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Mika na Vida Real - Emiko Jean

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Bruno Amorim

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Edição em formato digital: junho de 2023
MIKA NA VIDA REAL
Título original: Mika in Real Life
Texto © 2022, Emiko Jean
Publicado por William Morrow,
uma chancela de HarperCollins Publishers, Nova Iorque.
Todos os direitos reservados.
© desta edição:
2023, PRH Grupo Editorial Portugal, Lda.
Topseller é uma chancela de
Penguin Random House Grupo Editorial Portugal.
Rua Alexandre Herculano, 50, 3.º, 1250-011 Lisboa, Portugal
correio@penguinrandomhouse.com
Penguin Random House Grupo Editorial Portugal apoia a proteção do copyright.
Sem a prévia autorização por escrito do editor, esta obra não pode ser reproduzida, no todo
ou em parte, por meio de gravação ou por qualquer processo mecânico, fotográfico ou
eletrónico, nem ser introduzida numa base de dados, difundida ou de qualquer forma
copiada para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e
críticas.
Tradução: Maria Ferro
Revisão: Catarina Sacramento
Capa: adaptação de Wonder Studio sobre design e ilustração de Vi-An
Nguyen
ISBN: 978-989-787-180-1
Composição digital: M.I. Maquetación, S. L.
mailto:correio@penguinrandomhouse.com
Composição digital PRHGEP: Luís Gomes
Site: penguinlivros.pt
Twitter: @PenguinLivrosPT
Facebook: topseller.editora
Instagram: topseller.suma
Instagram: boldreadspt
http://www.penguinlivros.pt/
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Índice
Mika na Vida Real
Créditos
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Agradecimentos
Sobre este livro
Sobre Emiko Jean
 
Para a Yumi e o Kenzo
por me inspirarem a escrever este livro
Querida Penny,
 
Chovia no dia em que nasceste. No exterior da
maternidade, o céu estava da cor da cinza líquida e havia um
cartaz que dizia: OS NASCIMENTOS SÃO A NOSSA
ESPECIALIDADE. Concentrei-me nele enquanto dava à luz,
enquanto as enfermeiras e a médica berravam à minha volta.
«Está quase», exclamou uma enfermeira.
Tremi e fiz força para baixo, só queria que aquilo acabasse.
Um grito escapou-me da boca. Fiz força. A médica puxou. E
lá estavas tu. Lá. Estavas. Tu. Erguida no ar sob um
abrasador cone de luz.
Seguiu-se um silêncio terrível, um segundo agonizante que
se estendeu até à eternidade. Como se estivesses a decidir
como é que seria a tua entrada no mundo. Finalmente,
soltaste um choro, tão agudo e penetrante que até a médica
comentou. «Esta aqui já tem muito a dizer», disse ela.
Secretamente, fiquei satisfeita com a fúria na tua voz. Isso era
um bom presságio para ti, acreditei. Não serias facilmente
silenciada.
A médica cortou o cordão, e eu estendi os braços para
pegar em ti. Por alguns instantes, esqueci-me de que não
podia ficar contigo por não seres minha. Ela pousou-te nos
meus braços. Fiquei maravilhada com as tuas mãozinhas
minúsculas, o teu cabelo preto, a tua boca em forma de arco,
o teu nariz que parecia o de um touro quando as narinas se
abriam. O meu corpo tinha um propósito, e eras tu. No
espaço de uma única respiração, eu fiquei desfeita e
reconstruí-me.
O que se seguiu foi uma imagem difusa: pontos, roupa de
cama lavada e empanturrar-me até mais não. A Hana estava
lá. Tinha estado desde o início. Uma enfermeira tinha olhado
para mim e para a Hana, para as nossas carinhas de 19
anos, para quão jovens éramos, e fez um estalido com a
língua. «Bebés a terem bebés», dissera ela. Era fácil
perceber o que ela queria dizer — raparigas idiotas, raparigas
irresponsáveis, aquelas raparigas. Ela viu a Hana a tratar a
ementa do serviço de quartos como se fosse a sua máquina
de venda automática pessoal, viu-a a surripiar pratos em
forma de rim, viu-a a encher os bolsos com pensos
higiénicos. Mas não viu a Hana a ajudar-me a tomar banho,
quando fiquei zonza ao tentar pôr-me em pé. Não me viu a
chorar na casa de banho, a murmurar «desculpa» vezes e
vezes sem conta enquanto a Hana descrevia círculos com o
sabonete no meu corpo, me limpava debaixo dos braços e
suavemente entre as pernas. E não viu a forma como a Hana
respondia com um sorriso, como se não fosse nada de
especial.
A Sra. Pearson, a agente de adoção responsável pelo meu
caso, apareceu na altura em que o meu cabelo ainda estava
a secar. Tirou alguma papelada da mala. Já estava pré-
preenchida. Tudo o que eu tinha de fazer era assinar.
Tocaram os sinos, ecoando pelo corredor do hospital. Uma
canção chamada Breath of Life que tocava sempre que
nascia um bebé. Quando peguei na caneta, a Hana apertou-
me a mão. «Tens a certeza?», perguntou.
Tudo o que consegui fazer foi assentir com a cabeça.
Respirar. Virando as páginas, rabisquei o meu nome. Ignorei
os barulhinhos que fazias durante o sono. Ignorei a forma
como o quarto todo cheirava a antissético. Prestei toda a
minha atenção à seta cor-de-rosa fluorescente que indicava
onde a minha assinatura final deveria ficar. Em cima havia um
aviso com letras em negrito. «Após a cedência, a certidão
de nascimento original será selada e será emitida uma
nova» — uma certidão com os nomes dos teus pais adotivos.
Assinei, apagando-me da tua vida. Estava feito.
Depois, abracei-te uma última vez. Desembrulhando a
manta que te embrulhava, beijei cada um dos teus dez dedos,
as tuas duas bochechas, o teu narizinho. Por fim, encostei a
palma da minha mão ao teu peito. Estavas quente, e senti
que me marcavas. «Tenho tanta pena», sussurrei,
desculpando-me por aquilo que desejava, mas não podia
manter. Abracei-te durante mais alguns instantes. Depois,
larguei-te. Deixei a Sra. Pearson levar-te.
Não consegui ver. Em vez disso, baixei a cabeça e tentei
agarrar-me à memória da primeira vez que te vi numa
ecografia — com uma grande barriga, as mãos a abanar, o
cordão umbilical a flutuar — uma pequena mergulhadora. Vi-
me, então, como um daqueles bezerros que se movem em
círculos nas águas rasas e estão sempre a ficar encalhados,
falhando uma e outra vez. Eu não queria que tu nadasses em
vão. Queria que encontrasses o alto-mar, que mergulhasses
fundo, que a tua vida fosse uma linha única, reta, perfeita.
A porta fechou-se, e lembro-me do estalido silencioso, do
som que eras tu a afastares-te de mim. Quando te foste
embora, o quarto do hospital pareceu tremendamente vazio;
pensei que morreria de solidão. Outra pessoa iria ver-te a
dormir. Outra pessoa tocar-te-ia no peito e certificar-se-ia de
que estavas a respirar. Chorei com um abandono tão
selvagem que a Hana pensou que eu tinha rasgado os
pontos.
E foi isto. Isto é tudo. Todos estes momentos ainda vivem
em mim. Tu ainda vives em mim. Metade das minhas
respirações, um quarto de cada batida do coração, são tuas.
Acho que é isso que acontece quando se tem filhos… eles
levam um pedaço de nós.
Não pensei no futuro naquele dia. Não pensei nos Calvins,
a tua nova mãe e o teu novo pai, no quão brancos eles eram.
Quem é que te iria ensinar a seres um corpo amarelo na
América? Não pensei no que te poderia dizer se viesses ter
comigo e me perguntasses: «Porquê, quem és tu, quem sou
eu?» Claro, sonhei que podia fazer parte da tua vida, mas da
mesma forma que alguém pede um desejo a uma estrela-
cadente ou compra bilhetes da lotaria. Nunca acreditei que
isso pudesse realmente acontecer. E nunca acreditei que
iríamos estar de volta ao mesmo hospital — tu com 16 anos,
eu com 35 — ou que tu estarias na cama desta vez, e eu
estaria a pedir-te desculpa novamente.
Desculpa, Penny. Estraguei tudo. Magoei-te.
Não posso prometer que nunca mais te vou magoar. A
verdade é que não há muito que eu possa prometer-te. Ainda
assim, ainda assim. O pouco que tenho é teu. Aconteça o queacontecer. Quer me perdoes quer não. Quero que saibas que
vou estar sempre por perto. Como qualquer mãe ou pai, vou
estar aqui, à espera de que a minha filha volte para casa.
 
Mika
Sete meses antes...
D
CAPÍTULO 1
espedida.
Mika pestanejou.
— Peço desculpa... como assim? — perguntou a Greg, na
caixa de sapatos que lhe servia de escritório. Na verdade, não era
realmente um escritório. Era um cubículo recortado na grande
sala das fotocopiadoras da Kennedy, Smith & McDougal Law. Mas
Greg dominava o pequeno espaço como se fosse um gabinete de
canto no trigésimo andar. Chegara até a decorá-lo: um bonsai no
canto da secretária, uma espada de samurai barata, mal presa à
parede. Greg era branco e um autoassumido nipófilo. Em mais do
que uma ocasião, tentara conversar com Mika em japonês, e ela
hesitara — ela era fluente, só não era fluente para ele. Pois bem,
esse tipo.
Greg recostou-se na cadeira.
— Isto não deve ser uma surpresa para ti — disse ele, formando
uma pirâmide com os dedos e colocando-os debaixo do queixo
sem um único pelo. — Tenho a certeza de que já ouviste os
rumores.
Mika anuiu com uma expressão vaga. Um sócio sénior,
daqueles que atraem muitos clientes para a empresa, tinha saído
recentemente para outra firma. As margens de lucro não estavam
famosas. Ela abriu as mãos.
— Mas eu ganho vinte dólares à hora. — Uma ninharia em
comparação com os outros empregados assalariados. Será que
os mandachuvas acreditavam que despedir uma administrativa
iria fazer mossa nas suas preocupações financeiras?
Greg acenou com uma mão.
— Eu percebo — disse ele. — Mas tu sabes como são estas
coisas, os últimos da hierarquia... — A sua voz desvaneceu-se.
— Por favor. — Ela detestava implorar, especialmente a Greg.
— Eu preciso deste emprego. — Mika gostava da Kennedy, Smith
& McDougal. O trabalho era fácil. O salário era bom. O suficiente
para conseguir pagar a renda e as despesas fixas todos os
meses, sobrando-lhe alguma coisa para ir ao supermercado fazer
compras, a maioria das quais pertencia à variedade de queijos de
pasta mole. Além disso, o prédio situava-se perto do museu. Ela
ia lá no intervalo do almoço, e fazia a digestão enquanto olhava
para quadros de Monet e passeava pela secção de antiguidades,
descansando a alma. — Então e a Stephanie? — A Stephanie
tinha sido contratada depois de Mika.
— A Stephanie tem mais experiência como assistente jurídica
do que tu. A decisão resumiu-se a saber quem era um melhor
ativo para a empresa. Olha, tenho a certeza de que vais encontrar
outra coisa. Infelizmente, não te qualificas para o subsídio de
desemprego, uma vez que estás aqui há menos de um ano, mas
vou escrever-te uma bela carta de recomendação.
Greg começou a pôr-se de pé. Fim da discussão.
— Eu aceito um corte no salário — soltou bruscamente Mika. O
seu olhar cravou-se no chão, mais ou menos onde estava o seu
orgulho. Não estava a conseguir lidar com a situação. As lágrimas
ameaçavam escorrer. Tinha 35 anos e era despedida de mais um
emprego. Outra vez.
Greg abanou a cabeça.
— Sinto muito, Mika. Não vale a pena. Hoje é o teu último dia.
* * *
O ténue odor a pipocas bafientas. As velas para cura emocional
em liquidação. O que é que tinha esta loja de especial que tanto
atraía Mika para o seu interior? Ficou na secção de produtos para
o lar, a examinar uma almofada bordada com o ditado «O DINHEIRO
PODE COMPRAR UMA CASA, MAS NÃO UM LAR». Ao telemóvel, Hana ria-
se.
— Então, deixa-me ver se percebi bem. Ele convidou-te para
sair enquanto estava a despedir-te?
— Logo a seguir — corrigiu Mika. Greg acompanhara-a até à
secretária, ficara a vê-la a arrumar as suas coisas e depois tinha-
lhe perguntado se ela gostaria de ver um filme mais tarde ou
talvez ir ao Festival das Cerejeiras em Flor na universidade, no
fim de semana seguinte. A humilhação irada foi profunda.
Hana soltou outra gargalhada.
A boca de Mika esboçou um sorriso.
— Por favor, não faças isso. Estou num lugar muito vulnerável
neste momento.
— Estás num Target — salientou Hana.
Mika inclinou a cabeça, a contemplar a almofada. Fora
desenhada por um casal que tinha ficado podre de rico fazendo
casas novas parecerem velhas. Tinha tudo que ver com tábuas de
madeira. A almofada podia ser dela por 29,99 dólares.
— Nunca pensei que pudesse ser despedida e assediada
sexualmente no mesmo dia. É uma novidade.
Mika deixou a almofada para trás e dirigiu-se à secção de
vinhos. A sua carteira estava mais leve, mas uma garrafa de vinho
de cinco dólares era uma necessidade.
Hana emitiu um som de solidariedade.
— Podia ser pior. Lembras-te de quando foste despedida
daquela loja de donuts por guardares donuts com xarope de ácer
no congelador e comê-los entre uma encomenda e outra?
— Isso foi na faculdade.
Mika encaixou o telemóvel entre a orelha e o ombro. Tinha
acabado de escolher o vinho, agora estava no corredor da
comida, a encher o cesto com crackers de queijo. Era só classe.
— Ou daquele trabalho que tinhas como ama, por veres o The
Shining com os miúdos?
— Eles disseram que queriam uma história de fantasmas —
defendeu-se ela.
— Então e quando escreveste aquela fanfiction para adultos
baseada no filme O Predador, e depois deixaste a janela aberta
no teu computador do trabalho?
A confusão estampou-se no rosto de Mika.
— Isso nunca aconteceu.
Hana riu-se outra vez. Mika esfregou a testa, sentindo-se como
se tivesse caído de uma árvore aziaga, acertando em cada ramo
ao longo da queda, e depois aterrando num fosso de cobras e
ursos.
— O que é que eu vou fazer?
— Não sei. Mas estás em boa companhia. Descobri esta manhã
que os Pearl Jam escolheram o Garrett para a digressão de
verão. — Hana era intérprete de língua gestual para bandas, e
Garrett, tendo vindo recentemente do circuito de rock alternativo
cristão, tinha invadido o território de Hana. — Vou provavelmente
ter de fazer um monte de espetáculos dos Earth, Wind & Fire
agora. Cabrão do Garrett. Vem para casa. Vamos comer e beber
para chorarmos as nossas mágoas juntas.
— Combinado.
Mika desligou e atirou o telemóvel para dentro da mala. Passou
um minuto. Mika vagueou pela loja. O telemóvel tocou. Podia ser
Hana outra vez. Ou a mãe, Hiromi, que já tinha deixado uma
mensagem naquela manhã. Passei pela igreja e conheci o novo
membro da congregação. Chama-se Hayato e trabalha na Nike.
Dei-lhe o teu número. O telemóvel tocou outra vez. Às vezes,
Hiromi ligava duas, três vezes seguidas, induzindo o pânico. Da
última vez, Mika atendeu sem fôlego, já a pegar nas chaves,
pronta para ir para o hospital. «O que é que se passa?»
Hiromi respondera: «Nada. Porque é que pareces estar sem
fôlego? Queria dizer-te que o Fred Meyer está com o frango em
promoção...»
Mika ouvira, o mau feitio a crescer. «Não podes ligar tantas
vezes. Pensei que tinha acontecido alguma coisa», dissera.
Ao que Hiromi zombara: «Lamento não estar mais morta para
ti.» O telemóvel continuou a tocar. Mika tirou-o da mala e olhou
para o ecrã. Um número privado.
Curiosa, deslizou o dedo para atender.
— Estou? — disse ela, com as sobrancelhas franzidas a unirem-
se. Merda, pensou tarde demais. Podia ser o novo membro da
congregação, o tal Hayato. Rapidamente, percorreu possíveis
desculpas. O meu telemóvel está a morrer. Eu estou a morrer.
— Oh, uau! Atendeu! Não tinha a certeza se ia atender! — disse
uma voz jovem e muito animada. A ligação ficou abafada, como
se uma mão tivesse sido colocada sobre o altifalante do telefone.
— Ela atendeu. O que é que eu faço? — disse a voz a alguém ao
fundo.
— Estou? — disse Mika mais alto.
— Desculpe, a minha amiga Sophie está aqui. Sabe, para dar
apoio moral? Estou a falar com a Mika Suzuki?
— É a própria. — Mika pousou o cesto aos pés dela. — Quem
fala?
— Chamo-me Penny. Penelope Calvin. Acho que sou sua filha.
* * *
Mika conseguiu segurar o telemóvel mesmo quando os seus
membros perderam totalmente as forças. Mesmo quando o
sangue começou a galopar-lhe nas veias e a visão ficou turva e
depois afunilou. Mesmo quando voltou atrás no tempo, de
regresso aohospital, de regresso a Penny recém-nascida. O dia
veio-lhe à memória em lampejos dilacerantes. Mika a aconchegar
Penny na curvatura do seu braço. A beijar-lhe a testa. A afastar-
lhe o cabelo para lhe pôr um fino gorro às riscas azuis na cabeça.
Tudo tão insuportável e belo.
— Ainda aí está? — perguntou Penny. — Estou a falar com a
Mika Suzuki certa? Eu paguei uma daquelas coisas de pesquisa
online. Usei o cartão de crédito do meu pai para um teste grátis.
Ele vai matar-me se descobrir! Mas, sem stress, vou cancelar
antes de cobrarem.
Seguiu-se o silêncio. Penny estava à espera de que Mika
dissesse alguma coisa. Ela fechou os olhos e abriu-os.
— Isso foi muito inteligente — murmurou ela, a tremer. Sentar-
se. Precisava de se sentar. Mika cambaleou para trás até dar com
uma cadeira de plástico para exterior, agarrando-se ao apoio de
braços para recuperar o equilíbrio, com os nós dos dedos a
ficarem brancos. Como é que ela tinha ido parar à secção de
jardim?
— Eu sei, não é? O meu pai diz sempre: «Se ao menos usasses
os teus poderes para o bem!» — Penny baixou a voz uma oitava,
fazendo-se passar pelo pai dela. Mika quase sorriu. Quase. —
Então, estou a falar com a Mika Suzuki certa? Não há muitas no
Oregon. As outras únicas duas candidatas eram mais velhas.
Quero dizer, acho que elas podem ser a minha mãe biológica.
Havia, tipo, aquela senhora que deu à luz gémeos aos 50 anos?
Mas eu tinha quase a certeza de que era a senhora... Ainda aí
está?
Mika estava a transpirar, sentindo o telemóvel escorregadio ao
ouvido. Inspirava e expirava. Para dentro e para fora.
— Estou aqui.
— E é a Mika Suzuki? Deu um bebé para adoção há dezasseis
anos?
Sentiu as têmporas a latejar.
— Sou, sim. Dei, sim — disse Mika, com a garganta seca.
Secretamente, tinha sonhado com este momento. O dia em que
poderia ouvir a voz da filha. Falar com ela. Às vezes, a fantasia
beirava o delírio. Ao longo dos anos, pensou que tinha visto
Penny algumas vezes. O que era ridículo. Sabia que Penny vivia
no Midwest. Mas quando via uma menina de cabelo preto e franja
muito direita, o corpo de Mika inflava com a certeza. Sentia um
puxão invisível. É a minha menina, pensava, desiludindo-se
depois quando a menina se virava e o nariz não era o certo, ou os
olhos eram verdes, não de um castanho profundo. Não era Penny.
Era uma impostora.
Mika afrouxou o aperto ao braço da cadeira de jardim, as pernas
a tremer ao tentar pôr-se de pé. Começou a vaguear pelos
corredores. Precisava de se mexer. Isso ajudava-a a manter-se
focada, a manter-se no presente. Ajudava a exorcizar a
tempestade de emoções que se formara.
— Isto é fantástico! — guinchou Penny.
— Não acredito que me encontraste — disse Mika, ainda
totalmente atordoada. Passou por um expositor com pastilhas de
magnésio dentro de frascos roxos.
— Não foi difícil. O seu nome é súper único e fixe. Quem me
dera ter um nome japonês — suspirou Penny com melancolia.
— Oh. — Mika franziu o sobrolho, sem saber o que dizer. Ela
tinha escolhido o nome Penny. Tinha feito um grande alarido por
causa disso, tinha insistido para que isso fizesse parte do acordo
legal. Podem ficar com a minha filha, mas não podem ficar com o
nome dela. Embora a Sra. Pearson se tivesse esforçado por fazer
a adoção parecer menos transacional, certas partes não podiam
ser evitadas. Houve advogados. Negociações. Papelada rigorosa
que tendia ligeiramente a favor da família adotiva. Mas o nome...
o nome era de Mika. Inicialmente, tinha considerado Holly, uma
planta que floresce no inverno. No Japão, era tradição os pais
escolherem o nome com base nas suas esperanças para a
criança. O nome Mika em kanji traduzia-se por «bela fragrância».
Isso dizia muito a Mika sobre o valor que tinha para a sua mãe.
Era como um acessório. Como algo destinado a atrair. Mika não
quisera isso para a sua filha. Então, finalmente, decidira-se por
Penelope, que significa «fiandeira» na Odisseia de Homero. Era
um nome forte, resiliente e aspiracional; encaixava na vida que
Mika queria para a sua filha. A pessoa que ela pensava que podia
vir a ser. A família a que poderia pertencer.
Mika também esperava que um nome mais americano pudesse
facilitar a vida a Penny. Mika tinha anos de erros de pronúncia e
de ortografia às costas. Tinham-lhe chamado Mickey um número
infindável de vezes. Ela queria que Penny se enturmasse. Mas
não parecia ser a altura certa para dizer tudo isto. Em vez disso,
disse:
— Lamento o que aconteceu à tua mãe.
Quando a Sra. Pearson informara Mika, cinco anos antes, de
que Caroline Calvin tinha cancro e estava a morrer, ela implorou
para ser posta em contacto com Penny, jurou que podia sentir a
dor da filha a pressionar-lhe a pele como um ferro em brasa.
«Ela precisa de mim», dissera Mika.
«Vou tentar», respondera a Sra. Pearson, a agente de adoção.
Mas depois, Thomas Calvin negou o pedido. «Lamento, Mika»,
disse a Sra. Pearson, «a Caroline não tem muito tempo. Cancro.
Estádio quatro. Muito de repente. Ele quer que sejam só eles os
três nestes últimos dias».
— Sim. — A voz de Penny esbateu-se. — Passámos um mau
bocado. Acabámos de assinalar o quinto aniversário. Não acredito
que já passou tanto tempo.
O silêncio voltou a abater-se na chamada. Mika continuou a
andar. Sem destino conhecido. Tinha o corpo todo em alvoroço.
Passou pelo corredor dos testes de gravidez. Há quase dezassete
anos, andara à cata de trocos no carro de Hana para encontrar
dinheiro suficiente para comprar um teste na loja de um dólar,
depois urinara para cima do teste na casa de banho de um
supermercado próximo. Ainda mal se tinha limpado quando as
duas linhas cor-de-rosa apareceram, quando o mundo dela se
desmoronou.
Mika percebeu que tinha ficado em silêncio por muito tempo.
— Ela escrevia-me cartas, a tua mãe, e enviava-me pacotes
com fotografias tuas, desenhos que tinhas feito. Ela tinha uma
caligrafia bonita — saiu-lhe atabalhoadamente.
Mika não sabia muito sobre o casal que tinha adotado Penny.
Escolhera-os de entre dezenas de perfis de famílias em álbuns de
recortes. Ganhou o hábito de olhar fixamente para as fotografias
dos futuros pais de Penny. Para Thomas, um advogado
especializado em direitos de autor, fotografado na faculdade, com
a sua equipa de remo. Focara-se nas mãos dele à volta dos
remos, na covinha formada pelas rugas entre os seus olhos
verdes. Ele é forte, lembrava-se Mika de ter pensado. Ele
defenderia Penny. Depois, olhava para Caroline, também na
faculdade, a sua camisola com letras gregas, o seu sorriso largo.
Era fácil imaginá-la a sorrir da mesma maneira para Penny, a
dizer-lhe coisas maravilhosas, como Estou orgulhosa de ti. Estou
tão feliz por seres minha. Atravessaria o escuro às cegas por ti.
— Ela tinha mesmo uma letra bonita. Era perfeita — disse
Penny carinhosamente. Isso não surpreendeu Mika. Caroline
parecia perfeita em todos os aspetos da sua vida. — A minha é
tão desleixada. Sempre me perguntei se isso era algo genético.
Mika não pensava que fosse. Mas ansiava por uma ligação a
Penny, alguma forma de as unir.
— A minha caligrafia também é terrível.
— Ai, é? — Uma nota de esperança na voz de Penny.
Mika abrandou. Acalmou-se um pouco.
— Gosto de pensar nela como a minha própria fonte. Podia
chamar-se «café e donuts a mais».
Penny riu-se. Era um som agradável, encorpado e sincero. A
sua filha.
— Ou «Arruma essa tua confusão».
Finalmente, Mika fez uma pausa no corredor dos detergentes.
Não havia lá ninguém. Recostou-se, inalou o cheiro a roupa
lavada. Acreditara que, com o tempo, a memória de Penny,
daquilo que acontecera antes, poderia desvanecer-se, mas só
ficou mais nítido em contraste com as memórias desfocadas,
menos importantes, do seu passado recente. Terminar a
faculdade, o seu primeiro emprego remunerado, até mesmo parte
da gravidez... o relógio imparável alisara todas essas arestas
ásperas. Mas Penny, a bebé, a bebé de Mika, tinha perdurado,
uma mão moldada em betão. Desejava ter sabido na altura aquilo
que sabia agora. Que todos os dias iria acordar e pensar em
Penny. Na idade queteria. No que poderia trazer vestido. Para
quem poderia estar a sorrir. Que o seu amor se agarraria com
unhas e dentes, incapaz de capitular.
— A senhora está bem? — disse uma mãe com dois filhos que
entrara no corredor.
Mika endireitou-se num pulo.
— Perfeitamente. Está tudo bem.
Uma das crianças tinha chocolate pela cara toda. Lambeu um
círculo lento à volta dos lábios. A mãe esperou até Mika começar
a andar antes de ela própria se deslocar.
— Está mais alguém aí consigo? — perguntou Penny.
— Não. Estou a fazer compras. Estou num Target — disse Mika
sem se dar tempo para pensar. Quis esmurrar-se na cara. Com
força. O que iria pensar Penny? Uma mulher adulta num Target,
numa quarta-feira à tarde. Será que ela estaria a perguntar-se
porque é que Mika não estava no emprego?
Penny praguejou.
— Desculpe. Devia ter perguntado se era boa altura para
falarmos. É melhor eu desligar.
Mika não gostou do som daquelas palavras. A ameaça de este
pequeno fio ténue ser cortado novamente. Será que Penny
também o sentiu? Este fluxo de êxtase, como se fosse energia a
passar entre elas.
— Não. Está tudo bem.
— Eu tenho de ir, de qualquer maneira. O meu pai está quase a
chegar a casa.
Não. Continua a falar. Até te ouvia a leres o Guerra e Paz.
Mika abafou a súbita vontade de chorar.
— Claro que sim. Foi bom falar contigo. — Mika saiu da loja. O
céu estava cinzento; era primavera em Portland. Dois corvos
bicavam no lixo no parque de estacionamento. Mika pestanejou e,
no interior das pálpebras, viu outro conjunto de corvos. Há muito
tempo, a lutarem por uma embalagem de melancia deitada ao
lixo. Tratou de afastar a memória. — Se alguma vez precisares de
alguma coisa... Se eu alguma vez puder fazer alguma coisa...
— Na verdade… — Penny exalou bem alto. — Eu gostaria de
continuar a falar. Gostava de lhe ligar outra vez. Talvez até por
Skype? Seria bom vermo-nos cara a cara.
— Oh — disse Mika, demasiado atordoada para respirar,
demasiado abalada pela incredulidade. Penny queria-a. Penny
queria-a a ela. E Mika foi trespassada por um desejo tão agudo
que temia que se pudesse desfazer. Então, falou por impulso, por
desejo furioso, e respondeu:
— Sim, é claro que sim. Ia gostar muito.
M
CAPÍTULO 2
ika foi para casa num estado de fuga dissociativa. Não se
lembrava de ter enfiado a chave na ignição, ligado o carro,
saído do estacionamento, não se lembrava dos postes de
iluminação pública, dos piscas, das ruas em que virara, nem de
ter estacionado o carro junto ao passeio. Assim que estacionou,
permaneceu sentada no banco do condutor, com o motor
desligado. A chuva salpicava o para-brisas.
— Penny — sussurrou para o silêncio. Dizer o nome da filha
parecia uma oração, quase um segredo, um sino a tocar, a
chamá-la para casa, que são horas de jantar. — Penny, Penny,
Penny — disse ela, vezes e vezes seguidas. A boca elevou-se-lhe
nos cantos, formando um sorriso completo, quando saiu do carro.
Ervas daninhas e várias plantas espinhosas espreitavam por
uma cerca branca lascada e com a tinta a descascar. O caminho
de acesso à casa mal se via. Mika vivia numa pequena moradia.
Uma das portadas da casa estava descaída, presa apenas por um
único prego. Monstruosidade seria um termo generoso. Mika
destrancou a porta e empurrou-a... só que... havia alguma coisa a
bloqueá-la. Depois de muitos grunhidos, Mika cambaleou porta
adentro, afastando caixas do seu caminho.
A irritação conseguiu manchar a alegria.
— Uau! Acordaste esta manhã e disseste: «É mesmo hoje que
vou levar esta merda ainda mais longe e barricar-me até
encontrarem o meu esqueleto daqui a vinte anos»? — Mika deu
um abraço a Hana.
Hana manteve os olhos focados na televisão, com um bolo meio
comido no colo.
— Tão estranho. Foi exatamente isso que disse a mim mesma.
Estás atrasada. — Hana enfiou-lhe um bocado de bolo na boca.
— Comecei sem ti. Também tenho estado para aqui a pensar.
Acho que devíamos arranjar um cão e ensinar-lhe que «cagar»
significa «Garrett». Tipo, em vez de dizermos «vai cagar»,
dizemos «vai ao Garrett». Depois, eu filmo e envio-lhe. — Ela
levantou os olhos. — Onde está o vinho?
— Nada de cão. Nada de filme. Nada de enviar ao Garrett. E
esqueci-me do vinho.
Mika contornou caixas por abrir e plantas mortas, depois atirou
ao chão a pilha de revistas que estava em cima de uma cadeira
para se sentar nela. Durante algum tempo, Hana conseguira
controlar a sua compulsão para guardar tudo. Tinha comprado a
casa com a namorada, Nicole. Tinham ficado contentes,
enchendo-a com achados que arranjavam em vendas de garagem
e feiras. Até tinham adotado um cachorrinho. Depois, Nicole traiu-
a. Hana ficou com a casa. Nicole ficou com o golden retriever que
era das duas. Mika, tendo acabado de romper a relação com Leif
e estando com pouco dinheiro, ofereceu-se para ir viver com
Hana. Juntas, afogaram os seus corações destroçados em vinho
e comida cara e chegaram à conclusão de que a amizade delas
era muito melhor do que aquilo que tinham tido com qualquer dos
amantes anteriores. Elas compreendiam-se melhor uma à outra.
Mika não se importava que Hana tratasse as compras online
como se fosse o seu dever patriótico. Hana não dava importância
ao péssimo historial laboral de Mika. Ninguém era perfeito.
Abraçar os defeitos uma da outra tinha sido a base sobre a qual a
amizade delas fora construída.
Por isso, Mika não ficou perturbada por ver Hana no sofá, a
queixar-se de um colega de trabalho e a ver...
— Monstro? Estás mesmo a ver o Monstro? Um filme sobre
assassinas em série lésbicas? — Mika encontrou o comando
entre as latas de Red Bull e Mountain Dew. Desligou a televisão.
— Então?! — exclamou Hana.
— Há para aqui muita coisa para desempacotar. — Mika fez um
gesto que englobou o caos generalizado: a tralha amealhada, os
bolos semicomidos e o filme a dar no televisor. — E eu não tenho
tempo. Tenho de te dizer uma coisa.
Hana sentou-se e pousou o bolo.
— Estou curiosa.
Havia um bocadinho de cobertura de bolo na camisola de roller
derby1 que lhe deixava a barriga à mostra.
— A Penny telefonou-me.
— Ah! — Hana ladrou uma gargalhada. Depois, quando viu a
expressão no rosto de Mika, disse: — Cum caraças. Estás a falar
a sério.
Mika só conseguia acenar com a cabeça. Sentia o estômago às
voltas só de pensar nisso. Ela tem cheiro de bebé acabado de
nascer, ronronara Hana no hospital enquanto segurava a recém-
nascida Penny, esfregando a sua face na dela.
Hana recostou-se.
— Uau! Grande cena!
— Eu que o diga. — Mika abriu a boca, mas o seu telemóvel
apitou: acabara de receber uma mensagem. Seria Penny outra
vez?
— É ela? — Hana inclinou-se para a frente, lendo os
pensamentos de Mika.
Mika olhou para baixo.
— Não, é a Charlie. — Leu a mensagem. — Está a pensar em
oferecer ao Tuan um retrato em tamanho real feito de Lego. —
Tuan era o marido de Charlie.
Hana revirou os olhos.
— Ignora-a. Como é que a Penny te encontrou?
Hana pegou numa caixa de madeira que estava em cima da
mesa de centro e abriu-a. Lá dentro, havia um pequeno saco de
plástico cheio de erva e alguns papéis. Preparou-se para enrolar
um charro entre os dedos longos.
Mika encolheu os ombros.
— É a Internet, explicou a Penny. Hoje em dia, consegues
encontrar qualquer pessoa.
Mas, pensando melhor... como é que Penny a encontrara
mesmo? Mika tinha escolhido uma adoção fechada: a sua
identidade permaneceria secreta e, em troca disso, receberia
atualizações anuais. Algo mais do que isso teria sido demasiado
doloroso. Contentara-se com tão pouco, migalhas mesmo, porque
sabia que, de outra forma, não se conseguiria manter afastada.
Para ela, era indiferente se tinha sido Thomas Calvin a revelar a
Penny o seu nome ou se a jovem tinha tropeçado na informação
ao bisbilhotar nas coisas dos pais. O que importava era o aqui e
agora. Que Penny tinha telefonado a Mika. Que Penny queria
conhecer Mika.
— É verdade. — Hana lambeu o papel e selou o charro.
Melhor do que ninguém, a melhor amiga de Mika havia de saber
como era fácil encontrar pessoas online. Há alguns anos, ela tinha
encontradoa sua antiga professora da escola. A tal que tinha
chamado à cor da sua pele «meia de leite». Hana era metade
negra, um quarto vietnamita e um quarto branca: húngara e
irlandesa. Assediou tanto a mulher que a fez abandonar as redes
sociais.
Hana acendeu o charro, deu uma passa e ofereceu-o a Mika.
— Como é que ela é?
Mika segurou no charro entre os dedos e olhou para o teto.
Havia uma racha que o atravessava e que se arrastava para
baixo, dividindo a parede. Mika tinha quase a certeza de que
aquilo significava que tinham problemas nas fundações.
— Não sei. A conversa foi curta. Ela é jovem, cheia de
esperança, positiva. — Uma força da natureza. — Usou o cartão
de crédito do pai para se inscrever num website que faz testes
grátis para encontrar pessoas. — Mika dirigiu um sorriso maroto a
Hana e levou o charro aos lábios. — Ela disse que ia cancelar o
pagamento antes de o pai descobrir.
Mika passou o charro de novo a Hana.
— Faz-me lembrar como nós éramos. — Hana sorriu e deu uma
passa. — Então — disse ela, exalando —, o que é que ela
queria?
Mika mordiscou o lábio de baixo. A porta do seu quarto estava
aberta. A cama estava uma confusão, o edredão empurrado até
ao fundo. Não valia a pena fazer a cama se ia escorregar para o
meio dos lençóis umas horas depois. No chão, estava a sua t-shirt
preferida com um Gudetama, um desenho animado dos criadores
da Hello Kitty. Aquilo que parecia ser uma bolha amarela disforme
era um ovo preguiçoso.
— Ela quer conhecer-me. — As rodinhas de Mika começaram a
girar. Avaliou rapidamente o seu ambiente, a sua vida, avaliou-se
a si mesma e arrependeu-se de imediato.
O que poderia ela oferecer a Penny? O que é que tinha
alcançado na vida? A sua vida amorosa era anémica. Alguns
namorados, uma relação séria com Leif que acabou com as
coisas dele queimadas num caixote de lixo. E a sua vida
profissional era igualmente insubstancial. Uma série de empregos
que não a deixaram sentir-se realizada. Todos eles posições
facilmente substituíveis. Encarava-se a si própria como uma pedra
a saltitar sobre a água turva. O tempo passava sem
consequências, sem pensar, permanecendo na mesma,
afastando-se cada vez mais da costa. Mas um seixo nunca chega
ao outro lado. Acaba sempre por ir ao fundo. Quando é que eu fui
ao fundo? O estômago de Mika afundou-se.
— Eu disse-lhe que podíamos voltar a falar, mas agora… não
sei.
Sentiu-se tão inadequada como naquele dia no hospital.
— Desenvolve. — Hana apagou o charro.
Mika desviou o olhar da casa e concentrou-se no seu próprio
colo. Quais eram os riscos de estabelecer uma ligação com
Penny?
— Ela pode detestar-me. Eu posso detestá-la a ela — pensou
Mika em voz alta. Embora não se conseguisse ver a odiar Penny.
Penny podia matar alguém, e Mika levar-lhe-ia uma pá para
enterrar o corpo. Ela iria dar sempre a Penny o benefício da
dúvida. Acreditar nela. — Tenho a certeza de que ela tem
perguntas. Montes de perguntas. Ela parece... persistente. Talvez
queira saber mais sobre o seu pai biológico. E ela gostava de ter
um nome japonês.
Hana inalou. Deslizou pelo sofá, aproximando-se de Mika.
— É claro que há de estar curiosa. Todos nós queremos saber
de onde viemos. Mas ela não tem direito a essa informação até tu
estares preparada.
Nos termos da lei, Mika havia assinado um formulário a atestar
que não sabia nada sobre o pai biológico da sua bebé, como a
sua idade ou a sua localização, ou o facto de ele ter um sinal de
nascença com a forma do estado do Maine no peito.
— E se ela estiver zangada comigo? — perguntou Mika num fio
de voz.
Hana inalou.
— Posso dar-te um conselho, mesmo sem teres pedido?
— Nunca te acanhaste.
— Quando a Nicole me enganou, a Charlie fez-me sentar e
disse-me: «É preciso força para sair e força para ficar.» — Hana
sacudiu cinza do joelho. — Tenho quase a certeza de que
apanhou isso de um daqueles gurus de autoajuda.
Mika franziu o sobrolho.
— Não estou a perceber.
— O que eu quero dizer é que terias mostrado força se tivesses
ficado com a Penny, mas também mostraste força ao abrires mão
dela. E se a Penny for tão inteligente como parece ser, não se vai
importar com o que fizeste; vai importar-se com quem és.
— E quem sou eu? — perguntou Mika em tom de desafio.
Pensou no seu currículo pouco impressionante. Entusiasta do
desemprego. Fumadora de erva. Mãe biológica.
Hana começou a elencar com os dedos.
— Primeiro, és leal. Em segundo lugar, és solidária. Em terceiro
lugar, tens um coração de ouro. Em quarto lugar, és uma artista
incrível que sabe todo o tipo de coisas sobre arte, especialmente
coisas realmente desinteressantes, tipo quais as cavernas que
têm pinturas de pilas de homens das cavernas. Em quinto lugar…
— Já chega. — Mika levantou as mãos, interrompendo Hana. —
Não estou exatamente preparada para isto emocionalmente. —
Hana sabia a confusão que aquilo podia gerar. Todos os anos, por
volta do aniversário de Penny, chegava um embrulho. Mika lia a
carta de Caroline ou de Thomas, olhava para as fotografias de
Penny com a família feliz, esfregava os polegares nos desenhos
de Penny e depois espalhava tudo à sua volta num abraço
sufocante. Mika passava o dia todo na cama. Hana também.
Punha-se atrás de Mika, sem dizer uma palavra, e enrolava os
braços à sua volta num casulo de luto. Choravam juntas. Mika por
Penny. E Hana por Mika.
— Alguma vez se está preparado? Esse é o objetivo das
emoções. Quanto menos se espera delas, mais intensas são.
Essa é a beleza dos sentimentos.
— Isso é parvo. — Mika encostou a cabeça à cadeira. Toda a
situação era esmagadora em todos os sentidos. Mas Hana estava
lá. Tinha sempre estado lá. — Adoro-te, miúda — disse ela à sua
melhor amiga. Essas duas palavras tinham sido o mantra de
ambas desde que se conheceram quando eram caloiras na
mesma escola secundária alternativa, o tipo de lugar para onde
mandam os alunos quando não esperam muito deles. Assim que
Mika vira Hana, percebera que eram almas gémeas. As duas
eram ramos rebeldes que haviam rebentado nas suas árvores
genealógicas.
— Também te adoro, miúda.
Mika apalpou a almofada à procura do telemóvel. Mesmo antes
de desligar, Penny dera-lhe o seu número. Agora, enviou-lhe uma
mensagem. Entusiasmada com a ideia da videochamada. A
que horas dá para ti?
Pronto, estava feito. Afastou o telemóvel de si. Tamborilou com
os dedos nas coxas. Vai correr tudo bem. Surgiu-lhe novamente
um lampejo do hospital. Quando vira Penny pela primeira vez
embalada nas mãos do médico. Sim, ia correr tudo bem. Porque é
que não haveria de correr bem? Penny e Mika tinham sido uma
história de amor desde o início.
 
1 Jogo disputado por duas equipas, que patinam à volta de uma
pista. [N. T.]
U
CAPÍTULO 3
ma semana depois, Mika foi à igreja. Com os pais. Espremida
num canto do banco, Mika olhou de relance para a mãe.
Hiromi Suzuki olhava em frente. Os seus olhos pretos como
botões estavam focados no púlpito. O seu corpo era pequeno,
com traços delicados, e a boca era mais carrancuda do que
sorridente. Em casa, tinha um armário cheio de fatos de treino
aveludados. Hoje, trajava beringela. A roupa complementava o
cabelo curto e escuro, com uma permanente que formava duas
meias cúpulas que o afastavam da cabeça, como o da rainha de
Inglaterra. Ao lado de Hiromi, o pai de Mika, Shige, dormitava.
O sermão continuou, qualquer coisa sobre amizade, e Mika
pegou no telemóvel, abrindo o seu perfil no Instagram.
Apresentava exatamente cinco fotos. Os dedos dos pés na areia
numa viagem que fizera a Porto Rico com Leif, mesmo antes de
se separarem. Outra dela e Leif, na mesma viagem, todos
aperaltados para saírem à noite. O jardim das traseiras de Hana
depois de Mika se ter mudado para casa dela — penduraram
luzinhas decorativas e beberam margaritas com tequila da mais
cara. Uma foto sua como dama de honor do casamento de
Charlie. E uma fotografia de uma salada de beterraba e queijo de
cabra. Era tudo. Penny colocara um gosto em todas elas. Elas
tinham combinado uma chamada para o dia seguinte, a primeira
reunião das duas por Skype. Mikasaiu do perfil e clicou na lupa
— a barra de pesquisa.
O seu ecrã encheu-se com publicações, o algoritmo devolvia-lhe
conteúdo com base nos cliques e nas pesquisas anteriores. Havia
muitas mulheres com rostos simétricos que combinavam com as
casas bege perfeitas em que viviam. Um anúncio para celebrar
um novo feriado federal comprando papel higiénico
comemorativo. Uma celebridade que Hiromi adorava porque não
tinha uma ama. Que impressionante.
Na barra de pesquisa, inseriu a palavra adoção. O ecrã voltou a
encher-se. Principalmente com mães adotivas a descreverem a
sua epopeia. Finalmente está em casa. O Mateo (temos estado a
chamar-lhe Matty!) tem 6 semanas e nunca lhe pegaram ao colo.
Para o ir habituando, tenho usado o Ring Sling (não é um
patrocínio pago) tanto quanto possível. As minhas costas estão
cansadas e eu estou cansada em geral — o Mateo tem acordado
de duas em duas horas. Alguma outra mãe por aí também se
sente um pouco sobrecarregada hoje? As pessoas comentaram:
Tu consegues fazer isto! Tu consegues! Experimenta a receita
deste smoothie para te dar energia extra. Mika franziu o sobrolho
quando sentiu as entranhas a revirarem-se. Ninguém dizia Não há
problema em parar. Não há problema em admitires que não
consegues. Isto está para lá das tuas forças. Era dada tanta
ênfase às mulheres que fazem tudo sozinhas. Diziam-lhes para
continuarem, mesmo que estivessem cansadas, pobres,
agarradas por um fio. Olhou novamente para a fotografia da
mulher com o seu filho recém-adotado ao colo. A sorrir como uma
heroína. Teria sido isto que Thomas e Caroline pensaram, que
tinham resgatado Penny?
Uma mão serpenteou por trás do braço de Mika e beliscou a
pele fina de dentro.
— Presta atenção — disse-lhe a mãe no mesmo tom que usava
quando mandava Mika para o quarto na escola primária.
— Ai — ciciou Mika, esfregando o braço e olhando para a mãe.
E isto é melhor aqui do que visitá-los em casa.
Quando pensou na casa onde passara a sua infância, a
ansiedade de Mika começou a fazer alongamentos como se
estivesse a preparar-se para um sprint. A casa em si não era
particularmente intimidante. Um bangalô dos anos 70 com todo o
seu charme original: um tapete verde-vómito, candeeiros em
forma de orbes amarelos e uma salinha forrada a madeira. No
exterior, era semelhante a todas as outras casas do quarteirão, a
arquitetura banal — decididamente nada digno de nenhum livro
de História da Arte. Porém, no interior, tinha todos os toques
clássicos japoneses: pacotes de molho de soja e talheres de
plástico enfiados nas gavetas, chinelos bem alinhados junto à
porta da rua, um estendal no jardim das traseiras, um montinho de
cascas de pistácios que o pai gostava de comer enquanto via a
NHK ou basebol japonês, sendo os Hanshin Tigers a sua equipa
favorita.
Apesar da desordem, do cheiro a incenso e da decoração
datada, o impulso para a perfeição persistia dentro daquelas
paredes. Estava no quimono empoeirado que Mika se recusou a
usar depois de ter deixado de praticar odori. Nas molduras vazias
que deviam conter o diploma de uma faculdade de renome a
comprovar a licenciatura de Mika e as suas fotos do casamento.
Nas panelas e nas frigideiras nas quais Mika nunca aprendera a
cozinhar.
No quinto mês de gravidez de Mika, a barriga já se notava. Mika
já não conseguia esconder, nem queria. Ela e a mãe estavam a
limpar a cozinha de azulejos verde-lima quando Mika contou a
verdade.
— Estou grávida.
O pai de Mika estava a ver televisão na sala ao lado. Todas as
portas do corredor estavam bem fechadas. Só se via aquilo que
Hiromi queria que se visse. Hiromi parou de limpar a bancada. Por
um único momento, ficou imóvel. Incapaz de abarcar esta nova
realidade.
— Ouviste o que eu disse? Eu disse que estou grávida.
No interior da barriga de Mika, Penny mexeu-se suavemente,
como asas a bater. Os primeiros movimentos do feto, como lhe
dissera o ginecologista da clínica de saúde gratuita do campus.
Hiromi pestanejou uma vez. Endireitou-se.
— Quem é o pai? — perguntou friamente.
A casa cheirava a sukiyaki — carne de vaca e legumes cozidos
em mirin, molho de soja e açúcar. Eles comiam sempre a
tradicional refeição quente quando o tempo ficava frio. Naquela
noite, estava prevista neve.
— É uma menina — disse Mika.
Hiromi espremeu a esponja no lava-loiça.
— As meninas são difíceis. — Tu és difícil, era o que Hiromi
queria dizer. Alguém se riu na televisão.
— Vou dá-la para adoção.
A declaração foi espontânea. Mika não tinha decidido nada.
Ainda estava a processar a gravidez, um pêndulo que oscilava
entre a incredulidade e o medo. O que é que ela esperava que a
mãe dissesse? Tarde demais, Mika apercebeu-se de que queria
que Hiromi lhe dissesse para ficar com o bebé. Que lhe
prometesse que ajudaria a criar aquele monte de células. Mas
Mika já devia saber. O apoio de Hiromi vinha sempre com um
preço alto, e Mika nunca soubera como pagar. Mesmo assim,
Mika não podia deixar de ir ter com a mãe, de lhe servir a sua
necessidade crua numa bandeja, na esperança de mais, de
melhor, de que a mãe mudasse — de que cuidasse dela. A
palavra adoção foi mencionada numa espécie de desafio.
Hiromi abriu a torneira para despejar restos de comida pelo cano
abaixo. A água quente queimou-lhe as mãos até ficarem
vermelhas e o vapor amoleceu o vazio que se lhe formara na
garganta.
— Provavelmente, é o melhor que fazes. O que sabes tu sobre
criar um bebé? — Era mais uma das muitas maneiras em que ela
tinha desiludido a mãe. Hiromi tentara ensinar-lhe a ser uma boa
dona de casa, a cozinhar, a ser uma boa anfitriã e a cuidar da
casa. Tudo em preparação para o dia em que ela teria o seu
próprio companheiro e o seu próprio filho. Mas Hiromi nunca tinha
explicado a Mika nada sobre controlo de natalidade, sexo ou
amor, ou o que fazer se se encontrasse subitamente grávida.
Porque esse seria um resultado indesejável. E não se falava
daquilo que não se queria que acontecesse.
Na cozinha, Mika ficou atordoada por um momento. A deceção
sufocou-a como se tivesse um bocado de arroz demasiado cozido
na garganta.
— É só isso? É só isso que me queres dizer?
Os olhos de Hiromi viraram-se para Mika e depois dedicaram-se
à barriga dela. Tinha a mesma expressão que usava quando a
filha chegava a casa com roupas compradas numa loja que as
vendia em segunda mão nos tempos do ensino secundário. Era
esse o seu estilo naquela altura: calças de ganga rasgadas,
camisas de flanela, t-shirts que mostravam a barriga. «O que é
que as senhoras da igreja vão pensar?», dissera Hiromi,
concentrando-se na pele exposta de Mika.
— O que mais queres que eu diga? Vou falar disso ao teu pai.
— Isso. Foi assim que Hiromi se referiu a Penny. Ela afastou-se
de Mika, os punhos cerrados. — Queres o que sobrou do jantar
para levares contigo para o dormitório?
Mika envolveu a barriga com as mãos.
— Não. Não, obrigada.
Ela só voltou a ver os pais depois de Penny nascer, depois de
ter chumbado em parte dos dois primeiros anos da faculdade.
Isso tornara-se uma coisa inominável, contida atrás de uma das
portas fechadas da casa de Hiromi.
Agora, Mika estava novamente reclinada no banco da igreja. Do
lado de fora dos vitrais, uma bandeira do movimento Black Lives
Matter com um arco-íris ondulava ao vento — Hiromi e Shige
toleravam a visão progressista da Igreja e iam à missa todos os
domingos. Mika nem tinha a certeza de eles acreditarem num
Deus cristão. Havia estátuas de Buda e butsudan, pequenos
altares espalhados pela casa. Eles iam à igreja para beber ocha,
para confraternizarem com a congregação de 99 por cento de
japoneses e para combinarem encontros para Mika.
— Estamos à procura de alguém para tratar das nossas contas
nas redes sociais — anunciou a pastora Barbara do púlpito. —
Alguém que as mantenha atualizadas com todos os
acontecimentos.
Branca, mas fluente em japonês, a pastora Barbara era uma
mulher robusta com uma voz suave. Gostava de pegar nas duas
mãos das pessoas enquanto falava com elas. Atrás dela, estava
um Jesus asiático feito por encomenda — o marceneiro usaraapenas troncos caídos encontrados em terras não-tribais e peças
de plástico recuperadas da ilha de lixo flutuante do oceano
Pacífico.
Na verdade, a mãe de Mika é que deveria ser aplaudida por
levar uma vida sustentável. A mulher usava a mesma caixa de
natas ácidas como tupperware há vinte anos. Também reutilizava
papel de embrulho como se a sua vida dependesse disso.
Durante cinco aniversários seguidos, a prenda de Mika foi
embrulhada no mesmo papel com desenhos de O Meu Pequeno
Pónei. Os pais de Hiromi tinham sobrevivido à Segunda Guerra
Mundial no Japão, tinham crescido numa época em que a fruta
era apenas uma memória e as suas vidas haviam sido moldadas
pela guerra e pela fome. Tinham ensinado Hiromi a poupar cada
pedacinho de papel, a fritar ervas do campo, a pegar em solo
enegrecido pelas bombas e torná-lo rico novamente.
— Também estamos à procura de voluntários para o bazar anual
de preparação de alimentos — prosseguiu a pastora Barbara. —
Mas aquilo de que realmente precisamos é de tocadores de taiko
ou dançarinos para a parte da exposição. Se algum de vocês tem
um talento especial, agora é a hora de deixá-lo brilhar!
Uma vez por ano, na primavera, a igreja realizava uma
angariação de fundos. Erguiam-se tendas no parque de
estacionamento. O frango ficava a marinar em tinas com molho
teriyaki. A massa soba crepitava nos woks. Vendiam comida de
rua japonesa no exterior. No interior, o artesanato era exposto em
mesas — pegas em croché, bonecos kokeshi, yosegi. À noite, os
congregantes dançavam e tocavam música, expondo os seus
talentos.
Mais um beliscão da mãe dela.
— Devias participar. Ajudar com a comida ou a dançar na festa.
— Hiromi acotovelou Shige, que acordou sobressaltado. —
Lembras-te de como a Mika dançava? — Antes de Shige a ter
arrebatado, antes de se tornar uma esposa, a mãe de Mika tinha
sido treinada como maiko, uma aprendiza de gueixa. E quando se
mudaram para os Estados Unidos, Hiromi localizou um sensei
para ensinar Mika. Se Hiromi não podia ser uma maiko, Mika seria
uma dançarina. Hiromi queria compensar. Mika queria libertar-se.
Ele acenou com a cabeça, atordoado.
— Sim, sim, claro.
Mika afastou-se até ficar encostada ao fundo do banco. Não
disse nada. A recusa estava patente na linha cerrada formada
pela sua boca. Mika dançaria novamente no mesmo dia em que
Hiromi usasse um micro-ondas. Ou seja, nunca.
— Todas aquelas lições. Que desperdício. — Hiromi emitiu um
estalido com a língua. Escola. Tarefas. Dançar. Houve uma época
em que o mundo de Mika não passava de uma maquete feita de
fósforos na palma da mão da mãe.
Depois da missa, Mika dirigiu-se à mesa dos refrescos. Encheu
um prato com dorayaki, pequenos quadrados de bolo chiffon e
bolo de matcha até não caber mais... tudo isso, enquanto
equilibrava uma chávena de chá numa mão.
As suas têmporas latejavam. A desculpa oficial era uma dor de
cabeça, não uma ressaca do vinho de pacote da noite anterior.
Mika enfiou um bolo de batata-doce na boca.
— Pai, o que tens andado a fazer ultimamente?
Shige virou-se para ela.
— Vi um documentário sobre os Correios dos Estados Unidos.
— Ah, sim? — Mika fingiu interesse. A mãe perscrutou a sala,
fez uma vénia a uma amiga e depois continuou, claramente à
caça de outra pessoa.
O pai bebeu o chá dele, servido pela mãe de Mika. Como já não
era uma maiko, Hiromi era agora uma sengyō shufu, uma dona de
casa profissional. Esta era a sua ikigai, a sua motivação para
viver, receber pessoas e cuidar. Mika não se conseguia lembrar
de uma refeição ou mesmo de um lanche que o pai tivesse
alguma vez preparado.
— Sabias que podes mandar pássaros pelo correio? —
perguntou Shige com um sorriso, sendo encantador de uma forma
desarmante. Durante o crescimento da filha, ele sempre fora bom
para ela, mas mantivera-se afastado da paternidade. Mika
compreendeu. Hiromi Suzuki era uma força que Shige havia
decidido não enfrentar. Infelizmente, isso deixava Mika sozinha
para resistir às tempestades da mãe. Quando andava na carrinha
Ford Taurus dos pais, Mika costumava escrever «Ajudem-me, fui
raptada» na condensação da janela, na esperança de que alguém
os mandasse parar.
Mika também sorriu, fortalecida pelo seu bom humor. A mãe
dela foi momentaneamente distraída pela Sra. Ito, que lhe
mostrava fotografias da sua viagem ao Japão. Hiromi e a Sra. Ito
eram as melhores amigas e inimigas mortais. Tinham reduzido a
maternidade a um desporto de competição. Correção: a uma
guerra. Em que a arma de tortura preferida era fazer juízos de
valor. De qualquer forma, agora era o momento perfeito. Ela tinha
a atenção do pai e não tinha a da mãe.
— Otōsan… — começou Mika. — Tive um pequeno
contratempo.
O rosto de Shige enrugou-se.
— Outra vez, não.
Mika nunca tinha sido muito boa a poupar. Vivia a vida de forma
impulsiva, de ordenado em ordenado. Funcionava com o lema
«Não podes levar o dinheiro contigo». Os fundos tornaram-se
escassos muito rapidamente. Em poucos dias, as circunstâncias
dela começaram a piorar. Tinha de pagar a renda. Água e luz,
também. O plano A, arranjar outro emprego o mais rápido
possível, não tinha funcionado. O plano B, não comer, durou um
total de quatro horas. Agora, estava na altura do plano C, pedir
dinheiro aos pais, o que, tinha de assumir, era uma merda. Mika
humedeceu os lábios e seguiu em frente.
— Estou farta de enviar candidaturas para novos empregos.
Tenho a certeza de que vou conseguir alguma coisa em pouco
tempo. Só preciso de uma ajudinha para chegar ao fim do mês.
Desculpem — disse ela. Era um pedido de desculpa global: por
todas as suas falhas, por pedir dinheiro num lugar público. Não
suportava visitá-los e pedir em casa.
— O que se passa? — Hiromi aproximou-se, assim que se
despachou da Sra. Ito.
Por um momento, o pai dela não disse nada. Olhou em redor,
certificando-se de que não seriam ouvidos.
— A Mi-chan pediu-nos dinheiro — disse ele, em voz baixa,
quase inaudível.
O rosto de Hiromi enregelou. Mika conhecia aquele olhar sem
expressão; estava tudo nos olhos. Era algo que a perfurava,
aquela deceção escondida. Mas também o medo. Quem é essa
mulher-criança que eu criei? Tão ignorante. Tão desligada do seu
passado, como pode ela ter um futuro? Estou tão arrependida.
Envergonhada e a sentir-se pequena, Mika baixou os olhos para o
prato.
— De quanto é que precisas? — perguntou Shige.
Mika esfregou os polegares no prato.
— Uns dois mil. Eu depois pago-te.
Hiromi desconsiderou com um aceno da mão.
— Pois. É o que estás sempre a dizer.
Mika ficou calada. Jurou a si mesma que nunca mais pediria
dinheiro aos pais. Quantas vezes tinha quebrado essa promessa?
O olhar de Hiromi pousou em alguém.
— Pousa esse prato — ordenou ela, olhando para a quantidade
de comida no prato de Mika. A Sra. Ito comentara muitas vezes
que Mika era um bom garfo. — Estou a ver o novo congregante.
— Verificou a roupa que Mika trazia vestida: umas calças e uma
blusa sem um botão, as últimas peças de roupa limpa no seu
armário. — Vieste assim vestida?
Mika franziu o sobrolho.
— Eu não quero conhecer ninguém. — Quando Mika acabara
com Leif, Hiromi perguntara-lhe: «Como é que vais sobreviver?»
— E em relação ao empréstimo…
— Cala-te — disse Hiromi. — Vai toda a gente ver-te a discutir
comigo. Vais conhecer esta pessoa. — Os olhos de Hiromi
faiscaram. — E o teu pai vai passar-te um cheque.
Mika estava à espera desta parte, sentir o puxão dos
cordelinhos a que o dinheiro estava atado.
Namorar com alguém que a mãe aprovava era tão apelativo
como ser revistada em todas as cavidades corporais.
— Kaasan…
— Ouve a tua mãe. Mostra-nos que estás disposta a mudar —
disse o pai. Quando tinha de tomar partido, Shige tomava sempre
o da esposa. — Tens de começar a levar a tua vida mais a sério,
o que inclui procurar o parceiro certo.
Mika engoliu e pousou o prato.
— Está bem.
Hiromi sorriu como um gato e conduziu Mika até junto do novo
congregante. Ele estava a falar com a pastora.
— Mika-san — disse a pastora, pegando nas duas mãos de
Mika. O sorriso dela era caloroso. — Como estás?— Vim apresentar a Mika ao nosso novo membro. — Hiromi
sorriu com doçura. Apertou o braço de Mika como se tivesse
acabado de ganhar a sorte grande.
— Oh, mas é claro! — disse a pastora, soltando as mãos de
Mika. — Este é o Hayato Nakaya. Acabou de ser transferido da
Nike Japão para a nossa bela cidade.
— Como estás? — Hayato fez uma vénia.
Era magro e mais alto do que Mika, o que não queria dizer
muito. Mika tinha um metro e cinquenta e sete num dia bom. Ele
tinha um sorriso bonito, achou ela.
— Pastora, preciso de falar consigo sobre o bazar — disse
Hiromi com seriedade. — A Esther Watanabe quer usar a receita
de tempura dela outra vez. Será que conseguimos persuadi-la
numa direção diferente?
— Claro, claro.
A pastora acenou com a cabeça, e afastaram-se ambas,
deixando Mika sozinha com Hayato.
— Bem, isto é desconfortável — disse Hayato num inglês
perfeito.
— Cresceste no Japão? — perguntou Mika por boa educação.
— Não, na Califórnia. Los Angeles. — Ele balançou-se nos
calcanhares. — A minha mãe é nipo-americana de primeira
geração. E tu?
— A minha também. Eu nasci em Daito, nos arredores de
Osaka. — Mika só tinha memórias muito vagas da sua casa no
Japão. O telhado inclinado com telhas curvas. O revestimento de
plástico à volta do alpendre. O quintal lamacento que fazia
fronteira com uma quinta de batata-doce. O baú tansu deixado por
um dono anterior, que a mãe de Mika adorava, mas cujo
transporte para os Estados Unidos era demasiado caro. —
Mudámo-nos quando eu tinha 6 anos.
Lembrava-se do dia em que haviam chegado aos Estados
Unidos. A sua pequena família composta pelos três,
desgrenhados e irritáveis devido ao voo de aproximadamente
quinze horas. Em que dia é que foi? A que horas? Não dava para
perceber no corredor da alfândega sem janelas. As ventoinhas
tinham rebentado e o ar estava estagnado com a respiração dos
viajantes. Um homem de uniforme azul atrás do acrílico examinou
os passaportes enquanto Shige falava do seu trabalho, explicando
que tinha arranjado o seu visto de trabalho, até um apartamento.
Hiromi olhou para o agente como se ele estivesse na mira do
cano de uma arma. E Mika escapuliu-se. Ela lembrava-se dos
passos. Um. Dois. Três. Como andar na corda bamba até chegar
a uma parede e olhar para cima.
E ver um retrato a óleo de Louis Armstrong.
Era como se uma porta no céu se tivesse aberto, e Mika
estivesse a espreitar para outro mundo. Teve de conter as
lágrimas. Algo se agitou dentro dela e transformou-se em vida.
Um milagre, Mika lembrava-se de ter pensado enquanto seguia as
pinceladas com os olhos. É um milagre. Foi o dia em que o seu
mundo entrou em colapso e voltou a erguer-se. As estradas eram
linhas para desenhar. As árvores eram cores para serem
preenchidas. O sol era luz para ser usada. Possibilidades infinitas.
Tal como o amor de Mika por Penny, o seu amor pela pintura era
instintivo, anterior ao desenvolvimento da linguagem. Mika deixou
de ser uma pessoa — ela era uma pincelada, um frasco de tinta,
uma tela em branco à espera.
— Bem me parecia. Conheço bem esta cena de obrigarem dois
solteiros a unir-se na esperança de produzirem descendência,
fruto do amor japonês — disse Hayato, arrancando Mika do
passado.
Mika forçou um sorriso.
— Eu sei que a minha mãe te deu o meu número de telemóvel
no outro dia. Mas não quero sair com ninguém neste momento.
Sem ofensa.
— Não me ofendes minimamente. Na verdade, só estou
interessado em sair com homens. — Hayato abriu as mãos e
apontou para si mesmo com dois polegares. — Súper gay.
O sorriso de Mika era genuíno agora.
— Olha, olha.
— Olha, olha — replicou Hayato, calorosamente.
Conversaram durante algum tempo. Combinaram encontrar-se
um dia. Talvez Mika o convidasse para a festa de inauguração da
casa de Charlie, dali a umas semanas. Depois da igreja, o pai
passou-lhe um cheque no parque de estacionamento.
— Se saíres com ele — disse Hiromi, referindo-se a Hayato —,
leva um vestido. Talvez um pouco de perfume. Nada muito
pesado.
— Ele não está interessado — disse Mika, arrancando o cheque
dos dedos de Shige.
— O que é que queres dizer com «ele não está interessado»? O
que é que fizeste? — A voz de Hiromi ficou estridente: o som de
gaivotas a lutarem por um peixe podre.
Mika ficou petrificada.
— Eu não fiz nada.
— Tens de o fazer interessar-se — insistiu Hiromi.
— «Não» significa não — respondeu Mika com firmeza.
— Ei! — Shige esfregou o sobrolho. — Será que vocês as duas
podem passar cinco minutos sem discutir? Parecem duas
labaredas, sempre a queimar tudo à vossa volta.
O maxilar de Mika ficou tenso, mas ela permaneceu em silêncio.
Dobrou o cheque e enfiou-o no bolso, conseguindo espremer um
agradecimento silencioso antes de se ir embora.
U
CAPÍTULO 4
ma videochamada.
Mika só se apercebeu alguns minutos antes de marcar o
número de Penny de que iria ver a filha ao vivo pela primeira
vez em dezasseis anos. É claro que tinha visto as fotografias
incluídas nas cartas de Caroline uma vez por ano. Mas tinham
sido peças estáticas. Momentos congelados no tempo, presos no
âmbar espesso. Mika não conseguia observar os tiques faciais de
Penny. A forma como as mãos dela se moviam quando estava
entusiasmada, triste ou assustada. Nem ouvir o som da sua voz
quando falava, o modo como a entoação mudava. Desde que
Penny era bebé que não a via em movimento.
Mika sentou-se à mesa na cozinha. Hana tinha saído depois de
a ajudar. Mika virou-se para a câmara e examinou-se. A camisola
tinha um pequeno buraco na manga. Fora Hana quem a
escolhera, vasculhando nas roupas de Mika, à procura de uma
peça que não a ofendesse.
— Isto vai ter de servir — disse ela, enquanto sacava a camisola
de malha azul-escura e a entregava a Mika.
Depois, deixou Mika sozinha com o ecrã, o coração a bater
depressa e as palmas das mãos a transpirar. Faltava um minuto.
Tinham marcado a chamada para as quatro da tarde, sete da
tarde no fuso horário de Penny. Mika preencheu as credenciais de
acesso e marcou o número de Penny. Tocou uma vez. E lá estava
ela. Lá estava ela: a sua filha. Mika maravilhou-se com as suas
maçãs do rosto, as suas narinas largas, o seu cabelo brilhante.
Fui eu que a fiz. O sentimento semelhante a quando Mika deu à
luz e pegou em Penny ao colo pela primeira vez. Uma sensação
de espanto e fascínio. Um pedaço da alma de Mika a reconhecer-
se a si própria.
Mika sorriu para Penny como se fosse uma velha amiga.
— Olá.
— Uau! — O sorriso de Penny era largo e aberto, com todos os
dentes à mostra. Mika já tinha sorrido assim antes. Quando tinha
16 anos. Quando o mundo estava aos seus pés. Quando temos o
equilíbrio do tempo nas nossas próprias mãos. Era uma sensação
especial, de não ter nada a perder. — Pareces tão jovem — disse
Penny.
— Sim, bem... sabes, os asiáticos não ganham rugas.
Penny riu-se.
— É tão estranho, mas neste momento só consigo pensar: «Ela
tem a minha cara, ela tem a minha cara!»
Mika alargou o sorriso. Ficaram ambas em silêncio. Estava
quase escuro no local onde Penny se encontrava. Os últimos
raios de sol preciosos entravam por uma janela, obscurecendo-lhe
o rosto quando se movia para um dos lados. Noutros tempos,
quando Mika ainda pintava, poderia ter tirado um instantâneo
daquele momento, poderia ter desenhado Penny a lápis, usando o
ponto mais nítido na curva ascendente da sua boca sorridente.
Em vez disso, Mika pensou sobre o tempo na rua, a noite que se
aproximava, a chuva que batia nas janelas, a estranheza de
conhecer Penny antes e agora. Ambos os momentos davam a
sensação de estarem a ser vividos pela primeira vez.
— Sempre me interroguei sobre ti — admitiu Penny como se
fosse um segredo cabeludo. Penny estava no seu quarto. Tinha
um papel de parede com cerejeiras cor-de-rosa em flor por trás
dela. Quando Mika estava grávida, Caroline prometeu integrar a
herança japonesa de Penny nas suas vidas. Chegara uma carta a
descrever um berçário temático de flores de cerejeira e uma aula
de sushi em que o casal se tinha matriculado. Mika tinha a certeza
de que a maior parte daquilo que os Calvinsaprenderam sobre o
Japão vinha de uma página da Wikipédia.
— Aqui estou eu. Os teus… O Thomas e a Caroline contaram-te
alguma coisa sobre mim? — Escondidos pelo ecrã estavam dois
lenços de papel amarrotados com que Mika tinha acabado de
secar as axilas.
— Não muito. — Penny bebericou de uma caneca a fumegar.
Café? Não, chá. Mika desejou ter trazido um copo de água. Perto
de Penny havia também uma tigelinha de pretzels e um bloco de
notas com uma caneta. Penny veio mais preparada. — Eras súper
jovem. Dezanove anos. Estavas a começar a faculdade e não
querias um bebé.
Queria? Não se tratava de não querer Penny. Mas de não poder
tê-la. O que ela queria era que Penny vivesse e crescesse com
uma família melhor do que a dela. Melhor do que eu. Mika amava
Penny e tinha vergonha de não conseguir tomar conta dela. De
não ser o suficiente para ela. O que sabes tu sobre criar um
bebé? O fantasma das palavras de Hiromi assombrava-a.
— Seja como for — continuou Penny, baixando a caneca. —
Eles nunca tentaram escondê-lo de mim. Quero dizer, «Olá?» —
Ela apontou para o seu próprio rosto. — Estava literalmente na
cara. Uma miúda meio japonesa. Pais brancos. Na verdade,
durante algum tempo pensei que todas as crianças fossem
adotadas. — Penny riu-se. — Como se houvesse um lugar onde
os pais fossem escolher bebés. Mas depois a minha amiga
Sophie, que conheço desde o jardim de infância, disse que tinha
um dedo do pé esquisito virado para fora que tinha herdado do
pai. Eu fui para casa e perguntei o que é que eu tinha dos meus
pais. Eles explicaram coisas como sentido de humor, gentileza,
etc. — Penny bateu com os punhos cerrados na mesa. Mika
endireitou-se. Teria ela sido tão autoconsciente aos 16, aos 18
anos? Lembrava-se de estar entusiasmada, vulnerável, sozinha.
Não estava preparada. Não, Penny tinha sido criada de forma
diferente. Ela era tão… segura de si mesma. — Mas eu estava,
tipo, não, fisicamente, que parte de mim é que vem de vocês os
dois? Então eles explicaram tudo. Nós não tínhamos o mesmo
tipo de sangue. Ou mãos. Ou pés, ou o que quer que fosse.
Alguém mais no mundo possuía o meu ADN. Desde então, nunca
mais deixei de pensar nisso. Sobre o facto de uma parte de mim
poder existir noutro lugar. Quero dizer, quem sou eu? — Mika
apertou os joelhos. Quem sou eu? Mika não conseguia responder
a essa pergunta da filha. Nem conseguia responder a si mesma.
Outra falha. — Beeeem — terminou Penny. — Parece que sou só
eu a falar. Desculpa. Estou habituada a ser o centro das atenções.
— Apontou para o peito. — Filha única, estás a ver?
— Não faz mal — assegurou-lhe Mika. Claro que não fazia mal.
Ao ouvir Penny, ao vê-la, Mika sentia-se como se tivesse sido
resgatada do fundo da parte mais fria do oceano, e conseguisse
sentir o sol novamente. — Eu gosto de ouvir coisas sobre ti.
— Ótimo — disse Penny, animando-se. — Eu também quero
saber tudo sobre ti.
Mika tinha pensado nisto. Prendeu o cabelo atrás da orelha. Viu
os pratos empilhados no lavatório, as pilhas de caixas, a carta no
balcão a dizer que o pagamento do telemóvel estava atrasado.
— Não há muito para contar. Receio ser um bocado chata, na
verdade.
— Ainda vives no Oregon?
Mika anuiu com a cabeça.
— Em Portland. — Um lugar com mais casas de strip per capita
do que qualquer outra cidade. Mas também tinha uma loja de
donuts que vendia éclairs de zombies e o maior mercado ao ar
livre a funcionar continuamente nos Estados Unidos. As pessoas
vinham para comprar cânhamo e joias e comer comida de rua.
Um em cada quatro carros tinha um autocolante onde se lia:
MANTENHAM PORTLAND ESQUISITA. — Moro no bairro de Alberta. —
Um lugar que era tipicamente Portland. — Há algumas lojas nas
ruas. Estúdios onde se faz goat yoga cujos donos são hipsters
barbudos que vendem café biológico sustentável e bom para
orangotangos, esse tipo de coisas.
— Isso é tão fixe. — Penny sorriu. — A tua casa pareceu-me
súper bonita. — Súper. Penny usava muito aquela palavra, e isso
combinava com ela. Em qualquer situação. Maior do que a vida.
— Bem, o jardim, pelo menos. Foi tudo o que consegui ver no
Instagram.
Pela janela, Mika via o jardim das traseiras, a cerca a cair, a
relva por cortar, os móveis de jardim virados de pernas para o ar e
as garrafas de cerveja atiradas para o chão e cheias de caracóis.
Então, apercebeu-se de que Penny tinha dito a tua casa. Como se
a casa fosse de Mika. Ela procurou corrigi-la.
— Não é realmente...
— Mal posso esperar para ter a minha própria casa —
interrompeu Penny. — Vou candidatar-me por toda a Costa Oeste
e Costa Leste. Em lado nenhum no Midwest. Não me interpretes
mal, eu adoro viver em Dayton, no Ohio, quero dizer. Mas é tão
pequeno, sabes? Eu e a Sophie vamos ser colegas de quarto
para onde quer que acabemos por ir. — Finalmente, uma
semelhança. Aos 16 anos, Mika e Hana trabalhavam num Taco
Bell. Ouviam hip-hop enquanto despejavam sacos de carne nos
tabuleiros onde eram aquecidos, conversavam sobre o futuro,
unidas por serem asiático-americanas. Quantas vezes lhes
perguntaram: «De onde és?». «Um dia hei de viajar e pintar»,
gabava-se Mika. Tinha engendrado tantos planos. Passear de
motorizada pela América do Sul. Andar à deriva pelos canais de
Veneza numa gôndola. Comer croissants com chocolate em Paris.
— Que mais? — Penny batucou com os dedos. — E o teu
trabalho? E, oh, meu Deus, era o teu namorado na fotografia? —
Leif, queria ela dizer. Mika já não o via há dois anos. Dizer que as
coisas acabaram mal era como dizer que Van Gogh era apenas
um pintor. — Ele é giro. Vocês também viajam? Onde andaste no
secundário?
Penny parou. Respirou fundo. Claramente a preparar-se para
mais.
Mika riu-se. Levantou uma mão. Esquivou-se.
— Espera. Calma. Quero ouvir mais sobre ti.
A testa de Penny sulcou-se. Mika tinha uma fotografia em que
ela estava a fazer essa mesma expressão. Era uma das suas
preferidas. Caroline tinha enviado uma fotografia de Penny a
segurar num cone vazio, com duas bolas de gelado a derreterem
no pavimento. Ela envergava um vestidinho branco com flores
cosidas à mão, e o cabelo ondulava com a brisa de verão.
— Faço corta-mato. Leio muito. Mas nada, tipo, súper digno de
nota ou importante. Embora há pouco tempo o meu pai me tenha
dado o livro The Loneliness of the Long-Distance Runner. Acho
que ele o comprou só pelo título, e eu pensei que seria súper
sombrio. Mas acabei por gostar dele. Tem toda a questão do
antissistema.
— Nunca o li.
— É bom. Devias pegar nele. Como foi o secundário para ti?
Estou tão curiosa.
Mika remexeu na orelha. Ela tinha sido desajustada e solitária
enquanto jovem. O vazio tinha sido preenchido por Hana e pela
pintura. À noite, escapulia-se, aninhando-se debaixo do edredão
com uma lanterna, um lápis e um bloco de desenho. Começara
por desenhar a própria mão, depois as mãos dos outros,
explorando as veias deformadas dos dedos da mãe, as manchas
da idade nas do pai. A arte era como o ar para Mika. O seu ikigai.
Guiou-a através da escuridão até ao amanhecer. Mas Mika já não
pintava. Isso fora antes. Porquê falar nisso?
— Andei numa escola de ensino especializado. Era para alunos
que não se enquadravam necessariamente no ensino normal. —
A maioria das crianças dormia durante as aulas, e os professores
fingiam não ver. — Eu adorava a Geração Beat quando era mais
nova: Jack Kerouac, Gary Snyder, Neal Cassady. — Penny tomou
outra nota, repetindo as palavras Geração Beat. — A minha
melhor amiga, a Hana, andou lá comigo. Ela estava ao meu lado
quando tu nasceste, na verdade.
— Estava? — Penny animou-se.
— Estava. — Penny ficou em silêncio. Mika hesitou em
acrescentar mais. O que poderia ela dizer? As enfermeiras
odiaram-nos porque não parávamos de pedir comida. Ainda faço
um pouco de chichi sempre que me rio demais. Os meus seios
são como marionetas feitas com meias. Choro todos os dias. Mika
contentou-se com: — Ela pegou em ti ao colo. Depois de eu te ter
pegado, quero dizer.
Penny pensou por um momento.
— Achas que eu podia ver uma fotografia dela?
— Claro. Não tenho nenhuma à mãoneste momento. — Havia
uma numa moldura na prateleira da chaminé, encafuada atrás de
umas jarras feitas de cabaças. Mas estavam vestidas de freiras
para o Halloween, com um cachimbo de haxixe na mesa entre
elas. — Mas eu envio-te uma.
— Fantástico. — Penny sorriu para Mika. Mika sorriu de volta. —
Onde é que trabalhas? — perguntou Penny finalmente.
— Estou a modo que entre uma coisa e outra, neste momento.
— Perante aquela resposta, Penny mordiscou o lábio, ficando o
seu rosto preso num momento frágil na esperança de haver mais,
mas a contar com menos. Mika imaginou essa expressão a
mudar, a transformar-se numa que a mãe dela arvorava
demasiadas vezes quando estava perto de Mika. Uma deceção
flagrante. O que é que fazia uma mãe perfeita? Uma mulher
perfeita? O que quer que fosse, Mika percebia que era o oposto
de si mesma. — Quero dizer, há pouco tempo, deixei o meu
antigo emprego para me lançar por conta própria. — Mika fechou
os olhos. Ela tinha 35 anos. Um terço da sua vida tinha passado.
Já devia ter feito alguma coisa. Em que alhada é que se enfiara?
Abriu os olhos. A mentira saiu aos trambolhões, tropeçando-lhe
na língua. — Eu adoro arte, e... e ando à procura de galerias, a
ver se encontro alguns artistas para representar e lançar o meu
próprio negócio. Está numa fase muito inicial...
Penny basicamente resplandeceu.
— Isso é incrível.
Mika corou. Sentia-se demasiado envergonhada e insegura para
se confessar. Além disso, queria que Penny continuasse a vê-la
daquela maneira. Como se ela fosse boa, bondosa e especial.
Uma mentirinha de nada nunca fez mal a ninguém, seja como for.
— Bem, suponho que sim…
Mãe e filha trocaram perguntas durante algum tempo. Fizeram
conversa fiada. Penny era uma corredora medalhada. Do tipo que
ganha bolsas de estudo. A amiga dela, Sophie, também praticava
atletismo e tinha seis irmãos.
— Mórmones, sabes como é — disse Penny. Mika não sabia.
Mas sorriu como se soubesse. Antes que dessem por isso, tinha
passado uma hora. A conversa diminuiu.
— Podemos voltar a conversar? — perguntou Penny.
— Adoraria — disse Mika, com sinceridade. No início, as suas
expetativas eram baixas. Só queria saber que Penny estava em
segurança e era amada. Que não tinha arruinado a vida dela. Mas
agora, não conseguia diminuir o desejo de falar com a filha
novamente. Querer mais fazia parte da natureza humana.
— Vai dando notícias — disse Penny, colocando o dedo
indicador para cima quando Mika estendeu a mão para terminar a
chamada.
Mika fez uma pausa, não compreendendo o gesto.
— O quê?
— É uma coisa que a minha mãe... — Penny baixou os olhos,
as pestanas a criarem sombras de meia-lua nas bochechas.
Depois ergueu o olhar, observando Mika de perto. — É uma coisa
que costumávamos fazer. Estendíamos os indicadores e
tocávamos com um no outro. É uma parvoíce…
— Não é nada uma parvoíce. — Mika engoliu em seco.
Pressionou o dedo contra o ecrã. Penny fez o mesmo. — Vai
dando notícias, Penny.
 
ADOÇÃO NA AMÉRICA
Gabinete Nacional
56544 W 57th Ave. Suite 111
Topeka, KS 66546
(800) 555-7794
 
Querida Mika,
 
Espero encontrar-te bem. Em anexo, encontram-se os itens
definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika
Suzuki (a mãe biológica), e Thomas e Caroline Calvin (os pais
adotivos), relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O
conteúdo inclui:
 
• Uma carta anual dos pais adotivos a descrever o
desenvolvimento e o progresso da adotada
• Fotografias e/ou outros itens memoráveis
 
Liga-me se tiveres alguma dúvida. (Desculpa se o acima
mencionado soa formal… linguagem legal, sabes?)
 
 
Atenciosamente,
 
Monica Pearson
Coordenadora de Adoções
 
Querida Mika,
 
Não acredito que já passaram seis anos desde que a Penny
entrou nas nossas vidas. O tempo passou a voar. A Penny tem
crescido muito. Ela é uma criança precoce e com tendências
atléticas. No outro dia, quase venceu o Thomas numa corrida!
Sinto que se projetássemos o cérebro dela num ecrã, tudo o
que veríamos seria a palavra partida.
 
Há um mês, ela pregou-nos um pequeno susto. Deixou de
responder quando a chamávamos pelo nome. O pediatra
encaminhou-nos para um audiologista. Passámos uma tarde
inteira no hospital pediátrico. Fizeram-lhe um monte de exames,
colocaram-lhe grandes auscultadores nos ouvidos e disseram-
lhe para premir botões quando ouvisse certos sons. Depois,
esperámos pelos resultados numa salinha. Estávamos tão
nervosos. O Thomas não parava de abanar o joelho e estava
sempre a falar em ir de avião com a Penny até à Califórnia.
Estava à procura de especialistas no telemóvel quando o
audiologista chegou. «Verificámos todos os exames da Penny.
Parece que a vossa filha tem audição seletiva», disse ele,
dando ênfase a seletiva.
 
No estacionamento, fizemos cara séria e tivemos uma
conversa com a Penny sobre a importância de prestar atenção e
a enormidade do que se tinha passado. Todos os testes
poderiam ter sido evitados, explicámos-lhe. No carro, o Thomas
desatou a rir, e eu também. Não conseguimos parar. Uma coisa
é certa: as nossas vidas nunca irão ser aborrecidas, agora que
temos a Penny connosco. Como sempre, seguem algumas
fotografias. Incluindo um autorretrato da Penny criado com
mostarda e uns bocados de pão.
 
Um abraço,
Caroline
D
CAPÍTULO 5
urante três semanas, Mika e Penny conversaram sem parar.
Ficaram acordadas juntas, noite após noite, com as suas
conversas a seguirem um caminho labiríntico. Penny
mandava mensagens: Podes falar? E Mika respondia: Claro!
Não se tratava de não ter mais nada para fazer. Tratava-se de não
estar a fazer nada.
Elas celebraram os feitos uma da outra, abrindo garrafas de
sidra de maçã para Penny e champanhe para Mika. Penny
ganhara uma grande corrida de corta-mato, e Mika fingiu que
tinha encontrado o espaço de galeria perfeito para um novo artista
que ela queria expor. A abertura oficial seria dentro de algumas
semanas — tão emocionante, mal podia esperar. Na realidade,
Mika estava a candidatar-se a empregos mais bem pagos, mas
ainda não tivera respostas. Via o dinheiro a escorrer da sua conta
com um pânico resignado. Penny acabara com o namorado, Jack,
porque ele só queria estar com ela em sítios com colchões.
Quando Penny fazia perguntas sobre Leif, Mika dizia que ele a
tinha levado a um jantar romântico, a fazer uma caminhada, a ver
uma exposição num museu…
A cada mentira, Mika pintava a sua vida com cores mais
brilhantes — um emprego de sucesso, um namorado dedicado.
Nos últimos dezasseis anos, parecia que vivera no exílio. Com
Penny, Mika tinha desembarcado da sua vida atual e embarcado
num novo navio, navegando em direção a um destino com o qual
sempre sonhara, mas que nunca conseguira alcançar. Próxima
paragem: amor, carreira, família, casa. Uma vida que ela poderia
ter tido, antes de ter Penny, antes de deixar de pintar. Fazia
Penny sentir-se bem. E Mika também se sentia bem. Era muito
mais fácil uma pessoa falar das coisas tal como desejava que
fossem. Pela primeira vez em muito tempo, Mika estava satisfeita.
Sentia-se realizada.
— Uf, parece que a Charlie deixou o Tuan escolher a música
outra vez — queixou-se Hana do lado de fora da porta
recentemente pintada da casa de Charlie. Nessa noite era a festa
de inauguração da casa de Charlie e Tuan.
O casal mudara-se há um mês. Mika e Hana tinham ajudado a
preparar a casa para a inauguração — dando a sua opinião sobre
assuntos tão importantes como que quadro pendurar sobre a
lareira, como é que os móveis deviam estar dispostos, e
purificando toda a casa com sálvia, porque o candeeiro da
cozinha não parava de tremeluzir. Tuan tinha chegado a casa por
volta da hora em que elas estavam a fumegar os cantos da sala.
«Verificaram a lâmpada?», perguntara ele. «Claro que sim, Tuan»,
responderam elas. «Não achas que tentámos isso primeiro, Tuan?
Nós não somos estúpidas, Tuan.» Quando ele saiu para dar uma
volta de bicicleta, Charlie trocou a lâmpada e todas elas juraram
guardar segredo.
Pela porta, Mika podia ouvir os sons graves do R&B, ou seja, os
slow jams — a música que Tuan gostava de pôra tocar nas festas
e fazer amor depois, segundo Charlie. Havia algumas coisas que
Mika preferia passar uma vida inteira sem saber. Também se
ouvia o burburinho da conversa e o tilintar de copos. A festa
estava em pleno andamento. Naturalmente, Mika e Hana estavam
atrasadas.
Soaram passos no pavimento atrás delas.
— Mika. Oi. Desculpa, estou atrasado. O trânsito estava do
caraças. Mas não tão mau como em Los Angeles. — Hayato
estava vestido com uma camisa e calças, trazendo a sua fita com
o cartão do emprego ainda à volta do pescoço, com um grande
símbolo da Nike preto proeminente por cima do seu nome e da
sua função. Debaixo do braço, trazia uma garrafa de vinho.
— Conseguiste! — Mika e Hayato tinham andado a trocar
mensagens desde aquele dia na igreja. Tinham passado um
sábado inteiro a trocar histórias sobre as suas mães japonesas. A
comparar os pontos que elas tinham em comum: recusarem-se a
usar a máquina de lavar loiça, enviarem-lhes o almoço dentro de
elaboradas lancheiras com divisórias… esse tipo de coisas.
Agora, Mika abraçou Hayato, virando-se depois para Hana. —
Hayato, Hana. Hana, Hayato.
Hana e Hayato cumprimentaram-se.
— Engraçado — disse Hayato, apontando para a planta que
Hana trazia nas mãos. O presente para a inauguração da casa
trazido por Mika e Hana era uma agave parryi com as palavras
BELA CASA, PALHAÇOS escritas no vaso.
Hana franziu o sobrolho.
— Aposto vinte dólares em como a Charlie a põe no quarto de
hóspedes.
— O quarto de hóspedes é para onde vão os maus presentes,
destinados a morrer — explicou Mika a Hayato. Entre os itens
mais populares encontravam-se: o retrato de vinte e oito por trinta
e cinco centímetros de Tuan quando era bebé pintado pela sogra
de Charlie, uma cruz gigante de cristal que também servia de
suporte de pot-pourri da mãe de Charlie e uma guitarra acústica,
um presente de Tuan para si mesmo. Também escondido num
armário estava um coelhinho de peluche com as orelhas mais
macias do mundo. Charlie encontrara-o numa loja de brinquedos.
Na altura, ela encolhera os ombros, murmurando: «Um dia.»
Hiromi adorava Charlie. Charlie fazia tudo bem e na ordem certa.
Assim que terminou a licenciatura, saltou diretamente para o
mestrado — um mestrado em ensino. No dia em que ela
conseguiu um emprego, Tuan pediu-a em casamento. Casaram-
se um ano depois. No ano a seguir, compraram esta casa e
estavam agora a planear constituir família.
«Porque não consegues ser como a tua amiga Charlie?»,
perguntava Hiromi frequentemente. Ser era o verbo preferido de
Hiromi para invocar na presença de Mika. «Não podes ser tão
barulhenta», ordenava-lhe Hiromi, com o seu hálito rançoso,
quando Mika era pequena e chorava. «Tens de ser uma
dançarina», dizia Hiromi, apertando o obi em redor da cintura de
Mika até a sua respiração não ser mais do que uma espécie de
suspiro, preparando-a para o odori. Ser. Ser. Ser. Ser para mim.
Ser tudo menos ela própria.
Hayato riu-se, olhou para a porta com a aldraba de ferro. Tirou a
fita do pescoço e enfiou-a no bolso.
— Esta é a casa da tua amiga? É agradável. Tens a certeza de
que não faz mal eu estar aqui?
A casa era linda. Construída em 1909, num lote de esquina,
havia sido totalmente remodelada por dentro e por fora. Um
enorme alpendre em redor da casa enfeitado com cadeirões de
madeira e janelas originais de chumbo dominavam a fachada.
Charlie e Tuan tinham passado horas a dar um tratamento
paisagístico ao jardim, escolhendo plantas nativas do Pacífico
Noroeste — gramíneas altas, áceres e fetos frondosos.
— Claro que não faz mal — disse Hana. — A Charlie é um
espetáculo. É casada com o Tuan, e ele é uma joia. Estão
completamente apaixonados um pelo outro. — Hana pôs a mão
na maçaneta da porta e girou-a. A luz inundou o alpendre. Ela fez
uma pausa e baixou a voz para um sussurro. — Ouçam. Se
algum de vocês ficar com fome, tenho sandes na minha mala.
— Trouxeste sandes para a inauguração da casa da nossa
melhor amiga? — respondeu Mika também num sussurro,
entrando ao lado de Hana, seguida de perto por Hayato. A porta
fechou-se atrás deles.
— Tu sabes que ela nunca tem comida suficiente nestas coisas
— disse Hana. Os olhos de Hayato brilhavam, divertidos.
Loura com grandes olhos castanhos, Charlie atravessou a sala.
— Chegaram!
Hana e Mika tinham conhecido Charlie no primeiro ano da
faculdade. Charlie era viciada em tomar o partido dos mais fracos,
o que explicava a sua atração por Hana e Mika. Obviamente, Mika
e Hana colaram-se a ela como dois filhotes de lobo.
O quarto de Charlie ficava em frente ao delas e, tal como
acontecia com a maioria das estudantes no dormitório, Mika era,
para Charlie, uma espécie de alvo de fascínio, estando grávida na
faculdade e vivendo em acomodações estudantis. Um dia depois
de voltar do hospital, dera-se a subida do leite de Mika. Charlie
tinha visto Hana e Mika na casa de banho, a encherem
freneticamente o soutien de Mika com papel higiénico.
Mika tinha sido tola ao pensar que, uma vez assinados os
papéis da adoção, tudo desapareceria, que as coisas voltariam a
ser como eram dantes. Em vez disso, pioraram. O leite era um
sinal do corpo dela. Abrir mão do próprio bebé não era um
processo natural. «Não consigo fazê-lo parar», dissera Mika a
chorar.
«Devias arranjar uns discos de amamentação», sugerira Charlie
calmamente, com o seu kit do banho na mão. «A minha irmã teve
um bebé no ano passado. Era o que ela usava.» Depois, Charlie
ligou à irmã e descobriu como fazer parar o leite de Mika.
Sendo uma distribuidora de abraços em série, Charlie enrolou
os braços em redor de Mika, depois de Hana, depois de Hayato.
— És tu o amigo da Mika, lá da igreja? A Mika disse que
acabaste de te mudar para cá — disse Charlie, espremendo
Hayato. Ela era pequena, mas surpreendentemente forte. Aulas
de spinning três vezes por semana, e Krav Maga duas vezes,
fazem isso a um corpo. — Estás interessado em adquirir uma
grande cruz de cristal barra suporte para pot-pourri? Era capaz de
ficar giro em tua casa.
Hayato tossiu para a mão.
— Não é bem a minha onda, mas obrigado.
— Bolas — disse Charlie, fazendo beicinho.
— Desculpa — disse Mika a Hayato.
Charlie encolheu os ombros, como se não custasse nada tentar.
— Feliz inauguração da casa. — Hana entregou-lhe a planta.
Charlie estudou-a enquanto Mika observava a ilha de mármore.
Havia muita bebida acompanhada por um buffet de aperitivos
pouco entusiasmantes — mini-hambúrgueres em pão brioche,
espetadas de frutas, alguns vegetais e molho. Mika sabia que,
enfiadas na despensa, estavam uma lata de Pringles camponesas
e sobremesas com quantidades irresponsáveis de manteiga para
quando todos saíssem. As três mulheres aconchegar-se-iam,
então, no sofá. Tuan resgataria a sua guitarra do quarto de
hóspedes e tocaria a única música que conhecia, Stairway to
Heaven.
— Tuan — chamou Charlie. — Anda cá ver o presente que a
Hana e a Mika nos trouxeram.
Tuan juntou-se ao grupo. Era vietnamita, assim a dar para o alto,
com o corpo de um atleta e cabelo preto que estava sempre a
pentear para trás.
— Olá, Tuan.
Ele apertou a mão a Hayato, apresentando-se.
Charlie batucou nos lábios.
— Já estou a ver qual é o sítio ideal para isto. O quarto de
hóspedes precisa de uma planta, não achas? — perguntou ela ao
marido.
— Não sei. — Ele empurrou o cabelo para trás. — Talvez em
cima da lareira? — Charlie lançou a Tuan um olhar de tenho-
vontade-de-te-dar-um-soco-nos-tomates. Tuan fez um meio
sorriso e beijou Charlie no nariz.
— A casa está bonita — interveio Mika.
— Obrigada! — Charlie esboçou um sorriso luminoso a Mika. A
divisão era um open space, ostentando eletrodomésticos em aço
inoxidável extremamente brilhantes e bancadas em mármore. Um
sofá cinzento em forma de L dominava a sala de estar. Na lareira,
ardia um tronco. As luzes eram controladas por reguladores, para
criar ambiente e uma boa atmosfera — a estética desta noite:
pouca luz, acolhedora e com um toque de romantismo. Vinhos e
cervejas exibiam regiões de todo o mundo. Há muito tempo, Mika
bebera cerveja. Masnunca depois da faculdade. Não, aqueles
dias de barris e copos de plástico tinham desaparecido. Ela
contornou as garrafas castanhas e serviu-se de um copo de vinho
saudável, suficiente grande para matar qualquer má memória.
* * *
Dois, três, quatro copos de vinho mais tarde — quem é que
estava realmente a contar? —, Mika estava embrenhada numa
conversa profunda com Hayato. Sentaram-se no sofá, perto um
do outro. A alguns metros de distância, Hana dançava lentamente
com uma colega de trabalho de Tuan. Hayato tinha acabado de
inteirar Mika sobre o seu trabalho, que consistia em criar materiais
de marketing e desenhar ténis para a Nike. Hayato fez girar o
vinho no seu copo.
— Em que é que trabalhas?
Mika acenou com uma mão.
— Infelizmente, estou desempregada.
— Oh!
Perante o tom solidário de Hayato, ela disse:
— Está tudo bem. Perfeitamente bem. — Mika tinha o dinheiro
dos pais.
— A que é que tens estado a candidatar-te?
Mika bebeu o seu vinho, o chardonnay que tinha aquecido por
ela se recusar a pousar o copo.
— A nada de especial. — Nas poucas semanas em que andara
à procura, não tinha encontrado nada sequer remotamente
apelativo. — Mas decidi ver isto como uma oportunidade. Sabes,
se uma porta se fecha, há outra que se abre.
— Gosto da atitude — disse Hayato. — Dá uma olhadela na
Nike e vê se alguma coisa se encaixa nas tuas qualificações. Não
me custa nada dar lá uma palavrinha.
— Uau! Obrigada, isso seria ótimo — disse ela, grata, mas com
dificuldade em imaginar. Abateu-se o silêncio sobre eles. Ela
repousou a cabeça na parte de trás do sofá e espreitou para o
teto. Pensou em Hana e na sua carreira, em Charlie e no seu
casamento. Como os seixos das amigas tinham chegado ao outro
lado do rio. A voz de Charlie irrompeu pela sala.
— Olha lá! — disse, chamando a atenção de Mika. — O teu
telemóvel está para aqui a tocar que nem um maluco. — Charlie
atirou o telemóvel a Mika, no momento em que o toque se
interrompeu. Três chamadas perdidas de Penny.
— Dás-me licença por um momento? — disse ela a Hayato
antes de sair pela porta das traseiras. Penny tinha deixado duas
mensagens de voz. Ao sair para a noite fria da primavera, Mika
encostou o telemóvel ao ouvido, ouvindo a primeira mensagem de
Penny.
— Olá, sou eu. Liga-me quando ouvires isto. Tenho uma
surpresa para ti.
Depois, a segunda mensagem.
— Pronto, não aguentei esperar. Estou aqui mortinha. Mortinha.
Lembras-te de quando te disse que no meu décimo sexto
aniversário os meus avós me tinham enviado um cheque de
quinhentos dólares e eu andava a tentar descobrir o que fazer
com ele? — Houve uma pausa. Provavelmente, para Penny
respirar. Mika encontrava-se muitas vezes sem fôlego depois das
chamadas de Penny. — Ia usá-lo para um telemóvel novo, mas
depois tive uma ideia brilhante! Vou visitar-te nas minhas férias da
primavera!
Mika colocou uma mão contra a cerca para se aguentar de pé.
Portland não tinha muitos terremotos, mas ela estava certa de que
um tremor de terra acabara de abalar o chão.
Penny continuou:
— Vamos conhecer-nos oficialmente dentro de duas semanas!
Não acredito que comprei um bilhete. Meu Deus, o meu pai vai
arrepender-se tanto de me ter dado o meu próprio cartão de
débito. Não te preocupes, vou dizer-lhe hoje à noite. Não posso
acreditar que te vou ver! Mal posso esperar para ver a tua casa e
a tua galeria. Eu vou estar totalmente lá para a grande
inauguração. E quero conhecer o Leif! — Guincho. Um guincho a
sério. — Estou tão entusiasmada.
Mika ouviu a mensagem de voz mais três vezes. As palavras
não mudavam. Mas o efeito com que assentaram nela fizeram-na
sentir-se indisposta. O seu coração mentiroso contorceu-se no
peito, depois torceu-se novamente com culpa. Meu Deus, Penny
vinha a Portland. Penny, que ela amava. Penny, que pensava que
Mika era uma pessoa totalmente diferente. Ela espreitou para o
céu. Esperou para ver se nuvens trovejantes estavam a
aproximar-se. Se homens de peito ao vento em cavalos
gigantescos cavalgavam em debandada pelos céus. Nada.
Confirmava-se. Não era o fim dos tempos. Era bom saber que ela
era a única pessoa lixada a um nível bíblico.
M
CAPÍTULO 6
ika irrompeu pela casa adentro. Primeira paragem, Hana.
— Desculpa. — Puxou o braço de Hana, separando a sua
melhor amiga da mulher de cabelo azul com quem ela
dançava lentamente.
— Ei! — A mulher franziu o sobrolho. — Disseste-me que eras
solteira.
— E sou — explicou Hana timidamente.
O pânico arrastava-se pela espinha de Mika acima. As palavras
da mensagem de Penny atravessavam a mente de Mika como
sinais de aviso antes de um penhasco. Eu vou ter contigo. Duas
semanas.
— Emergência. Alerta vermelho. Preciso de ti.
As sobrancelhas de Hana arquearam-se.
— Estou curiosa. Lily...
— Chamo-me Lola.
O sobrolho carrancudo da mulher de cabelo azul intensificou-se.
Hayato ainda se encontrava na sala de estar, onde mantinha uma
conversa animada com Tuan e alguns outros tipos.
— Lola — disse Hana, fazendo-lhe uma saudação. — Foi bom.
E lá foram as duas, Mika a arrastar Hana para o quarto de
Charlie. Lá dentro, Mika fechou a porta, abafando o som da festa.
— Ouve isto. — Mika aumentou o volume do telemóvel, pôs a
soar a mensagem de Penny e pousou o aparelho na cama king-
size. A voz doce de Penny preencheu o quarto escuro. Enquanto
ambas ouviam, o coração de Mika caiu-lhe aos pés. Ela devia
saber que isto ia acontecer. Tinha anos de experiência com tudo a
correr bem e, de repente, tudo a correr mal. Nunca nada era
garantido.
— A Penny vem visitar-nos. Isso é ótimo! — disse Hana. Depois,
perante a expressão de Mika, corrigiu: — Não é ótimo? — O
sobrolho de Hana cerrou-se rapidamente. — Espera aí. Ela disse
a tua galeria? E o que é que era aquilo sobre o Leif?
Mika sentou-se na cama, ou melhor, deixou-se desabar. Dobrou
os joelhos, fletiu as mãos. Nada a fazia sentir-se melhor.
— É por causa disso que preciso da tua ajuda. Posso ter
empolado a verdade nas nossas conversas. — Ela juntou o
indicador e o polegar. — Um bocadinho.
Hana pestanejou.
— Um bocadinho de que tamanho?
— Bem… — Mika sacudiu a manga da camisa; estava a
começar a transpirar outra vez. — Disse que me tinha licenciado
em História da Arte. — Outrora, há muito tempo, ela sonhara em
terminar o curso de arte e viajar pela Europa ou pela América do
Sul. Em vez disso, licenciara-se em Gestão. Tinha levado sete
anos, em vez dos habituais quatro.
— Está bem.
A expressão no rosto de Hana fazia parecer que não era assim
tão mau.
Mika encolheu as bochechas.
— Talvez com louvor e distinção.
Hana riu-se, a cabra.
— Que mais?
— Sei lá. A minha própria galeria e casa, andar a viajar pelo
mundo, namorado muito bem-sucedido, acho que até disse que
vou de bicicleta para todo o lado.
As sobrancelhas da Hana arquearam-se.
— Então, és uma mentirosa aldrabona que mente?
— Outra vez. Prefiro o termo «empolar a verdade».
Hana fez uma careta.
— Mas porquê?
Era difícil para Hana entender, supunha Mika. Além das terríveis
habilidades domésticas, Hana realmente não tinha nada a
esconder. Tinha um ótimo trabalho. As mulheres atiravam-se a
ela. Como é que Mika conseguiria explicar?
— Posso ser sincera? — perguntou Mika.
— Sabes bem que sim — respondeu Hana imediatamente.
— É quem eu quero ser. Quem eu pensava que poderia ser…
antes. — Existia na ficção uma espécie de esperança segura. As
possibilidades eram infinitas. A sua vida, diferente. Uma linha
temporal mais positiva. Se ao menos. Se ao menos… Além disso,
ela queria dar a Penny o que tivera de procurar há dezasseis anos
em Caroline: uma boa mãe, uma mãe em condições.
— Mika — suspirou Hana. Finalmente, ela levantou-se,
aproximando-se da porta como se fosse sair.
O pânico cortou através de Mika como uma faca de santoku.
— Aonde é que vais?
Hana virou-se.
— Vou buscar a Charlie. Vamos precisar de reforços.
* * *
Alguns minutos depois, Charlie, Mika e Hana estavam sentadas
na casa de banho de Charlie — porque Hana tinha as suas
melhores ideias na sanita.
— Disseste-lhe que tinhas estado nos bastidores para a atuaçãode abertura do Hamilton? — perguntou Charlie. Ela estava
sentada na sanita fechada, com o portátil ligado e a folha de
cálculo do Excel aberta. E, porque Charlie era Charlie, tinha
decidido classificar as mentiras de Mika por categoria: Escola e
Carreira, Passatempos, Vida Amorosa, etc.
Mika franziu o sobrolho.
— Também não lhe disse que estive na produção. Só disse que
o Leif me tinha levado a Nova Iorque e me tinha surpreendido
com passes para os bastidores para conhecer o elenco na noite
de abertura.
Hana escarrapachou-se dentro da banheira com pés em formato
de garra, de copo de vinho na mão.
— Isso é estranhamente específico.
— O diabo está nos pormenores — respondeu Mika.
— Estou a arquivá-lo na categoria Passatempos — disse
Charlie.
Alguém gritou na sala de estar. Aparentemente, estavam a
decorrer jogos de tabuleiro.
— Tens a certeza de que não devias estar lá fora com a tua
malta? — perguntou Mika a Charlie.
— Vocês são a minha malta — disse Charlie, acintosamente. —
Além disso, está tudo controlado. O Tuan assume o meu lugar.
Ele compreende perfeitamente.
— O Tuan é fantástico.
Mika desejava ter um parceiro como Tuan. Ele já tinha entrado
numa corrida de bicicleta pela Califórnia. Estava em posição de
ganhar muito dinheiro, mas tinha desistido porque sentia falta de
Charlie «como o caraças». Ser amada assim, pensou Mika com
um pouco de melancolia. Outrora, ela acreditara que estava
apaixonada. Caloira da faculdade. Tinha sido tola na altura. Tão
ingénua. Tão facilmente ludibriável. Com um abanão de cabeça,
Mika esmagou uma imagem do pai biológico de Penny. Não, ela
não gostava de se lembrar dele.
Charlie fez um gesto de desdém com a mão.
— Não estás a perder nada. Sempre que ele passa por mim
depois de eu sair do duche, fala em «mamocas». — Ela mostrou
as palmas das mãos como se estivesse a segurar em dois
melões. — E depois passo um tempo excessivo a tentar atingi-lo
nos genitais com o seu próprio braço. — Ela sorriu, a tola
apaixonada.
— Concentrem-se. — Hana voltou a recostar-se na banheira. —
Que mais?
Mika percorreu a sua memória. Passou mais uma hora. A festa
acalmou, a porta da frente abriu-se e fechou-se. Tuan bateu à
porta e disse que ele e Hayato iam a um bar no fundo da rua. A
lista cresceu.
 
 
ESCOLA E CARREIRA
Licenciada em História da Arte
Estágio num museu de arte local
Contratada por um museu de arte local
Avança lentamente no caminho de ser curadora
Poupou dinheiro suficiente para se tornar proprietária de uma galeria de
arte
Grande inauguração (daqui a duas semanas!)
 
PASSATEMPOS
Viagens (já esteve em toda a Europa e América do Sul)
Andar de bicicleta
 
VIDA AMOROSA
Namorado: Leif, empresário
Leif pede-a regularmente em casamento, mas Mika não está pronta para
assentar
 
 
Charlie ofereceu-se para fazer uma espécie de fluxograma. Mika
recusou. Finalmente, Charlie respirou fundo e fechou o portátil
com um clique decisivo.
— Do meu ponto de vista, há duas opções.
— Está bem — disse Mika com seriedade.
— A primeira, contas a verdade à Penny. Pões tudo em pratos
limpos.
Mika considerou-a por menos de um segundo.
— Pois. Não adorei a ideia.
— A segunda, nós criamos esta vida para ti.
— Sou toda ouvidos — disse Mika. Sentiu um nó na garganta.
Um desejo profundo cresceu-lhe no peito, provocando-lhe dor.
Desde que dera Penny para adoção, Mika sonhara conhecê-la um
dia ao vivo. É verdade que a fantasia geralmente envolvia Mika a
caminho de um destino fabuloso, talvez a instalação da sua
primeira peça de arte no Met, com uma breve passagem por
Dayton. Tempo suficiente para almoçar e ver a cara de Penny a
brilhar de orgulho por ter saído de Mika — por ser feita do mesmo
material que ela. Penny nunca olharia para Mika assim, se
soubesse que a vida dela se assemelhava a uma torre Jenga em
fase adiantada.
Hana acrescentou:
— Como é que vamos fazer isso?
Charlie bufou.
— Bem, a maior parte disto parece exequível. Tipo a casa...
— A Mika vive comigo — acrescentou Hana, prestável.
Mika pestanejou, visualizando a casa de Hana. O relvado com
ervas daninhas e plantas espinhosas variadas. O interior cheio de
caixas e pilhas de revistas cheias de pó. O frigorífico com um
cheiro estranho. O nível de vergonha de Mika atingiu o pico
máximo.
— Sim e tu vives numa casa — enunciou Charlie lentamente. —
Ou tenho quase a certeza de que é isso que aquilo é. Será que
um edifício prestes a ser demolido ainda é considerado um
domicílio?
— Olha a piada que ela tem — respondeu Hana com o rosto
inexpressivo.
Mika encostou a face à banheira fria. Veio-lhe à memória o
momento em que enfiou as mãos nos lençóis frios do hospital no
dia em que entregou Penny. O toque tem memória, afinal.
Concentrou-se noutra coisa. No aqui e agora. As argolas de ouro
que Hana tinha nas orelhas. A lâmina de barbear de Tuan
equilibrada na beira do lavatório. Charlie a abanar a cabeça.
— Esquece isso — anunciou Charlie. — Vamos chamar-lhe uma
casa. Tudo o que precisamos de fazer é arrumá-la um bocadinho.
— Charlie sempre fora otimista. — No que diz respeito a
passatempos, o Tuan anda de bicicleta e tenho a certeza de que
ele te pode dar algumas dicas, alguns termos para usares.
— E o espaço da galeria? — perguntou Hana. Ao contrário de
Charlie, Hana sempre tivera mais tendência para ser pessimista.
— Não sei — disse Charlie. — Mas podemos pensar em
qualquer coisa. Agora, sobre a história com o Leif... — Charlie
comprimiu os lábios, a pensar. Penny tinha visto fotos de Leif.
Mika já não podia contratar um acompanhante, mesmo que
pudesse pagar, o que não podia. Charlie inalou como se se
preparasse para invocar uma espécie de demónio antigo. —
Devias telefonar-lhe.
Mika fez uma careta.
— Ui.
Leif não sabia de Penny. Mika tivera o cuidado de manter essa
parte da sua vida em segredo. Teria de lhe contar. Teria de voltar
a vê-lo. Era preferível que o resto da sua vida decorresse sem ter
de voltar a falar com Leif.
— Calma — disse Charlie. Duas palavras descreviam melhor a
relação entre Mika e Leif: terra queimada. Todos os seus amigos
sabiam que não deveriam entrar naquele território hostil para não
saírem chamuscados. — O Tuan está muitas vezes com ele. —
Mika não comentou a amizade de Tuan com Leif. Sabia que os
dois ainda eram amigos. Tuan fazia amigos como as calças de
ganga agarram o cotão. Charlie continuou: — Ele está a dar-se
muito bem desde que a erva foi legalizada. Tem uma loja e tudo.
— Mika manteve os lábios comprimidos. Tinha tanto gosto que
Leif se estivesse a dar bem como em ter verrugas genitais. Nesse
preciso momento, o telemóvel de Mika tocou. Um número
desconhecido piscou no ecrã.
— É do Ohio — sussurrou Mika, reconhecendo o indicativo.
— É a Penny? — perguntou Hana.
Mika abanou a cabeça.
— Não.
Ela tinha gravado o número de Penny nos seus contactos.
— Não atendas — disse Hana.
— Atende — disse Charlie.
Mika deslizou o botão para atender a chamada e pôs o
telemóvel em alta-voz.
— Estou?
— Olá. Mika Suzuki?
— É a própria — disse ela, sentindo um horrível nó de pavor a
formar-se-lhe na garganta.
— Daqui fala Thomas Calvin. O pai da Penelope. — A voz dele
era profunda, um pouco proibitiva. Demasiado severa, grave. Um
antídoto para a vivacidade de Penny. Era este o homem que
criara a filha de Mika?
Mika não disse nada. Pôs-se de pé abruptamente. O vinho
entornou-se do seu copo, e ela lambeu os dedos enquanto
equilibrava o telemóvel na palma da mão.
— Estou sim? Está aí? — disse Thomas.
— Estou aqui — respondeu Mika, com as faces a escaldar.
— Pode falar agora? É boa altura? Parece que está num túnel.
Há um eco.
— Estou na minha galeria.
Hana voltou os dois polegares para cima.
Charlie escondeu o rosto nas mãos.
— Olhe, peço desculpa por estar a telefonar assim do nada. A
Penny informou-me de que tenciona ir visitá-la. Eu nem sabia que
vocês as duas tinham falado. Eu nem sabia que ela sabia o seu
nome. — Mika encolheu-se. Oh, Penny, o que é que foste fazer?
Nunca lhe tinha ocorrido perguntar o que é que o pai adotivo de
Penny sabia, o que é que ele sentia por elas andarema
conversar. As conversas delas tinham estado singularmente
focadas uma na outra. As suas semelhanças, o facto de ambas
recorrerem à comida em busca de conforto emocional. Felicidade,
tristeza, tédio: todas as emoções eram uma boa desculpa para
um bolo. O facto de ambas adorarem cães, mas serem alérgicas,
mesmo aos que tinham pelo curto. Tinham bloqueado o resto do
mundo, existindo apenas uma para a outra. — Peço desculpa,
mas estou chocado. Não é típico dela guardar segredos de mim.
E agora comprou um bilhete de avião para Portland. Eu... bem,
estou com receio de que ela não tenha pensado bem nas coisas.
— O que é que há para pensar? — disse Mika,
automaticamente na defensiva. As suas faces aquecidas com
inseguranças. Será que Thomas estava a interrogar Mika? Quem
era ela? Quais as suas qualificações para estar na vida de Penny,
para ser mãe?
— Tudo — respondeu ele com clareza. — Ela gastou todo o
dinheiro do seu aniversário no bilhete. Devia ter posto esse
dinheiro de lado para juntar à poupança para a faculdade. — Fez
uma pausa, deixando as palavras penduradas no ar. — Eu
simplesmente… Vou dizer à Penelope que falámos e que agora
não é boa altura para ela a visitar. Está bem?
— Sim — disse Mika.
— Excelente — disse Thomas, e depois ficou silencioso.
— Quero dizer, não — disse Mika abruptamente,
surpreendendo-se a si mesma.
— Peço desculpa? — Era claro que as pessoas não
discordavam de Thomas muitas vezes.
— É que, por acaso, acontece que a minha agenda está livre —
disse Mika, animada. Penny queria vir a Portland. E Mika queria
conhecer Penny pessoalmente. — Eu iria adorar conhecer a
Penny. Poder conhecê-la melhor em pessoa.
— Está a falar a sério?
— Totalmente.
— Senhora Suzuki...
— Mika, por favor.
— Senhora Suzuki, agradeço-lhe por querer ajudar. Mas, com
todo o respeito, a senhora não conhece a minha filha. A Penelope
é impulsiva. Precisa de orientação. Ela tinha outros planos para
as férias da primavera, outros planos para aquele dinheiro…
Como lhe disse antes, acho que ela não pensou bem nisto.
A senhora não conhece a minha filha foi a única coisa que Mika
ouviu. E isso feriu-a profundamente. Esforçou-se para esconder a
dor, para manter um tom equilibrado.
— Sabe, quando as pessoas correm numa direção, muitas
vezes isso significa que estão a fugir de outra.
— O que é que isso quer dizer?
Ela esticou um braço.
— É apenas uma consideração genérica sobre a vida. Talvez
seja mais do que impulsividade. Talvez a Penny esteja a tentar
compreender algumas coisas.
Mika lembrou-se de si mesma aos 16 anos. A desenhar, a
passar tempo com Hana, à procura de uma vida melhor. Não é
isso que toda a gente faz? O que é que os pais de Mika tinham
feito quando vieram para os Estados Unidos? O que é que Mika
fizera na faculdade? Mika ansiara por mais. E Penny também. E
Mika compreendia profundamente a atração emocional de algo
maior, quão irresistível podia ser.
Ele suspirou e suavizou infimamente o seu tom.
— Isso pode ser verdade. Ela… Eu pensei que estava tudo bem.
Mas a mãe dela — Mika engoliu em seco quando ouviu a palavra
mãe — escreveu-lhe uma carta para ser aberta no seu décimo
sexto aniversário. Ela não me deixa lê-la, mas, desde então, tem
agido de forma diferente. Esta viagem… vê-la, conhecê-la, pode
levantar muito mais perguntas do que respostas.
— Thomas. Posso tratá-lo por Thomas? — Mika começou a
passarinhar pelo minúsculo espaço da casa de banho. Três
passos para a frente. Girar. Três passos para trás. — Agradeço a
sua preocupação. Mas eu não vou desencaminhar a Penny.
— Se ela for. — O tom dele mudou. — Ela não vai sozinha. Eu
vou acompanhá-la.
— Ótimo — disse Mika, sentindo-se perversamente bem e com
um brilho ultrajante nos olhos. — Quantos mais, melhor. Por favor,
dê cumprimentos meus à Penny. Estou ansiosa por vos conhecer
a ambos. Agora, tenho de ir. — Mika estava a transpirar. Tanto. —
Gostei de falar consigo.
— Espere…
Mika desligou.
— Uau! — exclamou Charlie.
— Cum caraças — disse Hana.
— Então, segunda opção? — perguntou Charlie, passando
suavemente com as mãos sobre o portátil.
— Segunda opção — disse Mika, ainda a olhar para o
telemóvel.
Hana ergueu o copo de vinho bem alto.
— Vou brindar a isso.
M
CAPÍTULO 7
uito aconteceu nas quarenta e oito horas seguintes. Penny
enviou os detalhes do seu voo. Depois, mandou-lhe uma
mensagem. Argh, o meu pai também vai. Mas tenho a
certeza de que vamos conseguir livrar-nos dele. Ele quer o
teu e-mail. Posso dar-lho? Ele deixa qualquer um LOUCO.
Desculpa. Mika concordou que Thomas podia ter o e-mail dela.
Que mais poderia ela fazer? Pouco tempo depois, Thomas enviou
uma confirmação a dizer que seguiria no mesmo voo de Penny.
Também incluiu uma sugestão de itinerário, deixando em aberto
alterações no documento Word para que pudessem discutir, ou
seja, negociar, o horário. Raios partam os advogados.
Os detalhes foram acordados.
Dia 1 (domingo): Chegada no voo 3021, às 10h21 da manhã.
Demorariam cerca de quinze minutos a ir até à recolha da
bagagem, onde Mika os apanharia. De malas na mão, seguiriam
diretamente para o almoço. A Penny insistiu em roulottes de
comida?, escreveu Thomas, desconcertado com tal ideia. Depois
do almoço, Penny e Thomas passariam a tarde no hotel a
descansar e a jantar porque, aparentemente, Thomas era um
velho embirrento a viver dentro do corpo de um embirrento mais
jovem.
Segundo dia (segunda-feira): Visitariam o Museu de Arte de
Portland, onde a falsa-Mika tinha estagiado, e jantariam em casa
de Mika, onde Leif, o charmoso namorado da falsa-Mika se
juntaria a eles.
E por aí fora. Terceiro dia (terça-feira): jantar num dos
restaurantes com estrelas Michelin de Portland. Dia 4 (quarta-
feira): Almoço com Hana… culminando no quinto dia (quinta-
feira): Abertura da falsa galeria de Mika. Aquela sobre a qual ela
tanto tinha falado com Penny. «Eu tenho o melhor artista. Ele é
brilhante. Não acredito que ele não tenha sido agarrado por outra
galeria. Já viste a minha sorte?»
Mika vacilava entre o pânico e o entusiasmo. Catorze dias, não,
doze dias. Ela tinha menos de duas semanas para falsificar a sua
vida. Menos de duas semanas até voltar a encontrar-se com
Penny pessoalmente. A contagem decrescente tinha começado.
Charlie e Hana prometeram apoiá-la ferozmente. Esvaziaram
das suas agendas as noites e fins de semana para a ajudar a
preparar-se. Charlie até tinha intenção de pedir ao informático da
escola onde trabalhava para criar algumas fotos de Mika nas suas
viagens pelo mundo fora. A casa. Os passatempos. Tudo tratado.
Ou em processo de ser tratado. Faltavam ainda duas peças. O
espaço da galeria e Leif. Das duas, Leif parecia a mais fácil, o
fruto que se encontrava no ramo mais baixo.
E Leif não atendia os telefonemas nem respondia às mensagens
de Mika. Sacana. Tinha tentado meia dúzia de vezes. Nada. Ele
lera as mensagens dela. Ela tinha a certeza. O balãozinho com
três pontos apareceu e reapareceu como se ele estivesse a
decidir o que dizer, depois acabou por assentar no silêncio
passivo-agressivo. Ele não lhe deixara escolha. Mika estava
especada na Northwest Twenty-Third Avenue, num bairro
comercial de luxo, na moda. Quando Tuan lhe deu o endereço,
ela ficara surpreendida. Pensava que a loja dele seria algures no
norte de Portland, perto de um bar de striptease com um nome
tipo O Saque do Pirata. Vista de fora, não parecia ser uma loja de
erva. As janelas estavam cobertas com sombras de bambu bege.
O nome, Twenty-Third Marijuana — pouco inventivo, pensou Mika
presunçosamente — estava escrito em letras de madeira e
suavemente retroiluminado. Mika suspirou e abriu a porta. Que se
lixe.
Um tipo branco enorme, com tatuagens no pescoço, encontrava-
se junto da entrada.
— Identificação.
Mika tirou a carta de condução da mala.
— Estou aqui para ver o Leif.
Ele fez brilhar uma luz na identificação de Mika, olhou para ela,
olhou para a identificação e depois devolveu-lha.
— Fala com a Adelle. — Apontou para uma miúda branca fixe
com cabelo comprido e franja. — Ela trata da agendadele. Se
quiseres comprar alguma coisa, é só em dinheiro. O multibanco
fica na esquina.
— Obrigada. — Mika enfiou a carta de condução na carteira e
aproximou-se de Adelle. Leif era dono daquilo? Aquela mistura
entre loja da Apple e spa? Ouvia-se música new age. Enya,
talvez. Balcões de vidro emoldurados em madeira clara, com todo
o tipo de parafernália, bálsamos, produtos cozinhados. Estava
apinhada. A loja zumbia com o burburinho da clientela a girar em
torno de diferentes tipos de pedradas.
— Deseja algo suave? — ouviu um empregado dizer.
— Sim — respondeu o miúdo com uma camisola da
Universidade de Portland. — Apenas uma coisa só para relaxar.
Adelle trazia uma prancheta, na qual estava a rabiscar. Ao ver
Mika aproximar-se, ergueu o olhar para ela.
— Posso ajudá-la?
Tinha um crachá com a palavra Gerente.
— Preciso de falar com o Leif.
Adelle inclinou a cabeça, mascando uma pastilha.
— Tem marcação?
— Hum, não.
— Peço desculpa. O Leif só atende as pessoas por marcação. E
ele não está, de qualquer maneira.
Voltou a olhar para a prancheta. Ela tinha uma tatuagem de uma
carpa koi no braço e alguns kanji.
— Tem aí uma bela tatuagem. O que é que diz?
— Oh! — Adelle levantou os olhos. — «Destemida».
Népias. Mika estudara caligrafia durante uma década. Era
doninha em kanji.
— Olhe, eu sei que o Leif está aqui. A carrinha que ele
converteu para funcionar com óleo vegetal reciclado está
estacionada lá atrás. — Mika endireitou-se, sentindo-se corajosa
e assertiva. — Por favor, diga-lhe que a mulher que uma vez lhe
rapou as costas está aqui.
A boca de Adelle abriu-se e fechou-se. Ela rebentou um balão
de pastilha elástica. Depois pegou num telemóvel e carregou num
botão.
— Sim, olá. Desculpa o incómodo. Está aqui alguém para te ver.
— Ela avaliou Mika. — Asiática, baixa e meio zangada… Claro. —
Adelle desligou. — Pode ir lá atrás. — Fez um gesto para uma
porta branca com uma placa que dizia SÓ PARA FUNCIONÁRIOS. — O
escritório dele é o último à direita.
Mika colocou a mala ao ombro.
— Prazer em conhecê-la.
Ela já estava a passar pela porta antes de Adelle lhe conseguir
responder.
A porta do escritório de Leif estava entreaberta. Mika não se deu
ao trabalho de bater. Ele não se deu ao trabalho de se levantar de
trás da secretária. Ela concentrou-se primeiro no escritório. Não
havia muito para ver, na verdade. Bastante simples, com uma
secretária branca e um computador gigante. Sem janelas. Depois,
sem outro sítio para onde viajarem, os olhos dela concentraram-
se em Leif.
Ele recostou-se na cadeira, ajustando o seu corpo volumoso. O
seu corpo novo e mais magro. A barriga proeminente e as faces
inchadas tinham desaparecido. Agora as bochechas dele eram
ângulos afiados sob uma barba por fazer aparada. O seu longo
cabelo loiro tinha sido cortado e despenteado numa confusão
deliberada. O coração de Mika parou por um momento. Da
primeira vez que ele a beijou, pedira-lhe permissão. Com as mãos
suaves que cultivavam plantas, envolvera-lhe as faces. «Eu quero
beijar-te agora mesmo, posso?»
— Ora, ora, ora. — A voz dele cortou através da memória de
Mika. — Olhem só quem decidiu agraciar-me com a sua
presença.
— Dale. — O verdadeiro nome de Leif. Ele detestava-o. — É
bom ver-te.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso trocista, revelando
dentes mais brancos do que Mika se lembrava.
— Mik. — Ela detestava a alcunha. Era demasiado parecida
com Mickey. — Quem me dera poder dizer o mesmo.
Ela fingiu um sorriso. Ele fingiu um sorriso. Era uma espécie de
duelo. Mika entrou no escritório, infatigável. Sentou-se numa
cadeira.
— Põe-te à vontade — resfolegou Leif.
— Este sítio é agradável — disse ela com firmeza.
— Foi construído por mim. — Leif inchou um pouco. — Os
painéis solares no telhado mantêm as nossas contas de energia
em menos de cem dólares por mês. Também somos uma
instalação de desperdício zero. Fazemos compostagem de quase
tudo.
— Uau! Estás muito longe de quando dormias num futon e
jogavas disc golf o dia todo. — Ela fez uma pausa. Levantou o
nariz no ar. — Tenho andado a tentar falar contigo.
— Eu sei. Tenho andado a evitar-te ativamente. — Ele inclinou-
se mais para trás na cadeira e abriu bem as pernas. Parvo. Este
não era o seu Leif. O seu Leif viu O Projeto Blair Witch pedrado
em roupa interior. Os seus três maiores valores eram: não ter
conta bancária, casas minúsculas e jogar futebol com bolas de
pano. O seu Leif odiava o Ronald Reagan. Comia burritos em
jacúzis e tinha um amigo chamado Mustache, cujo verdadeiro
nome ele não conhecia. O seu Leif sempre se certificou de que a
porta da frente estava trancada, as janelas também —
principalmente porque temia que alguém lhe pudesse roubar o
produto escondido. Mas isso fazia Mika sentir-se segura. E ele
não se importava que ela gostasse de deixar a porta do quarto
aberta quando faziam sexo. Uma das manias dela, Leif sempre
pensou, como o facto de odiar a canção Return of the Mack.
Quem é que não adora essa canção? E sempre que era
despedida de um emprego, Leif vestia roupas pequenas demais
para ele e dançava pelo apartamento a cantar «gajo gordo com
casaco pequeno»2. Este era o novo Leif. O novo Leif usava calças
de ganga com corte à medida, pulseiras de couro e bebia sumo
verde. O novo Leif provavelmente passava a maior parte do
tempo a fazer exercício enquanto puxava o lustro à sua raiva para
com a ex como se se tratasse de uma adaga maligna.
Mika amaciou o tom de voz.
— Preciso de um favor.
Leif pestanejou.
— Não.
Ela esperou que ele desenvolvesse. E esperou. Portanto, não ia
acontecer.
— Tem um bom dia. — Ele pegou no telemóvel que estava na
secretária e começou a deslizar o dedo pelo ecrã.
— Leif. — Mika esforçou-se bastante para manter a voz firme.
— Estás em dívida para comigo. Por causa de Porto Rico.
Ele deixou cair o telemóvel e pressionou uma mão no seu belo
peito coberto por uma t-shirt. Leif agora tinha peitorais?
— Estou em dívida para contigo? — A elevação da voz dele fez
Mika vacilar. — Como assim?
A raiva trespassou Mika com tanta força e calor como se fosse
eletricidade.
— Eu transportei as tuas drogas — sussurrou ela. No aeroporto,
ele tinha-lhe atirado com o saco, de olhos brilhantes como quem
descobrira algo novo e totalmente desconhecido, algo que
mudaria o curso do próprio mundo. «Põe só isto na tua mala,
querida. Por favor, isto pode ser a chave para o meu negócio
levantar voo, uma nova variante. Podemos ficar ricos.» E ela
fizera isso. A transpirar durante todo o voo e na fila da alfândega.
— Sementes — disse Leif como se estivesse ofendido, como se
Mika estivesse a exagerar. — Eram sementes.
Ele passou uma mão pelo cabelo. Abanou a cabeça. Recompôs-
se.
Uma vez, em casa, Leif estava triste, mal-humorado. «Tu nunca
apoias os meus sonhos», dissera ele.
Desorientada, Mika respondeu-lhe: «Mas eu transportei as tuas
sementes.»
Leif assumiu um tom petulante. «Mas não querias. Acho que
não consigo estar com alguém que não está do meu lado.»
«Estás a gozar?», cuspira Mika, atordoada. «Estás a acabar
comigo porque eu transportei drogas para ti, mas não queria?»
Correu tudo muito mal e muito depressa a partir daí. Pronto,
talvez ela tenha acusado os pais dele de serem primos direitos.
Depois, quando isso não se revelou um golpe suficientemente
profundo, chamou estúpidos aos sonhos dele. «Porque é que tens
tanta tesão por casas minúsculas?», dissera ela, enfiando a roupa
em sacos de plástico com uma força digna de um furacão. Mika
telefonara a Hana para a ir buscar. «Nunca irás abrir uma loja de
erva. É um absurdo. Trinta e dois anos e ainda a perseguir o arco-
íris.»
«Pelo menos, eu tenho sonhos», retorquira ele.
Ao sair de casa, ela enfiara no bolso as sementes que tanto
significavam para Leif, e depois filmou-se a despejá-las pela
sanita abaixo. Enviou o vídeo a Leif. Ele devolveu uma única
palavra… Cabra. Ao que ela respondeu: Vai à merda
imediatamente e para sempre, Leif. E foi nesse ponto que eles
deixaram as coisas.
A vergonha queimava o rosto de Mika. Ela esfregou as mãos
nos joelhos.— Olha, desculpa ter insinuado que os teus pais eram primos
direitos e… por tudo o resto. Agora percebo como éramos
desajustados um para o outro. — A relação deles tinha sido como
um pequeno acidente de trânsito. Tinham embatido a fazer
marcha-atrás um contra o outro, e depois acabaram unidos de
uma forma que nenhum dos dois tencionava. Eles não estavam
destinados a durar. Na maioria das vezes, Leif estava pedrado (às
vezes, também tomava comprimidos). Mika era fechada
emocionalmente. Leif não sabia da existência de Penny, mas ela
estava sempre lá, uma barreira de vidro entre eles. Ele sentia isso
de vez em quando. Quando Mika ficava em silêncio. Quando
olhava vagamente para dentro de um tacho ou panela, com a
comida a queimar. Mas ela não conseguia contar-lhe. Deixá-lo ver
todos aqueles espaços escuros dentro dela. O que é que ele iria
pensar? De qualquer maneira, Leif queria estar entorpecido; Mika
já estava. Ela não se sentia viva desde... bem, há muito tempo.
— Nisso, tens razão. — Ele abanou a cabeça, em sinal de mil
arrependimentos.
Limitaram-se a ficar sentados durante alguns instantes. O
silêncio, denso e pesado, instalou-se na sala.
— Preciso da tua ajuda — acabou ela por dizer. Agora era a sua
vez de implorar. Sentiu o estômago a revirar-se. Leif tinha-a onde
a queria, de barriga para cima e a acenar com uma bandeira
branca de rendição. Se ele dissesse que não outra vez, ela ia
para casa inventar mais uma história para contar a Penny. O Leif
teve um acidente de barco. Está desaparecido no mar,
presumivelmente morto. É triste, mas vou seguir em frente.
Conheces algum homem solteiro com 30 e poucos anos? Mas
sinceramente, ela queria que Penny a visse com Leif. Para ver
Mika a ser amada por alguém. Digna do afeto de alguém. — Há
dezasseis anos, dei um bebé para adoção. — As palavras foram
ditas antes que ela as conseguisse recuperar.
Ficou a olhar especada para ele. Tentou ler-lhe a expressão. O
músculo do maxilar dele contraiu-se. Após o que pareceu uma
eternidade, Leif levantou-se abruptamente e pegou nas suas
chaves pousadas na secretária.
— Por favor, Leif. — Mika levantou-se, bloqueando-lhe a saída.
Ele baixou os olhos para a encarar.
— Anda lá, Mika. — A voz dele era de veludo e demasiado
simpática. — Ainda não comi. Vamos comer qualquer coisa. Pago
eu.
Mika ficou sem palavras. Não sabia o que fazer com este novo
Leif. Não sabia o que fazer consigo mesma.
— Está bem… — disse ela com incerteza.
Os cantos da boca dele ergueram-se, algures entre o sorriso de
um engatatão e o do velho Leif.
— Bem me parecia. Nunca recusas uma refeição grátis.
Odiava quando ele tinha razão.
* * *
Leif guiou Mika até um restaurante ao fundo da rua. Ela pediu
uma pilha dupla de panquecas com um extra de bacon. Leif
comeu uma salada, sem molho, e pareceu confuso quando viu
que não tinham caldo de osso. Entre garfadas, Mika falou a Leif
sobre Penny, sobre as mentiras. Contou a história toda. Quando
acabou, Leif pegou no seu copo de água, bebeu e olhou para ela
por cima da borda.
— Então? — Mika rasgou o guardanapo, fez bolinhas e alinhou-
as ao longo da mesa como se fossem soldadinhos.
Ele pousou o copo, passou uma mão na cara.
— Credo, dá-me um minuto. Atiraste-me com muita informação
para cima. Sempre me pareceu que estavas a esconder-me
alguma coisa. — Leif processou as coisas em voz alta. — Pensei
que talvez não gostasses de mim e que gostasses da Hana…
Mika ergueu as sobrancelhas num olhar mistificado. Ele estava
a falar a sério. Ele não podia estar a falar a sério.
— A sério? Foi esse o teu raciocínio? Isso tem estado a viver na
tua cabeça este tempo todo? — É mesmo à homem presumir uma
coisa destas. Ela não está interessada em mim, por isso deve ser
lésbica. — Por favor, diz-me que o teu ego não é assim tão frágil.
Linhas cor-de-rosa ténues percorreram-lhe as faces.
— Tens razão. Desculpa. Mas não estava tudo na minha
cabeça, certo? Não gostavas da Hana, mas confiavas nela de
uma forma que nunca confiaste em mim.
— Isso é verdade, acho eu. — Mika virava-se para Hana em
tempos de dificuldade. Todos os anos, por volta do aniversário de
Penny, Mika fazia as malas. «Viagem só para raparigas», dizia.
Depois passava a semana em casa de Hana, ignorando as
chamadas de Leif e abrindo-se à injustiça da vida. À inexplicável
tristeza.
— Então e, quero dizer, posso perguntar sobre o pai biológico
da Penny? Ele sabe que ela existe?
— Ele não tem nada que saber da existência dela — afirmou
Mika com firmeza.
— Está bem — disse Leif com cuidado, observando-a.
— Não é dele que se trata — disse Mika atabalhoadamente. —
Trata-se da Penny, e ela vem à cidade, e pensa que és o meu
adorável namorado.
— Mika — disse Leif, com uma dor tão crua no rosto que Mika
teve de desviar o olhar para não se desfazer. A empregada trouxe
a conta. Leif tirou um maço de notas da carteira e pousou-as na
bandeja. — Preciso de apanhar ar. — Ele saiu, Mika agarrou a
porta que se fechava atrás dele e seguiu-o pela rua. Esta parte da
Twenty-Third Street não era muito movimentada. Um ciclista
passou a toda a velocidade. Uma mãe ziguezagueava com uma
criança de colo que estava a dar os primeiros passos.
— Leif — disse ela, no momento em que ele fez uma pausa na
esquina. — Não consigo fazer isto sem ti. — Teve de engolir em
seco. — Preciso de ti… Preciso disto.
Durante cinco longos e agonizantes segundos, Leif olhou para
ela, com a cabeça inclinada, perscrutando-a com o olhar.
— Está bem — concordou, embora não parecesse estar nada
bem. — Eu faço isso.
— Fazes? — Mika sorriu de orelha a orelha.
— Para que conste, isto vai contra o meu bom senso. — Ele
abriu as mãos. — Mas se significa assim tanto para ti…
— Sim. Mais do que tudo.
— Diz-me o que tenho de fazer, então.
Mika deu-lhe a data e a hora e ele anotou no telemóvel.
— Talvez devas usar um fato ou algo assim. Vou mandar-te uma
nota com tudo o que disse à Penny. Mas os pontos altos são:
estamos loucamente apaixonados, vou abrir a minha própria
galeria e tu trabalhas na agricultura, mas não especifiquei de que
tipo. — Fez uma pausa. — Depois posso arranjar-te desculpas
para o resto da visita deles.
— Está bem. Combinado — respondeu Leif, com um suspiro.
— Também me levaste à noite de abertura do Hamilton. — Ela
fez uma pausa. — Fomos conhecer o elenco.
— Uau!
— Foi muito romântico. Surpreendeste-me, e depois beijámo-
nos na Times Square.
— Estou impressionado comigo mesmo.
Ela observou-o com os olhos semicerrados.
— Vai correr tudo bem.
Leif fez rodopiar as chaves.
— As hipóteses de isto rebentar na tua cara são de cinquenta
por cento — comentou ele, jocoso. — Como é que vais fazer com
o espaço para a galeria?
— Ainda não tenho essa parte resolvida. Pensei dizer à Penny
que está a ser remodelada ou assim.
— Ela vai querer vê-la.
— Não sei. — Mika sacudiu a mão. — Posso dizer-lhe que tem
amianto ou algo do género. — Quão fácil era mentir agora?
Demasiado fácil. Consolou-se com a ideia de que as mentiras não
eram significativas. Era o amor que ela e Penny partilhavam. Isso
é que era real. Isso era o que mais importava.
— Talvez eu tenha um espaço para ti. É um lugar que tenho na
zona norte da cidade… um armazém. Tinha pensado usá-lo como
espaço de cultivo. Mas depois muitos artistas começaram a abrir
estúdios ao fundo da rua porque a renda era barata. Decidi alinhar
com o que o Universo me estava a dizer e converti o espaço em
estúdios. — Mika pestanejou, surpreendida: uma zona industrial
convertida num antro de artistas. Leif coçou a nuca. — Seja como
for, um amigo meu é artista, e tem estado a usar o espaço. Ele
provavelmente deixava-te expor o trabalho dele, se quisesses.
Sem pensar, Mika envolveu Leif num abraço.
— Obrigada.
Encostou o rosto ao peito dele. Leif ainda usava o mesmo
sabonete. Mas já não tinha a gordurinha à volta da cintura. Ela
sentiu falta das ancas rechonchudas. Ele confessara uma vez que
os miúdos gozavam com ele na escola: beliscavam-no e
espetavam-lhe dedos. Mika devia ter-lhe dito o quanto adorava o
corpo dele. Como o sexoera sempre melhor quando o seu
parceiro era um pouco imperfeito. Isso deixava-a menos inibida.
Isso fazia com que não se importasse que ele visse todas as
partes flácidas dela.
— De nada.
Ele retribuiu o abraço com um braço.
Mika chegou-se para trás e semicerrou os olhos por causa do
sol.
— Lembras-te daquela vez na Whole Foods quando pediste à
pessoa da caixa para escrever os códigos de barras porque não
querias lasers a tocar na tua comida?
— Lembro-me, pois.
Os olhos dele brilharam, divertido.
— Foi o mais irritante que alguma vez te vi.
Ele afastou-se dela.
— Vou pedir à Adelle para te enviar alguma literatura sobre
lasers e manipulação de alimentos.
— Faz isso. — Mika já ia a meio da rua quando se virou para
trás e gritou: — E já agora, diz-lhe que o kanji que ela tem no
braço significa «doninha». Lançou a Leif um aceno bem-disposto.
— Depois diz-me da galeria.
 
2 Uma cena do filme Tommy Boy. [N. T.]
- B
CAPÍTULO 8
om dia, alegria.
No sábado de manhã, Mika aproximou-se da cama de Hana
com duas canecas na mão.
Hana resmungou.
— Vai-te embora.
— Levanta-te, temos muito que fazer hoje — chilreou ela. —
Tenho uma vida inteira para falsificar e apenas... — Mika olhou
para o pulso, onde não estava nenhum relógio — oito dias para o
fazer. Eu. Estou. A. Passar-me. Além disso, a tua maminha está à
mostra.
Hana resmungou e sentou-se, ajeitando a t-shirt para se cobrir.
— Vou mandar pôr uma fechadura na minha porta. Estás a usar
um fato-macaco?
— Gostas? — Mika fez uma pose.
— Não, não gosto. Temos de fazer alguma coisa em relação ao
teu guarda-roupa antes que a Penny chegue. Não acho que o teu
estilo Walmart dê conta do recado.
Mika passou uma caneca a Hana.
— Não te preocupes. A Charlie vai vestir-me com a sua melhor
roupa casual-profissional que berra sou-educadora-num-jardim-
de-infância, ou seja, basicamente, o meu pesadelo Ann Taylor. As
roupas fazem a mulher. Ou desfazem-na. Vamos lá. Estamos
prestes a embarcar numa viagem sem despesas pagas para
limpar a casa.
Hana bebeu um gole e cuspiu de volta para a caneca.
— Mas que merda é esta?
— É kombucha de maçã tépida. Comprei no estúdio de goat
yoga ao fundo da rua.
— É nojento.
— É o que a Mika 2.0 anda a beber agora. Ela gosta muito de
probióticos e de uma vida saudável. Não se cansa de andar de
bicicleta, e gosta particularmente daqueles assentos minúsculos
que se cravam na sua extremidade traseira. Gosta sobretudo
desses. — Mika pousou a caneca no chão, enfiando-a entre uma
caixa de uma máquina de fazer pão e quatro plantas mortas.
Inclinou-se e pegou numa t-shirt, sacudindo-a. — Esta t-shirt
cheira a fumo e más decisões. — Atirou-a a Hana. — Veste-a.
— Por favor, para de te referir a ti mesma na terceira pessoa.
Hana tapou os olhos com um braço.
— Hana — disse Mika, fingindo que estava a falar a sério. —
Vamos lá agarrar a vida pelos tomates.
— Oh, meu Deus, nunca mais uses esse termo.
— Anda lá, tenho donuts na cozinha.
Isso pôs Hana em movimento. Saiu do quarto, com uma
camisola vestida e sem calças. Encostou-se à bancada e
mordiscou uma barra de ácer.
— Qual é o plano?
— A Charlie e o Tuan vêm a caminho com uma carrinha. E o
Hayato também, porque não tem nada melhor para fazer. Vamos
começar por… — Mika procurou a frase correta. Fazer um
exorcismo? Queimar tudo até ao chão? — Desatravancar. Depois,
esta tarde, vamos trabalhar um bocado no jardim. Não vamos
conseguir acabar tudo hoje.
Hana pôs a barra de ácer num pires que tinha comprado na
venda do recheio de uma das casas da rua. Tocou numa caixa,
envolveu uma pilha de revistas da Architectural Digest com as
mãos. Tinham o nome da ex-namorada, Nicole, escrito nelas.
— Não sei — disse, com uma pontada de teimosia na voz.
Mika arrancou gentilmente os dedos de Hana da pilha de
revistas.
— Talvez devêssemos começar com coisas pequeninas, como
os sapatos no forno?
Hana inspirou pelo nariz.
— Está bem. Está bem.
Mika convenceu Hana a vestir calças e, vinte minutos depois,
Charlie e Tuan chegaram numa carrinha verde-brilhante: B. J. LEVA
A TRALHA. Hayato também apareceu por volta dessa hora, fazendo
comentários sobre o facto de as mudanças serem a pior coisa do
mundo. Ninguém o corrigiu. Hana morava naquela casa há anos.
Trabalharam o dia todo. Limparam os pedaços de rolo de carne
petrificado no frigorífico, bem como leite coalhado e kimchi
solidificado. Abriram caixas e desempacotaram-nas. Colocaram
os artigos para guardar na mesa da cozinha limpa e os artigos
para descartar na carrinha que Tuan tinha pedido emprestada.
Estava uma confusão maior do que quando tinham começado.
Tuan instalou um suporte para bicicletas, e Charlie tinha trazido
roupas para Mika usar, além de algumas roupas para andar de
bicicleta.
— A Penny não vai mexer nas minhas gavetas — disse Mika
enquanto Charlie enfiava t-shirts e calções de licra na cómoda.
Charlie exibiu um punhado de peças de vestuário.
— Isto é spandex para dar confiança.
Quando a casa ficou demasiado quente e abafada, mudaram-se
para o jardim. Charlie calçou um par de luvas de jardinagem e
começou a arrancar ervas. Tuan e Hayato podaram o carvalho
gigante no jardim da frente — a cada outono, deixava cair tantas
folhas mortas e sujas que os vizinhos reclamavam.
Mika foi até ao jardim, onde encontrou Hana.
— A Charlie quer dar um pulo à loja de artigos de jardinagem
para ir buscar algumas anuais? Pelo menos, acho que foi isso que
ela disse. Presumo que esteja a referir-se a flores. Queres ir com
ela? O que é que estás a fazer? — Hana estava de costas para
Mika e tinha uma mangueira na mão. Mika contornou Hana, de
modo a ficar de frente para ela, sentindo a erva desidratada a
crepitar debaixo dos pés. — Tenho quase a certeza de que essa
árvore está morta. — Hana estava a regar um pequeno ácer
castanho desnutrido.
— Eu e a Nicole plantámo-lo. Foi a primeira coisa que fizemos
quando nos mudámos para cá.
Mika olhou-a com cuidado.
— Não sei se dá para o salvar.
Hana abanou a cabeça. Um vinco minúsculo entre as
sobrancelhas. Tristeza.
— Vou trazê-la de volta à vida com a força do amor.
Charlie irrompeu em direção a elas.
— Esquece a loja de jardinagem. — Ela tirou as luvas. — Estou
de rastos. Alguém quer beber alguma coisa?
Hana deixou cair a mangueira.
— Vou buscar os copos.
Ao final do dia, Mika sentia dores em músculos que nem sequer
sabia que existiam. Ficou deitada na cama, a ver a ventoinha do
teto girar em círculos preguiçosos, não tinha energia sequer para
tirar os sapatos — a sua mãe morreria. A cozinha e a sala de
estar estavam uma confusão, mas todas as caixas tinham
desaparecido. Progresso. O seu telemóvel emitiu um som. Mika
procurou-o pela cama. Duas mensagens. A primeira era de Leif.
Uma morada seguida por: O Stanley não se importa que
exponhas o trabalho dele, mas ele vai estar a trabalhar lá esta
semana, por isso não vais conseguir entrar já no espaço.
A outra mensagem era de Penny. ‘Tou tão entusiasmada por
te ver, falta pouco mais de uma semana! FaceTime amanhã?
Mika respondeu: Sim, FaceTime amanhã. Súper
entusiasmada também. Passei o dia de hoje a preparar a
minha casa para a veres. Os olhos de Mika começaram a
fechar-se. O telemóvel voltou a tocar. Penny outra vez. Espero
não ir dar-te trabalho. Tudo o que Mika conseguiu fazer foi rir.
* * *
Cinco dolorosos dias depois, Hana, Charlie e Mika reuniram-se
para jantar na casa recém-lavada. O chão tinha sido esfregado.
As paredes haviam sido pintadas. A relva tinha sido cortada e
pequenas plantas com flores acompanhavam o passadiço até à
porta da frente. Tuan até tinha reparado a racha no teto. Tinham
disposto a mobília à volta da lareira e colocado na prateleira
fotografias de Mika por todo o mundo — adulteradas pelo
informático da escola de Charlie. Havia uma poltrona
aconchegante em que uma pessoa se podia imaginar a ler livros
num dia de chuva. O quarto de Mika tinha um edredão branco
novo e um pequeno candeeiro de cristal com um prato para joias
em cima da mesa de cabeceira.
As bancadas da cozinha tinham sido arrumadas e o ar estavarefrescante e luminoso, com uma grande janela com vista para o
jardim das traseiras. Tinham pendurado as luzinhas decorativas
novamente e pintado com spray uma velha mesa de piquenique,
enchendo-a de jarras cilíndricas e velas brancas, recriando a
imagem do Instagram de Mika. Pequenos eletrodomésticos novos
e brilhantes agraciavam a bancada de granito. Tudo graças às
compras que Hana fizera nas televendas pela noite dentro. «Eu
estava a compor um lar para a Nicole», disse ela enquanto os
ligavam. Um delicado feto verde e uma orquídea branca
adornavam o centro da mesa de jantar. Era tudo pão fresco e
noites junto à lareira e dias ensolarados a fazer compotas. O
coração de Mika animou-se num sorriso ao ver tudo aquilo. Ela
poderia ter criado um bebé ali. Poderia ter ido para ali depois de
viajar pelo mundo ou no fim de um dia duro de trabalho na sua
galeria. O processo fez Mika lembrar-se de quando frequentara a
escola secundária. Costumava comprar pinturas nas lojas
solidárias porque não tinha dinheiro para comprar telas novas.
Removia a tinta ou pintava por cima delas. Criava algo novo. Algo
melhor.
— Nada mal, nada mal mesmo. — Charlie deixou-se cair no
sofá. Esta noite, elas iam comer pad thai e pho. Um último
momento de relaxamento antes de Penny chegar.
Entre garfadas de massa, Mika dispôs fotografias num álbum
para Penny. Charlie e Mika tinham espalhado fotografias na mesa
de centro para as escolher. Hana estivera estranhamente distante
na última hora, concentrando-se no seu vinho, optando por
simplesmente beber durante o jantar.
— Oh! Tens mesmo de pôr esta aqui. — Charlie entregou uma
fotografia a Mika.
A fotografia reluzente era dela na idade de Penny. Aos 16 anos
e em frente a um cavalete, com um esboço a carvão atrás dela.
Agora, Mika estava a esfregar as pontas dos dedos, a lembrar-se
da textura rugosa do carvão entre os dedos. Como se sentia bem
a criar. Aquela sensação explosiva como se fosse sair da nossa
pele. Mika pousou novamente a fotografia na mesa. Perante o
retrato, Hiromi aproximara os olhos do papel e fungara.
«Desenhaste isto? Não copiaste por cima?» Mika tinha passado
uma boa parte da sua infância a convencer a mãe de que sabia
desenhar, depois o seu primeiro ano de faculdade a convencer
Hiromi de que merecia lá estar.
— Esta não.
Charlie franziu o sobrolho.
— Está bem... — disse ela com cuidado. Para Charlie, era um
mistério: porque é que Mika já não pintava? Só Hana sabia a
verdade. — Tu eras tão boa.
Eras. A palavra-chave. Tudo isso, as pinturas, as viagens, era
agora uma vida fantasma. Algo que poderia ter sido, mas que
nunca esteve destinado a ser.
— Há alguma dos meus pais? — perguntou Mika.
Hana voltou a encher o copo.
— Aqui. — Charlie entregou outra fotografia. Esta com Mika, aos
6 anos, com Hiromi e Shige, a posarem junto a um televisor
novinho em folha. Shige tinha comprado o aparelho para ver Kristi
Yamaguchi patinar nos Jogos Olímpicos. Três anos depois,
assistiam aos ataques terroristas da seita Verdade Suprema no
Japão: Hiromi ficou acordada a noite inteira a telefonar a
familiares, a chorar com eles. Na fotografia, as mãos de Mika
estavam elegantemente dobradas à sua frente, e o seu cabelo
ostentava o clássico corte à tigela das crianças asiáticas. Atrás da
filha, Hiromi usava um par de calças de ganga do modelo mom
desbotadas e óculos dourados com lentes rosadas, e tinha a mão
sobre o ombro de Mika como um aviso: Não te afastes de mim.
Mika colocou a foto no álbum de recortes.
— Perfeito.
Penny era capaz de perguntar coisas sobre os avós. Mika
inventaria depois uma desculpa qualquer. Estão num cruzeiro,
talvez os conheças da próxima vez. Só que Mika sabia que,
apesar do que Penny pudesse acreditar no momento, não haveria
uma próxima vez. A sua filha vinha conhecer a mãe biológica,
obter respostas, e depois ficaria novamente presa na sua vida real
e deixaria Mika para trás. Mika sabia o suficiente sobre si mesma
para saber que até podia ser amada durante algum tempo, mas
não durante uma vida inteira.
Havia muitas fotografias de Hana e Mika quando frequentavam
o ensino secundário. Mika olhou fixamente para uma. Estavam as
duas no centro da cidade. O braço de Hana pendurado em volta
de Mika, manifestantes atrás delas, mãos que agarravam um
cartaz que dizia SÍ SE PUEDE. Tinham faltado às aulas para assistir
a uma manifestação de trabalhadores rurais. Mika não tinha a
certeza de contra o que é que eles estavam a protestar — era
mais uma coisa de Hana —, mas soube-lhe bem gritar. Entoar
cânticos. Armar um rebuliço. Hana tinha ajudado Mika a encontrar
a sua voz. Era barulhenta e poderosa. Enfiou a fotografia no
álbum.
A seguir, Mika pegou numa Polaroid que Hana tinha tirado dela.
Era o seu primeiro dia de faculdade, e ela estava a sorrir como se
fosse a manhã do dia de Natal. Hiromi pensou que Mika se ia
formar em Gestão e viver em casa, mas a arte e os dormitórios
foram sempre a sua intenção.
Hana e Mika tinham preenchido juntas a papelada dos seus
pedidos de apoio financeiro e alojamento e receberam bolsas de
estudo do governo federal. Na noite anterior à sua mudança para
os dormitórios, Mika ficara a olhar para o relógio, à espera de que
dessem as nove da noite, a hora a que Hiromi se costumava
recolher. Quando a mãe estava mais cansada. Quando estava
menos suscetível de querer discutir. Quando o pai desligou o
televisor, Mika controlou o seu nervosismo e anunciou que ia sair
de casa e que se ia licenciar em Arte. De punhos cerrados, ela
estava pronta para dar a vida pelo seu sonho.
«Ingrata», chamara-lhe Hiromi. Estava vestida com o seu
roupão de andar por casa. Shige nem olhava para Mika. «Esta
rapariga acha que vai ser pintora», cuspira Hiromi para Shige.
Depois, virara a sua fúria para Mika. «Nunca irás ser artista. Vais
desperdiçar a tua vida. Vai-te lá embora se quiseres.» Hiromi
agitou uma mão para Mika, a vibração da raiva da mãe tão forte
que poderia ter arrancado os dentes da boca de Mika. «Já que
odeias tanto estar aqui, então vai-te embora. Talvez eu finalmente
consiga dormir.» Mika tinha feito as malas e dormiu em casa de
Hana. Estava a chover. Mika enxugou as lágrimas e consolou-se
dizendo que não quereria ficar em casa de qualquer maneira, a
desperdiçar outro momento de vida com uma mulher que a queria
aniquilar. Ela tinha aspirações de grandeza. Uma miúda partida e
de partida.
No dormitório, foi a primeira vez que Mika se sentiu como uma
verdadeira artista: as paredes sujas, o radiador sibilante, o
guarda-roupa a transbordar de roupa preta. Estava sempre cinco
minutos adiantada para tudo. Deus, lembrava-se de estar sempre
a olhar para o relógio, incapaz de esperar que a sua vida real
começasse. Prestava muita atenção aos minutos e às horas. Na
verdade, sabia a hora exata em que Penny fora concebida. Tinha
virado a cabeça e visto o relógio na mesa de cabeceira: 00:01. Os
números digitais são da mesma cor vermelha que o ponto que um
francoatirador usa para marcar o alvo. Mas Mika já não prestava
muita atenção ao tempo. Agora, deixava-o passar alegremente.
Enfiou a fotografia no álbum, deixando uma impressão digital
sobre o seu rosto brilhante com um suspiro.
A última fotografia que incluíram foi de Mika, grávida de sete
meses com Penny na barriga. Estava a sorrir e aninhada numa
poltrona como um pequeno animal, o cabelo penteado a formar
dois coques, um de cada lado. Hana fez rodopiar o vinho no copo,
deixando algo transparecer na sua expressão facial.
— Com licença — disse ela, e depois desapareceu pela porta
das traseiras.
Obviamente, Charlie e Mika saíram logo a correr atrás dela.
Observaram Hana pela janela enquanto ela espezinhava o triste
ácer desnutrido, aquele que havia plantado com Nicole. Agachou-
se, agarrou o tronco com as duas mãos e puxou. Não se mexeu.
— Achas que devíamos arranjar-lhe uma pá? — sussurrou
Charlie.
— Não, acho que ela precisa de estar sozinha — disse Mika.
Hana soltou uma espécie de grito de guerra, esquisito e triste.
Colocou as mãos à volta do tronco novamente e puxou e puxou
atéque, por fim, as raízes mortas se partiram e cederam. Hana
caiu de costas com a força que fizera, aterrando em cima do rabo.
Deixou-se ficar sentada por alguns instantes, enchendo e
esvaziando o peito, com as bochechas ruborizadas e os olhos
selvagens. Então, olhou para cima, estabelecendo contacto visual
com Mika e Charlie através da janela.
Charlie ergueu o seu copo de vinho. Tal como Mika. Uniram-nos
num brinde silencioso.
— Aos novos começos — disse Charlie.
— Às grandes esperanças — acrescentou Mika.
N
CAPÍTULO 9
o domingo, Mika esperou no aeroporto de Portland na zona
da recolha de bagagens. Já tinha olhado para o telemóvel
cinco vezes, seguindo o voo de Penny e Thomas. Tinha
chegado cedo, aterrara há vinte minutos. Mas ainda não havia
sinal deles. E se Penny tivesse mudado de ideias? E se Thomas
tivesse convencido Penny a mudar de ideias? Mika perscrutou a
multidão. Um miúdo, com os pais a sorrir atrás dele, correu na
direção de um casal mais velho.
— Avô, avó! — chamou ele.
Um tipo magro deixou cair a mochila e abraçou um tipo com um
gorro. Uma rapariga de cabelo escuro, a andar aos saltinhos,
caminhava ao lado de um homem alto e bonito. Juntou-se tudo na
mente de Mika, uma revelação com o impacto de uma colisão
frontal.
Penny e Thomas. Tinham chegado. Finalmente.
O sorriso de Mika alargou-se. Uma sensação de calor espalhou-
se pelo seu corpo, o pico da serotonina. Penny viu Mika e correu
para ela. Mika pensou nos filmes que tinha visto em que as
crianças davam os primeiros passos e os pais estendiam os
braços para elas. Penny parou alguns passos à frente de Mika, e
olharam uma para a outra. Devia haver outra música a tocar,
pensou Mika. Piano. Uma canção de amor. De repente, o dia
assumiu uma qualidade nebulosa e suave como se estivesse num
sonho.
Penny falou primeiro.
— Posso abraçar-te? — perguntou timidamente.
— Sim, por favor.
Mika abriu os braços e Penny avançou para dentro deles. Ela
manteve o seu toque leve, apesar de querer apertar, agarrar com
força, nunca mais se soltar, viver lá. Mika estava cheia de tanto
desejo de amar que estava quase a rebentar.
Thomas caminhou até junto delas e foi como se uma nuvem
escura se tivesse deslocado para tapar o sol.
Penny afastou-se. Thomas deu um toque amigável à filha.
— É a primeira vez que te vejo sem palavras — disse ele, num
tom caloroso. Talvez ele não fosse assim tão mau, afinal.
Mika obrigou-se a estabelecer contacto visual com ele. Ela devia
ter-se preparado. Maçãs do rosto salientes. Olhos verde-claros.
Cabelo escuro solto a dar para o comprido, mas bem aparado,
com uma ténue insinuação de grisalho. Thomas era atraente.
Sexy. É que não mesmo. Népia. Nunca. Mika repreendeu-se.
Sentindo-se profundamente desconfortável, o seu rosto ficou
quente.
— Thom, muito prazer em conhecer-te. Mika.
Ela estendeu a mão.
— Thomas — corrigiu ele. Toda a ternura por Penny se esvaiu
da sua voz. Apertaram as mãos, o seu aperto firme e seguro; o de
Mika pegajoso e flácido, como um peixe morto.
— Estou tão aterrorizada e entusiasmada. Nem sei por onde
começar. — As unhas de Penny eram curtas e estavam pintadas
de cor-de-rosa vivo. Ela usava um anel no dedo médio direito e
torceu-o.
Mika virou a sua atenção para Penny, ainda a sentir o calor do
olhar de Thomas.
— Vamos buscar a tua bagagem e alguma comida. Parece-te
bem?
— Perfeito — disse Penny.
Mika sorriu. Penny também. Era como olhar para um espelho.
Como ver Mika aos 16 anos, ver-se jovem e esperançosa, ver-se
antes.
* * *
— Tens a certeza de que não queres ajuda?
Thomas remexeu-se impacientemente no parque de
estacionamento. Havia carros a apitar, e motores a serem ligados.
Um ligeiro cheiro a tubo de escape pairava no ar. Mas o tempo
estava bom, o sol brilhava. Era um daqueles dias que tornava
difícil estar de mau humor. Bem, difícil para algumas pessoas.
Thomas parecia ter aperfeiçoado a arte de estar calado e a
cismar, independentemente do tempo que fizesse. Assim, é
mesmo um verdadeiro compincha.
— Não, está tudo controlado. — Mika atrapalhou-se com as
chaves. Tinha pedido emprestado o carro de Charlie, um Volvo
usado, para levar Penny e Thomas. Era uma melhoria em relação
ao seu próprio Corolla enferrujado e com fita adesiva a manter no
lugar um retrovisor após uma infeliz colisão com uma árvore. Só
que a pilha do comando da chave parecia ter morrido
espontaneamente, e Mika teve de fazer as coisas à moda antiga,
ou seja, usando as próprias chaves. Tinha conseguido destrancar
as portas, mas não conseguiu encontrar a abertura do porta-
bagagens. — Está tudo bem.
— Sim. Já disseste isso seis vezes. — Thomas deslocou o peso
do corpo de um pé para o outro.
— É que eu nunca uso o porta-bagagens, só isso — disse Mika,
metade dentro do carro, curvada sobre o banco da frente e
consciente de que tinha o rabo no ar, e que tanto Penny como
Thomas a estavam a observar. — Espera, acho que está quase.
— Mas, na verdade, ela tinha era sacado do telemóvel e estava a
mandar mensagens a Charlie. Como é que se abre a merda do
porta-bagagens?
— Espera, deixa-me tentar. — A voz de Thomas soou mais
perto. Mika pousou o telemóvel com o ecrã virado para baixo e
endireitou-se. Estavam os dois quase peito a peito. A boca de
Thomas torceu-se na penumbra da garagem. — Posso?
— Oh, hum, claro, porque não? — disse Mika, visivelmente
envergonhada consigo mesma. Chegou-se para o lado de Penny,
mais perto do porta-bagagens.
Thomas dobrou o seu longo corpo e espreitou para dentro do
habitáculo.
— Aqui está — disse ele muito depressa. Pela janela de trás,
Mika viu-o puxar uma alavanca. O porta-bagagens abriu-se.
— Ele é um espetáculo com carros — disse Penny.
Thomas voltou, com um sorriso presunçoso estampado no rosto,
exsudando superioridade.
Abriu a bagageira.
— Pensava que tinhas dito que nunca usavas isto? — disse ele
com voz arrastada.
— O quê? — Mika chegou-se para o lado dele, tendo o cuidado
de manter quase meio metro de distância entre ambos. Mas que
bem. Charlie tinha-se esquecido de limpar o porta-bagagens, que
continha: um kit de emergência, alguma roupa da limpeza a seco
e uma caixa cheia de CD, marcada «Para doar».
Thomas pegou num CD do topo da pilha.
— Baladas lentas, música para fazer amor — leu na capa.
Inclinou a cabeça para ela, semicerrando infimamente os olhos.
Mika arrancou-lhe o CD das mãos e atirou-o de volta para a
pilha. Fechou a bagageira.
— Acho que vamos simplesmente usar o banco de trás para as
vossas malas.
Um pequeno sulco formou-se entre as sobrancelhas de Thomas.
— Colocar a bagagem no banco de trás? As rodas dos trolleys
estão sujas.
— A bagagem vai bem no banco de trás. Eu sento-me ao lado
dela. Caibo facilmente em espaços pequenos — disse Penny,
partilhando um sorriso com Mika. Eram da mesma altura, pouco
menos de um metro e sessenta. Mika não sabia a altura de
Caroline, mas Thomas tinha pelo menos um metro e oitenta.
Agora era a vez de Mika se sentir presunçosa. Eu dei-lhe isso, a
sua altura, o seu corpo delicado, pensou.
Thomas fez um barulho com a garganta.
— Ótimo.
— Ótimo — disse Penny quando Thomas começou a colocar as
malas no banco de trás. — Vamos almoçar. Só para avisar, tenho
estado num regime de treino diabólico, e estou a fazer uma
pausa. Hoje vou ser completamente irresponsável com a comida.
— Esfregou as mãos, um sorriso de estou-pronta-para-a-
brincadeira no rosto. — Prepara-te para ver algumas coisas.
* * *
Thomas estremeceu visivelmente quando Mika encostou junto ao
passeio, estacionando perto da Cartlandia, uma meca de roulottes
de comida. Ao ver isto, o seu índice de felicidade subiu. A comida
favorita dele deve ser provavelmente pão sem ser torrado.
— Acho que aqui deve haver algo que agrade a todos — disse
Mika quando saíram do veículo. O ar estava temperado com caril,
miso e carnes assadas. Mais de trinta roulottes de comida
estavam estacionadas em permanência naquele espaço. Tinham
sido montadas tendas brancas com mesas dobráveis por baixo.
Penny e Mika começaram a avançar à frente, e Thomas seguiu
atrás, comos braços cruzados — um sinal do seu protesto
passivo. Concordaram em dar uma volta de reconhecimento, para
verem o que poderia ser bom. Penny e Mika conversavam
alegremente entre a leitura das ementas. Acontece que Penny
detestava Jack Kerouac. Ela descarregara uma cópia de Pela
Estrada Fora e começara a ler no voo.
— Tenho muita pena — disse ela. Tinham parado em frente à
roulotte de comida Ball-Z, que servia pratos de diversos pontos do
mundo em forma de bola. — Quero dizer, eu percebo porque é
que provavelmente gostaste. Mas ele é súper sexista. A
representação das mulheres é terrível, exceto quando fala da
mãe, que parece respeitar.
— Mas não gostaste da energia nas palavras? Ele escreveu o
romance em três semanas. Não é espantoso? É tão visceral. Fez-
me arrepender do tempo em que fiquei parada. — Pela Estrada
Fora fizera Mika querer explorar o mundo. Ter uma veia errante e
perseguir os sonhos dela. — Foi o que originalmente me inspirou
a viajar e a estudar arte.
— É só que não é suficientemente inclusivo para mim. Toda a
Geração Beat era basicamente um bando de homens brancos
que afagavam os egos uns dos outros.
— Bem visto.
— Mas estou contente por ter funcionado contigo.
— Serviu o seu propósito.
Continuaram em frente, Thomas mais ou menos meio metro
atrás delas. Mika imaginou um desenho animado que uma vez
viu, onde uma nuvem de chuva seguia a personagem principal.
De volta ao sítio onde tinham começado, Penny batucou com os
dedos nos lábios.
— Achas que o ramen é bom?
— Oh, é do melhor. Estou sempre a comê-lo. Vou pedir o
mesmo. Porque é que não vou eu buscar, e vocês os dois
arranjam um lugar? Thomas, o que é que queres?
— Aceito o que recomendares. — Ela era capaz de recomendar
algo para Thomas, era. Não podia correr mal com o ramen. Mas
talvez ela pedisse um tamago ajitsuke duplo, um ovo malcozido
ensopado em mirin. Era delicioso, mas a gema malcozida era
capaz de ser desencorajadora para Thomas. Ele mexeu-se,
sacando a carteira do bolso de trás, e depois ofereceu a Mika um
par de notas de vinte dólares novinhas em folha. Mika levantou a
mão.
— É por minha conta. — Nunca na vida ela deixaria Thomas
pagar. O dinheiro ficou suspenso no ar entre eles. Mika pensou
que Thomas seria capaz de tentar forçar as notas a entrarem na
mão dela. — Insisto. — Mika aveludou ainda mais o seu tom e
sorriu animadamente. — Volto já.
E afastou-se.
Mika fez o pedido e entregou o cartão para ser passado pela
máquina. Não se podia dar ao luxo de andar a pagar refeições e
podia praticamente ouvir o dinheiro a ser raspado da sua conta
bancária. Devia ter aceitado o dinheiro do Thomas. Não seria a
primeira vez que dava um tiro no pé para salvar a face. O pedido
chegou depressa e Mika equilibrou tudo num tabuleiro. Thomas e
Penny tinham encontrado lugares debaixo da tenda, de costas
para Mika. Ela parou fora do campo de visão deles, mas, ainda
assim, era capaz de os ouvir.
— Não é divertido? — perguntou Penny a Thomas, com a voz
cheia de trepidação.
Mika reconheceu o tom, aquele que uma criança usa com os
pais quando quer desesperadamente a aprovação deles. Mika já
o tinha usado com Hiromi muitas vezes. «Mamã, desenhei-te uma
lagarta, gostas dela?» Mika, aos 7 anos de idade. «Hum, parece
mais uma minhoca, acho eu», respondera Hiromi.
— Estou a gostar de passar tempo contigo — disse ele
placidamente.
— Mas não das roulottes?
— O que queres que eu diga? Estou convencido de que elas
estão sobre rodas para que possam fazer uma fuga rápida
quando os inspetores da segurança alimentar chegarem. Na
verdade, aposto que consigo ver a classificação de segurança
alimentar deles online.
Penny soltou uma risadinha.
— Por favor, não faças isso. — Ela esperou um segundo ou
dois. — Ainda estás zangado comigo?
Thomas pousou o telemóvel e apoiou os dedos compridos na
mesa. Não tinha aliança no dedo esquerdo, reparou Mika.
— Não, não estou zangado. Também não estava realmente
zangado antes. Só gostava que não me tivesses mentido.
— Mas os teus sentimentos estão, tipo, feridos?
— Não te compete a ti preocupares-te com os meus
sentimentos. Compete-me a mim preocupar-me com os teus. —
Bem, aquilo até foi simpático. — O que é que achas dela?
Por ela, Thomas referia-se a Mika.
— Gosto tanto dela. E é giro. Gostamos das mesmas coisas. —
Com isto, Mika animou-se com a promessa de um desejo
subitamente realizado. Ela queria ser amiga de Penny. Era o que
tinha desejado com a sua própria mãe. Carinho. Camaradagem.
Um lugar onde descansar, onde podia sentir que voltava a casa.
— Então, ela é como uma rapariga de 16 anos? — perguntou
Thomas secamente. Mika mexeu-se, o tabuleiro a ficar pesado,
mas não conseguia interrompê-los. Sentia-se como uma intrusa,
do lado de fora a olhar para dentro.
— Pai…
Thomas pigarreou.
— Desculpa. Continua.
— Não sei. Falamos de livros, de rapazes e dos nossos sonhos.
— Eu quero falar contigo sobre essas coisas.
— É que simplesmente não é a mesma coisa. — Penny mexeu-
se. — Olha, uma mãe morreu e a outra deu-me para adoção. Eu
tenho problemas sérios. Preciso de alguma coisa… de alguém.
— Tens-me a mim — disse Thomas.
Penny sacudiu uma mão.
— Tipicamente masculino, acharem que um pénis resolve tudo.
Thomas tossiu no punho e bateu no peito.
— Penny, por favor.
— Tenta apenas descontrair-te um pouco. Sê fixe.
— Sinto que até tenho sido bastante simpático. Mas não achas
estranho que ela não soubesse abrir o porta-bagagens do carro?
— Prontos para comer? — interveio Mika. Pôs o tabuleiro em
cima da mesa e Thomas esboçou um sorriso fraco.
Mika pousou tigelas de ramen fumegante em frente a cada um
deles. Penny hesitou, os olhos a saltarem entre o garfo e os hashi
de madeira. Finalmente, escolheu o garfo, furiosamente corada.
Mika mordeu o lábio entre os dentes e pousou os hashi que tinha
agarrado, optando pelo garfo como Penny fizera.
— Isto deixa-me sempre com farpas.
— Sim?
Os olhos de Penny olharam cautelosamente para os de Mika,
depois de volta para a tigela. Ela tinha umas quantas sardas na
ponte do nariz que se espalhava pelas maçãs do rosto. O pai de
Penny tinha sardas nos braços.
— Ah, sim, estes hashi baratos são do pior que há.
— Hashi? — perguntou Penny.
— Pauzinhos em japonês.
Penny parecia excessivamente satisfeita com aquilo.
— Hashi.
Thomas fletiu as mãos, de veias salientes.
— Sabem que mais? Acho que mudei de ideias. Vou também
buscar o caril. Que se lixe, certo? Ele levantou-se. — Pen, que tal
uma bolacha de aveia com chocolate, a tua preferida?
Penny acenou com a cabeça.
— Claro, parece-me bem.
— Volto num instante. — Thomas apertou o ombro de Penny,
depois inclinou-se e deu-lhe um beijo no cabelo escuro e
brilhante.
Ela enxotou-o.
— Para com isso.
— Queres alguma coisa? — perguntou Thomas a Mika.
Tantas, tantas, pensou Mika. Mas abanou a cabeça e disse:
— Não, eu estou bem. Nada para mim, obrigada.
 
ADOÇÃO NA AMÉRICA
Gabinete Nacional
56544 W 57th Ave. Suite 111
Topeka, KS 66546
(800) 555-7794
 
Querida Mika,
 
Já há muito tempo que não conversamos. Espero que esteja
tudo bem. Mais uma vez, encontrarás anexos os itens
definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika
Suzuki (a mãe biológica) e Thomas e Caroline Calvin (os pais
adotivos) relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O
conteúdo inclui:
 
• Uma carta anual dos pais adotivos a descrever o
desenvolvimento e o progresso da adotada
• Fotografias e/ou outros itens memoráveis
 
Como sempre, estou aqui se tiveres perguntas.
 
Atenciosamente,
 
Monica Pearson
Coordenadora de Adoções
 
Querida Mika,
 
Dez! A Penny tem 10 anos, e tenho a certeza de que a nossa
pequena aluna do quarto ano tem um propósito na vida, que é
criar o caos. Há dois meses, decidiu andar de costas para todo
o lado. E agora, mais recentemente, decidiu começar a
cozinhar. Inspirada, tenho a certeza, por ver The Great British
Baking Show.
 
Ela manda o Thomas ao supermercado com listas de
compras, com sonhos de fazer todo o tipo de coisas — tortas de
chocolate, bolachas de manteiga com noz-pecã e uma coisa
chamadatarte de caramelo com maçã na frigideira? Basta falar
numa coisa, ela quer logo experimentar. Todas as tardes, assim
que chega da escola, vai logo preaquecer o forno e pôs-se a
preparar tigelas para fazer misturas na bancada. Depois, deixa
o lava-loiça cheio até acima com pratos e o chão coberto de
farinha. No final, temos de fazer críticas ao que ela faz, como se
estivéssemos no programa. «É um bom bolo, um pouco mole ao
centro, mas a apresentação é excelente, e o sabor é bom.»
Tenho de admitir, a Penny é uma péssima pasteleira. Mas nós
comemos o que quer que ela faça e sorrimos tanto que as
nossas bochechas ficam doridas. Mas o que posso dizer? Sou
louca pela Penny. Quero sempre que ela siga os seus sonhos.
Vai incluída uma fotografia da sua mais recente criação. A ideia
seria fazer um bolo porco-espinho?
 
Um abraço,
Caroline
N
CAPÍTULO 10
a manhã seguinte, Mika esperou por Penny e Thomas na
entrada do hotel. Ela ficou postada ao lado de um sofá de
veludo que provavelmente custava mais do que a hipoteca da
casa de Hana e tomou consciência das suas unhas lascadas e do
seu cabelo que não era cortado sabe-se lá há quanto tempo. Os
elevadores tilintaram, as portas abriram-se. Penny e Thomas
emergiram.
— Olá — disse Penny animadamente, saltitando na direção
dela.
— Bom dia. — Thomas aproximou-se. Ele e Penny envergavam
ambos camisolas, calças de ganga e ténis.
— Estão prontos? — Mika abotoou o casaco e dirigiu-se para a
porta. — Pensei que podíamos ir a pé. Parece que só vai chover
mais para o final do dia — disse ela, mas principalmente porque
não podia pagar a gasolina e não queria pagar duas vezes o
estacionamento. — O museu fica apenas a alguns quarteirões
daqui. — Conforme passou pela porta giratória, o seu telemóvel
tocou. Mika olhou para o ecrã. Hiromi. Recusou a chamada,
mandou a mãe para o voice mail e enfiou o telemóvel de volta no
bolso.
A alguns passos do hotel, Penny disse:
— Isto aqui é tão bonito. — Um vento irritante soprou vindo do
rio Willamette, e os três arquearam-se, deixando-o passar pelas
suas costas. — Andei por aí às voltas na noite passada, e há
muitas luzinhas enroladas nas árvores da praça.
Thomas sulcou a testa.
— Saíste do hotel?
— Só para ir ao centro comercial do outro lado da rua — disse
Penny de forma descontraída.
— Penny... — começou Thomas.
— Comprei estas meias. — Penny parou em frente a um edifício
art déco com um conjunto de portões de ferro de aspeto mítico.
Puxou a perna das calças para cima. Meias azuis com caras de
gatos enfeitavam-lhe os tornozelos delicados. — São giras, não
são?
— Muito giras — disse Mika com um sorriso.
Thomas fez má cara para Mika, mas dirigiu-se a Penny.
— Da próxima vez que decidires sair do hotel, agradecia que me
dissesses.
Penny não se deixou abalar. Puxou a perna das calças para
baixo e disse:
— Sim, senhor, meu comandante.
E fez continência a Thomas, o que o fez levantar os olhos para o
céu de uma forma mais ou menos divina. Retomaram o caminho.
Os tijolos vermelhos do Museu de Arte de Portland já estavam à
vista.
Alguns quarteirões à frente do parque ficava uma faculdade, a
alma mater de Mika. Ela conseguia ver o edifício das artes. Não
era grande coisa à primeira vista. Um cubo cinzento. Mas era um
lugar onde aconteciam coisas bonitas. E Mika quisera tanto fazer
parte dele, que chegara a sentir dores físicas. O tempo estava
semelhante — céu cinzento estático, ar húmido — no dia em que
conheceu Marcus Guerrero, um professor de Belas-Artes. Ela
tinha batido à porta dele, com um impresso amarelo na mão. Ele
abriu a porta, com manchas de tinta na t-shirt azul-clara, uma
bandana vermelha a prender-lhe o cabelo escuro, um miasma de
fumo e café agarrado a ele.
«O funcionário explicou-me que preciso de permissão para pedir
equivalência a Pintura I e II.»
Mika estendeu-lhe o impresso e manteve-se de pé, equilibrando
o peso ora num pé, ora noutro. Era mais corajosa naquela época.
Obstinada. Disposta a fazer qualquer coisa. O que quer que fosse
preciso.
Ele olhou para ela durante tanto tempo e com tanta intensidade
que ela começou a virar costas. A mão do professor largou a
maçaneta, e ele regressou à secretária, sentando-se numa velha
cadeira de escritório de couro verde e braços de madeira —
provavelmente estava por lá desde o início da faculdade, nos
anos 40. Ele inclinou-se para trás, muito para trás.
«Muito bem», disse. «Mostre-me o que vale.»
Mika engoliu em seco.
«O quê?»
«O seu portefólio», disse ele, com um ligeiríssimo sotaque a
esculpir-lhe o discurso. Marcus era uma lenda entre os estudantes
de arte. Circulavam rumores sobre ele. Era um veterano da
Guerra do Golfo e tinha uma medalha Purple Heart na gaveta da
secretária. O seu pai fora um famoso construtor naval, e ele tinha
crescido no Mediterrâneo em iates. Mas, na verdade, crescera
pobre, filho de fruticultores migrantes. Cresceu na Florida e
passou a juventude a apanhar bananas.
«Não tenho nenhum.»
«Então pinte qualquer coisa.» Indicou o canto do escritório. Um
cavalete havia sido encafuado entre duas prateleiras, com
paletas, tubos de tinta, frascos de pincéis, terebintina.
«Agora, neste momento?» Mika lembrou-se de ter fletido os
dedos, sentindo-se indisposta.
Ele espreguiçou-se, entrelaçou os dedos e apoiou-os na nuca.
«Agora. Neste momento.»
— Uau! — A voz de Penny trouxe Mika de volta ao presente. —
Estagiaste aqui? — perguntou ela, a olhar para o edifício,
boquiaberta.
Mika fez um barulho indiferente na garganta que passou por
afirmação. Depois, acrescentou:
— Logo após a faculdade. Não por muito tempo. E foi há anos.
Tenho a certeza de que toda a gente com quem trabalhei seguiu
em frente.
— Então, tiveste-me no primeiro ano da faculdade — disse
Penny, a compilar a falsa linha temporal de Mika. — Depois
licenciaste-te e continuaste a trabalhar no museu. Isso é bastante
impressionante. Há uma rapariga na minha turma, a Taylor Hines,
que teve mononucleose no primeiro ano e teve de o repetir. Mas
tu tiveste um bebé e conseguiste estudar e ainda fazer uma
carreira.
Mika corou com o elogio. O que pensariam Thomas e Penny se
alguma vez soubessem a verdade? Mika tinha demorado oito
anos a licenciar-se. Chumbara no primeiro ano e perdera a bolsa,
depois teve de rastejar de volta para os pais a pedir ajuda. «Boas
notícias», dissera ela pouco depois de tudo ter acontecido,
«mudei de curso: em vez de Arte, vou licenciar-me em Gestão.
Podem dar-me algum dinheiro?» A sociedade aplaudia quem
conseguia fazer o impossível. Quem se esforçasse ao máximo.
Ser bem-sucedido contra todas as adversidades. É isso que
significa ser-se americano. Mas Mika não conseguia esforçar-se
ao máximo. Além disso, havia uma expetativa de que a vida de
Mika era melhor sem Penny. Que o sacrifício tinha valido a pena.
Na bilheteira, Mika e Thomas pegaram ambos nas carteiras.
— Pagaste o almoço ontem, e vais convidar-nos para jantar hoje
à noite. Eu insisto. — Ele fez uma pausa, à espera, a olhar
fixamente para Mika como que para forçar a sua concordância.
Isto não resultara com Penny, constatou Mika, mas resultou
bastante bem com ela.
— Hum, claro, pode ser. Obrigada. — Ela guardou a carteira, um
pouco aliviada. Ainda não tinha arranjado emprego.
Thomas comprou os bilhetes, e foi-lhes dado um mapa das
galerias, embora Mika não precisasse dele. No interior, inalou,
encontrando conforto no cheiro, que não conseguia localizar, mas
que era endémico a edifícios com tamanha dimensão. Ela visitava
o museu regularmente. Era tão sossegado. Não tinha onde se
esconder dos seus pensamentos, mas sentia-se segura no seu
interior. Era um local onde Mika podia lamentar ou sonhar, e
depois deixar tudo isso para trás. Ter Penny ao lado dela agora
neste espaço sagrado fazia Mika sentir-se completa.
Subiram os degraus de mármore até às galerias europeias,
contornando as galerias asiáticas, que, como sempre, tinham sido
relegadas para segundo plano — os museus geralmente
favoreciam homens brancos mortos.
Mika guiou Thomas e Penny numa minivisita, passando por um
quadro deÍcaro. Ela costumava contemplar frequentemente o
mortal que voou até tão perto do Sol que as suas asas de cera
derreteram. Se Ícaro tivesse conhecido o seu destino, perguntava-
se Mika, teria ele, mesmo assim, voado tão alto? Será que a
subida teria compensado a queda?
Enquanto faziam uma pausa diante de um Monet, Mika
descreveu o Impressionismo.
— Estás a ver as pinceladas pequenas, finas e ligeiramente
visíveis? Isso é uma marca do Impressionismo. Monet pintava ao
ar livre: plein air, como diziam, um método para captar a luz e a
essência da paisagem num único momento. — O seu currículo
artístico na faculdade tinha incluído disciplinas de História da Arte.
Ter talento não era suficiente. Para se ser artista, também tinha de
se ser uma espécie de conservador. Era preciso estudar os
grandes, aprender as suas técnicas. Era muito parecido com jazz:
a mestria antes da improvisação. E, como Hiromi no seu jardim
depois da última geada de inverno, Mika tinha escavado, só que
desistiu abruptamente a meio do Impressionismo, antes mesmo
de saber que estava grávida de Penny.
— Está gretado. — Penny franziu o nariz.
Mika sorriu.
— Craquelure. É do verniz a secar. Acontece com a idade.
Penny vagueou e parou em frente a um Degas. Com a cabeça
inclinada para cima, olhou para o pastel sobre papel, fungou,
esfregou o nariz. Thomas ainda estava hipnotizado pelo Monet.
Mika postou-se ao lado de Penny.
— Estás bem? — perguntou calmamente.
Penny manteve a cabeça baixa.
— Sim. Estou bem. É que a minha mãe... ela costumava dar-me
muitas alcunhas parvas. Dizia «Olá, fada do açúcar» ou «peru
bebé» ou «pequena bailarina». Isto fez-me pensar nela. — O
quadro de Degas ilustrava uma única bailarina, cujos dedos ágeis
ajustavam a saia de tule na cintura.
— Isso é querido. — Degas foi onde Mika tinha parado nos seus
estudos; «pequena bailarina» era o que Caroline tinha chamado a
Penny. Mika questionava-se sobre o significado dessa alcunha.
Um final e um começo. Se estava tudo destinado a ser. Ou se ela
estava apenas à procura de um sinal… agarrando-se ao ar, como
Ícaro durante a queda.
O sorriso de Penny era ténue.
— É estúpido estar para aqui a chorar por causa disso.
— Acho que não — sussurrou Mika. — Podes falar sobre ela. —
Sobre a Caroline, quis dizer. — Não tenhas medo de falar. Podes
falar comigo sobre qualquer coisa. — Eu vou sempre ouvir. Eu
vou estar sempre aqui. Vou ter sempre fé em ti.
— Obrigada. — Penny afastou-se e encontrou um banco onde
se sentar ao virar da esquina. Mika juntou-se a ela. Para quem
passava, pareciam mãe e filha, pensou Mika. A culpa apunhalou-a
nas entranhas. Caroline e Thomas tinham corrido a maratona com
Penny, enquanto Mika permanecera na bancada. — Ela era
realmente incrível. Ela gostava do Kahlil Gibran e do E. E.
Cummings. A sua aliança de casamento tem lá escrito: «Carrego
o teu coração no meu coração.» — Penny tirou o anel que usava
para que Mika conseguisse ver o seu interior, o tipo de letra
manuscrita. Voltou a colocar a peça no dedo. — Mas era difícil
não ter pais que se parecessem comigo, e sinto que não posso
dizer isso perto do meu pai, porque ele ainda está tão triste com
tudo isto.
O estômago de Mika ficou de rastos. Thomas e Penny ainda
estavam de luto.
— Foi difícil teres sido adotada por pais brancos? — perguntou
Mika, colocando enfoque na segunda parte e não na primeira.
Penny reclinou-se e levantou as pernas para cima, sentando-se,
então, de pernas cruzadas no banco.
— Não sei. Os meus pais tentaram fazer coisas japonesas
comigo. Matricularam-me em algumas aulas, e fomos a festivais
em Dayton. Mas havia sempre uma desconexão. Acho que eles
se sentiam desconfortáveis quando as pessoas faziam perguntas
sobre nós. Tipo: «Onde é que a foram buscar?» — Penny fez uma
pausa, mexeu numa das unhas. — As crianças costumavam
gozar com os meus olhos na escola primária. Cantavam a Canção
dos Gatos Siameses, de A Dama e o Vagabundo, e esticavam os
olhos para ficarem em bico.
A dor dentro de Mika piorou. Era uma espécie de agonia bela,
ter uma filha. Sentir as emoções dela, bem como as suas
próprias.
— Que bestas.
Penny esboçou um meio sorriso.
— Por vezes, Dayton parece-me uma cidade muito pequena e
eu sinto-me tão grande em relação a ela. Isso faz sentido?
— Faz — respondeu Mika imediatamente. Viu-se decalcada
nesta jovem, na sua filha. Mika também se sentira assim na
escola. A rebentar pelas costuras, deserta por ir para a faculdade
e morar no campus, longe do perfecionismo destrutivo de Hiromi,
sair de baixo do olhar da mãe. Agora, queria avisar Penny.
Avança devagar. Não dês passos tão grandes. Não é uma
corrida. Não tens de ter tudo planeado neste momento.
— Além disso — disse Penny —, para onde quer que vá em
Dayton, há uma lembrança dela, deles, de nós como família. Mas
já não somos uma família, ou somos, mas é tão diferente, e estou
confusa sobre o que é que tudo isso significa. Não sei. — Penny
raspou os pés contra o chão brilhante. Um bando de mulheres
com chapéus roxos passou, a tagarelar sobre um Picasso na
galeria ao lado.
— Ouvi dizer que ele era um tremendo mulherengo — disse
uma. Mika viu-as partir e reparou em Thomas a contornar a
esquina.
— Olá. Vocês desapareceram — disse ele, parando em frente a
elas. — Estás bem, miúda? — O sobrolho do pai ficou carregado.
— Está tudo bem. — O rosto de Penny, o sorriso dela, era
brilhante e ofuscante. Convincente. — Melhor do que bem —
acrescentou. — Estou ótima. — Ela mostrou o seu sorriso a Mika.
E o coração de Mika bateu com força contra o peito.
Penny olhou-a com tanta ternura, tanta gratidão, que algo se
estilhaçou dentro de Mika e se fundiu. Algo que talvez estivesse
partido há muito tempo. Se ao menos ela pudesse dizer aos
cientistas do mundo: «Parem de estudar! Eu encontrei a chave
para a fusão.» Estava na ligação entre um progenitor e a sua cria.
M
CAPÍTULO 11
ika atarefou-se pela cozinha seis horas depois, a abrir o forno
e a verificar o macarrão com queijo feito em casa. Leif
espreitou por cima do ombro dela.
— Credo, quanto queijo é que isso leva? — O molho branco de
bechamel começava a borbulhar.
— Mais de setecentos e cinquenta gramas de cheddar e
Gruyère. — Outra despesa. Pelos vistos, falsificar uma vida era
bastante caro. Mika fechou o forno e contornou Leif até ao
frigorífico para ir buscar um recipiente para a salada. — Usei a
receita da Martha Stewart.
Leif esfregou a curva do seu bíceps.
— Lembras-te de quando a Martha Stewart e o Snoop Dogg
eram amigos? — Mika escolheu não responder. Despejou a
salada numa travessa de prata. Leif pegou num dos limões
decorativos da uma fruteira. — Falsos — murmurou ele. Voltou a
pousá-lo e virou-se para Mika. — Achas que eu devia ter-me
vestido melhor? — Trazia uma camisa com colarinho e um par de
calças de ganga.
Mika pousou a pinça para a salada. Como se já não estivesse
nervosa o suficiente, Leif estava a piorar as coisas.
— Leif.
— Uau! Já não ouvia esse tom há muito tempo. Traz-me
algumas recordações. — Ele tremeu, a fingir que se arrepiava de
medo.
Mika semicerrou os olhos para ele.
— Estás pedrado neste momento?
Leif mostrou-se ofendido.
— Claro que não. Agora que sou um profissional, não posso
ficar pedrado com o meu próprio produto.
Mika gemeu.
— Essa é a tua última referência a drogas esta noite.
— Tu é que puxaste o assunto — provocou ele. Baixou o corpo,
apoiando as mãos nos joelhos para que ficassem cara a cara. —
Vai correr tudo bem. Prometo. Memorizei todas as notas que me
mandaste. E tu estás ótima. Muito Julia Child prestes a fazer um
frango assado.
A tensão diminuiu a partir dos ombros de Mika.
— Obrigada — disse ela, olhando depois para o relógio no
forno. — Eles chegam dentro de vinte minutos.
— Então, como é que eles são? — Leif endireitou-se, pegou
num limão falso da tigela e rebolou-o nas suas palmas gigantes.
— Como é que ela é em pessoa?
Mika não precisava de pensar nisso.
— Incrível. É espantosa. — Soltou um sorriso rasgado,
deslumbrada pela filha. — Estou entusiasmada por tu ires
conhecê-la, naverdade. — Penny era alguém que Mika queria
partilhar com as outras pessoas. Talvez fosse assim que Hiromi
se sentia quando Mika dançava, aquele desejo louco de chamar
as pessoas, de se gabar da pessoa que criou. Tudo o que eles
fazem é por MINHA causa.
— E o pai?
Mika desanimou perante a menção a Thomas.
— Ele é um osso duro de roer. Não sei dizer se não gosta de
mim ou se simplesmente não gosta do mundo. Mas é notório que
adora a Penny. — Ela pensou nele nas roulottes de comida, com
as mãos a transbordar de bolachas de chocolate, na forma
carinhosa como observava a filha, como se não suportasse a
ideia de ela alguma vez sofrer.
A campainha da porta tocou.
— Merda, chegaram mais cedo. — Mika olhou para Leif como
se ele soubesse o que fazer. — Ainda tenho de acabar a salada.
— Vai lá abrir a porta. Eu acabo. — Ele enxotou-a e Mika correu
para a porta, obrigando-se a abrandar alguns passos antes da
soleira. Enfiou o cabelo atrás da orelha e estampou no rosto um
sorriso luminoso antes de abrir a porta.
Thomas e Penny estavam no degrau da frente, o Uber que os
transportara a afastar-se atrás deles. Thomas usava um fato azul-
escuro, sem gravata, e Penny vestia uma saia e uma blusa.
— Bolas — disse Penny. — Eu sabia que não nos devíamos ter
aperaltado. Eu bem te avisei — disse ela a apontar para o pai.
Thomas exibiu um sorriso, a imagem da maldade elegante
patente no seu fato. Observou as calças de ganga e a t-shirt de
Mika.
— É melhor estar demasiado bem vestido do que mal vestido.
— Vocês estão com ótimo aspeto. — Mika forçou um sorriso,
abrindo ainda mais a porta. Thomas hesitou. — Entrem. O Leif
está na cozinha, e o jantar está quase pronto.
— Chegámos cedo? — perguntou Penny, entrando em casa. —
Eu disse ao pai que devíamos ter dado uma volta pelo quarteirão
ou assim.
— Chegaram mesmo na hora certa — disse Mika.
Por fim, Thomas entrou. Mãos nos bolsos, a olhar em redor.
Parou mesmo debaixo do sítio onde Tuan tinha reparado a racha
no teto. Mika teve uma visão repentina do gesso a lascar-se e a
cair em cima dele.
— Leif, apresento-te a Penny… e o Thomas — disse ela,
arrebanhando os dois em direção à cozinha.
Leif pousou a faca com que tinha cortado legumes, limpou as
mãos e estendeu uma a Thomas. Cumprimentou primeiro
Thomas, depois Penny.
Penny, com a energia e a exuberância de um esquilo, agitou a
palma da mão de Leif para cima e para baixo.
— Isto é fantástico. Já ouvi falar tanto de ti.
— Igualmente. — Leif sorriu e virou-se para Mika,
desembaraçando-se de Penny. — Porque é que vocês os três não
vão lá para fora? Pensámos que, como a noite está agradável,
podíamos comer no pátio. Eu levo a comida para lá.
— Levas? — perguntou Mika, atordoada. A única comida que
Leif alguma vez levara a Mika vinha em sacos de papel.
— Claro que sim. Vão lá. Os homens pertencem tanto à cozinha
como as mulheres.
Mika sorriu por causa de Penny e Thomas, e depois virou-se
para Leif.
— Não exageres — disse enquanto fingia tossir para a mão. Ela
conduziu Thomas e Penny pela sala de estar.
Penny fez uma pausa para olhar para as fotos por cima da
lareira.
— Todas as tuas viagens — disse ela calorosamente. Mika
também parou, ombro a ombro com Penny. Ali estava Mika, ou
pelo menos um avatar, a sorrir nas ruínas de Pompeia, na Casa
dos Mistérios. Atrás dela, um fresco com uma distinta tinta
vermelha: cinábrio. Na fotografia seguinte, ela estava no Louvre, a
sorrir em frente à Mona Lisa.
Thomas aproximou o nariz, com os olhos semicerrados.
Conseguiria ele ver o que Mika via? Que a luz não estava bem?
Que as sombras e os destaques violavam as leis da física?
— Vamos lá para fora — disse Mika.
Incitou-os a saírem, de rosto corado.
No jardim das traseiras, as luzinhas decorativas que Mika tinha
pendurado reluziam e refletiam-se nos olhos escuros de Penny.
— É exatamente como na tua foto do Instagram!
Thomas esgravatou com o pé o buraco no chão de onde Hana
tinha arrancado a árvore.
— Têm esquilos aqui?
— O quê? — Mika franziu o sobrolho, agora que o rosto
começara a arrefecer. — Não. Tenho andado a fazer paisagismo.
Sabem como é com este tipo de casas, o trabalho nunca acaba.
— Devias pôr um pouco de terra nisto. Alguém pode tropeçar e
torcer um tornozelo — disse Thomas.
— Isto não é tão giro, pai? — perguntou Penny. — Ainda está a
nevar, lá na nossa terra. Eu não sabia que Portland tinha
primaveras tão quentes.
Mika engoliu em seco.
— É raro. Mas a previsão para os próximos dias é boa. Parece
que trouxeste o sol contigo. — Ela olhou para Penny com ternura
e tentou controlar os seus níveis de felicidade. Quão certo tudo
aquilo lhe parecia, ter Penny ali.
Tão familiar.
Instalaram-se na mesa de piquenique. Leif apareceu com o
macarrão com queijo e a salada. Serviram os pratos. Mika
acendeu as velas nas jarras e comeram em silêncio à luz suave
das velas durante algum tempo.
— Então, como é que vocês se conheceram? — perguntou
Thomas, limpando a boca.
— Como é que nos conhecemos?
Os olhos de Mika saltaram para Leif, a garfada de macarrão que
ela tinha acabado de levar à boca alojada na garganta. Merda.
Nunca tinham discutido a história da origem deles enquanto casal,
a origem falsa. A verdadeira era que Hana tinha ido comprar
drogas a Leif, tinham ficado todos pedrados e Mika tinha-se
metido com ele. O sexo casual passou a ser sexo habitual, e
depois Mika passou a coabitar com Leif. Ocorreu a Mika que ela
tivera muito pouco controlo da sua vida nos últimos anos.
Tropeçava e caía num emprego. Numa relação com Leif. No dia
seguinte e depois no outro a seguir.
Leif pousou o garfo.
— Sabem, a Mika conta melhor. Conta lá.
Ele sorriu para ela, um desafio nos seus olhos castanhos.
— Bem. — Mika agarrou-se à borda da mesa. O estômago dela
revirou-se e uma corrente de sangue subiu-lhe pelo pescoço. —
Tinha saído para jantar com um casal de amigos artistas de… —
Ela fez uma pausa, à procura na memória de um lugar, um
destino, qualquer coisa.
— Da Grécia — interveio Leif com à-vontade. — Eram da
Grécia, não eram?
— É isso mesmo. E o Leif também lá estava? Mas não me
lembro porquê?
Ela engelhou o nariz e olhou para Leif.
Leif bebeu o vinho antes de responder.
— Em trabalho.
— O que é que fazes? — perguntou Thomas a Leif. — A Penny
disse algo sobre agricultura, mas não sabia nada de concreto.
— Estou no ramo da agricultura. A Mika acha que é bastante
aborrecido, por isso tenho a certeza de que foi por isso que não
entrou em pormenores. Trabalho principalmente no campo da
bioquímica. Faço consultoria freelance para universidades, um
contrato governamental aqui e ali, esse tipo de coisas. — Mika
expirou. Aquilo soava bem. Credível. — Então, e tu? — perguntou
Leif a Thomas.
Thomas pousou o garfo e a faca.
— Sou advogado especializado em direitos de autor. Tenho o
meu próprio escritório em Dayton. Muito longe do bombeiro que
queria ser quando tinha 10 anos — brincou ele.
— Nem todos podem seguir a sua paixão. Mas acho que é
importante correr riscos. Por exemplo, participar na Corrida de
Bicicleta Nudista de Portland…
— Penny — disse Mika um pouco alto demais. — Quase me
esquecia de que tenho um presente para ti.
— Tens? — Penny sorriu de orelha a orelha.
— Volto já.
Mika pegou no álbum de recortes que estava dentro de casa e
voltou, colocando-o à frente dela.
— Leif, importas-te de ir buscar a sobremesa?
Mika olhou para Leif enquanto Penny tocava no canto do álbum.
— Claro que não — anunciou Leif. Ele batucou na mesa uma
vez e levantou-se. Mika agradeceu-lhe silenciosamente.
— Não é nada de especial — disse Mika enquanto Penny
passava com uma mão sobre a capa de linho. — Apenas algumas
fotos minhas de quando tinha a tua idade…
Thomas ficou calado por um momento, depois disse:
— Isto é simpático da tua parte.
Penny olhou para cima, com os olhos a brilhar.
— Sim.
Ela folheou as páginas.
Quando Penny parou numa fotografia da mãe aos 16 anos, Mika
falou.
— Meu Deus, eu era tão estranha aos 16 anos. Não era tão
confiante como tu. Tens de agradecer aos teus pais por isso, acho
eu. —Os olhos de Thomas deslocaram-se para Mika, e o canto
da boca dele curvou-se num sorriso genuíno de agradecimento.
Mika aclarou a garganta. — Tinha convencido os meus pais a
deixarem-me fazer uma permanente. Só que não tínhamos
dinheiro para fazer a cabeça toda, por isso só fizeram a franja.
Penny riu-se, depois ficou séria.
— Tens alguma fotografia dos teus pais? — perguntou
calmamente, como se tivesse medo, mas não pudesse dar-se ao
luxo de não a fazer.
— Sim — disse Mika, feliz por ter incluído uma. — Na parte de
trás, acho eu.
— Eles moram perto? — perguntou Thomas, assustando Mika
com a sua voz profunda.
— Moram, mas… estão num cruzeiro neste momento — disse
ela a Penny.
Penny acenou com a cabeça, mas continuou a virar as páginas
uma a uma, absorvendo tudo. Parou numa página, e Mika
levantou-se para ver o que lhe tinha chamado a atenção. A
fotografia de Mika grávida.
— Estou lá dentro — disse Penny, traçando o contorno da
barriga inchada de Mika com um dedo. — Como é que foi?
Estares grávida de mim?
Os olhos de Thomas deslocaram-se em direção a Mika, e o
coração dela flutuou-lhe no peito.
— Como foi? — repetiu ela, a batucar nos lábios, enquanto
fingia conjurar a memória. Embora não precisasse de o fazer.
Estava sempre viva dentro de si, emaranhada à volta dos seus
ossos, a ameaçar arrastá-la para baixo. Todos aqueles meses de
crescimento de um bebé que ela não tinha a certeza se ia odiar
ou amar. Nunca deveria ter tido dúvidas. Quando empurrou Penny
para fora, sentira amor à primeira vista, fluindo tão naturalmente
como o sangue no cordão entre elas. Mas como poderia dizer isso
a Penny? E à frente de Thomas? — Bem, tinha quase a certeza
de que estavas a tentar matar-me. — Injetou humor na voz. — A
comida não parava no estômago durante o primeiro trimestre.
Depois, no segundo trimestre, tive uma azia tão grande que
parecia que tinha engolido um pequeno vulcão. Não conseguia
dormir sem estar completamente direita. E no ato final, o terceiro
trimestre, a simples noção de me baixar e calçar sapatos quase
me sufocava.
Não havia uma parte do corpo de Mika que Penny não tivesse
colonizado.
Penny riu-se e Thomas também sorriu.
— Foste uma refilona desde o início — disse ele à filha.
Penny riu-se outra vez. Mika também se riu, erguendo o rosto
para a lua crescente. Tentou dizer a si própria que este momento
não significava muito. Que o seu coração não se sentia aberto e
interminável como o verão. Que não era como se ela tivesse 18
anos novamente e estivesse a começar. Quando tivera o mundo a
seus pés. Quando a sua vida tinha sido tinta espessa, cores
vibrantes e pinceladas ousadas.
N
CAPÍTULO 12
a noite seguinte, Mika apressou-se para se ir encontrar outra
vez com Thomas e Penny no hotel deles. Tinham planeado
jantar num restaurante a um quarteirão de distância. Ela tinha
conseguido encontrar um lugar para estacionar na rua, mesmo
antes de o céu se abrir e enormes gotas de chuva caírem.
Quando deslizou pelas portas da entrada, tinha o cabelo colado à
cabeça.
— Estou aqui — disse ela a Thomas, correndo e escorregando
ligeiramente. — Desculpa, atrasei-me. O trânsito estava horrível e
não conseguia encontrar sítio para estacionar. Onde está a
Penny?
Ela perscrutou a entrada.
— Deve estar a descer a qualquer minuto. — Nesse mesmo
instante, o telemóvel de Thomas tocou. — Só um momento —
disse ele a Mika. — É a Penny. — Ele atendeu: — Então, miúda?
A Mika está aqui. Já estás pronta? — Ouviu atentamente por um
minuto. — Ah, estás? Trouxeste alguma coisa contigo? Não, claro
que não. Não há problema, já sabes. Vou agora mesmo num
instante a um supermercado. Queres mais alguma coisa? Está
bem, já subo. Espera um bocadinho. Então?! Está tudo bem, está
tudo bem. Sim, não te preocupes, eu explico-lhe. Sim, vou ser
simpático — disse ele um pouco mais silenciosamente.
Finalmente, desligou. — Bem, a Penny não vem. Está naquela
fase.
A testa de Mika enrugou-se.
— Fase? Oh! — A compreensão abateu-se sobre ela. — Está
naquela altura do mês.
Ele coçou a nuca.
— Tenho de ir a um supermercado.
— Hum, há um Target a um quarteirão daqui. Eu levo-te.
Pediram dois guarda-chuvas emprestados ao porteiro. Dez
minutos depois, estavam no mesmo Target em que Mika se
encontrava quando Penny lhe ligara. Estou a falar com a Mika
Suzuki? Daqui fala Penny Calvin. Acho que sou sua filha. Thomas
procurou pelas prateleiras e abanou a cabeça, extremamente
desapontado com a falta de escolha.
— Olhe, desculpe. — Fez sinal a um funcionário de camisa
vermelha e perguntou por uma marca de tampões em particular.
Superabsorventes. O empregado disse que ia verificar e afastou-
se rapidamente.
Thomas enfiou as mãos nos bolsos e balançou nos calcanhares.
— A Penny é muito específica.
Mika teve de admitir que se sentiu um pouco encantada com o
desenrolar de toda a cena à sua frente.
— É?
— Sim — disse ele com um encolher de ombros. — Ela gosta
de uma certa marca. Se não tiverem, talvez tenhamos de ir a
outro supermercado. O que foi? — disse ele perante o olhar
esbugalhado de Mika.
— É que… estou muito impressionada. O meu pai nunca foi a
um supermercado para comprar produtos femininos.
Hiromi comprava-os e levava-os a Mika num saco de plástico
escuro, como se estivesse a acontecer uma negociata do
submundo profundo. Uma vez, ela tinha mandado Leif. Ele ligara-
lhe pelo FaceTime, e tinham começado a discutir sobre opções
ecológicas. Ela desligou-lhe o telefone na cara, satisfeita por estar
a sangrar no sofá dele. Era bem feito.
Thomas coçou o maxilar.
— Não é motivo para uma pessoa se envergonhar. Nunca quero
que ela se envergonhe do seu corpo. — Fez uma pausa como se
considerasse se devia dizer mais. Finalmente, decidiu continuar a
falar. — Fiz-lhe uma festa do período.
— Desculpa, o quê?
Ele riu-se, a olhar para os sapatos.
— Sim. Ela teve o período um ano após a morte da Caroline, e
eu fui procurar na Internet. Acho que pesquisei no Google «pai
solteiro, filha teve o período pela primeira vez» ou qualquer coisa
assim. Apareceram inúmeras sugestões sobre uma festa de boas-
vindas à feminilidade. Convidei algumas das amigas dela para
uma festa surpresa.
— E ela gostou disso?
Mika ficara mortificada quando começou a ter o período —
envergonhada e confusa. Hiromi nunca lhe dissera que isso lhe
iria acontecer, pelo que ela foi apanhada de surpresa, para não
dizer pior.
Thomas abanou a cabeça.
— Ela não gostou. Não saiu do quarto. Acabei por mandar as
amigas para casa. Passado algum tempo, desceu e pediu-me
para nunca mais lhe fazer uma festa do período. Acho que talvez
o bolo e as serpentinas tivessem sido um exagero.
Ele remexeu os pés.
O funcionário do Target voltou com uma caixa de tampões do
tipo certo. Pagaram e voltaram a pé para o hotel. No décimo
primeiro andar, bateram à porta de Penny.
— Miúda — disse Thomas.
Penny abriu a porta, vestida com um roupão de banho, e a
televisão aos berros em fundo, um reality show sobre donas de
casa.
— Não me apetece ver ninguém — disse Penny, de mão
estendida. Thomas depositou a embalagem na palma da mão
aberta da filha. Ela continuou: — Vão vocês jantar fora. Não
desperdicem a noite por minha causa. Eu provavelmente vou
esgotar o minibar, comendo tudo o que tiver chocolate ou for
salgado.
Depois fechou-lhes a porta na cara.
No elevador, Mika disse:
— Podemos cancelar o jantar. Vou andando para casa.
Thomas cruzou os braços e coçou o maxilar.
— Eu sou mesmo má companhia, não sou?
— Não. Claro que não — cuspiu Mika, surpreendida.
Ele olhou para ela.
— Que tal uma bebida? No átrio? Acho que talvez devêssemos
conversar, conhecermo-nos melhor. Pela Penny.
Chegaram ao átrio e as portas abriram-se. Mika fartou-se de
procurar uma desculpa, pensou em simplesmente desatar a correr
e fugir, mas essa parecia ser a opção mais humilhante.
Thomas esperou por ela do lado de fora do elevador.
— Mika — disse ele sem qualquer emoção.
— Thomas.
— Por favor, vem tomar uma bebida comigo.
— Está bem. — Mika inalou e passou junto de Thomas. — Uma
bebida.
Atravessaram o átrioe dirigiram-se ao bar do hotel. Como Mika
estava condicionada a fazer, os seus olhos procuraram os
quadros. Peças abstratas típicas de hotel com redemoinhos
monocromáticos, algo escolhido pela estética. Arte de sofá, como
lhe chamava Marcus, o seu professor.
Thomas parou junto a uma pequena mesa num canto e puxou
uma cadeira para Mika. Perante o som de pernas de madeira a
rasparem contra os ladrilhos, Mika lembrou-se novamente do
gabinete de Marcus. Naquele dia em que o conheceu, o cavalete
fizera um barulho semelhante quando ela o arrastou para o
preparar com uma tela em branco tirada do armário.
«O que é que devo desenhar?», perguntou ela por cima do
ombro. A luz do sol entrava pela janela, viam-se partículas de pó
suspensas.
«Se me estás a perguntar isso, o teu lugar não é nas aulas de
Pintura Avançada», respondeu ele.
Ela acenou vagamente e tirou um pedaço de carvão da
prateleira. Posicionando-o contra a tela, desenhou uma linha
curva e estremeceu. Demasiado vincado. Demasiado espesso.
Sem propósito. Apagou com a mão e começou de novo,
invocando os seus conhecimentos de anatomia dos livros que
costumava requisitar na biblioteca. Marcus fumava enquanto ela
trabalhava. A meio caminho, ele ligou a música, uma balada folk
suave. Uma hora depois, ela tinha terminado, dedos negros,
exangues e a doerem.
Marcus parou a música.
«Quem é ela?», perguntou ele.
«A minha mãe.»
Mika encontrou uma toalha e limpou as mãos. Tinha desenhado
Hiromi. O cabelo dela estava numa cúpula lisa, olhos brutais e
imperdoáveis, linhas duplas a envolverem a boca como parêntesis
de desapontamento.
«Nunca perguntes a alguém o que deves pintar.» Um engelhar
de papel, e Marcus entregou-lhe o formulário assinado. «Inscreve-
te na minha aula de Pintura III. Eu ensino-te.»
Mika agarrou no formulário e saiu do gabinete, sentando-se num
banco durante algum tempo. Era a primeira vez que alguém lhe
dizia que ela mostrava algum potencial. Sentiu-se poderosa.
Totalmente viva. Marcus começava a parecer um gigante na sua
memória.
Agora, Mika instalava-se na cadeira, com Thomas ao seu lado.
Ele fez sinal ao barman e pediu um whisky puro. Claro que pediu;
qualquer coisa, desde que lhe fizesse crescer mais pelos no peito.
O coração da Mika acelerou, e ela pediu um copo de vinho tinto.
Um silêncio estranho abateu-se enquanto esperavam pelas
bebidas.
— Será que a Penny vai ficar bem? — perguntou Mika.
Thomas acomodou-se, esticando as pernas.
— Ela vai ficar bem. O primeiro dia é sempre o pior para ela.
— Ainda bem.
Ocorreu a Mika o quanto ela não sabia sobre Penny. Outrora,
convencera-se de que não haveria problema em nunca conhecer
verdadeiramente a filha. Bastava saber que Penny estava viva e
que estava bem. Fora uma idiota. Agora, Mika estava voraz e com
ciúmes de Caroline e Thomas, todos aqueles momentos que
tiveram com Penny. Ela tentava diminuir a inveja, mas recusava-
se a ficar encurralada. A ideia de nunca mais ver Penny, de não
fazer parte da sua vida como Mika previu que poderia acontecer,
parecia-lhe inaceitável agora. O empregado de mesa voltou. Com
um floreado, pousou dois guardanapos de cocktail e as bebidas
deles em cima. Bebericaram ambos e ouviram o homem que
tocava piano — uma sonata famosa de Mozart.
— Podes falar-me mais sobre a Penny?
Mika brincou com a base do seu copo de vinho, girando-o para
um lado e depois para o outro.
Thomas inclinou a cabeça. A velinha que estava em cima da
mesa projetava sombras por baixo das suas maçãs do rosto
salientes.
— Nós enviámos cartas todos os anos.
A correspondência de Caroline estava repleta de fotografias,
desenhos, até mesmo um prato de barro que Penny tinha feito na
escola primária. E as cartas eram longas e descritivas. Mika não
tinha problemas em imaginar a vida da filha, como ela se estava a
dar bem, como eles estavam a tratar bem dela. E sentia-se
sempre reconfortada pelas palavras de Caroline, escritas com a
familiaridade de uma mãe para outra. Mas depois Caroline
falecera. As cartas de Thomas eram curtas, concisas — o fio da
navalha da incerteza.
— Enviaram, é verdade — disse ela com cuidado. — Mas tenho
a certeza de que não conseguiram lá incluir tudo.
Thomas inspirou num tom desconfortável.
— Bem, já sabes que a festa do período correu mal. Que mais?
— Remexeu-se no seu lugar, a pensar. — A fase em que
escreveu cartas.
— A fase em que escreveu cartas? — Mika mostrou curiosidade
e chegou-se para a frente.
— Eu levei-a a um psicólogo depois da morte da Caroline. O
psicólogo sugeriu que a Penny escrevesse cartas para expressar
os seus sentimentos. Ela escrevia coisas como: «Hoje sinto-me
triste, tenho saudades da minha mãe.» — Thomas levou a sua
bebida aos lábios. Mika assistiu enquanto ele engolia, a maçã de
Adão a deslocar-se. — Depois, eu escrevia-lhe de volta: «Sinto
muito, miúda. Eu também sinto falta dela.» Era um espaço seguro
onde podíamos falar. Usámos a técnica durante uns anos, de vez
em quando. Era bastante eficaz. Um dia, acho que ela tinha 13
anos, talvez, pedi à Penny para tomar banho e arrumar o quarto.
Bastante inofensivo. — Ele esperou que Mika anuísse com a
cabeça em concordância. — Ela veio ter comigo alguns minutos
depois com uma carta que dizia algo do género: «Estou a sentir-
me mesmo irritada e triste neste momento, por isso, deixa-me em
paz até novas ordens.» — Fez uma pausa e bebeu o whisky.
Mika sorriu.
— Deixaste-a em paz?
Thomas inspirou entre dentes.
— Isso provavelmente teria sido a coisa inteligente a fazer. Mas
segui o conselho do psicólogo e escrevi-lhe um bilhete de volta.
Algo do género: «Obrigado por comunicares comigo. Não há
problema em sentirmo-nos irritados e tristes, às vezes. Estou aqui
se quiseres falar.» — Os seus olhos enevoaram-se com humor e
a boca torceu-se num sorriso.
— Não foi a coisa certa a fazer? — perguntou Mika.
— Nem de perto. Ela saiu de rompante do quarto. Juro que foi
reunir forças negras para desabar em cima de mim. Pousou com
violência a carta que me tinha escrito e fez-lhe umas revisões. —
Thomas fez uma pausa. — Ela sublinhou o «mesmo» e riscou
«irritada» para acrescentar «furiosa». Depois, com um marcador
grosso, escreveu por cima de tudo «Vai-te embora» em letras
maiúsculas.
— Uau! — foi tudo o que Mika disse, calmamente. Às vezes,
tudo aquilo, a gravidez, o nascimento, e mesmo agora, ao ver
Penny, parecia-lhe irreal. Como se Mika estivesse a ver a vida de
outra pessoa a desenrolar-se. De certa forma, estava a fazer isso,
supunha. Não conseguia controlar o facto de que esta era a vida
dela.
Thomas emborcou o resto da bebida.
— Sim, ela sempre foi assim. Pequena, mas feroz, aguerrida. Eu
apostaria nela numa luta. Como é que tu eras em criança?
— Eu? — Mika endireitou-se. Pensou na Mika de antes. Hiromi
dizia que a sua filha era demasiado sensível. Via Mika como
estranha, esquisita, sentindo as diferenças dela como traições. —
Eu era tímida, suponho, mas tinha visões de grandeza. — Ela
queria ser algo de grandioso, um dia. — Até conhecer a minha
melhor amiga, a Hana. Passei a correr mais riscos nessa altura.
— Sentiu-se indomável. Quando frequentavam o secundário, iam
a festas em casa de amigos aos fins de semana. Embebedavam-
se com os alunos e os pais que subscreviam a filosofia de «se o
meu filho vai beber, mais vale que o faça debaixo do meu teto».
Depois, reprovou na faculdade. Perdeu a virgindade na primeira
semana lá, com um tipo de cujo apelido não se conseguia
lembrar. Ela divertia-se e gostava de ter sexo, gostava da
sensação de um corpo contra o dela.
Mika pestanejou.
Marcus estava lá outra vez, na periferia. Estavam sozinhos na
sala de aula, a porta fechada. Ela estava quase a meio do seu
primeiro ano. Além de Pintura e de História da Arte, inscrevera-se
em Filosofia. Estava no meio do Existencialismo. Sartre e
Kierkegaard — «A vida só pode ser compreendida se olharmos
para trás; mas só pode ser vivida se olharmos para a frente». E a
estudar artes antigas, os Gregos, os Romanos, os Bizantinos até
à Antiguidade tardia. Ícones. A Virgem Maria. Sob a tutela deMarcus, ela dominava as técnicas tradicionais: cores atenuadas,
alla prima, velatura, claro-escuro.
«Falta vida aos teus quadros», dizia Marcus. Ele mergulhou um
pincel em tinta preta e traçou uma linha no estudo dela de uma
laranja. «Não contam nenhuma história. Qual é a tua história?»
Era uma espécie de agonia, dececionar Marcus. «Olha a pintura
do Peter.» Fez um gesto para uma tela encostada à parede, a arte
do seu aluno de pós-graduação, um retrato de uma estrela pop, a
segurar numa maçã no Jardim do Éden. «Não traz nada de novo,
mas ainda assim tem uma narrativa. Vá lá», disse ele, «não
consegues ver? A história é o teu poder».
— A Penny era tudo menos tímida — disse Thomas, puxando
Mika de volta ao presente. — Ela… — Ele abanou a cabeça.
— O quê? — Mika inclinou-se para a frente. De alguma forma,
aproximaram-se um do outro, com os joelhos a entrechocar.
— Esqueci-me disto, mas quando ela estava a aprender a andar
e a ir ao bacio, gostava que a víssemos a fazer cocó. — Mika
soltou uma gargalhada. Thomas respondeu com um sorriso. —
Não sei. Provavelmente era porque nós dávamos uma grande
importância a isso. A Caroline tinha lido um livro em que diziam
que se deve fazer uma festa quando eles vão ao bacio. Fazíamos
uma grande cena a aplaudir. Mas a Penny ficava muito séria
quando tinha de fazer cocó, e gostava de olhar nos olhos de um
de nós. Dizia: «Olha para mim, olha para mim.» — Ele sorriu. —
Tornou-se uma coisa séria, até que um dia a Caroline disse:
«Temos de parar com isto. Por este andar, vamos estar a vê-la a
fazer cocó quando andar na faculdade.» A Penny odeia esta
história, mas é uma das minhas preferidas.
De cotovelo apoiado na mesa, Mika descansou o queixo na mão
e observou Thomas em repouso.
— Que mais?
— Bem, no quarto ano, ela entrou a sério no ventriloquismo. —
Ele estremeceu a simular pavor. — Tão assustador. Estou
contente por isso ter acabado. Pouco depois, meteu-se na magia.
— Naturalmente — disse Mika, e partilharam um sorriso, uma
quase gargalhada. Ela suspirou. Estivera errada sobre Thomas.
Ele não tinha o alcance emocional de uma batata. — Vocês foram
bons pais. Tu és um bom pai. — Mika não tinha intenção de o
dizer, mas as palavras saíram-lhe.
Thomas soltou uma gargalhada.
— Obrigado. Andei a navegar à vista durante algum tempo. Olho
para trás depois da morte da Caroline e tenho vergonha do
quanto eu não sabia. Confiava muito na Caroline para fazer a
maior parte das tarefas parentais. Depois, quando ela faleceu,
senti-me tão fora do meu elemento…
Uma dor no peito de Mika.
— Foi muito mau?
Ele franziu o sobrolho.
— Arranjei-lhe o cabelo. Não ficou muito mal, para uma primeira
vez. A Penny chorou ao fim do dia quando tentei tirar os elásticos,
por isso, usei uma tesoura e acabei por cortar-lhe um bocado de
cabelo. Tive de a levar a um cabeleireiro para o consertar. Ela fez
uma birra quando sugeriram cortá-lo pelo pescoço para o deixar
todo igual. Então, chegámos a uma solução de compromisso,
curto à frente e comprido atrás.
Mika fez uma careta.
— Isso soa muito parecido com um…
— Um mullet — disse Thomas, os olhos claros cravados em
Mika. — Eu deixei a minha filha com um mullet.
- E
CAPÍTULO 13
ntão, o que é que contaste à Penny sobre mim? — perguntou
Hana. Era quarta-feira, a noite anterior à inauguração da
galeria de Mika. Thomas e Penny estavam a planear encontrar-se
com Hana pela primeira vez. Mika tinha escolhido o Lardo, um
restaurante de sanduíches na Hawthorne, muito badalado, mas
que não iria fazer muito mal à sua conta bancária.
Mika sorriu, vasculhando o restaurante lotado em busca de uma
mesa livre.
— Oh, sabes, o costume, que tu tinhas um fraquinho pela nossa
professora de Inglês do primeiro ano e falavas infinitamente com
ela sobre a série Smallville e dizias que a Kristin Kreuk, a atriz
principal, com olhos enormes, que fazia o papel de Lana Lang, é
que levava a série às costas.
A boca da Hana traçou um sorriso.
— Ah, a professora Sampson. Eu mal conseguia evitar desatar a
cantar sempre que falava com ela. Pergunto-me o que andará ela
a tramar agora.
Uma família de quatro pessoas desocupou uma mesa, e Mika
apressou-se a chegar lá para a reservar. Sentaram-se à espera
de Thomas e Penny antes de fazerem o pedido.
— Que mais lhe contaste sobre mim?
Hana batucou com os dedos na mesa.
Mika olhou para o letreiro de néon na parede debaixo do qual se
sentaram. Dizia «Comam que nem porcos».
— Tu sabes, o costume. Que somos amigas desde o secundário
e andámos na faculdade juntas, e que tu estiveste ao meu lado
quando ela nasceu. Provavelmente vai querer saber pormenores
sobre isso. — Mika tirou um guardanapo do dispensador e
começou a desfazê-lo. — Tenho a certeza de que ela vai
perguntar tudo sobre nós e esse tempo das nossas vidas. Por
isso, minimiza o tipo de alunas que éramos, está bem? As farras
em que nos metemos, quantas vezes faltámos às aulas.
— Mika — suspirou Hana, com um olhar solidário nos olhos.
— Eu quero que ela se orgulhe de onde veio. Quero ser alguém
que ela admire. — Quero ser a pessoa que era antes, só que
melhor, pensou Mika. Talvez esta fosse a sua oportunidade de
redenção. Absolvição. Uma forma de voltar atrás no tempo e
corrigir as coisas. Era uma lógica distorcida, mas lá estava: a sua
oportunidade de recuperar o que tinha perdido.
— Não queres que ela saiba que quase fizeste cocó a empurrá-
la para fora? — disse Hana secamente.
— Oh, meu Deus, prometeste que nunca falaríamos sobre isso.
— Hana encolheu os ombros. — Adoro-te, miúda — disse Mika.
— Também te adoro, miúda — respondeu Hana. — Apesar de
seres uma aldrabona e estares errada.
— Por favor, não me faças sentir pior. — Ela já se sentia
suficientemente mal por mentir a Penny, mas era melhor do que a
verdade. Tinha prometido proteger sempre Penny. Esta era a sua
maneira de o fazer.
— Desculpa — disse Hana. — Só queria que conseguisses ver
como és fantástica. — Mika abriu a boca para responder, mas os
sinos por cima da porta tocaram. Thomas e Penny estavam à
entrada. — São eles — disse Mika, erguendo a mão no ar e
fazendo sinal aos dois para se aproximarem.
Tanto o pai como a filha sorriram ao mesmo tempo. Hana
assobiou baixo.
— Pai sexy à vista!
— Hana — disse Mika, com as faces a arderem à medida que
Thomas e Penny se aproximavam.
— O que foi? — disse Hana, tocando no próprio peito. —
Mesmo sendo lésbica, consigo apreciar homens bonitos de forma
totalmente objetiva.
— Olá. — Thomas sorriu calorosamente para Mika. Estendeu a
mão a Hana para a cumprimentar. — Thomas. — As
apresentações continuaram a partir daí e eles sentaram-se, Mika
e Hana de um lado e Thomas e Penny do outro.
— O que há de bom aqui? — perguntou Thomas.
— Decididamente as Batatas Grande Sacana — disse Hana. —
São cortadas à mão e cozinhadas em gordura de bacon e depois
cobertas com ervas fritas e parmesão.
Thomas tomou nota do que toda a gente queria e foi ao balcão
fazer o pedido. Quando voltou, envolveram-se em conversa de
circunstância durante algum tempo. Sobretudo em torno de Hana,
do seu trabalho como intérprete de língua gestual para bandas.
Penny sorria de orelha a orelha. Tão impressionada e
impressionável, pensou Mika. Isso fê-la pensar em como ela era
com Marcus, que neófita tinha sido, o quanto queria a aprovação
dele; ela tinha sido como um gato que se roçava em torno das
pernas dele; o seu desespero ainda lhe dava a volta ao estômago.
Agora, estavam a encher-se de batatas fritas e sanduíches de
porco. Thomas limpou a boca e amachucou o guardanapo.
— Não consigo comer mais — declarou ele, esfregando a
barriga lisa. A sua t-shirt subiu, revelando a mais fina faixa de
pele. Mika encontrou um lugar fixo na parede para o qual olhar.
Hana inclinou-se para a frente, cotovelo na mesa, queixo na
mão, e olhou para Penny.
— Então? — disse ela.
— Então — Penny papagueou de volta.
— O que é que queres saber? — perguntou Hana.
Penny corou com a franqueza de Hana.
— Tu estavas lá no dia em que nasci.
— Oh, sim, eu estava totalmente na zona de rebentação —
disseHana.
Mika fez uma careta perante a imagem e reavaliou a sua
escolha no que toca a melhores amigas.
Penny esfregou os polegares um no outro.
— Podes contar-me... Podes falar-me do dia em que nasci? —
Ela olhou para Hana, para Mika, perguntando às duas.
Mika reclinou-se na cadeira. A comida no seu estômago azedou.
Era-lhe difícil lembrar-se daquele dia. Era ainda mais difícil falar
sobre isso. Sobre como a gravidez lhe rasgou a vida ao meio.
Como quando Penny nasceu, Mika ficou zonza de amor, e depois
de coração destroçado. Como ela se tinha afundado como uma
pedra depois. Era doloroso, deixar aquele bocado de tempo
desenrolar-se como uma fita.
— Penny — disse Thomas baixinho. — Talvez devêssemos
guardar esta conversa para outro dia.
Penny esmoreceu.
— Claro, certo. Eu compreendo perfeitamente.
Mas era claro que não compreendia.
Debaixo da mesa, Hana apertou o joelho de Mika, tentando
transmitir tranquilidade.
— Estava a chover, acho eu — disse cuidadosamente a melhor
amiga de Mika.
— Estava — confirmou Mika, a sua voz leve, fraca. Ela tinha ido
ao ginecologista no dia anterior e tinha ficado infelicíssima. «Eu só
a quero tirar daqui», dissera ela, corada e a chorar. «Só quero que
tudo isto acabe. Quero a minha vida de volta.» Parecia que Penny
estava agarrada a Mika, sabendo que, em breve, iriam ser
separadas.
— Deram uma epidural à Mika — acrescentou Hana. Ela deu
um empurrão a Mika. — Lembras-te de que a enfermeira sugeriu
que era muito cedo para uma epidural e, em vez disso, talvez
devesses tentar respirar?
Um fantasma de um sorriso apareceu no rosto de Mika.
— Ela estava a oferecer-me bolas de neve. Eu queria uma
granada.
— Foi bastante aborrecido depois disso. Dormimos durante um
bocado de tempo — disse Hana. Mika lembrava-se de Hana ao
fundo da cama do hospital, o corpo caído numa cadeira.
— A Hana dormiu — especificou Mika. — Eu andei às voltas na
cama, a virar-me para um lado e para o outro, não conseguia ficar
confortável. — Ela chorara. De exaustão, de dor, por estar
emocionalmente esventrada.
— Então, de manhã cedo, a Mika começou a fazer força —
disse Hana. Nos intervalos do esforço para expelir, Mika dissera:
«Não quero pegar nela ao colo.» Depois mudou de ideias. «Eu
quero pegar nela, não deixes que a levem antes de eu poder
pegar nela ao colo.» — A Mika pegou em ti primeiro, mas eu
peguei em ti logo a seguir — disse Hana. — A tua cara estava
toda vermelha e engelhada.
— Parece lindo.
Penny riu-se.
— Foi, foi mesmo — disse Mika, e essa era a verdade. O seu
olhar esvoaçou para Thomas. Um meio sorriso surgira inclinado
no canto da boca dele, igual ao de Penny.
— Nós estávamos mesmo do outro lado, na sala de espera do
hospital — interveio Thomas. E Mika encontrou um certo conforto
distante sabendo que Penny tinha sido passada em mãos para os
seus pais adotivos. Não houve um momento em que ela não
tivesse sido amada e acarinhada.
— Eu sei — disse Penny. — A mãe escreveu-me sobre isso na
sua carta.
A carta que Caroline tinha escrito para o décimo sexto
aniversário de Penny. A carta que lançou Penny em busca da sua
mãe biológica.
— Escreveu? — As sobrancelhas de Thomas arquearam-se. Ah,
lembrou-se Mika, Penny não deixara Thomas ler as últimas
palavras que Caroline tinha escrito à filha.
Penny acenou com uma mão ao pai, descartando o assunto.
— Mudando de assunto. Estou a morrer de vontade de ver a tua
galeria — disse ela a Mika, os seus olhos escuros intensos. —
Podemos ir amanhã? Fazes-me uma visita guiada antes que
todos os outros a vejam?
Oh, pensou Mika.
— Oh! — disse Mika. Leif tinha enviado a morada na noite
anterior. Tinha dito que ela podia entrar a qualquer hora no dia
seguinte. Ela tinha libertado a agenda para verificar o espaço,
mas não esperava companhia. Olhou para Hana. A sensação de
divertimento encaracolou os cantos da boca da amiga. — Claro!
— concordou, encostada a um canto. Mais tarde, havia de
arranjar uma desculpa.
— Detesto ter de me ir embora tão cedo. — Hana afastou-se da
mesa. — Mas é que amanhã tenho um jogo de roller derby.
— Roller derby? — ecoou Penny.
— Querem vir? É violento e sedento de sangue, pode ser que
seja o teu estilo de coisa — disse Hana, e Penny animou-se como
uma árvore de Natal. — Há patinagem aberta ao público depois.
Penny agarrou a mesa.
— Sim, sim, quero muito, sim.
* * *
Thomas, Penny e Mika sentaram-se nas bancadas e viram Hana
patinar no rinque vinte minutos depois. Thomas olhou para as
mulheres de calções curtos, com tops, patins, capacetes e óculos
de proteção.
— Não temos roller derby no Ohio — murmurou ele.
— O que é que a Hana está a fazer? — perguntou Penny.
Mika sentou-se na bancada.
— Ela é a jammer, por isso vai começar atrás da sua equipa —
começou Mika, explicando que os pontos eram marcados quando
uma jammer ultrapassava um membro da equipa adversária.
Durante uma hora e meia, torceram por Hana, estremecendo
quando alguém lhe dava uma cotovelada e vaiando quando o
árbitro assinalava um bloqueio de pista, uma penalidade. Quando
a equipa de Hana, as Asian Invasion, derrotou a rival, as Fresh
Meat, Penny estava aos saltos no seu lugar. Hana chamou Penny
para o rinque, e Penny saltou para se juntar a ela para patinar.
— Queres ir para o jardim da cerveja, de onde as conseguimos
ver? — perguntou Mika, a apontar para a extremidade do rinque,
onde havia uma área aberta com bancos de piquenique e um bar.
Thomas esfregou os joelhos.
— Devo preocupar-me com isto? Preciso de ter o meu cartão do
seguro à mão?
No rinque, Hana estava a equipar Penny com um capacete e
joelheiras.
— Não — disse Mika. — Ela vai ficar bem. A Hana só lhe vai
mostrar alguns movimentos e apresentá-la a algumas raparigas.
Instalaram-se, pouco depois, no jardim da cerveja, uma IPA
gelada à frente de Thomas, um copo de sidra diante de Mika, a
observarem enquanto uma menina com tatuagens nos braços e
cheia e alfinetes de ama nas orelhas mostrava a Penny como é
que se bloqueava.
Thomas passou com os polegares na condensação que se
formara no exterior do seu copo.
— Sabes, eu tinha reservas quanto a esta viagem.
— Não me digas? — provocou-o Mika com um sorriso. Ela
bebericou a sua bebida.
O olhar de Thomas tornou-se sério.
— Sinto muito. Tenho sido um rezingão. Tem sido um ano…
Merda, não sei, acho que têm sido uns quantos anos maus.
Pensei que a Penny estava a dar-se bem com tudo. Somos só
nós os dois há tanto tempo. Ela nunca sequer perguntou por ti.
Chocou-me muito quando anunciou que te tinha encontrado e que
tencionava visitar-te. — Ele esfregou o peito. — Acho que não me
adaptei. Além disso, há a história da carta que a Caroline lhe
escreveu. Ela não me deixa lê-la. Estou a tentar respeitar os
desejos dela, mas, raios, parece que tudo o que a Penny faz
ultimamente é guardar segredos de mim.
Thomas olhou fixamente para a sua bebida.
O canto da boca de Mika torceu-se com incerteza.
— Então, a Penny está a guardar segredos e a tentar
estabelecer-se fora de ti. Parece-me bastante típico de uma
adolescente, cá para mim. — Levou uma mão ao seu próprio
peito. — Falo por experiência.
Se tiveram algum efeito, aquelas palavras só serviram para
deixar Thomas mais cismado. As sobrancelhas dele uniram-se
ainda mais.
— Bem, merda, não gosto de nada disso.
— Ela é boa rapariga. É boa pessoa, a tua filha.
Ele acenou com a cabeça, pensativo.
— Eu costumava pensar que a Caroline era a melhor coisa que
alguma vez me aconteceu, mas depois apareceu a Penny, e senti-
me culpado, porque ela… bem, porque ela é a melhor coisa que
alguma vez me aconteceu. — Mika não disse nada. Embora
pensasse: Sinto exatamente o mesmo. — Ela está a crescer, acho
eu, é só isso — disse Thomas.
— Pois está. Mas também está a fazer boas escolhas. Como a
maneira como lidou com as coisas com aquele namorado… — A
voz de Mika desvaneceu-se perante a expressão confusa de
Thomas.
— Qual namorado?
— Merda. — Mika trincou a bochecha. — Não devia ter dito
nada. Por favor, não lhe digas que te contei.
Thomas fez o sinal da cruz com o dedo sobre o coração.
—Nem uma palavra.
Mika tentou lembrar-se da conversa telefónica delas sobre ele.
— Jack ou James, acho que era o nome dele.
— Jack — confirmou Thomas. — Ela fala dele às vezes.
— Bem, acho que eles andavam juntos, mas ela acabou com
ele. — Mika inclinou-se para a frente e sussurrou: — Porque ele
andava sempre a querer levá-la para sítios com colchões.
Os lábios de Thomas comprimiram-se, e o punho também.
— Aquele filho da puta.
Mika pousou uma mão sobre a dele e retirou-a de imediato. O
calor espalhou-se pelo pescoço dela.
— Calma, e deixa lá a mãe dele fora disto. A Penny tem uma
boa cabeça em cima do pescoço.
«Quero alguém que me ache bonita por causa da minha
mente», dissera Penny depois de ter acabado com ele.
Thomas fletiu os dedos e descontraiu-se.
— Bem, então está bem. — Engoliu a bebida. Saiu-lhe uma
meia gargalhada. — Não estou habituado a isto. É difícil partilhá-
la.
— Eu consigo imaginar — disse Mika, com um tom levíssimo na
voz. Ela tivera de partilhar Penny desde o início.
— Pois é. Desculpa. — Thomas esboçou um sorriso
embaraçado. Ele estava a usar uma camisola com capuz, com um
bordado a dizer DARTMOUTH ROWING. Parecia mais novo do que os
seus 46 anos. — Importas-te que te faça uma pergunta?
Mika acabou de beber a sidra.
— À vontade.
— Estás arrependida? — perguntou Thomas.
Mika inclinou a cabeça.
— Arrependida de quê?
— Da Penny — disse ele ao fim de um segundo. — De tê-la
entregado, quero eu dizer.
Mika ficou imóvel. Renderes-te. É o ato de te entregares a
forças maiores do que tu, dissera a Sra. Pearson.
— Foi a decisão certa na altura certa, e mesmo agora… Eu não
iria querer que mais ninguém criasse a Penny. Ela é exatamente
quem devia ser. — Mika fez uma pausa, depois disse: — Mas sim.
Há sempre alguns arrependimentos, não há?
Os olhos de Thomas enevoaram-se em pensamento; depois,
disse:
— Isso faz tudo parte da experiência universal de ter um filho.
Perante a alusão de Thomas a Mika ser a mãe de Penny, o calor
espalhou-se no peito dela. Nessa altura, Penny passou por eles a
patinar. O seu rosto estava corado, os olhos brilhavam. As mãos
seguravam numa t-shirt da loja de presentes.
— Vou comprar isto.
Ela segurou-a à sua frente. Impresso no peito estava ESTAS VÃO-
TE REBENTARAFUÇA em tipo de letra Old English.
Thomas riu-se, depois ficou rapidamente sóbrio.
— Não. Absolutamente não. Tenta outra vez.
Penny fez beicinho.
— Mas…
Outra coisa que perdi, pensou Mika. Ela podia ter escolhido
quem lhe criava a filha, mas não que roupas ela usava, ou com
que brinquedos brincava, ou qual a roupa de cama debaixo da
qual dormia. Ao longo dos anos, Mika fazia uma pausa nas
secções de criança, a passar as mãos por cima de botinhas de
bebé ou dos babygros ou t-shirts com desenhos e pensava no
que Penny poderia trazer vestido. Tantas coisas que perdera.
Tantas coisas das quais abrira mão.
Mika interveio.
— Vá lá, eu ajudo-te a escolher outra coisa.
Estava na hora de uma segunda oportunidade.
O
CAPÍTULO 14
ito da manhã e Mika estava acordada, a mandar mensagens
a Penny. Tens a certeza de que queres ver a galeria hoje?
Está uma autêntica confusão. Uma pontada de vergonha
atingiu Mika, mas ela empurrou-a rapidamente de volta para o
buraco de onde rastejara. Prometo que vai estar impecável
quando apareceres logo à noite!, acrescentou.
Penny enviou uma mensagem quase imediatamente. Não há
problema nenhum. Podia até ajudar-te a prepará-la! Não me
importo de sujar as mãos. Mandas-me a morada por
mensagem? Com um suspiro derrotado, Mika pediu a Penny que
lhe desse umas horas de avanço. Enviou uma mensagem a Leif
para confirmar que Stanley, o artista, estava à espera dela. Ele
respondeu com um polegar para cima.
Quando se encontrava a caminho, o telemóvel de Mika tocou
com uma mensagem de Hana.
A Penny é um espetáculo, disse ela. Sabes o que mais é um
espetáculo?
Mika tinha ido para a cama antes de Hana ter chegado a casa,
depois saíra de manhã antes de Hana acordar. Normalmente, as
duas coabitavam no mesmo horário de altas horas da noite e
manhãs ainda mais tardias. Mas ultimamente, Mika andava a
levantar-se mais cedo, principalmente para maximizar o tempo
com Penny enquanto ela estava em Portland.
Mika enviou a resposta quando parou num sinal vermelho.
Deixa-me adivinhar. Cheesecake para o pequeno-almoço?
Calças de fato de treino? Dança interpretativa?
O semáforo ficou verde e o telemóvel dela começou a tocar.
Mika olhou para o ecrã. Era a mãe a ligar. Outra vez. O coração
caiu-lhe aos pés. Obviamente, Hiromi devia querer saber se Mika
já tinha arranjado emprego. Recusou a chamada. Pouco depois, o
telemóvel acendeu-se com um novo alerta de mensagem de voz.
Outro semáforo vermelho e Hana tinha respondido com uma
mensagem escrita. Sim, todas essas coisas, mais o Garrett
com diarreia crónica. Ele tem de desistir da digressão para
tratar da Síndrome de Intestino Irritável. Enviou de seguida um
emoji de cara triste, depois um emoji com um chapéu de festa.
Isto significa que vou fazer uma digressão com os Pearl Jam.
Mika respondeu: Primeiro, nunca mais me fales sobre a
atividade intestinal do Garrett, por favor. Segundo, estou
muito feliz por ti.
Ideia!, escreveu Hana. Devias vir comigo como meu animal
de apoio emocional. Hotéis e refeições grátis, passes para os
bastidores… O que achas? Partíamos daqui a umas semanas.
Mika encostou e estacionou à porta de um armazém
banalíssimo. Um cartaz anunciava as Primeiras Quintas-Feiras do
mês, uma altura em que as pessoas vinham beber vinho em
copos de plástico e saltitar das cabinas para as águas-furtadas,
antevendo artistas que se mostravam promissores, mas que
estavam, principalmente, mortos de fome.
Mika entrou por uma porta pesada. Na parede estava um registo
a listar os diferentes artistas que lá residiam. CRIAÇÕES DA DAPHNE,
SUITE 1. PRODUTOS ZEN, SUITE 2… STANLEY WOLF, SUITE 10. Mika subiu as
escadas, batendo à porta da suíte 10 antes de entrar.
— Olá — chamou ela.
Os Metallica estavam a tocar numa velha aparelhagem e
agrediram-lhe os ouvidos. Pairava no ar o mesmo cheiro de
quando Mika deixou queimar uma panela no forno. Em redor do
espaço, havia montes de sucata em metal retorcido: uma vara de
sustentação, tiras de aço, barras de ferro. A luz natural de quatro
enormes janelas enchia o espaço. Um homem segurava num
maçarico a um canto, faíscas a voarem dele enquanto trabalhava
numa escultura.
O maçarico desligou-se. O tipo levantou a máscara e desligou a
música.
— Ora viva! Deves ser a Mika? — Ele atravessou a sala, tirando
as luvas. — Stanley.
Estendeu uma mão para cumprimentar Mika. Stanley era
branco, com olhos azuis brilhantes e um tufo de cabelo preto
tingido. Uma das suas orelhas estava furada, um piercing
pendurado com penas a penderem dele.
Mika apertou-lhe a mão e sorriu. Depois, deu um passo atrás
para fitar uma escultura com mais de dois metros. Era difícil
decifrar o que era suposto ser. Um homem, talvez? Mas com as
costas espetadas e torcidas.
— Isto é interessante. Está impregnado de uma qualidade
emocional tão forte.
Stanley corou.
— O Leif disse-me que estás a tentar montar este espaço como
galeria.
Mika deslocou-se mais atentamente pela divisão.
— Estou, e se estiveres interessado, acho que isto vai funcionar
na perfeição. — O espaço estava repleto de potencial. Havia mais
meia dúzia de esculturas agrupadas a um canto, corpos dobrados
uns para os outros, como amantes que se refugiam debaixo de
um toldo durante uma tempestade. Se limpassem o equipamento
de Stanley, as esculturas destacar-se-iam na vasta sala,
iluminada pelas luzes embutidas no teto. Ela olhou para Stanley.
— Tens a certeza de que não te importas? Eu a expor o teu
trabalho, a tomar conta do teu estúdio por hoje?
— Não. — Stanley atirou as luvas para cima de uma mistura
eclética de materiais, incluindo um conjunto de óleos e um
cavalete. Mika olhou para as tintas e cerrou um punho para
manter os tremores à distância, uma combinação de medo e
saudade. Havia também uma garrafa de terebintina e ela ficou
paralisada porum momento. Estacou, completamente imóvel,
como se estivesse a ser seguida por uma fera na floresta. —
Estou quase a acabar aqui. Por isso, é tudo teu. Há algumas latas
de tinta e rolos ali no canto. O Leif pensou que talvez quisesses
dar uma nova demão a tudo isto. Vou deixar-te fazer a tua cena —
anunciou Stanley.
Arrepiada, Mika sorriu levemente, ouvindo-se a si própria a
murmurar um agradecimento a Stanley. A porta bateu. Ela engoliu
em seco, afastou a sensação de desconforto e arregaçou as
mangas. Estava na hora de trabalhar.
* * *
Duas horas depois, Penny mandou uma mensagem a dizer que o
Uber a tinha deixado à porta. Mika desceu para se encontrar com
ela.
— Oiiiii — cantou Penny, a saltitar. — O que achas? — Ela
estendeu os braços. Trazia um casaco de ganga e, por baixo, a
nova t-shirt que Mika lhe tinha oferecido. Tinham trocado a t-shirt
REBENTARAFUÇA por uma camisola das Asian Invasion: o logótipo
era um par de pauzinhos enfiados no arroz.
— Gosto — disse Mika. Ver Penny feliz fazia-a feliz.
Penny coçou o nariz.
— Tentei convencer o meu pai a comprar-me tinta para o cabelo
ontem à noite. Sinto que todo este visual podia ser elevado se
tivesse uma risca azul aqui. — Segurou uma madeixa de cabelo a
emoldurar a cara.
— Não faças isso sozinha. Eu descolorei o cabelo no secundário
e demorou um ano a voltar ao normal. Se decidires que queres
mesmo, sê responsável e vai ter com um profissional.
Penny acenou gravemente com a cabeça.
— Bem pensado.
— Dormiste? — perguntou Mika enquanto conduzia Penny pelas
escadas até à galeria.
— Como um sonho — respondeu Penny. — Estou tão
entusiasmada por ver o teu espaço.
Mika fez-lhe uma festinha na orelha.
— Ainda há muito a fazer… Não tenhas demasiadas
expetativas. — Perante o rosto preocupado de Penny,
acrescentou: — Estou só a sentir a pressão de fazer tudo bem. A
inauguração é hoje à noite.
— Eu percebo. Acontece-me o mesmo antes de uma prova de
atletismo. Ansiosa e entusiasmada, queremos que corra tudo na
perfeição.
— Exatamente.
Mika abriu a porta e Penny entrou.
— Uau! — exclamou Penny, contornando Mika.
— O quê? Assim tão mau? — Mika tentou imaginar o espaço
através dos olhos de Penny. Apesar dos esforços dela nas últimas
horas, a área ainda estava desarrumada. O equipamento de
soldar estava amontoado numa pilha no meio do chão,
juntamente com vários materiais de arte.
— É preciso arrumar um bocado — disse Penny, circulando pelo
espaço.
— Sim — disse Mika um pouco desanimada.
Penny olhou para Mika por breves instantes.
— Bem. — Penny bateu com as mãos uma na outra. — Entre
nós as duas, acho que conseguimos ter tudo limpo numa hora ou
duas.
— Tens a certeza de que não te importas?
— Claro que não! — disse Penny. — Por onde é que queres
começar?
Mika tocou com um dedo nos lábios.
— Vamos arrumar todo este equipamento.
Mika atravessou a sala para abrir o que ela supunha ser uma
despensa. Espreitou lá para dentro. Espaço vazio e empoeirado.
Escancarou a porta.
Juntas, trabalharam incansavelmente durante os sessenta
minutos seguintes, transportando equipamento de soldar e sucata
de metal para a despensa. O suor salpicava-lhes as
sobrancelhas.
— Isto também vai para a despensa? — perguntou Penny. Aos
pés dela estavam os materiais de pintura.
Mika fletiu as mãos, tentando dispersar um tremor. Concentrou-
se num par de lápis de carvão. Marcus fazia desenhos a carvão.
Um pedaço de cerâmica partida que, se ela virasse a cabeça na
direção certa, lhe parecia um coração a bater. Um monte de
bananas já apodrecidas. Um poço seco. Perto do fim do inverno,
Marcus tinha vencido um prémio pelo desenho do pedaço de
cerâmica.
«Parabéns.» Mika sorriu para Marcus, um pouco sem fôlego
depois de correr pelo campus para o ver depois de sua aula de
História da Arte. Já tinham deixado a Virgem Maria. Agora
estavam a concentrar-se no Renascimento, onde as mulheres
eram ajeitadas em cadeiras, pintadas em meias conchas ou a
flutuar sobre nuvens com a luz focada nas suas ancas, nas suas
coxas, nos seus seios — prontas para serem banqueteadas,
devoradas. Mika estava no gabinete de Marcus e entregou-lhe um
presente, um afia-lápis elétrico encimado por um arco vermelho.
Era uma piada recorrente entre eles Marcus usar um velho afia
que ele torcia manualmente.
«Obrigado», respondeu ele com o mais pequeno sorriso,
desapertando o laço.
«O que é que vais fazer com o prémio? Acho que devias
pendurá-lo ao pé da tua secretária.» Mika fez um gesto na direção
da placa do Southwestern Institute of Art.
«Não sei. Provavelmente vou acabar a usá-lo como cinzeiro»,
disse ele, a coçar a barbicha no queixo.
«Bem, sem dúvida que devias celebrar», acrescentou Mika.
«Por acaso.» Marcus olhou para Mika. «Vamos reunir-nos no
apartamento do Pete esta noite para bebermos um copo. Eu não
queria fazer nada, mas ele insistiu. Porque é que não vens?»
Mika corara furiosamente e sorrira abertamente, a pensar logo
no que é que haveria de vestir.
«Adoraria. Obrigada.»
— Mika?
Penny estava à sua frente.
Mika tentou contorcer a boca para fazer surgir um sorriso.
— Desculpa, perdi-me em pensamentos. Importas-te de pôr na
despensa?
Penny anuiu silenciosamente com a cabeça e recolheu as tintas,
desaparecendo dentro da despensa. Mika partiu um lápis debaixo
do calcanhar e deu-lhe um pontapé, atirando-o para o canto.
Caminhou até às esculturas e agrupou-as mentalmente, decidindo
onde deveriam ser colocadas, como deveriam ser sequenciadas.
Escolheu uma, a mais arqueada, e empurrou-a para mais perto da
entrada. Já estava na quarta quando Penny terminou de arrumar
os materiais de pintura.
— Uau! — exclamou Penny. — Isso funciona muito bem.
Mika deu um passo atrás e limpou o suor do rosto. Cada
escultura subsequente dobrava-se ligeiramente menos do que a
anterior, como um filme de fotografias da mesma figura retorcida
que se endireitava lentamente até ficar ereta.
— Também acho que resulta bem. — Desta vez Mika sorriu a
sério. Orgulhosa e muito feliz.
Elas moveram as últimas esculturas, mas deixaram a que
estava coberta por uma lona pesada.
— Acho que o Stanley ainda está a trabalhar nessa — explicou
Mika, limpando as mãos às calças de ganga. — Vou falar com ele
mais tarde e ver onde é que a devemos colocar. Nós as duas
formamos uma boa equipa — disse Mika, e Penny sorriu. —
Queres beber alguma coisa? Vi uma máquina automática ao
fundo do corredor.
— Parece-me bem — disse Penny.
Usaram os trocos que estavam no copo no carro de Charlie para
comprar água e alguns pacotes de batatas fritas, depois
sentaram-se de pernas cruzadas no chão da galeria.
— O que é que o teu pai anda a tramar hoje? — perguntou
Mika, a organizar a comida à volta de Penny como uma oferenda.
— Não sei. Provavelmente está a trabalhar ou algo assim. Na
verdade, pedi-lhe para não vir.
— Pediste-lhe?
Penny mordeu o lábio, com os dedos ainda num pacote de
Doritos.
— Sim. Pensei que seria bom se estivéssemos só nós as duas.
Eu adoro o meu pai, mas... ele consegue ser um bocado
desmancha-prazeres.
Mika sorriu.
— Não vou discutir. — Mas depois pensou em Thomas no
rinque de patinagem, a ver Penny com tanta devoção, tanta
admiração, tanto orgulho. — Mesmo assim, parece ser um ótimo
pai.
Surgiu um sorriso no rosto de Penny.
— E é. Especialmente quando eu era mais nova. Ele lia para
mim todas as noites. Era uma espécie de coisa nossa. Eu
adorava a Cachos Dourados, e ele lia sempre uma frase sobre o
seu longo e lindo cabelo escuro que brilhava ao sol, depois olhava
para mim e dizia «Tal como o teu». Depois, quando cresci, fui dar
uma olhada no livro e lê-lo outra vez. Ele tinha mudado as
palavras de «claro» para «escuro» e pintado as imagens do
cabelo dela com um marcador preto.
— Isso é muito querido — disse Mika, emocionada.
— Não temos estado tão ligados ultimamente — disse Penny,
sacudindo uma migalha do joelho. — Não tenho a certeza se sou
eu a mudar ou se é ele ou se somos os dois. Provavelmente,
devo ser sobretudo eu. Às vezes, olho simplesmente para o meu
reflexo e penso: «Quem és tu? Quem és tu?»Quem sou eu? Outra vez essa pergunta. Mika já tinha visto um
documentário que analisava as vidas de crianças adotadas, como
as suas vidas poderiam ter sido diferentes se tivessem sido
criadas pelos pais biológicos, natureza versus educação. O que
fazia Penny ser Penny? Quanto dela fora definido ao nascer e
quanto fora determinado ao longo dos anos? Que partes da sua
filha tinham sido dadas por Mika? Por Thomas? Por Caroline?
Pelo pai biológico? E será que isso importava sequer?
— Sabes — disse Mika lentamente —, se te faz sentir melhor,
acho que nenhum de nós sabe quem é. Passei toda a minha vida
a tentar perceber isso.
Penny ergueu o queixo.
— Isso faz-me sentir melhor. Pelo menos um pouco menos
sozinha, acho eu.
— Não estás sozinha.
Mika aproximou-se e apertou a mão de Penny.
Um silêncio solidário instalou-se entre elas até que Penny se
levantou abruptamente.
— Não consigo acreditar que esta viagem está quase a chegar
ao fim.
— Nem eu — disse Mika, pondo-se de pé também. Os dias
tinham passado a voar. No dia seguinte, Penny e Thomas iriam
embora. Mika imaginou o que aconteceria depois da partida de
Penny: Penny telefonaria mais algumas vezes e faria um esforço
para se manter em contacto. Mas, depois, as chamadas
desvanecer-se-iam lentamente no esquecimento. E este navio
fantasma de uma vida no qual Mika estava a navegar chegaria ao
porto. Ela voltaria para a sua vida real. Mas quem era Mika na
vida real? E quem era ela agora com Penny? Sem Penny? —
Gostava que tivéssemos mais tempo — disse Mika, e, com as
palavras, uma mistura de emoções deu um nó e alojou-se-lhe na
garganta: alívio pelo fim da fachada e tristeza por deixar Penny ir
outra vez. Ela tinha a certeza de uma coisa: Mika na vida real era
muito, muito triste.
— É engraçado dizeres isso — comentou Penny casualmente.
— Há um ótimo programa de verão de atletismo aqui na
Universidade de Portland. — Fez uma pausa, de olhos cravados
no chão. — E eu candidatei-me a ele ontem à noite.
— Candidataste-te? — Mika manteve o tom de voz neutro,
apesar de sentir tanta coisa. Surpreendida. Aterrorizada.
Extasiada.
— Sim. Eu gosto de Portland. — Penny observou Mika, a
analisar-lhe o rosto. — E gosto mesmo de ti. Acho que tudo por
aqui é adequado a mim.
— Eu não tinha pensado na hipótese de que poderias querer
voltar.
A mente de Mika girou num círculo vertiginoso. Ela queria que
Penny ficasse para sempre. Era o sonho dela tornado realidade.
Fica com ela. Nunca mais a deixes ir. Mas… e todas as mentiras?
A galeria? O namorado? Ela podia ser capaz de sustentá-las.
Penny iria estar ocupada com o seu programa de atletismo. Elas
juntar-se-iam à noite, ocasionalmente aos fins de semana. Se
Penny quisesse conhecer os avós, Mika fingia que eles estavam
noutro cruzeiro ou a visitar parentes no Japão. Eles fazem isso
todos os verões, imaginava-se a dizer. Compram bilhetes no início
do ano, sem direito a reembolso. E quanto à sua relação com
Penny… Mika continuaria a construí-la, a alimentá-la, a cultivá-la.
Concentrar-se-ia no que era real: partilhar os seus pensamentos e
sentimentos com a filha. Apoiá-la, ouvi-la, amá-la. — O que é que
o teu pai acha disso?
Penny suspirou para dentro.
— Ele até está na boa com isso. Bem, está a fingir que está na
boa com isso. Quando lhe disse que era por seis semanas e que
os alunos dormiam no campus, nos dormitórios, ele a modos que
se retraiu, mas depois, tipo, forçou-se visivelmente a relaxar. —
Outra pausa. — Então, não te importas com isso? Não te importas
que eu volte? Quererias que voltasse?
A pergunta de Penny parecia carregada com uma palavra
especialmente forte: querer.
— Claro que quero que voltes — respondeu Mika
automaticamente, a sua alma a tomar controlo sobre qualquer
pensamento racional.
— Posso só dizer uma coisa? — perguntou Penny, num fio de
voz. E Mika acenou com a cabeça e perguntou-se quando é que
as raparigas tinham aprendido que tinham de pedir permissão
para falar. — É que me sinto mesmo feliz por estar aqui contigo. E
já não me sentia feliz há muito tempo.
Algo no centro do peito de Mika parecia quente e viscoso.
— Eu também me sinto mesmo feliz.
C
CAPÍTULO 15
om os braços cheios de garrafas de vinho e copos de plástico,
Mika entrou novamente no estúdio de Stanley umas horas
mais tarde naquela noite.
— Espera aí, deixa-me ajudar.
Leif correu até junto dela, aliviando-a da carga.
Ela seguiu-o até às traseiras, onde tinha sido posta uma longa
mesa desdobrável, com um pano branco a cobri-la. Ele dispôs o
vinho e começou a tirar as rolhas.
— Leif. Não consigo agradecer-te o suficiente. — Mika viu o
trabalho que ela e Penny haviam feito, impressionada e
orgulhosa. Agora, as esculturas contavam uma história. A única
coisa que faltava era a peça final de Stanley, ainda coberta por
lona no centro da sala.
— Ainda não viste a melhor parte. Olha para isto. — Leif
mostrou-lhe um pequeno suporte de acrílico com cartões de visita,
com o nome dela impresso: GALERIA MIKA SUZUKI, seguido do seu
número de telemóvel. Por cima da mesa, havia uma fita
pendurada que dizia o mesmo, mas sem número de telemóvel. —
A Adelle ajudou a fazer tudo. Ela é ótima em design.
— Oh, uau!
Mika pegou num dos cartões, passando a ponta almofadada de
um dedo pela aresta afiada. Aquilo era o mais próximo do sonho
dela que alguma vez tinha estado. Quando pintava, ansiava por
ver o seu nome numa exposição — imaginava o seu próprio
trabalho sob os holofotes. Imaginava-se a dar apertos de mão aos
admiradores. A discutir a forma como usava a luz para captar o
modelo. E embora isto fosse ligeiramente diferente, ver o seu
nome num estúdio, a seguir à palavra galeria… era, bem,
deixava-a emocionada. Olhou para Leif, com as palavras
entarameladas na garganta.
— Leif… obrigada. Não sei como alguma vez te vou retribuir.
— É na boa.
Ele tocou com o polegar no lábio inferior, tentando não sorrir.
— Não é, não — disse Mika. Ela continuou: — Eu não devia ter
dito as coisas que te disse quando acabámos. Desculpa por ter
dito que os teus sonhos eram estúpidos. Não são.
— Fiz umas merdas que também não foram fixes. Não te devia
ter pedido para me transportares aquelas sementes. — Ele abriu
os braços. — Abraço de tréguas? — disse ele com a voz de Chris
Farley.
— Tréguas — disse Mika.
Sorriram um para o outro e abraçaram-se. A porta abriu-se. Mika
afastou-se de Leif. Thomas, Penny e Stanley entraram na galeria.
Ela correu para eles. Thomas trazia o fato da outra noite e Penny
ainda usava a sua t-shirt do roller derby.
— Isto é espantoso. Demos umas voltas lá fora e vimos todos os
artistas a montarem as suas tendas. É uma vibração tão criativa e
feliz — disse Penny. — E acho que, em honra à tua nova
exposição, eu devia beber um copo de vinho.
— Isso não vai acontecer — disse Thomas, com humor nos
seus olhos claros enquanto olhava fixamente para Mika. A mente
dela ficou vazia. Os seus olhares mantiveram-se fixos um no
outro, estendendo-se num silêncio desconfortável até que Leif
entrelaçou os seus dedos nos de Mika e deu um apertão.
— Olá, prazer em ver-te de novo. — Leif apertou a mão a
Thomas de uma forma que parecia quase protetora. — Ainda bem
que puderam estar aqui para apoiar a Mika.
Stanley bateu com as mãos, juntando-as.
— Bem, uma vez que já chegaram todos, estão prontos para ver
a pièce de résistance?
O sotaque dele era mau, tão mau.
Mika afastou-se do abraço de Leif.
— Sim, por favor. — Depois sussurrou a Thomas e a Penny: —
Mal posso esperar para ver. O Stanley é um artista talentoso.
Stanley chegou-se ao pé da escultura e removeu a tela com um
som que fazia lembrar um vento forte. Mika pestanejou, sem ter a
certeza daquilo que estava a ver no início. O metal estava
retorcido para formar a cabeça de um cão, mas o corpo era de um
homem? Sim. E… um pénis. O cérebro de Mika ficou preso numa
roda de hámster. Era tudo o que ela conseguia ver: um pénis
muito grande, muito ereto.
— Penny, fecha os olhos — disse Thomas calmamente.
— Nem pensar — disse Penny.
— Bem, o que acham? — Stanley estava orgulhoso daúltima
escultura. — Estou a desestigmatizar a forma masculina.
Leif sorria descaradamente de orelha a orelha.
— Eu adoro isto, Stanley. Superaste-te.
Mika tentou esconder a surpresa. Engoliu em seco.
— Sim, consigo ver isso. — O que poderia ela dizer? — O
trabalho de soldadura é fenomenal. Dá para sentir realmente a
força do animal. Não acham? — Mika não tinha a certeza a quem
é que estava a perguntar, mas os olhos dela cruzaram-se com os
de Thomas.
Thomas mexeu-se sem sair do sítio, deixando deslizar as mãos
para dentro dos bolsos, com os olhos enrugados de humor.
— Sim, bastante… — Nem conseguiu completar. Tossiu para o
punho. — Desculpa, tenho sede. — Bateu com a mão no peito. —
Acho que vou buscar uma bebida.
Penny aproximou-se de Mika. Ficou de braço dado com ela,
puxando-a para perto.
— Eu não entendo muito de arte, mas acho que isto é ótimo. Se
tu gostas, eu gosto — disse Penny incondicionalmente.
— Gostas? — perguntou Mika, suavizando a voz.
— Claro que sim. Tudo isto existe por tua causa — disse Penny.
E apertaram-se uma à outra, numa espécie de meio abraço.
A noite continuou. As obras de Stanley receberam muita
atenção. Más ou boas, haveria de se ver. Hana apareceu, mas foi-
se embora para dar uma volta pelas bancas. A galeria ficou
quente e lotada, e em breve todo o vinho tinha sido bebido.
— Tenho mais no carro — disse Mika.
— Eu ajudo-te.
Thomas tinha tirado o casaco do fato e arregaçado as mangas.
Seguiu Mika pelas escadas e até ao parque de estacionamento. O
ar frio da noite saudou-os, e Mika abrandou por um momento para
o deixar bater contra o seu rosto quente. O sol estava a pôr-se, e
os corredores dos vendedores e as bancas dos artistas estavam
envolvidos num brilho vermelho. Havia uma pitada de chuva e o
burburinho de conversa no ar.
— Isto sabe bem — disse Mika, a abanar as faces.
— Sim. — Thomas aproximou-se calmamente dela, com as
mãos nos bolsos. — Não sei, há algo em toda aquela arte… — A
sua voz desvaneceu-se.
Mika olhou para ele, alarmada. A boca dele formava uma linha
firme.
— O que foi?
— Não sei se estava a penetrar da maneira certa.
Os cantos da boca dele curvaram-se num sorriso e os olhos
cintilaram.
— Ah, ah.
— Desculpa. — Thomas ergueu as mãos. — Não consegui
evitar. Mas é muito duro.
— Continua a rir, amigo. Olha que depois vais ver que tens de te
pôr a pau comigo. — Mika sorriu em tom sarcástico.
Ele tapou a boca com a mão e riu-se. Mika gostou do som, baixo
e rouco.
— Tens razão. Vou tentar não ser tão rígido.
Chegaram ao carro e ela abriu a porta do banco de trás.
— Já ventilaste tudo?
Thomas abanou a cabeça.
— Na verdade, ainda tenho cerca de uma hora de material.
Surpreendentemente, duas piadas centram-se em fantasmas.
— Quem diria que os advogados de direitos de autor eram tão
engraçados? — Mika pegou numa garrafa de vinho. — Os meus
sentimentos podem estar feridos, mas sei que tudo isto vem da
tua falta de conhecimento sobre belas-artes.
— Ui. — Thomas encolheu-se. Ele enrolou os dedos à volta da
base da garrafa de vinho, de modo que ambos ficaram a segurar
na garrafa. — Feri os teus sentimentos?
— Não. — Mika sentiu-se a corar. — Claro que não. O Stanley é
um excelente soldador, mas os seus conceitos precisam de ser
desenvolvidos. — Ou simplesmente queimados. Algumas coisas
não deviam ver a luz do dia. É melhor começar do zero.
— É uma bela exposição, Mika — disse Thomas com voz
pastosa.
O coração de Mika saltou uma batida. Durante sessenta
segundos, nenhum deles falou. As pestanas de Thomas
baixaram-se. Se ela tivesse pestanejado, teria perdido isso. O
calor nos olhos dele. A pulsação a martelar-lhe no pescoço. Os
sinais reveladores de desejo. O que aconteceria se ela fechasse o
fosso entre eles? O ar estava carregado de possibilidades. Ela
abanou a cabeça. Isto é ridículo. Ela era ridícula. Conceber a ideia
dos lábios de Thomas nos seus. Mika soltou a garrafa, o estalido
da eletricidade provocou um curto-circuito e ela tocou com as
pontas dos pés no cascalho no chão.
— Ob-obrigada — gaguejou Mika. Os seus olhos desviaram-se
para o banco de trás do carro, para as garrafas de vinho. — Hum,
eu tenho mais uma meia dúzia delas, a maioria tintos, mas… — A
garganta dela estava seca. — Mas devemos ser capazes de as
levar todas, entre nós os dois.
— Claro. Certo.
Thomas deu um passo atrás. Pegaram nas bebidas, depois
prepararam-se para voltar para a galeria.
Enquanto caminhava, lançou olhares furtivos a Thomas,
examinando o seu rosto relaxado. Teria ela imaginado tudo? O
ardor nos olhos dele? Decididamente. Ele dissera-lhe algo
simpático, só isso. Quando é que ela iria aprender? Mika tinha
feito algo semelhante com Marcus. Tinha projetado os seus
sentimentos, interpretado demasiado nos sorrisos dele, na sua
simpatia. Tinha confundido luxúria com amor. Deixara o desejo
dela eclipsar a realidade. Deixara-se perder nele.
Na noite da festa de Marcus, ela chegara mais cedo. Depois de
bater à porta, pôs-se a verificar a sua roupa. Os collants, a saia de
xadrez e a camisola de gola alta faziam-na sentir-se mais velha,
mas, na verdade, era uma menina a brincar aos vestidos. Peter, o
aluno de pós-graduação que era o anfitrião da festa, abrira a
porta, Marcus atrás dele, no apartamento vazio.
«Cheguei cedo», dissera ela, dando meia-volta como que para
se ir embora, «eu volto mais tarde».
Marcus sorriu, agarrou-lhe no braço e puxou-a pela porta. Os
olhos dele estavam vermelhos e enevoados. Bêbedo, já.
«Chegaste mesmo a tempo», disse ele, a rodopiá-la. Pousou uma
mão nas costas dela e balançou ao ritmo da música. Mika pousou
uma mão no ombro dele. Era a primeira vez que ela lhe tocava.
Lembrava-se da sensação vigorosa dos músculos debaixo dos
seus dedos, a pele quente dele a queimar através do tecido da
camisa. Atrás de Mika, chegaram outras poucas pessoas —
alunos de pós-graduação, um colega ou dois de Marcus.
Peter trouxe uma bebida a Mika, algo forte num copo de plástico
vermelho, e depois ela estava a dançar com Marcus novamente.
A rir-se. Sentia a atenção dele como uma força física, um
pedregulho a rebolar ao seu encontro, uma mão a mover-se numa
nova direção. Ficara arrebatada desde o início, caindo sob o
feitiço dele. A pensar em koi no yokan — a sensação, ao
conhecer alguém, de que apaixonar-se por essa pessoa é
inevitável.
O vento fresco soprou, obrigando Mika a regressar ao presente.
Curvou a cabeça perante a vergonha fugaz.
— Então — disse Mika, semicerrando os olhos por causa da luz
do sol moribunda. — A Penny contou-me que se candidatou a um
programa de verão aqui.
— Sim — entoou Thomas. — Ela disse-me hoje de manhã.
— Ela disse que não te opões a isso.
Thomas deixou sair um pequeno riso.
— Acho que não tenho muita escolha. — O ritmo deles
abrandou. — Mas não me oponho. Acho que isto tem sido bom
para a Penny. — Ele ficou pensativo. — Para nós. Além disso —
acrescentou —, tu vais estar aqui.
Mika não conseguiu evitar que um sorriso lhe surgisse no rosto.
Thomas confiava em Mika para cuidar de Penny.
— Eu tomo bem conta dela.
Chegaram ao armazém e Mika usou as costas para empurrar e
abrir a porta. Subiu as escadas, consciente de que Thomas se
encontrava atrás dela. Colocaram o vinho na mesa e Leif
preparou-se para o abrir.
— Vocês estão todos corados — disse ele.
O estômago de Mika revirou-se.
— Está quente aqui dentro.
Leif olhou para ela com desconfiança, depois para Thomas, que
estava por cima do ombro dela.
— Enquanto estiveste fora, o Stanley recebeu uma encomenda.
— Recebeu? — Mika serviu-se de um generoso copo de vinho.
— Um hipster qualquer quer que ele faça uma escultura de si
próprio como um centauro — disse Leif.
Mika quase se engasgou com o gole que tinha acabado de
beber. Bateu no peito.
— Meu Deus.
Penny juntou-se a eles.
— Sinto que devíamos brindar a esta noite. Leif, importas-te de
me servir um copo desse cabernet?
— Penny. Não — disse Thomas novamente.
Penny encolheu os ombros.
— Não custa tentar.
— Mi-chan.
Mika abanou a cabeça. Podia jurar que tinha acabado de ouvir a
própria mãe. Mas nãopodia ter ouvido. O que é que estaria
Hiromi ali a fazer?
— Mika.
O nome dela outra vez, desta feita, inconfundível.
O sangue de Mika gelou enquanto ela se endireitava e se virava
lentamente num só pé. Ali estava Hiromi, o cabelo penteado numa
cúpula implacável, a saia pelo joelho e a mala pendurada no
cotovelo.
— Mãe — disse ela, aturdida, embasbacada mesmo. — O que é
que estás a fazer aqui?
As conversas na galeria esmoreceram. Era como se, de
repente, estivessem numa bolha: Leif, Penny, Thomas, Mika e
Hiromi.
— O que é que estás tu a fazer aqui? — ripostou Hiromi de
volta.
— Olá — interrompeu Thomas. — Sou o Thomas Calvin. O pai
da Penny.
Ele estendeu a mão, e Hiromi olhou-o fixamente até ele a deixar
cair.
Penny também deu um passo em frente, com um sorriso
hesitante no rosto. Mika limitou-se a assistir enquanto Hiromi e
Penny se olhavam, se viam pela primeira vez. Reparou em como
elas partilhavam as mesmas maçãs do rosto, o mesmo nariz
minúsculo e lábios em forma de arco. Como as suas mãos
também eram parecidas, finas com dedos longos que se
afunilavam em unhas ovais. Como se o tempo avançasse
rapidamente algumas décadas à frente, Hiromi poderia ser um
retrato de Penny gerado pela idade, um retrato de Mika — porque
o sangue nunca mente. Mika soube o momento em que Hiromi
percebeu. Os lábios da mãe afastaram-se. Os seus olhos negros
de botão humedeceram-se. Ela não conseguia parar de olhar
especada para Penny.
Para a sua neta.
— Isto é mesmo incrível! Pensei que estava num cruzeiro —
disse Penny, totalmente desinibida. Porque é que não haveria de
estar? Penny estava habituada a ser amada, a que os outros a
amassem em troca do seu amor. Não sabia que Hiromi não queria
que Mika a tivesse tido, não sabia que ao invés de «bebé» ou
«ela», Hiromi tratava Penny por «isso».
— Cruzeiro? — As sobrancelhas de Hiromi, negras como um
corvo, sulcaram-se. — Nunca andei em cruzeiro nenhum.
— Ei, miúda — disse Thomas, chamando Penny suavemente de
volta para junto dele.
O estômago de Mika caiu-lhe aos pés, um elevador com os
cabos cortados.
— Mãe. — Ela não conseguia pensar em nada para dizer. —
Como é que soubeste que eu estava aqui?
— Segui-te. Não tens atendido os meus telefonemas. Estava
preocupada. O que é que se está a passar? — Os olhos de
Hiromi caíram sobre os cartões de visita na mesa. Depois na faixa
por cima da mesa. GALERIA MIKA SUZUKI. — Foi nisto que gastaste o
dinheiro que te dei? — perguntou ela, a gesticular para a galeria,
com o braço a englobar a arte terrível. — Devias era andar à
procura de emprego.
Mika viu a testa de Thomas sulcar-se de confusão. Viu o sorriso
de Penny a dissolver-se. Viu as perguntas a formarem-se nos
olhos deles.
— Okāsan — disse Mika, avançando, de mão estendida para
guiar a mãe para longe. — Vamos falar lá fora.
Hiromi esquivou-se de Mika.
— O que é que ele está a fazer aqui? Pensei que tinhas
acabado com ele.
Ela olhou para Leif, com o rosto contorcido como se estivesse a
olhar para um prato de comida de que não gostava.
Mika esfregou a testa. Sentindo as peças a tombarem à sua
volta. Como é que conseguiria apanhá-las a todas só com duas
mãos?
— E acabámos. Mas…
Nesse momento, os olhos claros de Thomas inflamaram-se.
— Estamos a resolver as coisas — interveio Leif, tentando
ajudar da pior maneira possível.
Hiromi fungou. O som que fez dizia tudo.
— E esta aqui, quem é?
Agitou uma mão em direção a Penny, e pareceu abater-se sobre
a filha de Mika como um golpe físico. Penny recuou.
— Mi-chan? — insistiu Hiromi.
Ela sabia exatamente quem era Penny. Era inconfundível. Mas
este era o método eficiente de Hiromi. Recusar-se a reconhecer
que Mika tivera um bebé. Empunhava as palavras dela como uma
tesoura de jardinagem. Podavam e reduziam Mika a um botão de
flor.
— Mika? — pressionou Thomas.
Mas Mika não tinha uma resposta. Não conseguia responder.
Perante a perspetiva de mentir novamente ou dizer a verdade, a
mente de Mika parou. O seu mundo tinha-se descontrolado. O frio
espalhou-se através dela, pelos pés, pelas mãos, pelos ossos.
Por todo o lado. Ela estava enregelada.
Thomas aclarou a garganta.
— Esta é a Penny. A Mika é a mãe biológica dela. — Fez uma
pausa, pôs um braço à volta de Penny, puxou-a para junto de si.
— Parece que a senhora e a sua filha precisam de falar e acho
que devíamos deixar-vos fazer isso mesmo.
Thomas moveu-se para se irem embora, mas Penny separou-se
do pai e aproximou-se de Mika.
— À procura de emprego? Porque é que haverias de estar à
procura de emprego? Tu pediste demissão para abrires a galeria.
Este é o teu emprego — disse Penny, de sobrolho franzido. —
Estou mesmo confusa. Disseste que pediste um empréstimo para
a galeria. Mas pediste dinheiro emprestado aos teus pais?
Mentiste sobre isso? Porque é que haverias de mentir sobre uma
coisa dessas?
A voz falhou-lhe, suplicante.
Os ombros de Mika estavam curvados com o peso, agora que
fora apanhada pelo passado. Sentia-se arrependida de tanta
coisa naquele momento. Sob o escrutínio de Penny, que mais
poderia ela senão dizer a verdade?
— Não pedi demissão — disse ela num sussurro. — Fui
despedida. — Penny ficou imóvel, mas o seu rosto estava aberto,
disposto, a querer que tudo aquilo fosse um mal-entendido. Mika
aclarou a garganta. — Pedi dinheiro emprestado aos meus pais
para pagar as contas.
Penny abanou a cabeça.
— Continuo sem perceber.
Mika esfregou os lábios um no outro.
— Hum… Eu não te disse a verdade sobre muitas coisas,
admito. Não tenho um curso de História de Arte. Mal acabei a
faculdade com um diploma em Gestão, e demorei oito anos.
Desde então, tenho andado a saltar de emprego em emprego. A
galeria é do Stanley, ele arrenda o espaço ao Leif, emprestaram-
mo por hoje. E eu e o Leif não somos um casal. Já fomos, mas
acabámos há um ano. — Mika abriu as mãos, sorriu impotente
para Penny. — Não consigo agarrar-me a nada.
— Mika — disse Leif suavemente, com tristeza.
— Então és uma mentirosa? — bufou Penny, com os olhos em
chamas.
Thomas, Penny, Leif e Hiromi olharam todos para Mika, e ela
olhou para o lado, indisposta. Não conseguia dizê-lo em voz alta,
por isso, baixou o queixo numa confirmação silenciosa. Sim, sou
uma mentirosa.
— Anda lá, miúda — disse Thomas. — Acho que já não temos
mais nada a fazer por aqui.
Mika levantou os olhos enquanto Thomas levava Penny, a
aconchegá-la debaixo do braço outra vez.
— Porque é que ela faria isso? — sussurrou Penny ao pai. Uma
lágrima escorria-lhe pela bochecha abaixo.
— Não sei — disse Thomas. — Mas vamos voltar para o hotel.
Conversamos melhor lá. — Thomas estabeleceu contacto visual
com Mika. Ele acenou uma vez com a cabeça, olhos exigentes e
imperdoáveis, um conjunto de portas fechadas. — Adeus, Mika.
Penny deixou o pai levá-la embora, e Mika ficou lá, enraizada no
local. A vê-los a sair da galeria, a sair da sua vida. No dia em que
ela saiu do hospital depois de ter tido Penny, uma enfermeira
levara-a para fora numa cadeira de rodas, depositando-a no
banco do lado de fora da maternidade, Hana ao lado dela com as
suas mochilas. Ficaram sentadas durante um tempo. Mika a olhar
para o espaço, a fletir as mãos vazias. Médicos e enfermeiras iam
e vinham. Uma mulher que acabara de ser mãe saiu, com o bebé
no carrinho com balões amarrados à pega. O pai estacionou o
carro junto ao passeio e ajudou-os suavemente a entrar na
viatura.
Toda a gente simplesmente a tratar das suas vidas. Nada para
ver aqui. O mundo deles continuava a girar, enquanto o de Mika
tinha parado. Ela tinha estado grávida, dera à luz um ser vivo e
maravilhoso, pegara nele ao colo durante algumas horas
preciosas e agora o bebé tinha-se ido embora. E Mika ficou sem
lembranças do que tinha sido, exceto algumas cólicas e
hemorragias.
«Se não nos despacharmos, vamos perder o último autocarro»,
insistira Hana gentilmente, a voz dela uma ténue vibração. Uma
rajada de vento despenteou-lhe o cabelo. A luz vazou do céu.
«Sim, está bem», murmurara Mika.
Agora, todos à sua volta eram pessoas novamente. A ver as
obras de arte comose nada disto estivesse a acontecer num
canto da galeria. Como se o coração de Mika não estivesse a
despedaçar-se de novo. Concentrou-se em Hiromi. Embora já
devesse ter sido arrancado à força, ainda assim, o instinto natural
de Mika continuava a ser procurar a mãe.
Hiromi abriu a boca e produziu um estalido com a língua.
— Mi-chan — disse ela com tanta desilusão que fez Mika
perder-se ainda mais nas profundezas de si mesma, num espaço
para onde ninguém a podia seguir.
Alguém lhe apertou o ombro, Leif provavelmente, mas Mika não
o sentiu através de todas as camadas de dor. Mika queria gritar.
Queria correr atrás de Penny, agarrar-se a ela como uma hera.
Mas Mika não se mexeu um centímetro. Não produziu nenhum
som. Fez o que lhe foi ensinado. Aguentar a dor. Permanecer em
silêncio. Não fazer uma cena.
 
ADOÇÃO NA AMÉRICA
Gabinete Nacional
56544 W 57th Ave. Suite 111
Topeka, KS 66546
(800) 555-7794
 
Querida Mika,
 
Tentei ligar, mas não consegui falar contigo. A Caroline Calvin
faleceu. Tenho a certeza de que isto é difícil para ti. Quero
assegurar-te de que a Penelope está nas melhores mãos com
o Thomas. Eles têm muita família alargada a apoiá-los nesta
altura. Lembras-te de ver fotografias dos pais da Caroline?
Eles vivem na zona. Por favor, liga-me se precisares de
alguma coisa ou se só quiseres falar. Eu estou aqui.
 
 
Atenciosamente,
 
Monica Pearson
Coordenadora de Adoções
 
P.S. Incluí o panfleto da funerária, que continha algumas
palavras adoráveis do Thomas sobre a Penny.
 
Caroline «Linney» Calvin 1972–2016
Dayton, Ohio
 
Caroline Abigail Calvin faleceu no dia 21 de janeiro de
2016. Caroline nasceu a 19 de setembro de 1972 e foi
criada em Dayton, no Ohio. Casou-se com seu
namorado de infância, Thomas Preston Calvin, um
advogado especializado em direitos de autor, em maio
de 2000. Trabalhou como enfermeira pediátrica e era
conhecida pela sua empatia para com os doentes. Os
pacientes comentavam frequentemente a sua bondade
e a sua disponibilidade para se sentar e conversar
durante algum tempo. «Ela tinha sempre tempo para
nós», disse a mãe de um paciente.
 
Caroline sonhou ter uma família e realizou esse sonho
quando ela e Thomas adotaram a sua filha, Penelope,
em 2005. Depois disso, Caroline deixou o trabalho como
enfermeira para criar Penny. Ao saber do seu
diagnóstico de cancro terminal, Thomas pediu uma
licença no emprego. Os três viajaram, mas passaram a
maior parte do tempo com a família, que era o mais
importante para Caroline.
 
De Thomas: A Caroline adorava um hambúrguer bem
passado, fazer mantas de retalhos, jardinagem e
poesia. Também era obcecada pela caça às pechinchas
— nunca perdia um bom negócio. Mas acima de tudo,
ela amava a nossa filha, Penelope, que a fez sorrir até
ao fim. Desde o momento em que adotámos a Penny,
sentimos instantaneamente mais do que uma vida
inteira de amor; pelo menos, foi o que a Caroline
sempre disse. Não consigo contar o número de vezes
que ela olhava para mim e dizia: «Estou tão feliz
agora.» Nos seus últimos momentos, a Caroline
garantiu-me que o seu coração estava cheio. Nas suas
últimas palavras, desejou que a Penny e qualquer outra
pessoa que chorasse por ela soubessem que,
independentemente de tudo o resto, o amor regressa
sempre.
M
CAPÍTULO 16
ika estava em casa, na sua cama, a dormir — a sonhar.
Tinha 10 anos, estava vestida com um quimono e num palco,
uma única luz a iluminá-la. O auditório tinha assentos
vermelhos almofadados e estava vazio, com exceção dos dois
lugares na primeira fila ocupados pelos pais dela. A parte de trás
do auditório explodira, estilhaços de madeira pelo ar, como se
uma bomba tivesse rebentado. Não uma bomba, mas uma
tempestade. Um tornado e, apanhados no seu turbilhão, estavam
tartes de maçã, copos de plástico vermelho, bisnagas de tinta,
pedaços de cerâmica partidos. A boca de Mika abriu-se num grito,
e ela sentiu-se a cair pelo túnel que era a própria garganta.
O sonho metamorfoseou-se na realidade, numa memória.
Estava de volta ao apartamento de Peter, na festa de Marcus.
Corpos amontoados no pequeno espaço. Mark Morrison tinha a
tocar na aparelhagem Return of the Mack. Mika encostou-se à
parede, a ver Marcus do outro lado da sala a dançar e a roçar-se
numa licenciada. Tinha os olhos e o corpo pesados. Mika pensava
que era de tristeza, mas, mais tarde, perceberia que era de outra
coisa. Pestanejou, com as pestanas lentas e a descaírem.
Quando abriu os olhos, Peter estava mesmo à sua frente.
«Olá», disse ele com um sorriso de lobo. «Trouxe-te outra
bebida.»
Ele passara a noite a encher-lhe o copo. Levou-lhe o copo à
boca.
Mika virou a cabeça, e a cerveja escorreu-lhe pela face,
ensopando-lhe a parte da frente da camisola preta.
«Não me sinto bem», disse.
Peter pôs-lhe um braço à volta da cintura, prometendo levá-la
para um lugar calmo. Ela tropeçou e encostou-se a ele. Depois,
estavam no quarto dele. Ele deitou Mika, e ela observou através
de uma névoa enquanto ele fechava a porta. Trancou-a. Os
ruídos da festa ficaram abafados. Ela sentiu-se a apagar. E
acordou com Peter em cima dela, a mantê-la presa ao colchão.
Tentou empurrá-lo, mas os seus movimentos eram lentos, lama
a escorregar por uma parede.
«Não», disse ela, depois mais alto: «Não.»
A mão dele cheirou-lhe a terebintina quando a manteve sobre a
boca dela e lhe comprimiu as faces, provocando lágrimas
quentes. Tudo o que ela podia fazer era observá-lo através de
uma névoa aquosa, o rosto dele fragmentado, uma pintura
cubista. Não Marcus, mas Peter em cima dela. Não estava certo.
Não era aquilo que ela queria. Mika viu as horas no relógio na
mesa de cabeceira dele, os minutos a contar: 00:01, 00:02, 00:03,
a hora exata em que Penny foi concebida. Então os olhos dela
reviraram-se para o teto. A cama rangia como se estivesse a
partir-se… pedaços de Mika a caírem. Num único momento, a sua
vida bifurcou-se, fatias iguais de antes e depois.
Mika acordou sobressaltada, a arfar. Os dedos dela dirigiram-se
à garganta, esvoaçaram para o pulso a martelar. A memória fugiu
e ela fechou os olhos. Respirou profunda e pesadamente. Estava
a salvo. Tinha acabado. Os pensamentos misturavam-se, a
realidade apoderava-se do miasma dos sonhos e memórias —
pesadelos. Penny. Thomas. A galeria de arte. Um novo cordão de
pânico enrolado à volta dos pulmões e puxado com força. O voo
deles parte às 11h15. Pode ser que ainda os apanhe no
aeroporto. Vestiu-se, pegando em calças de fato de treino e numa
camisola que estava atirada para o chão. Quando saiu do quarto,
Hana estava na cozinha. Mika não disse uma palavra enquanto
procurava as chaves freneticamente.
— Bem, bom dia para ti também — disse Hana, enquanto bebia
uma chávena de café.
Mika não parou de procurar. Debaixo de uma pilha de papéis.
Nas almofadas do sofá. Onde estava a merda das chaves dela? O
queixo estremeceu-lhe.
— A Penny e o Thomas vão-se embora hoje, e eu lixei tudo à
grande. Preciso de ir ao aeroporto e tentar encontrá-los, mas não
consigo encontrar a merda das chaves.
Mika esfregou com força as palmas das mãos nos olhos até ver
manchas brancas.
— Estás a falar disto? — Foi quando reparou que Hana não era
a única pessoa na cozinha. Uma rapariga magra, pequenita, de
cabelo castanho, tinha a mão levantada, com as chaves
penduradas na ponta dos dedos, metal a cintilar à luz do sol da
manhã. — Sou a Josephine, já agora — disse, sorrindo,
mostrando uma covinha na bochecha esquerda. Hana também
sorriu.
— Obrigada. — Mika tirou-lhe as chaves e enfiou os pés nos
sapatos junto à porta da rua.
— Queres que te leve? — perguntou Hana atrás de Mika,
seguindo-a até à porta.
— Não. — Mika acenou com uma mão. — Está tudo bem. Vai
correr tudo bem.
A viagem até ao aeroporto passou num borrão. A serpentear por
entre o trânsito, algumas buzinadelas. O coração a bater como se
ela fosse uma pessoa a afogar-se no oceano. Estacionou na faixa
de largada de passageiros e saltou do carro. Por todo o lado havia
sinais onde se lia «SÓ CARGAS E DESCARGAS». Um segurança com
um colete refletoramarelo soprou no apito.
— Minha senhora, não pode deixar o seu carro aqui.
Mika não ouviu. Demasiado empenhada em procurar no exterior
uma madeixa de cabelo escuro, um homem alto com um par de
olhos rabugentos. Eles não estavam no exterior. Atravessou a
correr as portas de vidro duplo e lembrou-se vagamente da
companhia aérea em que iam viajar. Alaska.
Correu para a bilheteira, perscrutou as filas. Nada de Penny.
Nada de Thomas. Que horas eram? Encontrou um relógio digital
atrás do balcão, 10h35 da manhã. Correu para o quadro de
partidas, mas não se lembrava do número do voo deles. Porém,
conseguiu ligar os pontos com o voo e o destino. Lá estava ele.
Em letras maiúsculas: A EMBARCAR. Uma mão segurou-lhe o braço
e puxou-a.
— Minha senhora, não pode deixar o seu carro.
Mika soltou o braço com um safanão. Sentia o peito apertado. O
que estava a acontecer nesse momento parecia inevitável. Um
curso intensivo de acontecimentos que se iriam desenrolar
dezasseis anos no futuro. Ela não podia deixar de pensar no
momento em que viu a Sra. Pearson a ir-se embora do hospital
com Penny. As suas mãos a agarrar no embrulho minúsculo. O
bebé dela. E pronto. Penny fora-se embora. Outra vez.
Despojada, os seus joelhos dobraram-se. Uma maré azul fria
desabou sobre ela.
— Penny — sussurrou.
— A sério, minha senhora — disse o segurança. — Vou mandar
rebocar-lhe o carro. Depois vou ter de chamar a polícia. — Mika
permaneceu parada, empedernida. O seu corpo não respondia. O
segurança aproximou-se dela. Acenou-lhe com uma mão em
frente à cara. — Venha lá. Não me obrigue a chamar a polícia. O
meu turno começou mesmo agora. Se voltar já para o seu carro,
vamos esquecer que isto tudo aconteceu.
Por fim, Mika assentiu, olhando para o vazio, e cambaleou até
ao carro, sentindo o espírito a separar-se do corpo. Era em tudo
semelhante ao momento em que se viera embora do apartamento
de Peter na manhã seguinte. Ele estava a dormir, e Mika acordou
com o braço dele estendido sobre ela. Libertou-se do abraço dele,
sentou-se na berma da cama e examinou a sua metade inferior —
os danos. Um animal a avaliar-se a si mesmo — a ver se estava
demasiado ferido para fugir. Ainda tinha a saia vestida, mas os
collants e a roupa interior tinham desaparecido. As suas coxas
estavam doridas, negras e roxas com as marcas de impressões
digitais. Mika pôs-se de pé e vacilou, mas conseguiu ir em bicos
de pés até à porta. O coração batia a cada pequeno ruído. Com
medo de o acordar. Perséfone a esquivar-se a Cérbero.
Inalou o seu primeiro fôlego profundo quando saiu do edifício.
Depois, caminhou aos tropeções pelo campus. Collants desfeitos.
Pele desfeita. Alma desfeita. O seu corpo um pequeno
apocalipse. Lembrava-se do resto de forma abstrata. Uma linha
amarela recortada de luz do sol, pálida e doente. Vento tão agudo
que ondulava a relva curta e lhe queimava as faces, chicoteando-
lhe as coxas nuas. Dois borrões negros — corvos a lutar por uma
casca de melancia que alguém deitara fora. Um lampejo azul de
uma luz no cimo de um telefone especial. Se Mika pegasse no
auscultador, alguém iria escoltá-la até um lugar seguro.
Considerou essa hipótese, mas descartou a ideia tão facilmente
como um invólucro de pastilha elástica. Quantos parceiros
sexuais já teve? Era o que a polícia iria perguntar, embora não
fosse da conta de ninguém. E Mika diria que haviam sido oito,
dois dos quais ela não se lembrava muito bem. Mas lembrava-se
de Peter. Lembrava-se de ter dito que não. Mas quem iria
acreditar nela? Uma rapariga que desperdiçava a sua vida a
pintar, passava as noites em festas de repúblicas, e que uma vez
fez um broche a um tipo num jardim nas traseiras. Desde quando
é que a decisão de uma mulher em ter sexo se tornara um
barómetro para a honestidade? Mika não sabia a resposta. Só
sabia que assim era.
A buzina de um carro soou e Mika sobressaltou-se. Estava de
volta ao aeroporto, o tipo com o colete refletor amarelo a examiná-
la do passeio. «Ande lá», movimentou-se a boca dele enquanto
apontava para a saída.
Ela avançou o suficiente para estacionar no parque onde se
pode aguardar que os passageiros telefonem a anunciar a sua
chegada, depois bateu no volante antes de se deixar cair sobre
ele. Estava outra vez perdida. Perdida e sozinha.
Como é que tudo corria sempre tão mal?
Reclinou-se no banco. Mentir a Penny, a intenção tinha sido boa.
Mas isso não importava. O que importava era que Penny tinha
ficado magoada. Isso era a última coisa que Mika queria. Não era
assim que tudo aquilo tinha começado? Tudo o que ela quisera
fora proteger Penny da verdade, de saber sobre Peter, sobre si
própria, de saber que o mundo podia ser um lugar tão terrível e
cruel. Mika quisera mostrar a Penny que a adoção tinha valido a
pena para ambas. Penny fora entregue uma família amorosa.
Mika realizara os seus sonhos.
Baixou as janelas do carro, deixou a manhã arrefecer-lhe as
lágrimas no rosto. Sentiu o cheiro da chuva e da relva
recentemente cortada. Depois tirou o telemóvel, e antes que se
apercebesse do que estava a fazer, telefonou a Penny.
«Ligou para a Penny. Deixe uma mensagem», atendeu o voice
mail de Penny. Ela já devia estar no ar.
— Penny — disse Mika a custo, com as cordas vocais
contraídas. — Sou eu. Claro que sabes que sou eu. Peço imensa
desculpa. Imensa desculpa — repetiu. Depois fez uma pausa, a
recompor-se. — Devo-te uma explicação. Quando me
contactaste, depois de teres visto o meu Instagram… — Ela
agarrou no banco, e o couro transformou-se em flanela, a
sensação áspera do cobertor hospitalar de Penny debaixo das
mãos quando pegou no seu bebé ao colo junto a si e lhe deu
biberão. Mika continuou a falar, deixando que a verdade se
soubesse. A contar sobre como tinha ficado tão surpreendida
quando Penny lhe telefonara. Explicou que tinha avaliado a sua
vida e percebera que não tinha nada para mostrar. Disse que tudo
lhe parecera uma bola de neve a partir daquele momento. Passou
um minuto que mais pareceu uma hora, e Mika acabou com outro
pedido de desculpa. Estava preparada para passar a vida a pedir
desculpa. — Não sei em que é que estava a pensar. Eu só…
Acho que só queria que te orgulhasses de mim. Por favor, liga-
me. Por favor.
Tocou no botão. Uma voz incorpórea ordenou-lhe que
carregasse na tecla 1 para enviar a mensagem. Mika hesitou; a
verdade profana parecia mais arriscada do que as mentiras.
Aproximou o dedo do botão, uma faca por cima de uma ferida
pronta para a lancetar. Carregou no 1 e deixou-se cair.
Estava feito.
Uma brisa despenteou-lhe o cabelo, e ela afastou-o dos olhos.
Permaneceu sentada durante mais algum tempo, a observar o
céu cinzento, a ouvir o som dos aviões que partiam, a sentir-se
como se tivesse viajado no tempo.
Mandou uma mensagem a Hana. Preciso de ti. Hana
respondeu quase instantaneamente. Estou aqui. Estou à tua
espera. A Josephine já se foi. Vem para casa.
Mika meteu a primeira e foi para casa. Para junto de Hana, para
um lugar onde Mika sempre se sentira totalmente amada. Como
prometido, Hana estava à espera, de braços abertos, e Mika caiu
neles, encontrando conforto no seu ombro ossudo. Elas tinham a
mesma forma de corpo e encaixavam-se perfeitamente —
preenchendo todos os lugares ocos uma da outra. Isto era o que
ela desejava de Hiromi. Mas a mãe era demasiado dura enquanto
pessoa. Olhos duros, mãos duras e calejadas, apenas dureza.
Talvez essa fosse a chave para a paternidade: não se podia evitar
que os filhos se magoassem, mas podia-se dar-lhes um lugar
suave onde aterrarem.
Hana levou Mika para dentro e sentou-a no sofá.
— Vá lá, conta-me tudo. Vou fazer-te uma omelete.
— Não temos ovos — disse Mika e começou a chorar
novamente. Puxou uma manta para junto de si e assoou o nariz
ao tecido macio.
Hana afastou as mãos de Mika do seu rosto e segurou-a,
afagando-lhe o cabelo.
— Está tudo bem — disse ela repetidamente até Mika respirar
um pouco mais facilmente. — Senta-te. Vou buscar algo para te
acalmar… e alguns lenços de papel — disse Hana. Vinte minutos
depois, Hana pousou uma tigelade sopa de massa nas mãos de
Mika. Esperou que a amiga ingerisse algumas colheradas e
depois encorajou-a a beber o caldo. — Pronto — disse Hana. —
Conta-me lá o que aconteceu.
Mika contou a Hana como tudo lhe tinha explodido na cara.
Disse-lhe que Hiromi aparecera na inauguração da exposição e
desmascarara Mika. Que perseguira Penny e Thomas até ao
aeroporto e que deixara uma mensagem de voz incoerente.
— Achas que eles vão voltar a contactar-te? — perguntou Hana.
Mika encolheu os ombros, resistindo à vontade de olhar para o
telemóvel e ver se Penny tinha ligado ou mandado uma
mensagem. Claro que não haveria nada tão cedo. Penny e
Thomas estavam no ar naquele momento.
— Sinceramente, não tenho a certeza. Entre a verdade e a
mentira, não sei o que é melhor.
Ela inclinou a tigela de sopa devagar entre as palmas das mãos.
Hana comprimiu os lábios.
— Queres que cancele a digressão com os Pearl Jam? — Hana
deveria partir dentro de três semanas.
— O quê? Não — disse Mika, esfregando a pele por baixo do
nariz. — Não sejas tonta. Tens mesmo de ir. Não há necessidade
de ficarmos as duas tristonhas.
— Mas precisas de mim…
— Não. Claro que não. Proíbo-te de sequer pensares nisso. —
Mika pôs a tigela na mesa de centro. A dor continuava a passar-
lhe pelo abdómen, mas ignorou-a. — Agora, chega de falar de
mim. Fala-me da Josephine.
Um sorriso atravessou o rosto de Hana, juntamente com um
rubor furioso.
— Não há muito a dizer. Conheci-a ontem à noite no Sheila’s:
um bar gay hipster e minúsculo. — Ela é artista. Faz coisas com
vários meios e tem umas mãos que nem dá para acreditar.
Hana mexeu os dedos.
— Demasiada informação.
Mika acenou com uma mão a pedir para parar, com um sorriso a
surgir-lhe no rosto.
— Estou só a dizer. — Hana encolheu os ombros. — Não sei,
toda esta limpeza aqui em casa, foi tudo um ponto de viragem
para mim, acho eu.
— Estás feliz — disse Mika.
— Estou feliz — disse Hana.
— Fico contente por isso — disse Mika a Hana. — Adoro-te,
miúda.
— Adoro-te ainda mais, miúda — disse Hana; depois
acrescentou calmamente: — Se não quiseres que eu vá, não vou.
Mika abanou a cabeça, mas não conseguiu formar as palavras
para dizer que não porque a garganta deu um nó. Sabia que Hana
estava a falar a sério. A amiga ficaria. E o coração de Mika
ameaçou explodir com essa simples promessa.
M
CAPÍTULO 17
ika não saiu de casa. Durante setenta e duas horas,
sobreviveu à base de comida tailandesa, Coca-Cola Diet e
um fluxo constante de Lei & Ordem: Unidade Especial.
Sempre que pestanejava, via a galeria a abrir-se no interior das
pálpebras. Pestanejo. O rosto de Penny quando Hiromi estendeu
uma mão e perguntou «Quem é esta?». Pestanejo. Thomas a
envolver Penny debaixo do braço enquanto ela enfiava o queixo
no peito dele — triste, desanimada. Pestanejo. Penny a inclinar a
cabeça para o pai, lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces
enquanto lhe perguntava porquê, porque é que Mika tinha
mentido? As imagens, a dor, nunca entorpecidas.
Verificava o telemóvel e o e-mail a cada cinco minutos, sem
mensagens de Penny ou de Thomas. Tentou tirar os dois da
cabeça, mas encontrava os seus pensamentos à deriva em
direção a ambos, se não tivesse cuidado. Sentia falta do sorriso
de Penny, da sua energia fulgurante. E também sentia falta de
Thomas, da sua vibração rabugenta encantadora, da forma como
ele amava Penny. Um navio tinha chegado à costa que ela
partilhara com Penny e Thomas. Tinha vindo buscar Mika, levá-la
de volta ao exílio, onde ela pertencia.
Hana apareceu à entrada do seu quarto, a pôr uma argola
dourada na orelha. Ia sair com Josephine outra vez. Pela terceira
vez nessa semana.
— Mais Unidade Especial?
Mika remexeu-se no sofá. Tinha vestida uma t-shirt velha dos
Grateful Dead, que surripiara a Leif, e um par de calças de fato de
treino largas. O telemóvel estava perto na mesa de centro, entre o
molho de recipientes de comida de takeaway, latas de refrigerante
e pacotes de batatas fritas — na noite anterior, Mika batera no
fundo do poço e lanchara as bolas de milho que estavam
refundidas na parte de trás do armário, uma relíquia do antigo
dono da casa.
— Sim. Décima primeira temporada, o episódio em que o
Stabler e a Benson suspeitam que um homem rico que mantém
uma relação com uma jovem cometeu um homicídio quando o
corpo de uma rapariga é encontrado enfiado dentro de uma mala.
— Ah, um conto tão antigo como o tempo. — Hana enfiou o pó
compacto na mala. — Tens a certeza de que não queres vir
connosco?
— Ui — disse Mika. — Nem sonharia estragar-te uma saída.
— Então, este é o teu plano para esta noite, televisão e
takeaway?
Hana pegou num recipiente da mesa de centro e cheirou-o.
Mika rebolou para se sentar e olhou para Hana.
— Sim, e contemplar um monte de coisas que me fazem
perceber a banalidade da minha própria existência.
Hana pousou o recipiente de comida.
— Bem, enquanto estás nessa espiral descendente, achas que
podias comer alguma coisa que contenha um vegetal?
— O pad thai tem legumes — disse Mika, ligeiramente ofendida.
Hana fungou e abriu a porta.
— Vou passar a noite em casa da Josephine. Vejo-te de manhã.
Mika virou os dois polegares para cima. Ouviu o carro de Hana a
afastar-se e enrolou-se para o lado. O telemóvel apitou com uma
mensagem recebida, e o seu coração acelerou. A esperança era
assim, um balão de hélio embrenhado nos ramos, recusando-se a
ficar em baixo. Das últimas vezes que isso aconteceu, tinha sido
Hiromi ou Leif ou Charlie ou Hayato. Ela era uma declinadora de
oportunidades iguais, a deslizar em cada uma delas. Mesmo
assim, pegou no telemóvel, suspensa à beira da desilusão.
Penny.
O nome da filha iluminou o ecrã. Ouvi a tua mensagem,
escrevera ela. Quando é que podemos falar?
Mika sentou-se de um salto e desligou a televisão. Agora
mesmo?, respondeu a Penny. Pôs-se de pé e começou a andar
para trás e para a frente, com o telemóvel na mão. Cinco
agonizantes minutos depois, o aparelho começou a tocar. Ela
atendeu de imediato.
— Olá — disse Mika.
— Olá — disse Penny, não no seu estado de animação habitual.
Fora ela quem provocara aquilo. Mika tinha esmorecido a energia
de Penny. Tanto do sentido de valor de Mika se prendia ao que a
filha sentia sobre a vida, sobre ela. — Então…
— Então, ouviste a minha mensagem. — Mika manteve a voz
calma, leve. Como se dissesse: Vá lá, castiga-me, bate-me se
quiseres, eu aguento.
— Sim. Ouvi-a assim que chegámos a casa. — Há três dias?
Penny tinha ouvido isso há três dias? — Demorei algum tempo a
entender tudo o que estava a sentir.
Formou-se um nó na garganta de Mika.
— Eu compreendo.
— Eu não compreendo — disse Penny bruscamente.
— Está bem — disse Mika. Manteve-se de pé e caminhou até à
cozinha, tirou um copo do armário e encheu-o com água da
torneira. Quando é que tinha bebido água pela última vez? Com o
telemóvel enfiado entre o ombro e o ouvido, perguntou: — O que
é que não compreendes?
— Porque é que não ficaste comigo?
O desespero afiava o gume das palavras dela.
Mika assustou-se, não esperava essa pergunta. Mas supunha
que elas tinham estado a caminhar nessa direção. Essa pergunta
tinha estado sempre à margem da relação entre ela e Penny,
como duas mãos a afastá-la.
— Não podia — respondeu, saindo da cozinha para se sentar na
beira do sofá, a pensar no quão impreparada estava na época.
Mika lembrou-se das publicações do Instagram que tinha visto.
Todas aquelas mulheres, mães jovens com bebés. As secções de
comentários repletas de encorajamentos aparentemente positivos.
Tu consegues! És uma mamã forte! Procura dentro de ti!
Encorajando-se mutuamente a ultrapassarem os seus limites. A
mensagem infiltrava-se. Uma boa mãe não abandonaria os filhos.
Não abandonaria o seu dever biológico. Se ela o fizera, devia
haver algo de errado com ela. Ou com a sua criança. Penny
sentia-se assim? Que o ADN dela tinha algum problema?
Durante um minuto inteiro, Penny permaneceu em silêncio.
— Querias-me?
— Eu queria-te mesmo. — Mika inspirou. Expirou. Ela queria
Penny, apesar de Peter. Apesar de Hiromi.Apesar do
descontentamento silencioso da mãe. — Eu queria-te. Mas queria
coisas para ti. Coisas melhores. Eu queria que tivesses uma casa
grande, uma família, pais, primos e avós. Queria que fosses para
uma boa escola, com material novo e roupas novas. Queria que
tivesses tudo o que eu nunca tive e nunca te poderia dar. Isso era
o quanto eu te queria. — Para Mika, dar Penny para adoção tinha
sido o derradeiro ato de amor. Penny merecia melhor. Penny
permaneceu em silêncio do outro lado da linha, mas Mika
conseguia ouvir a sua respiração, cada inspiração e expiração
como um metrónomo. — Eu sei que tudo isto é altamente marado.
Eu menti-te, e vou arrepender-me para sempre. — Forçou-se a
continuar. — Se tu… Se conseguires encontrar uma maneira de
me deixares voltar à tua vida, prometo que nunca mais te vou
mentir.
O silêncio empedernido continuou durante outra batida.
— Foi por teres vergonha de mim? — perguntou Penny
finalmente.
Mika endireitou-se.
— Não! — respondeu de imediato. Como podia Penny pensar
isso? — É o oposto. Eu não queria que tu tivesses vergonha de
mim. — Mika sentiu o aperto das obrigações da maternidade. Ser
suficientemente forte. Ser suficientemente inteligente. Ser o
suficiente. Mas não conseguia transmitir isso a Penny. A maneira
como Mika sentia que faltava algo dentro dela, como se sentia em
ruínas. — A minha vida não é bonita. É um verdadeiro festival de
merda. — Isso fez Penny soltar uma gargalhada suave. Mika
alinhou. — Quer dizer, eu tenho um saco de pepitas de chocolate
aberto na bancada para poder esticar o braço sempre que passo
por lá e sacar uma mão-cheia.
Penny riu-se novamente, mas ficou sóbria rapidamente e triste,
quase melancólica.
— Houve alguma coisa que tivesse sido verdadeira?
A culpa e a tristeza correram através de Mika como uma matilha
de cães de caça. Tinha sido tudo real para Mika. Os abraços. Os
sentimentos calorosos. O desejo. O amor. Isso era tudo verdade.
Mas ela via agora o que tinha feito. Ao mentir, Mika esvaziara a
relação de ambas de sentido, pelo menos para Penny.
— Sinceramente, confundi as coisas, misturei a verdade com a
ficção. A Hana é a minha melhor amiga, e ela adora roller derby.
Mas eu não vivo sozinha. Vivo com a Hana, porque não tenho
dinheiro para ter uma casa, e ela é uma acumuladora terrível, ou
pelo menos, era… até está melhor, na verdade. O Leif é o meu
ex-namorado. Ele não é formado em Bioquímica, mas tem uma
paixão por essa área; aplicou essa paixão ao cultivo de marijuana.
É dono de uma loja em Portland. Usa principalmente cânhamo e
acredita em não ter conta bancária.
— Na verdade, isso agora faz tudo muito sentido. — A voz de
Penny suavizou-se.
— Quando namorávamos, ele usava um cristal como
desodorizante. — Mika fez uma pausa. — Não funcionava —
disse ela, como se estivesse a sussurrar um segredo ao ouvido
da filha. Penny riu-se. Mika reclinou-se e brincou com o cordão
nas suas calças de fato de treino. — Que mais queres saber?
Posso responder a qualquer uma das tuas perguntas.
Penny ficou silenciosa.
— Há uma coisa. — Hesitou. — Eu quis perguntar-te em
Portland, mas nunca me pareceu ser a altura certa.
— Força — disse Mika.
— O meu pai… Quero dizer, o meu pai biológico. Tu… conhece-
lo? Tipo, sabes o nome dele ou algo assim?
Agora foi Mika quem ficou em silêncio. Imaginara contar a
Penny sobre Peter, sobre a violação. Mika estremeceu perante
essa palavra. Violação. Um termo tão feio. Custava-lhe usá-la
para descrever o que lhe aconteceu. Embora o seu corpo se
lembrasse da violência, a sua mente recusava-se a capitular. A
mim, não. Não me pode ter acontecido a mim. Ela não era a única
que tinha dificuldade em usar a palavra. A comunicação social, os
noticiários, todos preferiam agressão sexual. Parecia mais
simpático, mais suave de alguma forma. Uma mulher pode
recuperar de uma agressão, mas pode nunca sobreviver a uma
violação. E, lá no fundo, Mika era assombrada pelas suas inações
naquela noite. O seu «não» pouco firme. A forma como se deixou
ficar deitada, débil. A forma como não conseguiu ser parte ativa
na sua própria salvação. Como poderia ela explicar isso a Penny?
Separara a filha desse acontecimento. Será que ajudava o facto
de, quando Penny nasceu, não ser nada parecida com Peter? Ela
puxou ao lado de Mika. Teria reagido de forma diferente se a pele
de Penny fosse mais clara, os olhos mais redondos e verdes, o
cabelo castanho em vez de preto? Não, pensou Mika com
absoluta certeza. Eu tê-la-ia amado da mesma maneira.
Costumava olhar para a barriga inchada e sussurrar-lhe,
prometer-lhe: Ele nunca te irá conhecer.
— Ainda estás aí? — sondou Penny.
— Estava só a pensar — disse Mika. — Eu… — Engoliu em
seco. Às vezes, ela procurava Peter online. Ele agora era artista
em Nova Iorque, com uma família, e era confuso para Mika como
é que ele poderia ser meigo com outros quando a tinha rasgado
como um pedaço de fruta podre. Ele ainda não tinha feito grande
coisa, mas ganhava a vida, a trabalhar por conta própria e a fazer
a ocasional paisagem. — Há coisas no meu passado das quais
me é difícil falar. — Ocorreu-lhe que Penny também era uma
vítima de Peter. Ambas tinham fardos para carregar. Mas ainda
não precisava de se tornar um fardo para Penny. Um dia, iria
considerar contar a Penny. Porém, antes disso, ia encher a
cabeça de Penny com quão boa ela era, quão lindamente forte,
quão amada.
Penny iria compreender que, embora fosse de lá que vinha, não
era para lá que ia.
— Para já, sabes tudo o que precisas de saber. Sei que não é
justo pedir-te isto, mas vais ter de confiar em mim para te contar
as coisas quando eu estiver pronta e respeitares aquilo de que
ainda não consigo falar.
Mika sentiu isso naquele momento. Uma mudança subtil na sua
relação, a transitar de amizade… para o quê? Não tinha a
certeza. Mas era algo mais. Um reconhecimento de que Penny só
tinha 16 anos e Mika tinha 35. Quase duas décadas de
experiências de vida separavam-nas. Não iria armar-se com
Penny em relação a isso, mas usá-lo-ia para, no mínimo, proteger
a filha.
Ouviu Penny a respirar fundo.
— Está bem — acabou ela por dizer. — Consigo aceitar isso.
Mika suspirou de alívio.
— Um dia, espero que me consigas perdoar — disse ela. —
Imagino que ainda estejas zangada, e não faz mal…
— Estou mesmo — interrompeu Penny. — Mas… não estou
zangada a ponto de nunca mais querer falar contigo. Eu ainda…
Ainda tenho tantas perguntas. Quero confiar em ti, mas não tenho
a certeza se posso.
— Está bem. Precisas de tempo. Consigo aceitar isso — disse
Mika, fazendo eco das palavras de Penny. — Espero que também
consigas perdoar-me por te ter dado para adoção.
Mais valia pôr tudo a limpo.
— Oh — disse Penny. — No que me diz respeito, não há nada a
perdoar. Seria como pedir-te para pedires desculpa por o céu ser
azul, ou por eu ser japonesa, ou por ter nascido mulher. Algumas
coisas simplesmente são como são. Isto faz parte de mim.
Brotaram lágrimas nos olhos de Mika.
— Obrigada — disse ela.
— Sim — disse Penny. Passaram-se alguns segundos. — É
melhor eu ir andando. Já é tarde por aqui.
Mika sentou-se e esfregou a pele por baixo do nariz.
— Claro. Com certeza. Achas que… podemos voltar a falar em
breve?
— Queres ligar-me na semana que vem? — perguntou Penny.
— Sim — respondeu Mika, e tentou não parecer demasiado
ansiosa, demasiado desesperada. Despediram-se. E, depois,
Mika sentou-se durante algum tempo, a rever mentalmente a
conversa delas, e depois a sua própria vida. Depois de Peter,
depois de Penny, não pensara muito no futuro. Não conseguia
imaginar a vida, todas as lindas possibilidades infinitas. Mas
agora… agora Mika dirigiu-se à cozinha e retirou o caixote do lixo
de baixo do lava-loiça. Com um único golpe de braço, varreu o
conteúdo da mesa de centro, despejando-o no caixote do lixo.
Pegou no cobertor debaixo do qual estivera a hibernar e dobrou-o,
pousando-o sobre o apoio do braço do sofá. Feito isto, sentou-se
novamente e olhou para o telemóvel. Para todas as chamadas
perdidas de Hiromi. Não estando ainda preparada parafalar com
a mãe, ligou de volta para o número de telemóvel de outra
pessoa.
Hayato respondeu ao terceiro toque.
— Então, miúda.
— Então — disse Mika alegremente. — Como estás?
— Bem. Estou bem. E tu? — Mika conseguia ouvir como ruído
de fundo uma televisão, a voz de um locutor de noticiário famoso.
— Vou andando. — Mika sorriu. — Estava com esperança de
poder pagar-te uma bebida e falar contigo sobre um emprego.
- Q
CAPÍTULO 18
ual é o teu filme preferido? — perguntou Penny na semana
seguinte. A vontade de dizer algo mais refinado pendeu na
ponta da língua de Mika: Os Condenados de Shawshank, A Lista
de Schindler, O Padrinho. Mas contentou-se com aquele que via
repetidamente com Hana.
— Doidos à Solta — respondeu.
Penny ainda não o tinha visto e viu-o no fim de semana.
— Porque é que é o teu filme preferido? — perguntou ela Mika
na chamada seguinte.
— Não sei. É engraçado, não é? — perguntou Mika. Apoiou-se
na bancada da cozinha. O telemóvel estava encostado ao ouvido.
Tinha acabado de ter a sua primeira entrevista na Nike e ainda
estava de camisa e saia travada, descalça. À frente de bebidas
açucaradas, Mika tinha desabafado com Hayato, contando-lhe
sobre Penny, a adoção, as mentiras e as suas finanças em ruínas;
então, pediu-lhe que a ajudasse a arranjar emprego. Ele ficou feliz
por poder ajudar. E, seguindo o conselho dele, percorreu a página
de carreiras da Nike e candidatou-se ao primeiro cargo para o
qual se qualificava: assistente administrativa de grau II. Hayato
deu uma ajuda a passar a sua candidatura para o topo da pilha.
— Hilariante — concordou Penny.
Mika pensou mais sobre a pergunta de Penny.
— Era uma espécie de fuga para mim. Não tive uma infância
fácil. Os meus pais são muito tradicionais, e não havia muito
espaço para humor na nossa casa.
— Ficaram zangados quando engravidaste de mim? —
perguntou Penny.
— Na verdade, não sei. — O rosto de Hiromi surgiu-lhe na
mente, num lampejo fugaz. Ainda não tinha falado com a mãe. O
que não era invulgar. Elas passavam dias, semanas, até meses,
sem falar uma com a outra. Mas Mika acabava sempre por voltar.
Lembrava-se de Hiromi a ir-se abaixo por causa de um monte de
bananas, pouco depois de se terem mudado para os Estados
Unidos.
«Para de comprar tantas», dissera Shige, a olhar para a fruta
em decomposição na bancada.
«Não consigo», Hiromi respondera. «Não entendo porque é que
elas vêm em tão grandes quantidades. Quem precisa de uma
dúzia de bananas?»
Nunca se partem os cachos no Japão, e Hiromi havia assumido
que era a mesma coisa na América. Decidiu reclamar com o
gerente da loja. Num inglês macarrónico, implorou-lhe que
vendesse quantidades mais pequenas. Ele rira-se e dissera-lhe
que ela própria o podia fazer. Hiromi pensou que ele estava a
gozar com ela. Mas Mika entendera e mostrara à mãe. Foi o que
manteve Mika amarrada a Hiromi. A ideia de que elas poderiam
estar perdidas uma sem a outra.
— A minha mãe ficou desiludida — contava ela agora a Penny.
Fez uma pausa. Sentiu o escárnio da mãe a bater-lhe como o sol
quente do deserto. «O que sabes tu sobre criar um bebé?» —
Muito desapontada.
— Às vezes, isso é pior — disse Penny.
— Sim. — Mika soltou o ar que tinha dentro de si.
Mais tempo passou. Mika teve uma segunda entrevista na Nike.
Penny estava a terminar o seu primeiro ano do secundário. Havia
festas e um baile a que foi com amigos. Fizeram uma chamada
por FaceTime durante o último jogo de roller derby de Hana, antes
de ela sair em digressão com os Pearl Jam. Mika foi contratada
pela Nike e teve uma visita guiada vertiginosa pelo campus por
um funcionário dos RH muito competente, mas muito apressado.
Naquela noite, enviou a Penny uma fotografia da sua identificação
na empresa com as palavras: É oficial. Quando Mika fingiu que
tinha encontrado uma galeria, elas brindaram no ecrã, fazendo
saltar rolhas de garrafa, e riram-se. Desta vez, Penny respondeu
com um emoji de um chapéu de festa e serpentinas. E só isso.
Penny estava mais prudente com Mika. A relação delas já não era
uma casa a pegar fogo, mas sim uma casa a ser cuidadosamente
reconstruída — o que acontece após o incêndio.
Duas semanas depois, Mika ajeitou as calças pretas do fato e
leu a última mensagem de Penny. Feliz primeiro dia de trabalho.
Ligas-me depois?
Não sei a que horas chego a casa, mas dou-te um toque,
escreveu Mika. Pôs o cabelo atrás da orelha, um pouco
assoberbada por estar no meio do campus da sede mundial da
Nike. Quase cento e dezasseis hectares. Setenta e cinco
edifícios. Milhares de empregados. Nada de mais. O telemóvel
dela tocou. Ao ver quem lhe ligava, atendeu com um sorriso de
alívio.
— Olá.
— Então, estás a dar com o caminho? — perguntou Hayato. —
Posso sair e acompanhar-te ao Edifício Serena Williams.
— Estou bem — prometeu ela.
— Perfeito. Estou tão contente por tudo isto ter resultado —
disse Hayato.
— Sim, obrigada mais uma vez por teres dado uma palavrinha
em meu favor. Não sei como alguma vez te vou retribuir.
— Paga-me o almoço e talvez mais uns martínis com chocolate
e ficamos quites. — Ele fez uma pausa. — É uma pena não
termos ficado no mesmo departamento. Mas vamos almoçar
juntos hoje. Podemos encontrar-nos ao meio-dia na cantina.
Sabes onde fica? No edifício Mia Hamm?
Mika sabia onde ficava a cantina, embora não fizesse ideia de
quem era a Mia Hamm.
— Encontramo-nos lá.
— Muito bem. Tem um bom primeiro dia. Mal posso esperar até
que me contes tudo — disse Hayato.
Desligaram e Mika partiu para o edifício Serena Williams —
essa, ela sabia quem era. O dia passou num borrão de
apresentações e a instalarem-lhe o computador. Encontrou-se
com Hayato para almoçar. Beberam Coca-Cola Diet e
depenicaram saladas. Ele mostrou-lhe o escritório dele, um
espaço amplo com grandes mesas de desenho. Havia vários
cavaletes montados, com quadros com desenhos — imagens de
sapatos desenhados com flores explosivas e brasonados com o
icónico símbolo da Nike.
— A nossa Coleção de Verão para o próximo ano — disse
Hayato, de mãos enfiadas nos bolsos. — Tenho estado a olhar
para estes desenhos há dias. Há qualquer coisa que ainda não
está certa no design. É suposto ter por base um artista que faz
enormes fundos de flores atrás de retratos de pessoas famosas.
— São as cores — disse Mika automaticamente.
— Como assim? — Hayato olhou para ela com atenção.
Mika deu um passo em frente. Conhecia o artista. Ele estava a
começar a dar nas vistas quando ela fora para a faculdade. Agora
estava simplesmente a mostrar que correspondia às expetativas.
— Eu conheço o artista. — Mika corou. — Bem, conheço o
trabalho dele. Ele usa cores tradicionais em retratos modernos.
Por exemplo, quando pintou aquele retrato da refugiada da Coreia
do Norte, aquela que fugiu com o bebé? Usou as mesmas cores
de Fuga para o Egito, o quadro do século XIV, de Giotto, para
evocar… — Abanou a cabeça. — Acho que não precisas de ir tão
fundo. Mas, seja como for: cores antigas, novas ideias, os
mesmos problemas.
Hayato acenou com a cabeça, pensativo.
— Devíamos usar algumas cores retro da Nike.
Mika encolheu os ombros.
— Podias tentar.
Hayato tirou um molho de lápis coloridos de um conjunto de
materiais de arte na sua mesa. Escolheu três e rabiscou no
desenho. Mika sentiu algo a crescer dentro dela. Inveja. O desejo
de desenhar e deixar-se ser consumida. Perguntava a si mesma
se Hayato conseguia ver a fome profunda nos seus olhos. Depois
de Peter, todas as cores com que ela havia pintado em tempos
tinham desaparecido. Com medo de se cruzar com ele, tinha
abandonado as suas disciplinas de arte e trocado de área. Perdi
tudo. O tempo. A mim mesma. O meu futuro. Como poderia ela
não se sentir como se algo lhe tivesse sido roubado? Primeiro, o
seu corpo. Depois, a sua pintura. E, por último, o seu bebé.
— Tipo isto? — perguntou Hayato, com olhos a brilharem de
inspiração.
— Exato.
Mika sorriu, encorajadora.
— Conseguiste mesmo desbloquear-me isto. Como é que sabes
estas coisas?
Ela encolheu os ombros.
— Qualquer pessoa podia ter-te dito isso.
— Não, nãoqualquer pessoa. Mas obrigado.
— Claro que sim. Fico sempre feliz por ajudar a explorar a arte
para a obtenção de lucro — brincou ela. Depois percebeu que
soava um tanto quanto maldoso. Ter-se-ia mantido afastada
daquilo que amava há tanto tempo, que tinha ficado amarga? —
Desculpa.
Ele abanou a cabeça como se estivesse atordoado.
— Não, não há problema. — Riu-se. — Almoço outra vez
amanhã? — perguntou Hayato, acompanhando Mika à saída, e a
amiga concordou.
Depois do trabalho, ela parou pelo caminho para comprar
mercearias. Deambulou pelos corredores e consultou o saldo da
conta bancária. O almoço com Hayato tinha-lhe feito uma mossa
considerável. Decidiu que tinha verba para algumas doses de
ramen e talvez cereais Lucky Charms, mas dispensou o vinho.
Uma vez em casa, telefonou a Penny.
— Olá — respondeu Penny. — Como é que correu?
Mika descalçou-se e desabotoou as calças.
— Bem. É sobretudo folhas de cálculo e marcação de reuniões
ao meu chefe. — O chefe de Mika era um homem simpático
chamado Augustus, Gus para abreviar. Tinha o rosto redondo, a
tez avermelhada e um sotaque do Sul, muito ténue, moldava-lhe o
discurso. Tinha uma mulher que adorava e que lhe fazia o almoço
todos os dias. E não mencionou nada sobre Mika ser japonesa,
mas certificou-se de que pronunciava bem o nome dela.
— Então — começou Penny. — Tenho algumas novidades.
Recebi hoje uma carta de aceitação da Universidade de Portland.
Mika parou. Tratava-se do programa a que Penny se tinha
candidatado antes, quando a visitara. Mika lembrava-se, mas teve
o cuidado de não perguntar. Não queria que Penny sentisse
qualquer pressão.
— Recebeste? — perguntou Mika, mantendo a voz leve, mas,
ainda assim, injetando a quantidade certa de curiosidade.
— Recebi — respondeu ela. — E acho que quero ir.
— Isso é fantástico. — Mika tentou parecer casual. Fixe. — O
teu pai não se ia importar se voltasses? — Thomas era um
assunto que não surgia muito durante as conversas delas.
Embora, Penny tranquilizara Mika, ele soubesse que elas
andavam a falar outra vez. O que é que Thomas pensaria de Mika
agora? Lembrou-se da noite da abertura da galeria, da garrafa de
vinho entre eles. A forma como tinha falado com ela, a voz tão
dura como veludo esmagado. Tem sido bom para ela. Para nós.
Mika tinha perdido o respeito de Thomas, a sua confiança tão
difícil de obter. E ele não parecia ser o tipo de homem que
perdoava facilmente, sobretudo quando se tratava de Penny. Ao
mesmo tempo, Mika admirava essa característica. Era algo que
eles partilhavam. Mas detestava ser ela própria o alvo da sua
desilusão, do seu escárnio.
— Oh, sim — disse Penny com jactância. — Ele disse que a
decisão era minha. Mas da mesma forma que disse «Vai em
frente» quando eu quis tentar andar pela primeira vez na minha
bicicleta sem rodinhas. Como se desejasse que eu não o fizesse,
mas não houvesse maneira de me impedir.
— Quando é que o programa começa? — perguntou Mika.
— Na terceira semana de junho. Tenho algumas semanas pelo
meio, quando as aulas acabarem aqui e antes de começarem lá.
Provavelmente, vou um dia ou dois mais cedo para me instalar e
talvez passar algum tempo contigo?
— Sim. Claro. — Mika assinalou mentalmente os dias. Era no
fim de maio. — Podíamos ir ao supermercado asiático. Talvez a
outro jogo de roller derby. Podes conhecer os meus outros
amigos, a Charlie e o Tuan.
— Isso seria ótimo — disse Penny. Houve uma pausa antes de
ela continuar. — Achas que… que eu podia conhecer a tua mãe e
o teu pai?
Um novo peso assentou sobre o peito de Mika.
— Não sei, Penny. Vou ver com eles, mas não quero fazer
promessas. Eu e a minha mãe… temos problemas. — A
infelicidade de Hiromi pairara como uma nuvem negra sobre a
maior parte da infância de Mika. Como é que ela podia empurrar
Penny de livre vontade para debaixo dessa mesma sombra?
— Não faz mal — disse Penny, e, pelo tom da voz, Mika
conseguiu perceber que fazia. — Eu percebo. Quero dizer, ela
mal olhou para mim na abertura da galeria.
Mika mordeu o lábio.
— Vou falar com a minha mãe. Deixa-me ver o que consigo
fazer.
— Está bem — disse Penny com a voz pastosa. — Não é nada
de mais.
Mas Mika percebeu que era. Jurou que iria fazer com que isso
acontecesse. Penny não sabia? Mika era capaz de fazer qualquer
coisa por ela.
* * *
Mika esperou dois dias inteiros antes de ligar à mãe. Era sexta-
feira à noite quando se sentou no sofá e telefonou a Hiromi.
Baixou o volume do televisor enquanto fazia a chamada.
— Mi-chan — respondeu Hiromi. — Será que é a minha filha?
Não tinha a certeza se ainda tinha uma.
— Okāsan. — Mika esfregou a testa. — Como estás?
A mãe falou de uma tempestade de vento e disse que o pai
tinha comido alguma coisa que lhe fizera mal. Obviamente, não
discutiram a abertura da galeria de arte nem o que acontecera
naquela noite. No décimo ano, Mika tinha sido apanhada a roubar
numa loja. Ela pegara numa peça de roupa da coleção de uma
estrela pop branca que se vestia de quimono e delineava seus
olhos com kohl — ela dizia que não era apropriação, mas sim
reconhecimento. Mika podia não ter querido pertencer ao Japão,
mas também não acreditava que o Japão pertencesse à cantora.
De qualquer forma, Hiromi fora buscá-la ao gabinete dos
seguranças. Toda a viagem de carro tinha sido feita em silêncio.
Depois, também ao jantar naquela noite e durante os três dias
seguintes. Essa era a raiz do verdadeiro problema delas. O
silêncio. Intratável, do tipo que mata emocionalmente.
Mika acomodou as costas no sofá, fechou os olhos e lembrou-se
do que prometera a Penny.
— Okāsan — interrompeu Mika. — Agora tenho um emprego e
tenho estado outra vez a falar com a Penny.
O outro lado da linha ficou silencioso. Mika verificou se a
chamada não tinha ido abaixo. Não tinha. Voltou a pôr o telemóvel
junto ao ouvido e falou.
— Ela vai voltar à cidade em junho para participar num
programa de atletismo. A Penny pratica corrida, já ganhou uma
série de medalhas e prémios — disse Mika calorosamente. — E
ela gostava de te conhecer. — Mika olhou para o teto reparado
enquanto esperava que a mãe respondesse.
— Tenho de ir — disse finalmente Hiromi. — O teu pai precisa
de mim.
Clique. Desligou e pronto.
* * *
A seu tempo, junho chegou.
— Mal posso esperar. Mais duas semanas — cantarolou Penny
alegremente ao telemóvel certa noite. — Tenho um monte de
equipamento de corrida novo. E estou com uma miúda fantástica
da Califórnia chamada Olive.
— A Olive gosta de fruta? — perguntou Mika. Ela estava em
casa. Andava a passar cada vez mais tempo em casa,
ultimamente. A optar por refeições tranquilas em vez de ir jantar
fora. Água em vez de vinho. Tudo para alimentar a sua conta
poupança. Por uma vez, em muito tempo, Mika estava a planear o
futuro. A viver para Penny.
— Sim. Espera um bocadinho. — Houve um ligeiro rebuliço. E
Penny falou a alguém ao pé de si. — Estou ao telemóvel, pai. —
Thomas, portanto. Mika ouviu atentamente, mas não conseguiu
perceber o que Thomas disse, só o som monótono da sua voz. —
Estou a falar com a Mika. Sim, eu percebi. O dinheiro está na
bancada. Vai, eu fico bem. Vou só arranjar uma pizza ou qualquer
coisa assim. Desculpa. — Penny voltara. — Uma pessoa até fica
a pensar que ele nunca me deixou sozinha em casa antes. —
Mika não conseguiu deixar de imaginar Thomas de fato outra vez,
a sair para um encontro. Com que tipo de mulher é que Thomas
sairia? Seria Thomas algum tipo de super-herói viúvo doido por
sexo, que se disfarçava de pai fantástico durante o dia? — Ele
volta dentro de algumas horas. Tem um grande depoimento
amanhã e teve de ir finalizar alguns detalhes, mas tenho a certeza
de que me vai ligar três vezes. Uma vez para me dizer que está
no escritório, depois para me dizer que está quase despachado
no escritório e, finalmente, para me dizer que saiu do escritório e
vem a caminho de casa. — Certo, então Thomas não era um
super-herói viúvo doido por sexo. Estava só a trabalhar até tarde.
— De qualquer forma, o que estava eu a dizer? Ah, sim… —
continuou Penny, e Mika ouviu com prazer.No sábado, Mika estacionou o carro junto à casa dos pais e
buzinou. A mãe abriu logo a porta da frente, seguida muito
lentamente pelo pai de Mika. O céu estava azul brilhante. Não
havia uma nuvem à vista.
— Mi-chan — repreendeu Hiromi, descendo o caminho de
cimento. Sacudiu um pano da loiça com a mão, como se isso
pudesse abafar o barulho.
Mika saiu do carro e contornou a viatura, com um papel nas
mãos. Entregou-o bruscamente a Hiromi.
— Toma.
— O que é isto? — perguntou Hiromi, olhando para o pedaço de
papel.
— É um cheque. — Mika passara-o naquela manhã, no
montante de cem dólares, cinco por cento do que devia aos pais
do empréstimo que lhe tinham dado na igreja. — Dou-te mais
assim que me pagarem outra vez.
Hiromi pigarreou, mas enfiou o cheque no bolso do avental.
— O que é isso?
A mãe fez um gesto na direção da traseira do carro de Mika. As
janelas de trás estavam todas descidas e, meio a sair para fora do
banco de trás, estava a cabeça farfalhuda de um ácer.
— Aquilo é uma árvore que vou plantar no nosso jardim. — No
buraco de onde Hana tinha arrancado a árvore morta e
subnutrida. — Apetece-me ver algo a crescer. — Sorriu para a
mãe, para o dia, para a vida dela.
— Tens de regá-lo todos os dias — avisou Hiromi.
Mika revirou os olhos.
— Eu sei.
— Pelo menos, durante vinte minutos.
— Muito bem.
Mika contornou outra vez o carro. Nem pensar em deixar-se
convencer a entrar em casa. Deixem-na fugir agora. Por favor.
Hiromi esfregou uma folha entre o indicador e o polegar.
— Esta aqui tem manchas brancas. Pode ser um fungo.
— Está tudo bem. — Mika abriu a porta do carro e sentou-se no
banco do condutor. Ligou o motor, e Hiromi bateu à janela. Mika
baixou o vidro. Tinha saudades de conduzir o carro de Charlie,
com vidros automáticos e ar condicionado. Talvez dali a um ano
ou dois conseguisse ter dinheiro para voltar a comprar um carro
usado.
Hiromi espreitou para dentro do carro, depois para Mika.
— Eu e o teu pai queremos conhecê-la, a bebé — disse ela, em
voz baixa, como se o assunto fosse tabu.
Mika olhou para a mãe por um momento, confusa. Abriu e
fechou a boca. Penny, ela estava a falar de Penny. Mas Penny já
não era um bebé. Aquele bebé, aquele que Mika tinha dado, tinha
desaparecido. Afastou o pensamento, sem se sentir preparada
para o analisar.
— Querem conhecer a Penny?
Hiromi acenou com a cabeça uma vez.
— Podes trazê-la para jantar cá.
— Ou podemos ir a um restaurante — sugeriu Mika. Ela não ia a
casa dos pais há anos.
— Não, demasiado caro — disse Hiromi, com caráter definitivo.
— Trá-la aqui. Eu cozinho.
— Está bem. — Mika só podia concordar. E fazia-o por Penny.
Penny, que queria conhecer os avós biológicos. Penny, que queria
ver o lugar onde Mika crescera. — Eu digo-lhe. Ela vai ficar
mesmo feliz.
Hiromi não sorriu.
— Não te esqueças de regar a árvore.
U
CAPÍTULO 19
ma semana antes de Penny chegar, Thomas mandou uma
mensagem a Mika.
Começou com um Olá. Mika estava no trabalho e olhou para
o telemóvel pousado ao lado do teclado. Perscrutou o escritório.
Estavam todos ocupados, a arquivar ou a martelar suavemente
nos seus teclados. Claro, eles não faziam ideia de que o pai
adotivo da filha de Mika estava a mandar-lhe mensagens ou que
os dois não falavam desde a abertura da galeria, onde Hiromi
tinha derrubado o mundo em redor dos ouvidos de Mika.
Olá, respondeu ela, curvando-se, escondendo-se no seu
cubículo.
É o Thomas, escreveu ele.
Ela digitou: Sim. Eu sei.
Três pontos dentro de um balão cinzento apareceram no ecrã.
Certo. Desculpa. O voo da Penny chega no domingo. Podes ir
buscá-la? Preferia que ela não tivesse de apanhar um Uber
ou um táxi sozinha, disse ele.
Mika endireitou-se. Já estava a contar com isso. Penny e Mika
haviam combinado: Mika iria buscar Penny ao aeroporto, depois
iria levá-la aos dormitórios da Universidade de Portland e ajudá-
la-ia a instalar-se. Se Penny se sentisse disposta a isso, jantariam
nalgum lugar e passariam algum tempo juntas.
Ela nunca andou de avião sozinha. Ofereci-me para ir com
ela. Ela recusou. Depois acrescentou: O «não» dela foi rápido e
enfático. Mika imaginou-o no seu gabinete. Sentado atrás de uma
enorme secretária de mogno. Fato e gravata. Sobrolho
firmemente franzido. Será que ele a odiava?
Gus, o chefe de Mika, passou pelo cubículo dela. Mika deixou
cair o telemóvel e virou-se de frente para o computador,
colocando as mãos no teclado. Acenou a Gus.
— Não te mates a trabalhar — disse ele com um sorriso
genuíno. Ela sorriu, soltou uma risada falsa e esperou até que ele
se fosse, antes de responder a Thomas. Tenho tudo controlado.
Vinte minutos depois, ele respondeu. Tens a certeza? Não te
vai dar trabalho?
A sério, não há problema. Temos a tarde toda planeada.
Prostitutas, drogas, o pacote completo. Mika mordeu o lábio.
Era uma piada. Muito cedo?
Passaram-se mais alguns minutos e Mika regressou à tabela em
que estava a trabalhar. Thomas mandou uma mensagem.
Demasiado cedo. Ele odiava-a, portanto. Odiava-a
definitivamente.
Por favor, não te preocupes, respondeu Mika. Ela está em
boas mãos. Prometo.
Diz-lhe que me mande uma mensagem quando chegar, foi
tudo o que ele respondeu.
* * *
Nesse domingo, Mika encostou junto ao terminal de chegadas do
aeroporto. Penny estava de pé no passeio, a acenar-lhe com uma
mão, a outra a agarrar a pega de uma mala bordeaux. Desta vez,
o cabelo de Penny estava puxado para trás a formar um rabo de
cavalo reluzente. Mika fez abrir o porta-bagagens e saiu do carro.
Disseram ambas olá ao mesmo tempo e abraçaram-se, caindo
facilmente nos braços uma da outra. Mika deixou-se ficar
agarrada por um segundo a mais. Depois, enfiou a mala de Penny
na bagageira e entraram no Corolla enferrujado.
Penny prendeu o cinto de segurança. Ou não reparou no vidro
do para-brisas rachado ou na fita adesiva que segurava o espelho
retrovisor, ou então estava a ignorar isso educadamente.
— Ufa. Quase não conseguia. O meu pai deixou-me lá esta
manhã, e juro que ele ia começar a chorar. Tenho quase a certeza
de que ele estava a considerar raptar-me. Pode-se raptar a
própria filha?
Mika olhou para o espelho retrovisor do seu lado.
— Ele já me enviou várias mensagens.
Uma vez, para lembrar Mika de quando chegava o voo de
Penny, Ela chega às 12h15, e uma hora depois: O voo da Penny
está atrasado. Mika respondera com palavras encorajadoras, na
esperança de o acalmar. Ela tinha recuperado a confiança de
Penny, mas a de Thomas era mais difícil de conquistar. Era justo.
Eu sei. Não te preocupes. Já estou no aeroporto, no
estacionamento das chegadas, escreveu ela; no mesmo sítio
onde tinha bloqueado e deixado a sua mensagem de voz
balbuciante. Vou estar aqui quando a Penny estiver
despachada.
— Eu sei. Ele é do pior. Mandei-lhe uma mensagem assim que
as rodas tocaram no chão — disse Penny, e depois abanou-se
com a mão. — Está calor. Podes aumentar o ar condicionado?
— Claro — disse Mika. — Abre as janelas.
Penny ficou ainda mais vermelha e baixou completamente o
vidro da janela. Saíram da zona do aeroporto, passando por
alguns hotéis e uma loja de móveis sueca. Mika observou Penny,
com os olhos a saltarem de um lado para o outro entre ela e a
estrada. Penny puxou a pala para baixo, deixando metade do
rosto na sombra. O vento no cabelo e o cheiro do verão fizeram
Mika pensar em si mesma quando era adolescente. Quando
vadiava pelas ruas sem rumo ou ia ao primeiro Starbucks aberto
vinte e quatro horas com Hana. À procura de problemas, disse
Hiromi uma vez. Mas, na verdade, elas só estavam à procura,
ponto final.
Penny aplicou um batom que retirou da mala. Mika não se
lembrava de ter visto a filha a usar maquilhagem antes. Mika
comprimiu os lábios, mas não disse nada. Desceram a Eighty-
Second e entraram no lado norte da cidade. A Universidade de
Portland situava-se no bairro de St. Johns, numa falésia na
margem norte com vista para o rio Willamette. O campus podia
pertencer a algum lugar na costa leste, com os seus relvados
verdes, os edifícios de tijolo vermelho e os remates brancos.
«Umaescola irmã de Notre-Dame», ostentava uma placa na
entrada. Penny sacou de uma pilha de papéis da mochila, um
deles com um mapa.
— Diz que temos de ir a Corrado Hall para fazer o check-in e
tratar do quarto.
Apontou para a direita, e Mika dirigiu o carro por uma pequena
estrada. Encontraram um lugar para estacionar perto do
dormitório. Mika abriu o porta-bagagens do carro e tirou a mala de
Penny.
— Toma, isto também é para ti.
Mergulhou no banco de trás e tirou uma almofada nova e um
conjunto de lençóis duplos que tinha comprado e lavado. O
padrão tinha pequenos crisântemos amarelos.
— Para mim? — Penny semicerrou os olhos por causa do sol da
tarde.
— Sim. Eu sei que eles disseram que providenciavam tudo, mas
pensei que podias gostar de uns lençóis melhorzinhos e de uma
almofada nova. A roupa de cama é muito importante — disse
Mika, como se estivesse a transmitir sabedoria antiga.
Penny aceitou os lençóis e a almofada, fitando-os.
— Obrigada. Isso é muito querido. Mas podes esbanjar dinheiro
assim? — Ela apressou-se a explicar. — Quero dizer, o teu
carro…
— Chiu. — Mika deu uma palmadinha no carro junto a uma
pequena amolgadela enferrujada. — Vais ferir os sentimentos
dele. Se estás a perguntar se comprei lençóis e uma almofada em
vez de comer esta noite, a resposta é não. Tenho dinheiro para
isso. Juro. — Dois dias antes, Mika até tinha dado outro cheque
aos pais. Hiromi pegara no pedaço de papel, olhando-o com
desconfiança, como se estivesse a antecipar a sua combustão
espontânea. Depois, enfiara-o no bolso do avental e perguntara
pela bebé e quando é que Mika a ia levar lá. Tinham marcado o
jantar para a próxima semana. Penny ficou entusiasmada com a
perspetiva de conhecer os seus avós biológicos. Mika nem por
isso. Longe disso.
Penny sorriu e abraçou os lençóis junto ao peito. Mika trancou o
carro e voltou para junto de Penny.
— Pronta? Então, estás bem?! — perguntou, vendo Penny a
morder o lábio inferior.
— Sim. É que… — Penny abraçou o conjunto de lençóis com
mais força, como que a juntar um cobertor à sua volta antes de
uma tempestade. — Vão cá estar atletas vindos de todo o país.
São todos tão bons… Foi por isso que eles, tipo, entraram no
programa.
A vulnerabilidade gritante agitou algo dentro de Mika. Ela
agarrou Penny pelos ombros.
— Vais ser fantástica — disse ela. Se ao menos existisse um
poder como a confiança de uma mãe nos filhos, o mundo poderia
ser diferente. — Diz tu. Diz: «Vou ser fantástica.»
— Vou ser fantástica — balbuciou Penny, rosada de vergonha.
— O que é que disseste? — Mika abanou Penny, falou mais
alto. Os alunos fizeram uma pausa nas suas andanças para
olharem especados: a asiática maluca e a sua sósia em miniatura.
— Não consigo ouvir pessoas que não acreditam em si mesmas
— disse ela quase a gritar.
— Vou ser fantástica! — repetiu Penny quase a berrar.
Mika sorriu e soltou-a.
— Assim está melhor.
Caminharam juntas até ao dormitório. Na entrada, numa faixa
dourada e roxa lia-se: BEM-VINDOS À UNIVERSIDADE DE PORTLAND. Uma
rapariga com longos cabelos encaracolados recebeu-as.
— Penelope Calvin. Vais ficar no quarto 205, mesmo ao cimo
das escadas e à esquerda.
Entregou-lhes um conjunto de chaves e fez sinal à próxima
pessoa da fila. Entre outras famílias, subiram até ao segundo
andar e encontraram o quarto de Penny. O corredor estava cheio
de pessoas, raparigas adolescentes e rapazes, reparou Mika, a
instalarem-se à vontade nos quartos.
— Não chegaste a mencionar que isto seria uma coabitação
mista — disse Mika, a olhar para um quarto onde um rapaz com
olhos afundados e cabelo de estrela pop infantil espalhava um
edredão em xadrez na cama enquanto a mãe abastecia de
bebidas um minibar.
— Não disse? — Penny inseriu a chave na fechadura, girou-a e
entrou no quarto do dormitório. — Tem piada. Pensei que tinha
dito.
— Garanto-te que não disseste.
Mika arrastou a mala de Penny para o quarto. Havia uma única
janela, e de cada lado dela encontravam-se duas camas altas
com escadas, uma secretária debaixo de cada uma, e uma
parede de armários. Havia uma casa de banho partilhada no lado
de fora, no corredor, mas o quarto tinha um lavatório e um
pequeno espelho por cima. Tendo tudo em consideração, ficava
do lado mais agradável dos dormitórios. O dormitório de Mika
ficara num edifício mais antigo e ligeiramente maior do que uma
caixa de sapatos, mas parecera-lhe enorme, tão cheio de
potencial. Penny arrastou a mala para o centro do quarto e abriu-
a, roupas a saltarem de lá de dentro, a maioria equipamento de
corrida, camisolas justas sem mangas e calções curtos. Em cima
estava a t-shirt de roller derby que Mika lhe tinha comprado.
Penny sacudiu-a, depois voltou a dobrá-la cuidadosamente,
guardando-a numa das gavetas do armário.
A colega de quarto de Penny chegou, uma ruiva cheia de sardas
cujo nome, Olive, lhe assentava perfeitamente e que parecia ser a
encarnação humana de um ponto de exclamação, com o seu
corpo longo e tenso e cheio de energia.
— Oh, meu Deus! Vamos divertir-nos tanto! Que horário de
treino de verão fizeste no ano passado?! Às segundas-feiras,
fazia um fartlek de doze quilómetros, depois, às terças, fazia uma
corrida ligeira de oito a onze quilómetros com oitenta metros em
passada larga, e às quartas, fiz subida repetida a colinas…
Mika não entendia nada daquilo, mas Penny acenava como um
cachorrinho ansioso. Ela estava mais ou menos a ouvir enquanto
enfiava os lençóis em volta do colchão granuloso de Penny.
— Olá. — O rapaz com cabelo de estrela pop encostou-se à
porta, de mãos meio enfiadas nos bolsos. Estilo. Só estilo. Mika
quase revirou os olhos. — Devon.
Ele levantou o queixo.
— Penny — disse Penny, ajeitando-se. Olive apresentou-se da
mesma maneira.
— Ouçam, o resto da malta vai jantar e jogar Frisbee a seguir.
Vocês as duas querem vir? — perguntou Devon.
Penny olhou para Mika com incerteza.
— Bem, eu tinha planos…
Mika levantou as mãos, a sorrir por entre uma explosão de
desilusão.
— Não te preocupes. Podemos pôr a conversa em dia mais
tarde.
— A sério, não te importas?
— Claro que não.
Mika forçou um sorriso, enterrando as suas emoções sob uma
fachada feliz.
— Fixe — disse Devon. — Encontramo-nos lá fora.
— Obrigada. — Penny atirou os braços à volta de Mika. — Eu
ligo-te.
Depois, ela e Olive começaram a conversar sobre passadas, e
Mika esperou alguns segundos, observando as duas raparigas
com uma espécie de fascínio triste, saindo depois disso.
A porta ficou entreaberta e Mika ouviu Olive dizer a Penny
quando ela saiu:
— Aquela era, tipo, a tua mãe? Ela é mesmo bonita.
— Mais ou menos. É a minha mãe biológica.
— Percebi. Tens camadas — disse Olive. — Podes contar-me
ao jantar.
Mika saiu e vagueou pelo campus durante alguns minutos,
sentindo-se como uma senhora idosa estranha, apesar de ter
apenas 35 anos. Pensou em si mesma antes e depois, e uma
pontada afiada de saudade atravessou-lhe o peito. O quanto ela
tinha mudado, mas que queria que ficasse na mesma. Sentou-se
num banco. Uma grande extensão verde de relva estendia-se à
sua frente.
«Mika.» Ouviu o seu nome passar à deriva na brisa do verão.
Pestanejou, pensando se poderia ser real. Não, apenas uma
memória. Apareceu à sua frente como um holograma. Estava na
primavera do seu primeiro ano, e ainda conseguia esconder a
barriga debaixo de camisolas de tamanho exagerado. Mas tinha
começado a sentir o peso extra, a pressão de Penny contra as
costelas, e sentara-se num murete de cimento para recuperar o
fôlego.
«Mika», voltou a voz a chamar, desta vez mais perto. Ela olhou
para cima. Era Marcus. «Não tinha a certeza se eras tu.» Ele
parou à frente dela, uma mala a tiracolo em frente ao peito, as
mãos salpicadas de tinta. «Por onde tens andado? Deixaste de ir
às minhas aulas.» Ela olhou fixamente para Marcus, muda. O sol
brilhava atrás dele, traçava um carreiro ao longo do maxilar. Fê-la
lembrar-se do autorretrato de Rembrandt. «Está tudo bem? Não
encontraste outro mentor, pois não? Porque se estás a fazer
Pintura IV com o Collins…
Mika arrastou amochila para o colo e envolveu-a com os
braços.
«Eu não… Eu não estou…», balbuciou. Depois sentiu-o. A
pressão fantasma da mão de Peter contra a sua boca. O cheiro a
terebintina. Não conseguia falar. O coração martelou-lhe o peito,
ameaçou saltar de lá a bater. Penny deu um pontapé. Ela pôs-se
de pé, quase a bater em Marcus, que se tinha aproximado mais.
«Deixei de pintar», disse, afastando-se dele. «Não sou
suficientemente boa…»
«Isso não é verdade. Tens o maior talento em potência que eu já
vi.»
Ela ficou especada a olhar para os pés. Para os seus ténis
lamacentos. Tinha deitado fora a roupa que levara vestida para a
festa. Jurou não voltar a usar saltos, saias ou maquilhagem. Já
não queria ser bonita. Tinha medo de o ser. Ser bonita era um
convite. Não, corrigiu. Ser mulher era um convite. Marcus
aproximou-se.
«Tenho de ir», murmurou Mika, antes de sair a correr. Correu
pela manhã azul, de volta ao seu quarto no dormitório. Trancou a
porta e deixou-se cair contra ela; sentia-se como se o teto
estivesse a deslizar para baixo, como se as paredes estivessem
apertadas. As mãos tremiam-lhe, o coração batia acelerado, a
respiração mais rápida ainda. Não sabia dizer quanto tempo
durara o episódio. Só se lembrava de acordar mais tarde na
cama, grogue e faminta. Fora o seu primeiro ataque de pânico.
Agora, Mika deixou-se ficar sentada durante mais algum tempo,
permitindo que o holograma se desvanecesse. Aqueles meses
após a violação fizeram-na sentir-se como se estivesse fora de si.
Como se o seu espírito se tivesse desprendido do corpo e
andasse a flutuar à sua volta. A maioria das suas memórias não
provinha dos seus próprios olhos, mas de uma espécie de
espectro que espreitava de cima.
Depois de algum tempo, Mika conduziu de volta a casa e aplicou
uma das máscaras de rosto que tinha planeado aplicar nela e em
Penny nessa noite. Quando começou a queimar, retirou-a e tirou
uma fotografia do seu rosto vermelho, enviando-a a Hana. Está
assim tão mau? O rosto de Mika já tinha começado a arrefecer
quando Hana respondeu. Já viste O Homem da Máscara de
Ferro? Mika sorriu, e o seu telemóvel tocou, com o nome de
Hana a surgir no ecrã.
— Olá — atendeu Mika. Sentou-se no sofá e encostou os
joelhos no peito, rodeando-os com um braço.
— A Penny não está por cá? — perguntou Hana. Estava tudo
calmo onde ela se encontrava. — Pensei que vocês as duas iam
jantar e passar o serão juntas. Lembro-me de me teres falado de
grandes planos para um restaurante em que cortam a carne à
nossa frente e uma noite de spa.
Mika brincou com os dedos dos pés.
— Ela trocou-me pela colega de quarto que parece uma golden
retriever. Prometeu que falávamos mais tarde.
Mika não tinha a certeza do que sentia em relação a isso. Meses
antes, ela fora uma estrela no universo de Penny.
— Uf — disse Hana. — Então, foste destronada?
— Receio bem que sim — disse Mika, sorumbática. Talvez
tenha sido assim que Thomas se sentiu. Festa da
autocomiseração, mesa para um. Mika sentia vontade de chorar,
mas talvez isso fizesse a cara arder-lhe ainda mais.
— Tenho uma notícia que talvez te possa animar.
— Dava-me jeito alguma notícia para me animar.
— Os Pearl Jam vão tocar em Seattle daqui a duas semanas, na
quinta-feira, e depois vão partir para o fim de semana. Vou sair
com a Josephine na sexta à noite, mas reservei o sábado à noite
para a minha miúda principal. Prepara-te para tomares algumas
más decisões.
Mika esticou as pernas e deitou-se no sofá. Reviu mentalmente
a sua agenda. Tinha reservado o fim de semana seguinte para
Penny: iam jantar a casa dos pais de Mika. Thomas iria estar na
cidade no fim de semana posterior a esse, portanto Penny
provavelmente ficaria presa a ele o dia todo no sábado. E quando
ele se fosse embora no domingo, Penny partiria de autocarro com
a equipa dela para correr em dunas na costa. Dunas. Isso soava
tão absurdo a Mika como se alguém sugerisse que Russell Crowe
repetisse o seu papel n’Os Miseráveis.
— Olha que isso é perfeito e soa tão bem. Mal posso esperar.
Devíamos convidar o Hayato e a Charlie, talvez ir a algumas
discotecas.
— Sem dúvida.
Conversaram durante mais algum tempo. Sobretudo sobre como
as coisas estavam a correr com Josephine. Parecia estar a ficar
sério. Depois disso, o telemóvel dela deu sinal de uma mensagem
a entrar.
Está tudo bem com a Penny? Era Thomas.
Ela instalou-se no dormitório e conheceu a colega de
quarto, respondeu Mika.
Ela mandou-me uma mensagem, mas foi só um polegar
para cima, disse Thomas. Perante isso, Mika riu-se, mas não
respondeu. Pensou em Thomas. Em ser pai ou mãe. Em como, a
dada altura, mãe e bebé eram inseparáveis. Mika sentira-se assim
quando carregou Penny no ventre, apesar de saber que não ia
ficar com ela. Tinha lido que um bebé não sabe onde ele acaba e
a sua mãe começa. Para o bebé, os dois são um só — como o sal
e o mar.
N
CAPÍTULO 20
a segunda-feira de manhã, no trabalho, Gus, o chefe de Mika,
enfiou a cabeça no cubículo dela.
— Truz-truz — disse. — O que achas de trabalhar mais
umas horas esta semana? Tenho de acabar de montar um modelo
de colaboração para um dos nossos investidores. A Shelly estava
a trabalhar nisso, mas teve de marcar férias para uma coisa de
família, foi-me passada a bola e dava-me jeito uma ajuda extra! —
Ele falava entusiasmado e levantava as mãos para enfatizar o seu
ponto de vista.
Mika afastou o telemóvel e endireitou-se.
— Claro. Não há problema.
Dava-lhe jeito ter qualquer coisa com que se distrair. Mika
sentia-se um pouco sozinha sem Hana. Concentrava-se
demasiado em quando ia voltar a ver Penny, na sexta-feira,
quando fossem jantar a casa dos pais de Mika — pensar nisso, só
por si, já era suficiente para lhe dar cabo dos nervos. Como é que
se sentiria ao entrar novamente na casa da sua infância? Há
quanto tempo não entrava lá? Há pelo menos uma década.
E, mais importante, como é que Hiromi iria tratar Penny? Mika
pensou em Hiromi à espera. Jurou não deixar a filha ser cortada
pelas arestas afiadas da mãe.
— Ótimo! Deve estar tudo no servidor partilhado. Vai lá, dá uma
olhada e encontramo-nos depois do almoço para revermos.
Gus foi-se embora, e um leve sorriso surgiu no canto da boca de
Mika. Atirou-se ao trabalho. Até chegou mais cedo na terça e na
quarta-feira para dar um avanço. Mas conseguiu ir almoçar com
Hayato e, juntos, perseguiram a pegada digital de Seth, o novo
tipo com quem ele andava a sair.
A sexta-feira passou num redemoinho. Às 15h05, Mika enviou
um e-mail a Gus a dizer que todos os documentos completos
estavam prontos para ele rever. Ele disparou uma resposta
imediata: Bom trabalho, tira o resto do dia de folga. Mereces.
Então, Mika foi mais cedo buscar Penny ao campus. Esperava
ficar a preguiçar junto ao passeio, talvez mandar uma mensagem
a Hana a dizer que mal podia esperar para a ver no próximo fim
de semana. Não esperava ver Penny no marmelanço — Mika não
tinha certeza se já tinha usado a palavra marmelanço antes, mas
estava a usá-la agora e não podia estar mais surpreendida ou
infeliz com isso — com Devon, o miúdo com cabelo de estrela
pop. Os dois estavam muito próximos um do outro. As mãos dele
nas ancas dela. As mãos de Penny no… peito dele? Mika não
podia acreditar. E a sua primeira reação foi fazê-la parar.
Pressionou a buzina. Os peões pararam onde estavam. Penny
afastou-se de Devon, e ele também teve o bom senso de se
afastar, passando uma mão embaraçada pelo cabelo. Penny
murmurou algo a Devon e baixou-se para pegar na mochila antes
de ir para o carro.
— Olá — disse Mika quando Penny entrou.
— Olá. Vieste mais cedo. — Penny caiu no assento e cobriu
com as mãos o rosto, que lhe ardia. — Não leves a mal, mas isso
foi súper embaraçoso.
— Desculpa lá. A mão escorregou-me — disse Mika um pouco
rápido demais. — Carro velho, buzina sensível, sabes? — Na
verdade, a buzina era muito difícil de fazer soar. Mika tinha
entornado qualquer coisa no volante sabe-se lá há quanto tempo
e, desde então, ela estava presa. Era bom saber que ainda
funcionava. Mika afastou-se, mantendo Devondebaixo de olho no
espelho retrovisor. — Então, hum… amigo novo?
Já fora do campus, Penny remexeu-se no banco para se sentar
direita. Hesitou por um momento.
— Ele é mais ou menos o meu namorado.
O semáforo passou de amarelo a vermelho, e Mika travou.
— Namorado? Isto é um desenvolvimento recente? — Tão
rápido, pensou Mika. Mas quem era ela para dizer alguma coisa?
Ela tinha ido viver com Leif depois de dormir com ele durante
apenas um mês.
Um sorriso esvoaçou pelo rosto de Penny. Ela sentou-se em
cima das mãos.
— No fim de semana passado tornámo-lo oficial. Andamos a
sair.
Mika não estava familiarizada com os rituais de encontros de
adolescentes, mas sabia o suficiente para saber que «sair»
significava algo sério. Pelo menos, significara quando ela tinha 16
anos. Olhou de relance para Penny.
— Isso é coisa séria.
A luz ficou verde, e Mika acelerou para entrar na estrada
principal.
— Por acaso, até nem é — disse Penny, mostrando-se
descontraída. — Olha, podemos manter isto em segredo? Só
entre nós?
— Não queres que conte ao teu pai, queres tu dizer —
esclareceu Mika enquanto atravessavam uma ponte.
Penny anuiu, a confirmar.
— Ele vai-se passar porque eu e o Devon estamos hospedados
no mesmo dormitório.
— Não sei… — a voz de Mika desvaneceu-se. Ela queria criar
um espaço seguro para Penny. E Devon não parecia assim tão
mau. Uma paixoneta, era como Mika lhe chamaria. Ou acabava
dentro de algumas semanas, ou não acabava. Qual seria o mal?
Além disso, ela raramente falava com Thomas. Se ele não
perguntasse, Mika não iria trazer o assunto à baila. Uma mentira
por omissão é considerada uma mentira? Não tinha a certeza.
Tinha chumbado a Filosofia. — Está bem, não lhe vou contar
nada. — Mika perguntava-se se Caroline e Penny tinham
segredos. Se Caroline alguma vez tinha ido ver Penny à escola
mais cedo e a levara a comer um gelado. Não contes ao teu pai,
podia ela ter dito. Isto vai ser só entre meninas. Uma parte de
Mika ansiava pelo mesmo. Por essa ligação.
— Obrigada — disse Penny. — Agradeço-te por confiares em
mim. — Mika quase lhe disse: Eu confio em ti, no mundo é que
não. Mas conteve o impulso. — Então, fala-me dos teus pais.
Alguma coisa que eu deva saber antes de os conhecer? —
perguntou Penny.
Estavam agora fora de Portland, nos subúrbios. Passaram o
mercado coreano que não pedia identificação para verificar as
idades. O Starbucks que ficava aberto vinte e quatro horas, onde
Mika e Hana se juntaram para chorar depois da morte de Kurt
Cobain. A escola secundária onde Mika costumava vadiar com
um cigarro numa mão e os sonhos noutra. Sentava-se nas
bancadas do pavilhão e desejava poder estar noutro lugar.
Inspirava e acreditava que estava destinada a grandes coisas.
Que conseguiria fazer grandes coisas.
— Estou nervosa — acrescentou Penny enquanto Mika virava
para uma rua lateral. Algumas crianças brincavam na estrada com
uma mangueira.
— Não fiques nervosa — disse Mika, estacionando em frente à
casa dos pais. Ao ver as telhas verde-musgo, sentiu uma dor
repentina e aguda, um dedo a espetar-se naquela ferida aberta
que era a sua infância. — Eles não são muito dados a abraços.
Se eles se curvarem ou inclinarem a cabeça, faz o mesmo em
resposta. — Amo-te nunca fora dito em casa de Mika. O amor
estava nas ações. No trabalho que proporcionava um sustento.
Na confeção de refeições caseiras. Na obediência aos pais. — E
se a minha mãe perguntar se queres beber alguma coisa, não
bebas a água engarrafada. Não é água nova. Ela enche
constantemente garrafas velhas e volta a pô-las no frigorífico. —
Hiromi não lavava as garrafas entre as recargas. — Na verdade,
qualquer coisa engarrafada, verifica sempre se já foi aberta. Uma
vez, ela comprou refrigerante de limão de marca branca para o
meu aniversário e usou-o para encher uma garrafa de litro velha
de Sprite.
— Está bem — disse Penny cautelosamente, olhando para a
antena parabólica gigante na lateral da casa. Avançaram ambas
devagar até à porta e pararam novamente diante dela. Mika viu as
cortinas a mexer. A mãe estava a espreitar. — Eles alguma vez
perguntaram por mim?
Mika observou o rosto ansioso de Penny. Ela não queria dizer
uma mentira, mas sabia que a verdade iria magoá-la. Não se
decidiu por nenhuma delas.
— Na verdade, nunca lhes dei qualquer informação. Falar de ti
era difícil para mim. — Mika fez uma pausa. — Preparada?
Penny baixou o queixo.
— Preparada.
Mika pousou a mão na maçaneta e virou-se para Penny.
— Uma última coisa. Lembra-te de que podemos sair quando
quisermos. Basta dizeres-me, e vamos embora daqui. Terás
sempre o controlo da situação.
Estaria a dizer aquelas palavras por si ou por Penny?
— Percebido — disse Penny.
Mika abriu a porta. Shige e Hiromi estavam à espera do outro
lado. Mika tirou os sapatos no genkan improvisado, e Penny fez o
mesmo. Mika deu um salto atrás no tempo. Até ao momento em
que Shige comprou a casa. Ela estava de mão dada com a mãe
enquanto a visitavam, a tabuleta a dizer VENDE-SE ainda cravada
no relvado. O nariz de Hiromi erguia-se cada vez mais alto a cada
quarto para onde espreitavam. Estava tudo errado. As portas
abriam-se e fechavam-se em vez de deslizarem. Hiromi não
gostara da combinação de banheira e duche no quarto principal,
nem da despensa na cozinha, nem que o jardim estivesse virado
para norte — assim, a roupa lavada nunca secaria.
Agora, Mika sorria desconfortavelmente, a pensar se Penny
conseguia sentir a forma como as paredes pulsavam com a
infelicidade de Hiromi.
— Okāsan. Otōsan. — Mãe, pai, disse Mika. — Esta é a Penny.
— Esteve quase a acrescentar a minha filha, mas parou mesmo a
tempo.
Hiromi e Shige curvaram a cabeça, e Penny respondeu da
mesma forma.
— É um prazer conhecer-vos — disse ela.
Silêncio, então, enquanto olharam todos uns para os outros. A
mãe de Mika tinha-se arranjado. Estava vestida com as suas
roupas mais bonitas, um vestido ligeiramente ajustado ao corpo,
com duas pregas na cintura. E o pai de Mika estava de fato.
Ambos tinham calçado chinelos de casa. O tapete de pelo
comprido fora aspirado recentemente e a mesa estava posta com
uma dúzia de pratos elaborados — tofu de sésamo, arroz
moldado em bolas perfeitas, espargos em dashi — todos eles
pratos preferidos de Mika. Hiromi devia ter passado horas a
cozinhar.
A mãe falou primeiro. Abriu as mãos.
— A Mi-chan diz que tu atleta.
— Tu és atleta — Mika corrigiu a mãe.
— Foi o que eu disse — disse Hiromi. — Shige, não foi isso que
eu disse?
— Eu sou atleta — interveio Penny. Hiromi fixou um olhar de
avaliação em Penny. — Estou aqui a fazer um programa de verão
de atletismo na Universidade de Portland. A minha escola é uma
escola da primeira divisão. Entrei para a equipa no meu segundo
ano.
— E és rápida? — perguntou Shige, com um brilho de
aprovação nos olhos.
Penny acenou com a cabeça.
— Rápida e consistente, isso é que é importante.
— Deves ser boa, para estares num programa na Universidade
de Portland. Li que é uma escola irmã de Notre-Dame — disse
Hiromi, impressionada.
— Esforço-me por isso — disse Penny, envaidecida.
Silêncio novamente. Podiam ser estranhos num autocarro, o
interior a encher-se com ar reciclado.
— Tens fome? — perguntou Hiromi, por fim.
— Claro — respondeu Penny bruscamente. — Quero dizer, eu
já comia, ou podemos esperar. Como preferirem.
— Vamos comer, vamos comer — disse Shige, como se ele
estivesse por trás da refeição toda. Dirigiram-se todos para a
mesa. Penny, Mika e Shige sentaram-se.
— Queres alguma coisa para beber? Água, ocha? — perguntou
Hiromi, a olhar para Penny como se fosse uma espécie de
curiosidade.
— Pode ser água — disse Penny. Tirou o guardanapo da mesa
e estendeu-o no colo.
— Da torneira — esclareceu Mika.
Penny sorriu e Mika devolveu-lhe o sorriso. Hiromi encheu os
copos e trouxe-os para a mesa.
— Eu fiz todos os pratos preferidos da Mika de quando ela era
pequena — disse Hiromi, deslizando para se sentar numa
cadeira. Automaticamente, Mika, Shige e Hiromi apertaram as
mãos e disseram: — Itadakimasu.
Shige pegou nos seus hashie começou a colocar um pouco de
teba shichimi, frango com sete especiarias, no seu prato.
— Vá lá — disse Hiromi. — Experimenta os espargos; fui eu
mesmo que fiz o dashi.
Penny olhou para o colo. Hiromi tinha posto a mesa apenas com
hashi. Mika levantou-se da mesa e abriu a gaveta dos talheres na
cozinha, sacando um par de garfos. Entregou um a Penny e
depois ficou com um para si.
— Tu nunca usas hashi? — disse Hiromi como se tivesse sido
insultada.
— Okāsan — disse Mika em tom de aviso. Interrogava-se se a
mãe a culpava por Penny não ser suficientemente japonesa.
— Eu mostro-te. Foi assim que ensinei a Mi-chan. — Shige
aproximou-se de Penny. — Vá lá — disse ele, com a sua voz rica,
quente e persuasiva.
Depois de um brevíssimo instante, Penny pegou nos hashi. A
mente de Mika tropeçou, tombou num passado esquecido.
Quando ainda viviam no Japão. Em Daito, uma pequena cidade
na prefeitura de Osaka. Ela estava vestida com uma camisola de
malha amarela, ajoelhada numa mesa baixa. Tinha uma tigela de
edamame à sua frente, e estava a praticar com os hashi. Os pais
encontravam-se na outra divisão. A discutir. Mika pôs-se de pé e
aproximou-se sorrateiramente. Os pés dela, do lado de fora da
lâmina amarela da luz que passava através da porta entreaberta.
Eu não quero viver na América, dissera a mãe, em voz grossa e
suplicante. Estava vestida com um quimono completo.
Uma vez por mês, Hiromi encontrava-se com uma amiga, uma
colega maiko, para almoçarem em Quioto. As duas arranjavam-se
com os seus melhores quimonos e levavam os filhos. Mika
lembrava-se de brincar com um menino no chão do restaurante,
os pés da mãe calçados com tabi e zōri. Quando chegaram a
casa, encontraram lá Shige, mais cedo do que seria suposto. De
cabeça baixa.
«Tens de arranjar outro emprego noutra empresa», insistiu
Hiromi, como se fosse algo definitivo.
O pai dela agitou uma mão furiosa no ar. Também ele era mais
novo. As linhas no rosto não estavam tão profundamente
vincadas. «Não há mais emprego nenhum. Esta é a nossa única
opção. Vamos mudar-nos. Fim da discussão.»
Mika encostou-se à parede. A estrutura da casa era de aço.
Tinha sido construída para suportar um terremoto ou uma mulher
zangada com o marido. «O que é que vou fazer lá?», perguntou
Hiromi diretamente.
«Vais fazer o teu trabalho. Vais ser uma boa esposa para mim e
uma boa mãe para a nossa filha», respondeu Shige. E Hiromi
calou-se. Não tinha permissão cultural para desobedecer ao
marido.
— Estás a ver, nunca se é velho demais para aprender algo
novo — dizia Hiromi nesse momento, e Mika percebeu que o
comentário era dirigido a ela. Nunca falhava. Hiromi conseguia
sempre fazer Mika sentir-se pequena, tão insignificante como um
espirro.
Comeram, com Penny a usar os hashi com todo o requinte de
uma corça em cima de gelo. Mas ela não desistiu e Hiromi
observou-a sem pestanejar, como se tentasse absorvê-la. Na sala
de estar, um telemóvel tocava e tocava repetidamente.
— Shige — Hiromi repreendeu-o.
Shige foi buscar o telemóvel.
— Passo o dia inteiro a receber chamadas de telemarketing.
Querem que eu compre isto ou aquilo.
O pai pôs o telemóvel no silêncio.
— Podem bloquear as chamadas — disse Penny. — Veja.
Shige entregou o telemóvel e Penny pressionou alguns botões.
— Também podem adicionar o vosso número a um registo para
não receberem chamadas — disse ela, devolvendo o telemóvel a
Shige.
— És esperta. — Hiromi sorriu e apertou o antebraço de Shige.
Depois do jantar, Mika fez uma pausa no corredor forrado a
madeira, observando Penny a vaguear pela casa, com o desejo
de abrir as portas que Hiromi mantinha diligentemente fechadas a
queimar-lhe os olhos. Penny tinha vindo para desvendar coisas.
— Qual destes era o teu quarto? — perguntou Penny.
— Aquele.
Mika apontou para uma porta com uma maçaneta de latão à
direita de Penny.
— Posso vê-lo? — perguntou Penny. Do outro lado da esquina,
Hiromi tratava da cozinha ao som de pratos a embaterem uns nos
outros e água a correr. Shige retirou-se para a poltrona, a ver o
noticiário da noite a metade do volume habitual.
— Sim, acho que sim — disse Mika porque não conseguia dizer
que não. Diretamente à frente dela estava a casa de banho verde-
lima onde o pai de Mika costumava desobstruir o ralo do lavatório
com um par de hashi, tudo isso enquanto resmungava que Mika
tinha demasiado cabelo e usava demasiado rímel. Penny
empurrou a porta e entrou. Estava tudo na mesma. Carpete
verde-vómito, desde a sala de estar e do corredor. Uma velha
luminária de vidro opalino que projetava uma luz amarela quente.
Apenas espaço suficiente para um futon encostado a uma parede
e uma secretária. Mika costumava sentar-se nessa mesa a
desenhar durante horas. — Não há muito para ver — dizia Mika
agora. Anos antes, Hiromi havia tirado os pósteres da revista
Tiger Beat das paredes e os retratos que Mika desenhara.
Penny caminhou pelo perímetro escasso.
— Era aqui que dormias?
Mika observou-a da porta, a visão do seu antigo quarto a agarrá-
la pela garganta.
— Sim.
— Mas tu tinhas uma cama, certo?
Penny parou junto ao futon azul-escuro. Por cima dele, estava a
fotografia da escola do jardim de infância de Mika. No primeiro
dia, Hiromi tinha ficado ao lado da sala de aula enquanto as
outras mães conversavam sobre as viagens de verão ao Sunriver.
Ela não se conseguia sentir à vontade com aquelas mães com
pele da cor do leite que treinavam ao som de jazz, trabalhavam
até tarde e aqueciam as refeições no micro-ondas.
— Isso desdobra-se para se transformar numa cama —
salientou Mika.
Caroline tinha partilhado fotografias do quarto de Penny. O papel
de parede num tom pálido de cor-de-rosa que ela vira no fundo
das suas conversas de vídeo, ainda com um aspeto impecável e
perfeito. Mobília branca substancial. Uma cama com um dossel
cheio de folhos. Mika imaginara que Caroline e Thomas dariam a
Penny todas as coisas que Mika não tinha dinheiro para lhe dar.
Mas depois lembrou-se de Penny na mesa de jantar com Shige, a
aprender a usar os hashi. Há algumas coisas que o dinheiro não
consegue comprar.
— Estudaste aqui. — Penny encontrava-se junto à secretária,
passando os dedos por cima da pintura a imitar o grão.
— «Estudar» é um termo generoso. — Era mais como se
tivesse conspirado ali a sua fuga. Agora, sentia-se envergonhada
por alguma vez ter sonhado tão alto. Era a loucura da juventude,
supunha, pensar que se é maior do que realmente se é.
Penny esboçou um sorriso fraco para Mika e depois abriu uma
gaveta. Lá dentro, estavam os cadernos de Mika. Os blocos de
esboços dela.
— Posso ver? — perguntou Penny. Nas suas mãos estava um
bloco de desenho Arches. Mika tinha usado trocos para pagar o
caderno de dezasseis páginas. Nele, havia uma série de retratos
feitos a guache, na sua maioria perfis de pessoas que ela
conhecia. O primeiro era de Hana, cabelos retorcidos em tranças,
faces viradas para o sol. — Oh, meu Deus, isto é teu? Pintaste
isto?
Mika pegou no caderno, fechou-o e empurrou-o de volta para
dentro da gaveta.
— Não é nada de especial. As proporções estão todas erradas.
— Mika ouviu o eco da mãe: «Quem é que é suposto ser, a tua
amiga? Fizeste-lhe a cara demasiado cheia. Parece gorda.» Era
por isto que detestava vir aqui. As paredes guardavam
demasiadas recordações, demasiadas palavras que Mika nunca
mais queria voltar a ouvir.
— Eu sabia que gostavas de arte e pintura, mas pensei que
apenas gostasses, não que conseguisses fazer — disse Penny,
gesticulando para a gaveta fechada. — Isso é insanamente bom.
— Foi há muito tempo.
— Tu é que devias estar a expor na galeria.
Penny cruzou os braços e franziu o sobrolho.
— Eu já não pinto. — Formou-se um nó na garganta de Mika e
os olhos começaram a arder-lhe.
— Porque é que paraste? — O olhar de Penny dirigiu-se a Mika,
perfurando-a.
Mika olhou para os pés e cruzou os braços.
— Cresci. O dinheiro tornou-se um problema. — A vida bate-te e
obriga-te a descartar objetivos tolos em função de outros mais
práticos. Penny mordiscou a bochecha. Abriu a boca para dizer
alguma coisa,mas Mika foi mais rápida. — Tentei durante algum
tempo e tive algumas aulas no primeiro ano, mas não deu certo.
«Qual é a tua história?», perguntara-lhe Marcus.
— Tiveste-me no primeiro ano — disse Penny. Mika viu a
conclusão a que a filha estava a chegar. Que Mika tinha desistido
por causa de Penny.
— Eu desisti antes de te ter. — Mika tocou numa ponta do
cabelo de Penny, deixou-a deslizar pelos dedos. — Depois disso,
não quis pintar mais. O que é que posso dizer? Dei-te todas as
minhas cores. — Ela inclinou-se para que estivessem a
centímetros de distância, procurou assegurar a Penny que ela não
tinha de carregar os fracassos da mãe. — Voltava a fazê-lo de
novo. — Penny sorriu. Mika suspirou, agora cansada e num
turbilhão emocional. — É melhor despedirmo-nos. Está a ficar
tarde. — Saiu do quarto e encontrou a mãe na cozinha. — Temos
de ir — anunciou Mika.
Hiromi pousou uma bandeja de pudins de leite. Os seus olhos
frios e desapontados fixos em Mika.
— Fiz sobremesa.
Mika esfregou a pele debaixo do nariz, viu Penny aproximar-se
pelo canto do olho.
— O trânsito pode estar mau e eu estou cansada.
Penny deu um passo em frente.
— Foi um prazer conhecê-la, Sra. Suzuki. Muito obrigada por
me convidar para jantar. Eu adorei.
Imediatamente, Mika sentiu-se culpada.
— Nós voltamos — prometeu.
— No próximo sábado — disse Hiromi abruptamente. — Vou
fazer tsukemono. Posso ensinar-te.
O peito de Penny inchou de excitação.
— A sério? Gostava muito. — Ela inclinou a cabeça para Mika.
— No próximo sábado? O teu pai vem à cidade — disse Mika. E
eu vou ficar bêbeda que nem um cacho com a Hana, acrescentou
mentalmente.
Penny franziu o sobrolho, a pensar.
— Bolas. É verdade.
— E que tal uma noite durante a semana? — sugeriu Hiromi.
Mika esquecera-se de que a mãe tinha a tenacidade de um
buldogue quando queria alguma coisa. Lembrava-se de ver a mãe
agarrada ao volante até ficar com os nós dos dedos brancos
enquanto conduzia pela cidade em cima de trinta centímetros de
neve para levar Mika ao treino de dança. — O Shige podia ir
buscar-te.
Penny animou-se.
— Sim, gostaria muito.
Mika só se apercebeu demasiado tarde de que não tinha sido
convidada.
Os lábios de Hiromi quase se contorceram num sorriso.
— Dou-te o meu número de telemóvel. Já sei mandar
mensagens. Eu embrulho a sobremesa para tu levares.
Hiromi e Penny trocaram números de telemóvel, depois Hiromi
guardou um pudim de leite num recipiente de natas azedas para
Penny levar.
No carro, Mika serpenteou pelos subúrbios. Ligou o pisca para
entrar na estrada principal que levava à autoestrada.
— O que é que achaste? Bem? Demasiado? — perguntou,
olhando em frente. Estava escuro, as estrelas mais brilhantes a
reluzir no céu.
— São um espetáculo — disse Penny quando abriu o recipiente
das natas azedas e espreitou lá para dentro. — O teu pai é tão
querido e a tua mãe é intensa, mas de uma maneira boa, como o
meu treinador de atletismo na minha cidade. Não te importas
mesmo se eu for lá sozinha esta semana?
Mika fez uma pausa. Temia que Hiromi pudesse espezinhar o
espírito frágil de Penny. Mas a mãe de Mika tinha sido diferente
com Penny. Mais calorosa. Mais leve. Mais disposta. Mika
acelerou para entrar na autoestrada. Engoliu a sua hesitação e
disse:
— Claro. Com certeza.
Quem poderia dizer? Talvez desta vez fosse diferente.
Mika concentrou-se na estrada, no céu, na escuridão infinita.
Pensou nos novos começos. Se seria possível recomeçar. Mais
do que tudo, queria que isso fosse verdade.
- S
CAPÍTULO 21
ão vinte e sete dólares. Queres abrir uma conta? — gritou o
barman sem camisa e muito peludo por cima da música,
deslizando três shots de tequila pelo balcão de madeira para
Hana, Mika e Hayato. Sons graves e fortes abanavam o chão e
luzes estroboscópicas piscavam. Era a noite dos anos 80.
Remisturas pop de Whitney Houston e Cyndi Lauper saíam com
estrondo pelas colunas.
Hana enfiou-se entre bancos de vinil pretos e entregou o seu
cartão ao barman.
— Eu trato disto. Podes deixá-la aberta — gritou às costas dele.
Os três pegaram nos shots e brindaram.
— Kanpai! — gritou Hayato, espremendo uma lima entre os
dentes e emborcando o shot. Mika e Hana seguiram-no de
imediato, o líquido a queimar-lhes a garganta. Atravessaram a
multidão, passaram por duas drag queens vestidas com bodies e
um mural de Lady Gaga com um manto e o menino Jesus ao colo.
— Devíamos ir ao Golden Eagle a seguir a isto — disse Hana,
mencionando um bar gay no nordeste de Portland. — É mais
descontraído, tem sobretudo matulões gays que gostam de
rockabilly.
Hayato pegou na mão de Mika e fê-la rodopiar. Ele esmerara-se
na indumentária temática e usava um fato à Miami Vice branco
com uma camisola verde-azulada por baixo.
— Eu quero dançar.
Mika tinha-se atirado de cabeça ao estilo Flashdance, com uma
camisola comprida tipo vestido, a cair do ombro, caneleiras e
saltos altos. Seguiu Hayato até à pista de dança. Tipos em jaulas
suspensas rodopiavam em torno de postes, com pinturas
corporais a brilhar sob a luz negra. Durante algum tempo,
andaram os três juntos, mas rapidamente Hayato e Hana ficaram
emparelhados. Mika respirou fundo, encontrando um pedaço de
parede onde se encostar.
— Adoro a tua roupa — disse um loiro magro ao passar,
exatamente com a mesma roupa que ela. No soutien, o telemóvel
de Mika tocou. Ela sacou-o, surpreendida por ver o nome de
Thomas no ecrã. Tapou a orelha e começou a dirigir-se para o
pátio.
— Thomas? — gritou por cima do barulho.
— Mika, estás aí?
— Espera aí. — Ela conseguiu chegar ao pátio. Pequenos
grupos reuniam-se, a fumar e a conversar. Dirigiu-se a um canto,
mais perto da rua. A noite de junho estava quente e sufocante. —
Consegues ouvir-me agora?
— Sim. Olha, lamento fazer isto, mas houve uma fuga de gás no
meu hotel.
— Oh, não.
— Está tudo bem. Pronto, não está tudo bem, na verdade.
Tenho andado a telefonar para todo o lado a tentar encontrar
outro hotel, mas está tudo reservado por causa de uma
convenção de livros de banda desenhada. — Era verdade. A
Comic Con de Portland era naquele fim de semana. Nem de
propósito, um casal vestido com fatos de Thor a condizer um com
o outro passou na rua. — Sabes de algum sítio onde eu possa
ficar? Alguém que tenha um Airbnb que esteja de alguma forma
vago?
Mika pôs um dedo nos lábios.
— Não. Desculpa.
— Merda.
Embora... Hana fosse dormir a casa de Josephine e o quarto
dela estivesse desocupado há algum tempo desde que a amiga
andava em digressão.
— Hum, isto pode ser estranho, mas a Hana não tem estado em
casa ultimamente. Tenho um quarto livre. — Mika deixou a oferta
suspensa no ar.
Thomas hesitou.
— Não sei.
— Olha, esquece que sugeri. — Mika bateu com a cabeça
contra a parede de tijolo.
— Não, é uma ótima oferta. Não vai ser esquisito? Não te ias
incomodar com isso?
— Só será esquisito se o tornares esquisito — disse ela. — Não
me importo nada, desde que tu e a Penny não se importem.
Thomas fungou.
— Prefiro não lhe dizer nada. Ela estava entusiasmada por ir ao
Rocky Horror Picture Show com uns amigos novos esta noite.
Mas tenho a certeza de que não se vai importar. Seja como for,
não quero preocupá-la.
Mika endireitou-se.
— Muito bem. Eu vou buscar-te, então. — Mika tinha vindo de
carro e estacionara na rua, tencionando ir para casa de Uber, se
necessário. Mas não tinha bebido assim tanto. — Manda-me uma
mensagem a dizer em que hotel é que estás e dá-me uns minutos
para me despedir dos meus amigos.
* * *
Thomas tinha reservado um hotel perto da Universidade de
Portland e estava à espera na rua quando Mika parou. Ela não se
deu ao trabalho de sair do carro, limitando-se a abrir a bagageira
— desta vez com sucesso — para Thomas lá colocar a mala.
— Obrigado — disse ele, sentando-se no banco da frente.
— Sem problema.
Mika enfiou-se no meio do trânsito.
— Este carro é diferente — observou Thomas. Pelo canto do
olho, Mika viu-o passar com os dedos nos bancos gastos.
— Este é o meu carro verdadeiro — explicou Mika. — Aquele
com que te fui buscar a ti e à Penny é da minhaamiga Charlie.
Ela emprestou-mo durante aquela semana.
— Certo — disse Thomas. — É porreiro.
Mika riu-se.
— É péssimo. Fita adesiva, cola e muitas orações estão a
conseguir que se mantenha inteiro, mas já estamos juntos há
muito tempo.
Ela acariciou o tabliê com afeto.
— Não, é ótimo, a sério. E o cheiro é único, como… — Ele
procurou a palavra.
— Bolor. Deixei-o à chuva com as janelas abertas. — Pararam
num sinal vermelho e ela apanhou Thomas a olhar para o seu
ombro exposto. Puxou o vestido para cima. — Estava no centro
da cidade. Era a noite dos anos 80 no Cockpit. — Thomas não
disse nada. — Então, a Penny está no Rocky Horror Picture
Show? — Mika já lá tinha estado algumas vezes com Hana.
Tinha-se vestido com meias de rede e batom vermelho nessa
época, há muito tempo. Mika tinha curiosidade de saber se Devon
também teria ido. Imaginou o miúdo de cabelo à estrela pop com
um espartilho de couro sintético e sorriu para si própria.
— Sim. Eu não sabia o que era. Quero dizer, conheço o filme,
mas, aparentemente, é «toda uma cena» — disse ele, fazendo
aspas com os dedos no ar. — Ela tem um talento único para me
fazer sentir muito pouco fixe. — A boca de Thomas torceu-se num
sorriso meio invertido.
Passado um minuto, estavam em casa. Mika mostrou a casa a
Thomas e fez a cama de Hana com lençóis lavados. Tirou os
saltos altos, vestiu um par de calças de fato de treino e apanhou o
cabelo num coque no topo da cabeça.
— Queres comer ou beber alguma coisa? — Dirigiu-se ao
frigorífico e espreitou lá para dentro. Havia pouco por onde
escolher. Alguns ingredientes para salada. Um par de IPA que
eram de Hana. — Tenho alface, cerveja ou água.
— Cerveja seria ótimo.
Thomas ficou parado no meio da sala, de mãos enfiadas nos
bolsos. Mika tirou a carica da cerveja e entregou a garrafa a
Thomas antes de se enroscar num canto do sofá com um copo de
água. Thomas sentou-se do outro lado, com as pernas abertas.
Mika estudou-lhe o perfil, os planos duros das suas faces, o nariz
romano reto. Tinha as proporções perfeitas para ser modelo de
uma escultura.
Ele olhou para a porta do quarto de Hana.
— Onde está a Hana, afinal? Nunca me disseste.
Mika esticou os dedos dos pés em cima da mesa de centro.
— Bem, ela veio a casa este fim de semana, mas vai dormir em
casa da namorada. Tem andado em digressão com os Pearl Jam
no último mês ou assim.
— Bem, isso é fantástico.
— Sim. Ela é intérprete de língua gestual.
— É verdade, ela falou-nos disso quando fomos ver a partida de
roller derby.
— É incrível vê-la trabalhar, a forma como o corpo dela se move.
É como a arte performativa. Convidou-me para ir com ela na
digressão, mas eu recusei.
A boca dele estremeceu. Deu um gole na cerveja.
— Como assim?
As sobrancelhas dela uniram-se.
— Já estive em digressão com ela antes. É louco e divertido,
mas decidi ficar aqui para… consertar as coisas com a Penny e
concentrar-me no meu trabalho.
Thomas acenou com a cabeça, pensativo. Ambos
compreendiam. Penny era sempre uma razão para ficar.
— A Penny contou-me que tiveram uma boa conversa depois.
— Ele acenou com uma mão, como se quisesse incluir o passado
confuso, a abertura da galeria de arte, as mentiras de Mika, a
mensagem de voz caótica que deixara a Penny.
— Contou? — Mika engoliu um pouco e desviou brevemente o
olhar. Pousou o copo de água na mesa. Estava à espera de que
Thomas trouxesse à baila a noite da galeria, o rescaldo. Ela e
Penny tinham lidado com o assunto. Será que Thomas também
queria um ajuste de contas?
Thomas reclinou-se no sofá, abriu as pernas um pouco mais.
— Sim. Literalmente, ela disse-me: «Tivemos uma boa
conversa.» Só isso.
— Foi uma boa conversa, acho eu. Uma conversa honesta, pelo
menos — esclareceu Mika.
Ele ficou em silêncio por um minuto.
— Sabes, a Penny deixou-me ouvir a tua mensagem de voz.
O estômago de Mika revirou-se. A vergonha enchia-lhe as
entranhas.
— Foi uma coisa corajosa de se fazer, pôr tudo em pratos
limpos daquela maneira — disse Thomas, com seriedade, de
olhos claros e determinados pousados nela.
Surpreendida, os olhos de Mika arregalaram-se, depois troçou
de si mesma, sentindo uma pontada de desconforto.
— Eu queria fazer tudo certo, só isso. — Mika não podia dizer
que tinha sido algo corajoso. Lembrava-se de ter fugido do
apartamento de Peter. Não tinha parado de fugir desde então,
com medo do tempo e de si mesma, com medo de se magoar
novamente. Mas agora parecia ter abrandado para deixar Penny
entrar. Mika pestanejou contra a súbita vulnerabilidade, o medo.
— Mesmo assim, obrigada. E obrigada por teres deixado que ela
viesse este verão.
Foi a vez de Thomas troçar.
— Acho que não teria conseguido deter a Penny, mesmo que
tivesse tentado. — Thomas bebeu o resto da cerveja e recostou-
se com um suspiro. — Fiquei desconfiado quando vocês as duas
começaram a falar outra vez.
Mika deixou sair um longo fôlego.
— Compreendo.
— Ela disse que a levaste a conhecer os teus pais. Eu também
estava nervoso com isso. A última vez que vi a tua mãe… ela
basicamente olhou para a Penny como se ela tivesse três
cabeças.
Mika hesitou por um segundo. A perguntar-se quanto é que
deveria contar a Thomas sobre a sua relação com a mãe. Até
onde é que o devia deixar entrar?
— A minha mãe não queria que eu ficasse com a Penny —
admitiu Mika baixinho. Thomas inalou bruscamente. — Ela, hum,
achava que eu não aguentava ser mãe e não me apoiou durante
a gravidez.
— Sinto muito — disse Thomas, e havia um traço de qualquer
coisa nos seus olhos. Tristeza? Pena?
— Não faz mal — disse Mika. — Já pertence ao passado. —
Nem por isso, mas Mika não queria escavar muito fundo. O que
quer que ela desenterrasse seria muito confuso. Demasiado difícil
de limpar. — Também estava preocupada por a Penny conhecer
os meus pais. Mas correu tudo bem. Melhor do que eu pensava. A
minha mãe gosta dela, acho eu.
— Ela ligou-me depois e estava muito entusiasmada. Disse que
ia fazer qualquer coisa com a tua mãe…
— Tsukemono. Legumes em conserva — completou Mika.
— A Penny também disse que esta é a primeira vez que se
sente japonesa.
Mika ficou momentaneamente petrificada, apanhada de
surpresa.
— Uau. Desculpa.
Ela pediu desculpa porque sabia qual era a sensação. Tentar
dar-se tudo a um filho e saber que se ficou aquém. Que não se
era suficiente. Que eles precisavam de mais. Que as crianças
eram as piores e as melhores coisas que podem acontecer a uma
pessoa. Thomas encolheu os ombros.
— Nada disto é fácil.
— Não é — concordou Mika. — Thomas — disse ela e esperou
até ter a atenção dele. — Estou a esforçar-me na minha relação
com a Penny. Eu não devia ter mentido. Estava insegura em
relação a… muitas coisas — admitiu. — Queria ser digna da
Penny. — De ti. De toda a gente. Do mundo. Mas não
acrescentou isso.
Ele anuiu lentamente com a cabeça durante algum tempo e
disse:
— Eu acredito em ti. — Descascou o rótulo da garrafa de
cerveja com os polegares. — Embora pudesse ter-te dito desde o
início que mentires ao teu filho não cai bem. — Ele bateu no peito.
— Experiência pessoal.
— Oh?
— Tínhamos um gato e, quando a Penny tinha 5 anos, ele
desapareceu. Eu e a Caroline acordámos com uns ruídos
horríveis, uma manhã cedo. Um coiote apanhou-o, acho eu. Mas
em vez de dizer à Penny que o gato estava morto, dissemos-lhe
que ele tinha fugido. Ela andou a procurá-lo o tempo todo. Até
que, um dia, encontrou a coleira com um bocado de sangue. Isso
provavelmente marcou-a para o resto da vida. A Caroline tinha
problemas em falar sobre as coisas difíceis. Mesmo quando
descobriu que tinha cancro. Não quis contar à Penny de imediato.
Eu alinhei com ela. Mas, quando se veem as coisas mais tarde,
vê-se sempre tudo com claridade perfeita. Devíamos ter contado
à Penny sobre o gato. Devíamos ter-lhe contado sobre a mãe. —
Thomas sorriu pesarosamente, e o peso da confidência atingiu
Mika no peito. — Embora eu decididamente não lhe vá contar o
quanto bebi na faculdade. — Ele chegou-se para a frente,
deixando a garrafa de cerveja vazia pendurada entre os dedos. —
De qualquerforma, pais a mentir aos filhos não é uma coisa nova.
Não inventaste isso, por isso não te castigues demasiado.
Mika não sabia o que fazer com a gentileza de Thomas, nem
como retribuir, por isso, disse:
— Há mais cerveja no frigorífico, se quiseres outra.
Thomas levantou-se do sofá e apontou para o seu copo de água
quase vazio.
— Mais um?
— É melhor não — disse-lhe ela. — Eu desidrato-me de
propósito antes de dormir.
Thomas usou a bancada para tirar a carica da garrafa.
— Até tenho medo de perguntar.
Mika esticou-se, lânguida e cansada.
— Se ingerir muitos líquidos, passo a noite toda a acordar para
fazer chichi.
Uma bexiga fraca tinha sido um presente da gravidez. Um
lembrete de que o corpo de Penny tinha estado dentro do de
Mika. Mika pode ter-se esquecido dos detalhes desses nove
meses. A maioria das coisas desvanece-se com o tempo. Até as
coisas a que nos tentamos desesperadamente agarrar. Mas o
corpo dela lembrava-se sempre. Talvez seja isso que faz uma
pessoa envelhecer. O peso dos acontecimentos baixa os ombros,
as rugas marcam o rosto. Sim, era isso. A mente pode esquecer,
mas o corpo lembra-se sempre.
M
CAPÍTULO 22
ika estava a beber um café na cozinha quando viu Thomas
sair do quarto de Hana, a enfiar uma t-shirt azul-escura pela
cabeça. Ela virou-se e pestanejou, vendo o plano liso da
barriga dele, a pequena linha de pelos que desaparecia na
cintura. A sua linha da felicidade.
— Bom dia — disse Thomas, com voz áspera do sono.
— Olá. — Mika estremeceu com o tom estridente da sua própria
voz. — Fiz café. — Tirou uma caneca do armário e fê-la deslizar
em direção a Thomas.
— Obrigado.
Ele encheu a caneca.
— Tens natas no frigorífico. — Mika encostou-se à bancada e
cruzou os braços, com a caneca ainda numa mão. Estava vestida
com leggings e uma t-shirt largueirona. Em qualquer outra manhã,
andaria a passear-se de cuecas.
— Gosto dele simples. — Thomas levou o café aos lábios e
engoliu-o. Em cima da bancada, havia uma tigela com três
laranjas, e ele franziu-lhes o sobrolho, com o gosto fantasma de
algo amargo a torcer-lhe os lábios.
— O meu café é assim tão mau? Há um estúdio de goat yoga
barra café ao fundo da rua — ofereceu ela.
— Não. Não é isso. Eu… — Ele hesitou.
— O quê?
Thomas comprimiu os lábios e abanou a cabeça.
— Nada.
Olhou para as laranjas novamente.
— Diz.
A custo, ele lá disse:
— São as laranjas. Estão todas erradas.
— Está bem — disse Mika devagar.
— Odeio os umbigos.
Ele estremeceu visivelmente e empalideceu.
— Estás a falar disto?
Mika pegou numa laranja e estudou-lhe o umbigo. Dantes, a
tigela continha limões falsos.
— Sim — disse ele com sobriedade.
— Hum. — Ela voltou a pôr a laranja na tigela, com o umbigo
para baixo. Depois tratou das restantes, virando-as para a
bancada. — Alguma outra aversão alimentar que eu deva saber?
— Não, mas também tenho medo de gansos. — A cor voltou às
faces de Thomas. Mika estava preparada para deixar passar, mas
depois ele disse: — Prefiro não falar sobre isso.
— Agora preciso de saber.
Mika olhou-o por cima da borda da sua caneca. Ele encostou-se
à bancada.
— Má experiência quando era criança. Eu tinha um ganso de
peluche que adorava, até o meu irmão me perseguir pela casa
com ele, ameaçando tirar-me os olhos à bicada. Depois, quando
vi um bando de gansos ao vivo, eles perseguiram-me. Desde
então, não consigo suportá-los.
— Adoro todos estes vislumbres da tua vida pessoal. É muito
útil, psicologicamente — brincou Mika. Sorriram um para o outro.
A luz entrava pela janela da cozinha, espalhava-se densamente
pelo ar como mel mexido. Mika aclarou a garganta. — Então,
hum, a que horas parte o teu voo? — Penny andava a correr na
areia das dunas. Através da porta aberta do quarto de Hana, Mika
podia ver que a mala de Thomas já estava feita.
Ele consultou o relógio de pulso.
— O voo só sai ao final da tarde. Provavelmente, vou para o
aeroporto mais cedo e procuro um lugar para acampar. Estou a
voltar a ver todos os filmes d’O Senhor dos Anéis.
O maxilar de Mika caiu.
— Uau. Isso pode ser a coisa mais triste que eu já ouvi.
Thomas inclinou-se para a frente, cotovelos na bancada.
— Estou a pensar em aprender a língua dos elfos.
Mika soltou um suspiro.
— Risca o que eu acabei de dizer. Isso é que é a coisa mais
triste que já ouvi.
Thomas soltou uma meia gargalhada.
— É uma língua muito popular.
— Sim. Entre putos virgens solitários e imberbes — disse Mika
abruptamente, depois sentiu as bochechas a arder. Ela tinha
mesmo acabado de dizer aquilo? A boca de Thomas continuava
uma linha reta, mas os seus olhos reluziam de humor.
— Isso é um estereótipo muito prejudicial. — Fez uma pausa. —
Pensei numa coisa. — Posso tratar do teu buraco.
Mika engoliu em seco.
— Como assim?
Thomas apontou com o queixo para a janela da qual se via o
jardim das traseiras.
— O buraco no teu jardim, como forma de te agradecer por me
teres deixado passar aqui a noite.
A mente de Mika regressou ao momento em que Penny e
Thomas lá tinham ido jantar. Quando Thomas deu um pontapé à
terra e perguntou se ela tinha esquilos. Certo.
Mika juntou suavemente os lábios.
— Deixa estar. Na verdade, já o enchi.
Ela tinha plantado lá o ácer, aquele que Hiromi pensava que
tinha um fungo.
Thomas deslocou-se até à janela.
— Está com bom aspeto.
Mika olhou bem para Thomas. Pensou na conversa deles na
noite anterior. Em como hoje era um novo começo e, nesse
espírito…
— Muito bem — disse Mika, bebendo o resto do seu café e
depositando a caneca no lava-loiça de porcelana. — Vamos lá,
cara triste.
Thomas virou-se para ela.
— O quê?
— Vou levar-te para a rua.
As sobrancelhas dele uniram-se.
— Eu sei que tivemos as nossas divergências, mas expulsares-
me assim é um pouco demais, parece-me.
— Ah, ah, que piada — disse Mika a fingir que se ria.
Thomas pousou a caneca dele.
— Aonde vamos?
Mika pegou nas chaves e escancarou a porta, com o sorriso
ainda mais rasgado.
— Já vais ver.
* * *
— Donuts? — Thomas mudou o peso do corpo de um pé para o
outro, com as mãos enfiadas nos bolsos. — Isto é melhor do que
Mordor e aprender a falar élfico.
Dois tipos com calças de ganga justas à frente deles na fila
viraram-se e deixaram os seus olhos viajar desde as pontas dos
sapatos de Thomas até ao cimo do seu cabelo grisalho.
— Podes baixar o jargão do Senhor dos Anéis? — perguntou
Mika. — Sou capaz de conhecer alguém aqui. — O aqui
significava a Voodoo Doughnuts no bairro de Old Town. Nos
primeiros anos, a loja de donuts só estava aberta das nove da
noite às duas da manhã. Na faculdade, Hana e Mika entravam lá
dentro, encharcadas em álcool, para comerem donuts de baunilha
cobertos de cereais infantis e donuts com bacon e xarope de ácer.
Pouco depois, a loja começou a abrir durante o dia, e agora lá
estavam Mika e Thomas, à espera na fila por uma muito cobiçada
caixa cor-de-rosa de donuts. — Estamos a trabalhar na tua
espontaneidade.
A fila avançou. Mika e Thomas chegaram-se à frente.
— Eu sou muito espontâneo — disse Thomas orgulhosamente,
a balançar para a frente e para trás nos calcanhares. — Aos fins
de semana, não faço a cama. E, às vezes, eu e a Penny tomamos
o pequeno-almoço à hora de jantar. — Ergueu as sobrancelhas
como que a dizer «ora, toma».
— Uau! — Mika levantou as mãos; depois levou a mão ao peito,
fingindo-se chocada. Os dois rapazes à frente deles riram-se. —
Acho que o meu coração acabou de parar com o choque. —
Thomas conseguiu sorrir timidamente. Ela deu-lhe uma
cotovelada. — Anda, vamos lá encharcar-nos de açúcar e
portarmo-nos mal. — A fila avançou novamente e eles entraram
na loja. O chão era composto por mosaicos de linóleo cor-de-rosa,
amarelo, castanho e bege. As paredes estavam pintadas de
amarelo e cor-de-rosa. Verdadeiramente hediondo. Mas tinha um
cheiro incrível, como nadar numa cuba de açúcar, canela e pão a
fermentar. Pediram meia dúzia dos donuts mais populares a um
tipo ao balcão com bigode de pontas retorcidas e depois voltaram
para o carro. Instalaram-se, com a caixa cor-de-rosa cheia de
donuts na consola entre eles. Mikaesperou para ligar o carro, de
olhos postos na linha costeira à frente deles.
Mika abriu a caixa e pegou num Velho Sacana Podre, um donut
de levedura com cobertura de chocolate, bolachas Oreo e
manteiga de amendoim.
— Mesmo assim, gostava que me tivesses deixado comprar-te
uma t-shirt.
No balcão, Mika tinha tentado impingir uma t-shirt a Thomas.
Tinha o logótipo da Voodoo Doughnut, uma versão do Barão
Samedi com uma legenda que dizia A MAGIA ESTÁ NO BURACO. Tal
como acontecera com a história das laranjas, Thomas tinha
empalidecido visivelmente. Ele não usava nenhum tipo de
camisola com imagens. Demasiado ousado. Uma peculiaridade
de Thomas que Mika poderia ter achado alienante, mas que agora
considerava até amorosa.
— Estás a oferecer-me o pequeno-almoço com um ataque
cardíaco como bónus, já chega. — Thomas sacou um Frito de
Maçã da caixa e deu-lhe uma boa dentada. — Oh, meu Deus! —
disse ele, bochecha cheia de massa, olhos quase a revirar-se
para dentro da cabeça. — Este é o melhor donut que já comi na
minha vida.
— É, não é? — O sorriso de Mika rasgou-se de orelha a orelha.
— Eu sei. Costumava vir aqui a toda a hora com a Hana.
Thomas engoliu.
— Tão bom. — Ele escolheu um Picadinho de Lima e acabou
com ele em duas dentadas. Lambeu a geleia do dedo. — Vamos
trazer cá a Penny da próxima vez que eu a vier visitar. Ela
interessa-se por gastronomia e nunca me falou nisto. Vai achar-
me muito fixe por ter sabido disto antes dela.
Mika sorriu. Olhou para o relógio no tabliê. Ainda era cedo. O
voo de Thomas só saía dali a seis horas. Interrogou-se sobre
aonde haveria de o levar a seguir. Ao museu Freakybutttrue
Peculiarium, ao mercado dos agricultores, a mais comida… o que
é que Thomas gostaria de fazer? Olhou para a água, para os
barcos a passar e a navegar na corrente. Ligou o carro.
— Estás pronto para ir?
Thomas emitiu um som em concordância. Pelo menos, Mika
pensou que sim. Era difícil perceber, porque ele tinha a boca
cheia de donut com cereais infantis.
Trinta minutos depois, Mika entrou num parque de
estacionamento de cascalho sombreado por pinheiros altos. Uma
loja de conveniência com uma placa feita à mão ostentava: AS
MELHORES SANDES DE ENCHIDOS DESTE LADO DO RIO E AINDA ALUGUER DE
CAIAQUES.
— Caiaques? — disse Thomas, mas de um modo diferente do
que tinha usado para dizer donuts antes. No caminho, tinha
tratado da saúde a mais dois e uma camada de açúcar em pó
manchava-lhe o joelho.
— Caiaques.
Mika anuiu com a cabeça. Lembrava-se de que Thomas
praticara remo na faculdade.
— Não ando na água há… — Ele abanou a cabeça. — Credo!
Já nem sei há quanto tempo. — Fez estalar os nós dos dedos,
arqueando as sobrancelhas escuras. — Sim, está bem. Estou
entusiasmado.
Alugaram os caiaques, depois encontraram-se com um tipo
entroncado e barbudo na costa arenosa que os equipou com um
saco à prova de água, coletes salva-vidas e um apito vermelho.
— Para o caso de encontrarem a Roslyn — disse ele.
— Roslyn? — perguntou Mika, enquanto vestia o colete salva-
vidas.
— Sim. Um jacaré, achamos que era o animal de estimação de
uma criança. — Ele riu-se a desconsiderar a ideia e acenou com
uma mão. — De qualquer forma, provavelmente não a vão ver,
mas se a virem, têm o apito.
— O apito, sim — disse Mika, fazendo uma pausa enquanto
fechava o casaco.
Thomas agarrou no apito e pô-lo ao pescoço.
— Mais alguma coisa? — Ele estava mais do que preparado,
quase aos saltinhos. Não tinha olhado para o relógio uma única
vez desde que tinham chegado nem mencionado o trânsito e o
aeroporto.
— Não. Os caiaques são vossos durante três horas. Mas isto
tem estado muito parado esta manhã, por isso podem ficar um
pouco mais — disse o homem.
Thomas agradeceu-lhe e dirigiu-se para um caiaque cor de
laranja. Mika seguiu-o, ainda com o colete desapertado.
— Hum… Thomas. Acho que devíamos ir para outro lado.
— O quê? Porquê? — Ele virou-se para ela num ápice.
— Por causa da… — Mika baixou a voz para que o barbudo não
a ouvisse, mas ele já estava a subir as escadas para o
estacionamento. — A Roslyn.
— O jacaré? Espera, estás com medo? — perguntou, incrédulo.
Como se comesse jacarés ao pequeno-almoço.
— Claro que estou com medo.
— Estou a ver. — Thomas tentou esconder o seu sorriso. —
Tenho a certeza de que ele estava só a brincar. O apito é para o
caso de nos virarmos ou de nos perdermos. Além disso, não
achas que, se houvesse mesmo um jacaré, haveria placas
afixadas? — É verdade. Isso fazia sentido. — E que nos davam
algo mais do que simplesmente um apito? — Ainda mais sentido.
Thomas olhou para a água, a tristeza a suavizar-lhe os olhos. —
Mas se não queres mesmo… — A sua voz desvaneceu-se,
baixou a cabeça e virou os olhos para cima, a olhar para Mika por
entre as pestanas escuras, o cachorrinho mais triste que ela
alguma vez vira.
— Uf, está bem — disse Mika. — Mas se encontrarmos algo
remotamente escamoso, empurro-te logo para a minha frente.
Thomas descreveu uma cruz sobre o coração.
— Implorarei a qualquer criatura que encontrarmos para me
levar primeiro.
Entraram para os caiaques e impulsionaram-se com as pás.
Thomas assumiu a liderança, o seu remo esfaqueava a água que
parecia vidro, com o ar de um profissional experiente. Ela viu os
músculos dos braços dele a moverem-se e a fletirem enquanto
usava os remos para manobrar. Cada vez mais longe da doca,
afastaram-se, remando sem rumo. E Thomas era como um miúdo
que ingerira demasiado açúcar, a sua excitação parecia uma
corda usada por vaqueiros… que capturou Mika.
— A Penny ia adorar isto — comentou Thomas.
— Sim — concordou Mika com um sorriso, imaginando a cena:
os três a remarem através da água, o riso contagiante de Penny a
flutuar pelo rio, sempre tão preparada para a aventura. Mika tirou
algumas fotografias, mandou-as a Penny e depois voltou a
guardar o telemóvel no saco impermeável.
Thomas desceu o rio de caiaque, afastando-se cada vez mais.
Mika contentou-se em ir atrás dele, a seguir-lhe o rasto. De vez
em quando, ele fazia uma pausa e virava-se para trás para se
certificar de que ela estava a acompanhá-lo. Um sorriso de miúdo
transformara-lhe as feições — parecia anos mais jovem,
despreocupado. O sol brilhava, os pássaros chilreavam, e parecia
que eram as únicas duas pessoas num raio de vários quilómetros.
Quando chegaram junto a uma zona com lírios, Mika descansou
o remo sobre os joelhos e inclinou-se para trás, à deriva na água,
feliz e a desfrutar da luz do sol e da felicidade de Thomas.
Trás. Alguma coisa bateu contra as costas do caiaque de Mika.
Ela virou-se na direção do som. A Roslyn? O caiaque estremeceu,
inclinando-se. Mika entrou em pânico e deslocou o peso do corpo,
fazendo um movimento que se transformou num safanão. O
caiaque inclinou-se, levando Mika com ele. Um grito estrangulado
saiu-lhe da garganta assim que ela bateu na água. Ficou
submersa por um segundo. Com a cabeça a alcançar a superfície,
arfou. Através da cortina do seu cabelo preto empapado, viu
Thomas a remar na sua direção.
— Deste de caras com a Roslyn? — Ele parou mesmo ao lado
dela e apontou para alguma coisa com o remo. Mika afastou o
cabelo do rosto. Quase ao nível dos olhos, a olhar para ela,
estava um castor. O nariz torcia-se, revelando longos dentes
amarelados. Analisou-a por um momento, depois virou-se e bateu
com a cauda na água enquanto nadava. — Um pouco peludo
para ser um jacaré — disse Thomas, sem expressão.
Mika olhou para Thomas, virou costas e nadou até ao caiaque,
tentando, sem sucesso, içar-se para dentro dele. Tarde demais,
lembrou-se de que simples elevações básicas faziam-na gritar.
Conseguir que o seu corpo, vestido e molhado, entrasse de novo
no caiaque era quase impossível. Por fim, Thomas teve de entrar
na água e ajudá-la. Nadaram juntos, a conduzirem os respetivos
caiaques para uma alcova arenosa próxima. Arrastaram-se para a
costa, com as roupas molhadas agarradas ao corpo. Thomas tirou
a camisa e Mika, de repente, achou o chão fascinante. Ele
espremeu a t-shirt para escorrer a água para a areia e voltou a
vesti-la.Mika cruzou os braços sobre o peito e tremeu. O dia
estava quente, mas eles estavam à sombra. Cada brisa era um
pequeno chicote frio contra a pele dela.
Os olhos claros de Thomas olharam Mika de alto a baixo.
— Aguenta aí — ordenou ele. Avançou decididamente para a
floresta e voltou com ramos secos, folhas e algumas cascas de
árvore. Mika observou-o a usar a corda de nylon do apito para
fazer algo parecido com um arco. Por fim, agachou-se e montou
uma outra engenhoca, movendo o arco para a frente e para trás.
As folhas começaram a esfumaçar e a pegar fogo. Thomas
soprou-lhes e o lume aumentou. Juntou dois pedaços de madeira
maiores na fogueira.
Mika deu um passo em frente para colocar as mãos acima das
chamas.
— Isto é muito Bear Grylls da tua parte — disse ela, de forma
direta.
— Aquele tipo? Aquilo é tudo encenado.
Thomas parecia um pouco ofendido.
— Oh? — perguntou ela. Thomas simplesmente acenou com a
cabeça: não era preciso dizer mais. — Então, como é que se
aprende a fazer uma fogueira com paus, folhas e corda de nylon?
— Eu fui escuteiro — disse ele com um encolher de ombros.
Thomas fez uma pausa. — Fica aqui. Aquece-te. Vou buscar mais
lenha.
— Escuteiro — Mika sussurrou para si mesma, vendo Thomas
recolher ramos das árvores. — Faz todo o sentido.
Uns minutos depois, a fogueira ardia em pleno. Tiraram os
sapatos e colocaram-nos a jeito para secar. As bochechas de
Mika aqueceram bastante. Thomas sentou-se à frente dela, de
joelhos para cima, com os cotovelos apoiados neles. Mika ouviu o
chilrear dos pássaros e olhou para o lume, hipnotizada pelas
chamas.
— Desculpa a história com o castor.
— Não te preocupes com isso. Tenho a certeza de que os
castores estão sempre a ser confundidos com jacarés.
Thomas olhou para o lado. Comprimiu os lábios, esforçando-se
para não sorrir. Mika viu-o baixar a cabeça. Os ombros dele
estremeceram. Ele estava a rir-se — dela.
— És hilariante — disse Mika, sem rodeios.
Ele sorriu-lhe.
— Não. Eu percebo. Percebo mesmo. Ele era aterrador. Estou a
ver porque é que entraste em pânico. Decididamente, não foi uma
reação exagerada.
Mika enterrou os dedos dos pés na areia.
— O castor era grande.
— Quando eu voltar a contar a história, vou descrever o castor
como sendo enorme, pelo menos cinquenta quilos — prometeu
Thomas.
— Tenho quase a certeza de que não ultrapassa os vinte e
cinco. Mas aprecio o teu castor mutante. — Mika também
apreciava a forma como a t-shirt húmida de Thomas se colava
aos seus ombros. Ela encontrou um pau e espevitou o fogo,
desviando o olhar para longe. — Deves saber que, caso surja
outro castor gigante que possa ser um jacaré, vou atirar
alegremente o teu corpo para a frente do meu. Seria uma pena a
Penny perder um dos pais, mas… — Mika fez uma pausa,
percebendo o que tinha dito. Atrapalhou-se para corrigir. —
Merda. Desculpa — disse, de forma fraca. Ela tinha-se esquecido.
Caroline. Mika olhou para ele, impotente.
Thomas olhou para ela sobre o fogo com um olhar ardente.
— Não faz mal — acabou ele por dizer, com uma expressão
impenetrável.
Mika enfiou as mãos na areia e cerrou os punhos.
— Faz mal, faz. Sou uma idiota insensível. Desculpa — disse
ela estupidamente. — A Penny comentou que não gostas de falar
sobre isso. Eu compreendo. Ainda não ultrapassaste.
Os olhos de Thomas cintilaram e algumas batidas tensas
passaram antes de ele responder.
— Alguma vez se ultrapassa a morte de alguém que se ama?
— Não.
Mika desviou o olhar.
A iluminação estava mesmo certa. As árvores em redor
espelhadas na água, as suas folhas brilhantes e verdes, a
sorrirem ao verão. Dali a pouco tempo, encaracolar-se-iam,
ficariam castanhas e murchariam com o outono. A maioria das
vidas era desenhada com linhas frágeis. Os ataques de pânico
pioraram depois de Mika ter tido Penny. No início, Hana fora
paciente e meiga. Sentada ao lado de Mika enquanto ela se
fraturava e entrava em curto-circuito, enquanto se estilhaçava
totalmente.
«Acho que estou a morrer», dizia ela a Hana, a arfar para
respirar. Mas, na verdade, pensara Mika, era a alma dela a tentar
reentrar num corpo que já não lhe servia. Meia dúzia de vezes
depois, a paciência de Hana diminuiu. Ela tornou-se
amorosamente má. Obrigou os pés de Mika a calçar sapatos, o
corpo da amiga a atravessar o campus e dirigir-se aos serviços de
aconselhamento gratuitos. Lá, Mika conheceu Suzanne, uma
licenciada em Psicologia que se aproximou de Mika como se ela
fosse um cavalo rebelde chicoteado. Suzanne ensinou a Mika
como havia de respirar entre o medo. Quando Mika se acalmou,
tinha cerrado os punhos e batido nos joelhos e dito: «Eu
simplesmente preciso de superar isto.» Era algo que a mãe tinha
incutido nela. Superar a adversidade. Tal como havia narrativas
para boas mães, também havia narrativas para boas vítimas. Não
deixes que isso te defina. Sê corajosa. Não uma vítima.
Suzanne inclinou-se, colar de macramé a balouçar no ar, e, com
toda a empatia do mundo e talvez alguma piedade, disse:
«Querida, isto não é algo que uma pessoa ultrapasse. É algo que
uma pessoa tem de suportar.»
Agora, Mika repetia-o.
— É algo que uma pessoa tem de suportar — sussurrou Mika a
Thomas.
Ele olhou para ela, com uma expressão aguçada e ardente.
— É exatamente isso. — Um triste fantasma de um sorriso
apareceu-lhe no rosto. — A Caroline costumava dizer uma piada.
Agora que penso nisso, era um pouco mórbida. Mas ela
costumava gozar comigo e dizia que eu estava preso num coma a
sonhar. Às vezes, ela abraçava-me por trás e dizia: «Acorda,
Thomas, eu amo-te. Preciso de ti.» Depois ria-se como se fosse a
coisa mais engraçada do mundo. Quando ela faleceu, eu estava
ao lado dela. Havia uma série de enfermeiros por perto, mas não
consegui evitar. Sussurrei-lhe ao ouvido: «Acorda, Caroline. Eu
amo-te. Preciso de ti.» — Ele fez uma pausa. Os seus olhos
estavam vermelhos e a lacrimejar. Os de Mika também. — Nunca
contei isto a ninguém.
— Depois de ter tido a Penny, eu costumava falar com ela —
disse Mika de rompante. «Olá, bebé, hoje tens duas semanas e
espero que estejas bem. Eu não me estou a sentir lá muito bem»,
dizia Mika. Era tudo o que ela podia fazer para evitar que se
autodestruísse completamente.
Thomas assentiu com a cabeça em concordância.
— Eu também costumava falar com a Caroline. Depois fui
falando cada vez menos. Até que um dia, não falei com ela de
todo. — Aclarou a garganta e esfregou a pele debaixo do nariz. —
De qualquer forma, é algo por que eu já passei. Agora estou do
outro lado. Já não carrego isso tudo comigo. Estou grato pela
Caroline, pela vida que tivemos juntos, pela Penny. Não tenho
nenhum arrependimento. Mas… — Respirou fundo e continuou:
— A Penny disse que eu não gosto de falar dela?
— Sim.
— A culpa é minha. — Thomas atirou mais lenha para o fogo. —
Fiquei tão chateado depois de ela morrer. Tão perdido na minha
própria desolação, que não tornei as coisas fáceis para a Penny.
— Como é que ela era?
As palavras escaparam-lhe e Mika desejou poder recolhê-las.
Ela queria gostar de Caroline, mas também sentia uma fome
profunda de encontrar defeitos nela, essa outra mãe fantasma
para Penny.
Finalmente, Thomas sorriu novamente.
— A Caroline era incrível. Como pessoa, era doce, generosa e
carinhosa. Quando era enfermeira, ficava depois do seu turno
acabar para visitar os pacientes que não tinham família. Era uma
ótima esposa e mãe. Formávamos uma boa equipa. Quem me
dera que ela estivesse aqui para ver a Penny. Quão boa ela é.
— Ela parece perfeita. — Mika tentou esconder a inveja na voz.
Como é que ela se podia comparar?
Thomas estudou Mika.
— Não era, na verdade. Longe disso. Tinha mau feitio e usava o
silêncio como arma. — Mika pensou na infelicidade silenciosa da
sua própria mãe. Na recusa de Penny em falar sobre Caroline. Na
sua própria relutância em seguir em frente depois de Peter. Em
todas as formas que as mulheres empunharam ou mantiveram o
silêncio. Como pode ser perigoso. — Uma vez, não falou comigo
durante dois dias seguidos quando bebi demais com alguns
amigos.
— Chiça— disse Mika.
Thomas acenou com a cabeça e espetou um dedo na areia.
Sorriu ironicamente.
— Ela gostava de controlar. Limpava as coisas obsessivamente
e era um pouco perfecionista. Houve vezes em que pensei que
nunca seria suficientemente bom para ela. Mas ela amava-me na
mesma e eu amava-a a ela.
Mika olhou de soslaio para Thomas. Pensou no amor, nas suas
diferentes formas — na sensação de o ter, de o perder. Ambos
tinham isso em comum.
Ouviu-se o rugido de um motor a aproximar-se. As aves voaram
sobressaltadas das árvores. Um barco de pesca desligou o motor
e aproximou-se da margem.
— Ei! — O tipo barbudo do local de aluguer de caiaques colocou
as mãos em concha em torno da boca e gritou: — O vosso
aluguer já acabou e não se pode fazer fogueiras nessa praia. É
terreno público.
Thomas e Mika levantaram-se. Thomas atirou areia para a
fogueira e o barbudo aproximou o barco. Juntos, carregaram os
caiaques.
— Desculpe — disse Thomas, o vento a soprar-lhe no cabelo no
caminho de regresso ao cais. — Tivemos um encontro com a
Roslyn.
O tipo barbudo soltou uma gargalhada profunda. Levantou o
braço apontando para um bordo de videira a crescer no banco de
areia. Os seus ramos arqueavam sobre a água e deles pendia o
boneco enlameado de um jacaré, com um pedaço de cartão em
volta do pescoço, onde se via o nome Roslyn escrito com
marcador.
— A Roslyn volta a atacar — disse ele.
* * *
Mika esperou de costas enquanto Thomas trocava a roupa
húmida por roupa limpa e seca no carro dela. Ele apareceu com
uma camisola.
— Toma — disse ele, entregando-a a Mika.
— Oh, obrigada.
Mika vestiu-a, ficando com o emblema da equipa de remo de
Dartmouth sobre o peito.
Conduziu Thomas ao aeroporto e despediram-se. Mika
ofereceu-se para lavar a t-shirt e mandar-lha. Mas ele disse que a
receberia quando voltasse à cidade dentro de algumas semanas.
Em casa, Mika tomou banho. Quando saiu, tinha à espera uma
mensagem de Thomas.
O voo está prestes a embarcar. Obrigado por esta manhã.
Tinha-me esquecido de como é bom estar na água.
Ela lembrou-se de Thomas no caiaque. O seu sorriso ténue era
contagioso, demasiado confiante, de olhos no rio sinuoso. Ela
conhecia esse olhar. Conhecia esse sentimento. Era o mesmo
que ela tinha quando olhava para as tintas. Como se algo lhe
pertencesse. Sempre às ordens, respondeu ela.
Foi realmente incrível. Uma pessoa está sempre ocupada
com a família e tudo mais, mas sinto que ainda tenho jeito
para a coisa, devolveu ele.
Sim, és de certeza o melhor da cantareira dos caiaques,
rematou ela de volta. Ele respondeu com uma única palavra.
Cantareira?
Ela deu um nó no roupão antes de esclarecer. O melhor de
todos os tempos.
Estou a sentir sarcasmo. Ainda estás chateada por causa
do castor?, provocou ele.
Não sei de que estás a falar, respondeu ela com um sorriso
crescente.
Obrigado, disse ele simplesmente.
Não tens de quê. Ainda bem que te divertiste, respondeu ela.
Mika pegou nas roupas do chão, incluindo a camisola dele, e
meteu-as na máquina de lavar. De volta ao telemóvel, Thomas
tinha enviado uma nova mensagem. A sério, fico a dever-te
uma.
 
ADOÇÃO NA AMÉRICA
Gabinete Nacional
56544 W 57th Ave. Suite 111
Topeka, KS 66546
(800) 555-7794
 
Querida Mika,
 
Como estás?! Já viste a rapidez com que o tempo passa? A
Penny tem 13 anos e tem sido uma alegria vê-la crescer
contigo. Como sempre, podes encontrar anexos os itens
definidos no acordo de adoção estabelecido entre ti, Mika
Suzuki (a mãe biológica) e Thomas e Caroline Calvin (os pais
adotivos) relativamente a Penelope Calvin (a adotada). O
conteúdo inclui:
 
• Uma carta anual do pai adotivo a descrever o
desenvolvimento e o progresso da adotada
• Fotografias e/ou outros itens memoráveis
 
Liga-me se tiveres alguma dúvida.
 
Atenciosamente,
 
Monica Pearson
Coordenadora de Adoções
 
Cara Menina Suzuki,
 
A Penny comemorou o seu décimo terceiro aniversário na
semana passada e está no sétimo ano. Está a dar-se bem e
destaca-se na maioria das disciplinas. Está a pensar em juntar-
se a uma equipa de atletismo e pediu um gato como prenda de
Natal. Incluí algumas fotografias do projeto que ela apresentou
recentemente na feira de ciências.
 
Com os melhores cumprimentos,
Thomas
M
CAPÍTULO 23
ika olhou para o monte de laranjas.
— Está a escapar-me alguma coisa? — Penny inclinou a
cabeça, depois a sua boca formou um pequeno O. — Viste
uma aranha gigante? Li uma vez uma história sobre aracnídeos
tropicais que andam à boleia em carregamentos de fruta.
Mika abanou a cabeça, aproximando-se das laranjas para evitar
um pai com três filhos turbulentos no seu carrinho de compras. O
Uwajimaya, o mercado asiático, estava barulhento, animado e
agitado naquela manhã de sábado.
— Não. Nenhuma aranha gigante.
Penny fez uma expressão tristonha com os lábios.
— Bolas.
Mika pegou numa laranja para a examinar, virando-a nas mãos.
— Sabias que o teu pai não gosta dos umbigos das laranjas?
— Oh, sim. Ele é mesmo estranho.
Penny mudou de lugar, pousando o cesto cheio de barras de
chocolate Meiji, palitos Pocky e rebuçados White Rabbit: uma
dieta perfeitamente equilibrada. Depois, virou uma parte das
laranjas para que ficassem todas com o umbigo ou com o rabo
para cima.
Mika sacou o telemóvel do bolso de trás e tirou uma fotografia.
— Será que devíamos mandar-lhe uma fotografia?
— Com certeza — disse Penny com um ligeiro sorriso, pegando
no cesto.
Mika enviou a fotografia com um sorriso malicioso. Riram-se as
duas e fizeram mais algumas compras, Penny maravilhou-se com
os pacotes de lulas secas, os ouriços-do-mar vivos em aquários e
as montanhas de couve pak-choi. Absorveu as visões e os
cheiros como um caule de bambu sedento de chuva. Thomas
enviou-lhe uma mensagem com a fotografia de um castor, mas,
de alguma forma, coloriu os olhos com um tom de verde néon.
Mika optou por não mostrar a imagem a Penny. Como é que iria
explicar-lha? Pensei ter visto um jacaré e, na verdade, tratava-se
de um castor. Virei o meu caiaque e o teu pai teve de me pescar.
Primeiro, era tudo embaraçoso. Mika sentiu o calor nas faces só
de pensar nisso. Segundo, as laranjas eram algo que os três
partilhavam, mas a piada sobre o castor… era de Mika e de
Thomas. Todo o contexto poderia parecer estranho a Penny ou,
pior ainda, íntimo.
Quando pagaram e saíram, Mika insistiu para que provassem
takoyaki.
— Polvo frito, comida de rua — explicou ela a Penny enquanto
deslizavam para as cadeiras na praça de restauração. No Japão,
era indelicado comer em andamento. Mika dispôs os lanches em
forma de bola no meio da mesa e salientou alguns dos
ingredientes: bolas de massa com um pedaço de polvo no interior,
bocados de tempura, gengibre em conserva e cebola verde.
Penny separou um par de hashi de madeira e começou a atacar a
comida. Mika adorava a forma como a sua filha era destemida.
Penny mastigou lentamente, com ar pensativo.
— Isto é bom. Gosto disto — anunciou. Assim que acabou o
primeiro, enfiou um segundo na boca, depois anunciou, com a
boca cheia: — Estou a pensar em dormir com o Devon.
Mika engasgou-se, tossiu, cuspiu e depois bebeu um pouco de
água.
Penny observou-a de lado.
— Estás bem?
Mika deu uma palmadinha no peito.
— Desculpa. Dormir com ele? — perguntou com cuidado, a
garganta ainda a arder um pouco. Talvez tivesse ouvido mal.
Talvez tivesse ouvido corretamente e não tivesse percebido.
Talvez dormirem juntos não significasse o mesmo que Mika
pensava que significava. Talvez agora fosse mais uma festa de
pijama, em linguagem adolescente, como envolverem-se em
lençóis e deitarem-se lado a lado silenciosamente no escuro, sem
toque absolutamente nenhum.
— Sabes, sexo — disse Penny, baixando a voz.
Mika bebeu novamente água e tentou fazer surgir um sorriso
encorajador.
— Isso é um grande passo. — Foi a única coisa que lhe ocorreu
dizer no momento, além de lembrar a Penny que ela tinha 16
anos. Um bebé. A minha bebé.
Penny amachucou um guardanapo até formar uma bola e deu-
lhe um murro.
— Estou preparada. Tenho a certeza de que estou. Tipo, eu
achoque o amo.
Devon podia não sentir o mesmo, mas Mika não teve coragem
de dizer isso, não teve coragem de partir o coração a Penny. De
expressar o seu medo de que Penny pudesse não ser amada da
maneira que gostaria de ser ou que deveria ser. Então, em vez
disso, Mika disse:
— O amor nem sempre é um requisito.
Ela observou Penny, pensou na filha, na sua visão do mundo:
como era pequena, singular e um pouco ingénua. Fora isso que
Hiromi pensara de Mika quando ela era adolescente? Mika
remexeu-se no seu lugar. Como é profundamente perturbador
uma pessoa pensar que pode ser como a própria mãe.
Penny mordiscou o lábio inferior, levantando as pestanas para
cruzar timidamente o seu olhar com o de Mika.
— Posso perguntar… Quero dizer, como é que foi a tua primeira
vez?
Mika concentrou-se num tanuki na secção de artigos para a
casa. Os olhos do guaxinim dançarino eram estrábicos e entre as
pernas tinha pendurado um enorme par de testículos — está-se
mesmo a ver, para dar sorte.
— A minha primeira vez? — Mika pestanejou e viu o Cheerful
Tortoise, um bar no campus. Lembrou-se das ancas dela a
balançar como um pêndulo, a sorrir para um tipo giro por entre a
multidão. O nome dele era Jordan, um licenciado em Ciência
Política. Ele usava Birkenstocks com meias, dividia um
apartamento com quatro outros tipos e, no seu quarto, ao invés de
um candeeiro, havia um daqueles holofotes de pôr ao ar livre. —
Não foi lá muito memorável nem romântico. Mas foi divertido —
respondeu Mika, honestamente e com um sorriso de saudade. —
Doeu um bocadinho. — Sentiu as faces a arder, sentiu a atenção
de Penny a intensificar-se. Ela não contara a Jordan que era
virgem até depois do ato. Ele insistiu em ir mais devagar, em
tentar novamente. Ouviram Wilco enquanto ele lhe fez sexo oral.
Mika olhou fixamente para a mesa. — Penny — disse ela, a
invocar um tom calmo e isento de juízos de valor. — Tens a
certeza? Em relação ao Devon? Não o conheces há muito tempo.
— Só quatro semanas, queria Mika acrescentar. Sentiu-se uma
hipócrita, a mil por cento. Mas, Deus, porquê ter filhos se não os
conseguirmos salvar dos nossos erros?
— Conheço — disse Penny, com uma expressão resoluta nos
olhos. Olhos que não haviam visto o suficiente, longe disso. —
Passamos muito tempo juntos, quase todo o dia, todos os dias.
Além disso, sabes, já fiz montes de outras coisas.
Mika ficou tensa.
— Não preciso de saber.
Quanto menos pormenores, melhor.
— Estou preparada. Eu sei que estou — insistiu Penny.
— Está bem. — Perante a capitulação de Mika, o seu
amolecimento, Penny também o fez.
— O Devon é bom rapaz. Temos falado muito sobre isso. Ele
não tem estado a pressionar-me nem nada.
— Está bem — disse Mika novamente. Inspirou fundo, aceitando
a inevitabilidade. Aquilo ia acontecer. Havia algo de intemporal no
facto de os filhos não ouvirem os pais. E Mika sentia-se parte
desse ciclo infinito. — E contraceção? Já discutiram isso?
Duas manchas brilhantes apareceram nas faces de Penny.
Talvez estivesse a pensar em Mika, em como ela tinha
engravidado tão jovem. Em como não queria que lhe acontecesse
o mesmo que acontecera à mãe biológica, uma adolescente com
escolhas limitadas.
— Ele disse que ia usar preservativo e eu ando a tomar a pílula
há uns anos… períodos difíceis.
— Parece que têm tudo controlado, então. — Mika mexeu-se
para se pôr de pé e limpar a mesa. Hiromi nunca tinha falado com
Mika sobre sexo. E o que ela tinha aprendido na escola girara em
torno de dizer «não», gravidez e doenças sexualmente
transmissíveis. Ninguém lhe disse quão divertido podia ser. Nem
quão complicado.
— Temos. Juro — assegurou Penny, ainda sentada. — Olha,
mas achas que podes manter isto em segredo? Entre nós?
Mika fez uma pausa, com o tabuleiro de cartão e os hashi
usados na mão.
— Queres dizer, não contar ao teu pai?
Penny desconsiderou com um aceno de mão.
— Não é nada de mais. Olha, é que há simplesmente algumas
coisas que ele não precisa de saber.
Mika sentou-se novamente no seu lugar. Penny queria que Mika
mentisse a Thomas. Não posso. O pensamento atingiu Mika como
um relâmpago.
— Não me sinto lá muito confortável com isso, Penny. Não tens
de ter a conversa da virgindade com ele, mas tens de lhe contar
sobre o Devon, tens de lhe dizer, pelo menos, que andas com
alguém. Quero dizer, sei por experiência própria que a verdade
tem uma forma de se revelar — tentou brincar.
O rosto de Penny endureceu. Olhou para todo o lado menos
para Mika.
— Se calhar, devia voltar para o dormitório.
— O quê? — Mika vacilou. Penny tinha o fim de semana livre. Ia
passar a noite com a mãe.
— Sim, acabei de me lembrar de que prometi à Olive que íamos
trabalhar juntas em alguns dos nossos tempos.
— A sério? — Mika franziu uma sobrancelha.
— A sério. — Penny levantou-se e agarrou no saco de compras
dela, com tanta força que Mika reparou nos nós dos dedos
esbranquiçados. — Pronta?
Caminharam até ao carro, com a sombra da fúria de Penny
seguindo-as de perto. Mika estava sem palavras. O que é que
tinha acabado de acontecer? A viagem em si foi pior. Silenciosa e
pulsante com o descontentamento de Penny. Mika jurou que ouviu
um som de rasgar, um rasgão no tecido da relação dela e de
Penny. Como é que o coseria de novo? Estacionou o carro junto
ao dormitório e virou-se para a filha, falando com ela por cima da
consola.
— Eu…
Tarde demais. Penny bateu com a porta.
* * *
Horas depois, Mika já não estava confusa. Capaz de repetir a
conversa várias vezes na sua cabeça no silêncio de casa, vacilou
entre estar profundamente magoada com Penny e zangada com
ela.
— Ela está furiosa comigo? — bufou Mika para si mesma,
sentindo coisas indescritíveis sobre Penny. Coisas como quão
teimosa e petulante a sua filha podia ser. Mas depois… — Ela
está furiosa comigo — disse mais calmamente. Pensou em ligar a
Thomas. Conversar com ele sobre a melhor maneira de abordar
Penny. Mas era Penny quem ela queria mesmo, era com ela que
Mika precisava de falar. Então, quando o sol se punha, ligou à
filha. Ela não queria ir para a cama sem isto estar resolvido. Não
havia um ditado sobre nunca ir dormir zangado? Seja como for,
Mika não se queria esconder, acobardar-se sob as mudanças de
humor de Penny.
O telemóvel tocou algumas vezes e Mika preparou-se,
acalmando os nervos.
— Olá — disse Penny. Só isso.
— Não quero que fiques zangada comigo — disse Mika de
rompante. Ela estremeceu e esperou. Eu dei-a à luz. Devia ser-
me natural ser maternal.
— Também não quero ficar zangada contigo — admitiu Penny.
Mika inalou e olhou pela janela da sala de estar para o
pavimento escuro lá fora.
— Bem, agora que estabelecemos que… — A sua voz
desvaneceu-se. — Quero que sejas capaz de me contar coisas.
Quero ser uma caixa de ressonância, um lugar seguro para ti,
mas também sou a tua… — Ela parou mesmo antes de dizer
mãe. — Sou adulta, e mentir ao teu pai deixa-me numa posição
difícil.
Depois de um instante, Penny suspirou.
— Já percebi, acho. — Onde é que ela está? Mika tentou
imaginar Penny no corredor do dormitório. O nariz enrugado, um
pouco vermelho do choro, talvez Devon a ver. — Vou contar ao
meu pai sobre o alojamento misto e o Devon. Não por me teres
dito para o fazer…
— Claro que não — interpôs Mika.
— Mas porque eu quero que ele conheça o D. — Ela suspirou
novamente. — Provavelmente vai fazer aquilo de dizer que não
está zangado. Que está só desapontado. — Os lábios de Mika
curvaram-se para cima. Típico do Thomas. — Mas acho que não
lhe vou contar sobre a parte do sexo — disse Penny, como se
estivesse a traçar uma linha na areia.
Embora Penny não conseguisse ver, Mika anuiu com firmeza.
— O corpo é teu, a escolha é tua.
— Nós gostamos mesmo um do outro. Eu sei que sou uma
adolescente e provavelmente é só isso que vês…
— Não é só isso que vejo — disse Mika. — Acredito que és
inteligente e sensata e que conheces o teu próprio coração.
— Obrigada. Isso significa muito.
— Reconheço que isto é constrangedor. — Mika teve de engolir
o nó que se lhe formara na garganta. — Promete-me que falas
comigo

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