor novinho em folha. Shige tinha comprado o aparelho para ver Kristi Yamaguchi patinar nos Jogos Olímpicos. Três anos depois, assistiam aos ataques terroristas da seita Verdade Suprema no Japão: Hiromi ficou acordada a noite inteira a telefonar a familiares, a chorar com eles. Na fotografia, as mãos de Mika estavam elegantemente dobradas à sua frente, e o seu cabelo ostentava o clássico corte à tigela das crianças asiáticas. Atrás da filha, Hiromi usava um par de calças de ganga do modelo mom desbotadas e óculos dourados com lentes rosadas, e tinha a mão sobre o ombro de Mika como um aviso: Não te afastes de mim. Mika colocou a foto no álbum de recortes. — Perfeito. Penny era capaz de perguntar coisas sobre os avós. Mika inventaria depois uma desculpa qualquer. Estão num cruzeiro, talvez os conheças da próxima vez. Só que Mika sabia que, apesar do que Penny pudesse acreditar no momento, não haveria uma próxima vez. A sua filha vinha conhecer a mãe biológica, obter respostas, e depois ficaria novamente presa na sua vida real e deixaria Mika para trás. Mika sabia o suficiente sobre si mesma para saber que até podia ser amada durante algum tempo, mas não durante uma vida inteira. Havia muitas fotografias de Hana e Mika quando frequentavam o ensino secundário. Mika olhou fixamente para uma. Estavam as duas no centro da cidade. O braço de Hana pendurado em volta de Mika, manifestantes atrás delas, mãos que agarravam um cartaz que dizia SÍ SE PUEDE. Tinham faltado às aulas para assistir a uma manifestação de trabalhadores rurais. Mika não tinha a certeza de contra o que é que eles estavam a protestar — era mais uma coisa de Hana —, mas soube-lhe bem gritar. Entoar cânticos. Armar um rebuliço. Hana tinha ajudado Mika a encontrar a sua voz. Era barulhenta e poderosa. Enfiou a fotografia no álbum. A seguir, Mika pegou numa Polaroid que Hana tinha tirado dela. Era o seu primeiro dia de faculdade, e ela estava a sorrir como se fosse a manhã do dia de Natal. Hiromi pensou que Mika se ia formar em Gestão e viver em casa, mas a arte e os dormitórios foram sempre a sua intenção. Hana e Mika tinham preenchido juntas a papelada dos seus pedidos de apoio financeiro e alojamento e receberam bolsas de estudo do governo federal. Na noite anterior à sua mudança para os dormitórios, Mika ficara a olhar para o relógio, à espera de que dessem as nove da noite, a hora a que Hiromi se costumava recolher. Quando a mãe estava mais cansada. Quando estava menos suscetível de querer discutir. Quando o pai desligou o televisor, Mika controlou o seu nervosismo e anunciou que ia sair de casa e que se ia licenciar em Arte. De punhos cerrados, ela estava pronta para dar a vida pelo seu sonho. «Ingrata», chamara-lhe Hiromi. Estava vestida com o seu roupão de andar por casa. Shige nem olhava para Mika. «Esta rapariga acha que vai ser pintora», cuspira Hiromi para Shige. Depois, virara a sua fúria para Mika. «Nunca irás ser artista. Vais desperdiçar a tua vida. Vai-te lá embora se quiseres.» Hiromi agitou uma mão para Mika, a vibração da raiva da mãe tão forte que poderia ter arrancado os dentes da boca de Mika. «Já que odeias tanto estar aqui, então vai-te embora. Talvez eu finalmente consiga dormir.» Mika tinha feito as malas e dormiu em casa de Hana. Estava a chover. Mika enxugou as lágrimas e consolou-se dizendo que não quereria ficar em casa de qualquer maneira, a desperdiçar outro momento de vida com uma mulher que a queria aniquilar. Ela tinha aspirações de grandeza. Uma miúda partida e de partida. No dormitório, foi a primeira vez que Mika se sentiu como uma verdadeira artista: as paredes sujas, o radiador sibilante, o guarda-roupa a transbordar de roupa preta. Estava sempre cinco minutos adiantada para tudo. Deus, lembrava-se de estar sempre a olhar para o relógio, incapaz de esperar que a sua vida real começasse. Prestava muita atenção aos minutos e às horas. Na verdade, sabia a hora exata em que Penny fora concebida. Tinha virado a cabeça e visto o relógio na mesa de cabeceira: 00:01. Os números digitais são da mesma cor vermelha que o ponto que um francoatirador usa para marcar o alvo. Mas Mika já não prestava muita atenção ao tempo. Agora, deixava-o passar alegremente. Enfiou a fotografia no álbum, deixando uma impressão digital sobre o seu rosto brilhante com um suspiro. A última fotografia que incluíram foi de Mika, grávida de sete meses com Penny na barriga. Estava a sorrir e aninhada numa poltrona como um pequeno animal, o cabelo penteado a formar dois coques, um de cada lado. Hana fez rodopiar o vinho no copo, deixando algo transparecer na sua expressão facial. — Com licença — disse ela, e depois desapareceu pela porta das traseiras. Obviamente, Charlie e Mika saíram logo a correr atrás dela. Observaram Hana pela janela enquanto ela espezinhava o triste ácer desnutrido, aquele que havia plantado com Nicole. Agachou- se, agarrou o tronco com as duas mãos e puxou. Não se mexeu. — Achas que devíamos arranjar-lhe uma pá? — sussurrou Charlie. — Não, acho que ela precisa de estar sozinha — disse Mika. Hana soltou uma espécie de grito de guerra, esquisito e triste. Colocou as mãos à volta do tronco novamente e puxou e puxou atéque, por fim, as raízes mortas se partiram e cederam. Hana caiu de costas com a força que fizera, aterrando em cima do rabo. Deixou-se ficar sentada por alguns instantes, enchendo e esvaziando o peito, com as bochechas ruborizadas e os olhos selvagens. Então, olhou para cima, estabelecendo contacto visual com Mika e Charlie através da janela. Charlie ergueu o seu copo de vinho. Tal como Mika. Uniram-nos num brinde silencioso. — Aos novos começos — disse Charlie. — Às grandes esperanças — acrescentou Mika. N CAPÍTULO 9 o domingo, Mika esperou no aeroporto de Portland na zona da recolha de bagagens. Já tinha olhado para o telemóvel cinco vezes, seguindo o voo de Penny e Thomas. Tinha chegado cedo, aterrara há vinte minutos. Mas ainda não havia sinal deles. E se Penny tivesse mudado de ideias? E se Thomas tivesse convencido Penny a mudar de ideias? Mika perscrutou a multidão. Um miúdo, com os pais a sorrir atrás dele, correu na direção de um casal mais velho. — Avô, avó! — chamou ele. Um tipo magro deixou cair a mochila e abraçou um tipo com um gorro. Uma rapariga de cabelo escuro, a andar aos saltinhos, caminhava ao lado de um homem alto e bonito. Juntou-se tudo na mente de Mika, uma revelação com o impacto de uma colisão frontal. Penny e Thomas. Tinham chegado. Finalmente. O sorriso de Mika alargou-se. Uma sensação de calor espalhou- se pelo seu corpo, o pico da serotonina. Penny viu Mika e correu para ela. Mika pensou nos filmes que tinha visto em que as crianças davam os primeiros passos e os pais estendiam os braços para elas. Penny parou alguns passos à frente de Mika, e olharam uma para a outra. Devia haver outra música a tocar, pensou Mika. Piano. Uma canção de amor. De repente, o dia assumiu uma qualidade nebulosa e suave como se estivesse num sonho. Penny falou primeiro. — Posso abraçar-te? — perguntou timidamente. — Sim, por favor. Mika abriu os braços e Penny avançou para dentro deles. Ela manteve o seu toque leve, apesar de querer apertar, agarrar com força, nunca mais se soltar, viver lá. Mika estava cheia de tanto desejo de amar que estava quase a rebentar. Thomas caminhou até junto delas e foi como se uma nuvem escura se tivesse deslocado para tapar o sol. Penny afastou-se. Thomas deu um toque amigável à filha. — É a primeira vez que te vejo sem palavras — disse ele, num tom caloroso. Talvez ele não fosse assim tão mau, afinal. Mika obrigou-se a estabelecer contacto visual com ele. Ela devia ter-se preparado. Maçãs do rosto salientes. Olhos verde-claros. Cabelo escuro solto a dar para o comprido, mas bem aparado, com uma ténue insinuação de grisalho. Thomas era atraente. Sexy. É que não mesmo. Népia. Nunca. Mika repreendeu-se. Sentindo-se profundamente desconfortável, o seu rosto ficou quente. — Thom, muito prazer em conhecer-te. Mika. Ela estendeu a mão. — Thomas — corrigiu ele. Toda a ternura por Penny se esvaiu da sua voz. Apertaram as mãos, o seu aperto firme e seguro; o de Mika pegajoso e flácido, como um peixe morto. — Estou tão aterrorizada e entusiasmada. Nem sei por onde começar. — As unhas de Penny eram curtas e estavam pintadas de cor-de-rosa vivo. Ela usava um anel no dedo médio direito e torceu-o. Mika virou a sua atenção para Penny, ainda a sentir o calor do olhar de Thomas. — Vamos buscar a tua bagagem e alguma comida. Parece-te bem? — Perfeito — disse Penny. Mika sorriu. Penny também. Era como olhar para um espelho. Como ver Mika aos 16 anos, ver-se jovem e esperançosa, ver-se antes. * * * — Tens a certeza de que não queres ajuda? Thomas remexeu-se impacientemente no parque de estacionamento. Havia carros a apitar, e motores a serem ligados. Um ligeiro cheiro a tubo de escape pairava no ar. Mas o tempo estava bom, o sol brilhava. Era um daqueles dias que tornava difícil estar de mau humor. Bem, difícil para algumas pessoas. Thomas parecia ter aperfeiçoado a arte de estar calado e a cismar, independentemente do tempo que fizesse. Assim, é mesmo um verdadeiro compincha. — Não, está tudo controlado. — Mika atrapalhou-se com as chaves. Tinha pedido emprestado o carro de Charlie, um Volvo usado, para levar Penny e Thomas. Era uma melhoria em relação ao seu próprio Corolla enferrujado e com fita adesiva a manter no lugar um retrovisor após uma infeliz colisão com uma árvore. Só que a pilha do comando da chave parecia ter morrido espontaneamente, e Mika teve de fazer as coisas à moda antiga, ou seja, usando as próprias chaves. Tinha conseguido destrancar as portas, mas não conseguiu encontrar a abertura do porta- bagagens. — Está tudo bem. — Sim. Já disseste isso seis vezes. — Thomas deslocou o peso do corpo de um pé para o outro. — É que eu nunca uso o porta-bagagens, só isso — disse Mika, metade dentro do carro, curvada sobre o banco da frente e consciente de que tinha o rabo no ar, e que tanto Penny como Thomas a estavam a observar. — Espera, acho que está quase. — Mas, na verdade, ela tinha era sacado do telemóvel e estava a mandar mensagens a Charlie. Como é que se abre a merda do porta-bagagens? — Espera, deixa-me tentar. — A voz de Thomas soou mais perto. Mika pousou o telemóvel com o ecrã virado para baixo e endireitou-se. Estavam os dois quase peito a peito. A boca de Thomas torceu-se na penumbra da garagem. — Posso? — Oh, hum, claro, porque não? — disse Mika, visivelmente envergonhada consigo mesma. Chegou-se para o lado de Penny, mais perto do porta-bagagens. Thomas dobrou o seu longo corpo e espreitou para dentro do habitáculo. — Aqui está — disse ele muito depressa. Pela janela de trás, Mika viu-o puxar uma alavanca. O porta-bagagens abriu-se. — Ele é um espetáculo com carros — disse Penny. Thomas voltou, com um sorriso presunçoso estampado no rosto, exsudando superioridade. Abriu a bagageira. — Pensava que tinhas dito que nunca usavas isto? — disse ele com voz arrastada. — O quê? — Mika chegou-se para o lado dele, tendo o cuidado de manter quase meio metro de distância entre ambos. Mas que bem. Charlie tinha-se esquecido de limpar o porta-bagagens, que continha: um kit de emergência, alguma roupa da limpeza a seco e uma caixa cheia de CD, marcada «Para doar». Thomas pegou num CD do topo da pilha. — Baladas lentas, música para fazer amor — leu na capa. Inclinou a cabeça para ela, semicerrando infimamente os olhos. Mika arrancou-lhe o CD das mãos e atirou-o de volta para a pilha. Fechou a bagageira. — Acho que vamos simplesmente usar o banco de trás para as vossas malas. Um pequeno sulco formou-se entre as sobrancelhas de Thomas. — Colocar a bagagem no banco de trás? As rodas dos trolleys estão sujas. — A bagagem vai bem no banco de trás. Eu sento-me ao lado dela. Caibo facilmente em espaços pequenos — disse Penny, partilhando um sorriso com Mika. Eram da mesma altura, pouco menos de um metro e sessenta. Mika não sabia a altura de Caroline, mas Thomas tinha pelo menos um metro e oitenta. Agora era a vez de Mika se sentir presunçosa. Eu dei-lhe isso, a sua altura, o seu corpo delicado, pensou. Thomas fez um barulho com a garganta. — Ótimo. — Ótimo — disse Penny quando Thomas começou a colocar as malas no banco de trás. — Vamos almoçar. Só para avisar, tenho estado num regime de treino diabólico, e estou a fazer uma pausa. Hoje vou ser completamente irresponsável com a comida. — Esfregou as mãos, um sorriso de estou-pronta-para-a- brincadeira no rosto. — Prepara-te para ver algumas coisas. * * * Thomas estremeceu visivelmente quando Mika encostou junto ao passeio, estacionando perto da Cartlandia, uma meca de roulottes de comida. Ao ver isto, o seu índice de felicidade subiu. A comida favorita dele deve ser provavelmente pão sem ser torrado. — Acho que aqui deve haver algo que agrade a todos — disse Mika quando saíram do veículo. O ar estava temperado com caril, miso e carnes assadas. Mais de trinta roulottes de comida estavam estacionadas em permanência naquele espaço. Tinham sido montadas tendas brancas com mesas dobráveis por baixo. Penny e Mika começaram a avançar à frente, e Thomas seguiu atrás, comos braços cruzados — um sinal do seu protesto passivo. Concordaram em dar uma volta de reconhecimento, para verem o que poderia ser bom. Penny e Mika conversavam alegremente entre a leitura das ementas. Acontece que Penny detestava Jack Kerouac. Ela descarregara uma cópia de Pela Estrada Fora e começara a ler no voo. — Tenho muita pena — disse ela. Tinham parado em frente à roulotte de comida Ball-Z, que servia pratos de diversos pontos do mundo em forma de bola. — Quero dizer, eu percebo porque é que provavelmente gostaste. Mas ele é súper sexista. A representação das mulheres é terrível, exceto quando fala da mãe, que parece respeitar. — Mas não gostaste da energia nas palavras? Ele escreveu o romance em três semanas. Não é espantoso? É tão visceral. Fez- me arrepender do tempo em que fiquei parada. — Pela Estrada Fora fizera Mika querer explorar o mundo. Ter uma veia errante e perseguir os sonhos dela. — Foi o que originalmente me inspirou a viajar e a estudar arte. — É só que não é suficientemente inclusivo para mim. Toda a Geração Beat era basicamente um bando de homens brancos que afagavam os egos uns dos outros. — Bem visto. — Mas estou contente por ter funcionado contigo. — Serviu o seu propósito. Continuaram em frente, Thomas mais ou menos meio metro atrás delas. Mika imaginou um desenho animado que uma vez viu, onde uma nuvem de chuva seguia a personagem principal. De volta ao sítio onde tinham começado, Penny batucou com os dedos nos lábios. — Achas que o ramen é bom? — Oh, é do melhor. Estou sempre a comê-lo. Vou pedir o mesmo. Porque é que não vou eu buscar, e vocês os dois arranjam um lugar? Thomas, o que é que queres? — Aceito o que recomendares. — Ela era capaz de recomendar algo para Thomas, era. Não podia correr mal com o ramen. Mas talvez ela pedisse um tamago ajitsuke duplo, um ovo malcozido ensopado em mirin. Era delicioso, mas a gema malcozida era capaz de ser desencorajadora para Thomas. Ele mexeu-se, sacando a carteira do bolso de trás, e depois ofereceu a Mika um par de notas de vinte dólares novinhas em folha. Mika levantou a mão. — É por minha conta. — Nunca na vida ela deixaria Thomas pagar. O dinheiro ficou suspenso no ar entre eles. Mika pensou que Thomas seria capaz de tentar forçar as notas a entrarem na mão dela. — Insisto. — Mika aveludou ainda mais o seu tom e sorriu animadamente. — Volto já. E afastou-se. Mika fez o pedido e entregou o cartão para ser passado pela máquina. Não se podia dar ao luxo de andar a pagar refeições e podia praticamente ouvir o dinheiro a ser raspado da sua conta bancária. Devia ter aceitado o dinheiro do Thomas. Não seria a primeira vez que dava um tiro no pé para salvar a face. O pedido chegou depressa e Mika equilibrou tudo num tabuleiro. Thomas e Penny tinham encontrado lugares debaixo da tenda, de costas para Mika. Ela parou fora do campo de visão deles, mas, ainda assim, era capaz de os ouvir. — Não é divertido? — perguntou Penny a Thomas, com a voz cheia de trepidação. Mika reconheceu o tom, aquele que uma criança usa com os pais quando quer desesperadamente a aprovação deles. Mika já o tinha usado com Hiromi muitas vezes. «Mamã, desenhei-te uma lagarta, gostas dela?» Mika, aos 7 anos de idade. «Hum, parece mais uma minhoca, acho eu», respondera Hiromi. — Estou a gostar de passar tempo contigo — disse ele placidamente. — Mas não das roulottes? — O que queres que eu diga? Estou convencido de que elas estão sobre rodas para que possam fazer uma fuga rápida quando os inspetores da segurança alimentar chegarem. Na verdade, aposto que consigo ver a classificação de segurança alimentar deles online. Penny soltou uma risadinha. — Por favor, não faças isso. — Ela esperou um segundo ou dois. — Ainda estás zangado comigo? Thomas pousou o telemóvel e apoiou os dedos compridos na mesa. Não tinha aliança no dedo esquerdo, reparou Mika. — Não, não estou zangado. Também não estava realmente zangado antes. Só gostava que não me tivesses mentido. — Mas os teus sentimentos estão, tipo, feridos? — Não te compete a ti preocupares-te com os meus sentimentos. Compete-me a mim preocupar-me com os teus. — Bem, aquilo até foi simpático. — O que é que achas dela? Por ela, Thomas referia-se a Mika. — Gosto tanto dela. E é giro. Gostamos das mesmas coisas. — Com isto, Mika animou-se com a promessa de um desejo subitamente realizado. Ela queria ser amiga de Penny. Era o que tinha desejado com a sua própria mãe. Carinho. Camaradagem. Um lugar onde descansar, onde podia sentir que voltava a casa. — Então, ela é como uma rapariga de 16 anos? — perguntou Thomas secamente. Mika mexeu-se, o tabuleiro a ficar pesado, mas não conseguia interrompê-los. Sentia-se como uma intrusa, do lado de fora a olhar para dentro. — Pai… Thomas pigarreou. — Desculpa. Continua. — Não sei. Falamos de livros, de rapazes e dos nossos sonhos. — Eu quero falar contigo sobre essas coisas. — É que simplesmente não é a mesma coisa. — Penny mexeu- se. — Olha, uma mãe morreu e a outra deu-me para adoção. Eu tenho problemas sérios. Preciso de alguma coisa… de alguém. — Tens-me a mim — disse Thomas. Penny sacudiu uma mão. — Tipicamente masculino, acharem que um pénis resolve tudo. Thomas tossiu no punho e bateu no peito. — Penny, por favor. — Tenta apenas descontrair-te um pouco. Sê fixe. — Sinto que até tenho sido bastante simpático. Mas não achas estranho que ela não soubesse abrir o porta-bagagens do carro? — Prontos para comer? — interveio Mika. Pôs o tabuleiro em cima da mesa e Thomas esboçou um sorriso fraco. Mika pousou tigelas de ramen fumegante em frente a cada um deles. Penny hesitou, os olhos a saltarem entre o garfo e os hashi de madeira. Finalmente, escolheu o garfo, furiosamente corada. Mika mordeu o lábio entre os dentes e pousou os hashi que tinha agarrado, optando pelo garfo como Penny fizera. — Isto deixa-me sempre com farpas. — Sim? Os olhos de Penny olharam cautelosamente para os de Mika, depois de volta para a tigela. Ela tinha umas quantas sardas na ponte do nariz que se espalhava pelas maçãs do rosto. O pai de Penny tinha sardas nos braços. — Ah, sim, estes hashi baratos são do pior que há. — Hashi? — perguntou Penny. — Pauzinhos em japonês. Penny parecia excessivamente satisfeita com aquilo. — Hashi. Thomas fletiu as mãos, de veias salientes. — Sabem que mais? Acho que mudei de ideias. Vou também buscar o caril. Que se lixe, certo? Ele levantou-se. — Pen, que tal uma bolacha de aveia com chocolate, a tua preferida? Penny acenou com a cabeça. — Claro, parece-me bem. — Volto num instante. — Thomas apertou o ombro de Penny, depois inclinou-se e deu-lhe um beijo no cabelo escuro e brilhante. Ela enxotou-o. — Para com isso. — Queres alguma coisa? — perguntou Thomas a Mika. Tantas, tantas, pensou Mika. Mas abanou a cabeça e disse: — Não, eu estou bem. Nada para mim, obrigada. ADOÇÃO NA AMÉRICA Gabinete Nacional 56544 W 57th Ave. Suite 111 Topeka, KS 66546 (800) 555-7794 Querida Mika, Já há muito tempo que não conversamos. Espero que esteja tudo bem. Mais uma vez, encontrarás anexos os itens definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika Suzuki (a mãe biológica) e Thomas e Caroline Calvin (os pais adotivos) relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O conteúdo inclui: • Uma carta anual dos pais adotivos a descrever o desenvolvimento e o progresso da adotada • Fotografias e/ou outros itens memoráveis Como sempre, estou aqui se tiveres perguntas. Atenciosamente, Monica Pearson Coordenadora de Adoções Querida Mika, Dez! A Penny tem 10 anos, e tenho a certeza de que a nossa pequena aluna do quarto ano tem um propósito na vida, que é criar o caos. Há dois meses, decidiu andar de costas para todo o lado. E agora, mais recentemente, decidiu começar a cozinhar. Inspirada, tenho a certeza, por ver The Great British Baking Show. Ela manda o Thomas ao supermercado com listas de compras, com sonhos de fazer todo o tipo de coisas — tortas de chocolate, bolachas de manteiga com noz-pecã e uma coisa chamadatarte de caramelo com maçã na frigideira? Basta falar numa coisa, ela quer logo experimentar. Todas as tardes, assim que chega da escola, vai logo preaquecer o forno e pôs-se a preparar tigelas para fazer misturas na bancada. Depois, deixa o lava-loiça cheio até acima com pratos e o chão coberto de farinha. No final, temos de fazer críticas ao que ela faz, como se estivéssemos no programa. «É um bom bolo, um pouco mole ao centro, mas a apresentação é excelente, e o sabor é bom.» Tenho de admitir, a Penny é uma péssima pasteleira. Mas nós comemos o que quer que ela faça e sorrimos tanto que as nossas bochechas ficam doridas. Mas o que posso dizer? Sou louca pela Penny. Quero sempre que ela siga os seus sonhos. Vai incluída uma fotografia da sua mais recente criação. A ideia seria fazer um bolo porco-espinho? Um abraço, Caroline N CAPÍTULO 10 a manhã seguinte, Mika esperou por Penny e Thomas na entrada do hotel. Ela ficou postada ao lado de um sofá de veludo que provavelmente custava mais do que a hipoteca da casa de Hana e tomou consciência das suas unhas lascadas e do seu cabelo que não era cortado sabe-se lá há quanto tempo. Os elevadores tilintaram, as portas abriram-se. Penny e Thomas emergiram. — Olá — disse Penny animadamente, saltitando na direção dela. — Bom dia. — Thomas aproximou-se. Ele e Penny envergavam ambos camisolas, calças de ganga e ténis. — Estão prontos? — Mika abotoou o casaco e dirigiu-se para a porta. — Pensei que podíamos ir a pé. Parece que só vai chover mais para o final do dia — disse ela, mas principalmente porque não podia pagar a gasolina e não queria pagar duas vezes o estacionamento. — O museu fica apenas a alguns quarteirões daqui. — Conforme passou pela porta giratória, o seu telemóvel tocou. Mika olhou para o ecrã. Hiromi. Recusou a chamada, mandou a mãe para o voice mail e enfiou o telemóvel de volta no bolso. A alguns passos do hotel, Penny disse: — Isto aqui é tão bonito. — Um vento irritante soprou vindo do rio Willamette, e os três arquearam-se, deixando-o passar pelas suas costas. — Andei por aí às voltas na noite passada, e há muitas luzinhas enroladas nas árvores da praça. Thomas sulcou a testa. — Saíste do hotel? — Só para ir ao centro comercial do outro lado da rua — disse Penny de forma descontraída. — Penny... — começou Thomas. — Comprei estas meias. — Penny parou em frente a um edifício art déco com um conjunto de portões de ferro de aspeto mítico. Puxou a perna das calças para cima. Meias azuis com caras de gatos enfeitavam-lhe os tornozelos delicados. — São giras, não são? — Muito giras — disse Mika com um sorriso. Thomas fez má cara para Mika, mas dirigiu-se a Penny. — Da próxima vez que decidires sair do hotel, agradecia que me dissesses. Penny não se deixou abalar. Puxou a perna das calças para baixo e disse: — Sim, senhor, meu comandante. E fez continência a Thomas, o que o fez levantar os olhos para o céu de uma forma mais ou menos divina. Retomaram o caminho. Os tijolos vermelhos do Museu de Arte de Portland já estavam à vista. Alguns quarteirões à frente do parque ficava uma faculdade, a alma mater de Mika. Ela conseguia ver o edifício das artes. Não era grande coisa à primeira vista. Um cubo cinzento. Mas era um lugar onde aconteciam coisas bonitas. E Mika quisera tanto fazer parte dele, que chegara a sentir dores físicas. O tempo estava semelhante — céu cinzento estático, ar húmido — no dia em que conheceu Marcus Guerrero, um professor de Belas-Artes. Ela tinha batido à porta dele, com um impresso amarelo na mão. Ele abriu a porta, com manchas de tinta na t-shirt azul-clara, uma bandana vermelha a prender-lhe o cabelo escuro, um miasma de fumo e café agarrado a ele. «O funcionário explicou-me que preciso de permissão para pedir equivalência a Pintura I e II.» Mika estendeu-lhe o impresso e manteve-se de pé, equilibrando o peso ora num pé, ora noutro. Era mais corajosa naquela época. Obstinada. Disposta a fazer qualquer coisa. O que quer que fosse preciso. Ele olhou para ela durante tanto tempo e com tanta intensidade que ela começou a virar costas. A mão do professor largou a maçaneta, e ele regressou à secretária, sentando-se numa velha cadeira de escritório de couro verde e braços de madeira — provavelmente estava por lá desde o início da faculdade, nos anos 40. Ele inclinou-se para trás, muito para trás. «Muito bem», disse. «Mostre-me o que vale.» Mika engoliu em seco. «O quê?» «O seu portefólio», disse ele, com um ligeiríssimo sotaque a esculpir-lhe o discurso. Marcus era uma lenda entre os estudantes de arte. Circulavam rumores sobre ele. Era um veterano da Guerra do Golfo e tinha uma medalha Purple Heart na gaveta da secretária. O seu pai fora um famoso construtor naval, e ele tinha crescido no Mediterrâneo em iates. Mas, na verdade, crescera pobre, filho de fruticultores migrantes. Cresceu na Florida e passou a juventude a apanhar bananas. «Não tenho nenhum.» «Então pinte qualquer coisa.» Indicou o canto do escritório. Um cavalete havia sido encafuado entre duas prateleiras, com paletas, tubos de tinta, frascos de pincéis, terebintina. «Agora, neste momento?» Mika lembrou-se de ter fletido os dedos, sentindo-se indisposta. Ele espreguiçou-se, entrelaçou os dedos e apoiou-os na nuca. «Agora. Neste momento.» — Uau! — A voz de Penny trouxe Mika de volta ao presente. — Estagiaste aqui? — perguntou ela, a olhar para o edifício, boquiaberta. Mika fez um barulho indiferente na garganta que passou por afirmação. Depois, acrescentou: — Logo após a faculdade. Não por muito tempo. E foi há anos. Tenho a certeza de que toda a gente com quem trabalhei seguiu em frente. — Então, tiveste-me no primeiro ano da faculdade — disse Penny, a compilar a falsa linha temporal de Mika. — Depois licenciaste-te e continuaste a trabalhar no museu. Isso é bastante impressionante. Há uma rapariga na minha turma, a Taylor Hines, que teve mononucleose no primeiro ano e teve de o repetir. Mas tu tiveste um bebé e conseguiste estudar e ainda fazer uma carreira. Mika corou com o elogio. O que pensariam Thomas e Penny se alguma vez soubessem a verdade? Mika tinha demorado oito anos a licenciar-se. Chumbara no primeiro ano e perdera a bolsa, depois teve de rastejar de volta para os pais a pedir ajuda. «Boas notícias», dissera ela pouco depois de tudo ter acontecido, «mudei de curso: em vez de Arte, vou licenciar-me em Gestão. Podem dar-me algum dinheiro?» A sociedade aplaudia quem conseguia fazer o impossível. Quem se esforçasse ao máximo. Ser bem-sucedido contra todas as adversidades. É isso que significa ser-se americano. Mas Mika não conseguia esforçar-se ao máximo. Além disso, havia uma expetativa de que a vida de Mika era melhor sem Penny. Que o sacrifício tinha valido a pena. Na bilheteira, Mika e Thomas pegaram ambos nas carteiras. — Pagaste o almoço ontem, e vais convidar-nos para jantar hoje à noite. Eu insisto. — Ele fez uma pausa, à espera, a olhar fixamente para Mika como que para forçar a sua concordância. Isto não resultara com Penny, constatou Mika, mas resultou bastante bem com ela. — Hum, claro, pode ser. Obrigada. — Ela guardou a carteira, um pouco aliviada. Ainda não tinha arranjado emprego. Thomas comprou os bilhetes, e foi-lhes dado um mapa das galerias, embora Mika não precisasse dele. No interior, inalou, encontrando conforto no cheiro, que não conseguia localizar, mas que era endémico a edifícios com tamanha dimensão. Ela visitava o museu regularmente. Era tão sossegado. Não tinha onde se esconder dos seus pensamentos, mas sentia-se segura no seu interior. Era um local onde Mika podia lamentar ou sonhar, e depois deixar tudo isso para trás. Ter Penny ao lado dela agora neste espaço sagrado fazia Mika sentir-se completa. Subiram os degraus de mármore até às galerias europeias, contornando as galerias asiáticas, que, como sempre, tinham sido relegadas para segundo plano — os museus geralmente favoreciam homens brancos mortos. Mika guiou Thomas e Penny numa minivisita, passando por um quadro deÍcaro. Ela costumava contemplar frequentemente o mortal que voou até tão perto do Sol que as suas asas de cera derreteram. Se Ícaro tivesse conhecido o seu destino, perguntava- se Mika, teria ele, mesmo assim, voado tão alto? Será que a subida teria compensado a queda? Enquanto faziam uma pausa diante de um Monet, Mika descreveu o Impressionismo. — Estás a ver as pinceladas pequenas, finas e ligeiramente visíveis? Isso é uma marca do Impressionismo. Monet pintava ao ar livre: plein air, como diziam, um método para captar a luz e a essência da paisagem num único momento. — O seu currículo artístico na faculdade tinha incluído disciplinas de História da Arte. Ter talento não era suficiente. Para se ser artista, também tinha de se ser uma espécie de conservador. Era preciso estudar os grandes, aprender as suas técnicas. Era muito parecido com jazz: a mestria antes da improvisação. E, como Hiromi no seu jardim depois da última geada de inverno, Mika tinha escavado, só que desistiu abruptamente a meio do Impressionismo, antes mesmo de saber que estava grávida de Penny. — Está gretado. — Penny franziu o nariz. Mika sorriu. — Craquelure. É do verniz a secar. Acontece com a idade. Penny vagueou e parou em frente a um Degas. Com a cabeça inclinada para cima, olhou para o pastel sobre papel, fungou, esfregou o nariz. Thomas ainda estava hipnotizado pelo Monet. Mika postou-se ao lado de Penny. — Estás bem? — perguntou calmamente. Penny manteve a cabeça baixa. — Sim. Estou bem. É que a minha mãe... ela costumava dar-me muitas alcunhas parvas. Dizia «Olá, fada do açúcar» ou «peru bebé» ou «pequena bailarina». Isto fez-me pensar nela. — O quadro de Degas ilustrava uma única bailarina, cujos dedos ágeis ajustavam a saia de tule na cintura. — Isso é querido. — Degas foi onde Mika tinha parado nos seus estudos; «pequena bailarina» era o que Caroline tinha chamado a Penny. Mika questionava-se sobre o significado dessa alcunha. Um final e um começo. Se estava tudo destinado a ser. Ou se ela estava apenas à procura de um sinal… agarrando-se ao ar, como Ícaro durante a queda. O sorriso de Penny era ténue. — É estúpido estar para aqui a chorar por causa disso. — Acho que não — sussurrou Mika. — Podes falar sobre ela. — Sobre a Caroline, quis dizer. — Não tenhas medo de falar. Podes falar comigo sobre qualquer coisa. — Eu vou sempre ouvir. Eu vou estar sempre aqui. Vou ter sempre fé em ti. — Obrigada. — Penny afastou-se e encontrou um banco onde se sentar ao virar da esquina. Mika juntou-se a ela. Para quem passava, pareciam mãe e filha, pensou Mika. A culpa apunhalou-a nas entranhas. Caroline e Thomas tinham corrido a maratona com Penny, enquanto Mika permanecera na bancada. — Ela era realmente incrível. Ela gostava do Kahlil Gibran e do E. E. Cummings. A sua aliança de casamento tem lá escrito: «Carrego o teu coração no meu coração.» — Penny tirou o anel que usava para que Mika conseguisse ver o seu interior, o tipo de letra manuscrita. Voltou a colocar a peça no dedo. — Mas era difícil não ter pais que se parecessem comigo, e sinto que não posso dizer isso perto do meu pai, porque ele ainda está tão triste com tudo isto. O estômago de Mika ficou de rastos. Thomas e Penny ainda estavam de luto. — Foi difícil teres sido adotada por pais brancos? — perguntou Mika, colocando enfoque na segunda parte e não na primeira. Penny reclinou-se e levantou as pernas para cima, sentando-se, então, de pernas cruzadas no banco. — Não sei. Os meus pais tentaram fazer coisas japonesas comigo. Matricularam-me em algumas aulas, e fomos a festivais em Dayton. Mas havia sempre uma desconexão. Acho que eles se sentiam desconfortáveis quando as pessoas faziam perguntas sobre nós. Tipo: «Onde é que a foram buscar?» — Penny fez uma pausa, mexeu numa das unhas. — As crianças costumavam gozar com os meus olhos na escola primária. Cantavam a Canção dos Gatos Siameses, de A Dama e o Vagabundo, e esticavam os olhos para ficarem em bico. A dor dentro de Mika piorou. Era uma espécie de agonia bela, ter uma filha. Sentir as emoções dela, bem como as suas próprias. — Que bestas. Penny esboçou um meio sorriso. — Por vezes, Dayton parece-me uma cidade muito pequena e eu sinto-me tão grande em relação a ela. Isso faz sentido? — Faz — respondeu Mika imediatamente. Viu-se decalcada nesta jovem, na sua filha. Mika também se sentira assim na escola. A rebentar pelas costuras, deserta por ir para a faculdade e morar no campus, longe do perfecionismo destrutivo de Hiromi, sair de baixo do olhar da mãe. Agora, queria avisar Penny. Avança devagar. Não dês passos tão grandes. Não é uma corrida. Não tens de ter tudo planeado neste momento. — Além disso — disse Penny —, para onde quer que vá em Dayton, há uma lembrança dela, deles, de nós como família. Mas já não somos uma família, ou somos, mas é tão diferente, e estou confusa sobre o que é que tudo isso significa. Não sei. — Penny raspou os pés contra o chão brilhante. Um bando de mulheres com chapéus roxos passou, a tagarelar sobre um Picasso na galeria ao lado. — Ouvi dizer que ele era um tremendo mulherengo — disse uma. Mika viu-as partir e reparou em Thomas a contornar a esquina. — Olá. Vocês desapareceram — disse ele, parando em frente a elas. — Estás bem, miúda? — O sobrolho do pai ficou carregado. — Está tudo bem. — O rosto de Penny, o sorriso dela, era brilhante e ofuscante. Convincente. — Melhor do que bem — acrescentou. — Estou ótima. — Ela mostrou o seu sorriso a Mika. E o coração de Mika bateu com força contra o peito. Penny olhou-a com tanta ternura, tanta gratidão, que algo se estilhaçou dentro de Mika e se fundiu. Algo que talvez estivesse partido há muito tempo. Se ao menos ela pudesse dizer aos cientistas do mundo: «Parem de estudar! Eu encontrei a chave para a fusão.» Estava na ligação entre um progenitor e a sua cria. M CAPÍTULO 11 ika atarefou-se pela cozinha seis horas depois, a abrir o forno e a verificar o macarrão com queijo feito em casa. Leif espreitou por cima do ombro dela. — Credo, quanto queijo é que isso leva? — O molho branco de bechamel começava a borbulhar. — Mais de setecentos e cinquenta gramas de cheddar e Gruyère. — Outra despesa. Pelos vistos, falsificar uma vida era bastante caro. Mika fechou o forno e contornou Leif até ao frigorífico para ir buscar um recipiente para a salada. — Usei a receita da Martha Stewart. Leif esfregou a curva do seu bíceps. — Lembras-te de quando a Martha Stewart e o Snoop Dogg eram amigos? — Mika escolheu não responder. Despejou a salada numa travessa de prata. Leif pegou num dos limões decorativos da uma fruteira. — Falsos — murmurou ele. Voltou a pousá-lo e virou-se para Mika. — Achas que eu devia ter-me vestido melhor? — Trazia uma camisa com colarinho e um par de calças de ganga. Mika pousou a pinça para a salada. Como se já não estivesse nervosa o suficiente, Leif estava a piorar as coisas. — Leif. — Uau! Já não ouvia esse tom há muito tempo. Traz-me algumas recordações. — Ele tremeu, a fingir que se arrepiava de medo. Mika semicerrou os olhos para ele. — Estás pedrado neste momento? Leif mostrou-se ofendido. — Claro que não. Agora que sou um profissional, não posso ficar pedrado com o meu próprio produto. Mika gemeu. — Essa é a tua última referência a drogas esta noite. — Tu é que puxaste o assunto — provocou ele. Baixou o corpo, apoiando as mãos nos joelhos para que ficassem cara a cara. — Vai correr tudo bem. Prometo. Memorizei todas as notas que me mandaste. E tu estás ótima. Muito Julia Child prestes a fazer um frango assado. A tensão diminuiu a partir dos ombros de Mika. — Obrigada — disse ela, olhando depois para o relógio no forno. — Eles chegam dentro de vinte minutos. — Então, como é que eles são? — Leif endireitou-se, pegou num limão falso da tigela e rebolou-o nas suas palmas gigantes. — Como é que ela é em pessoa? Mika não precisava de pensar nisso. — Incrível. É espantosa. — Soltou um sorriso rasgado, deslumbrada pela filha. — Estou entusiasmada por tu ires conhecê-la, naverdade. — Penny era alguém que Mika queria partilhar com as outras pessoas. Talvez fosse assim que Hiromi se sentia quando Mika dançava, aquele desejo louco de chamar as pessoas, de se gabar da pessoa que criou. Tudo o que eles fazem é por MINHA causa. — E o pai? Mika desanimou perante a menção a Thomas. — Ele é um osso duro de roer. Não sei dizer se não gosta de mim ou se simplesmente não gosta do mundo. Mas é notório que adora a Penny. — Ela pensou nele nas roulottes de comida, com as mãos a transbordar de bolachas de chocolate, na forma carinhosa como observava a filha, como se não suportasse a ideia de ela alguma vez sofrer. A campainha da porta tocou. — Merda, chegaram mais cedo. — Mika olhou para Leif como se ele soubesse o que fazer. — Ainda tenho de acabar a salada. — Vai lá abrir a porta. Eu acabo. — Ele enxotou-a e Mika correu para a porta, obrigando-se a abrandar alguns passos antes da soleira. Enfiou o cabelo atrás da orelha e estampou no rosto um sorriso luminoso antes de abrir a porta. Thomas e Penny estavam no degrau da frente, o Uber que os transportara a afastar-se atrás deles. Thomas usava um fato azul- escuro, sem gravata, e Penny vestia uma saia e uma blusa. — Bolas — disse Penny. — Eu sabia que não nos devíamos ter aperaltado. Eu bem te avisei — disse ela a apontar para o pai. Thomas exibiu um sorriso, a imagem da maldade elegante patente no seu fato. Observou as calças de ganga e a t-shirt de Mika. — É melhor estar demasiado bem vestido do que mal vestido. — Vocês estão com ótimo aspeto. — Mika forçou um sorriso, abrindo ainda mais a porta. Thomas hesitou. — Entrem. O Leif está na cozinha, e o jantar está quase pronto. — Chegámos cedo? — perguntou Penny, entrando em casa. — Eu disse ao pai que devíamos ter dado uma volta pelo quarteirão ou assim. — Chegaram mesmo na hora certa — disse Mika. Por fim, Thomas entrou. Mãos nos bolsos, a olhar em redor. Parou mesmo debaixo do sítio onde Tuan tinha reparado a racha no teto. Mika teve uma visão repentina do gesso a lascar-se e a cair em cima dele. — Leif, apresento-te a Penny… e o Thomas — disse ela, arrebanhando os dois em direção à cozinha. Leif pousou a faca com que tinha cortado legumes, limpou as mãos e estendeu uma a Thomas. Cumprimentou primeiro Thomas, depois Penny. Penny, com a energia e a exuberância de um esquilo, agitou a palma da mão de Leif para cima e para baixo. — Isto é fantástico. Já ouvi falar tanto de ti. — Igualmente. — Leif sorriu e virou-se para Mika, desembaraçando-se de Penny. — Porque é que vocês os três não vão lá para fora? Pensámos que, como a noite está agradável, podíamos comer no pátio. Eu levo a comida para lá. — Levas? — perguntou Mika, atordoada. A única comida que Leif alguma vez levara a Mika vinha em sacos de papel. — Claro que sim. Vão lá. Os homens pertencem tanto à cozinha como as mulheres. Mika sorriu por causa de Penny e Thomas, e depois virou-se para Leif. — Não exageres — disse enquanto fingia tossir para a mão. Ela conduziu Thomas e Penny pela sala de estar. Penny fez uma pausa para olhar para as fotos por cima da lareira. — Todas as tuas viagens — disse ela calorosamente. Mika também parou, ombro a ombro com Penny. Ali estava Mika, ou pelo menos um avatar, a sorrir nas ruínas de Pompeia, na Casa dos Mistérios. Atrás dela, um fresco com uma distinta tinta vermelha: cinábrio. Na fotografia seguinte, ela estava no Louvre, a sorrir em frente à Mona Lisa. Thomas aproximou o nariz, com os olhos semicerrados. Conseguiria ele ver o que Mika via? Que a luz não estava bem? Que as sombras e os destaques violavam as leis da física? — Vamos lá para fora — disse Mika. Incitou-os a saírem, de rosto corado. No jardim das traseiras, as luzinhas decorativas que Mika tinha pendurado reluziam e refletiam-se nos olhos escuros de Penny. — É exatamente como na tua foto do Instagram! Thomas esgravatou com o pé o buraco no chão de onde Hana tinha arrancado a árvore. — Têm esquilos aqui? — O quê? — Mika franziu o sobrolho, agora que o rosto começara a arrefecer. — Não. Tenho andado a fazer paisagismo. Sabem como é com este tipo de casas, o trabalho nunca acaba. — Devias pôr um pouco de terra nisto. Alguém pode tropeçar e torcer um tornozelo — disse Thomas. — Isto não é tão giro, pai? — perguntou Penny. — Ainda está a nevar, lá na nossa terra. Eu não sabia que Portland tinha primaveras tão quentes. Mika engoliu em seco. — É raro. Mas a previsão para os próximos dias é boa. Parece que trouxeste o sol contigo. — Ela olhou para Penny com ternura e tentou controlar os seus níveis de felicidade. Quão certo tudo aquilo lhe parecia, ter Penny ali. Tão familiar. Instalaram-se na mesa de piquenique. Leif apareceu com o macarrão com queijo e a salada. Serviram os pratos. Mika acendeu as velas nas jarras e comeram em silêncio à luz suave das velas durante algum tempo. — Então, como é que vocês se conheceram? — perguntou Thomas, limpando a boca. — Como é que nos conhecemos? Os olhos de Mika saltaram para Leif, a garfada de macarrão que ela tinha acabado de levar à boca alojada na garganta. Merda. Nunca tinham discutido a história da origem deles enquanto casal, a origem falsa. A verdadeira era que Hana tinha ido comprar drogas a Leif, tinham ficado todos pedrados e Mika tinha-se metido com ele. O sexo casual passou a ser sexo habitual, e depois Mika passou a coabitar com Leif. Ocorreu a Mika que ela tivera muito pouco controlo da sua vida nos últimos anos. Tropeçava e caía num emprego. Numa relação com Leif. No dia seguinte e depois no outro a seguir. Leif pousou o garfo. — Sabem, a Mika conta melhor. Conta lá. Ele sorriu para ela, um desafio nos seus olhos castanhos. — Bem. — Mika agarrou-se à borda da mesa. O estômago dela revirou-se e uma corrente de sangue subiu-lhe pelo pescoço. — Tinha saído para jantar com um casal de amigos artistas de… — Ela fez uma pausa, à procura na memória de um lugar, um destino, qualquer coisa. — Da Grécia — interveio Leif com à-vontade. — Eram da Grécia, não eram? — É isso mesmo. E o Leif também lá estava? Mas não me lembro porquê? Ela engelhou o nariz e olhou para Leif. Leif bebeu o vinho antes de responder. — Em trabalho. — O que é que fazes? — perguntou Thomas a Leif. — A Penny disse algo sobre agricultura, mas não sabia nada de concreto. — Estou no ramo da agricultura. A Mika acha que é bastante aborrecido, por isso tenho a certeza de que foi por isso que não entrou em pormenores. Trabalho principalmente no campo da bioquímica. Faço consultoria freelance para universidades, um contrato governamental aqui e ali, esse tipo de coisas. — Mika expirou. Aquilo soava bem. Credível. — Então, e tu? — perguntou Leif a Thomas. Thomas pousou o garfo e a faca. — Sou advogado especializado em direitos de autor. Tenho o meu próprio escritório em Dayton. Muito longe do bombeiro que queria ser quando tinha 10 anos — brincou ele. — Nem todos podem seguir a sua paixão. Mas acho que é importante correr riscos. Por exemplo, participar na Corrida de Bicicleta Nudista de Portland… — Penny — disse Mika um pouco alto demais. — Quase me esquecia de que tenho um presente para ti. — Tens? — Penny sorriu de orelha a orelha. — Volto já. Mika pegou no álbum de recortes que estava dentro de casa e voltou, colocando-o à frente dela. — Leif, importas-te de ir buscar a sobremesa? Mika olhou para Leif enquanto Penny tocava no canto do álbum. — Claro que não — anunciou Leif. Ele batucou na mesa uma vez e levantou-se. Mika agradeceu-lhe silenciosamente. — Não é nada de especial — disse Mika enquanto Penny passava com uma mão sobre a capa de linho. — Apenas algumas fotos minhas de quando tinha a tua idade… Thomas ficou calado por um momento, depois disse: — Isto é simpático da tua parte. Penny olhou para cima, com os olhos a brilhar. — Sim. Ela folheou as páginas. Quando Penny parou numa fotografia da mãe aos 16 anos, Mika falou. — Meu Deus, eu era tão estranha aos 16 anos. Não era tão confiante como tu. Tens de agradecer aos teus pais por isso, acho eu. —Os olhos de Thomas deslocaram-se para Mika, e o canto da boca dele curvou-se num sorriso genuíno de agradecimento. Mika aclarou a garganta. — Tinha convencido os meus pais a deixarem-me fazer uma permanente. Só que não tínhamos dinheiro para fazer a cabeça toda, por isso só fizeram a franja. Penny riu-se, depois ficou séria. — Tens alguma fotografia dos teus pais? — perguntou calmamente, como se tivesse medo, mas não pudesse dar-se ao luxo de não a fazer. — Sim — disse Mika, feliz por ter incluído uma. — Na parte de trás, acho eu. — Eles moram perto? — perguntou Thomas, assustando Mika com a sua voz profunda. — Moram, mas… estão num cruzeiro neste momento — disse ela a Penny. Penny acenou com a cabeça, mas continuou a virar as páginas uma a uma, absorvendo tudo. Parou numa página, e Mika levantou-se para ver o que lhe tinha chamado a atenção. A fotografia de Mika grávida. — Estou lá dentro — disse Penny, traçando o contorno da barriga inchada de Mika com um dedo. — Como é que foi? Estares grávida de mim? Os olhos de Thomas deslocaram-se em direção a Mika, e o coração dela flutuou-lhe no peito. — Como foi? — repetiu ela, a batucar nos lábios, enquanto fingia conjurar a memória. Embora não precisasse de o fazer. Estava sempre viva dentro de si, emaranhada à volta dos seus ossos, a ameaçar arrastá-la para baixo. Todos aqueles meses de crescimento de um bebé que ela não tinha a certeza se ia odiar ou amar. Nunca deveria ter tido dúvidas. Quando empurrou Penny para fora, sentira amor à primeira vista, fluindo tão naturalmente como o sangue no cordão entre elas. Mas como poderia dizer isso a Penny? E à frente de Thomas? — Bem, tinha quase a certeza de que estavas a tentar matar-me. — Injetou humor na voz. — A comida não parava no estômago durante o primeiro trimestre. Depois, no segundo trimestre, tive uma azia tão grande que parecia que tinha engolido um pequeno vulcão. Não conseguia dormir sem estar completamente direita. E no ato final, o terceiro trimestre, a simples noção de me baixar e calçar sapatos quase me sufocava. Não havia uma parte do corpo de Mika que Penny não tivesse colonizado. Penny riu-se e Thomas também sorriu. — Foste uma refilona desde o início — disse ele à filha. Penny riu-se outra vez. Mika também se riu, erguendo o rosto para a lua crescente. Tentou dizer a si própria que este momento não significava muito. Que o seu coração não se sentia aberto e interminável como o verão. Que não era como se ela tivesse 18 anos novamente e estivesse a começar. Quando tivera o mundo a seus pés. Quando a sua vida tinha sido tinta espessa, cores vibrantes e pinceladas ousadas. N CAPÍTULO 12 a noite seguinte, Mika apressou-se para se ir encontrar outra vez com Thomas e Penny no hotel deles. Tinham planeado jantar num restaurante a um quarteirão de distância. Ela tinha conseguido encontrar um lugar para estacionar na rua, mesmo antes de o céu se abrir e enormes gotas de chuva caírem. Quando deslizou pelas portas da entrada, tinha o cabelo colado à cabeça. — Estou aqui — disse ela a Thomas, correndo e escorregando ligeiramente. — Desculpa, atrasei-me. O trânsito estava horrível e não conseguia encontrar sítio para estacionar. Onde está a Penny? Ela perscrutou a entrada. — Deve estar a descer a qualquer minuto. — Nesse mesmo instante, o telemóvel de Thomas tocou. — Só um momento — disse ele a Mika. — É a Penny. — Ele atendeu: — Então, miúda? A Mika está aqui. Já estás pronta? — Ouviu atentamente por um minuto. — Ah, estás? Trouxeste alguma coisa contigo? Não, claro que não. Não há problema, já sabes. Vou agora mesmo num instante a um supermercado. Queres mais alguma coisa? Está bem, já subo. Espera um bocadinho. Então?! Está tudo bem, está tudo bem. Sim, não te preocupes, eu explico-lhe. Sim, vou ser simpático — disse ele um pouco mais silenciosamente. Finalmente, desligou. — Bem, a Penny não vem. Está naquela fase. A testa de Mika enrugou-se. — Fase? Oh! — A compreensão abateu-se sobre ela. — Está naquela altura do mês. Ele coçou a nuca. — Tenho de ir a um supermercado. — Hum, há um Target a um quarteirão daqui. Eu levo-te. Pediram dois guarda-chuvas emprestados ao porteiro. Dez minutos depois, estavam no mesmo Target em que Mika se encontrava quando Penny lhe ligara. Estou a falar com a Mika Suzuki? Daqui fala Penny Calvin. Acho que sou sua filha. Thomas procurou pelas prateleiras e abanou a cabeça, extremamente desapontado com a falta de escolha. — Olhe, desculpe. — Fez sinal a um funcionário de camisa vermelha e perguntou por uma marca de tampões em particular. Superabsorventes. O empregado disse que ia verificar e afastou- se rapidamente. Thomas enfiou as mãos nos bolsos e balançou nos calcanhares. — A Penny é muito específica. Mika teve de admitir que se sentiu um pouco encantada com o desenrolar de toda a cena à sua frente. — É? — Sim — disse ele com um encolher de ombros. — Ela gosta de uma certa marca. Se não tiverem, talvez tenhamos de ir a outro supermercado. O que foi? — disse ele perante o olhar esbugalhado de Mika. — É que… estou muito impressionada. O meu pai nunca foi a um supermercado para comprar produtos femininos. Hiromi comprava-os e levava-os a Mika num saco de plástico escuro, como se estivesse a acontecer uma negociata do submundo profundo. Uma vez, ela tinha mandado Leif. Ele ligara- lhe pelo FaceTime, e tinham começado a discutir sobre opções ecológicas. Ela desligou-lhe o telefone na cara, satisfeita por estar a sangrar no sofá dele. Era bem feito. Thomas coçou o maxilar. — Não é motivo para uma pessoa se envergonhar. Nunca quero que ela se envergonhe do seu corpo. — Fez uma pausa como se considerasse se devia dizer mais. Finalmente, decidiu continuar a falar. — Fiz-lhe uma festa do período. — Desculpa, o quê? Ele riu-se, a olhar para os sapatos. — Sim. Ela teve o período um ano após a morte da Caroline, e eu fui procurar na Internet. Acho que pesquisei no Google «pai solteiro, filha teve o período pela primeira vez» ou qualquer coisa assim. Apareceram inúmeras sugestões sobre uma festa de boas- vindas à feminilidade. Convidei algumas das amigas dela para uma festa surpresa. — E ela gostou disso? Mika ficara mortificada quando começou a ter o período — envergonhada e confusa. Hiromi nunca lhe dissera que isso lhe iria acontecer, pelo que ela foi apanhada de surpresa, para não dizer pior. Thomas abanou a cabeça. — Ela não gostou. Não saiu do quarto. Acabei por mandar as amigas para casa. Passado algum tempo, desceu e pediu-me para nunca mais lhe fazer uma festa do período. Acho que talvez o bolo e as serpentinas tivessem sido um exagero. Ele remexeu os pés. O funcionário do Target voltou com uma caixa de tampões do tipo certo. Pagaram e voltaram a pé para o hotel. No décimo primeiro andar, bateram à porta de Penny. — Miúda — disse Thomas. Penny abriu a porta, vestida com um roupão de banho, e a televisão aos berros em fundo, um reality show sobre donas de casa. — Não me apetece ver ninguém — disse Penny, de mão estendida. Thomas depositou a embalagem na palma da mão aberta da filha. Ela continuou: — Vão vocês jantar fora. Não desperdicem a noite por minha causa. Eu provavelmente vou esgotar o minibar, comendo tudo o que tiver chocolate ou for salgado. Depois fechou-lhes a porta na cara. No elevador, Mika disse: — Podemos cancelar o jantar. Vou andando para casa. Thomas cruzou os braços e coçou o maxilar. — Eu sou mesmo má companhia, não sou? — Não. Claro que não — cuspiu Mika, surpreendida. Ele olhou para ela. — Que tal uma bebida? No átrio? Acho que talvez devêssemos conversar, conhecermo-nos melhor. Pela Penny. Chegaram ao átrio e as portas abriram-se. Mika fartou-se de procurar uma desculpa, pensou em simplesmente desatar a correr e fugir, mas essa parecia ser a opção mais humilhante. Thomas esperou por ela do lado de fora do elevador. — Mika — disse ele sem qualquer emoção. — Thomas. — Por favor, vem tomar uma bebida comigo. — Está bem. — Mika inalou e passou junto de Thomas. — Uma bebida. Atravessaram o átrioe dirigiram-se ao bar do hotel. Como Mika estava condicionada a fazer, os seus olhos procuraram os quadros. Peças abstratas típicas de hotel com redemoinhos monocromáticos, algo escolhido pela estética. Arte de sofá, como lhe chamava Marcus, o seu professor. Thomas parou junto a uma pequena mesa num canto e puxou uma cadeira para Mika. Perante o som de pernas de madeira a rasparem contra os ladrilhos, Mika lembrou-se novamente do gabinete de Marcus. Naquele dia em que o conheceu, o cavalete fizera um barulho semelhante quando ela o arrastou para o preparar com uma tela em branco tirada do armário. «O que é que devo desenhar?», perguntou ela por cima do ombro. A luz do sol entrava pela janela, viam-se partículas de pó suspensas. «Se me estás a perguntar isso, o teu lugar não é nas aulas de Pintura Avançada», respondeu ele. Ela acenou vagamente e tirou um pedaço de carvão da prateleira. Posicionando-o contra a tela, desenhou uma linha curva e estremeceu. Demasiado vincado. Demasiado espesso. Sem propósito. Apagou com a mão e começou de novo, invocando os seus conhecimentos de anatomia dos livros que costumava requisitar na biblioteca. Marcus fumava enquanto ela trabalhava. A meio caminho, ele ligou a música, uma balada folk suave. Uma hora depois, ela tinha terminado, dedos negros, exangues e a doerem. Marcus parou a música. «Quem é ela?», perguntou ele. «A minha mãe.» Mika encontrou uma toalha e limpou as mãos. Tinha desenhado Hiromi. O cabelo dela estava numa cúpula lisa, olhos brutais e imperdoáveis, linhas duplas a envolverem a boca como parêntesis de desapontamento. «Nunca perguntes a alguém o que deves pintar.» Um engelhar de papel, e Marcus entregou-lhe o formulário assinado. «Inscreve- te na minha aula de Pintura III. Eu ensino-te.» Mika agarrou no formulário e saiu do gabinete, sentando-se num banco durante algum tempo. Era a primeira vez que alguém lhe dizia que ela mostrava algum potencial. Sentiu-se poderosa. Totalmente viva. Marcus começava a parecer um gigante na sua memória. Agora, Mika instalava-se na cadeira, com Thomas ao seu lado. Ele fez sinal ao barman e pediu um whisky puro. Claro que pediu; qualquer coisa, desde que lhe fizesse crescer mais pelos no peito. O coração da Mika acelerou, e ela pediu um copo de vinho tinto. Um silêncio estranho abateu-se enquanto esperavam pelas bebidas. — Será que a Penny vai ficar bem? — perguntou Mika. Thomas acomodou-se, esticando as pernas. — Ela vai ficar bem. O primeiro dia é sempre o pior para ela. — Ainda bem. Ocorreu a Mika o quanto ela não sabia sobre Penny. Outrora, convencera-se de que não haveria problema em nunca conhecer verdadeiramente a filha. Bastava saber que Penny estava viva e que estava bem. Fora uma idiota. Agora, Mika estava voraz e com ciúmes de Caroline e Thomas, todos aqueles momentos que tiveram com Penny. Ela tentava diminuir a inveja, mas recusava- se a ficar encurralada. A ideia de nunca mais ver Penny, de não fazer parte da sua vida como Mika previu que poderia acontecer, parecia-lhe inaceitável agora. O empregado de mesa voltou. Com um floreado, pousou dois guardanapos de cocktail e as bebidas deles em cima. Bebericaram ambos e ouviram o homem que tocava piano — uma sonata famosa de Mozart. — Podes falar-me mais sobre a Penny? Mika brincou com a base do seu copo de vinho, girando-o para um lado e depois para o outro. Thomas inclinou a cabeça. A velinha que estava em cima da mesa projetava sombras por baixo das suas maçãs do rosto salientes. — Nós enviámos cartas todos os anos. A correspondência de Caroline estava repleta de fotografias, desenhos, até mesmo um prato de barro que Penny tinha feito na escola primária. E as cartas eram longas e descritivas. Mika não tinha problemas em imaginar a vida da filha, como ela se estava a dar bem, como eles estavam a tratar bem dela. E sentia-se sempre reconfortada pelas palavras de Caroline, escritas com a familiaridade de uma mãe para outra. Mas depois Caroline falecera. As cartas de Thomas eram curtas, concisas — o fio da navalha da incerteza. — Enviaram, é verdade — disse ela com cuidado. — Mas tenho a certeza de que não conseguiram lá incluir tudo. Thomas inspirou num tom desconfortável. — Bem, já sabes que a festa do período correu mal. Que mais? — Remexeu-se no seu lugar, a pensar. — A fase em que escreveu cartas. — A fase em que escreveu cartas? — Mika mostrou curiosidade e chegou-se para a frente. — Eu levei-a a um psicólogo depois da morte da Caroline. O psicólogo sugeriu que a Penny escrevesse cartas para expressar os seus sentimentos. Ela escrevia coisas como: «Hoje sinto-me triste, tenho saudades da minha mãe.» — Thomas levou a sua bebida aos lábios. Mika assistiu enquanto ele engolia, a maçã de Adão a deslocar-se. — Depois, eu escrevia-lhe de volta: «Sinto muito, miúda. Eu também sinto falta dela.» Era um espaço seguro onde podíamos falar. Usámos a técnica durante uns anos, de vez em quando. Era bastante eficaz. Um dia, acho que ela tinha 13 anos, talvez, pedi à Penny para tomar banho e arrumar o quarto. Bastante inofensivo. — Ele esperou que Mika anuísse com a cabeça em concordância. — Ela veio ter comigo alguns minutos depois com uma carta que dizia algo do género: «Estou a sentir- me mesmo irritada e triste neste momento, por isso, deixa-me em paz até novas ordens.» — Fez uma pausa e bebeu o whisky. Mika sorriu. — Deixaste-a em paz? Thomas inspirou entre dentes. — Isso provavelmente teria sido a coisa inteligente a fazer. Mas segui o conselho do psicólogo e escrevi-lhe um bilhete de volta. Algo do género: «Obrigado por comunicares comigo. Não há problema em sentirmo-nos irritados e tristes, às vezes. Estou aqui se quiseres falar.» — Os seus olhos enevoaram-se com humor e a boca torceu-se num sorriso. — Não foi a coisa certa a fazer? — perguntou Mika. — Nem de perto. Ela saiu de rompante do quarto. Juro que foi reunir forças negras para desabar em cima de mim. Pousou com violência a carta que me tinha escrito e fez-lhe umas revisões. — Thomas fez uma pausa. — Ela sublinhou o «mesmo» e riscou «irritada» para acrescentar «furiosa». Depois, com um marcador grosso, escreveu por cima de tudo «Vai-te embora» em letras maiúsculas. — Uau! — foi tudo o que Mika disse, calmamente. Às vezes, tudo aquilo, a gravidez, o nascimento, e mesmo agora, ao ver Penny, parecia-lhe irreal. Como se Mika estivesse a ver a vida de outra pessoa a desenrolar-se. De certa forma, estava a fazer isso, supunha. Não conseguia controlar o facto de que esta era a vida dela. Thomas emborcou o resto da bebida. — Sim, ela sempre foi assim. Pequena, mas feroz, aguerrida. Eu apostaria nela numa luta. Como é que tu eras em criança? — Eu? — Mika endireitou-se. Pensou na Mika de antes. Hiromi dizia que a sua filha era demasiado sensível. Via Mika como estranha, esquisita, sentindo as diferenças dela como traições. — Eu era tímida, suponho, mas tinha visões de grandeza. — Ela queria ser algo de grandioso, um dia. — Até conhecer a minha melhor amiga, a Hana. Passei a correr mais riscos nessa altura. — Sentiu-se indomável. Quando frequentavam o secundário, iam a festas em casa de amigos aos fins de semana. Embebedavam- se com os alunos e os pais que subscreviam a filosofia de «se o meu filho vai beber, mais vale que o faça debaixo do meu teto». Depois, reprovou na faculdade. Perdeu a virgindade na primeira semana lá, com um tipo de cujo apelido não se conseguia lembrar. Ela divertia-se e gostava de ter sexo, gostava da sensação de um corpo contra o dela. Mika pestanejou. Marcus estava lá outra vez, na periferia. Estavam sozinhos na sala de aula, a porta fechada. Ela estava quase a meio do seu primeiro ano. Além de Pintura e de História da Arte, inscrevera-se em Filosofia. Estava no meio do Existencialismo. Sartre e Kierkegaard — «A vida só pode ser compreendida se olharmos para trás; mas só pode ser vivida se olharmos para a frente». E a estudar artes antigas, os Gregos, os Romanos, os Bizantinos até à Antiguidade tardia. Ícones. A Virgem Maria. Sob a tutela deMarcus, ela dominava as técnicas tradicionais: cores atenuadas, alla prima, velatura, claro-escuro. «Falta vida aos teus quadros», dizia Marcus. Ele mergulhou um pincel em tinta preta e traçou uma linha no estudo dela de uma laranja. «Não contam nenhuma história. Qual é a tua história?» Era uma espécie de agonia, dececionar Marcus. «Olha a pintura do Peter.» Fez um gesto para uma tela encostada à parede, a arte do seu aluno de pós-graduação, um retrato de uma estrela pop, a segurar numa maçã no Jardim do Éden. «Não traz nada de novo, mas ainda assim tem uma narrativa. Vá lá», disse ele, «não consegues ver? A história é o teu poder». — A Penny era tudo menos tímida — disse Thomas, puxando Mika de volta ao presente. — Ela… — Ele abanou a cabeça. — O quê? — Mika inclinou-se para a frente. De alguma forma, aproximaram-se um do outro, com os joelhos a entrechocar. — Esqueci-me disto, mas quando ela estava a aprender a andar e a ir ao bacio, gostava que a víssemos a fazer cocó. — Mika soltou uma gargalhada. Thomas respondeu com um sorriso. — Não sei. Provavelmente era porque nós dávamos uma grande importância a isso. A Caroline tinha lido um livro em que diziam que se deve fazer uma festa quando eles vão ao bacio. Fazíamos uma grande cena a aplaudir. Mas a Penny ficava muito séria quando tinha de fazer cocó, e gostava de olhar nos olhos de um de nós. Dizia: «Olha para mim, olha para mim.» — Ele sorriu. — Tornou-se uma coisa séria, até que um dia a Caroline disse: «Temos de parar com isto. Por este andar, vamos estar a vê-la a fazer cocó quando andar na faculdade.» A Penny odeia esta história, mas é uma das minhas preferidas. De cotovelo apoiado na mesa, Mika descansou o queixo na mão e observou Thomas em repouso. — Que mais? — Bem, no quarto ano, ela entrou a sério no ventriloquismo. — Ele estremeceu a simular pavor. — Tão assustador. Estou contente por isso ter acabado. Pouco depois, meteu-se na magia. — Naturalmente — disse Mika, e partilharam um sorriso, uma quase gargalhada. Ela suspirou. Estivera errada sobre Thomas. Ele não tinha o alcance emocional de uma batata. — Vocês foram bons pais. Tu és um bom pai. — Mika não tinha intenção de o dizer, mas as palavras saíram-lhe. Thomas soltou uma gargalhada. — Obrigado. Andei a navegar à vista durante algum tempo. Olho para trás depois da morte da Caroline e tenho vergonha do quanto eu não sabia. Confiava muito na Caroline para fazer a maior parte das tarefas parentais. Depois, quando ela faleceu, senti-me tão fora do meu elemento… Uma dor no peito de Mika. — Foi muito mau? Ele franziu o sobrolho. — Arranjei-lhe o cabelo. Não ficou muito mal, para uma primeira vez. A Penny chorou ao fim do dia quando tentei tirar os elásticos, por isso, usei uma tesoura e acabei por cortar-lhe um bocado de cabelo. Tive de a levar a um cabeleireiro para o consertar. Ela fez uma birra quando sugeriram cortá-lo pelo pescoço para o deixar todo igual. Então, chegámos a uma solução de compromisso, curto à frente e comprido atrás. Mika fez uma careta. — Isso soa muito parecido com um… — Um mullet — disse Thomas, os olhos claros cravados em Mika. — Eu deixei a minha filha com um mullet. - E CAPÍTULO 13 ntão, o que é que contaste à Penny sobre mim? — perguntou Hana. Era quarta-feira, a noite anterior à inauguração da galeria de Mika. Thomas e Penny estavam a planear encontrar-se com Hana pela primeira vez. Mika tinha escolhido o Lardo, um restaurante de sanduíches na Hawthorne, muito badalado, mas que não iria fazer muito mal à sua conta bancária. Mika sorriu, vasculhando o restaurante lotado em busca de uma mesa livre. — Oh, sabes, o costume, que tu tinhas um fraquinho pela nossa professora de Inglês do primeiro ano e falavas infinitamente com ela sobre a série Smallville e dizias que a Kristin Kreuk, a atriz principal, com olhos enormes, que fazia o papel de Lana Lang, é que levava a série às costas. A boca da Hana traçou um sorriso. — Ah, a professora Sampson. Eu mal conseguia evitar desatar a cantar sempre que falava com ela. Pergunto-me o que andará ela a tramar agora. Uma família de quatro pessoas desocupou uma mesa, e Mika apressou-se a chegar lá para a reservar. Sentaram-se à espera de Thomas e Penny antes de fazerem o pedido. — Que mais lhe contaste sobre mim? Hana batucou com os dedos na mesa. Mika olhou para o letreiro de néon na parede debaixo do qual se sentaram. Dizia «Comam que nem porcos». — Tu sabes, o costume. Que somos amigas desde o secundário e andámos na faculdade juntas, e que tu estiveste ao meu lado quando ela nasceu. Provavelmente vai querer saber pormenores sobre isso. — Mika tirou um guardanapo do dispensador e começou a desfazê-lo. — Tenho a certeza de que ela vai perguntar tudo sobre nós e esse tempo das nossas vidas. Por isso, minimiza o tipo de alunas que éramos, está bem? As farras em que nos metemos, quantas vezes faltámos às aulas. — Mika — suspirou Hana, com um olhar solidário nos olhos. — Eu quero que ela se orgulhe de onde veio. Quero ser alguém que ela admire. — Quero ser a pessoa que era antes, só que melhor, pensou Mika. Talvez esta fosse a sua oportunidade de redenção. Absolvição. Uma forma de voltar atrás no tempo e corrigir as coisas. Era uma lógica distorcida, mas lá estava: a sua oportunidade de recuperar o que tinha perdido. — Não queres que ela saiba que quase fizeste cocó a empurrá- la para fora? — disse Hana secamente. — Oh, meu Deus, prometeste que nunca falaríamos sobre isso. — Hana encolheu os ombros. — Adoro-te, miúda — disse Mika. — Também te adoro, miúda — respondeu Hana. — Apesar de seres uma aldrabona e estares errada. — Por favor, não me faças sentir pior. — Ela já se sentia suficientemente mal por mentir a Penny, mas era melhor do que a verdade. Tinha prometido proteger sempre Penny. Esta era a sua maneira de o fazer. — Desculpa — disse Hana. — Só queria que conseguisses ver como és fantástica. — Mika abriu a boca para responder, mas os sinos por cima da porta tocaram. Thomas e Penny estavam à entrada. — São eles — disse Mika, erguendo a mão no ar e fazendo sinal aos dois para se aproximarem. Tanto o pai como a filha sorriram ao mesmo tempo. Hana assobiou baixo. — Pai sexy à vista! — Hana — disse Mika, com as faces a arderem à medida que Thomas e Penny se aproximavam. — O que foi? — disse Hana, tocando no próprio peito. — Mesmo sendo lésbica, consigo apreciar homens bonitos de forma totalmente objetiva. — Olá. — Thomas sorriu calorosamente para Mika. Estendeu a mão a Hana para a cumprimentar. — Thomas. — As apresentações continuaram a partir daí e eles sentaram-se, Mika e Hana de um lado e Thomas e Penny do outro. — O que há de bom aqui? — perguntou Thomas. — Decididamente as Batatas Grande Sacana — disse Hana. — São cortadas à mão e cozinhadas em gordura de bacon e depois cobertas com ervas fritas e parmesão. Thomas tomou nota do que toda a gente queria e foi ao balcão fazer o pedido. Quando voltou, envolveram-se em conversa de circunstância durante algum tempo. Sobretudo em torno de Hana, do seu trabalho como intérprete de língua gestual para bandas. Penny sorria de orelha a orelha. Tão impressionada e impressionável, pensou Mika. Isso fê-la pensar em como ela era com Marcus, que neófita tinha sido, o quanto queria a aprovação dele; ela tinha sido como um gato que se roçava em torno das pernas dele; o seu desespero ainda lhe dava a volta ao estômago. Agora, estavam a encher-se de batatas fritas e sanduíches de porco. Thomas limpou a boca e amachucou o guardanapo. — Não consigo comer mais — declarou ele, esfregando a barriga lisa. A sua t-shirt subiu, revelando a mais fina faixa de pele. Mika encontrou um lugar fixo na parede para o qual olhar. Hana inclinou-se para a frente, cotovelo na mesa, queixo na mão, e olhou para Penny. — Então? — disse ela. — Então — Penny papagueou de volta. — O que é que queres saber? — perguntou Hana. Penny corou com a franqueza de Hana. — Tu estavas lá no dia em que nasci. — Oh, sim, eu estava totalmente na zona de rebentação — disseHana. Mika fez uma careta perante a imagem e reavaliou a sua escolha no que toca a melhores amigas. Penny esfregou os polegares um no outro. — Podes contar-me... Podes falar-me do dia em que nasci? — Ela olhou para Hana, para Mika, perguntando às duas. Mika reclinou-se na cadeira. A comida no seu estômago azedou. Era-lhe difícil lembrar-se daquele dia. Era ainda mais difícil falar sobre isso. Sobre como a gravidez lhe rasgou a vida ao meio. Como quando Penny nasceu, Mika ficou zonza de amor, e depois de coração destroçado. Como ela se tinha afundado como uma pedra depois. Era doloroso, deixar aquele bocado de tempo desenrolar-se como uma fita. — Penny — disse Thomas baixinho. — Talvez devêssemos guardar esta conversa para outro dia. Penny esmoreceu. — Claro, certo. Eu compreendo perfeitamente. Mas era claro que não compreendia. Debaixo da mesa, Hana apertou o joelho de Mika, tentando transmitir tranquilidade. — Estava a chover, acho eu — disse cuidadosamente a melhor amiga de Mika. — Estava — confirmou Mika, a sua voz leve, fraca. Ela tinha ido ao ginecologista no dia anterior e tinha ficado infelicíssima. «Eu só a quero tirar daqui», dissera ela, corada e a chorar. «Só quero que tudo isto acabe. Quero a minha vida de volta.» Parecia que Penny estava agarrada a Mika, sabendo que, em breve, iriam ser separadas. — Deram uma epidural à Mika — acrescentou Hana. Ela deu um empurrão a Mika. — Lembras-te de que a enfermeira sugeriu que era muito cedo para uma epidural e, em vez disso, talvez devesses tentar respirar? Um fantasma de um sorriso apareceu no rosto de Mika. — Ela estava a oferecer-me bolas de neve. Eu queria uma granada. — Foi bastante aborrecido depois disso. Dormimos durante um bocado de tempo — disse Hana. Mika lembrava-se de Hana ao fundo da cama do hospital, o corpo caído numa cadeira. — A Hana dormiu — especificou Mika. — Eu andei às voltas na cama, a virar-me para um lado e para o outro, não conseguia ficar confortável. — Ela chorara. De exaustão, de dor, por estar emocionalmente esventrada. — Então, de manhã cedo, a Mika começou a fazer força — disse Hana. Nos intervalos do esforço para expelir, Mika dissera: «Não quero pegar nela ao colo.» Depois mudou de ideias. «Eu quero pegar nela, não deixes que a levem antes de eu poder pegar nela ao colo.» — A Mika pegou em ti primeiro, mas eu peguei em ti logo a seguir — disse Hana. — A tua cara estava toda vermelha e engelhada. — Parece lindo. Penny riu-se. — Foi, foi mesmo — disse Mika, e essa era a verdade. O seu olhar esvoaçou para Thomas. Um meio sorriso surgira inclinado no canto da boca dele, igual ao de Penny. — Nós estávamos mesmo do outro lado, na sala de espera do hospital — interveio Thomas. E Mika encontrou um certo conforto distante sabendo que Penny tinha sido passada em mãos para os seus pais adotivos. Não houve um momento em que ela não tivesse sido amada e acarinhada. — Eu sei — disse Penny. — A mãe escreveu-me sobre isso na sua carta. A carta que Caroline tinha escrito para o décimo sexto aniversário de Penny. A carta que lançou Penny em busca da sua mãe biológica. — Escreveu? — As sobrancelhas de Thomas arquearam-se. Ah, lembrou-se Mika, Penny não deixara Thomas ler as últimas palavras que Caroline tinha escrito à filha. Penny acenou com uma mão ao pai, descartando o assunto. — Mudando de assunto. Estou a morrer de vontade de ver a tua galeria — disse ela a Mika, os seus olhos escuros intensos. — Podemos ir amanhã? Fazes-me uma visita guiada antes que todos os outros a vejam? Oh, pensou Mika. — Oh! — disse Mika. Leif tinha enviado a morada na noite anterior. Tinha dito que ela podia entrar a qualquer hora no dia seguinte. Ela tinha libertado a agenda para verificar o espaço, mas não esperava companhia. Olhou para Hana. A sensação de divertimento encaracolou os cantos da boca da amiga. — Claro! — concordou, encostada a um canto. Mais tarde, havia de arranjar uma desculpa. — Detesto ter de me ir embora tão cedo. — Hana afastou-se da mesa. — Mas é que amanhã tenho um jogo de roller derby. — Roller derby? — ecoou Penny. — Querem vir? É violento e sedento de sangue, pode ser que seja o teu estilo de coisa — disse Hana, e Penny animou-se como uma árvore de Natal. — Há patinagem aberta ao público depois. Penny agarrou a mesa. — Sim, sim, quero muito, sim. * * * Thomas, Penny e Mika sentaram-se nas bancadas e viram Hana patinar no rinque vinte minutos depois. Thomas olhou para as mulheres de calções curtos, com tops, patins, capacetes e óculos de proteção. — Não temos roller derby no Ohio — murmurou ele. — O que é que a Hana está a fazer? — perguntou Penny. Mika sentou-se na bancada. — Ela é a jammer, por isso vai começar atrás da sua equipa — começou Mika, explicando que os pontos eram marcados quando uma jammer ultrapassava um membro da equipa adversária. Durante uma hora e meia, torceram por Hana, estremecendo quando alguém lhe dava uma cotovelada e vaiando quando o árbitro assinalava um bloqueio de pista, uma penalidade. Quando a equipa de Hana, as Asian Invasion, derrotou a rival, as Fresh Meat, Penny estava aos saltos no seu lugar. Hana chamou Penny para o rinque, e Penny saltou para se juntar a ela para patinar. — Queres ir para o jardim da cerveja, de onde as conseguimos ver? — perguntou Mika, a apontar para a extremidade do rinque, onde havia uma área aberta com bancos de piquenique e um bar. Thomas esfregou os joelhos. — Devo preocupar-me com isto? Preciso de ter o meu cartão do seguro à mão? No rinque, Hana estava a equipar Penny com um capacete e joelheiras. — Não — disse Mika. — Ela vai ficar bem. A Hana só lhe vai mostrar alguns movimentos e apresentá-la a algumas raparigas. Instalaram-se, pouco depois, no jardim da cerveja, uma IPA gelada à frente de Thomas, um copo de sidra diante de Mika, a observarem enquanto uma menina com tatuagens nos braços e cheia e alfinetes de ama nas orelhas mostrava a Penny como é que se bloqueava. Thomas passou com os polegares na condensação que se formara no exterior do seu copo. — Sabes, eu tinha reservas quanto a esta viagem. — Não me digas? — provocou-o Mika com um sorriso. Ela bebericou a sua bebida. O olhar de Thomas tornou-se sério. — Sinto muito. Tenho sido um rezingão. Tem sido um ano… Merda, não sei, acho que têm sido uns quantos anos maus. Pensei que a Penny estava a dar-se bem com tudo. Somos só nós os dois há tanto tempo. Ela nunca sequer perguntou por ti. Chocou-me muito quando anunciou que te tinha encontrado e que tencionava visitar-te. — Ele esfregou o peito. — Acho que não me adaptei. Além disso, há a história da carta que a Caroline lhe escreveu. Ela não me deixa lê-la. Estou a tentar respeitar os desejos dela, mas, raios, parece que tudo o que a Penny faz ultimamente é guardar segredos de mim. Thomas olhou fixamente para a sua bebida. O canto da boca de Mika torceu-se com incerteza. — Então, a Penny está a guardar segredos e a tentar estabelecer-se fora de ti. Parece-me bastante típico de uma adolescente, cá para mim. — Levou uma mão ao seu próprio peito. — Falo por experiência. Se tiveram algum efeito, aquelas palavras só serviram para deixar Thomas mais cismado. As sobrancelhas dele uniram-se ainda mais. — Bem, merda, não gosto de nada disso. — Ela é boa rapariga. É boa pessoa, a tua filha. Ele acenou com a cabeça, pensativo. — Eu costumava pensar que a Caroline era a melhor coisa que alguma vez me aconteceu, mas depois apareceu a Penny, e senti- me culpado, porque ela… bem, porque ela é a melhor coisa que alguma vez me aconteceu. — Mika não disse nada. Embora pensasse: Sinto exatamente o mesmo. — Ela está a crescer, acho eu, é só isso — disse Thomas. — Pois está. Mas também está a fazer boas escolhas. Como a maneira como lidou com as coisas com aquele namorado… — A voz de Mika desvaneceu-se perante a expressão confusa de Thomas. — Qual namorado? — Merda. — Mika trincou a bochecha. — Não devia ter dito nada. Por favor, não lhe digas que te contei. Thomas fez o sinal da cruz com o dedo sobre o coração. —Nem uma palavra. Mika tentou lembrar-se da conversa telefónica delas sobre ele. — Jack ou James, acho que era o nome dele. — Jack — confirmou Thomas. — Ela fala dele às vezes. — Bem, acho que eles andavam juntos, mas ela acabou com ele. — Mika inclinou-se para a frente e sussurrou: — Porque ele andava sempre a querer levá-la para sítios com colchões. Os lábios de Thomas comprimiram-se, e o punho também. — Aquele filho da puta. Mika pousou uma mão sobre a dele e retirou-a de imediato. O calor espalhou-se pelo pescoço dela. — Calma, e deixa lá a mãe dele fora disto. A Penny tem uma boa cabeça em cima do pescoço. «Quero alguém que me ache bonita por causa da minha mente», dissera Penny depois de ter acabado com ele. Thomas fletiu os dedos e descontraiu-se. — Bem, então está bem. — Engoliu a bebida. Saiu-lhe uma meia gargalhada. — Não estou habituado a isto. É difícil partilhá- la. — Eu consigo imaginar — disse Mika, com um tom levíssimo na voz. Ela tivera de partilhar Penny desde o início. — Pois é. Desculpa. — Thomas esboçou um sorriso embaraçado. Ele estava a usar uma camisola com capuz, com um bordado a dizer DARTMOUTH ROWING. Parecia mais novo do que os seus 46 anos. — Importas-te que te faça uma pergunta? Mika acabou de beber a sidra. — À vontade. — Estás arrependida? — perguntou Thomas. Mika inclinou a cabeça. — Arrependida de quê? — Da Penny — disse ele ao fim de um segundo. — De tê-la entregado, quero eu dizer. Mika ficou imóvel. Renderes-te. É o ato de te entregares a forças maiores do que tu, dissera a Sra. Pearson. — Foi a decisão certa na altura certa, e mesmo agora… Eu não iria querer que mais ninguém criasse a Penny. Ela é exatamente quem devia ser. — Mika fez uma pausa, depois disse: — Mas sim. Há sempre alguns arrependimentos, não há? Os olhos de Thomas enevoaram-se em pensamento; depois, disse: — Isso faz tudo parte da experiência universal de ter um filho. Perante a alusão de Thomas a Mika ser a mãe de Penny, o calor espalhou-se no peito dela. Nessa altura, Penny passou por eles a patinar. O seu rosto estava corado, os olhos brilhavam. As mãos seguravam numa t-shirt da loja de presentes. — Vou comprar isto. Ela segurou-a à sua frente. Impresso no peito estava ESTAS VÃO- TE REBENTARAFUÇA em tipo de letra Old English. Thomas riu-se, depois ficou rapidamente sóbrio. — Não. Absolutamente não. Tenta outra vez. Penny fez beicinho. — Mas… Outra coisa que perdi, pensou Mika. Ela podia ter escolhido quem lhe criava a filha, mas não que roupas ela usava, ou com que brinquedos brincava, ou qual a roupa de cama debaixo da qual dormia. Ao longo dos anos, Mika fazia uma pausa nas secções de criança, a passar as mãos por cima de botinhas de bebé ou dos babygros ou t-shirts com desenhos e pensava no que Penny poderia trazer vestido. Tantas coisas que perdera. Tantas coisas das quais abrira mão. Mika interveio. — Vá lá, eu ajudo-te a escolher outra coisa. Estava na hora de uma segunda oportunidade. O CAPÍTULO 14 ito da manhã e Mika estava acordada, a mandar mensagens a Penny. Tens a certeza de que queres ver a galeria hoje? Está uma autêntica confusão. Uma pontada de vergonha atingiu Mika, mas ela empurrou-a rapidamente de volta para o buraco de onde rastejara. Prometo que vai estar impecável quando apareceres logo à noite!, acrescentou. Penny enviou uma mensagem quase imediatamente. Não há problema nenhum. Podia até ajudar-te a prepará-la! Não me importo de sujar as mãos. Mandas-me a morada por mensagem? Com um suspiro derrotado, Mika pediu a Penny que lhe desse umas horas de avanço. Enviou uma mensagem a Leif para confirmar que Stanley, o artista, estava à espera dela. Ele respondeu com um polegar para cima. Quando se encontrava a caminho, o telemóvel de Mika tocou com uma mensagem de Hana. A Penny é um espetáculo, disse ela. Sabes o que mais é um espetáculo? Mika tinha ido para a cama antes de Hana ter chegado a casa, depois saíra de manhã antes de Hana acordar. Normalmente, as duas coabitavam no mesmo horário de altas horas da noite e manhãs ainda mais tardias. Mas ultimamente, Mika andava a levantar-se mais cedo, principalmente para maximizar o tempo com Penny enquanto ela estava em Portland. Mika enviou a resposta quando parou num sinal vermelho. Deixa-me adivinhar. Cheesecake para o pequeno-almoço? Calças de fato de treino? Dança interpretativa? O semáforo ficou verde e o telemóvel dela começou a tocar. Mika olhou para o ecrã. Era a mãe a ligar. Outra vez. O coração caiu-lhe aos pés. Obviamente, Hiromi devia querer saber se Mika já tinha arranjado emprego. Recusou a chamada. Pouco depois, o telemóvel acendeu-se com um novo alerta de mensagem de voz. Outro semáforo vermelho e Hana tinha respondido com uma mensagem escrita. Sim, todas essas coisas, mais o Garrett com diarreia crónica. Ele tem de desistir da digressão para tratar da Síndrome de Intestino Irritável. Enviou de seguida um emoji de cara triste, depois um emoji com um chapéu de festa. Isto significa que vou fazer uma digressão com os Pearl Jam. Mika respondeu: Primeiro, nunca mais me fales sobre a atividade intestinal do Garrett, por favor. Segundo, estou muito feliz por ti. Ideia!, escreveu Hana. Devias vir comigo como meu animal de apoio emocional. Hotéis e refeições grátis, passes para os bastidores… O que achas? Partíamos daqui a umas semanas. Mika encostou e estacionou à porta de um armazém banalíssimo. Um cartaz anunciava as Primeiras Quintas-Feiras do mês, uma altura em que as pessoas vinham beber vinho em copos de plástico e saltitar das cabinas para as águas-furtadas, antevendo artistas que se mostravam promissores, mas que estavam, principalmente, mortos de fome. Mika entrou por uma porta pesada. Na parede estava um registo a listar os diferentes artistas que lá residiam. CRIAÇÕES DA DAPHNE, SUITE 1. PRODUTOS ZEN, SUITE 2… STANLEY WOLF, SUITE 10. Mika subiu as escadas, batendo à porta da suíte 10 antes de entrar. — Olá — chamou ela. Os Metallica estavam a tocar numa velha aparelhagem e agrediram-lhe os ouvidos. Pairava no ar o mesmo cheiro de quando Mika deixou queimar uma panela no forno. Em redor do espaço, havia montes de sucata em metal retorcido: uma vara de sustentação, tiras de aço, barras de ferro. A luz natural de quatro enormes janelas enchia o espaço. Um homem segurava num maçarico a um canto, faíscas a voarem dele enquanto trabalhava numa escultura. O maçarico desligou-se. O tipo levantou a máscara e desligou a música. — Ora viva! Deves ser a Mika? — Ele atravessou a sala, tirando as luvas. — Stanley. Estendeu uma mão para cumprimentar Mika. Stanley era branco, com olhos azuis brilhantes e um tufo de cabelo preto tingido. Uma das suas orelhas estava furada, um piercing pendurado com penas a penderem dele. Mika apertou-lhe a mão e sorriu. Depois, deu um passo atrás para fitar uma escultura com mais de dois metros. Era difícil decifrar o que era suposto ser. Um homem, talvez? Mas com as costas espetadas e torcidas. — Isto é interessante. Está impregnado de uma qualidade emocional tão forte. Stanley corou. — O Leif disse-me que estás a tentar montar este espaço como galeria. Mika deslocou-se mais atentamente pela divisão. — Estou, e se estiveres interessado, acho que isto vai funcionar na perfeição. — O espaço estava repleto de potencial. Havia mais meia dúzia de esculturas agrupadas a um canto, corpos dobrados uns para os outros, como amantes que se refugiam debaixo de um toldo durante uma tempestade. Se limpassem o equipamento de Stanley, as esculturas destacar-se-iam na vasta sala, iluminada pelas luzes embutidas no teto. Ela olhou para Stanley. — Tens a certeza de que não te importas? Eu a expor o teu trabalho, a tomar conta do teu estúdio por hoje? — Não. — Stanley atirou as luvas para cima de uma mistura eclética de materiais, incluindo um conjunto de óleos e um cavalete. Mika olhou para as tintas e cerrou um punho para manter os tremores à distância, uma combinação de medo e saudade. Havia também uma garrafa de terebintina e ela ficou paralisada porum momento. Estacou, completamente imóvel, como se estivesse a ser seguida por uma fera na floresta. — Estou quase a acabar aqui. Por isso, é tudo teu. Há algumas latas de tinta e rolos ali no canto. O Leif pensou que talvez quisesses dar uma nova demão a tudo isto. Vou deixar-te fazer a tua cena — anunciou Stanley. Arrepiada, Mika sorriu levemente, ouvindo-se a si própria a murmurar um agradecimento a Stanley. A porta bateu. Ela engoliu em seco, afastou a sensação de desconforto e arregaçou as mangas. Estava na hora de trabalhar. * * * Duas horas depois, Penny mandou uma mensagem a dizer que o Uber a tinha deixado à porta. Mika desceu para se encontrar com ela. — Oiiiii — cantou Penny, a saltitar. — O que achas? — Ela estendeu os braços. Trazia um casaco de ganga e, por baixo, a nova t-shirt que Mika lhe tinha oferecido. Tinham trocado a t-shirt REBENTARAFUÇA por uma camisola das Asian Invasion: o logótipo era um par de pauzinhos enfiados no arroz. — Gosto — disse Mika. Ver Penny feliz fazia-a feliz. Penny coçou o nariz. — Tentei convencer o meu pai a comprar-me tinta para o cabelo ontem à noite. Sinto que todo este visual podia ser elevado se tivesse uma risca azul aqui. — Segurou uma madeixa de cabelo a emoldurar a cara. — Não faças isso sozinha. Eu descolorei o cabelo no secundário e demorou um ano a voltar ao normal. Se decidires que queres mesmo, sê responsável e vai ter com um profissional. Penny acenou gravemente com a cabeça. — Bem pensado. — Dormiste? — perguntou Mika enquanto conduzia Penny pelas escadas até à galeria. — Como um sonho — respondeu Penny. — Estou tão entusiasmada por ver o teu espaço. Mika fez-lhe uma festinha na orelha. — Ainda há muito a fazer… Não tenhas demasiadas expetativas. — Perante o rosto preocupado de Penny, acrescentou: — Estou só a sentir a pressão de fazer tudo bem. A inauguração é hoje à noite. — Eu percebo. Acontece-me o mesmo antes de uma prova de atletismo. Ansiosa e entusiasmada, queremos que corra tudo na perfeição. — Exatamente. Mika abriu a porta e Penny entrou. — Uau! — exclamou Penny, contornando Mika. — O quê? Assim tão mau? — Mika tentou imaginar o espaço através dos olhos de Penny. Apesar dos esforços dela nas últimas horas, a área ainda estava desarrumada. O equipamento de soldar estava amontoado numa pilha no meio do chão, juntamente com vários materiais de arte. — É preciso arrumar um bocado — disse Penny, circulando pelo espaço. — Sim — disse Mika um pouco desanimada. Penny olhou para Mika por breves instantes. — Bem. — Penny bateu com as mãos uma na outra. — Entre nós as duas, acho que conseguimos ter tudo limpo numa hora ou duas. — Tens a certeza de que não te importas? — Claro que não! — disse Penny. — Por onde é que queres começar? Mika tocou com um dedo nos lábios. — Vamos arrumar todo este equipamento. Mika atravessou a sala para abrir o que ela supunha ser uma despensa. Espreitou lá para dentro. Espaço vazio e empoeirado. Escancarou a porta. Juntas, trabalharam incansavelmente durante os sessenta minutos seguintes, transportando equipamento de soldar e sucata de metal para a despensa. O suor salpicava-lhes as sobrancelhas. — Isto também vai para a despensa? — perguntou Penny. Aos pés dela estavam os materiais de pintura. Mika fletiu as mãos, tentando dispersar um tremor. Concentrou- se num par de lápis de carvão. Marcus fazia desenhos a carvão. Um pedaço de cerâmica partida que, se ela virasse a cabeça na direção certa, lhe parecia um coração a bater. Um monte de bananas já apodrecidas. Um poço seco. Perto do fim do inverno, Marcus tinha vencido um prémio pelo desenho do pedaço de cerâmica. «Parabéns.» Mika sorriu para Marcus, um pouco sem fôlego depois de correr pelo campus para o ver depois de sua aula de História da Arte. Já tinham deixado a Virgem Maria. Agora estavam a concentrar-se no Renascimento, onde as mulheres eram ajeitadas em cadeiras, pintadas em meias conchas ou a flutuar sobre nuvens com a luz focada nas suas ancas, nas suas coxas, nos seus seios — prontas para serem banqueteadas, devoradas. Mika estava no gabinete de Marcus e entregou-lhe um presente, um afia-lápis elétrico encimado por um arco vermelho. Era uma piada recorrente entre eles Marcus usar um velho afia que ele torcia manualmente. «Obrigado», respondeu ele com o mais pequeno sorriso, desapertando o laço. «O que é que vais fazer com o prémio? Acho que devias pendurá-lo ao pé da tua secretária.» Mika fez um gesto na direção da placa do Southwestern Institute of Art. «Não sei. Provavelmente vou acabar a usá-lo como cinzeiro», disse ele, a coçar a barbicha no queixo. «Bem, sem dúvida que devias celebrar», acrescentou Mika. «Por acaso.» Marcus olhou para Mika. «Vamos reunir-nos no apartamento do Pete esta noite para bebermos um copo. Eu não queria fazer nada, mas ele insistiu. Porque é que não vens?» Mika corara furiosamente e sorrira abertamente, a pensar logo no que é que haveria de vestir. «Adoraria. Obrigada.» — Mika? Penny estava à sua frente. Mika tentou contorcer a boca para fazer surgir um sorriso. — Desculpa, perdi-me em pensamentos. Importas-te de pôr na despensa? Penny anuiu silenciosamente com a cabeça e recolheu as tintas, desaparecendo dentro da despensa. Mika partiu um lápis debaixo do calcanhar e deu-lhe um pontapé, atirando-o para o canto. Caminhou até às esculturas e agrupou-as mentalmente, decidindo onde deveriam ser colocadas, como deveriam ser sequenciadas. Escolheu uma, a mais arqueada, e empurrou-a para mais perto da entrada. Já estava na quarta quando Penny terminou de arrumar os materiais de pintura. — Uau! — exclamou Penny. — Isso funciona muito bem. Mika deu um passo atrás e limpou o suor do rosto. Cada escultura subsequente dobrava-se ligeiramente menos do que a anterior, como um filme de fotografias da mesma figura retorcida que se endireitava lentamente até ficar ereta. — Também acho que resulta bem. — Desta vez Mika sorriu a sério. Orgulhosa e muito feliz. Elas moveram as últimas esculturas, mas deixaram a que estava coberta por uma lona pesada. — Acho que o Stanley ainda está a trabalhar nessa — explicou Mika, limpando as mãos às calças de ganga. — Vou falar com ele mais tarde e ver onde é que a devemos colocar. Nós as duas formamos uma boa equipa — disse Mika, e Penny sorriu. — Queres beber alguma coisa? Vi uma máquina automática ao fundo do corredor. — Parece-me bem — disse Penny. Usaram os trocos que estavam no copo no carro de Charlie para comprar água e alguns pacotes de batatas fritas, depois sentaram-se de pernas cruzadas no chão da galeria. — O que é que o teu pai anda a tramar hoje? — perguntou Mika, a organizar a comida à volta de Penny como uma oferenda. — Não sei. Provavelmente está a trabalhar ou algo assim. Na verdade, pedi-lhe para não vir. — Pediste-lhe? Penny mordeu o lábio, com os dedos ainda num pacote de Doritos. — Sim. Pensei que seria bom se estivéssemos só nós as duas. Eu adoro o meu pai, mas... ele consegue ser um bocado desmancha-prazeres. Mika sorriu. — Não vou discutir. — Mas depois pensou em Thomas no rinque de patinagem, a ver Penny com tanta devoção, tanta admiração, tanto orgulho. — Mesmo assim, parece ser um ótimo pai. Surgiu um sorriso no rosto de Penny. — E é. Especialmente quando eu era mais nova. Ele lia para mim todas as noites. Era uma espécie de coisa nossa. Eu adorava a Cachos Dourados, e ele lia sempre uma frase sobre o seu longo e lindo cabelo escuro que brilhava ao sol, depois olhava para mim e dizia «Tal como o teu». Depois, quando cresci, fui dar uma olhada no livro e lê-lo outra vez. Ele tinha mudado as palavras de «claro» para «escuro» e pintado as imagens do cabelo dela com um marcador preto. — Isso é muito querido — disse Mika, emocionada. — Não temos estado tão ligados ultimamente — disse Penny, sacudindo uma migalha do joelho. — Não tenho a certeza se sou eu a mudar ou se é ele ou se somos os dois. Provavelmente, devo ser sobretudo eu. Às vezes, olho simplesmente para o meu reflexo e penso: «Quem és tu? Quem és tu?»Quem sou eu? Outra vez essa pergunta. Mika já tinha visto um documentário que analisava as vidas de crianças adotadas, como as suas vidas poderiam ter sido diferentes se tivessem sido criadas pelos pais biológicos, natureza versus educação. O que fazia Penny ser Penny? Quanto dela fora definido ao nascer e quanto fora determinado ao longo dos anos? Que partes da sua filha tinham sido dadas por Mika? Por Thomas? Por Caroline? Pelo pai biológico? E será que isso importava sequer? — Sabes — disse Mika lentamente —, se te faz sentir melhor, acho que nenhum de nós sabe quem é. Passei toda a minha vida a tentar perceber isso. Penny ergueu o queixo. — Isso faz-me sentir melhor. Pelo menos um pouco menos sozinha, acho eu. — Não estás sozinha. Mika aproximou-se e apertou a mão de Penny. Um silêncio solidário instalou-se entre elas até que Penny se levantou abruptamente. — Não consigo acreditar que esta viagem está quase a chegar ao fim. — Nem eu — disse Mika, pondo-se de pé também. Os dias tinham passado a voar. No dia seguinte, Penny e Thomas iriam embora. Mika imaginou o que aconteceria depois da partida de Penny: Penny telefonaria mais algumas vezes e faria um esforço para se manter em contacto. Mas, depois, as chamadas desvanecer-se-iam lentamente no esquecimento. E este navio fantasma de uma vida no qual Mika estava a navegar chegaria ao porto. Ela voltaria para a sua vida real. Mas quem era Mika na vida real? E quem era ela agora com Penny? Sem Penny? — Gostava que tivéssemos mais tempo — disse Mika, e, com as palavras, uma mistura de emoções deu um nó e alojou-se-lhe na garganta: alívio pelo fim da fachada e tristeza por deixar Penny ir outra vez. Ela tinha a certeza de uma coisa: Mika na vida real era muito, muito triste. — É engraçado dizeres isso — comentou Penny casualmente. — Há um ótimo programa de verão de atletismo aqui na Universidade de Portland. — Fez uma pausa, de olhos cravados no chão. — E eu candidatei-me a ele ontem à noite. — Candidataste-te? — Mika manteve o tom de voz neutro, apesar de sentir tanta coisa. Surpreendida. Aterrorizada. Extasiada. — Sim. Eu gosto de Portland. — Penny observou Mika, a analisar-lhe o rosto. — E gosto mesmo de ti. Acho que tudo por aqui é adequado a mim. — Eu não tinha pensado na hipótese de que poderias querer voltar. A mente de Mika girou num círculo vertiginoso. Ela queria que Penny ficasse para sempre. Era o sonho dela tornado realidade. Fica com ela. Nunca mais a deixes ir. Mas… e todas as mentiras? A galeria? O namorado? Ela podia ser capaz de sustentá-las. Penny iria estar ocupada com o seu programa de atletismo. Elas juntar-se-iam à noite, ocasionalmente aos fins de semana. Se Penny quisesse conhecer os avós, Mika fingia que eles estavam noutro cruzeiro ou a visitar parentes no Japão. Eles fazem isso todos os verões, imaginava-se a dizer. Compram bilhetes no início do ano, sem direito a reembolso. E quanto à sua relação com Penny… Mika continuaria a construí-la, a alimentá-la, a cultivá-la. Concentrar-se-ia no que era real: partilhar os seus pensamentos e sentimentos com a filha. Apoiá-la, ouvi-la, amá-la. — O que é que o teu pai acha disso? Penny suspirou para dentro. — Ele até está na boa com isso. Bem, está a fingir que está na boa com isso. Quando lhe disse que era por seis semanas e que os alunos dormiam no campus, nos dormitórios, ele a modos que se retraiu, mas depois, tipo, forçou-se visivelmente a relaxar. — Outra pausa. — Então, não te importas com isso? Não te importas que eu volte? Quererias que voltasse? A pergunta de Penny parecia carregada com uma palavra especialmente forte: querer. — Claro que quero que voltes — respondeu Mika automaticamente, a sua alma a tomar controlo sobre qualquer pensamento racional. — Posso só dizer uma coisa? — perguntou Penny, num fio de voz. E Mika acenou com a cabeça e perguntou-se quando é que as raparigas tinham aprendido que tinham de pedir permissão para falar. — É que me sinto mesmo feliz por estar aqui contigo. E já não me sentia feliz há muito tempo. Algo no centro do peito de Mika parecia quente e viscoso. — Eu também me sinto mesmo feliz. C CAPÍTULO 15 om os braços cheios de garrafas de vinho e copos de plástico, Mika entrou novamente no estúdio de Stanley umas horas mais tarde naquela noite. — Espera aí, deixa-me ajudar. Leif correu até junto dela, aliviando-a da carga. Ela seguiu-o até às traseiras, onde tinha sido posta uma longa mesa desdobrável, com um pano branco a cobri-la. Ele dispôs o vinho e começou a tirar as rolhas. — Leif. Não consigo agradecer-te o suficiente. — Mika viu o trabalho que ela e Penny haviam feito, impressionada e orgulhosa. Agora, as esculturas contavam uma história. A única coisa que faltava era a peça final de Stanley, ainda coberta por lona no centro da sala. — Ainda não viste a melhor parte. Olha para isto. — Leif mostrou-lhe um pequeno suporte de acrílico com cartões de visita, com o nome dela impresso: GALERIA MIKA SUZUKI, seguido do seu número de telemóvel. Por cima da mesa, havia uma fita pendurada que dizia o mesmo, mas sem número de telemóvel. — A Adelle ajudou a fazer tudo. Ela é ótima em design. — Oh, uau! Mika pegou num dos cartões, passando a ponta almofadada de um dedo pela aresta afiada. Aquilo era o mais próximo do sonho dela que alguma vez tinha estado. Quando pintava, ansiava por ver o seu nome numa exposição — imaginava o seu próprio trabalho sob os holofotes. Imaginava-se a dar apertos de mão aos admiradores. A discutir a forma como usava a luz para captar o modelo. E embora isto fosse ligeiramente diferente, ver o seu nome num estúdio, a seguir à palavra galeria… era, bem, deixava-a emocionada. Olhou para Leif, com as palavras entarameladas na garganta. — Leif… obrigada. Não sei como alguma vez te vou retribuir. — É na boa. Ele tocou com o polegar no lábio inferior, tentando não sorrir. — Não é, não — disse Mika. Ela continuou: — Eu não devia ter dito as coisas que te disse quando acabámos. Desculpa por ter dito que os teus sonhos eram estúpidos. Não são. — Fiz umas merdas que também não foram fixes. Não te devia ter pedido para me transportares aquelas sementes. — Ele abriu os braços. — Abraço de tréguas? — disse ele com a voz de Chris Farley. — Tréguas — disse Mika. Sorriram um para o outro e abraçaram-se. A porta abriu-se. Mika afastou-se de Leif. Thomas, Penny e Stanley entraram na galeria. Ela correu para eles. Thomas trazia o fato da outra noite e Penny ainda usava a sua t-shirt do roller derby. — Isto é espantoso. Demos umas voltas lá fora e vimos todos os artistas a montarem as suas tendas. É uma vibração tão criativa e feliz — disse Penny. — E acho que, em honra à tua nova exposição, eu devia beber um copo de vinho. — Isso não vai acontecer — disse Thomas, com humor nos seus olhos claros enquanto olhava fixamente para Mika. A mente dela ficou vazia. Os seus olhares mantiveram-se fixos um no outro, estendendo-se num silêncio desconfortável até que Leif entrelaçou os seus dedos nos de Mika e deu um apertão. — Olá, prazer em ver-te de novo. — Leif apertou a mão a Thomas de uma forma que parecia quase protetora. — Ainda bem que puderam estar aqui para apoiar a Mika. Stanley bateu com as mãos, juntando-as. — Bem, uma vez que já chegaram todos, estão prontos para ver a pièce de résistance? O sotaque dele era mau, tão mau. Mika afastou-se do abraço de Leif. — Sim, por favor. — Depois sussurrou a Thomas e a Penny: — Mal posso esperar para ver. O Stanley é um artista talentoso. Stanley chegou-se ao pé da escultura e removeu a tela com um som que fazia lembrar um vento forte. Mika pestanejou, sem ter a certeza daquilo que estava a ver no início. O metal estava retorcido para formar a cabeça de um cão, mas o corpo era de um homem? Sim. E… um pénis. O cérebro de Mika ficou preso numa roda de hámster. Era tudo o que ela conseguia ver: um pénis muito grande, muito ereto. — Penny, fecha os olhos — disse Thomas calmamente. — Nem pensar — disse Penny. — Bem, o que acham? — Stanley estava orgulhoso daúltima escultura. — Estou a desestigmatizar a forma masculina. Leif sorria descaradamente de orelha a orelha. — Eu adoro isto, Stanley. Superaste-te. Mika tentou esconder a surpresa. Engoliu em seco. — Sim, consigo ver isso. — O que poderia ela dizer? — O trabalho de soldadura é fenomenal. Dá para sentir realmente a força do animal. Não acham? — Mika não tinha a certeza a quem é que estava a perguntar, mas os olhos dela cruzaram-se com os de Thomas. Thomas mexeu-se sem sair do sítio, deixando deslizar as mãos para dentro dos bolsos, com os olhos enrugados de humor. — Sim, bastante… — Nem conseguiu completar. Tossiu para o punho. — Desculpa, tenho sede. — Bateu com a mão no peito. — Acho que vou buscar uma bebida. Penny aproximou-se de Mika. Ficou de braço dado com ela, puxando-a para perto. — Eu não entendo muito de arte, mas acho que isto é ótimo. Se tu gostas, eu gosto — disse Penny incondicionalmente. — Gostas? — perguntou Mika, suavizando a voz. — Claro que sim. Tudo isto existe por tua causa — disse Penny. E apertaram-se uma à outra, numa espécie de meio abraço. A noite continuou. As obras de Stanley receberam muita atenção. Más ou boas, haveria de se ver. Hana apareceu, mas foi- se embora para dar uma volta pelas bancas. A galeria ficou quente e lotada, e em breve todo o vinho tinha sido bebido. — Tenho mais no carro — disse Mika. — Eu ajudo-te. Thomas tinha tirado o casaco do fato e arregaçado as mangas. Seguiu Mika pelas escadas e até ao parque de estacionamento. O ar frio da noite saudou-os, e Mika abrandou por um momento para o deixar bater contra o seu rosto quente. O sol estava a pôr-se, e os corredores dos vendedores e as bancas dos artistas estavam envolvidos num brilho vermelho. Havia uma pitada de chuva e o burburinho de conversa no ar. — Isto sabe bem — disse Mika, a abanar as faces. — Sim. — Thomas aproximou-se calmamente dela, com as mãos nos bolsos. — Não sei, há algo em toda aquela arte… — A sua voz desvaneceu-se. Mika olhou para ele, alarmada. A boca dele formava uma linha firme. — O que foi? — Não sei se estava a penetrar da maneira certa. Os cantos da boca dele curvaram-se num sorriso e os olhos cintilaram. — Ah, ah. — Desculpa. — Thomas ergueu as mãos. — Não consegui evitar. Mas é muito duro. — Continua a rir, amigo. Olha que depois vais ver que tens de te pôr a pau comigo. — Mika sorriu em tom sarcástico. Ele tapou a boca com a mão e riu-se. Mika gostou do som, baixo e rouco. — Tens razão. Vou tentar não ser tão rígido. Chegaram ao carro e ela abriu a porta do banco de trás. — Já ventilaste tudo? Thomas abanou a cabeça. — Na verdade, ainda tenho cerca de uma hora de material. Surpreendentemente, duas piadas centram-se em fantasmas. — Quem diria que os advogados de direitos de autor eram tão engraçados? — Mika pegou numa garrafa de vinho. — Os meus sentimentos podem estar feridos, mas sei que tudo isto vem da tua falta de conhecimento sobre belas-artes. — Ui. — Thomas encolheu-se. Ele enrolou os dedos à volta da base da garrafa de vinho, de modo que ambos ficaram a segurar na garrafa. — Feri os teus sentimentos? — Não. — Mika sentiu-se a corar. — Claro que não. O Stanley é um excelente soldador, mas os seus conceitos precisam de ser desenvolvidos. — Ou simplesmente queimados. Algumas coisas não deviam ver a luz do dia. É melhor começar do zero. — É uma bela exposição, Mika — disse Thomas com voz pastosa. O coração de Mika saltou uma batida. Durante sessenta segundos, nenhum deles falou. As pestanas de Thomas baixaram-se. Se ela tivesse pestanejado, teria perdido isso. O calor nos olhos dele. A pulsação a martelar-lhe no pescoço. Os sinais reveladores de desejo. O que aconteceria se ela fechasse o fosso entre eles? O ar estava carregado de possibilidades. Ela abanou a cabeça. Isto é ridículo. Ela era ridícula. Conceber a ideia dos lábios de Thomas nos seus. Mika soltou a garrafa, o estalido da eletricidade provocou um curto-circuito e ela tocou com as pontas dos pés no cascalho no chão. — Ob-obrigada — gaguejou Mika. Os seus olhos desviaram-se para o banco de trás do carro, para as garrafas de vinho. — Hum, eu tenho mais uma meia dúzia delas, a maioria tintos, mas… — A garganta dela estava seca. — Mas devemos ser capazes de as levar todas, entre nós os dois. — Claro. Certo. Thomas deu um passo atrás. Pegaram nas bebidas, depois prepararam-se para voltar para a galeria. Enquanto caminhava, lançou olhares furtivos a Thomas, examinando o seu rosto relaxado. Teria ela imaginado tudo? O ardor nos olhos dele? Decididamente. Ele dissera-lhe algo simpático, só isso. Quando é que ela iria aprender? Mika tinha feito algo semelhante com Marcus. Tinha projetado os seus sentimentos, interpretado demasiado nos sorrisos dele, na sua simpatia. Tinha confundido luxúria com amor. Deixara o desejo dela eclipsar a realidade. Deixara-se perder nele. Na noite da festa de Marcus, ela chegara mais cedo. Depois de bater à porta, pôs-se a verificar a sua roupa. Os collants, a saia de xadrez e a camisola de gola alta faziam-na sentir-se mais velha, mas, na verdade, era uma menina a brincar aos vestidos. Peter, o aluno de pós-graduação que era o anfitrião da festa, abrira a porta, Marcus atrás dele, no apartamento vazio. «Cheguei cedo», dissera ela, dando meia-volta como que para se ir embora, «eu volto mais tarde». Marcus sorriu, agarrou-lhe no braço e puxou-a pela porta. Os olhos dele estavam vermelhos e enevoados. Bêbedo, já. «Chegaste mesmo a tempo», disse ele, a rodopiá-la. Pousou uma mão nas costas dela e balançou ao ritmo da música. Mika pousou uma mão no ombro dele. Era a primeira vez que ela lhe tocava. Lembrava-se da sensação vigorosa dos músculos debaixo dos seus dedos, a pele quente dele a queimar através do tecido da camisa. Atrás de Mika, chegaram outras poucas pessoas — alunos de pós-graduação, um colega ou dois de Marcus. Peter trouxe uma bebida a Mika, algo forte num copo de plástico vermelho, e depois ela estava a dançar com Marcus novamente. A rir-se. Sentia a atenção dele como uma força física, um pedregulho a rebolar ao seu encontro, uma mão a mover-se numa nova direção. Ficara arrebatada desde o início, caindo sob o feitiço dele. A pensar em koi no yokan — a sensação, ao conhecer alguém, de que apaixonar-se por essa pessoa é inevitável. O vento fresco soprou, obrigando Mika a regressar ao presente. Curvou a cabeça perante a vergonha fugaz. — Então — disse Mika, semicerrando os olhos por causa da luz do sol moribunda. — A Penny contou-me que se candidatou a um programa de verão aqui. — Sim — entoou Thomas. — Ela disse-me hoje de manhã. — Ela disse que não te opões a isso. Thomas deixou sair um pequeno riso. — Acho que não tenho muita escolha. — O ritmo deles abrandou. — Mas não me oponho. Acho que isto tem sido bom para a Penny. — Ele ficou pensativo. — Para nós. Além disso — acrescentou —, tu vais estar aqui. Mika não conseguiu evitar que um sorriso lhe surgisse no rosto. Thomas confiava em Mika para cuidar de Penny. — Eu tomo bem conta dela. Chegaram ao armazém e Mika usou as costas para empurrar e abrir a porta. Subiu as escadas, consciente de que Thomas se encontrava atrás dela. Colocaram o vinho na mesa e Leif preparou-se para o abrir. — Vocês estão todos corados — disse ele. O estômago de Mika revirou-se. — Está quente aqui dentro. Leif olhou para ela com desconfiança, depois para Thomas, que estava por cima do ombro dela. — Enquanto estiveste fora, o Stanley recebeu uma encomenda. — Recebeu? — Mika serviu-se de um generoso copo de vinho. — Um hipster qualquer quer que ele faça uma escultura de si próprio como um centauro — disse Leif. Mika quase se engasgou com o gole que tinha acabado de beber. Bateu no peito. — Meu Deus. Penny juntou-se a eles. — Sinto que devíamos brindar a esta noite. Leif, importas-te de me servir um copo desse cabernet? — Penny. Não — disse Thomas novamente. Penny encolheu os ombros. — Não custa tentar. — Mi-chan. Mika abanou a cabeça. Podia jurar que tinha acabado de ouvir a própria mãe. Mas nãopodia ter ouvido. O que é que estaria Hiromi ali a fazer? — Mika. O nome dela outra vez, desta feita, inconfundível. O sangue de Mika gelou enquanto ela se endireitava e se virava lentamente num só pé. Ali estava Hiromi, o cabelo penteado numa cúpula implacável, a saia pelo joelho e a mala pendurada no cotovelo. — Mãe — disse ela, aturdida, embasbacada mesmo. — O que é que estás a fazer aqui? As conversas na galeria esmoreceram. Era como se, de repente, estivessem numa bolha: Leif, Penny, Thomas, Mika e Hiromi. — O que é que estás tu a fazer aqui? — ripostou Hiromi de volta. — Olá — interrompeu Thomas. — Sou o Thomas Calvin. O pai da Penny. Ele estendeu a mão, e Hiromi olhou-o fixamente até ele a deixar cair. Penny também deu um passo em frente, com um sorriso hesitante no rosto. Mika limitou-se a assistir enquanto Hiromi e Penny se olhavam, se viam pela primeira vez. Reparou em como elas partilhavam as mesmas maçãs do rosto, o mesmo nariz minúsculo e lábios em forma de arco. Como as suas mãos também eram parecidas, finas com dedos longos que se afunilavam em unhas ovais. Como se o tempo avançasse rapidamente algumas décadas à frente, Hiromi poderia ser um retrato de Penny gerado pela idade, um retrato de Mika — porque o sangue nunca mente. Mika soube o momento em que Hiromi percebeu. Os lábios da mãe afastaram-se. Os seus olhos negros de botão humedeceram-se. Ela não conseguia parar de olhar especada para Penny. Para a sua neta. — Isto é mesmo incrível! Pensei que estava num cruzeiro — disse Penny, totalmente desinibida. Porque é que não haveria de estar? Penny estava habituada a ser amada, a que os outros a amassem em troca do seu amor. Não sabia que Hiromi não queria que Mika a tivesse tido, não sabia que ao invés de «bebé» ou «ela», Hiromi tratava Penny por «isso». — Cruzeiro? — As sobrancelhas de Hiromi, negras como um corvo, sulcaram-se. — Nunca andei em cruzeiro nenhum. — Ei, miúda — disse Thomas, chamando Penny suavemente de volta para junto dele. O estômago de Mika caiu-lhe aos pés, um elevador com os cabos cortados. — Mãe. — Ela não conseguia pensar em nada para dizer. — Como é que soubeste que eu estava aqui? — Segui-te. Não tens atendido os meus telefonemas. Estava preocupada. O que é que se está a passar? — Os olhos de Hiromi caíram sobre os cartões de visita na mesa. Depois na faixa por cima da mesa. GALERIA MIKA SUZUKI. — Foi nisto que gastaste o dinheiro que te dei? — perguntou ela, a gesticular para a galeria, com o braço a englobar a arte terrível. — Devias era andar à procura de emprego. Mika viu a testa de Thomas sulcar-se de confusão. Viu o sorriso de Penny a dissolver-se. Viu as perguntas a formarem-se nos olhos deles. — Okāsan — disse Mika, avançando, de mão estendida para guiar a mãe para longe. — Vamos falar lá fora. Hiromi esquivou-se de Mika. — O que é que ele está a fazer aqui? Pensei que tinhas acabado com ele. Ela olhou para Leif, com o rosto contorcido como se estivesse a olhar para um prato de comida de que não gostava. Mika esfregou a testa. Sentindo as peças a tombarem à sua volta. Como é que conseguiria apanhá-las a todas só com duas mãos? — E acabámos. Mas… Nesse momento, os olhos claros de Thomas inflamaram-se. — Estamos a resolver as coisas — interveio Leif, tentando ajudar da pior maneira possível. Hiromi fungou. O som que fez dizia tudo. — E esta aqui, quem é? Agitou uma mão em direção a Penny, e pareceu abater-se sobre a filha de Mika como um golpe físico. Penny recuou. — Mi-chan? — insistiu Hiromi. Ela sabia exatamente quem era Penny. Era inconfundível. Mas este era o método eficiente de Hiromi. Recusar-se a reconhecer que Mika tivera um bebé. Empunhava as palavras dela como uma tesoura de jardinagem. Podavam e reduziam Mika a um botão de flor. — Mika? — pressionou Thomas. Mas Mika não tinha uma resposta. Não conseguia responder. Perante a perspetiva de mentir novamente ou dizer a verdade, a mente de Mika parou. O seu mundo tinha-se descontrolado. O frio espalhou-se através dela, pelos pés, pelas mãos, pelos ossos. Por todo o lado. Ela estava enregelada. Thomas aclarou a garganta. — Esta é a Penny. A Mika é a mãe biológica dela. — Fez uma pausa, pôs um braço à volta de Penny, puxou-a para junto de si. — Parece que a senhora e a sua filha precisam de falar e acho que devíamos deixar-vos fazer isso mesmo. Thomas moveu-se para se irem embora, mas Penny separou-se do pai e aproximou-se de Mika. — À procura de emprego? Porque é que haverias de estar à procura de emprego? Tu pediste demissão para abrires a galeria. Este é o teu emprego — disse Penny, de sobrolho franzido. — Estou mesmo confusa. Disseste que pediste um empréstimo para a galeria. Mas pediste dinheiro emprestado aos teus pais? Mentiste sobre isso? Porque é que haverias de mentir sobre uma coisa dessas? A voz falhou-lhe, suplicante. Os ombros de Mika estavam curvados com o peso, agora que fora apanhada pelo passado. Sentia-se arrependida de tanta coisa naquele momento. Sob o escrutínio de Penny, que mais poderia ela senão dizer a verdade? — Não pedi demissão — disse ela num sussurro. — Fui despedida. — Penny ficou imóvel, mas o seu rosto estava aberto, disposto, a querer que tudo aquilo fosse um mal-entendido. Mika aclarou a garganta. — Pedi dinheiro emprestado aos meus pais para pagar as contas. Penny abanou a cabeça. — Continuo sem perceber. Mika esfregou os lábios um no outro. — Hum… Eu não te disse a verdade sobre muitas coisas, admito. Não tenho um curso de História de Arte. Mal acabei a faculdade com um diploma em Gestão, e demorei oito anos. Desde então, tenho andado a saltar de emprego em emprego. A galeria é do Stanley, ele arrenda o espaço ao Leif, emprestaram- mo por hoje. E eu e o Leif não somos um casal. Já fomos, mas acabámos há um ano. — Mika abriu as mãos, sorriu impotente para Penny. — Não consigo agarrar-me a nada. — Mika — disse Leif suavemente, com tristeza. — Então és uma mentirosa? — bufou Penny, com os olhos em chamas. Thomas, Penny, Leif e Hiromi olharam todos para Mika, e ela olhou para o lado, indisposta. Não conseguia dizê-lo em voz alta, por isso, baixou o queixo numa confirmação silenciosa. Sim, sou uma mentirosa. — Anda lá, miúda — disse Thomas. — Acho que já não temos mais nada a fazer por aqui. Mika levantou os olhos enquanto Thomas levava Penny, a aconchegá-la debaixo do braço outra vez. — Porque é que ela faria isso? — sussurrou Penny ao pai. Uma lágrima escorria-lhe pela bochecha abaixo. — Não sei — disse Thomas. — Mas vamos voltar para o hotel. Conversamos melhor lá. — Thomas estabeleceu contacto visual com Mika. Ele acenou uma vez com a cabeça, olhos exigentes e imperdoáveis, um conjunto de portas fechadas. — Adeus, Mika. Penny deixou o pai levá-la embora, e Mika ficou lá, enraizada no local. A vê-los a sair da galeria, a sair da sua vida. No dia em que ela saiu do hospital depois de ter tido Penny, uma enfermeira levara-a para fora numa cadeira de rodas, depositando-a no banco do lado de fora da maternidade, Hana ao lado dela com as suas mochilas. Ficaram sentadas durante um tempo. Mika a olhar para o espaço, a fletir as mãos vazias. Médicos e enfermeiras iam e vinham. Uma mulher que acabara de ser mãe saiu, com o bebé no carrinho com balões amarrados à pega. O pai estacionou o carro junto ao passeio e ajudou-os suavemente a entrar na viatura. Toda a gente simplesmente a tratar das suas vidas. Nada para ver aqui. O mundo deles continuava a girar, enquanto o de Mika tinha parado. Ela tinha estado grávida, dera à luz um ser vivo e maravilhoso, pegara nele ao colo durante algumas horas preciosas e agora o bebé tinha-se ido embora. E Mika ficou sem lembranças do que tinha sido, exceto algumas cólicas e hemorragias. «Se não nos despacharmos, vamos perder o último autocarro», insistira Hana gentilmente, a voz dela uma ténue vibração. Uma rajada de vento despenteou-lhe o cabelo. A luz vazou do céu. «Sim, está bem», murmurara Mika. Agora, todos à sua volta eram pessoas novamente. A ver as obras de arte comose nada disto estivesse a acontecer num canto da galeria. Como se o coração de Mika não estivesse a despedaçar-se de novo. Concentrou-se em Hiromi. Embora já devesse ter sido arrancado à força, ainda assim, o instinto natural de Mika continuava a ser procurar a mãe. Hiromi abriu a boca e produziu um estalido com a língua. — Mi-chan — disse ela com tanta desilusão que fez Mika perder-se ainda mais nas profundezas de si mesma, num espaço para onde ninguém a podia seguir. Alguém lhe apertou o ombro, Leif provavelmente, mas Mika não o sentiu através de todas as camadas de dor. Mika queria gritar. Queria correr atrás de Penny, agarrar-se a ela como uma hera. Mas Mika não se mexeu um centímetro. Não produziu nenhum som. Fez o que lhe foi ensinado. Aguentar a dor. Permanecer em silêncio. Não fazer uma cena. ADOÇÃO NA AMÉRICA Gabinete Nacional 56544 W 57th Ave. Suite 111 Topeka, KS 66546 (800) 555-7794 Querida Mika, Tentei ligar, mas não consegui falar contigo. A Caroline Calvin faleceu. Tenho a certeza de que isto é difícil para ti. Quero assegurar-te de que a Penelope está nas melhores mãos com o Thomas. Eles têm muita família alargada a apoiá-los nesta altura. Lembras-te de ver fotografias dos pais da Caroline? Eles vivem na zona. Por favor, liga-me se precisares de alguma coisa ou se só quiseres falar. Eu estou aqui. Atenciosamente, Monica Pearson Coordenadora de Adoções P.S. Incluí o panfleto da funerária, que continha algumas palavras adoráveis do Thomas sobre a Penny. Caroline «Linney» Calvin 1972–2016 Dayton, Ohio Caroline Abigail Calvin faleceu no dia 21 de janeiro de 2016. Caroline nasceu a 19 de setembro de 1972 e foi criada em Dayton, no Ohio. Casou-se com seu namorado de infância, Thomas Preston Calvin, um advogado especializado em direitos de autor, em maio de 2000. Trabalhou como enfermeira pediátrica e era conhecida pela sua empatia para com os doentes. Os pacientes comentavam frequentemente a sua bondade e a sua disponibilidade para se sentar e conversar durante algum tempo. «Ela tinha sempre tempo para nós», disse a mãe de um paciente. Caroline sonhou ter uma família e realizou esse sonho quando ela e Thomas adotaram a sua filha, Penelope, em 2005. Depois disso, Caroline deixou o trabalho como enfermeira para criar Penny. Ao saber do seu diagnóstico de cancro terminal, Thomas pediu uma licença no emprego. Os três viajaram, mas passaram a maior parte do tempo com a família, que era o mais importante para Caroline. De Thomas: A Caroline adorava um hambúrguer bem passado, fazer mantas de retalhos, jardinagem e poesia. Também era obcecada pela caça às pechinchas — nunca perdia um bom negócio. Mas acima de tudo, ela amava a nossa filha, Penelope, que a fez sorrir até ao fim. Desde o momento em que adotámos a Penny, sentimos instantaneamente mais do que uma vida inteira de amor; pelo menos, foi o que a Caroline sempre disse. Não consigo contar o número de vezes que ela olhava para mim e dizia: «Estou tão feliz agora.» Nos seus últimos momentos, a Caroline garantiu-me que o seu coração estava cheio. Nas suas últimas palavras, desejou que a Penny e qualquer outra pessoa que chorasse por ela soubessem que, independentemente de tudo o resto, o amor regressa sempre. M CAPÍTULO 16 ika estava em casa, na sua cama, a dormir — a sonhar. Tinha 10 anos, estava vestida com um quimono e num palco, uma única luz a iluminá-la. O auditório tinha assentos vermelhos almofadados e estava vazio, com exceção dos dois lugares na primeira fila ocupados pelos pais dela. A parte de trás do auditório explodira, estilhaços de madeira pelo ar, como se uma bomba tivesse rebentado. Não uma bomba, mas uma tempestade. Um tornado e, apanhados no seu turbilhão, estavam tartes de maçã, copos de plástico vermelho, bisnagas de tinta, pedaços de cerâmica partidos. A boca de Mika abriu-se num grito, e ela sentiu-se a cair pelo túnel que era a própria garganta. O sonho metamorfoseou-se na realidade, numa memória. Estava de volta ao apartamento de Peter, na festa de Marcus. Corpos amontoados no pequeno espaço. Mark Morrison tinha a tocar na aparelhagem Return of the Mack. Mika encostou-se à parede, a ver Marcus do outro lado da sala a dançar e a roçar-se numa licenciada. Tinha os olhos e o corpo pesados. Mika pensava que era de tristeza, mas, mais tarde, perceberia que era de outra coisa. Pestanejou, com as pestanas lentas e a descaírem. Quando abriu os olhos, Peter estava mesmo à sua frente. «Olá», disse ele com um sorriso de lobo. «Trouxe-te outra bebida.» Ele passara a noite a encher-lhe o copo. Levou-lhe o copo à boca. Mika virou a cabeça, e a cerveja escorreu-lhe pela face, ensopando-lhe a parte da frente da camisola preta. «Não me sinto bem», disse. Peter pôs-lhe um braço à volta da cintura, prometendo levá-la para um lugar calmo. Ela tropeçou e encostou-se a ele. Depois, estavam no quarto dele. Ele deitou Mika, e ela observou através de uma névoa enquanto ele fechava a porta. Trancou-a. Os ruídos da festa ficaram abafados. Ela sentiu-se a apagar. E acordou com Peter em cima dela, a mantê-la presa ao colchão. Tentou empurrá-lo, mas os seus movimentos eram lentos, lama a escorregar por uma parede. «Não», disse ela, depois mais alto: «Não.» A mão dele cheirou-lhe a terebintina quando a manteve sobre a boca dela e lhe comprimiu as faces, provocando lágrimas quentes. Tudo o que ela podia fazer era observá-lo através de uma névoa aquosa, o rosto dele fragmentado, uma pintura cubista. Não Marcus, mas Peter em cima dela. Não estava certo. Não era aquilo que ela queria. Mika viu as horas no relógio na mesa de cabeceira dele, os minutos a contar: 00:01, 00:02, 00:03, a hora exata em que Penny foi concebida. Então os olhos dela reviraram-se para o teto. A cama rangia como se estivesse a partir-se… pedaços de Mika a caírem. Num único momento, a sua vida bifurcou-se, fatias iguais de antes e depois. Mika acordou sobressaltada, a arfar. Os dedos dela dirigiram-se à garganta, esvoaçaram para o pulso a martelar. A memória fugiu e ela fechou os olhos. Respirou profunda e pesadamente. Estava a salvo. Tinha acabado. Os pensamentos misturavam-se, a realidade apoderava-se do miasma dos sonhos e memórias — pesadelos. Penny. Thomas. A galeria de arte. Um novo cordão de pânico enrolado à volta dos pulmões e puxado com força. O voo deles parte às 11h15. Pode ser que ainda os apanhe no aeroporto. Vestiu-se, pegando em calças de fato de treino e numa camisola que estava atirada para o chão. Quando saiu do quarto, Hana estava na cozinha. Mika não disse uma palavra enquanto procurava as chaves freneticamente. — Bem, bom dia para ti também — disse Hana, enquanto bebia uma chávena de café. Mika não parou de procurar. Debaixo de uma pilha de papéis. Nas almofadas do sofá. Onde estava a merda das chaves dela? O queixo estremeceu-lhe. — A Penny e o Thomas vão-se embora hoje, e eu lixei tudo à grande. Preciso de ir ao aeroporto e tentar encontrá-los, mas não consigo encontrar a merda das chaves. Mika esfregou com força as palmas das mãos nos olhos até ver manchas brancas. — Estás a falar disto? — Foi quando reparou que Hana não era a única pessoa na cozinha. Uma rapariga magra, pequenita, de cabelo castanho, tinha a mão levantada, com as chaves penduradas na ponta dos dedos, metal a cintilar à luz do sol da manhã. — Sou a Josephine, já agora — disse, sorrindo, mostrando uma covinha na bochecha esquerda. Hana também sorriu. — Obrigada. — Mika tirou-lhe as chaves e enfiou os pés nos sapatos junto à porta da rua. — Queres que te leve? — perguntou Hana atrás de Mika, seguindo-a até à porta. — Não. — Mika acenou com uma mão. — Está tudo bem. Vai correr tudo bem. A viagem até ao aeroporto passou num borrão. A serpentear por entre o trânsito, algumas buzinadelas. O coração a bater como se ela fosse uma pessoa a afogar-se no oceano. Estacionou na faixa de largada de passageiros e saltou do carro. Por todo o lado havia sinais onde se lia «SÓ CARGAS E DESCARGAS». Um segurança com um colete refletoramarelo soprou no apito. — Minha senhora, não pode deixar o seu carro aqui. Mika não ouviu. Demasiado empenhada em procurar no exterior uma madeixa de cabelo escuro, um homem alto com um par de olhos rabugentos. Eles não estavam no exterior. Atravessou a correr as portas de vidro duplo e lembrou-se vagamente da companhia aérea em que iam viajar. Alaska. Correu para a bilheteira, perscrutou as filas. Nada de Penny. Nada de Thomas. Que horas eram? Encontrou um relógio digital atrás do balcão, 10h35 da manhã. Correu para o quadro de partidas, mas não se lembrava do número do voo deles. Porém, conseguiu ligar os pontos com o voo e o destino. Lá estava ele. Em letras maiúsculas: A EMBARCAR. Uma mão segurou-lhe o braço e puxou-a. — Minha senhora, não pode deixar o seu carro. Mika soltou o braço com um safanão. Sentia o peito apertado. O que estava a acontecer nesse momento parecia inevitável. Um curso intensivo de acontecimentos que se iriam desenrolar dezasseis anos no futuro. Ela não podia deixar de pensar no momento em que viu a Sra. Pearson a ir-se embora do hospital com Penny. As suas mãos a agarrar no embrulho minúsculo. O bebé dela. E pronto. Penny fora-se embora. Outra vez. Despojada, os seus joelhos dobraram-se. Uma maré azul fria desabou sobre ela. — Penny — sussurrou. — A sério, minha senhora — disse o segurança. — Vou mandar rebocar-lhe o carro. Depois vou ter de chamar a polícia. — Mika permaneceu parada, empedernida. O seu corpo não respondia. O segurança aproximou-se dela. Acenou-lhe com uma mão em frente à cara. — Venha lá. Não me obrigue a chamar a polícia. O meu turno começou mesmo agora. Se voltar já para o seu carro, vamos esquecer que isto tudo aconteceu. Por fim, Mika assentiu, olhando para o vazio, e cambaleou até ao carro, sentindo o espírito a separar-se do corpo. Era em tudo semelhante ao momento em que se viera embora do apartamento de Peter na manhã seguinte. Ele estava a dormir, e Mika acordou com o braço dele estendido sobre ela. Libertou-se do abraço dele, sentou-se na berma da cama e examinou a sua metade inferior — os danos. Um animal a avaliar-se a si mesmo — a ver se estava demasiado ferido para fugir. Ainda tinha a saia vestida, mas os collants e a roupa interior tinham desaparecido. As suas coxas estavam doridas, negras e roxas com as marcas de impressões digitais. Mika pôs-se de pé e vacilou, mas conseguiu ir em bicos de pés até à porta. O coração batia a cada pequeno ruído. Com medo de o acordar. Perséfone a esquivar-se a Cérbero. Inalou o seu primeiro fôlego profundo quando saiu do edifício. Depois, caminhou aos tropeções pelo campus. Collants desfeitos. Pele desfeita. Alma desfeita. O seu corpo um pequeno apocalipse. Lembrava-se do resto de forma abstrata. Uma linha amarela recortada de luz do sol, pálida e doente. Vento tão agudo que ondulava a relva curta e lhe queimava as faces, chicoteando- lhe as coxas nuas. Dois borrões negros — corvos a lutar por uma casca de melancia que alguém deitara fora. Um lampejo azul de uma luz no cimo de um telefone especial. Se Mika pegasse no auscultador, alguém iria escoltá-la até um lugar seguro. Considerou essa hipótese, mas descartou a ideia tão facilmente como um invólucro de pastilha elástica. Quantos parceiros sexuais já teve? Era o que a polícia iria perguntar, embora não fosse da conta de ninguém. E Mika diria que haviam sido oito, dois dos quais ela não se lembrava muito bem. Mas lembrava-se de Peter. Lembrava-se de ter dito que não. Mas quem iria acreditar nela? Uma rapariga que desperdiçava a sua vida a pintar, passava as noites em festas de repúblicas, e que uma vez fez um broche a um tipo num jardim nas traseiras. Desde quando é que a decisão de uma mulher em ter sexo se tornara um barómetro para a honestidade? Mika não sabia a resposta. Só sabia que assim era. A buzina de um carro soou e Mika sobressaltou-se. Estava de volta ao aeroporto, o tipo com o colete refletor amarelo a examiná- la do passeio. «Ande lá», movimentou-se a boca dele enquanto apontava para a saída. Ela avançou o suficiente para estacionar no parque onde se pode aguardar que os passageiros telefonem a anunciar a sua chegada, depois bateu no volante antes de se deixar cair sobre ele. Estava outra vez perdida. Perdida e sozinha. Como é que tudo corria sempre tão mal? Reclinou-se no banco. Mentir a Penny, a intenção tinha sido boa. Mas isso não importava. O que importava era que Penny tinha ficado magoada. Isso era a última coisa que Mika queria. Não era assim que tudo aquilo tinha começado? Tudo o que ela quisera fora proteger Penny da verdade, de saber sobre Peter, sobre si própria, de saber que o mundo podia ser um lugar tão terrível e cruel. Mika quisera mostrar a Penny que a adoção tinha valido a pena para ambas. Penny fora entregue uma família amorosa. Mika realizara os seus sonhos. Baixou as janelas do carro, deixou a manhã arrefecer-lhe as lágrimas no rosto. Sentiu o cheiro da chuva e da relva recentemente cortada. Depois tirou o telemóvel, e antes que se apercebesse do que estava a fazer, telefonou a Penny. «Ligou para a Penny. Deixe uma mensagem», atendeu o voice mail de Penny. Ela já devia estar no ar. — Penny — disse Mika a custo, com as cordas vocais contraídas. — Sou eu. Claro que sabes que sou eu. Peço imensa desculpa. Imensa desculpa — repetiu. Depois fez uma pausa, a recompor-se. — Devo-te uma explicação. Quando me contactaste, depois de teres visto o meu Instagram… — Ela agarrou no banco, e o couro transformou-se em flanela, a sensação áspera do cobertor hospitalar de Penny debaixo das mãos quando pegou no seu bebé ao colo junto a si e lhe deu biberão. Mika continuou a falar, deixando que a verdade se soubesse. A contar sobre como tinha ficado tão surpreendida quando Penny lhe telefonara. Explicou que tinha avaliado a sua vida e percebera que não tinha nada para mostrar. Disse que tudo lhe parecera uma bola de neve a partir daquele momento. Passou um minuto que mais pareceu uma hora, e Mika acabou com outro pedido de desculpa. Estava preparada para passar a vida a pedir desculpa. — Não sei em que é que estava a pensar. Eu só… Acho que só queria que te orgulhasses de mim. Por favor, liga- me. Por favor. Tocou no botão. Uma voz incorpórea ordenou-lhe que carregasse na tecla 1 para enviar a mensagem. Mika hesitou; a verdade profana parecia mais arriscada do que as mentiras. Aproximou o dedo do botão, uma faca por cima de uma ferida pronta para a lancetar. Carregou no 1 e deixou-se cair. Estava feito. Uma brisa despenteou-lhe o cabelo, e ela afastou-o dos olhos. Permaneceu sentada durante mais algum tempo, a observar o céu cinzento, a ouvir o som dos aviões que partiam, a sentir-se como se tivesse viajado no tempo. Mandou uma mensagem a Hana. Preciso de ti. Hana respondeu quase instantaneamente. Estou aqui. Estou à tua espera. A Josephine já se foi. Vem para casa. Mika meteu a primeira e foi para casa. Para junto de Hana, para um lugar onde Mika sempre se sentira totalmente amada. Como prometido, Hana estava à espera, de braços abertos, e Mika caiu neles, encontrando conforto no seu ombro ossudo. Elas tinham a mesma forma de corpo e encaixavam-se perfeitamente — preenchendo todos os lugares ocos uma da outra. Isto era o que ela desejava de Hiromi. Mas a mãe era demasiado dura enquanto pessoa. Olhos duros, mãos duras e calejadas, apenas dureza. Talvez essa fosse a chave para a paternidade: não se podia evitar que os filhos se magoassem, mas podia-se dar-lhes um lugar suave onde aterrarem. Hana levou Mika para dentro e sentou-a no sofá. — Vá lá, conta-me tudo. Vou fazer-te uma omelete. — Não temos ovos — disse Mika e começou a chorar novamente. Puxou uma manta para junto de si e assoou o nariz ao tecido macio. Hana afastou as mãos de Mika do seu rosto e segurou-a, afagando-lhe o cabelo. — Está tudo bem — disse ela repetidamente até Mika respirar um pouco mais facilmente. — Senta-te. Vou buscar algo para te acalmar… e alguns lenços de papel — disse Hana. Vinte minutos depois, Hana pousou uma tigelade sopa de massa nas mãos de Mika. Esperou que a amiga ingerisse algumas colheradas e depois encorajou-a a beber o caldo. — Pronto — disse Hana. — Conta-me lá o que aconteceu. Mika contou a Hana como tudo lhe tinha explodido na cara. Disse-lhe que Hiromi aparecera na inauguração da exposição e desmascarara Mika. Que perseguira Penny e Thomas até ao aeroporto e que deixara uma mensagem de voz incoerente. — Achas que eles vão voltar a contactar-te? — perguntou Hana. Mika encolheu os ombros, resistindo à vontade de olhar para o telemóvel e ver se Penny tinha ligado ou mandado uma mensagem. Claro que não haveria nada tão cedo. Penny e Thomas estavam no ar naquele momento. — Sinceramente, não tenho a certeza. Entre a verdade e a mentira, não sei o que é melhor. Ela inclinou a tigela de sopa devagar entre as palmas das mãos. Hana comprimiu os lábios. — Queres que cancele a digressão com os Pearl Jam? — Hana deveria partir dentro de três semanas. — O quê? Não — disse Mika, esfregando a pele por baixo do nariz. — Não sejas tonta. Tens mesmo de ir. Não há necessidade de ficarmos as duas tristonhas. — Mas precisas de mim… — Não. Claro que não. Proíbo-te de sequer pensares nisso. — Mika pôs a tigela na mesa de centro. A dor continuava a passar- lhe pelo abdómen, mas ignorou-a. — Agora, chega de falar de mim. Fala-me da Josephine. Um sorriso atravessou o rosto de Hana, juntamente com um rubor furioso. — Não há muito a dizer. Conheci-a ontem à noite no Sheila’s: um bar gay hipster e minúsculo. — Ela é artista. Faz coisas com vários meios e tem umas mãos que nem dá para acreditar. Hana mexeu os dedos. — Demasiada informação. Mika acenou com uma mão a pedir para parar, com um sorriso a surgir-lhe no rosto. — Estou só a dizer. — Hana encolheu os ombros. — Não sei, toda esta limpeza aqui em casa, foi tudo um ponto de viragem para mim, acho eu. — Estás feliz — disse Mika. — Estou feliz — disse Hana. — Fico contente por isso — disse Mika a Hana. — Adoro-te, miúda. — Adoro-te ainda mais, miúda — disse Hana; depois acrescentou calmamente: — Se não quiseres que eu vá, não vou. Mika abanou a cabeça, mas não conseguiu formar as palavras para dizer que não porque a garganta deu um nó. Sabia que Hana estava a falar a sério. A amiga ficaria. E o coração de Mika ameaçou explodir com essa simples promessa. M CAPÍTULO 17 ika não saiu de casa. Durante setenta e duas horas, sobreviveu à base de comida tailandesa, Coca-Cola Diet e um fluxo constante de Lei & Ordem: Unidade Especial. Sempre que pestanejava, via a galeria a abrir-se no interior das pálpebras. Pestanejo. O rosto de Penny quando Hiromi estendeu uma mão e perguntou «Quem é esta?». Pestanejo. Thomas a envolver Penny debaixo do braço enquanto ela enfiava o queixo no peito dele — triste, desanimada. Pestanejo. Penny a inclinar a cabeça para o pai, lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces enquanto lhe perguntava porquê, porque é que Mika tinha mentido? As imagens, a dor, nunca entorpecidas. Verificava o telemóvel e o e-mail a cada cinco minutos, sem mensagens de Penny ou de Thomas. Tentou tirar os dois da cabeça, mas encontrava os seus pensamentos à deriva em direção a ambos, se não tivesse cuidado. Sentia falta do sorriso de Penny, da sua energia fulgurante. E também sentia falta de Thomas, da sua vibração rabugenta encantadora, da forma como ele amava Penny. Um navio tinha chegado à costa que ela partilhara com Penny e Thomas. Tinha vindo buscar Mika, levá-la de volta ao exílio, onde ela pertencia. Hana apareceu à entrada do seu quarto, a pôr uma argola dourada na orelha. Ia sair com Josephine outra vez. Pela terceira vez nessa semana. — Mais Unidade Especial? Mika remexeu-se no sofá. Tinha vestida uma t-shirt velha dos Grateful Dead, que surripiara a Leif, e um par de calças de fato de treino largas. O telemóvel estava perto na mesa de centro, entre o molho de recipientes de comida de takeaway, latas de refrigerante e pacotes de batatas fritas — na noite anterior, Mika batera no fundo do poço e lanchara as bolas de milho que estavam refundidas na parte de trás do armário, uma relíquia do antigo dono da casa. — Sim. Décima primeira temporada, o episódio em que o Stabler e a Benson suspeitam que um homem rico que mantém uma relação com uma jovem cometeu um homicídio quando o corpo de uma rapariga é encontrado enfiado dentro de uma mala. — Ah, um conto tão antigo como o tempo. — Hana enfiou o pó compacto na mala. — Tens a certeza de que não queres vir connosco? — Ui — disse Mika. — Nem sonharia estragar-te uma saída. — Então, este é o teu plano para esta noite, televisão e takeaway? Hana pegou num recipiente da mesa de centro e cheirou-o. Mika rebolou para se sentar e olhou para Hana. — Sim, e contemplar um monte de coisas que me fazem perceber a banalidade da minha própria existência. Hana pousou o recipiente de comida. — Bem, enquanto estás nessa espiral descendente, achas que podias comer alguma coisa que contenha um vegetal? — O pad thai tem legumes — disse Mika, ligeiramente ofendida. Hana fungou e abriu a porta. — Vou passar a noite em casa da Josephine. Vejo-te de manhã. Mika virou os dois polegares para cima. Ouviu o carro de Hana a afastar-se e enrolou-se para o lado. O telemóvel apitou com uma mensagem recebida, e o seu coração acelerou. A esperança era assim, um balão de hélio embrenhado nos ramos, recusando-se a ficar em baixo. Das últimas vezes que isso aconteceu, tinha sido Hiromi ou Leif ou Charlie ou Hayato. Ela era uma declinadora de oportunidades iguais, a deslizar em cada uma delas. Mesmo assim, pegou no telemóvel, suspensa à beira da desilusão. Penny. O nome da filha iluminou o ecrã. Ouvi a tua mensagem, escrevera ela. Quando é que podemos falar? Mika sentou-se de um salto e desligou a televisão. Agora mesmo?, respondeu a Penny. Pôs-se de pé e começou a andar para trás e para a frente, com o telemóvel na mão. Cinco agonizantes minutos depois, o aparelho começou a tocar. Ela atendeu de imediato. — Olá — disse Mika. — Olá — disse Penny, não no seu estado de animação habitual. Fora ela quem provocara aquilo. Mika tinha esmorecido a energia de Penny. Tanto do sentido de valor de Mika se prendia ao que a filha sentia sobre a vida, sobre ela. — Então… — Então, ouviste a minha mensagem. — Mika manteve a voz calma, leve. Como se dissesse: Vá lá, castiga-me, bate-me se quiseres, eu aguento. — Sim. Ouvi-a assim que chegámos a casa. — Há três dias? Penny tinha ouvido isso há três dias? — Demorei algum tempo a entender tudo o que estava a sentir. Formou-se um nó na garganta de Mika. — Eu compreendo. — Eu não compreendo — disse Penny bruscamente. — Está bem — disse Mika. Manteve-se de pé e caminhou até à cozinha, tirou um copo do armário e encheu-o com água da torneira. Quando é que tinha bebido água pela última vez? Com o telemóvel enfiado entre o ombro e o ouvido, perguntou: — O que é que não compreendes? — Porque é que não ficaste comigo? O desespero afiava o gume das palavras dela. Mika assustou-se, não esperava essa pergunta. Mas supunha que elas tinham estado a caminhar nessa direção. Essa pergunta tinha estado sempre à margem da relação entre ela e Penny, como duas mãos a afastá-la. — Não podia — respondeu, saindo da cozinha para se sentar na beira do sofá, a pensar no quão impreparada estava na época. Mika lembrou-se das publicações do Instagram que tinha visto. Todas aquelas mulheres, mães jovens com bebés. As secções de comentários repletas de encorajamentos aparentemente positivos. Tu consegues! És uma mamã forte! Procura dentro de ti! Encorajando-se mutuamente a ultrapassarem os seus limites. A mensagem infiltrava-se. Uma boa mãe não abandonaria os filhos. Não abandonaria o seu dever biológico. Se ela o fizera, devia haver algo de errado com ela. Ou com a sua criança. Penny sentia-se assim? Que o ADN dela tinha algum problema? Durante um minuto inteiro, Penny permaneceu em silêncio. — Querias-me? — Eu queria-te mesmo. — Mika inspirou. Expirou. Ela queria Penny, apesar de Peter. Apesar de Hiromi.Apesar do descontentamento silencioso da mãe. — Eu queria-te. Mas queria coisas para ti. Coisas melhores. Eu queria que tivesses uma casa grande, uma família, pais, primos e avós. Queria que fosses para uma boa escola, com material novo e roupas novas. Queria que tivesses tudo o que eu nunca tive e nunca te poderia dar. Isso era o quanto eu te queria. — Para Mika, dar Penny para adoção tinha sido o derradeiro ato de amor. Penny merecia melhor. Penny permaneceu em silêncio do outro lado da linha, mas Mika conseguia ouvir a sua respiração, cada inspiração e expiração como um metrónomo. — Eu sei que tudo isto é altamente marado. Eu menti-te, e vou arrepender-me para sempre. — Forçou-se a continuar. — Se tu… Se conseguires encontrar uma maneira de me deixares voltar à tua vida, prometo que nunca mais te vou mentir. O silêncio empedernido continuou durante outra batida. — Foi por teres vergonha de mim? — perguntou Penny finalmente. Mika endireitou-se. — Não! — respondeu de imediato. Como podia Penny pensar isso? — É o oposto. Eu não queria que tu tivesses vergonha de mim. — Mika sentiu o aperto das obrigações da maternidade. Ser suficientemente forte. Ser suficientemente inteligente. Ser o suficiente. Mas não conseguia transmitir isso a Penny. A maneira como Mika sentia que faltava algo dentro dela, como se sentia em ruínas. — A minha vida não é bonita. É um verdadeiro festival de merda. — Isso fez Penny soltar uma gargalhada suave. Mika alinhou. — Quer dizer, eu tenho um saco de pepitas de chocolate aberto na bancada para poder esticar o braço sempre que passo por lá e sacar uma mão-cheia. Penny riu-se novamente, mas ficou sóbria rapidamente e triste, quase melancólica. — Houve alguma coisa que tivesse sido verdadeira? A culpa e a tristeza correram através de Mika como uma matilha de cães de caça. Tinha sido tudo real para Mika. Os abraços. Os sentimentos calorosos. O desejo. O amor. Isso era tudo verdade. Mas ela via agora o que tinha feito. Ao mentir, Mika esvaziara a relação de ambas de sentido, pelo menos para Penny. — Sinceramente, confundi as coisas, misturei a verdade com a ficção. A Hana é a minha melhor amiga, e ela adora roller derby. Mas eu não vivo sozinha. Vivo com a Hana, porque não tenho dinheiro para ter uma casa, e ela é uma acumuladora terrível, ou pelo menos, era… até está melhor, na verdade. O Leif é o meu ex-namorado. Ele não é formado em Bioquímica, mas tem uma paixão por essa área; aplicou essa paixão ao cultivo de marijuana. É dono de uma loja em Portland. Usa principalmente cânhamo e acredita em não ter conta bancária. — Na verdade, isso agora faz tudo muito sentido. — A voz de Penny suavizou-se. — Quando namorávamos, ele usava um cristal como desodorizante. — Mika fez uma pausa. — Não funcionava — disse ela, como se estivesse a sussurrar um segredo ao ouvido da filha. Penny riu-se. Mika reclinou-se e brincou com o cordão nas suas calças de fato de treino. — Que mais queres saber? Posso responder a qualquer uma das tuas perguntas. Penny ficou silenciosa. — Há uma coisa. — Hesitou. — Eu quis perguntar-te em Portland, mas nunca me pareceu ser a altura certa. — Força — disse Mika. — O meu pai… Quero dizer, o meu pai biológico. Tu… conhece- lo? Tipo, sabes o nome dele ou algo assim? Agora foi Mika quem ficou em silêncio. Imaginara contar a Penny sobre Peter, sobre a violação. Mika estremeceu perante essa palavra. Violação. Um termo tão feio. Custava-lhe usá-la para descrever o que lhe aconteceu. Embora o seu corpo se lembrasse da violência, a sua mente recusava-se a capitular. A mim, não. Não me pode ter acontecido a mim. Ela não era a única que tinha dificuldade em usar a palavra. A comunicação social, os noticiários, todos preferiam agressão sexual. Parecia mais simpático, mais suave de alguma forma. Uma mulher pode recuperar de uma agressão, mas pode nunca sobreviver a uma violação. E, lá no fundo, Mika era assombrada pelas suas inações naquela noite. O seu «não» pouco firme. A forma como se deixou ficar deitada, débil. A forma como não conseguiu ser parte ativa na sua própria salvação. Como poderia ela explicar isso a Penny? Separara a filha desse acontecimento. Será que ajudava o facto de, quando Penny nasceu, não ser nada parecida com Peter? Ela puxou ao lado de Mika. Teria reagido de forma diferente se a pele de Penny fosse mais clara, os olhos mais redondos e verdes, o cabelo castanho em vez de preto? Não, pensou Mika com absoluta certeza. Eu tê-la-ia amado da mesma maneira. Costumava olhar para a barriga inchada e sussurrar-lhe, prometer-lhe: Ele nunca te irá conhecer. — Ainda estás aí? — sondou Penny. — Estava só a pensar — disse Mika. — Eu… — Engoliu em seco. Às vezes, ela procurava Peter online. Ele agora era artista em Nova Iorque, com uma família, e era confuso para Mika como é que ele poderia ser meigo com outros quando a tinha rasgado como um pedaço de fruta podre. Ele ainda não tinha feito grande coisa, mas ganhava a vida, a trabalhar por conta própria e a fazer a ocasional paisagem. — Há coisas no meu passado das quais me é difícil falar. — Ocorreu-lhe que Penny também era uma vítima de Peter. Ambas tinham fardos para carregar. Mas ainda não precisava de se tornar um fardo para Penny. Um dia, iria considerar contar a Penny. Porém, antes disso, ia encher a cabeça de Penny com quão boa ela era, quão lindamente forte, quão amada. Penny iria compreender que, embora fosse de lá que vinha, não era para lá que ia. — Para já, sabes tudo o que precisas de saber. Sei que não é justo pedir-te isto, mas vais ter de confiar em mim para te contar as coisas quando eu estiver pronta e respeitares aquilo de que ainda não consigo falar. Mika sentiu isso naquele momento. Uma mudança subtil na sua relação, a transitar de amizade… para o quê? Não tinha a certeza. Mas era algo mais. Um reconhecimento de que Penny só tinha 16 anos e Mika tinha 35. Quase duas décadas de experiências de vida separavam-nas. Não iria armar-se com Penny em relação a isso, mas usá-lo-ia para, no mínimo, proteger a filha. Ouviu Penny a respirar fundo. — Está bem — acabou ela por dizer. — Consigo aceitar isso. Mika suspirou de alívio. — Um dia, espero que me consigas perdoar — disse ela. — Imagino que ainda estejas zangada, e não faz mal… — Estou mesmo — interrompeu Penny. — Mas… não estou zangada a ponto de nunca mais querer falar contigo. Eu ainda… Ainda tenho tantas perguntas. Quero confiar em ti, mas não tenho a certeza se posso. — Está bem. Precisas de tempo. Consigo aceitar isso — disse Mika, fazendo eco das palavras de Penny. — Espero que também consigas perdoar-me por te ter dado para adoção. Mais valia pôr tudo a limpo. — Oh — disse Penny. — No que me diz respeito, não há nada a perdoar. Seria como pedir-te para pedires desculpa por o céu ser azul, ou por eu ser japonesa, ou por ter nascido mulher. Algumas coisas simplesmente são como são. Isto faz parte de mim. Brotaram lágrimas nos olhos de Mika. — Obrigada — disse ela. — Sim — disse Penny. Passaram-se alguns segundos. — É melhor eu ir andando. Já é tarde por aqui. Mika sentou-se e esfregou a pele por baixo do nariz. — Claro. Com certeza. Achas que… podemos voltar a falar em breve? — Queres ligar-me na semana que vem? — perguntou Penny. — Sim — respondeu Mika, e tentou não parecer demasiado ansiosa, demasiado desesperada. Despediram-se. E, depois, Mika sentou-se durante algum tempo, a rever mentalmente a conversa delas, e depois a sua própria vida. Depois de Peter, depois de Penny, não pensara muito no futuro. Não conseguia imaginar a vida, todas as lindas possibilidades infinitas. Mas agora… agora Mika dirigiu-se à cozinha e retirou o caixote do lixo de baixo do lava-loiça. Com um único golpe de braço, varreu o conteúdo da mesa de centro, despejando-o no caixote do lixo. Pegou no cobertor debaixo do qual estivera a hibernar e dobrou-o, pousando-o sobre o apoio do braço do sofá. Feito isto, sentou-se novamente e olhou para o telemóvel. Para todas as chamadas perdidas de Hiromi. Não estando ainda preparada parafalar com a mãe, ligou de volta para o número de telemóvel de outra pessoa. Hayato respondeu ao terceiro toque. — Então, miúda. — Então — disse Mika alegremente. — Como estás? — Bem. Estou bem. E tu? — Mika conseguia ouvir como ruído de fundo uma televisão, a voz de um locutor de noticiário famoso. — Vou andando. — Mika sorriu. — Estava com esperança de poder pagar-te uma bebida e falar contigo sobre um emprego. - Q CAPÍTULO 18 ual é o teu filme preferido? — perguntou Penny na semana seguinte. A vontade de dizer algo mais refinado pendeu na ponta da língua de Mika: Os Condenados de Shawshank, A Lista de Schindler, O Padrinho. Mas contentou-se com aquele que via repetidamente com Hana. — Doidos à Solta — respondeu. Penny ainda não o tinha visto e viu-o no fim de semana. — Porque é que é o teu filme preferido? — perguntou ela Mika na chamada seguinte. — Não sei. É engraçado, não é? — perguntou Mika. Apoiou-se na bancada da cozinha. O telemóvel estava encostado ao ouvido. Tinha acabado de ter a sua primeira entrevista na Nike e ainda estava de camisa e saia travada, descalça. À frente de bebidas açucaradas, Mika tinha desabafado com Hayato, contando-lhe sobre Penny, a adoção, as mentiras e as suas finanças em ruínas; então, pediu-lhe que a ajudasse a arranjar emprego. Ele ficou feliz por poder ajudar. E, seguindo o conselho dele, percorreu a página de carreiras da Nike e candidatou-se ao primeiro cargo para o qual se qualificava: assistente administrativa de grau II. Hayato deu uma ajuda a passar a sua candidatura para o topo da pilha. — Hilariante — concordou Penny. Mika pensou mais sobre a pergunta de Penny. — Era uma espécie de fuga para mim. Não tive uma infância fácil. Os meus pais são muito tradicionais, e não havia muito espaço para humor na nossa casa. — Ficaram zangados quando engravidaste de mim? — perguntou Penny. — Na verdade, não sei. — O rosto de Hiromi surgiu-lhe na mente, num lampejo fugaz. Ainda não tinha falado com a mãe. O que não era invulgar. Elas passavam dias, semanas, até meses, sem falar uma com a outra. Mas Mika acabava sempre por voltar. Lembrava-se de Hiromi a ir-se abaixo por causa de um monte de bananas, pouco depois de se terem mudado para os Estados Unidos. «Para de comprar tantas», dissera Shige, a olhar para a fruta em decomposição na bancada. «Não consigo», Hiromi respondera. «Não entendo porque é que elas vêm em tão grandes quantidades. Quem precisa de uma dúzia de bananas?» Nunca se partem os cachos no Japão, e Hiromi havia assumido que era a mesma coisa na América. Decidiu reclamar com o gerente da loja. Num inglês macarrónico, implorou-lhe que vendesse quantidades mais pequenas. Ele rira-se e dissera-lhe que ela própria o podia fazer. Hiromi pensou que ele estava a gozar com ela. Mas Mika entendera e mostrara à mãe. Foi o que manteve Mika amarrada a Hiromi. A ideia de que elas poderiam estar perdidas uma sem a outra. — A minha mãe ficou desiludida — contava ela agora a Penny. Fez uma pausa. Sentiu o escárnio da mãe a bater-lhe como o sol quente do deserto. «O que sabes tu sobre criar um bebé?» — Muito desapontada. — Às vezes, isso é pior — disse Penny. — Sim. — Mika soltou o ar que tinha dentro de si. Mais tempo passou. Mika teve uma segunda entrevista na Nike. Penny estava a terminar o seu primeiro ano do secundário. Havia festas e um baile a que foi com amigos. Fizeram uma chamada por FaceTime durante o último jogo de roller derby de Hana, antes de ela sair em digressão com os Pearl Jam. Mika foi contratada pela Nike e teve uma visita guiada vertiginosa pelo campus por um funcionário dos RH muito competente, mas muito apressado. Naquela noite, enviou a Penny uma fotografia da sua identificação na empresa com as palavras: É oficial. Quando Mika fingiu que tinha encontrado uma galeria, elas brindaram no ecrã, fazendo saltar rolhas de garrafa, e riram-se. Desta vez, Penny respondeu com um emoji de um chapéu de festa e serpentinas. E só isso. Penny estava mais prudente com Mika. A relação delas já não era uma casa a pegar fogo, mas sim uma casa a ser cuidadosamente reconstruída — o que acontece após o incêndio. Duas semanas depois, Mika ajeitou as calças pretas do fato e leu a última mensagem de Penny. Feliz primeiro dia de trabalho. Ligas-me depois? Não sei a que horas chego a casa, mas dou-te um toque, escreveu Mika. Pôs o cabelo atrás da orelha, um pouco assoberbada por estar no meio do campus da sede mundial da Nike. Quase cento e dezasseis hectares. Setenta e cinco edifícios. Milhares de empregados. Nada de mais. O telemóvel dela tocou. Ao ver quem lhe ligava, atendeu com um sorriso de alívio. — Olá. — Então, estás a dar com o caminho? — perguntou Hayato. — Posso sair e acompanhar-te ao Edifício Serena Williams. — Estou bem — prometeu ela. — Perfeito. Estou tão contente por tudo isto ter resultado — disse Hayato. — Sim, obrigada mais uma vez por teres dado uma palavrinha em meu favor. Não sei como alguma vez te vou retribuir. — Paga-me o almoço e talvez mais uns martínis com chocolate e ficamos quites. — Ele fez uma pausa. — É uma pena não termos ficado no mesmo departamento. Mas vamos almoçar juntos hoje. Podemos encontrar-nos ao meio-dia na cantina. Sabes onde fica? No edifício Mia Hamm? Mika sabia onde ficava a cantina, embora não fizesse ideia de quem era a Mia Hamm. — Encontramo-nos lá. — Muito bem. Tem um bom primeiro dia. Mal posso esperar até que me contes tudo — disse Hayato. Desligaram e Mika partiu para o edifício Serena Williams — essa, ela sabia quem era. O dia passou num borrão de apresentações e a instalarem-lhe o computador. Encontrou-se com Hayato para almoçar. Beberam Coca-Cola Diet e depenicaram saladas. Ele mostrou-lhe o escritório dele, um espaço amplo com grandes mesas de desenho. Havia vários cavaletes montados, com quadros com desenhos — imagens de sapatos desenhados com flores explosivas e brasonados com o icónico símbolo da Nike. — A nossa Coleção de Verão para o próximo ano — disse Hayato, de mãos enfiadas nos bolsos. — Tenho estado a olhar para estes desenhos há dias. Há qualquer coisa que ainda não está certa no design. É suposto ter por base um artista que faz enormes fundos de flores atrás de retratos de pessoas famosas. — São as cores — disse Mika automaticamente. — Como assim? — Hayato olhou para ela com atenção. Mika deu um passo em frente. Conhecia o artista. Ele estava a começar a dar nas vistas quando ela fora para a faculdade. Agora estava simplesmente a mostrar que correspondia às expetativas. — Eu conheço o artista. — Mika corou. — Bem, conheço o trabalho dele. Ele usa cores tradicionais em retratos modernos. Por exemplo, quando pintou aquele retrato da refugiada da Coreia do Norte, aquela que fugiu com o bebé? Usou as mesmas cores de Fuga para o Egito, o quadro do século XIV, de Giotto, para evocar… — Abanou a cabeça. — Acho que não precisas de ir tão fundo. Mas, seja como for: cores antigas, novas ideias, os mesmos problemas. Hayato acenou com a cabeça, pensativo. — Devíamos usar algumas cores retro da Nike. Mika encolheu os ombros. — Podias tentar. Hayato tirou um molho de lápis coloridos de um conjunto de materiais de arte na sua mesa. Escolheu três e rabiscou no desenho. Mika sentiu algo a crescer dentro dela. Inveja. O desejo de desenhar e deixar-se ser consumida. Perguntava a si mesma se Hayato conseguia ver a fome profunda nos seus olhos. Depois de Peter, todas as cores com que ela havia pintado em tempos tinham desaparecido. Com medo de se cruzar com ele, tinha abandonado as suas disciplinas de arte e trocado de área. Perdi tudo. O tempo. A mim mesma. O meu futuro. Como poderia ela não se sentir como se algo lhe tivesse sido roubado? Primeiro, o seu corpo. Depois, a sua pintura. E, por último, o seu bebé. — Tipo isto? — perguntou Hayato, com olhos a brilharem de inspiração. — Exato. Mika sorriu, encorajadora. — Conseguiste mesmo desbloquear-me isto. Como é que sabes estas coisas? Ela encolheu os ombros. — Qualquer pessoa podia ter-te dito isso. — Não, nãoqualquer pessoa. Mas obrigado. — Claro que sim. Fico sempre feliz por ajudar a explorar a arte para a obtenção de lucro — brincou ela. Depois percebeu que soava um tanto quanto maldoso. Ter-se-ia mantido afastada daquilo que amava há tanto tempo, que tinha ficado amarga? — Desculpa. Ele abanou a cabeça como se estivesse atordoado. — Não, não há problema. — Riu-se. — Almoço outra vez amanhã? — perguntou Hayato, acompanhando Mika à saída, e a amiga concordou. Depois do trabalho, ela parou pelo caminho para comprar mercearias. Deambulou pelos corredores e consultou o saldo da conta bancária. O almoço com Hayato tinha-lhe feito uma mossa considerável. Decidiu que tinha verba para algumas doses de ramen e talvez cereais Lucky Charms, mas dispensou o vinho. Uma vez em casa, telefonou a Penny. — Olá — respondeu Penny. — Como é que correu? Mika descalçou-se e desabotoou as calças. — Bem. É sobretudo folhas de cálculo e marcação de reuniões ao meu chefe. — O chefe de Mika era um homem simpático chamado Augustus, Gus para abreviar. Tinha o rosto redondo, a tez avermelhada e um sotaque do Sul, muito ténue, moldava-lhe o discurso. Tinha uma mulher que adorava e que lhe fazia o almoço todos os dias. E não mencionou nada sobre Mika ser japonesa, mas certificou-se de que pronunciava bem o nome dela. — Então — começou Penny. — Tenho algumas novidades. Recebi hoje uma carta de aceitação da Universidade de Portland. Mika parou. Tratava-se do programa a que Penny se tinha candidatado antes, quando a visitara. Mika lembrava-se, mas teve o cuidado de não perguntar. Não queria que Penny sentisse qualquer pressão. — Recebeste? — perguntou Mika, mantendo a voz leve, mas, ainda assim, injetando a quantidade certa de curiosidade. — Recebi — respondeu ela. — E acho que quero ir. — Isso é fantástico. — Mika tentou parecer casual. Fixe. — O teu pai não se ia importar se voltasses? — Thomas era um assunto que não surgia muito durante as conversas delas. Embora, Penny tranquilizara Mika, ele soubesse que elas andavam a falar outra vez. O que é que Thomas pensaria de Mika agora? Lembrou-se da noite da abertura da galeria, da garrafa de vinho entre eles. A forma como tinha falado com ela, a voz tão dura como veludo esmagado. Tem sido bom para ela. Para nós. Mika tinha perdido o respeito de Thomas, a sua confiança tão difícil de obter. E ele não parecia ser o tipo de homem que perdoava facilmente, sobretudo quando se tratava de Penny. Ao mesmo tempo, Mika admirava essa característica. Era algo que eles partilhavam. Mas detestava ser ela própria o alvo da sua desilusão, do seu escárnio. — Oh, sim — disse Penny com jactância. — Ele disse que a decisão era minha. Mas da mesma forma que disse «Vai em frente» quando eu quis tentar andar pela primeira vez na minha bicicleta sem rodinhas. Como se desejasse que eu não o fizesse, mas não houvesse maneira de me impedir. — Quando é que o programa começa? — perguntou Mika. — Na terceira semana de junho. Tenho algumas semanas pelo meio, quando as aulas acabarem aqui e antes de começarem lá. Provavelmente, vou um dia ou dois mais cedo para me instalar e talvez passar algum tempo contigo? — Sim. Claro. — Mika assinalou mentalmente os dias. Era no fim de maio. — Podíamos ir ao supermercado asiático. Talvez a outro jogo de roller derby. Podes conhecer os meus outros amigos, a Charlie e o Tuan. — Isso seria ótimo — disse Penny. Houve uma pausa antes de ela continuar. — Achas que… que eu podia conhecer a tua mãe e o teu pai? Um novo peso assentou sobre o peito de Mika. — Não sei, Penny. Vou ver com eles, mas não quero fazer promessas. Eu e a minha mãe… temos problemas. — A infelicidade de Hiromi pairara como uma nuvem negra sobre a maior parte da infância de Mika. Como é que ela podia empurrar Penny de livre vontade para debaixo dessa mesma sombra? — Não faz mal — disse Penny, e, pelo tom da voz, Mika conseguiu perceber que fazia. — Eu percebo. Quero dizer, ela mal olhou para mim na abertura da galeria. Mika mordeu o lábio. — Vou falar com a minha mãe. Deixa-me ver o que consigo fazer. — Está bem — disse Penny com a voz pastosa. — Não é nada de mais. Mas Mika percebeu que era. Jurou que iria fazer com que isso acontecesse. Penny não sabia? Mika era capaz de fazer qualquer coisa por ela. * * * Mika esperou dois dias inteiros antes de ligar à mãe. Era sexta- feira à noite quando se sentou no sofá e telefonou a Hiromi. Baixou o volume do televisor enquanto fazia a chamada. — Mi-chan — respondeu Hiromi. — Será que é a minha filha? Não tinha a certeza se ainda tinha uma. — Okāsan. — Mika esfregou a testa. — Como estás? A mãe falou de uma tempestade de vento e disse que o pai tinha comido alguma coisa que lhe fizera mal. Obviamente, não discutiram a abertura da galeria de arte nem o que acontecera naquela noite. No décimo ano, Mika tinha sido apanhada a roubar numa loja. Ela pegara numa peça de roupa da coleção de uma estrela pop branca que se vestia de quimono e delineava seus olhos com kohl — ela dizia que não era apropriação, mas sim reconhecimento. Mika podia não ter querido pertencer ao Japão, mas também não acreditava que o Japão pertencesse à cantora. De qualquer forma, Hiromi fora buscá-la ao gabinete dos seguranças. Toda a viagem de carro tinha sido feita em silêncio. Depois, também ao jantar naquela noite e durante os três dias seguintes. Essa era a raiz do verdadeiro problema delas. O silêncio. Intratável, do tipo que mata emocionalmente. Mika acomodou as costas no sofá, fechou os olhos e lembrou-se do que prometera a Penny. — Okāsan — interrompeu Mika. — Agora tenho um emprego e tenho estado outra vez a falar com a Penny. O outro lado da linha ficou silencioso. Mika verificou se a chamada não tinha ido abaixo. Não tinha. Voltou a pôr o telemóvel junto ao ouvido e falou. — Ela vai voltar à cidade em junho para participar num programa de atletismo. A Penny pratica corrida, já ganhou uma série de medalhas e prémios — disse Mika calorosamente. — E ela gostava de te conhecer. — Mika olhou para o teto reparado enquanto esperava que a mãe respondesse. — Tenho de ir — disse finalmente Hiromi. — O teu pai precisa de mim. Clique. Desligou e pronto. * * * A seu tempo, junho chegou. — Mal posso esperar. Mais duas semanas — cantarolou Penny alegremente ao telemóvel certa noite. — Tenho um monte de equipamento de corrida novo. E estou com uma miúda fantástica da Califórnia chamada Olive. — A Olive gosta de fruta? — perguntou Mika. Ela estava em casa. Andava a passar cada vez mais tempo em casa, ultimamente. A optar por refeições tranquilas em vez de ir jantar fora. Água em vez de vinho. Tudo para alimentar a sua conta poupança. Por uma vez, em muito tempo, Mika estava a planear o futuro. A viver para Penny. — Sim. Espera um bocadinho. — Houve um ligeiro rebuliço. E Penny falou a alguém ao pé de si. — Estou ao telemóvel, pai. — Thomas, portanto. Mika ouviu atentamente, mas não conseguiu perceber o que Thomas disse, só o som monótono da sua voz. — Estou a falar com a Mika. Sim, eu percebi. O dinheiro está na bancada. Vai, eu fico bem. Vou só arranjar uma pizza ou qualquer coisa assim. Desculpa. — Penny voltara. — Uma pessoa até fica a pensar que ele nunca me deixou sozinha em casa antes. — Mika não conseguiu deixar de imaginar Thomas de fato outra vez, a sair para um encontro. Com que tipo de mulher é que Thomas sairia? Seria Thomas algum tipo de super-herói viúvo doido por sexo, que se disfarçava de pai fantástico durante o dia? — Ele volta dentro de algumas horas. Tem um grande depoimento amanhã e teve de ir finalizar alguns detalhes, mas tenho a certeza de que me vai ligar três vezes. Uma vez para me dizer que está no escritório, depois para me dizer que está quase despachado no escritório e, finalmente, para me dizer que saiu do escritório e vem a caminho de casa. — Certo, então Thomas não era um super-herói viúvo doido por sexo. Estava só a trabalhar até tarde. — De qualquer forma, o que estava eu a dizer? Ah, sim… — continuou Penny, e Mika ouviu com prazer.No sábado, Mika estacionou o carro junto à casa dos pais e buzinou. A mãe abriu logo a porta da frente, seguida muito lentamente pelo pai de Mika. O céu estava azul brilhante. Não havia uma nuvem à vista. — Mi-chan — repreendeu Hiromi, descendo o caminho de cimento. Sacudiu um pano da loiça com a mão, como se isso pudesse abafar o barulho. Mika saiu do carro e contornou a viatura, com um papel nas mãos. Entregou-o bruscamente a Hiromi. — Toma. — O que é isto? — perguntou Hiromi, olhando para o pedaço de papel. — É um cheque. — Mika passara-o naquela manhã, no montante de cem dólares, cinco por cento do que devia aos pais do empréstimo que lhe tinham dado na igreja. — Dou-te mais assim que me pagarem outra vez. Hiromi pigarreou, mas enfiou o cheque no bolso do avental. — O que é isso? A mãe fez um gesto na direção da traseira do carro de Mika. As janelas de trás estavam todas descidas e, meio a sair para fora do banco de trás, estava a cabeça farfalhuda de um ácer. — Aquilo é uma árvore que vou plantar no nosso jardim. — No buraco de onde Hana tinha arrancado a árvore morta e subnutrida. — Apetece-me ver algo a crescer. — Sorriu para a mãe, para o dia, para a vida dela. — Tens de regá-lo todos os dias — avisou Hiromi. Mika revirou os olhos. — Eu sei. — Pelo menos, durante vinte minutos. — Muito bem. Mika contornou outra vez o carro. Nem pensar em deixar-se convencer a entrar em casa. Deixem-na fugir agora. Por favor. Hiromi esfregou uma folha entre o indicador e o polegar. — Esta aqui tem manchas brancas. Pode ser um fungo. — Está tudo bem. — Mika abriu a porta do carro e sentou-se no banco do condutor. Ligou o motor, e Hiromi bateu à janela. Mika baixou o vidro. Tinha saudades de conduzir o carro de Charlie, com vidros automáticos e ar condicionado. Talvez dali a um ano ou dois conseguisse ter dinheiro para voltar a comprar um carro usado. Hiromi espreitou para dentro do carro, depois para Mika. — Eu e o teu pai queremos conhecê-la, a bebé — disse ela, em voz baixa, como se o assunto fosse tabu. Mika olhou para a mãe por um momento, confusa. Abriu e fechou a boca. Penny, ela estava a falar de Penny. Mas Penny já não era um bebé. Aquele bebé, aquele que Mika tinha dado, tinha desaparecido. Afastou o pensamento, sem se sentir preparada para o analisar. — Querem conhecer a Penny? Hiromi acenou com a cabeça uma vez. — Podes trazê-la para jantar cá. — Ou podemos ir a um restaurante — sugeriu Mika. Ela não ia a casa dos pais há anos. — Não, demasiado caro — disse Hiromi, com caráter definitivo. — Trá-la aqui. Eu cozinho. — Está bem. — Mika só podia concordar. E fazia-o por Penny. Penny, que queria conhecer os avós biológicos. Penny, que queria ver o lugar onde Mika crescera. — Eu digo-lhe. Ela vai ficar mesmo feliz. Hiromi não sorriu. — Não te esqueças de regar a árvore. U CAPÍTULO 19 ma semana antes de Penny chegar, Thomas mandou uma mensagem a Mika. Começou com um Olá. Mika estava no trabalho e olhou para o telemóvel pousado ao lado do teclado. Perscrutou o escritório. Estavam todos ocupados, a arquivar ou a martelar suavemente nos seus teclados. Claro, eles não faziam ideia de que o pai adotivo da filha de Mika estava a mandar-lhe mensagens ou que os dois não falavam desde a abertura da galeria, onde Hiromi tinha derrubado o mundo em redor dos ouvidos de Mika. Olá, respondeu ela, curvando-se, escondendo-se no seu cubículo. É o Thomas, escreveu ele. Ela digitou: Sim. Eu sei. Três pontos dentro de um balão cinzento apareceram no ecrã. Certo. Desculpa. O voo da Penny chega no domingo. Podes ir buscá-la? Preferia que ela não tivesse de apanhar um Uber ou um táxi sozinha, disse ele. Mika endireitou-se. Já estava a contar com isso. Penny e Mika haviam combinado: Mika iria buscar Penny ao aeroporto, depois iria levá-la aos dormitórios da Universidade de Portland e ajudá- la-ia a instalar-se. Se Penny se sentisse disposta a isso, jantariam nalgum lugar e passariam algum tempo juntas. Ela nunca andou de avião sozinha. Ofereci-me para ir com ela. Ela recusou. Depois acrescentou: O «não» dela foi rápido e enfático. Mika imaginou-o no seu gabinete. Sentado atrás de uma enorme secretária de mogno. Fato e gravata. Sobrolho firmemente franzido. Será que ele a odiava? Gus, o chefe de Mika, passou pelo cubículo dela. Mika deixou cair o telemóvel e virou-se de frente para o computador, colocando as mãos no teclado. Acenou a Gus. — Não te mates a trabalhar — disse ele com um sorriso genuíno. Ela sorriu, soltou uma risada falsa e esperou até que ele se fosse, antes de responder a Thomas. Tenho tudo controlado. Vinte minutos depois, ele respondeu. Tens a certeza? Não te vai dar trabalho? A sério, não há problema. Temos a tarde toda planeada. Prostitutas, drogas, o pacote completo. Mika mordeu o lábio. Era uma piada. Muito cedo? Passaram-se mais alguns minutos e Mika regressou à tabela em que estava a trabalhar. Thomas mandou uma mensagem. Demasiado cedo. Ele odiava-a, portanto. Odiava-a definitivamente. Por favor, não te preocupes, respondeu Mika. Ela está em boas mãos. Prometo. Diz-lhe que me mande uma mensagem quando chegar, foi tudo o que ele respondeu. * * * Nesse domingo, Mika encostou junto ao terminal de chegadas do aeroporto. Penny estava de pé no passeio, a acenar-lhe com uma mão, a outra a agarrar a pega de uma mala bordeaux. Desta vez, o cabelo de Penny estava puxado para trás a formar um rabo de cavalo reluzente. Mika fez abrir o porta-bagagens e saiu do carro. Disseram ambas olá ao mesmo tempo e abraçaram-se, caindo facilmente nos braços uma da outra. Mika deixou-se ficar agarrada por um segundo a mais. Depois, enfiou a mala de Penny na bagageira e entraram no Corolla enferrujado. Penny prendeu o cinto de segurança. Ou não reparou no vidro do para-brisas rachado ou na fita adesiva que segurava o espelho retrovisor, ou então estava a ignorar isso educadamente. — Ufa. Quase não conseguia. O meu pai deixou-me lá esta manhã, e juro que ele ia começar a chorar. Tenho quase a certeza de que ele estava a considerar raptar-me. Pode-se raptar a própria filha? Mika olhou para o espelho retrovisor do seu lado. — Ele já me enviou várias mensagens. Uma vez, para lembrar Mika de quando chegava o voo de Penny, Ela chega às 12h15, e uma hora depois: O voo da Penny está atrasado. Mika respondera com palavras encorajadoras, na esperança de o acalmar. Ela tinha recuperado a confiança de Penny, mas a de Thomas era mais difícil de conquistar. Era justo. Eu sei. Não te preocupes. Já estou no aeroporto, no estacionamento das chegadas, escreveu ela; no mesmo sítio onde tinha bloqueado e deixado a sua mensagem de voz balbuciante. Vou estar aqui quando a Penny estiver despachada. — Eu sei. Ele é do pior. Mandei-lhe uma mensagem assim que as rodas tocaram no chão — disse Penny, e depois abanou-se com a mão. — Está calor. Podes aumentar o ar condicionado? — Claro — disse Mika. — Abre as janelas. Penny ficou ainda mais vermelha e baixou completamente o vidro da janela. Saíram da zona do aeroporto, passando por alguns hotéis e uma loja de móveis sueca. Mika observou Penny, com os olhos a saltarem de um lado para o outro entre ela e a estrada. Penny puxou a pala para baixo, deixando metade do rosto na sombra. O vento no cabelo e o cheiro do verão fizeram Mika pensar em si mesma quando era adolescente. Quando vadiava pelas ruas sem rumo ou ia ao primeiro Starbucks aberto vinte e quatro horas com Hana. À procura de problemas, disse Hiromi uma vez. Mas, na verdade, elas só estavam à procura, ponto final. Penny aplicou um batom que retirou da mala. Mika não se lembrava de ter visto a filha a usar maquilhagem antes. Mika comprimiu os lábios, mas não disse nada. Desceram a Eighty- Second e entraram no lado norte da cidade. A Universidade de Portland situava-se no bairro de St. Johns, numa falésia na margem norte com vista para o rio Willamette. O campus podia pertencer a algum lugar na costa leste, com os seus relvados verdes, os edifícios de tijolo vermelho e os remates brancos. «Umaescola irmã de Notre-Dame», ostentava uma placa na entrada. Penny sacou de uma pilha de papéis da mochila, um deles com um mapa. — Diz que temos de ir a Corrado Hall para fazer o check-in e tratar do quarto. Apontou para a direita, e Mika dirigiu o carro por uma pequena estrada. Encontraram um lugar para estacionar perto do dormitório. Mika abriu o porta-bagagens do carro e tirou a mala de Penny. — Toma, isto também é para ti. Mergulhou no banco de trás e tirou uma almofada nova e um conjunto de lençóis duplos que tinha comprado e lavado. O padrão tinha pequenos crisântemos amarelos. — Para mim? — Penny semicerrou os olhos por causa do sol da tarde. — Sim. Eu sei que eles disseram que providenciavam tudo, mas pensei que podias gostar de uns lençóis melhorzinhos e de uma almofada nova. A roupa de cama é muito importante — disse Mika, como se estivesse a transmitir sabedoria antiga. Penny aceitou os lençóis e a almofada, fitando-os. — Obrigada. Isso é muito querido. Mas podes esbanjar dinheiro assim? — Ela apressou-se a explicar. — Quero dizer, o teu carro… — Chiu. — Mika deu uma palmadinha no carro junto a uma pequena amolgadela enferrujada. — Vais ferir os sentimentos dele. Se estás a perguntar se comprei lençóis e uma almofada em vez de comer esta noite, a resposta é não. Tenho dinheiro para isso. Juro. — Dois dias antes, Mika até tinha dado outro cheque aos pais. Hiromi pegara no pedaço de papel, olhando-o com desconfiança, como se estivesse a antecipar a sua combustão espontânea. Depois, enfiara-o no bolso do avental e perguntara pela bebé e quando é que Mika a ia levar lá. Tinham marcado o jantar para a próxima semana. Penny ficou entusiasmada com a perspetiva de conhecer os seus avós biológicos. Mika nem por isso. Longe disso. Penny sorriu e abraçou os lençóis junto ao peito. Mika trancou o carro e voltou para junto de Penny. — Pronta? Então, estás bem?! — perguntou, vendo Penny a morder o lábio inferior. — Sim. É que… — Penny abraçou o conjunto de lençóis com mais força, como que a juntar um cobertor à sua volta antes de uma tempestade. — Vão cá estar atletas vindos de todo o país. São todos tão bons… Foi por isso que eles, tipo, entraram no programa. A vulnerabilidade gritante agitou algo dentro de Mika. Ela agarrou Penny pelos ombros. — Vais ser fantástica — disse ela. Se ao menos existisse um poder como a confiança de uma mãe nos filhos, o mundo poderia ser diferente. — Diz tu. Diz: «Vou ser fantástica.» — Vou ser fantástica — balbuciou Penny, rosada de vergonha. — O que é que disseste? — Mika abanou Penny, falou mais alto. Os alunos fizeram uma pausa nas suas andanças para olharem especados: a asiática maluca e a sua sósia em miniatura. — Não consigo ouvir pessoas que não acreditam em si mesmas — disse ela quase a gritar. — Vou ser fantástica! — repetiu Penny quase a berrar. Mika sorriu e soltou-a. — Assim está melhor. Caminharam juntas até ao dormitório. Na entrada, numa faixa dourada e roxa lia-se: BEM-VINDOS À UNIVERSIDADE DE PORTLAND. Uma rapariga com longos cabelos encaracolados recebeu-as. — Penelope Calvin. Vais ficar no quarto 205, mesmo ao cimo das escadas e à esquerda. Entregou-lhes um conjunto de chaves e fez sinal à próxima pessoa da fila. Entre outras famílias, subiram até ao segundo andar e encontraram o quarto de Penny. O corredor estava cheio de pessoas, raparigas adolescentes e rapazes, reparou Mika, a instalarem-se à vontade nos quartos. — Não chegaste a mencionar que isto seria uma coabitação mista — disse Mika, a olhar para um quarto onde um rapaz com olhos afundados e cabelo de estrela pop infantil espalhava um edredão em xadrez na cama enquanto a mãe abastecia de bebidas um minibar. — Não disse? — Penny inseriu a chave na fechadura, girou-a e entrou no quarto do dormitório. — Tem piada. Pensei que tinha dito. — Garanto-te que não disseste. Mika arrastou a mala de Penny para o quarto. Havia uma única janela, e de cada lado dela encontravam-se duas camas altas com escadas, uma secretária debaixo de cada uma, e uma parede de armários. Havia uma casa de banho partilhada no lado de fora, no corredor, mas o quarto tinha um lavatório e um pequeno espelho por cima. Tendo tudo em consideração, ficava do lado mais agradável dos dormitórios. O dormitório de Mika ficara num edifício mais antigo e ligeiramente maior do que uma caixa de sapatos, mas parecera-lhe enorme, tão cheio de potencial. Penny arrastou a mala para o centro do quarto e abriu- a, roupas a saltarem de lá de dentro, a maioria equipamento de corrida, camisolas justas sem mangas e calções curtos. Em cima estava a t-shirt de roller derby que Mika lhe tinha comprado. Penny sacudiu-a, depois voltou a dobrá-la cuidadosamente, guardando-a numa das gavetas do armário. A colega de quarto de Penny chegou, uma ruiva cheia de sardas cujo nome, Olive, lhe assentava perfeitamente e que parecia ser a encarnação humana de um ponto de exclamação, com o seu corpo longo e tenso e cheio de energia. — Oh, meu Deus! Vamos divertir-nos tanto! Que horário de treino de verão fizeste no ano passado?! Às segundas-feiras, fazia um fartlek de doze quilómetros, depois, às terças, fazia uma corrida ligeira de oito a onze quilómetros com oitenta metros em passada larga, e às quartas, fiz subida repetida a colinas… Mika não entendia nada daquilo, mas Penny acenava como um cachorrinho ansioso. Ela estava mais ou menos a ouvir enquanto enfiava os lençóis em volta do colchão granuloso de Penny. — Olá. — O rapaz com cabelo de estrela pop encostou-se à porta, de mãos meio enfiadas nos bolsos. Estilo. Só estilo. Mika quase revirou os olhos. — Devon. Ele levantou o queixo. — Penny — disse Penny, ajeitando-se. Olive apresentou-se da mesma maneira. — Ouçam, o resto da malta vai jantar e jogar Frisbee a seguir. Vocês as duas querem vir? — perguntou Devon. Penny olhou para Mika com incerteza. — Bem, eu tinha planos… Mika levantou as mãos, a sorrir por entre uma explosão de desilusão. — Não te preocupes. Podemos pôr a conversa em dia mais tarde. — A sério, não te importas? — Claro que não. Mika forçou um sorriso, enterrando as suas emoções sob uma fachada feliz. — Fixe — disse Devon. — Encontramo-nos lá fora. — Obrigada. — Penny atirou os braços à volta de Mika. — Eu ligo-te. Depois, ela e Olive começaram a conversar sobre passadas, e Mika esperou alguns segundos, observando as duas raparigas com uma espécie de fascínio triste, saindo depois disso. A porta ficou entreaberta e Mika ouviu Olive dizer a Penny quando ela saiu: — Aquela era, tipo, a tua mãe? Ela é mesmo bonita. — Mais ou menos. É a minha mãe biológica. — Percebi. Tens camadas — disse Olive. — Podes contar-me ao jantar. Mika saiu e vagueou pelo campus durante alguns minutos, sentindo-se como uma senhora idosa estranha, apesar de ter apenas 35 anos. Pensou em si mesma antes e depois, e uma pontada afiada de saudade atravessou-lhe o peito. O quanto ela tinha mudado, mas que queria que ficasse na mesma. Sentou-se num banco. Uma grande extensão verde de relva estendia-se à sua frente. «Mika.» Ouviu o seu nome passar à deriva na brisa do verão. Pestanejou, pensando se poderia ser real. Não, apenas uma memória. Apareceu à sua frente como um holograma. Estava na primavera do seu primeiro ano, e ainda conseguia esconder a barriga debaixo de camisolas de tamanho exagerado. Mas tinha começado a sentir o peso extra, a pressão de Penny contra as costelas, e sentara-se num murete de cimento para recuperar o fôlego. «Mika», voltou a voz a chamar, desta vez mais perto. Ela olhou para cima. Era Marcus. «Não tinha a certeza se eras tu.» Ele parou à frente dela, uma mala a tiracolo em frente ao peito, as mãos salpicadas de tinta. «Por onde tens andado? Deixaste de ir às minhas aulas.» Ela olhou fixamente para Marcus, muda. O sol brilhava atrás dele, traçava um carreiro ao longo do maxilar. Fê-la lembrar-se do autorretrato de Rembrandt. «Está tudo bem? Não encontraste outro mentor, pois não? Porque se estás a fazer Pintura IV com o Collins… Mika arrastou amochila para o colo e envolveu-a com os braços. «Eu não… Eu não estou…», balbuciou. Depois sentiu-o. A pressão fantasma da mão de Peter contra a sua boca. O cheiro a terebintina. Não conseguia falar. O coração martelou-lhe o peito, ameaçou saltar de lá a bater. Penny deu um pontapé. Ela pôs-se de pé, quase a bater em Marcus, que se tinha aproximado mais. «Deixei de pintar», disse, afastando-se dele. «Não sou suficientemente boa…» «Isso não é verdade. Tens o maior talento em potência que eu já vi.» Ela ficou especada a olhar para os pés. Para os seus ténis lamacentos. Tinha deitado fora a roupa que levara vestida para a festa. Jurou não voltar a usar saltos, saias ou maquilhagem. Já não queria ser bonita. Tinha medo de o ser. Ser bonita era um convite. Não, corrigiu. Ser mulher era um convite. Marcus aproximou-se. «Tenho de ir», murmurou Mika, antes de sair a correr. Correu pela manhã azul, de volta ao seu quarto no dormitório. Trancou a porta e deixou-se cair contra ela; sentia-se como se o teto estivesse a deslizar para baixo, como se as paredes estivessem apertadas. As mãos tremiam-lhe, o coração batia acelerado, a respiração mais rápida ainda. Não sabia dizer quanto tempo durara o episódio. Só se lembrava de acordar mais tarde na cama, grogue e faminta. Fora o seu primeiro ataque de pânico. Agora, Mika deixou-se ficar sentada durante mais algum tempo, permitindo que o holograma se desvanecesse. Aqueles meses após a violação fizeram-na sentir-se como se estivesse fora de si. Como se o seu espírito se tivesse desprendido do corpo e andasse a flutuar à sua volta. A maioria das suas memórias não provinha dos seus próprios olhos, mas de uma espécie de espectro que espreitava de cima. Depois de algum tempo, Mika conduziu de volta a casa e aplicou uma das máscaras de rosto que tinha planeado aplicar nela e em Penny nessa noite. Quando começou a queimar, retirou-a e tirou uma fotografia do seu rosto vermelho, enviando-a a Hana. Está assim tão mau? O rosto de Mika já tinha começado a arrefecer quando Hana respondeu. Já viste O Homem da Máscara de Ferro? Mika sorriu, e o seu telemóvel tocou, com o nome de Hana a surgir no ecrã. — Olá — atendeu Mika. Sentou-se no sofá e encostou os joelhos no peito, rodeando-os com um braço. — A Penny não está por cá? — perguntou Hana. Estava tudo calmo onde ela se encontrava. — Pensei que vocês as duas iam jantar e passar o serão juntas. Lembro-me de me teres falado de grandes planos para um restaurante em que cortam a carne à nossa frente e uma noite de spa. Mika brincou com os dedos dos pés. — Ela trocou-me pela colega de quarto que parece uma golden retriever. Prometeu que falávamos mais tarde. Mika não tinha a certeza do que sentia em relação a isso. Meses antes, ela fora uma estrela no universo de Penny. — Uf — disse Hana. — Então, foste destronada? — Receio bem que sim — disse Mika, sorumbática. Talvez tenha sido assim que Thomas se sentiu. Festa da autocomiseração, mesa para um. Mika sentia vontade de chorar, mas talvez isso fizesse a cara arder-lhe ainda mais. — Tenho uma notícia que talvez te possa animar. — Dava-me jeito alguma notícia para me animar. — Os Pearl Jam vão tocar em Seattle daqui a duas semanas, na quinta-feira, e depois vão partir para o fim de semana. Vou sair com a Josephine na sexta à noite, mas reservei o sábado à noite para a minha miúda principal. Prepara-te para tomares algumas más decisões. Mika esticou as pernas e deitou-se no sofá. Reviu mentalmente a sua agenda. Tinha reservado o fim de semana seguinte para Penny: iam jantar a casa dos pais de Mika. Thomas iria estar na cidade no fim de semana posterior a esse, portanto Penny provavelmente ficaria presa a ele o dia todo no sábado. E quando ele se fosse embora no domingo, Penny partiria de autocarro com a equipa dela para correr em dunas na costa. Dunas. Isso soava tão absurdo a Mika como se alguém sugerisse que Russell Crowe repetisse o seu papel n’Os Miseráveis. — Olha que isso é perfeito e soa tão bem. Mal posso esperar. Devíamos convidar o Hayato e a Charlie, talvez ir a algumas discotecas. — Sem dúvida. Conversaram durante mais algum tempo. Sobretudo sobre como as coisas estavam a correr com Josephine. Parecia estar a ficar sério. Depois disso, o telemóvel dela deu sinal de uma mensagem a entrar. Está tudo bem com a Penny? Era Thomas. Ela instalou-se no dormitório e conheceu a colega de quarto, respondeu Mika. Ela mandou-me uma mensagem, mas foi só um polegar para cima, disse Thomas. Perante isso, Mika riu-se, mas não respondeu. Pensou em Thomas. Em ser pai ou mãe. Em como, a dada altura, mãe e bebé eram inseparáveis. Mika sentira-se assim quando carregou Penny no ventre, apesar de saber que não ia ficar com ela. Tinha lido que um bebé não sabe onde ele acaba e a sua mãe começa. Para o bebé, os dois são um só — como o sal e o mar. N CAPÍTULO 20 a segunda-feira de manhã, no trabalho, Gus, o chefe de Mika, enfiou a cabeça no cubículo dela. — Truz-truz — disse. — O que achas de trabalhar mais umas horas esta semana? Tenho de acabar de montar um modelo de colaboração para um dos nossos investidores. A Shelly estava a trabalhar nisso, mas teve de marcar férias para uma coisa de família, foi-me passada a bola e dava-me jeito uma ajuda extra! — Ele falava entusiasmado e levantava as mãos para enfatizar o seu ponto de vista. Mika afastou o telemóvel e endireitou-se. — Claro. Não há problema. Dava-lhe jeito ter qualquer coisa com que se distrair. Mika sentia-se um pouco sozinha sem Hana. Concentrava-se demasiado em quando ia voltar a ver Penny, na sexta-feira, quando fossem jantar a casa dos pais de Mika — pensar nisso, só por si, já era suficiente para lhe dar cabo dos nervos. Como é que se sentiria ao entrar novamente na casa da sua infância? Há quanto tempo não entrava lá? Há pelo menos uma década. E, mais importante, como é que Hiromi iria tratar Penny? Mika pensou em Hiromi à espera. Jurou não deixar a filha ser cortada pelas arestas afiadas da mãe. — Ótimo! Deve estar tudo no servidor partilhado. Vai lá, dá uma olhada e encontramo-nos depois do almoço para revermos. Gus foi-se embora, e um leve sorriso surgiu no canto da boca de Mika. Atirou-se ao trabalho. Até chegou mais cedo na terça e na quarta-feira para dar um avanço. Mas conseguiu ir almoçar com Hayato e, juntos, perseguiram a pegada digital de Seth, o novo tipo com quem ele andava a sair. A sexta-feira passou num redemoinho. Às 15h05, Mika enviou um e-mail a Gus a dizer que todos os documentos completos estavam prontos para ele rever. Ele disparou uma resposta imediata: Bom trabalho, tira o resto do dia de folga. Mereces. Então, Mika foi mais cedo buscar Penny ao campus. Esperava ficar a preguiçar junto ao passeio, talvez mandar uma mensagem a Hana a dizer que mal podia esperar para a ver no próximo fim de semana. Não esperava ver Penny no marmelanço — Mika não tinha certeza se já tinha usado a palavra marmelanço antes, mas estava a usá-la agora e não podia estar mais surpreendida ou infeliz com isso — com Devon, o miúdo com cabelo de estrela pop. Os dois estavam muito próximos um do outro. As mãos dele nas ancas dela. As mãos de Penny no… peito dele? Mika não podia acreditar. E a sua primeira reação foi fazê-la parar. Pressionou a buzina. Os peões pararam onde estavam. Penny afastou-se de Devon, e ele também teve o bom senso de se afastar, passando uma mão embaraçada pelo cabelo. Penny murmurou algo a Devon e baixou-se para pegar na mochila antes de ir para o carro. — Olá — disse Mika quando Penny entrou. — Olá. Vieste mais cedo. — Penny caiu no assento e cobriu com as mãos o rosto, que lhe ardia. — Não leves a mal, mas isso foi súper embaraçoso. — Desculpa lá. A mão escorregou-me — disse Mika um pouco rápido demais. — Carro velho, buzina sensível, sabes? — Na verdade, a buzina era muito difícil de fazer soar. Mika tinha entornado qualquer coisa no volante sabe-se lá há quanto tempo e, desde então, ela estava presa. Era bom saber que ainda funcionava. Mika afastou-se, mantendo Devondebaixo de olho no espelho retrovisor. — Então, hum… amigo novo? Já fora do campus, Penny remexeu-se no banco para se sentar direita. Hesitou por um momento. — Ele é mais ou menos o meu namorado. O semáforo passou de amarelo a vermelho, e Mika travou. — Namorado? Isto é um desenvolvimento recente? — Tão rápido, pensou Mika. Mas quem era ela para dizer alguma coisa? Ela tinha ido viver com Leif depois de dormir com ele durante apenas um mês. Um sorriso esvoaçou pelo rosto de Penny. Ela sentou-se em cima das mãos. — No fim de semana passado tornámo-lo oficial. Andamos a sair. Mika não estava familiarizada com os rituais de encontros de adolescentes, mas sabia o suficiente para saber que «sair» significava algo sério. Pelo menos, significara quando ela tinha 16 anos. Olhou de relance para Penny. — Isso é coisa séria. A luz ficou verde, e Mika acelerou para entrar na estrada principal. — Por acaso, até nem é — disse Penny, mostrando-se descontraída. — Olha, podemos manter isto em segredo? Só entre nós? — Não queres que conte ao teu pai, queres tu dizer — esclareceu Mika enquanto atravessavam uma ponte. Penny anuiu, a confirmar. — Ele vai-se passar porque eu e o Devon estamos hospedados no mesmo dormitório. — Não sei… — a voz de Mika desvaneceu-se. Ela queria criar um espaço seguro para Penny. E Devon não parecia assim tão mau. Uma paixoneta, era como Mika lhe chamaria. Ou acabava dentro de algumas semanas, ou não acabava. Qual seria o mal? Além disso, ela raramente falava com Thomas. Se ele não perguntasse, Mika não iria trazer o assunto à baila. Uma mentira por omissão é considerada uma mentira? Não tinha a certeza. Tinha chumbado a Filosofia. — Está bem, não lhe vou contar nada. — Mika perguntava-se se Caroline e Penny tinham segredos. Se Caroline alguma vez tinha ido ver Penny à escola mais cedo e a levara a comer um gelado. Não contes ao teu pai, podia ela ter dito. Isto vai ser só entre meninas. Uma parte de Mika ansiava pelo mesmo. Por essa ligação. — Obrigada — disse Penny. — Agradeço-te por confiares em mim. — Mika quase lhe disse: Eu confio em ti, no mundo é que não. Mas conteve o impulso. — Então, fala-me dos teus pais. Alguma coisa que eu deva saber antes de os conhecer? — perguntou Penny. Estavam agora fora de Portland, nos subúrbios. Passaram o mercado coreano que não pedia identificação para verificar as idades. O Starbucks que ficava aberto vinte e quatro horas, onde Mika e Hana se juntaram para chorar depois da morte de Kurt Cobain. A escola secundária onde Mika costumava vadiar com um cigarro numa mão e os sonhos noutra. Sentava-se nas bancadas do pavilhão e desejava poder estar noutro lugar. Inspirava e acreditava que estava destinada a grandes coisas. Que conseguiria fazer grandes coisas. — Estou nervosa — acrescentou Penny enquanto Mika virava para uma rua lateral. Algumas crianças brincavam na estrada com uma mangueira. — Não fiques nervosa — disse Mika, estacionando em frente à casa dos pais. Ao ver as telhas verde-musgo, sentiu uma dor repentina e aguda, um dedo a espetar-se naquela ferida aberta que era a sua infância. — Eles não são muito dados a abraços. Se eles se curvarem ou inclinarem a cabeça, faz o mesmo em resposta. — Amo-te nunca fora dito em casa de Mika. O amor estava nas ações. No trabalho que proporcionava um sustento. Na confeção de refeições caseiras. Na obediência aos pais. — E se a minha mãe perguntar se queres beber alguma coisa, não bebas a água engarrafada. Não é água nova. Ela enche constantemente garrafas velhas e volta a pô-las no frigorífico. — Hiromi não lavava as garrafas entre as recargas. — Na verdade, qualquer coisa engarrafada, verifica sempre se já foi aberta. Uma vez, ela comprou refrigerante de limão de marca branca para o meu aniversário e usou-o para encher uma garrafa de litro velha de Sprite. — Está bem — disse Penny cautelosamente, olhando para a antena parabólica gigante na lateral da casa. Avançaram ambas devagar até à porta e pararam novamente diante dela. Mika viu as cortinas a mexer. A mãe estava a espreitar. — Eles alguma vez perguntaram por mim? Mika observou o rosto ansioso de Penny. Ela não queria dizer uma mentira, mas sabia que a verdade iria magoá-la. Não se decidiu por nenhuma delas. — Na verdade, nunca lhes dei qualquer informação. Falar de ti era difícil para mim. — Mika fez uma pausa. — Preparada? Penny baixou o queixo. — Preparada. Mika pousou a mão na maçaneta e virou-se para Penny. — Uma última coisa. Lembra-te de que podemos sair quando quisermos. Basta dizeres-me, e vamos embora daqui. Terás sempre o controlo da situação. Estaria a dizer aquelas palavras por si ou por Penny? — Percebido — disse Penny. Mika abriu a porta. Shige e Hiromi estavam à espera do outro lado. Mika tirou os sapatos no genkan improvisado, e Penny fez o mesmo. Mika deu um salto atrás no tempo. Até ao momento em que Shige comprou a casa. Ela estava de mão dada com a mãe enquanto a visitavam, a tabuleta a dizer VENDE-SE ainda cravada no relvado. O nariz de Hiromi erguia-se cada vez mais alto a cada quarto para onde espreitavam. Estava tudo errado. As portas abriam-se e fechavam-se em vez de deslizarem. Hiromi não gostara da combinação de banheira e duche no quarto principal, nem da despensa na cozinha, nem que o jardim estivesse virado para norte — assim, a roupa lavada nunca secaria. Agora, Mika sorria desconfortavelmente, a pensar se Penny conseguia sentir a forma como as paredes pulsavam com a infelicidade de Hiromi. — Okāsan. Otōsan. — Mãe, pai, disse Mika. — Esta é a Penny. — Esteve quase a acrescentar a minha filha, mas parou mesmo a tempo. Hiromi e Shige curvaram a cabeça, e Penny respondeu da mesma forma. — É um prazer conhecer-vos — disse ela. Silêncio, então, enquanto olharam todos uns para os outros. A mãe de Mika tinha-se arranjado. Estava vestida com as suas roupas mais bonitas, um vestido ligeiramente ajustado ao corpo, com duas pregas na cintura. E o pai de Mika estava de fato. Ambos tinham calçado chinelos de casa. O tapete de pelo comprido fora aspirado recentemente e a mesa estava posta com uma dúzia de pratos elaborados — tofu de sésamo, arroz moldado em bolas perfeitas, espargos em dashi — todos eles pratos preferidos de Mika. Hiromi devia ter passado horas a cozinhar. A mãe falou primeiro. Abriu as mãos. — A Mi-chan diz que tu atleta. — Tu és atleta — Mika corrigiu a mãe. — Foi o que eu disse — disse Hiromi. — Shige, não foi isso que eu disse? — Eu sou atleta — interveio Penny. Hiromi fixou um olhar de avaliação em Penny. — Estou aqui a fazer um programa de verão de atletismo na Universidade de Portland. A minha escola é uma escola da primeira divisão. Entrei para a equipa no meu segundo ano. — E és rápida? — perguntou Shige, com um brilho de aprovação nos olhos. Penny acenou com a cabeça. — Rápida e consistente, isso é que é importante. — Deves ser boa, para estares num programa na Universidade de Portland. Li que é uma escola irmã de Notre-Dame — disse Hiromi, impressionada. — Esforço-me por isso — disse Penny, envaidecida. Silêncio novamente. Podiam ser estranhos num autocarro, o interior a encher-se com ar reciclado. — Tens fome? — perguntou Hiromi, por fim. — Claro — respondeu Penny bruscamente. — Quero dizer, eu já comia, ou podemos esperar. Como preferirem. — Vamos comer, vamos comer — disse Shige, como se ele estivesse por trás da refeição toda. Dirigiram-se todos para a mesa. Penny, Mika e Shige sentaram-se. — Queres alguma coisa para beber? Água, ocha? — perguntou Hiromi, a olhar para Penny como se fosse uma espécie de curiosidade. — Pode ser água — disse Penny. Tirou o guardanapo da mesa e estendeu-o no colo. — Da torneira — esclareceu Mika. Penny sorriu e Mika devolveu-lhe o sorriso. Hiromi encheu os copos e trouxe-os para a mesa. — Eu fiz todos os pratos preferidos da Mika de quando ela era pequena — disse Hiromi, deslizando para se sentar numa cadeira. Automaticamente, Mika, Shige e Hiromi apertaram as mãos e disseram: — Itadakimasu. Shige pegou nos seus hashie começou a colocar um pouco de teba shichimi, frango com sete especiarias, no seu prato. — Vá lá — disse Hiromi. — Experimenta os espargos; fui eu mesmo que fiz o dashi. Penny olhou para o colo. Hiromi tinha posto a mesa apenas com hashi. Mika levantou-se da mesa e abriu a gaveta dos talheres na cozinha, sacando um par de garfos. Entregou um a Penny e depois ficou com um para si. — Tu nunca usas hashi? — disse Hiromi como se tivesse sido insultada. — Okāsan — disse Mika em tom de aviso. Interrogava-se se a mãe a culpava por Penny não ser suficientemente japonesa. — Eu mostro-te. Foi assim que ensinei a Mi-chan. — Shige aproximou-se de Penny. — Vá lá — disse ele, com a sua voz rica, quente e persuasiva. Depois de um brevíssimo instante, Penny pegou nos hashi. A mente de Mika tropeçou, tombou num passado esquecido. Quando ainda viviam no Japão. Em Daito, uma pequena cidade na prefeitura de Osaka. Ela estava vestida com uma camisola de malha amarela, ajoelhada numa mesa baixa. Tinha uma tigela de edamame à sua frente, e estava a praticar com os hashi. Os pais encontravam-se na outra divisão. A discutir. Mika pôs-se de pé e aproximou-se sorrateiramente. Os pés dela, do lado de fora da lâmina amarela da luz que passava através da porta entreaberta. Eu não quero viver na América, dissera a mãe, em voz grossa e suplicante. Estava vestida com um quimono completo. Uma vez por mês, Hiromi encontrava-se com uma amiga, uma colega maiko, para almoçarem em Quioto. As duas arranjavam-se com os seus melhores quimonos e levavam os filhos. Mika lembrava-se de brincar com um menino no chão do restaurante, os pés da mãe calçados com tabi e zōri. Quando chegaram a casa, encontraram lá Shige, mais cedo do que seria suposto. De cabeça baixa. «Tens de arranjar outro emprego noutra empresa», insistiu Hiromi, como se fosse algo definitivo. O pai dela agitou uma mão furiosa no ar. Também ele era mais novo. As linhas no rosto não estavam tão profundamente vincadas. «Não há mais emprego nenhum. Esta é a nossa única opção. Vamos mudar-nos. Fim da discussão.» Mika encostou-se à parede. A estrutura da casa era de aço. Tinha sido construída para suportar um terremoto ou uma mulher zangada com o marido. «O que é que vou fazer lá?», perguntou Hiromi diretamente. «Vais fazer o teu trabalho. Vais ser uma boa esposa para mim e uma boa mãe para a nossa filha», respondeu Shige. E Hiromi calou-se. Não tinha permissão cultural para desobedecer ao marido. — Estás a ver, nunca se é velho demais para aprender algo novo — dizia Hiromi nesse momento, e Mika percebeu que o comentário era dirigido a ela. Nunca falhava. Hiromi conseguia sempre fazer Mika sentir-se pequena, tão insignificante como um espirro. Comeram, com Penny a usar os hashi com todo o requinte de uma corça em cima de gelo. Mas ela não desistiu e Hiromi observou-a sem pestanejar, como se tentasse absorvê-la. Na sala de estar, um telemóvel tocava e tocava repetidamente. — Shige — Hiromi repreendeu-o. Shige foi buscar o telemóvel. — Passo o dia inteiro a receber chamadas de telemarketing. Querem que eu compre isto ou aquilo. O pai pôs o telemóvel no silêncio. — Podem bloquear as chamadas — disse Penny. — Veja. Shige entregou o telemóvel e Penny pressionou alguns botões. — Também podem adicionar o vosso número a um registo para não receberem chamadas — disse ela, devolvendo o telemóvel a Shige. — És esperta. — Hiromi sorriu e apertou o antebraço de Shige. Depois do jantar, Mika fez uma pausa no corredor forrado a madeira, observando Penny a vaguear pela casa, com o desejo de abrir as portas que Hiromi mantinha diligentemente fechadas a queimar-lhe os olhos. Penny tinha vindo para desvendar coisas. — Qual destes era o teu quarto? — perguntou Penny. — Aquele. Mika apontou para uma porta com uma maçaneta de latão à direita de Penny. — Posso vê-lo? — perguntou Penny. Do outro lado da esquina, Hiromi tratava da cozinha ao som de pratos a embaterem uns nos outros e água a correr. Shige retirou-se para a poltrona, a ver o noticiário da noite a metade do volume habitual. — Sim, acho que sim — disse Mika porque não conseguia dizer que não. Diretamente à frente dela estava a casa de banho verde- lima onde o pai de Mika costumava desobstruir o ralo do lavatório com um par de hashi, tudo isso enquanto resmungava que Mika tinha demasiado cabelo e usava demasiado rímel. Penny empurrou a porta e entrou. Estava tudo na mesma. Carpete verde-vómito, desde a sala de estar e do corredor. Uma velha luminária de vidro opalino que projetava uma luz amarela quente. Apenas espaço suficiente para um futon encostado a uma parede e uma secretária. Mika costumava sentar-se nessa mesa a desenhar durante horas. — Não há muito para ver — dizia Mika agora. Anos antes, Hiromi havia tirado os pósteres da revista Tiger Beat das paredes e os retratos que Mika desenhara. Penny caminhou pelo perímetro escasso. — Era aqui que dormias? Mika observou-a da porta, a visão do seu antigo quarto a agarrá- la pela garganta. — Sim. — Mas tu tinhas uma cama, certo? Penny parou junto ao futon azul-escuro. Por cima dele, estava a fotografia da escola do jardim de infância de Mika. No primeiro dia, Hiromi tinha ficado ao lado da sala de aula enquanto as outras mães conversavam sobre as viagens de verão ao Sunriver. Ela não se conseguia sentir à vontade com aquelas mães com pele da cor do leite que treinavam ao som de jazz, trabalhavam até tarde e aqueciam as refeições no micro-ondas. — Isso desdobra-se para se transformar numa cama — salientou Mika. Caroline tinha partilhado fotografias do quarto de Penny. O papel de parede num tom pálido de cor-de-rosa que ela vira no fundo das suas conversas de vídeo, ainda com um aspeto impecável e perfeito. Mobília branca substancial. Uma cama com um dossel cheio de folhos. Mika imaginara que Caroline e Thomas dariam a Penny todas as coisas que Mika não tinha dinheiro para lhe dar. Mas depois lembrou-se de Penny na mesa de jantar com Shige, a aprender a usar os hashi. Há algumas coisas que o dinheiro não consegue comprar. — Estudaste aqui. — Penny encontrava-se junto à secretária, passando os dedos por cima da pintura a imitar o grão. — «Estudar» é um termo generoso. — Era mais como se tivesse conspirado ali a sua fuga. Agora, sentia-se envergonhada por alguma vez ter sonhado tão alto. Era a loucura da juventude, supunha, pensar que se é maior do que realmente se é. Penny esboçou um sorriso fraco para Mika e depois abriu uma gaveta. Lá dentro, estavam os cadernos de Mika. Os blocos de esboços dela. — Posso ver? — perguntou Penny. Nas suas mãos estava um bloco de desenho Arches. Mika tinha usado trocos para pagar o caderno de dezasseis páginas. Nele, havia uma série de retratos feitos a guache, na sua maioria perfis de pessoas que ela conhecia. O primeiro era de Hana, cabelos retorcidos em tranças, faces viradas para o sol. — Oh, meu Deus, isto é teu? Pintaste isto? Mika pegou no caderno, fechou-o e empurrou-o de volta para dentro da gaveta. — Não é nada de especial. As proporções estão todas erradas. — Mika ouviu o eco da mãe: «Quem é que é suposto ser, a tua amiga? Fizeste-lhe a cara demasiado cheia. Parece gorda.» Era por isto que detestava vir aqui. As paredes guardavam demasiadas recordações, demasiadas palavras que Mika nunca mais queria voltar a ouvir. — Eu sabia que gostavas de arte e pintura, mas pensei que apenas gostasses, não que conseguisses fazer — disse Penny, gesticulando para a gaveta fechada. — Isso é insanamente bom. — Foi há muito tempo. — Tu é que devias estar a expor na galeria. Penny cruzou os braços e franziu o sobrolho. — Eu já não pinto. — Formou-se um nó na garganta de Mika e os olhos começaram a arder-lhe. — Porque é que paraste? — O olhar de Penny dirigiu-se a Mika, perfurando-a. Mika olhou para os pés e cruzou os braços. — Cresci. O dinheiro tornou-se um problema. — A vida bate-te e obriga-te a descartar objetivos tolos em função de outros mais práticos. Penny mordiscou a bochecha. Abriu a boca para dizer alguma coisa,mas Mika foi mais rápida. — Tentei durante algum tempo e tive algumas aulas no primeiro ano, mas não deu certo. «Qual é a tua história?», perguntara-lhe Marcus. — Tiveste-me no primeiro ano — disse Penny. Mika viu a conclusão a que a filha estava a chegar. Que Mika tinha desistido por causa de Penny. — Eu desisti antes de te ter. — Mika tocou numa ponta do cabelo de Penny, deixou-a deslizar pelos dedos. — Depois disso, não quis pintar mais. O que é que posso dizer? Dei-te todas as minhas cores. — Ela inclinou-se para que estivessem a centímetros de distância, procurou assegurar a Penny que ela não tinha de carregar os fracassos da mãe. — Voltava a fazê-lo de novo. — Penny sorriu. Mika suspirou, agora cansada e num turbilhão emocional. — É melhor despedirmo-nos. Está a ficar tarde. — Saiu do quarto e encontrou a mãe na cozinha. — Temos de ir — anunciou Mika. Hiromi pousou uma bandeja de pudins de leite. Os seus olhos frios e desapontados fixos em Mika. — Fiz sobremesa. Mika esfregou a pele debaixo do nariz, viu Penny aproximar-se pelo canto do olho. — O trânsito pode estar mau e eu estou cansada. Penny deu um passo em frente. — Foi um prazer conhecê-la, Sra. Suzuki. Muito obrigada por me convidar para jantar. Eu adorei. Imediatamente, Mika sentiu-se culpada. — Nós voltamos — prometeu. — No próximo sábado — disse Hiromi abruptamente. — Vou fazer tsukemono. Posso ensinar-te. O peito de Penny inchou de excitação. — A sério? Gostava muito. — Ela inclinou a cabeça para Mika. — No próximo sábado? O teu pai vem à cidade — disse Mika. E eu vou ficar bêbeda que nem um cacho com a Hana, acrescentou mentalmente. Penny franziu o sobrolho, a pensar. — Bolas. É verdade. — E que tal uma noite durante a semana? — sugeriu Hiromi. Mika esquecera-se de que a mãe tinha a tenacidade de um buldogue quando queria alguma coisa. Lembrava-se de ver a mãe agarrada ao volante até ficar com os nós dos dedos brancos enquanto conduzia pela cidade em cima de trinta centímetros de neve para levar Mika ao treino de dança. — O Shige podia ir buscar-te. Penny animou-se. — Sim, gostaria muito. Mika só se apercebeu demasiado tarde de que não tinha sido convidada. Os lábios de Hiromi quase se contorceram num sorriso. — Dou-te o meu número de telemóvel. Já sei mandar mensagens. Eu embrulho a sobremesa para tu levares. Hiromi e Penny trocaram números de telemóvel, depois Hiromi guardou um pudim de leite num recipiente de natas azedas para Penny levar. No carro, Mika serpenteou pelos subúrbios. Ligou o pisca para entrar na estrada principal que levava à autoestrada. — O que é que achaste? Bem? Demasiado? — perguntou, olhando em frente. Estava escuro, as estrelas mais brilhantes a reluzir no céu. — São um espetáculo — disse Penny quando abriu o recipiente das natas azedas e espreitou lá para dentro. — O teu pai é tão querido e a tua mãe é intensa, mas de uma maneira boa, como o meu treinador de atletismo na minha cidade. Não te importas mesmo se eu for lá sozinha esta semana? Mika fez uma pausa. Temia que Hiromi pudesse espezinhar o espírito frágil de Penny. Mas a mãe de Mika tinha sido diferente com Penny. Mais calorosa. Mais leve. Mais disposta. Mika acelerou para entrar na autoestrada. Engoliu a sua hesitação e disse: — Claro. Com certeza. Quem poderia dizer? Talvez desta vez fosse diferente. Mika concentrou-se na estrada, no céu, na escuridão infinita. Pensou nos novos começos. Se seria possível recomeçar. Mais do que tudo, queria que isso fosse verdade. - S CAPÍTULO 21 ão vinte e sete dólares. Queres abrir uma conta? — gritou o barman sem camisa e muito peludo por cima da música, deslizando três shots de tequila pelo balcão de madeira para Hana, Mika e Hayato. Sons graves e fortes abanavam o chão e luzes estroboscópicas piscavam. Era a noite dos anos 80. Remisturas pop de Whitney Houston e Cyndi Lauper saíam com estrondo pelas colunas. Hana enfiou-se entre bancos de vinil pretos e entregou o seu cartão ao barman. — Eu trato disto. Podes deixá-la aberta — gritou às costas dele. Os três pegaram nos shots e brindaram. — Kanpai! — gritou Hayato, espremendo uma lima entre os dentes e emborcando o shot. Mika e Hana seguiram-no de imediato, o líquido a queimar-lhes a garganta. Atravessaram a multidão, passaram por duas drag queens vestidas com bodies e um mural de Lady Gaga com um manto e o menino Jesus ao colo. — Devíamos ir ao Golden Eagle a seguir a isto — disse Hana, mencionando um bar gay no nordeste de Portland. — É mais descontraído, tem sobretudo matulões gays que gostam de rockabilly. Hayato pegou na mão de Mika e fê-la rodopiar. Ele esmerara-se na indumentária temática e usava um fato à Miami Vice branco com uma camisola verde-azulada por baixo. — Eu quero dançar. Mika tinha-se atirado de cabeça ao estilo Flashdance, com uma camisola comprida tipo vestido, a cair do ombro, caneleiras e saltos altos. Seguiu Hayato até à pista de dança. Tipos em jaulas suspensas rodopiavam em torno de postes, com pinturas corporais a brilhar sob a luz negra. Durante algum tempo, andaram os três juntos, mas rapidamente Hayato e Hana ficaram emparelhados. Mika respirou fundo, encontrando um pedaço de parede onde se encostar. — Adoro a tua roupa — disse um loiro magro ao passar, exatamente com a mesma roupa que ela. No soutien, o telemóvel de Mika tocou. Ela sacou-o, surpreendida por ver o nome de Thomas no ecrã. Tapou a orelha e começou a dirigir-se para o pátio. — Thomas? — gritou por cima do barulho. — Mika, estás aí? — Espera aí. — Ela conseguiu chegar ao pátio. Pequenos grupos reuniam-se, a fumar e a conversar. Dirigiu-se a um canto, mais perto da rua. A noite de junho estava quente e sufocante. — Consegues ouvir-me agora? — Sim. Olha, lamento fazer isto, mas houve uma fuga de gás no meu hotel. — Oh, não. — Está tudo bem. Pronto, não está tudo bem, na verdade. Tenho andado a telefonar para todo o lado a tentar encontrar outro hotel, mas está tudo reservado por causa de uma convenção de livros de banda desenhada. — Era verdade. A Comic Con de Portland era naquele fim de semana. Nem de propósito, um casal vestido com fatos de Thor a condizer um com o outro passou na rua. — Sabes de algum sítio onde eu possa ficar? Alguém que tenha um Airbnb que esteja de alguma forma vago? Mika pôs um dedo nos lábios. — Não. Desculpa. — Merda. Embora... Hana fosse dormir a casa de Josephine e o quarto dela estivesse desocupado há algum tempo desde que a amiga andava em digressão. — Hum, isto pode ser estranho, mas a Hana não tem estado em casa ultimamente. Tenho um quarto livre. — Mika deixou a oferta suspensa no ar. Thomas hesitou. — Não sei. — Olha, esquece que sugeri. — Mika bateu com a cabeça contra a parede de tijolo. — Não, é uma ótima oferta. Não vai ser esquisito? Não te ias incomodar com isso? — Só será esquisito se o tornares esquisito — disse ela. — Não me importo nada, desde que tu e a Penny não se importem. Thomas fungou. — Prefiro não lhe dizer nada. Ela estava entusiasmada por ir ao Rocky Horror Picture Show com uns amigos novos esta noite. Mas tenho a certeza de que não se vai importar. Seja como for, não quero preocupá-la. Mika endireitou-se. — Muito bem. Eu vou buscar-te, então. — Mika tinha vindo de carro e estacionara na rua, tencionando ir para casa de Uber, se necessário. Mas não tinha bebido assim tanto. — Manda-me uma mensagem a dizer em que hotel é que estás e dá-me uns minutos para me despedir dos meus amigos. * * * Thomas tinha reservado um hotel perto da Universidade de Portland e estava à espera na rua quando Mika parou. Ela não se deu ao trabalho de sair do carro, limitando-se a abrir a bagageira — desta vez com sucesso — para Thomas lá colocar a mala. — Obrigado — disse ele, sentando-se no banco da frente. — Sem problema. Mika enfiou-se no meio do trânsito. — Este carro é diferente — observou Thomas. Pelo canto do olho, Mika viu-o passar com os dedos nos bancos gastos. — Este é o meu carro verdadeiro — explicou Mika. — Aquele com que te fui buscar a ti e à Penny é da minhaamiga Charlie. Ela emprestou-mo durante aquela semana. — Certo — disse Thomas. — É porreiro. Mika riu-se. — É péssimo. Fita adesiva, cola e muitas orações estão a conseguir que se mantenha inteiro, mas já estamos juntos há muito tempo. Ela acariciou o tabliê com afeto. — Não, é ótimo, a sério. E o cheiro é único, como… — Ele procurou a palavra. — Bolor. Deixei-o à chuva com as janelas abertas. — Pararam num sinal vermelho e ela apanhou Thomas a olhar para o seu ombro exposto. Puxou o vestido para cima. — Estava no centro da cidade. Era a noite dos anos 80 no Cockpit. — Thomas não disse nada. — Então, a Penny está no Rocky Horror Picture Show? — Mika já lá tinha estado algumas vezes com Hana. Tinha-se vestido com meias de rede e batom vermelho nessa época, há muito tempo. Mika tinha curiosidade de saber se Devon também teria ido. Imaginou o miúdo de cabelo à estrela pop com um espartilho de couro sintético e sorriu para si própria. — Sim. Eu não sabia o que era. Quero dizer, conheço o filme, mas, aparentemente, é «toda uma cena» — disse ele, fazendo aspas com os dedos no ar. — Ela tem um talento único para me fazer sentir muito pouco fixe. — A boca de Thomas torceu-se num sorriso meio invertido. Passado um minuto, estavam em casa. Mika mostrou a casa a Thomas e fez a cama de Hana com lençóis lavados. Tirou os saltos altos, vestiu um par de calças de fato de treino e apanhou o cabelo num coque no topo da cabeça. — Queres comer ou beber alguma coisa? — Dirigiu-se ao frigorífico e espreitou lá para dentro. Havia pouco por onde escolher. Alguns ingredientes para salada. Um par de IPA que eram de Hana. — Tenho alface, cerveja ou água. — Cerveja seria ótimo. Thomas ficou parado no meio da sala, de mãos enfiadas nos bolsos. Mika tirou a carica da cerveja e entregou a garrafa a Thomas antes de se enroscar num canto do sofá com um copo de água. Thomas sentou-se do outro lado, com as pernas abertas. Mika estudou-lhe o perfil, os planos duros das suas faces, o nariz romano reto. Tinha as proporções perfeitas para ser modelo de uma escultura. Ele olhou para a porta do quarto de Hana. — Onde está a Hana, afinal? Nunca me disseste. Mika esticou os dedos dos pés em cima da mesa de centro. — Bem, ela veio a casa este fim de semana, mas vai dormir em casa da namorada. Tem andado em digressão com os Pearl Jam no último mês ou assim. — Bem, isso é fantástico. — Sim. Ela é intérprete de língua gestual. — É verdade, ela falou-nos disso quando fomos ver a partida de roller derby. — É incrível vê-la trabalhar, a forma como o corpo dela se move. É como a arte performativa. Convidou-me para ir com ela na digressão, mas eu recusei. A boca dele estremeceu. Deu um gole na cerveja. — Como assim? As sobrancelhas dela uniram-se. — Já estive em digressão com ela antes. É louco e divertido, mas decidi ficar aqui para… consertar as coisas com a Penny e concentrar-me no meu trabalho. Thomas acenou com a cabeça, pensativo. Ambos compreendiam. Penny era sempre uma razão para ficar. — A Penny contou-me que tiveram uma boa conversa depois. — Ele acenou com uma mão, como se quisesse incluir o passado confuso, a abertura da galeria de arte, as mentiras de Mika, a mensagem de voz caótica que deixara a Penny. — Contou? — Mika engoliu um pouco e desviou brevemente o olhar. Pousou o copo de água na mesa. Estava à espera de que Thomas trouxesse à baila a noite da galeria, o rescaldo. Ela e Penny tinham lidado com o assunto. Será que Thomas também queria um ajuste de contas? Thomas reclinou-se no sofá, abriu as pernas um pouco mais. — Sim. Literalmente, ela disse-me: «Tivemos uma boa conversa.» Só isso. — Foi uma boa conversa, acho eu. Uma conversa honesta, pelo menos — esclareceu Mika. Ele ficou em silêncio por um minuto. — Sabes, a Penny deixou-me ouvir a tua mensagem de voz. O estômago de Mika revirou-se. A vergonha enchia-lhe as entranhas. — Foi uma coisa corajosa de se fazer, pôr tudo em pratos limpos daquela maneira — disse Thomas, com seriedade, de olhos claros e determinados pousados nela. Surpreendida, os olhos de Mika arregalaram-se, depois troçou de si mesma, sentindo uma pontada de desconforto. — Eu queria fazer tudo certo, só isso. — Mika não podia dizer que tinha sido algo corajoso. Lembrava-se de ter fugido do apartamento de Peter. Não tinha parado de fugir desde então, com medo do tempo e de si mesma, com medo de se magoar novamente. Mas agora parecia ter abrandado para deixar Penny entrar. Mika pestanejou contra a súbita vulnerabilidade, o medo. — Mesmo assim, obrigada. E obrigada por teres deixado que ela viesse este verão. Foi a vez de Thomas troçar. — Acho que não teria conseguido deter a Penny, mesmo que tivesse tentado. — Thomas bebeu o resto da cerveja e recostou- se com um suspiro. — Fiquei desconfiado quando vocês as duas começaram a falar outra vez. Mika deixou sair um longo fôlego. — Compreendo. — Ela disse que a levaste a conhecer os teus pais. Eu também estava nervoso com isso. A última vez que vi a tua mãe… ela basicamente olhou para a Penny como se ela tivesse três cabeças. Mika hesitou por um segundo. A perguntar-se quanto é que deveria contar a Thomas sobre a sua relação com a mãe. Até onde é que o devia deixar entrar? — A minha mãe não queria que eu ficasse com a Penny — admitiu Mika baixinho. Thomas inalou bruscamente. — Ela, hum, achava que eu não aguentava ser mãe e não me apoiou durante a gravidez. — Sinto muito — disse Thomas, e havia um traço de qualquer coisa nos seus olhos. Tristeza? Pena? — Não faz mal — disse Mika. — Já pertence ao passado. — Nem por isso, mas Mika não queria escavar muito fundo. O que quer que ela desenterrasse seria muito confuso. Demasiado difícil de limpar. — Também estava preocupada por a Penny conhecer os meus pais. Mas correu tudo bem. Melhor do que eu pensava. A minha mãe gosta dela, acho eu. — Ela ligou-me depois e estava muito entusiasmada. Disse que ia fazer qualquer coisa com a tua mãe… — Tsukemono. Legumes em conserva — completou Mika. — A Penny também disse que esta é a primeira vez que se sente japonesa. Mika ficou momentaneamente petrificada, apanhada de surpresa. — Uau. Desculpa. Ela pediu desculpa porque sabia qual era a sensação. Tentar dar-se tudo a um filho e saber que se ficou aquém. Que não se era suficiente. Que eles precisavam de mais. Que as crianças eram as piores e as melhores coisas que podem acontecer a uma pessoa. Thomas encolheu os ombros. — Nada disto é fácil. — Não é — concordou Mika. — Thomas — disse ela e esperou até ter a atenção dele. — Estou a esforçar-me na minha relação com a Penny. Eu não devia ter mentido. Estava insegura em relação a… muitas coisas — admitiu. — Queria ser digna da Penny. — De ti. De toda a gente. Do mundo. Mas não acrescentou isso. Ele anuiu lentamente com a cabeça durante algum tempo e disse: — Eu acredito em ti. — Descascou o rótulo da garrafa de cerveja com os polegares. — Embora pudesse ter-te dito desde o início que mentires ao teu filho não cai bem. — Ele bateu no peito. — Experiência pessoal. — Oh? — Tínhamos um gato e, quando a Penny tinha 5 anos, ele desapareceu. Eu e a Caroline acordámos com uns ruídos horríveis, uma manhã cedo. Um coiote apanhou-o, acho eu. Mas em vez de dizer à Penny que o gato estava morto, dissemos-lhe que ele tinha fugido. Ela andou a procurá-lo o tempo todo. Até que, um dia, encontrou a coleira com um bocado de sangue. Isso provavelmente marcou-a para o resto da vida. A Caroline tinha problemas em falar sobre as coisas difíceis. Mesmo quando descobriu que tinha cancro. Não quis contar à Penny de imediato. Eu alinhei com ela. Mas, quando se veem as coisas mais tarde, vê-se sempre tudo com claridade perfeita. Devíamos ter contado à Penny sobre o gato. Devíamos ter-lhe contado sobre a mãe. — Thomas sorriu pesarosamente, e o peso da confidência atingiu Mika no peito. — Embora eu decididamente não lhe vá contar o quanto bebi na faculdade. — Ele chegou-se para a frente, deixando a garrafa de cerveja vazia pendurada entre os dedos. — De qualquerforma, pais a mentir aos filhos não é uma coisa nova. Não inventaste isso, por isso não te castigues demasiado. Mika não sabia o que fazer com a gentileza de Thomas, nem como retribuir, por isso, disse: — Há mais cerveja no frigorífico, se quiseres outra. Thomas levantou-se do sofá e apontou para o seu copo de água quase vazio. — Mais um? — É melhor não — disse-lhe ela. — Eu desidrato-me de propósito antes de dormir. Thomas usou a bancada para tirar a carica da garrafa. — Até tenho medo de perguntar. Mika esticou-se, lânguida e cansada. — Se ingerir muitos líquidos, passo a noite toda a acordar para fazer chichi. Uma bexiga fraca tinha sido um presente da gravidez. Um lembrete de que o corpo de Penny tinha estado dentro do de Mika. Mika pode ter-se esquecido dos detalhes desses nove meses. A maioria das coisas desvanece-se com o tempo. Até as coisas a que nos tentamos desesperadamente agarrar. Mas o corpo dela lembrava-se sempre. Talvez seja isso que faz uma pessoa envelhecer. O peso dos acontecimentos baixa os ombros, as rugas marcam o rosto. Sim, era isso. A mente pode esquecer, mas o corpo lembra-se sempre. M CAPÍTULO 22 ika estava a beber um café na cozinha quando viu Thomas sair do quarto de Hana, a enfiar uma t-shirt azul-escura pela cabeça. Ela virou-se e pestanejou, vendo o plano liso da barriga dele, a pequena linha de pelos que desaparecia na cintura. A sua linha da felicidade. — Bom dia — disse Thomas, com voz áspera do sono. — Olá. — Mika estremeceu com o tom estridente da sua própria voz. — Fiz café. — Tirou uma caneca do armário e fê-la deslizar em direção a Thomas. — Obrigado. Ele encheu a caneca. — Tens natas no frigorífico. — Mika encostou-se à bancada e cruzou os braços, com a caneca ainda numa mão. Estava vestida com leggings e uma t-shirt largueirona. Em qualquer outra manhã, andaria a passear-se de cuecas. — Gosto dele simples. — Thomas levou o café aos lábios e engoliu-o. Em cima da bancada, havia uma tigela com três laranjas, e ele franziu-lhes o sobrolho, com o gosto fantasma de algo amargo a torcer-lhe os lábios. — O meu café é assim tão mau? Há um estúdio de goat yoga barra café ao fundo da rua — ofereceu ela. — Não. Não é isso. Eu… — Ele hesitou. — O quê? Thomas comprimiu os lábios e abanou a cabeça. — Nada. Olhou para as laranjas novamente. — Diz. A custo, ele lá disse: — São as laranjas. Estão todas erradas. — Está bem — disse Mika devagar. — Odeio os umbigos. Ele estremeceu visivelmente e empalideceu. — Estás a falar disto? Mika pegou numa laranja e estudou-lhe o umbigo. Dantes, a tigela continha limões falsos. — Sim — disse ele com sobriedade. — Hum. — Ela voltou a pôr a laranja na tigela, com o umbigo para baixo. Depois tratou das restantes, virando-as para a bancada. — Alguma outra aversão alimentar que eu deva saber? — Não, mas também tenho medo de gansos. — A cor voltou às faces de Thomas. Mika estava preparada para deixar passar, mas depois ele disse: — Prefiro não falar sobre isso. — Agora preciso de saber. Mika olhou-o por cima da borda da sua caneca. Ele encostou-se à bancada. — Má experiência quando era criança. Eu tinha um ganso de peluche que adorava, até o meu irmão me perseguir pela casa com ele, ameaçando tirar-me os olhos à bicada. Depois, quando vi um bando de gansos ao vivo, eles perseguiram-me. Desde então, não consigo suportá-los. — Adoro todos estes vislumbres da tua vida pessoal. É muito útil, psicologicamente — brincou Mika. Sorriram um para o outro. A luz entrava pela janela da cozinha, espalhava-se densamente pelo ar como mel mexido. Mika aclarou a garganta. — Então, hum, a que horas parte o teu voo? — Penny andava a correr na areia das dunas. Através da porta aberta do quarto de Hana, Mika podia ver que a mala de Thomas já estava feita. Ele consultou o relógio de pulso. — O voo só sai ao final da tarde. Provavelmente, vou para o aeroporto mais cedo e procuro um lugar para acampar. Estou a voltar a ver todos os filmes d’O Senhor dos Anéis. O maxilar de Mika caiu. — Uau. Isso pode ser a coisa mais triste que eu já ouvi. Thomas inclinou-se para a frente, cotovelos na bancada. — Estou a pensar em aprender a língua dos elfos. Mika soltou um suspiro. — Risca o que eu acabei de dizer. Isso é que é a coisa mais triste que já ouvi. Thomas soltou uma meia gargalhada. — É uma língua muito popular. — Sim. Entre putos virgens solitários e imberbes — disse Mika abruptamente, depois sentiu as bochechas a arder. Ela tinha mesmo acabado de dizer aquilo? A boca de Thomas continuava uma linha reta, mas os seus olhos reluziam de humor. — Isso é um estereótipo muito prejudicial. — Fez uma pausa. — Pensei numa coisa. — Posso tratar do teu buraco. Mika engoliu em seco. — Como assim? Thomas apontou com o queixo para a janela da qual se via o jardim das traseiras. — O buraco no teu jardim, como forma de te agradecer por me teres deixado passar aqui a noite. A mente de Mika regressou ao momento em que Penny e Thomas lá tinham ido jantar. Quando Thomas deu um pontapé à terra e perguntou se ela tinha esquilos. Certo. Mika juntou suavemente os lábios. — Deixa estar. Na verdade, já o enchi. Ela tinha plantado lá o ácer, aquele que Hiromi pensava que tinha um fungo. Thomas deslocou-se até à janela. — Está com bom aspeto. Mika olhou bem para Thomas. Pensou na conversa deles na noite anterior. Em como hoje era um novo começo e, nesse espírito… — Muito bem — disse Mika, bebendo o resto do seu café e depositando a caneca no lava-loiça de porcelana. — Vamos lá, cara triste. Thomas virou-se para ela. — O quê? — Vou levar-te para a rua. As sobrancelhas dele uniram-se. — Eu sei que tivemos as nossas divergências, mas expulsares- me assim é um pouco demais, parece-me. — Ah, ah, que piada — disse Mika a fingir que se ria. Thomas pousou a caneca dele. — Aonde vamos? Mika pegou nas chaves e escancarou a porta, com o sorriso ainda mais rasgado. — Já vais ver. * * * — Donuts? — Thomas mudou o peso do corpo de um pé para o outro, com as mãos enfiadas nos bolsos. — Isto é melhor do que Mordor e aprender a falar élfico. Dois tipos com calças de ganga justas à frente deles na fila viraram-se e deixaram os seus olhos viajar desde as pontas dos sapatos de Thomas até ao cimo do seu cabelo grisalho. — Podes baixar o jargão do Senhor dos Anéis? — perguntou Mika. — Sou capaz de conhecer alguém aqui. — O aqui significava a Voodoo Doughnuts no bairro de Old Town. Nos primeiros anos, a loja de donuts só estava aberta das nove da noite às duas da manhã. Na faculdade, Hana e Mika entravam lá dentro, encharcadas em álcool, para comerem donuts de baunilha cobertos de cereais infantis e donuts com bacon e xarope de ácer. Pouco depois, a loja começou a abrir durante o dia, e agora lá estavam Mika e Thomas, à espera na fila por uma muito cobiçada caixa cor-de-rosa de donuts. — Estamos a trabalhar na tua espontaneidade. A fila avançou. Mika e Thomas chegaram-se à frente. — Eu sou muito espontâneo — disse Thomas orgulhosamente, a balançar para a frente e para trás nos calcanhares. — Aos fins de semana, não faço a cama. E, às vezes, eu e a Penny tomamos o pequeno-almoço à hora de jantar. — Ergueu as sobrancelhas como que a dizer «ora, toma». — Uau! — Mika levantou as mãos; depois levou a mão ao peito, fingindo-se chocada. Os dois rapazes à frente deles riram-se. — Acho que o meu coração acabou de parar com o choque. — Thomas conseguiu sorrir timidamente. Ela deu-lhe uma cotovelada. — Anda, vamos lá encharcar-nos de açúcar e portarmo-nos mal. — A fila avançou novamente e eles entraram na loja. O chão era composto por mosaicos de linóleo cor-de-rosa, amarelo, castanho e bege. As paredes estavam pintadas de amarelo e cor-de-rosa. Verdadeiramente hediondo. Mas tinha um cheiro incrível, como nadar numa cuba de açúcar, canela e pão a fermentar. Pediram meia dúzia dos donuts mais populares a um tipo ao balcão com bigode de pontas retorcidas e depois voltaram para o carro. Instalaram-se, com a caixa cor-de-rosa cheia de donuts na consola entre eles. Mikaesperou para ligar o carro, de olhos postos na linha costeira à frente deles. Mika abriu a caixa e pegou num Velho Sacana Podre, um donut de levedura com cobertura de chocolate, bolachas Oreo e manteiga de amendoim. — Mesmo assim, gostava que me tivesses deixado comprar-te uma t-shirt. No balcão, Mika tinha tentado impingir uma t-shirt a Thomas. Tinha o logótipo da Voodoo Doughnut, uma versão do Barão Samedi com uma legenda que dizia A MAGIA ESTÁ NO BURACO. Tal como acontecera com a história das laranjas, Thomas tinha empalidecido visivelmente. Ele não usava nenhum tipo de camisola com imagens. Demasiado ousado. Uma peculiaridade de Thomas que Mika poderia ter achado alienante, mas que agora considerava até amorosa. — Estás a oferecer-me o pequeno-almoço com um ataque cardíaco como bónus, já chega. — Thomas sacou um Frito de Maçã da caixa e deu-lhe uma boa dentada. — Oh, meu Deus! — disse ele, bochecha cheia de massa, olhos quase a revirar-se para dentro da cabeça. — Este é o melhor donut que já comi na minha vida. — É, não é? — O sorriso de Mika rasgou-se de orelha a orelha. — Eu sei. Costumava vir aqui a toda a hora com a Hana. Thomas engoliu. — Tão bom. — Ele escolheu um Picadinho de Lima e acabou com ele em duas dentadas. Lambeu a geleia do dedo. — Vamos trazer cá a Penny da próxima vez que eu a vier visitar. Ela interessa-se por gastronomia e nunca me falou nisto. Vai achar- me muito fixe por ter sabido disto antes dela. Mika sorriu. Olhou para o relógio no tabliê. Ainda era cedo. O voo de Thomas só saía dali a seis horas. Interrogou-se sobre aonde haveria de o levar a seguir. Ao museu Freakybutttrue Peculiarium, ao mercado dos agricultores, a mais comida… o que é que Thomas gostaria de fazer? Olhou para a água, para os barcos a passar e a navegar na corrente. Ligou o carro. — Estás pronto para ir? Thomas emitiu um som em concordância. Pelo menos, Mika pensou que sim. Era difícil perceber, porque ele tinha a boca cheia de donut com cereais infantis. Trinta minutos depois, Mika entrou num parque de estacionamento de cascalho sombreado por pinheiros altos. Uma loja de conveniência com uma placa feita à mão ostentava: AS MELHORES SANDES DE ENCHIDOS DESTE LADO DO RIO E AINDA ALUGUER DE CAIAQUES. — Caiaques? — disse Thomas, mas de um modo diferente do que tinha usado para dizer donuts antes. No caminho, tinha tratado da saúde a mais dois e uma camada de açúcar em pó manchava-lhe o joelho. — Caiaques. Mika anuiu com a cabeça. Lembrava-se de que Thomas praticara remo na faculdade. — Não ando na água há… — Ele abanou a cabeça. — Credo! Já nem sei há quanto tempo. — Fez estalar os nós dos dedos, arqueando as sobrancelhas escuras. — Sim, está bem. Estou entusiasmado. Alugaram os caiaques, depois encontraram-se com um tipo entroncado e barbudo na costa arenosa que os equipou com um saco à prova de água, coletes salva-vidas e um apito vermelho. — Para o caso de encontrarem a Roslyn — disse ele. — Roslyn? — perguntou Mika, enquanto vestia o colete salva- vidas. — Sim. Um jacaré, achamos que era o animal de estimação de uma criança. — Ele riu-se a desconsiderar a ideia e acenou com uma mão. — De qualquer forma, provavelmente não a vão ver, mas se a virem, têm o apito. — O apito, sim — disse Mika, fazendo uma pausa enquanto fechava o casaco. Thomas agarrou no apito e pô-lo ao pescoço. — Mais alguma coisa? — Ele estava mais do que preparado, quase aos saltinhos. Não tinha olhado para o relógio uma única vez desde que tinham chegado nem mencionado o trânsito e o aeroporto. — Não. Os caiaques são vossos durante três horas. Mas isto tem estado muito parado esta manhã, por isso podem ficar um pouco mais — disse o homem. Thomas agradeceu-lhe e dirigiu-se para um caiaque cor de laranja. Mika seguiu-o, ainda com o colete desapertado. — Hum… Thomas. Acho que devíamos ir para outro lado. — O quê? Porquê? — Ele virou-se para ela num ápice. — Por causa da… — Mika baixou a voz para que o barbudo não a ouvisse, mas ele já estava a subir as escadas para o estacionamento. — A Roslyn. — O jacaré? Espera, estás com medo? — perguntou, incrédulo. Como se comesse jacarés ao pequeno-almoço. — Claro que estou com medo. — Estou a ver. — Thomas tentou esconder o seu sorriso. — Tenho a certeza de que ele estava só a brincar. O apito é para o caso de nos virarmos ou de nos perdermos. Além disso, não achas que, se houvesse mesmo um jacaré, haveria placas afixadas? — É verdade. Isso fazia sentido. — E que nos davam algo mais do que simplesmente um apito? — Ainda mais sentido. Thomas olhou para a água, a tristeza a suavizar-lhe os olhos. — Mas se não queres mesmo… — A sua voz desvaneceu-se, baixou a cabeça e virou os olhos para cima, a olhar para Mika por entre as pestanas escuras, o cachorrinho mais triste que ela alguma vez vira. — Uf, está bem — disse Mika. — Mas se encontrarmos algo remotamente escamoso, empurro-te logo para a minha frente. Thomas descreveu uma cruz sobre o coração. — Implorarei a qualquer criatura que encontrarmos para me levar primeiro. Entraram para os caiaques e impulsionaram-se com as pás. Thomas assumiu a liderança, o seu remo esfaqueava a água que parecia vidro, com o ar de um profissional experiente. Ela viu os músculos dos braços dele a moverem-se e a fletirem enquanto usava os remos para manobrar. Cada vez mais longe da doca, afastaram-se, remando sem rumo. E Thomas era como um miúdo que ingerira demasiado açúcar, a sua excitação parecia uma corda usada por vaqueiros… que capturou Mika. — A Penny ia adorar isto — comentou Thomas. — Sim — concordou Mika com um sorriso, imaginando a cena: os três a remarem através da água, o riso contagiante de Penny a flutuar pelo rio, sempre tão preparada para a aventura. Mika tirou algumas fotografias, mandou-as a Penny e depois voltou a guardar o telemóvel no saco impermeável. Thomas desceu o rio de caiaque, afastando-se cada vez mais. Mika contentou-se em ir atrás dele, a seguir-lhe o rasto. De vez em quando, ele fazia uma pausa e virava-se para trás para se certificar de que ela estava a acompanhá-lo. Um sorriso de miúdo transformara-lhe as feições — parecia anos mais jovem, despreocupado. O sol brilhava, os pássaros chilreavam, e parecia que eram as únicas duas pessoas num raio de vários quilómetros. Quando chegaram junto a uma zona com lírios, Mika descansou o remo sobre os joelhos e inclinou-se para trás, à deriva na água, feliz e a desfrutar da luz do sol e da felicidade de Thomas. Trás. Alguma coisa bateu contra as costas do caiaque de Mika. Ela virou-se na direção do som. A Roslyn? O caiaque estremeceu, inclinando-se. Mika entrou em pânico e deslocou o peso do corpo, fazendo um movimento que se transformou num safanão. O caiaque inclinou-se, levando Mika com ele. Um grito estrangulado saiu-lhe da garganta assim que ela bateu na água. Ficou submersa por um segundo. Com a cabeça a alcançar a superfície, arfou. Através da cortina do seu cabelo preto empapado, viu Thomas a remar na sua direção. — Deste de caras com a Roslyn? — Ele parou mesmo ao lado dela e apontou para alguma coisa com o remo. Mika afastou o cabelo do rosto. Quase ao nível dos olhos, a olhar para ela, estava um castor. O nariz torcia-se, revelando longos dentes amarelados. Analisou-a por um momento, depois virou-se e bateu com a cauda na água enquanto nadava. — Um pouco peludo para ser um jacaré — disse Thomas, sem expressão. Mika olhou para Thomas, virou costas e nadou até ao caiaque, tentando, sem sucesso, içar-se para dentro dele. Tarde demais, lembrou-se de que simples elevações básicas faziam-na gritar. Conseguir que o seu corpo, vestido e molhado, entrasse de novo no caiaque era quase impossível. Por fim, Thomas teve de entrar na água e ajudá-la. Nadaram juntos, a conduzirem os respetivos caiaques para uma alcova arenosa próxima. Arrastaram-se para a costa, com as roupas molhadas agarradas ao corpo. Thomas tirou a camisa e Mika, de repente, achou o chão fascinante. Ele espremeu a t-shirt para escorrer a água para a areia e voltou a vesti-la.Mika cruzou os braços sobre o peito e tremeu. O dia estava quente, mas eles estavam à sombra. Cada brisa era um pequeno chicote frio contra a pele dela. Os olhos claros de Thomas olharam Mika de alto a baixo. — Aguenta aí — ordenou ele. Avançou decididamente para a floresta e voltou com ramos secos, folhas e algumas cascas de árvore. Mika observou-o a usar a corda de nylon do apito para fazer algo parecido com um arco. Por fim, agachou-se e montou uma outra engenhoca, movendo o arco para a frente e para trás. As folhas começaram a esfumaçar e a pegar fogo. Thomas soprou-lhes e o lume aumentou. Juntou dois pedaços de madeira maiores na fogueira. Mika deu um passo em frente para colocar as mãos acima das chamas. — Isto é muito Bear Grylls da tua parte — disse ela, de forma direta. — Aquele tipo? Aquilo é tudo encenado. Thomas parecia um pouco ofendido. — Oh? — perguntou ela. Thomas simplesmente acenou com a cabeça: não era preciso dizer mais. — Então, como é que se aprende a fazer uma fogueira com paus, folhas e corda de nylon? — Eu fui escuteiro — disse ele com um encolher de ombros. Thomas fez uma pausa. — Fica aqui. Aquece-te. Vou buscar mais lenha. — Escuteiro — Mika sussurrou para si mesma, vendo Thomas recolher ramos das árvores. — Faz todo o sentido. Uns minutos depois, a fogueira ardia em pleno. Tiraram os sapatos e colocaram-nos a jeito para secar. As bochechas de Mika aqueceram bastante. Thomas sentou-se à frente dela, de joelhos para cima, com os cotovelos apoiados neles. Mika ouviu o chilrear dos pássaros e olhou para o lume, hipnotizada pelas chamas. — Desculpa a história com o castor. — Não te preocupes com isso. Tenho a certeza de que os castores estão sempre a ser confundidos com jacarés. Thomas olhou para o lado. Comprimiu os lábios, esforçando-se para não sorrir. Mika viu-o baixar a cabeça. Os ombros dele estremeceram. Ele estava a rir-se — dela. — És hilariante — disse Mika, sem rodeios. Ele sorriu-lhe. — Não. Eu percebo. Percebo mesmo. Ele era aterrador. Estou a ver porque é que entraste em pânico. Decididamente, não foi uma reação exagerada. Mika enterrou os dedos dos pés na areia. — O castor era grande. — Quando eu voltar a contar a história, vou descrever o castor como sendo enorme, pelo menos cinquenta quilos — prometeu Thomas. — Tenho quase a certeza de que não ultrapassa os vinte e cinco. Mas aprecio o teu castor mutante. — Mika também apreciava a forma como a t-shirt húmida de Thomas se colava aos seus ombros. Ela encontrou um pau e espevitou o fogo, desviando o olhar para longe. — Deves saber que, caso surja outro castor gigante que possa ser um jacaré, vou atirar alegremente o teu corpo para a frente do meu. Seria uma pena a Penny perder um dos pais, mas… — Mika fez uma pausa, percebendo o que tinha dito. Atrapalhou-se para corrigir. — Merda. Desculpa — disse, de forma fraca. Ela tinha-se esquecido. Caroline. Mika olhou para ele, impotente. Thomas olhou para ela sobre o fogo com um olhar ardente. — Não faz mal — acabou ele por dizer, com uma expressão impenetrável. Mika enfiou as mãos na areia e cerrou os punhos. — Faz mal, faz. Sou uma idiota insensível. Desculpa — disse ela estupidamente. — A Penny comentou que não gostas de falar sobre isso. Eu compreendo. Ainda não ultrapassaste. Os olhos de Thomas cintilaram e algumas batidas tensas passaram antes de ele responder. — Alguma vez se ultrapassa a morte de alguém que se ama? — Não. Mika desviou o olhar. A iluminação estava mesmo certa. As árvores em redor espelhadas na água, as suas folhas brilhantes e verdes, a sorrirem ao verão. Dali a pouco tempo, encaracolar-se-iam, ficariam castanhas e murchariam com o outono. A maioria das vidas era desenhada com linhas frágeis. Os ataques de pânico pioraram depois de Mika ter tido Penny. No início, Hana fora paciente e meiga. Sentada ao lado de Mika enquanto ela se fraturava e entrava em curto-circuito, enquanto se estilhaçava totalmente. «Acho que estou a morrer», dizia ela a Hana, a arfar para respirar. Mas, na verdade, pensara Mika, era a alma dela a tentar reentrar num corpo que já não lhe servia. Meia dúzia de vezes depois, a paciência de Hana diminuiu. Ela tornou-se amorosamente má. Obrigou os pés de Mika a calçar sapatos, o corpo da amiga a atravessar o campus e dirigir-se aos serviços de aconselhamento gratuitos. Lá, Mika conheceu Suzanne, uma licenciada em Psicologia que se aproximou de Mika como se ela fosse um cavalo rebelde chicoteado. Suzanne ensinou a Mika como havia de respirar entre o medo. Quando Mika se acalmou, tinha cerrado os punhos e batido nos joelhos e dito: «Eu simplesmente preciso de superar isto.» Era algo que a mãe tinha incutido nela. Superar a adversidade. Tal como havia narrativas para boas mães, também havia narrativas para boas vítimas. Não deixes que isso te defina. Sê corajosa. Não uma vítima. Suzanne inclinou-se, colar de macramé a balouçar no ar, e, com toda a empatia do mundo e talvez alguma piedade, disse: «Querida, isto não é algo que uma pessoa ultrapasse. É algo que uma pessoa tem de suportar.» Agora, Mika repetia-o. — É algo que uma pessoa tem de suportar — sussurrou Mika a Thomas. Ele olhou para ela, com uma expressão aguçada e ardente. — É exatamente isso. — Um triste fantasma de um sorriso apareceu-lhe no rosto. — A Caroline costumava dizer uma piada. Agora que penso nisso, era um pouco mórbida. Mas ela costumava gozar comigo e dizia que eu estava preso num coma a sonhar. Às vezes, ela abraçava-me por trás e dizia: «Acorda, Thomas, eu amo-te. Preciso de ti.» Depois ria-se como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Quando ela faleceu, eu estava ao lado dela. Havia uma série de enfermeiros por perto, mas não consegui evitar. Sussurrei-lhe ao ouvido: «Acorda, Caroline. Eu amo-te. Preciso de ti.» — Ele fez uma pausa. Os seus olhos estavam vermelhos e a lacrimejar. Os de Mika também. — Nunca contei isto a ninguém. — Depois de ter tido a Penny, eu costumava falar com ela — disse Mika de rompante. «Olá, bebé, hoje tens duas semanas e espero que estejas bem. Eu não me estou a sentir lá muito bem», dizia Mika. Era tudo o que ela podia fazer para evitar que se autodestruísse completamente. Thomas assentiu com a cabeça em concordância. — Eu também costumava falar com a Caroline. Depois fui falando cada vez menos. Até que um dia, não falei com ela de todo. — Aclarou a garganta e esfregou a pele debaixo do nariz. — De qualquer forma, é algo por que eu já passei. Agora estou do outro lado. Já não carrego isso tudo comigo. Estou grato pela Caroline, pela vida que tivemos juntos, pela Penny. Não tenho nenhum arrependimento. Mas… — Respirou fundo e continuou: — A Penny disse que eu não gosto de falar dela? — Sim. — A culpa é minha. — Thomas atirou mais lenha para o fogo. — Fiquei tão chateado depois de ela morrer. Tão perdido na minha própria desolação, que não tornei as coisas fáceis para a Penny. — Como é que ela era? As palavras escaparam-lhe e Mika desejou poder recolhê-las. Ela queria gostar de Caroline, mas também sentia uma fome profunda de encontrar defeitos nela, essa outra mãe fantasma para Penny. Finalmente, Thomas sorriu novamente. — A Caroline era incrível. Como pessoa, era doce, generosa e carinhosa. Quando era enfermeira, ficava depois do seu turno acabar para visitar os pacientes que não tinham família. Era uma ótima esposa e mãe. Formávamos uma boa equipa. Quem me dera que ela estivesse aqui para ver a Penny. Quão boa ela é. — Ela parece perfeita. — Mika tentou esconder a inveja na voz. Como é que ela se podia comparar? Thomas estudou Mika. — Não era, na verdade. Longe disso. Tinha mau feitio e usava o silêncio como arma. — Mika pensou na infelicidade silenciosa da sua própria mãe. Na recusa de Penny em falar sobre Caroline. Na sua própria relutância em seguir em frente depois de Peter. Em todas as formas que as mulheres empunharam ou mantiveram o silêncio. Como pode ser perigoso. — Uma vez, não falou comigo durante dois dias seguidos quando bebi demais com alguns amigos. — Chiça— disse Mika. Thomas acenou com a cabeça e espetou um dedo na areia. Sorriu ironicamente. — Ela gostava de controlar. Limpava as coisas obsessivamente e era um pouco perfecionista. Houve vezes em que pensei que nunca seria suficientemente bom para ela. Mas ela amava-me na mesma e eu amava-a a ela. Mika olhou de soslaio para Thomas. Pensou no amor, nas suas diferentes formas — na sensação de o ter, de o perder. Ambos tinham isso em comum. Ouviu-se o rugido de um motor a aproximar-se. As aves voaram sobressaltadas das árvores. Um barco de pesca desligou o motor e aproximou-se da margem. — Ei! — O tipo barbudo do local de aluguer de caiaques colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou: — O vosso aluguer já acabou e não se pode fazer fogueiras nessa praia. É terreno público. Thomas e Mika levantaram-se. Thomas atirou areia para a fogueira e o barbudo aproximou o barco. Juntos, carregaram os caiaques. — Desculpe — disse Thomas, o vento a soprar-lhe no cabelo no caminho de regresso ao cais. — Tivemos um encontro com a Roslyn. O tipo barbudo soltou uma gargalhada profunda. Levantou o braço apontando para um bordo de videira a crescer no banco de areia. Os seus ramos arqueavam sobre a água e deles pendia o boneco enlameado de um jacaré, com um pedaço de cartão em volta do pescoço, onde se via o nome Roslyn escrito com marcador. — A Roslyn volta a atacar — disse ele. * * * Mika esperou de costas enquanto Thomas trocava a roupa húmida por roupa limpa e seca no carro dela. Ele apareceu com uma camisola. — Toma — disse ele, entregando-a a Mika. — Oh, obrigada. Mika vestiu-a, ficando com o emblema da equipa de remo de Dartmouth sobre o peito. Conduziu Thomas ao aeroporto e despediram-se. Mika ofereceu-se para lavar a t-shirt e mandar-lha. Mas ele disse que a receberia quando voltasse à cidade dentro de algumas semanas. Em casa, Mika tomou banho. Quando saiu, tinha à espera uma mensagem de Thomas. O voo está prestes a embarcar. Obrigado por esta manhã. Tinha-me esquecido de como é bom estar na água. Ela lembrou-se de Thomas no caiaque. O seu sorriso ténue era contagioso, demasiado confiante, de olhos no rio sinuoso. Ela conhecia esse olhar. Conhecia esse sentimento. Era o mesmo que ela tinha quando olhava para as tintas. Como se algo lhe pertencesse. Sempre às ordens, respondeu ela. Foi realmente incrível. Uma pessoa está sempre ocupada com a família e tudo mais, mas sinto que ainda tenho jeito para a coisa, devolveu ele. Sim, és de certeza o melhor da cantareira dos caiaques, rematou ela de volta. Ele respondeu com uma única palavra. Cantareira? Ela deu um nó no roupão antes de esclarecer. O melhor de todos os tempos. Estou a sentir sarcasmo. Ainda estás chateada por causa do castor?, provocou ele. Não sei de que estás a falar, respondeu ela com um sorriso crescente. Obrigado, disse ele simplesmente. Não tens de quê. Ainda bem que te divertiste, respondeu ela. Mika pegou nas roupas do chão, incluindo a camisola dele, e meteu-as na máquina de lavar. De volta ao telemóvel, Thomas tinha enviado uma nova mensagem. A sério, fico a dever-te uma. ADOÇÃO NA AMÉRICA Gabinete Nacional 56544 W 57th Ave. Suite 111 Topeka, KS 66546 (800) 555-7794 Querida Mika, Como estás?! Já viste a rapidez com que o tempo passa? A Penny tem 13 anos e tem sido uma alegria vê-la crescer contigo. Como sempre, podes encontrar anexos os itens definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika Suzuki (a mãe biológica) e Thomas e Caroline Calvin (os pais adotivos) relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O conteúdo inclui: • Uma carta anual do pai adotivo a descrever o desenvolvimento e o progresso da adotada • Fotografias e/ou outros itens memoráveis Liga-me se tiveres alguma dúvida. Atenciosamente, Monica Pearson Coordenadora de Adoções Cara Menina Suzuki, A Penny comemorou o seu décimo terceiro aniversário na semana passada e está no sétimo ano. Está a dar-se bem e destaca-se na maioria das disciplinas. Está a pensar em juntar- se a uma equipa de atletismo e pediu um gato como prenda de Natal. Incluí algumas fotografias do projeto que ela apresentou recentemente na feira de ciências. Com os melhores cumprimentos, Thomas M CAPÍTULO 23 ika olhou para o monte de laranjas. — Está a escapar-me alguma coisa? — Penny inclinou a cabeça, depois a sua boca formou um pequeno O. — Viste uma aranha gigante? Li uma vez uma história sobre aracnídeos tropicais que andam à boleia em carregamentos de fruta. Mika abanou a cabeça, aproximando-se das laranjas para evitar um pai com três filhos turbulentos no seu carrinho de compras. O Uwajimaya, o mercado asiático, estava barulhento, animado e agitado naquela manhã de sábado. — Não. Nenhuma aranha gigante. Penny fez uma expressão tristonha com os lábios. — Bolas. Mika pegou numa laranja para a examinar, virando-a nas mãos. — Sabias que o teu pai não gosta dos umbigos das laranjas? — Oh, sim. Ele é mesmo estranho. Penny mudou de lugar, pousando o cesto cheio de barras de chocolate Meiji, palitos Pocky e rebuçados White Rabbit: uma dieta perfeitamente equilibrada. Depois, virou uma parte das laranjas para que ficassem todas com o umbigo ou com o rabo para cima. Mika sacou o telemóvel do bolso de trás e tirou uma fotografia. — Será que devíamos mandar-lhe uma fotografia? — Com certeza — disse Penny com um ligeiro sorriso, pegando no cesto. Mika enviou a fotografia com um sorriso malicioso. Riram-se as duas e fizeram mais algumas compras, Penny maravilhou-se com os pacotes de lulas secas, os ouriços-do-mar vivos em aquários e as montanhas de couve pak-choi. Absorveu as visões e os cheiros como um caule de bambu sedento de chuva. Thomas enviou-lhe uma mensagem com a fotografia de um castor, mas, de alguma forma, coloriu os olhos com um tom de verde néon. Mika optou por não mostrar a imagem a Penny. Como é que iria explicar-lha? Pensei ter visto um jacaré e, na verdade, tratava-se de um castor. Virei o meu caiaque e o teu pai teve de me pescar. Primeiro, era tudo embaraçoso. Mika sentiu o calor nas faces só de pensar nisso. Segundo, as laranjas eram algo que os três partilhavam, mas a piada sobre o castor… era de Mika e de Thomas. Todo o contexto poderia parecer estranho a Penny ou, pior ainda, íntimo. Quando pagaram e saíram, Mika insistiu para que provassem takoyaki. — Polvo frito, comida de rua — explicou ela a Penny enquanto deslizavam para as cadeiras na praça de restauração. No Japão, era indelicado comer em andamento. Mika dispôs os lanches em forma de bola no meio da mesa e salientou alguns dos ingredientes: bolas de massa com um pedaço de polvo no interior, bocados de tempura, gengibre em conserva e cebola verde. Penny separou um par de hashi de madeira e começou a atacar a comida. Mika adorava a forma como a sua filha era destemida. Penny mastigou lentamente, com ar pensativo. — Isto é bom. Gosto disto — anunciou. Assim que acabou o primeiro, enfiou um segundo na boca, depois anunciou, com a boca cheia: — Estou a pensar em dormir com o Devon. Mika engasgou-se, tossiu, cuspiu e depois bebeu um pouco de água. Penny observou-a de lado. — Estás bem? Mika deu uma palmadinha no peito. — Desculpa. Dormir com ele? — perguntou com cuidado, a garganta ainda a arder um pouco. Talvez tivesse ouvido mal. Talvez tivesse ouvido corretamente e não tivesse percebido. Talvez dormirem juntos não significasse o mesmo que Mika pensava que significava. Talvez agora fosse mais uma festa de pijama, em linguagem adolescente, como envolverem-se em lençóis e deitarem-se lado a lado silenciosamente no escuro, sem toque absolutamente nenhum. — Sabes, sexo — disse Penny, baixando a voz. Mika bebeu novamente água e tentou fazer surgir um sorriso encorajador. — Isso é um grande passo. — Foi a única coisa que lhe ocorreu dizer no momento, além de lembrar a Penny que ela tinha 16 anos. Um bebé. A minha bebé. Penny amachucou um guardanapo até formar uma bola e deu- lhe um murro. — Estou preparada. Tenho a certeza de que estou. Tipo, eu achoque o amo. Devon podia não sentir o mesmo, mas Mika não teve coragem de dizer isso, não teve coragem de partir o coração a Penny. De expressar o seu medo de que Penny pudesse não ser amada da maneira que gostaria de ser ou que deveria ser. Então, em vez disso, Mika disse: — O amor nem sempre é um requisito. Ela observou Penny, pensou na filha, na sua visão do mundo: como era pequena, singular e um pouco ingénua. Fora isso que Hiromi pensara de Mika quando ela era adolescente? Mika remexeu-se no seu lugar. Como é profundamente perturbador uma pessoa pensar que pode ser como a própria mãe. Penny mordiscou o lábio inferior, levantando as pestanas para cruzar timidamente o seu olhar com o de Mika. — Posso perguntar… Quero dizer, como é que foi a tua primeira vez? Mika concentrou-se num tanuki na secção de artigos para a casa. Os olhos do guaxinim dançarino eram estrábicos e entre as pernas tinha pendurado um enorme par de testículos — está-se mesmo a ver, para dar sorte. — A minha primeira vez? — Mika pestanejou e viu o Cheerful Tortoise, um bar no campus. Lembrou-se das ancas dela a balançar como um pêndulo, a sorrir para um tipo giro por entre a multidão. O nome dele era Jordan, um licenciado em Ciência Política. Ele usava Birkenstocks com meias, dividia um apartamento com quatro outros tipos e, no seu quarto, ao invés de um candeeiro, havia um daqueles holofotes de pôr ao ar livre. — Não foi lá muito memorável nem romântico. Mas foi divertido — respondeu Mika, honestamente e com um sorriso de saudade. — Doeu um bocadinho. — Sentiu as faces a arder, sentiu a atenção de Penny a intensificar-se. Ela não contara a Jordan que era virgem até depois do ato. Ele insistiu em ir mais devagar, em tentar novamente. Ouviram Wilco enquanto ele lhe fez sexo oral. Mika olhou fixamente para a mesa. — Penny — disse ela, a invocar um tom calmo e isento de juízos de valor. — Tens a certeza? Em relação ao Devon? Não o conheces há muito tempo. — Só quatro semanas, queria Mika acrescentar. Sentiu-se uma hipócrita, a mil por cento. Mas, Deus, porquê ter filhos se não os conseguirmos salvar dos nossos erros? — Conheço — disse Penny, com uma expressão resoluta nos olhos. Olhos que não haviam visto o suficiente, longe disso. — Passamos muito tempo juntos, quase todo o dia, todos os dias. Além disso, sabes, já fiz montes de outras coisas. Mika ficou tensa. — Não preciso de saber. Quanto menos pormenores, melhor. — Estou preparada. Eu sei que estou — insistiu Penny. — Está bem. — Perante a capitulação de Mika, o seu amolecimento, Penny também o fez. — O Devon é bom rapaz. Temos falado muito sobre isso. Ele não tem estado a pressionar-me nem nada. — Está bem — disse Mika novamente. Inspirou fundo, aceitando a inevitabilidade. Aquilo ia acontecer. Havia algo de intemporal no facto de os filhos não ouvirem os pais. E Mika sentia-se parte desse ciclo infinito. — E contraceção? Já discutiram isso? Duas manchas brilhantes apareceram nas faces de Penny. Talvez estivesse a pensar em Mika, em como ela tinha engravidado tão jovem. Em como não queria que lhe acontecesse o mesmo que acontecera à mãe biológica, uma adolescente com escolhas limitadas. — Ele disse que ia usar preservativo e eu ando a tomar a pílula há uns anos… períodos difíceis. — Parece que têm tudo controlado, então. — Mika mexeu-se para se pôr de pé e limpar a mesa. Hiromi nunca tinha falado com Mika sobre sexo. E o que ela tinha aprendido na escola girara em torno de dizer «não», gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Ninguém lhe disse quão divertido podia ser. Nem quão complicado. — Temos. Juro — assegurou Penny, ainda sentada. — Olha, mas achas que podes manter isto em segredo? Entre nós? Mika fez uma pausa, com o tabuleiro de cartão e os hashi usados na mão. — Queres dizer, não contar ao teu pai? Penny desconsiderou com um aceno de mão. — Não é nada de mais. Olha, é que há simplesmente algumas coisas que ele não precisa de saber. Mika sentou-se novamente no seu lugar. Penny queria que Mika mentisse a Thomas. Não posso. O pensamento atingiu Mika como um relâmpago. — Não me sinto lá muito confortável com isso, Penny. Não tens de ter a conversa da virgindade com ele, mas tens de lhe contar sobre o Devon, tens de lhe dizer, pelo menos, que andas com alguém. Quero dizer, sei por experiência própria que a verdade tem uma forma de se revelar — tentou brincar. O rosto de Penny endureceu. Olhou para todo o lado menos para Mika. — Se calhar, devia voltar para o dormitório. — O quê? — Mika vacilou. Penny tinha o fim de semana livre. Ia passar a noite com a mãe. — Sim, acabei de me lembrar de que prometi à Olive que íamos trabalhar juntas em alguns dos nossos tempos. — A sério? — Mika franziu uma sobrancelha. — A sério. — Penny levantou-se e agarrou no saco de compras dela, com tanta força que Mika reparou nos nós dos dedos esbranquiçados. — Pronta? Caminharam até ao carro, com a sombra da fúria de Penny seguindo-as de perto. Mika estava sem palavras. O que é que tinha acabado de acontecer? A viagem em si foi pior. Silenciosa e pulsante com o descontentamento de Penny. Mika jurou que ouviu um som de rasgar, um rasgão no tecido da relação dela e de Penny. Como é que o coseria de novo? Estacionou o carro junto ao dormitório e virou-se para a filha, falando com ela por cima da consola. — Eu… Tarde demais. Penny bateu com a porta. * * * Horas depois, Mika já não estava confusa. Capaz de repetir a conversa várias vezes na sua cabeça no silêncio de casa, vacilou entre estar profundamente magoada com Penny e zangada com ela. — Ela está furiosa comigo? — bufou Mika para si mesma, sentindo coisas indescritíveis sobre Penny. Coisas como quão teimosa e petulante a sua filha podia ser. Mas depois… — Ela está furiosa comigo — disse mais calmamente. Pensou em ligar a Thomas. Conversar com ele sobre a melhor maneira de abordar Penny. Mas era Penny quem ela queria mesmo, era com ela que Mika precisava de falar. Então, quando o sol se punha, ligou à filha. Ela não queria ir para a cama sem isto estar resolvido. Não havia um ditado sobre nunca ir dormir zangado? Seja como for, Mika não se queria esconder, acobardar-se sob as mudanças de humor de Penny. O telemóvel tocou algumas vezes e Mika preparou-se, acalmando os nervos. — Olá — disse Penny. Só isso. — Não quero que fiques zangada comigo — disse Mika de rompante. Ela estremeceu e esperou. Eu dei-a à luz. Devia ser- me natural ser maternal. — Também não quero ficar zangada contigo — admitiu Penny. Mika inalou e olhou pela janela da sala de estar para o pavimento escuro lá fora. — Bem, agora que estabelecemos que… — A sua voz desvaneceu-se. — Quero que sejas capaz de me contar coisas. Quero ser uma caixa de ressonância, um lugar seguro para ti, mas também sou a tua… — Ela parou mesmo antes de dizer mãe. — Sou adulta, e mentir ao teu pai deixa-me numa posição difícil. Depois de um instante, Penny suspirou. — Já percebi, acho. — Onde é que ela está? Mika tentou imaginar Penny no corredor do dormitório. O nariz enrugado, um pouco vermelho do choro, talvez Devon a ver. — Vou contar ao meu pai sobre o alojamento misto e o Devon. Não por me teres dito para o fazer… — Claro que não — interpôs Mika. — Mas porque eu quero que ele conheça o D. — Ela suspirou novamente. — Provavelmente vai fazer aquilo de dizer que não está zangado. Que está só desapontado. — Os lábios de Mika curvaram-se para cima. Típico do Thomas. — Mas acho que não lhe vou contar sobre a parte do sexo — disse Penny, como se estivesse a traçar uma linha na areia. Embora Penny não conseguisse ver, Mika anuiu com firmeza. — O corpo é teu, a escolha é tua. — Nós gostamos mesmo um do outro. Eu sei que sou uma adolescente e provavelmente é só isso que vês… — Não é só isso que vejo — disse Mika. — Acredito que és inteligente e sensata e que conheces o teu próprio coração. — Obrigada. Isso significa muito. — Reconheço que isto é constrangedor. — Mika teve de engolir o nó que se lhe formara na garganta. — Promete-me que falas comigo