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◉
É verdade, hoje em dia não somos mais do que
uma pálida versão dos cruzados, e a esta fraqueza
nem os caminhantes intrépidos escapam, pois não
se comprometem com proezas intermináveis.
As nossas expedições são apenas passeios que
terminam à noite no conforto da lareira da qual
partimos. Metade da caminhada não é mais do
que percorrer lugares já conhecidos.
Devíamos ir mais longe no mais simples dos
passeios, e talvez, no espírito da aventura infinita,
nunca mais regressar – preparados para enviar de
volta aos nossos desolados reinos os nossos
corações embalsamados, quais singelas relíquias.
Se estão dispostos a deixar pai e mãe, irmão e
irmã, mulher e filho e amigos, e não voltar a vê-los;
se pagaram as vossas dívidas, e escreveram o
vosso testamento, trataram dos vossos assuntos,
e são homens livres; então estão preparados para
uma caminhada.
A vida reside no lado selvagem.
O mais vivo é o mais selvagem.
O que ainda não se subjugou ao homem, a terra
retempera-o. Aquele que avança em frente
incessantemente, nunca descansando das tarefas,
se desenvolve depressa e exige infinitamente à
vida, irá sempre encontrar-se num novo país ou no
meio selvagem, rodeado da matéria-prima da vida.
É como se transpusesse os troncos das árvores
derrubadas das florestas primitivas.
FICHA TÉCNICA
info@almadoslivros.pt
www.almadoslivros.pt
facebook.com/almadoslivrospt
instagram.com/almadoslivros.pt
© 2021
Direitos desta edição reservados
para Alma dos Livros
Titulo: Andar a Pé
Título original: Walking
Autor: Henry David Thoreau
Tradução: Raquel Ochoa
Revisão: Silvina de Sousa
Paginação: Maria João Gomes
Capa e ilustrações: Vera Braga / Alma dos Livros
Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
ISBN: 978-989-9054-10-3
1.ª edição em papel: Abril de 2021
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida em qualquer forma sem permissão
por escrito do proprietário legal, salvo as exceções
devidamente previstas na lei.
A presente edição não segue a grafia
do novo Acordo Ortográfico de 1990
Prefácio
Nos meus passeios, depois de traduzir este livro, comecei a
atravessar baldios, numa sede de terrenos sem cimento, estrada ou
calçada, num inegável apelo ao prazer de trespassar, e assim
comecei a encontrar tesouros, por exemplo, trilhos escondidos
debaixo dos pinheiros centenários, trilhos abertos porque alguém ali
passeia, repetidamente, mas nunca se vêem — os caminhantes são
uma raça discreta e silenciosa.
Na viagem, não importa aonde se chega, mas sim o partir, é um
dito conhecido, ou outra forma de dizer que nunca podemos dar-nos
ao luxo de não viver o tempo presente, a cada segundo, a cada
metro palmilhado, porque cada um dos nossos momentos debaixo
do sol é o maior erário, se conseguimos ESTAR ALI...
Quem diria que a liberdade é a realidade e que as leis e os
compromissos são a ficção? Quem diria, nesta vida de corrida e
competição, que os nossos músculos em andamento se
desenvencilham das correntes em que cada um se deixou enredar
por não exercer o seu lado selvagem? Quem e por que razão se
deixou apartar tanto da natureza ao ponto de já não se considerar
um torrão dela?
Sempre soube que caminhar me trazia lucidez, aumentava a
minha ânsia de conhecimento e acalmava a minha busca furiosa
para um sentido — um —, ao de leve que fosse, por o absurdo
cósmico da vida. Mas foi Thoreau, neste seu radical panfleto, quem
me conseguiu explicar a lógica entre a caminhada e o ser livre.
«Há algo de servil no hábito de invocar uma lei a que
devemos obedecer. (...) Vivam em liberdade, filhos da névoa —
no que diz respeito ao conhecimento, nós somos todos filhos
da bruma. O ser humano que escolhe viver em liberdade é
superior a todas as leis.»
Tudo é mobilidade, movimento, dança de constelações. Há que
descobrir o significado por trás de cada palavra, neste livro, na vida,
andando-a, caminhando-a.
Caminhar e dançar são, afinal, sinónimos, e à (há) falta de horas
a dançar, que nunca encontremos justificação para deixar de
caminhar.
Raquel Ochoa
Sintra, Fevereiro de 2021
I
Quero dizer uma palavra em nome da natureza, pela liberdade
absoluta e pelo espírito selvagem, em contraste com a liberdade e a
cultura meramente civilizadas — considerando o homem um
habitante da natureza, ou uma parte ou parcela dela, e não como
mero membro da sociedade. Quero fazer uma afirmação radical, e,
se puder, de forma enfática, pois já existem suficientes defensores
desta civilização: dos padres aos directores da escola. E cada um
de vós encarregar-se-á disso.
Apenas encontrei uma ou duas pessoas no curso da minha vida
que compreenderam a arte de caminhar, ou seja, de dar grandes
passeios — e que tinham talento, assim dizendo, para vaguear, na
nossa língua, saunterer, palavra maravilhosamente derivada «dos
vadios que erravam pelo país, na Idade Média, pedindo esmolas,
sob o pretexto de irem para a Terra Santa, até as crianças gritarem
“Aí vai um peregrino da Terra Santa”», um sainte-terrer, um
saunterer, um vagabundo. Aqueles que nunca alcançam a Terra
Santa nas suas peregrinações, como o fingem fazer, são de facto
meros vadios e vagabundos; mas os que lá vão são saunterers no
sentido real, tal como o entendo. Alguns, todavia, reivindicam a
origem da palavra à expressão sans terre, sem-terra ou
propriedade, que, por isso mesmo, num certo sentido, significará
não ter casa específica, mas que igualmente se sentem em casa em
todo o lado. Pois este é o segredo da errância bem-sucedida.
Aquele que se mantém sempre sentado em casa pode ser o maior
errante; e o sem-terra pode não ser mais nómada do que um rio
sinuoso, cujo propósito persistente é encontrar o percurso mais
curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira suposição, que, de facto,
é a mais provável origem do termo. Pois cada caminhada é uma
pequena cruzada, pregada por um tal Pedro, o Eremita, que existe
dentro de cada um de nós, para que partamos e reconquistemos a
Terra Santa das mãos dos infiéis.
É verdade, hoje em dia não somos mais do que uma pálida
versão dos cruzados, e a esta fraqueza nem os caminhantes
intrépidos escapam, pois não se comprometem com proezas
intermináveis.
As nossas expedições são apenas passeios que terminam à noite
no conforto da lareira da qual partimos. Metade da caminhada não é
mais do que percorrer lugares já conhecidos. Devíamos ir mais
longe no mais simples dos passeios, e talvez, no espírito da
aventura infinita, nunca mais regressar — preparados para enviar de
volta aos nossos desolados reinos os nossos corações
embalsamados, quais singelas relíquias. Se estão dispostos a
deixar pai e mãe, irmão e irmã, mulher e filho e amigos, e não voltar
a vê-los; se pagaram as vossas dívidas, e escreveram o vosso
testamento, trataram dos vossos assuntos, e são homens livres;
então estão preparados para uma caminhada.
Para me cingir à minha experiência, eu e o meu companheiro (às
vezes tenho quem me faça companhia) temos prazer em
imaginarmo-nos cavaleiros de uma nova, ou antes, velha, ordem —
não Equestre ou Cavalheiresca, nem de Cavaleiros Andantes ou
Paladinos, mas Caminhantes, uma classe, a meu ver, ainda mais
antiga e venerável. O espírito heróico e cavalheiresco que
antigamente pertencia ao Cavaleiro parece agora residir, ou
prevalecer, no Caminhante, no Andarilho — não no Cavaleiro; uma
figura como uma espécie de quarto estado, além da Igreja, do
Estado e do Povo.
Temos a impressão de que nestas redondezas nos encontramos
quase sozinhos na prática desta nobre arte; embora, para dizer a
verdade, pelo menos se as suas afirmações são honestas, a maioria
dos meus conterrâneos gostasse de caminhar de vez em quando,
como eu faço, mas não pode. Nenhuma riqueza compra os
incontornáveis prazeres, liberdade e independência em que assenta
a fundação deste ofício. Deriva apenas da graça de Deus. Para nos
transformarmos em caminhantes, precisamos de uma licença
directa dos Céus. Há que ter nascido caminhante para pertencer a
esta casta. Ambulator nascit, non fit (nasci ambulante, não me fiz).
Algunsdos meus conterrâneos, em boa verdade, conseguem
lembrar-se e descrever-me caminhadas que fizeram há dez anos,
nas quais, imagine-se, tiveram a bênção de se perder meia hora no
bosque; mas eu sei muito bem que desde aí se limitaram às
estradas do país, por mais que pretendam integrar esta selecta
classe. Sem dúvida que foram elevados por um momento, como se
de uma reminiscência de um anterior estado de existência se
tratasse, quando ainda eram homens da floresta e foras-da-lei.
«Chegado aos verdes bosques
Numa linda manhã
Escutou os suaves chilreios
De pássaros cantores.»
«Há muito tempo», disse Robin,
Que não vinha a estes bosques;
E é meu desejo
Caçar os pardos veados que ali vejo.»
Creio que não consigo preservar a minha saúde física e espiritual
se não passar quatro horas por dia, pelo menos — e
frequentemente passo mais do que isso —, a deambular pelos
bosques, montes e vales, absolutamente alheado de todas as
obrigações mundanas. Nessas ocasiões, bem poderiam apostar um
cêntimo pelos meus pensamentos, ou mil libras, que nada
perderiam. Quando por vezes me lembro de que artesãos ou
caixeiros ficam nos postos de trabalho não só a manhã, mas
também a tarde, muitos deles de perna cruzada, penso que
merecem algum reconhecimento por ainda não terem cometido
suicídio.
Eu, que não consigo permanecer fechado no meu quarto por um
único dia sem enferrujar, e às vezes me resgato para um passeio ao
anoitecer, demasiado tarde para redimir o dia perdido, quando as
sombras nocturnas já se mesclam com a luz solar, já me senti como
se tivesse cometido um pecado do qual devia ser punido, confesso
que fico atónito com o poder da resistência, para não falar da
insensibilidade moral, dos meus vizinhos confinados em lojas e
escritórios todo o dia durante semanas e meses, e, sim, anos quase
seguidos. Não sei de que fibra são feitos — ali sentados agora às
três da tarde, como se fossem três da madrugada. Bonaparte sabia
bem o que era coragem a altas horas da noite, mas matar à fome
uma guarnição inteira à qual estamos ligados pelo afecto e
companheirismo é uma coragem insignificante comparada com a
que vos permite ficar sentados de bom humor às três da tarde.
Espanta-me que por essa hora, ou digamos entre as quatro e as
cinco da tarde, já tarde para os jornais matutinos e muito cedo para
os vespertinos, não se ouça em toda a rua uma explosão geral que
dissipe uma legião de ideias e fantasias mesquinhas e antiquadas e
que areje a rua para a sanar deste mal.
Não sei como as mulheres, circunscritas em casa muito mais do
que os homens, aguentam esta situação; mas tenho razões para
suspeitar de que muitas delas não a toleram de todo. Nas tardes de
Verão, depois de sacudir o pó das mangas dos nossos fatos,
passando apressadamente defronte das genuínas fachadas dóricas
ou góticas das casas que transmitem um ar de repouso, o meu
companheiro sussurra que provavelmente os seus moradores
devem estar a fazer uma sesta àquela hora. Pois então eu aprecio a
glória da arquitectura, que nunca se recolhe, mantendo-se sempre
cá fora, erguida, em vigília aos que dormem.
Sem dúvida que o temperamento e, acima de tudo, a idade
interferem no assunto.
À medida que um homem envelhece, aumenta a sua capacidade
para se sentar quieto e ocupar-se com actividades de interior. Com
a chegada do inverno da sua vida, torna-se uma criatura de hábitos
vespertinos, começando enfim a sair apenas ao pôr do Sol e em
meia hora caminha tudo o que necessita.
Mas o caminhar de que falo em nada se assemelha a fazer
exercício, como se costuma dizer, não se refere a uma prescrição
médica tomada a determinadas horas — nem como os halteres
desenvolvem os músculos; é sim o empreendimento e a aventura do
dia. Se procura exercício, busque-o nas fontes da vida. Imagine um
homem a levantar pesos para cultivar a sua saúde, quando essas
fontes de vida borbulham em prados longínquos desprezados por
ele!
Além disso, deve caminhar como um camelo, tido como o único
animal que rumina enquanto caminha. Quando um certo viajante
pediu à criada de Wordsworth que o levasse ao escritório do seu
amo, ela respondeu: «Aqui está a sua biblioteca, mas o seu
escritório é lá fora.»
Viver imenso na rua, ao sol e ao vento, provocará
inquestionavelmente uma certa rudeza de carácter — causará o
crescimento de uma membrana mais espessa sobre algumas das
qualidades mais delicadas da natureza humana, e também nas
mãos e no rosto, tal como o intenso trabalho manual retira alguma
sensibilidade às mãos. Do mesmo modo, ficar em casa, por outro
lado, pode desencadear indolência e torpor, para não dizer
fragilidade da pele, acompanhada de um aumento de sensibilidade
a certas impressões. Talvez fôssemos mais susceptíveis a
determinadas influências importantes para o nosso crescimento
moral e intelectual se o sol nos tivesse queimado menos e o vento
houvesse soprado mais brando. De facto, é difícil encontrar a justa
proporção entre macieza e aspereza. Mas parece-me que é uma
película que vai cair com facilidade — e que o remédio natural tem
de ser encontrado na mesma proporção em que a noite se deixa
render pelo dia, o Inverno pelo Verão e o pensamento pela
experiência. Quanto mais ar e luz do Sol houver nos nossos
pensamentos, melhor. As mãos calosas de um homem do campo
equivalem, melhor do que os dedos lânguidos de um ocioso, aos
tecidos aprimorados do respeito próprio e do heroísmo, cujo toque
emociona o coração. É mero sentimentalismo o de quem dorme de
dia e se pensa alvo e puro, longe de ver tisnada a pele ou de ter os
calos da experiência.
Quando caminhamos, naturalmente vamos para os campos e
florestas: o que seria de nós se só caminhássemos em jardins e em
zonas comerciais?
Certos filósofos de algumas correntes sentiram a necessidade de
trazer a si os bosques, dado que não se deslocavam até eles.
Plantaram bosques e alamedas de renques de plátanos onde se
prestavam a subdiales
ambulationes, passeios em pórticos a céu aberto. Claro que de
nada vale dirigirmos os nossos passos para as florestas se eles não
nos levam ali por inteiro. Fico alarmado quando me acontece,
quando o meu corpo caminhou uma milha pelos bosques, mas o
meu espírito está ausente. No meu passeio da tarde, gosto de
esquecer completamente as tarefas que realizei de manhã e as
obrigações sociais. Mas acontece, às vezes, não conseguir sacudir
de mim a civilização com facilidade. Os pensamentos à volta de
algum trabalho correm na minha cabeça e não me encontro onde o
meu corpo está — perco a consciência. Gostaria de voltar a estar
presente. Que faço eu nos bosques, se a minha concentração foge
para algo que não é o estar ali? Recrimino-me e não consigo evitar
um arrepio quando me reconheço tão abstraído, mesmo se são
nobres os motivos da abstracção — o que, de facto, acontece com
frequência.
A minha zona proporciona-me muitas caminhadas interessantes;
e embora as faça há anos, quase diariamente, e às vezes dias a fio,
ainda não posso dizer que a palmilhei toda. Uma paisagem
absolutamente nova torna-me muito feliz, e posso tê-la em qualquer
tarde. Andar duas ou três horas a pé levar-me-á a uma parte tão
desconhecida que nunca esperaria ver. Uma simples casa no
campo jamais notada por mim é por vezes tão interessante como os
domínios do rei de Daomé. Há, de facto, uma espécie de harmonia
a ser encontrada entre os recursos de uma paisagem num raio de
dez milhas, ou seja, nos limites de um passeio à tarde, e a sétima
década da vida humana. Nunca se pode dizer que se compreendeu
tudo.
Hoje em dia, quase todo o pretenso progresso da humanidade —
como a construção de casas, a desflorestação, incluindo o abate de
árvores de grande porte — simplesmente deforma a paisagem, e
torna-a insípida e vulgar. Quem me dera que houvesse um povo que
começasse a queimar as vedações e deixasse a floresta viver! Vi
cercas semidestruídas, os postes soltos no meio do prado, e um
avarento mundano acompanhado de um agrimensor a tentar
encontrar os seus marcos, enquanto o Céu o rodeava, e ele não viu
os anjos à volta, agitados, mascontinuava a procurar um velho
buraco no meio do paraíso. Olhei de novo, e vi-o de pé no meio de
um pântano infernal, rodeado de demónios, vi que ele encontrara os
marcos exactos, devido a três pedras nas quais haviam fixado uma
estaca, e olhando mais atentamente, reparei que o Príncipe das
Trevas era o seu agrimensor.
Começando à minha porta, posso facilmente caminhar dez,
quinze, vinte, ou qualquer número de milhas, sem passar por
nenhuma casa ou sem atravessar caminhos excepto os que as
raposas e as doninhas fazem: primeiro sigo ao longo do rio, depois
pelo ribeiro, e de seguida pelo campo e pelos limites da floresta.
Nesta zona, há milhas quadradas sem vivalma. Do cimo de muitas
colinas, avisto ao longe a civilização e as residências dos homens.
Os agricultores e os seus trabalhos são pouco mais do que
marmotas e respectivas tocas. Alegro-me ao ver o pequeno espaço
ocupado na paisagem pelo homem, igreja, estado e escola,
comércio, manufactura e agricultura, até a política, de todos o mais
alarmante. A política não passa de um campo minúsculo ao qual se
acede por uma estrada ainda mais restrita. Por vezes para lá se
dirige um viajante. Se querem ir para o mundo da política, sigam a
grande estrada — vão atrás do comerciante, mantenham a poeira
nos vossos olhos de tão perto o seguirem, e chegarão lá
directamente; pois este mundo ocupa apenas um lugar específico,
não ocupa todo o espaço disponível. Afasto-me dele como quem
atravessa um faval e entra na floresta, e logo o esqueço. Em meia
hora de caminho, alcanço lugares à superfície desta terra onde
nenhum homem permanece um ano inteiro, e onde,
consequentemente, a política não fecunda, pois não passa de cinza
de charuto nas mãos de alguém.
A vila é o local para onde as estradas convergem, uma espécie
de alargamento da estrada real, como um lago num rio. É um corpo
cujos braços e pernas são as estradas — com quatro ou três
caminhos que se cruzam e lhe dão acesso, uma estrada pública e o
percurso comum dos viajantes. A palavra deriva do latim villa, em
conjunto com via, caminho, ou do mais antigo ainda ved ou vella,
que Varrão dizia derivar de veho, de transportar, porque a aldeia ou
vila é o local para onde e de onde as coisas são transportadas.
Aqueles que ganhavam a vida a transportar animais chamavam-se
vellaturam facere. Daí, a palavra latina e a nossa vila; bem como
vilão, o que sugere uma certa degeneração a que os aldeões se
entregavam. Sem nunca viajarem, fatigavam-se dos que chegavam
à aldeia, dos viajantes que circulavam.
Alguns nem sequer caminham; outros fazem-no pela estrada;
poucos atravessam a natureza. As estradas são construídas para
cavalos e negociantes. Eu não as frequento muito porque não tenho
pressa para chegar a alguma taberna, loja, estrebaria ou armazém
aonde elas conduzem. Sou como um cavalo que corre na pradaria,
não vou pela estrada por escolha. O paisagista, para representar a
estrada, assinala a figura humana. Não me poderia escolher como
modelo. Desbravo a natureza tal como velhos profetas e poetas,
Menu, Moisés, Homero, Chaucer. Podem dar-lhe o nome de
América: mas não é América, nem Américo Vespúcio, nem
Colombo, nem os outros foram descobridores daqueles lugares.
Pelo que sei, há mais verdade na mitologia do que em qualquer
versão histórica sobre a chamada América.
De qualquer modo, há estradas antigas que vale a pena
percorrer, como se agora, que estão abandonadas, nos
conduzissem a um destino certo. É o caso da velha estrada de
Marlborough que já não vai dar a Marlborough, suponho, a não ser
que Marlborough seja o sítio aonde ela me leva. Ouso citá-la aqui
porque creio que há sempre uma ou duas estradas assim em cada
localidade.
II
A velha estrada de Marlborough
Onde antes se cavou por dinheiro
Mas nunca se lhe sentiu o cheiro,
Onde Martial Miles, sozinho,
trilha por vezes o pó do caminho,
E Elihaj Wood o fez,
Receio que de nada vale, porém.
Ninguém se vê:
só Elisha Dugan se entrevê —
homem de vida ruste
vai à caça e faz lume,
sem nada a confundir-lhe o passo
só tem de lançar o laço.
Vive em solidão ténue,
A vida alegre é simplesmente
Comer regaladamente.
Se na Primavera se reergue
A vontade de partir,
O longe a surgir
Na velha estrada de Marlborough.
Ninguém a mantém
Pois ninguém por ali vem;
Mas que é a estrada da vida
Nenhum cristão o duvida.
Poucos nela se prolongam
Quando a trilham:
Somente os convivas, à vez,
De Quin, o irlandês.
Que estrada é esta, que estrada,
Senão uma direcção sonhada,
Um puro desejo
Para vogar sem ensejo?
Grandes marcos de pedra há nela,
Mas não se vê gente que a cruze,
E há cenotáfios dos povoados
Repletos de nomes gravados.
Vale a pena ir ver
Onde podemos ser.
Onde é possível viver.
Ordenados por que rei?
Nunca o saberei.
Quando e por quem erguidos?
Que homens foram os escolhidos:
Gourgas ou Lee,
Clark ou Darby?
Têm por grande aspiração
Ser de eterna duração;
Nas lajes de pedra fina,
Quem passa ali se inclina
E em pouco mais que um verso
Transborda todo o Universo.
Se outro por ali passar,
fundeia o profundo olhar.
Sei de um par de linhas
Que muito bem ficariam,
E até podiam resistir
Na literatura sem igual;
Se as leio, sei que as relembro
Até ao próximo mês de Dezembro.
Linhas para na Primavera compreender,
Quando o gelo derreter.
Se a fantasia libertares
E a tua casa deixares,
Granjearás o mundo inteiro
Na velha estrada de Marlborough.
III
Actualmente, nesta zona, a melhor parte da terra não é
propriedade privada; a paisagem não tem dono, e o caminhante
desfruta de uma liberdade relativa. Mas possivelmente virá o dia em
que será retalhada nos chamados parques, nos quais uns poucos
privilegiados terão o seu gozo em exclusivo — quando as vedações
se multiplicarem, locais intrespassáveis e outros engenhos
inventados para limitar o homem à estrada pública, e, nesse dia,
caminhar sobre a superfície da Terra criada por Deus implicará
invadir a propriedade de algum senhor. Desfrutar muito de algo
significa normalmente uma pessoa privar-se do seu verdadeiro
deleite. Aproveitemos hoje todas as oportunidades, antes que esses
abomináveis dias cheguem.
Porque será tão difícil por vezes determinar para onde nos
devemos encaminhar? Acredito que há um magnetismo subtil na
natureza, o qual, se rendidos inconscientemente, nos levará ao
caminho certo. Não nos é indiferente o rumo escolhido. Há um
caminho certo; porém a nossa desatenção e estupidez têm
propensão para o errado. Gostaríamos de dar aquele passeio,
nunca antes feito por nós neste mundo físico, o que simboliza
perfeitamente o caminho que adoraríamos percorrer no mundo
interior e espiritual; e por vezes, sem dúvida, é difícil escolher uma
direcção, porque não existe uma ideia clara no nosso espírito.
Quando saio de casa para uma caminhada, ainda indeciso
quanto à direcção que os meus passos devem tomar, e submeto a
decisão ao meu instinto, por estranho e bizarro que pareça, dirijo-me
inevitavelmente para sudoeste, para um bosque em particular, ou
prado ou pastagem deserta, ou monte naquela coordenada. A
agulha da minha bússola não é rápida a acalmar-se — demora a
fixar-se, e nem sempre aponta em rigor para sudoeste, é verdade,
mas anda por ali, fixando-se entre o oeste e o sudoeste.
O futuro, para mim, aponta nessa direcção, e essa parte do
planeta parece-me inesgotável e rica.
O traçado que limitaria os meus passeios seria não tanto um
círculo, mas uma curva de cento e oitenta graus, parecida com uma
dessas órbitas dos cometas que se crê formarem curvas de não
retorno; neste caso, abrindo para oeste, onde a minha casa ocupa o
lugar do Sol.
Às vezes fico indeciso e ando às voltas por um quarto de hora,
até decidir, pela milésima vez, que vou caminhar para sudoeste ou
oeste. Para este, vou a contragosto; mas para oeste sigo livremente.
Para acolá, nada tenho para fazer. Custa-me a crer que possa
encontrar bonitas paisagens ou suficientes lugares intocados e
liberdade para lá do horizonte a leste. Não me entusiasma a
perspectiva desse passeio; mas acredito que a floresta que vejo no
horizonte a oeste se estendeininterruptamente até à orientação do
sol-poente, e não há vilas nem cidades com dimensão suficiente
para me perturbar. Deixem-me viver onde me apetece. Neste lado é
a cidade, naquele é a natureza, e cada vez mais me desprendo da
cidade, deixando-me absorver pela natureza.
Devia preocupar-me menos com este facto, se não acreditasse
que esta tendência prevalece nos meus patrícios. Devo caminhar
até Oregon, e não na direcção da Europa. É esse o rumo da nação,
e posso dizer que o progresso da humanidade avança de leste para
oeste. No espaço de alguns anos, testemunhámos o fenómeno da
migração para sudeste, na colonização da Austrália; mas isto
apresenta-se como um movimento retrógrado, e, julgando o carácter
moral e físico da primeira geração de australianos, ainda não se
revelou ser uma experiência de sucesso. O povo tártaro pensa que
não há nada para lá do Tibete, a oeste. «É o fim do mundo», dizem
eles; «além há mar infinito». Vivem então num leste sem fim.
É rumo a leste que compreendemos e nos debruçamos sobre
obras de arte e da literatura, procurando as origens do ser humano;
para oeste, vamos em busca do futuro, com espírito empreendedor
e aventureiro.
O Atlântico é como o rio Lete: quando o atravessamos,
recebemos a oportunidade de esquecer o Velho Mundo e as suas
instituições. Se não formos bem-sucedidos, provavelmente resta
uma oportunidade para a humanidade antes de chegar às margens
do Estige, o rio que faz a fronteira entre a Terra e o Além; refiro-me
ao rio Lete que é o Pacífico, três vezes mais amplo.
Não sei como interpretar isto, ou até que ponto é uma evidência
de singularidade, a de que um indivíduo coincide nos seus mais
inconsequentes passeios com as migrações gerais dos humanos;
mas sei que algo semelhante acontece no instinto migratório dos
pássaros e quadrúpedes — que, em certos casos, se sabe ter
afectado uma família inteira de esquilos, impelindo-os a uma
deslocação enorme e misteriosa, sendo vistos, segundo
testemunhos, a atravessar amplos rios, cada um na sua casca, com
a cauda levantada como se servisse de vela, e usando os esquilos
entretanto mortos na travessia de caudais menos volumosos,
formando pontes e atravessando-as. Algo semelhante ao furor que
ataca o gado doméstico na Primavera, e a que chamamos bichos-
carpinteiros, afecta também nações e pessoas, quer
permanentemente quer de forma passageira. Nenhum bando de
gansos selvagens grasna nos céus de uma cidade o tempo todo,
mas até certo ponto, se eu vendesse casas, isso desvalorizaria o
seu valor imobiliário, e provavelmente tomaria essa anomalia em
consideração.
É então que apetece, em peregrinação,
Ir aos santuários de cada região.
Todo o pôr do Sol a que assisto inspira-me o desejo de rumar ao
oeste, tão distante e belo como aquele onde o Sol mergulha.
Aparentemente, ele emigra para oeste todos os dias e deixa-nos a
tentação de o acompanhar. É o Grande Pioneiro do Oeste seguido
pelas nações. Sonhamos todas as noites com as montanhas
vislumbradas no horizonte, apesar de, possivelmente, serem apenas
resultantes de condensação de vapor, douradas por derradeiros
raios solares. A Atlântida, bem como as ilhas e os Jardins das
Hespérides, uma espécie de paraíso na Terra, parece ter sido o
grande Ocidente dos antigos, envolto em mistério e poesia. Quem
não imaginou, ao olhar para um pôr do Sol, os Jardins das
Hespérides, e a origem de todas estas fábulas?
Colombo sentiu a inclinação para oeste com mais intensidade do
que qualquer outro antes dele. Seguiu o instinto e encontrou o Novo
Mundo para Castela e Leão. Uma multidão de homens, naqueles
dias, sentiu a fragrância verdejante desses pastos distantes.
Ora se espraia o sol pelas colinas,
Ora mergulha na baía do ocidente;
Quando chega ao zénite, o manto azul sacode;
Amanhã, por frescos bosques e novos campos corre.
IV
Em que zona do globo se pode encontrar uma área de dimensão
igual à ocupada pela maioria dos estados americanos, com terra tão
fértil e tão rica onde vingam tantas culturas e, ao mesmo tempo, os
europeus se adaptam tão bem? Michaux, que só conhecia parte do
nosso território, dizia que «havia um incomparável maior número de
espécies de árvores de grande porte na América do Norte em
relação à Europa; nos Estados Unidos da América há mais de cento
e quarenta espécies de árvores que excedem os nove metros de
altura; em França somente trinta atingem este tamanho». Mais
tarde, os botânicos confirmaram cabalmente as suas observações.
Humboldt viajou até à América para concretizar os seus sonhos de
jovem de estudar a vegetação tropical, e ali contemplou a sua
impressionante perfeição nas primitivas florestas da Amazónia, a
mais gigantesca selva da Terra, que descreveu com imensa
eloquência. O geógrafo Guyot, também ele europeu, vai mais longe
— tão longe que não sei se o subscrevo; excepto quando afirma:
«Tal como a vegetação é feita para o animal, e o mundo vegetal é
feito para o mundo animal, a América está feita para o homem do
Velho Mundo... Ele vai no seu encalço. Deixa os planaltos da Ásia,
percorre de etapa em etapa até à Europa. Cada um dos seus
passos marca uma nova civilização, superando a anterior, com
maior força de desenvolvimento. Chegou ao Atlântico, estancou-se
perante a orla deste desconhecido oceano, cujas dimensões não
domina, e regressou ao chão que pisa, por algum tempo.» Quando
já exauriu o rico solo da Europa, e se sente revigorado, «então
recomeça o seu empreendimento de aventura em direcção ao oeste
como nos tempos remotos». Disse-o Guyot.
É deste impulso para o oeste, entrando em contacto com o
obstáculo do Atlântico, que nasce o comércio e o
empreendedorismo dos tempos modernos. Michaux, enquanto
jovem, no seu Travels West of the Alleghanies, em 1802, diz que
uma pergunta nas novas colónias da América era: «“De que parte
do mundo vens?” Como se estas vastas e férteis regiões fossem
naturalmente o ponto de encontro e território comum a todos os
habitantes do planeta.»
Empregando uma palavra latina antiquada, eu diria: Ex oriente
Lux; ex occidente Frux. Do Oriente, a luz; do Oeste, os frutos.
Sir Francis Head, viajante inglês e governador-geral do Canadá,
diz-nos: «Tanto no hemisfério norte como no do sul do Novo Mundo,
a natureza superou-se nas suas criações pela sua maior escala,
mas não só, pois pintou o cenário inteiro com cores mais brilhantes
e garridas do que as que delineiam e embelezam a Velha Europa...
O céu da América parece infinitamente superior, com o ar mais puro,
o frio mais intenso, a Lua parece maior, as estrelas são mais
brilhantes e os trovões mais sonoros, os relâmpagos mais
espectaculares, o vento mais forte, a chuva mais pesada, as
montanhas mais altas, os rios mais longos, as florestas mais vastas,
os prados mais extensos.» Esta afirmação bastará para contradizer
a de Buffon sobre esta zona do mundo e as suas criações.
Há muito tempo, Lineu disse: «Nescio quae facies laete, glabra
plantis Americanis» (Não sei o que há de alegre e suave no aspecto
das plantas americanas); e creio que neste país não existem, ou há
poucas, Africanae bestiae, feras africanas, como os romanos lhes
chamavam, o que também é particularmente conveniente para a
fixação do homem. Diz-se que num raio de cinco quilómetros da
cidade de Singapura, todos os anos, alguns habitantes são
arrastados por tigres; mas o viajante pode dormir à noite nos
bosques, sem recear as bestas selvagens, de quase todo o território
da América do Norte.
São testemunhos encorajadores. Se aqui a Lua parece maior do
que na Europa, provavelmente, também o Sol. Se o céu da América
se nos afigura infinitamente mais alto e as estrelas mais cintilantes,
estou convencido de que simbolizam a elevação à qual a filosofia, a
poesia e a religião dos seus habitantes podem almejar. Com o
tempo, quiçá, o divino firmamento pareça muito mais magnânimo na
mente de um americano, e os sinais que o povoam como estrelas
ainda mais brilhantes. Acredito que o clima influencia o homem —
tal como há algo no ar da montanha que nutre o espírito e o
alimenta. Não irá o homemdesenvolver maior perfeição intelectual e
física sob estas influências? Ou é irrelevante o número de dias de
nevoeiro que suportou na sua existência? Sou de opinião que
seremos mais imaginativos, que os nossos pensamentos ficarão
mais claros, lúcidos e mais sublimes, como o céu que nos rodeia —
o nosso raciocínio mais compreensivo e amplo, como as nossas
planícies — o nosso intelecto, mas em grande escala, como o nosso
raio e trovão, os nossos rios e montanhas e florestas — e os nossos
corações se assemelharão em tamanho, profundidade e grandeza
aos nossos mares continentais. Possivelmente, o viajante sentirá
algo, ele mesmo não sabe definir, algo de laeta e glabra, de deleite
e felicidade. Se não, porque continua o mundo a girar, e porque teria
sido descoberta a América?
Escusado será dizer que para os americanos...
A estrela do império dirige-se para oeste.
Como verdadeiro patriota, teria vergonha em acreditar que Adão
no Paraíso estava mais bem situado do que o mais humilde
camponês a viver nos bosques deste país.
As nossas simpatias em Massachusetts não se reduzem a Nova
Inglaterra; apesar de estarmos desavindos com o Sul, simpatizamos
com o Oeste. É lá que se situa a casa dos nossos filhos mais novos,
tal como os escandinavos fizeram do mar a sua herança. É
demasiado tarde para estudar hebraico; até é mais importante
compreender o calão de hoje em dia.
Há alguns meses, fui ver uma paisagem do Reno. Assemelhava-
se a um sonho da Idade Média. Deixei-me flutuar ao longo do seu
histórico caudal, mais do que apenas na minha imaginação,
passando debaixo das pontes construídas pelos romanos, e
reconstruídas por heróis posteriores, passei por vilas e castelos
cujos nomes eram música para os meus ouvidos, e cada um deles
era alvo de uma lenda. Havia Ehrenbreitstein e Rolandseck e
Coblentz, que apenas ouvira falar na história. Ruínas que me
interessam supremamente. Parecia erguer-se das suas águas e dos
socalcos cobertos de vinha uma música em surdina, como a dos
cruzados partindo para a Terra Santa. Deixei-me flutuar sob um
feitiço, um encantamento, como se tivesse sido transportado para
uma idade heróica, e respirasse o ar de tempos cavaleirescos.
Logo de seguida, fui apreciar uma paisagem no Mississípi, e
enquanto subia a sua margem em plena luz do dia, ao ver os barcos
a vapor a carregarem as provisões de lenha, contei as cidades a
serem erguidas, vislumbrei as ruínas recentes de Nauvoo,
testemunhei os índios a atravessarem o caudal, e, como antes
olhara o Mosela, agora observava o Ohio e o Missouri e ouvi as
lendas de Dubuque e das Escarpas de Wenona. Continuando a
focar-me mais no futuro do que no passado ou no presente, vi que
este era um caudal do Reno de uma espécie diferente; que os
alicerces dos castelos continuavam por lançar, e as pontes famosas
ainda estavam para ser erguidas sobre o rio; e senti que esta era a
idade verdadeiramente heróica, apesar de não o sabermos, porque
o herói é normalmente o mais simples e discreto dos homens.
O Oeste de que falo é apenas outro nome para o mundo
desabitado; e o que me tenho preparado para dizer é: na natureza
está a preservação do mundo.
Cada árvore estende as suas ramagens para as entregar ao meio
ambiente. As cidades importam árvores a qualquer preço. Os
homens cultivam a terra e navegam os mares por causa delas. É
das florestas e do meio selvagem que vêm os bálsamos, as raízes e
as cascas que fortalecem a humanidade. Os nossos ancestrais
eram selvagens. A fábula de Rómulo e Remo serem amamentados
por uma loba não é insignificante.
Os fundadores de todos os Estados que se tornaram soberanos
também tiraram o seu sustento e vigor de semelhante fonte natural.
Por não se deixarem amamentar pela loba, as crianças do império
foram conquistadas e exiladas pelas crianças das florestas
setentrionais que o foram.
Confio na floresta e nas pradarias, e na noite que faz medrar o
trigo. Exigimos uma infusão de abeto, de cicuta ou da árvore da
vida. Há uma diferença entre comer e beber para viver ou por gula.
De facto, os hotentotes devoram sofregamente a medula dos cudos
e de outros antílopes crus, de forma sistemática. Alguns dos índios
do Norte comem medula crua da rena árctica, assim como outras
partes, inclusive até a ponta dos cornos, se for mole. E nisto talvez
se tenham antecipado a muitos cozinheiros de Paris. Aproveitam o
que normalmente alimenta a fogueira. Talvez seja mais nutritivo e
saboroso para criar um homem do que boi cevado ou porco do
açougue. Mostrem-me a natureza cuja visão seja insuportável para
toda a civilização — como se vivêssemos na medula dos antílopes
devorados vivos.
Eu emigraria para os confins das zonas onde os tordos cantam —
terras selvagens que ainda nenhum homem ocupou; para as quais,
creio, já estou aclimatado.
O caçador africano Cumming conta-nos que a pele do alce, assim
como a da maioria dos antílopes que já matou, lança o mais
delicioso perfume de árvores e relva. Quem me dera que os homens
fossem como os antílopes, também eles parte da natureza, uma sua
parcela, e que as pessoas assim anunciassem a sua presença aos
nossos sentidos, e nos indicassem quais os terrenos da natureza
que mais percorrem. Não sinto predisposição para ser satírico,
quando advirto que o casaco do caçador, ao lançar o odor de
almíscar, é um cheiro mais doce do que o emanado normalmente
pelos casacos do mercador ou do professor. Quando pego nas
roupas destes, nada me sugere que deambulem pelas pradarias e
pelos campos floridos, mas antes pelos mercados poeirentos e
pelas bibliotecas.
Uma pele bronzeada é muitíssimo respeitável, e talvez a cor
trigueira seja mais adequada ao homem dos bosques do que o
branco. «O cara-pálida!» Não me admira que o africano tenha
sentido pena dele. O naturalista Darwin disse: «Um homem branco
a tomar banho ao lado de um homem do Taiti era como uma planta
passada por lixívia pelas artes do jardineiro, comparada com uma
planta viçosa, verde-vivo, a crescer vigorosa nos campos abertos.»
Bem Johnson exclamou:
«Quão próximo do bem está o que é belo!»
E eu digo:
«Quão próximo do bem está o que é selvagem!»
V
O mais vivo é o mais selvagem. O que ainda não se subjugou ao
homem, a terra retempera-o. Aquele que avança em frente
incessantemente, nunca descansando das tarefas, se desenvolve
depressa e exige infinitamente à vida, irá sempre encontrar-se num
novo país ou no meio selvagem, rodeado da matéria-prima da vida.
É como se transpusesse os troncos das árvores derrubadas das
florestas primitivas. Para mim, esperança e futuro não estão nos
relvados ou nos campos cultivados, nem nas vilas ou cidades, mas
nos pântanos impermeáveis e instáveis. Quando, antes, analisava a
minha predilecção por alguma quinta com intenção de a comprar,
apercebia-me com frequência de que me sentia atraído somente
pelos metros quadrados do profundo atoleiro — uma bacia natural
num canto do terreno. Essa era a pérola que me encantava. Valorizo
mais os pântanos existentes à volta da minha vila do que as hortas
cultivadas na aldeia. Não existem cenários mais belos para os meus
olhos do que as densas plantações de adrómeda-anã (Cassandra
calyculata) que cobrem os campos sensíveis da superfície terrestre.
A botânica não vai mais longe do que dizer-me os nomes dos
arbustos que aqui crescem — o mirtilo, a Adromeda paniculata, o
louro-ovelha, a azálea e a ródora —, todos comuns no pântano
tiritante.
Tantas vezes me ocorre que gostaria de ter a minha casa junto a
essa extensa e enfadonha área de arbustos vermelhos,
desprezando outros canteiros de flores ou arvoredo, sem arbustos
podados e adornos elegantes, nem estradas de cascalho — ter este
fértil local sob as minhas janelas, não carrinhos de mão cheios de
areia retirada da cave em obras.
Porque não situar a minha casa, a minha sala, com vista para
esse lugar, ao invés de para um fraco aglomerado de curiosidades,
aquela pobre desculpa para a natureza e arte, a que chamo o meu
pátio? Foi um esforço para o limpar e dar-lhe um aspecto decente
quando o carpinteiro e o pedreiro partiram,a pensar tanto no
transeunte como no morador. A vedação frontal de mais bom gosto
jamais me despertou a atenção; os ornamentos mais elaborados
depressa me cansam e entediam. Construa-se então os peitoris das
janelas sobre o próprio pântano (posto que não seja o melhor local
para construir uma adega com boas condições), pois assim não há
acesso aos cidadãos por esse lado. Os pátios frontais não são feitos
para serem calcorreados; quando muito, para passarmos por eles
rumo às traseiras.
Embora me possam julgar desnaturado, se me propusessem
entre ir morar na vizinhança do mais bonito dos jardins que o
engenho e a arte humana já conceberam ou frente a um pântano
lamacento, definitivamente, decidir-me-ia pelo pântano. Quão inúteis
têm sido, pois, todos os vossos esforços para mim, ó conterrâneos!
O meu ânimo cresce infalivelmente à escala dos ambientes
acabrunhados que encontro no exterior. Dêem-me o oceano, o
deserto ou a região selvagem! No deserto, ar e solidão compensam
a necessidade de humidade e fertilidade. O viajante Burton diz isso:
«O nosso ânimo melhora; tornamo-nos francos e cordiais,
hospitaleiros e determinados... No deserto, as bebidas alcoólicas só
incitam o aborrecimento. Há um gozo profundo numa existência
puramente animal.» Aqueles que há muito viajam bastante pelas
estepes da Tartária declaram: «Ao regressar às terras cultivadas, a
agitação, a perplexidade e o tumulto da civilização oprimem-nos e
sufocam-nos; o ar parece não nos preencher os pulmões, e a
qualquer momento julgamos que vamos morrer de asfixia.»
Quando me quero divertir, procuro um bosque escuro, o mais
denso e interminável e, na linguagem dos da cidade, o pântano mais
medonho. Entro num pântano como quem se enfia num local
sagrado — o sanctum sanctorum. Ali encontra-se a força, a
essência da natureza. A mata agreste cobre o solo virgem — e o
mesmo terreno serve para o homem e para as árvores. A saúde de
um homem requer para a sua vista tantos alqueires de prado
quantos os carregamentos de estrume de que uma quinta precisa.
Pois aí se encontra o mais importante alimento que o sustenta. Uma
vila subsiste não tanto pela quantidade de homens honestos lá
existentes, mas pelos bosques e pântanos que a rodeiam. Uma
cidade onde se descortine a sua floresta primitiva ondulando em
plena força, e onde uma floresta apodreça no subsolo, tem
condições para produzir não somente milho e batatas, mas poetas e
filósofos para as gerações futuras. Num solo assim cresceu Homero
e Confúcio e outros, e de um solo assim selvagem provém o
Reformador comendo gafanhotos-migratótios e mel.
Preservar animais selvagens implica normalmente uma floresta
onde possam sobreviver e deambular. O mesmo acontece com o
homem. Há um século, vendiam pelas ruas cascas de árvores
retiradas das nossas matas. No próprio aspecto dessas árvores
primevas e enrugadas havia, creio, um processo de curtir que
enrijecia e consolidava a fibra de que são feitos os pensamentos
dos homens. Ah, como me entristece a degeneração nestes dias da
minha aldeia nativa, quando não se consegue encontrar uma
braçada de cascas com boa espessura, e já não produzimos
alcatrão e terebentina!
As nações civilizadas — Grécia, Roma, Inglaterra — devem a sua
existência às florestas originais que há séculos se decompuseram
onde hoje estes países se erguem. Sobrevivem enquanto o solo não
está exausto. Infelizmente para a cultura humana! Pouco se deve
esperar de uma nação, quando se debela a sua riqueza vegetal e
por isso é obrigada a fazer adubo dos ossos dos seus ancestrais.
Então os poetas sustentam-se apenas das gorduras supérfluas e os
filósofos vão buscar inspiração às suas medulas ósseas.
Diz-se ser missão dos americanos «trabalhar o solo virgem», e
que «aqui a agricultura assume proporções desconhecidas em
qualquer outra parte do mundo». Julgo que o fazendeiro expulsa o
índio precisamente porque ele reivindica a terra, o que o torna mais
forte e, de certo modo, mais natural. Demarcava há dias, a mando
de um proprietário, uma faixa direita de terra com cento e trinta e
duas varas de comprimento, atravessando um pântano cuja entrada
podia ter sido a inspiração para escrever as palavras que Dante leu
na entrada do Inferno — «Despojai-vos de todas as esperanças,
antes de entrar» —, ou seja, de jamais sair dali; ou como eu vi o
meu patrão a afogar-se, de facto com lama pelo pescoço, a nadar
para salvar a vida, na sua propriedade, posto que era Inverno. Era
dono de outro pântano parecido, que consegui medir, por estar
alagado; porém, no que diz respeito a um terceiro terreno
pantanoso, que pude avaliar à distância, dizia ele, para ser honesto
consigo mesmo, não poder desfazer-se desse terreno de forma
alguma, devido ao lodo que o compunha. E o homem quer construir
um fosso em torno do pântano em menos de três anos e reclamar
as terras com a magia da enxada. Refiro-o apenas como um
exemplo da sua classe.
As armas com que obtivemos as nossas vitórias mais
importantes, e que como herança devem passar para as próximas
gerações, não são a espada nem a lança, mas os engenhos que
desbravem caminhos nos bosques e que destruam os montes de
turfa, a enxada, a sachola, enferrujados pelo sangue de muitos
pântanos e enegrecidos pela poeira de muitos prados duros de
conquistar. Foram os próprios ventos que transformaram os campos
de milho dos índios em pradarias e que apontaram o caminho que
eles não tinham a destreza de seguir. Não havia melhor ferramenta
com que o homem pudesse furar a terra do que a concha de
molusco. Mas o fazendeiro arma-se do arado e da enxada.
Na literatura, só o que é selvagem e natural nos atrai.
O tédio não é senão sinónimo de submissão. É o pensamento
incivilizado, livre e sem rédea de Hamlet e da Ilíada, das Escrituras
e das mitologias, que não se aprendem nas escolas, que nos
delicia. Tal como o pato-bravo é mais ágil e engraçado do que o
doméstico, também mais belo é o pensamento livre — o pato-
selvagem, que, entre o orvalho, se ergue bem alto sobre os
pântanos. Um livro realmente bom é algo natural, inesperado,
inexplicavelmente notável e belo, como uma flor silvestre
encontrada na pradaria do Oeste ou na selva do Leste. O génio é
uma luz que torna a escuridão visível, como a luz de um relâmpago,
e que despedaça talvez o próprio templo do conhecimento — e não
uma vela acesa na pedra da lareira do homem, que empalidece
diante da luz do dia comum.
A literatura inglesa, desde os tempos dos trovadores até aos dos
poetas da Região dos Lagos — incluindo Chaucer, Spencer, Milton e
Shakespeare —, não emana uma força nova e, neste sentido, livre.
É essencialmente uma literatura dócil e civilizada que reflecte a
Grécia e Roma. A sua qualidade selvagem é ser uma floresta verde,
e o homem selvagem que o habita, um Robim dos Bosques. Abunda
nela um suave amor pela natureza, mas não pela natureza em si. As
suas histórias revelam-nos quando os animais selvagens se
extinguiram, mas não quando se extinguiu o homem selvagem que
as habitou.
A ciência de Humboldt é uma coisa; a poesia, outra distinta. O
poeta de hoje, apesar de todos os progressos da ciência e dos
conhecimentos reunidos pela humanidade, não tem qualquer
vantagem sobre Homero.
Onde está a literatura que manifesta a natureza? Seria
necessário um poeta que tivesse ao seu serviço os ventos e os
regatos, para que estes falassem por ele; um poeta que mantivesse
as palavras presas ao seu sentido original, como os agricultores
que, na Primavera, cravam novamente as estacas levantadas pela
geada; um poeta que, ao utilizar as palavras, lhes revelasse a sua
origem, que as transplantasse para a página como raízes que se
fixam na terra, e cujas palavras fossem tão verdadeiras, frescas e
naturais que se abrissem como botões na Primavera, embora
permanecessem ocultas entre duas páginas bolorentas numa
biblioteca — palavras que dessem fruto todos os anos para o leitor
leal, segundo a sua espécie, em harmonia com a natureza
circundante.
Não me lembro de versos que possa citar que expressem
completamente esta sofreguidãopela natureza.
Ainda que se aproxime desse estilo, a melhor poesia é
insuficiente. Não descortino em toda a literatura, antiga ou moderna,
uma passagem que me faça alcançar a natureza que tão bem
conheço. Notem que reclamo algo que nem a era augustana nem a
isabelina, nenhuma cultura, resumindo, podem dar. A mitologia é o
que fica menos aquém. Quão mais férteis são as raízes da natureza
que a mitologia grega encerra do que as da literatura inglesa. A
mitologia é a colheita do Novo Mundo antes de se ter exaurido o seu
solo, antes de a fantasia e a imaginação terem sido afectadas por
pragas, e ainda hoje é fértil, onde quer que o seu vigor se mantenha
intacto. Todas as outras literaturas resistem apenas como o olmo
sobranceiro às nossas casas; mas a mitologia lembra um grande
dragoeiro das Antilhas, tão velho quanto a humanidade e, quer
assim seja quer não, resistirá o mesmo tempo, pois é a decadência
de outras literaturas que forma o solo onde a literatura floresce.
O Oeste prepara-se para juntar as suas fábulas às do Leste.
Tendo os vales do Ganges, do Nilo e do Reno já fornecido a sua
colheita, resta esperar o que os vales do Amazonas, do rio da Prata,
do Orinoco, do São Lourenço e do Mississípi vão produzir. Talvez
quando, no decurso das eras, a liberdade americana se tornar numa
invenção do passado — tal como é de algum modo uma ficção do
presente —, os poetas do mundo se inspirem na mitologia
americana.
Os sonhos mais loucos dos homens livres não deixam de ser
verdadeiros, embora não agradem ao senso comum dos ingleses e
americanos de hoje. Nem todas as verdades interessam ao senso
comum. A natureza reserva um lugar para a vide-branca e outro
para a couve. Algumas verdades são evocativas, outras meramente
sensatas, como costuma dizer-se, e outras ainda, proféticas. Certos
tipos de doença podem prenunciar formas de saúde. Os geólogos
descobriram que as figuras de cobras, de grifos, de dragões
viadores e outros ornamentos excêntricos da heráldica se inspiram
em fósseis de espécies extintas antes da criação do homem, e que
«indicam um vago e obscuro conhecimento de um estado preliminar
da vida orgânica». Os hindus imaginavam que a Terra assentava
num elefante, que por sua vez se suportava numa tartaruga, e esta
sobre uma serpente. Sendo talvez uma coincidência irrelevante, não
é absurdo referir, a este propósito, que um fóssil de tartaruga grande
o suficiente para suster um elefante foi recentemente descoberto na
Ásia. Confesso que sou tendencioso no que toca a estas
extravagantes teorias, as que transcendem a ordem do tempo e da
evolução. São as mais sublimes recriações do intelecto. A perdiz
adora ervilhas, mas não aquelas com que há-de ir parar ao prato.
Resumindo, todas as coisas boas são selvagens e livres. Há algo
numa nota musical, produzida por um instrumento ou pela voz
humana — por exemplo, o toque de uma corneta numa noite de
Verão —, que, pela sua qualidade espontânea, e não estou a ser
irónico, me relembra os uivos que soltam os animais selvagens nas
florestas nativas. É um traço da sua bestialidade, parece-me. Dêem-
me por amigos e vizinhos homens selvagens, e não gente civilizada.
A impetuosidade do selvagem não é senão uma pálida expressão
se comparada com o que há de horrível na sociabilidade entre os
homens e entre os amantes.
Adoro ver os animais domésticos a reafirmarem os seus direitos
nativos — sinal de que não perderam por completo os hábitos
selvagens e o vigor natural; por exemplo, quando vejo a vaca do
meu vizinho escapar-se do pasto no começo da Primavera e nadar
corajosamente pelo rio, num caudal gelado e cinzento, com vinte e
cinco ou trinta varas de largura, de volume aumentado pela neve
derretida. É a travessia do búfalo do Mississípi. Esta proeza confere,
parece-me, uma certa dignidade ao rebanho. As sementes do
instinto são preservadas por tempo indeterminado sob o espesso
couro dos cavalos e do gado, quais sementes no ventre da terra.
Todas as travessuras dos animais são inesperadas. Certo dia, vi
uma manada de doze bois e vacas a correr e a pular
freneticamente, como ratazanas ou gatos gigantescos. Abanavam a
cabeça, espetavam a cauda; lestos, subiam e desciam as colinas, e
notei, pelos chifres e pela agitação, as suas semelhanças com a
tribo dos veados. Mas, ai deles! Um súbito e estridente «parem já!»
poria de imediato fim ao seu ardor, reduzindo-os de animais vivos a
peças de carne comestíveis, e enrijecendo os seus flancos e
tendões como uma locomotiva. Quem senão o Demónio gritaria à
humanidade «parem já!»? Com efeito, a vida do gado, tal como a de
muitos homens, é apenas uma espécie de movimento mecânico;
mexe um flanco de cada vez, e o homem, com a sua maquinaria,
está meio caminho entre o cavalo e o boi. Onde bate o chicote, fica-
se paralisado. No caso dos ágeis felinos, ocorreria a alguém pensar
numa fatia da sua tenra carne, tal como se pensa em bifes de vaca?
Rejubilo que os cavalos e os bezerros tenham de ser
domesticados antes de se transformarem em escravos do homem, e
que os próprios homens tenham ainda uma vida divertida enquanto
jovens antes de se tornarem membros submissos da sociedade.
Sem dúvida, nem todos os homens são igualmente domináveis; e lá
porque a maioria, como os cães e as ovelhas, é subordinada por
uma predisposição inerente, não há razão para dominar os outros e
para que estes se verguem e se baixem ao mesmo nível. As
pessoas são em essência semelhantes, mas foram concebidas em
tão grande número que há diferenças entre elas. Quando se trata de
cumprir uma tarefa vulgar, um indivíduo sair-se-á tão bem como
outro; mas, no caso de um propósito mais elevado, a excelência
individual pode sobressair. Qualquer humano sabe tapar uma fenda
por onde entra o frio, mas só um poderia protagonizar este exemplo.
Confúcio disse: «As peles do tigre e do leopardo, depois de curtidas,
são como a pelagem do cão ou da ovelha.» Mas não compete a
uma cultura verdadeira domar tigres, nem tornar as ovelhas ferozes.
E curtir a pele do tigre para dela fazer sapatos não é a melhor
aplicação que se lhe pode dar.
Quando leio de relance uma lista de nomes de homens de língua
estrangeira, como uma lista de oficiais militares ou de autores que
escreveram sobre um tema em particular, recordo que um nome
nada quer dizer.
Menschikoff, por exemplo, não é aos meus ouvidos mais humano
do que os bigodes de um gato, e pode até pertencer a um rato. Tal
como para nós soam os nomes dos polacos e dos russos, o mesmo
acham eles dos nossos. Os seus nomes parecem uma lengalenga
infantil: Iery, fieryichery van, tittle-tol-tan. Imagino um bando de
crianças selvagens que infesta a terra, e a cada uma o seu pastor
atribuiu um som bárbaro do respectivo dialecto. Os nomes dos
homens são, garantidamente, tão frívolos e vulgares como Bose e
Tray, nomes de cães.
Penso que seria proveitoso para a filosofia se os homens
tivessem nomes mais genéricos, pelos quais fossem conhecidos.
Bastaria saber apenas o seu sexo, e quiçá o tipo ou a variedade,
para conhecer o indivíduo. Não estamos dispostos a acreditar que
todos os soldados do exército romano tinham um nome próprio, pois
não se pensava que cada um possuísse um carácter distinto.
Actualmente, os nossos únicos verdadeiros nomes não passam
de alcunhas. Conheci um menino que, por causa da sua energia
extraordinária, tinha a alcunha de Sem-Medo entre os amigos, e
este ímpeto suplantava designadamente o nome de baptismo.
Alguns viajantes contam que um índio não tem nome próprio,
ganha-o, e que deriva da sua reputação. Em algumas tribos, um
índio adquire um novo nome a cada proeza sua. É lamentável que
um homem tenha um nome apenas por conveniência, sem o
conquistar.
Não permitirei que meros nomes façam distinções, e continuarei a
ver as pessoas como pertencendo a rebanhos. Um nome familiar
não torna um homem menos estranho. Ao selvagem talvez seja
permitido reter em segredo o seu nome de guerra conquistado nos
bosques. Todos temos em nós um ser selvagem, e o seu nome
natural está gravado algures no nosso ser. Vejoque o meu vizinho,
que tem nome de família William ou Edwin, se desfaz dele como um
casaco. Não lhe assenta quando dorme ou está furioso, ou quando
se move por alguma paixão ou inspiração. Parece que oiço por
vezes o nome do seu ser selvagem dito pela família numa língua ora
ríspida ora melodiosa.
Eis em rigor a equilibrada mãe natureza, vasta, cheia de beleza, e
com tanto afecto para com os seus filhos como o leopardo para com
as crias; todavia, em tão jovem idade, somos desmamados e
entregues à sociedade, à cultura que é exclusivamente um conjunto
de interacções das pessoas — uma espécie de cruzamento
consanguíneo, que produz, quando muito, uma mera nobreza
inglesa, uma civilização votada ao efémero.
Na sociedade, nas melhores instituições da humanidade, é fácil
detectar uma certa tendência para a precocidade.
Quando ainda devíamos ser crianças, já somos homenzinhos e
mulherzinhas. Dai-me uma cultura que retire muito estrume dos
campos e que explore o solo — e não uma já viciada em
fertilizantes, de ferramentas e de modernos modos de cultivo!
Muitos dos pobres estudantes de olhos doridos de que ouvi falar
desenvolver-se-iam mais depressa, não só intelectual mas também
fisicamente, se, em vez de se deitarem tão tarde, se recolhessem
cedo.
Talvez haja um excesso de luz inspiradora. O francês Niépce
descobriu o actinismo, o poder que os raios solares encerram e que
desencadeia um efeito químico. As rochas de granito, as estruturas
de pedra e as estátuas de metal «sofrem igualmente o efeito
destrutivo das horas de sol e, não fossem os propósitos da natureza
não menos admiráveis, desintegrar-se-iam ao mais suave toque do
mais subtil agente do universo». Mas Niépce observou que «os
corpos que sofriam essa mudança à luz do dia tinham a capacidade
de se regenerar durante a noite, quando tal influência já não actuava
sobre eles». Deste modo se inferiu que as «horas de escuridão são
tão necessárias para os corpos inorgânicos como a noite e o sono o
são também para o reino orgânico». Assim, também a Lua não
brilha todas as noites, dando por vezes lugar às trevas.
Penso que, assim como nem todos os alqueires de terra se
cultivam, o mesmo acontece aos seres humanos. Parte será
semeada, mas a maioria deve ser prado e floresta, não só para uso
imediato, mas a fim de preparar o solo fértil para um futuro não
imediato, para a decadência anual da vegetação que nele se
mantém.
Há mais letras para uma criança do que as inventadas por
Cadmo. Os hispânicos têm uma expressão que ilustra bem este
conhecimento selvagem e obscuro — Gramatica parda —, uma
espécie da sagacidade materna ligada à imagem do leopardo que já
citei.
Já ouvimos falar da Sociedade para a Difusão do Conhecimento
Útil. Diz-se que saber é poder, ou algo semelhante. Creio que é
igualmente necessária uma Sociedade para a Difusão da Ignorância
Útil, algo que intitularei «Conhecimento do Belo», útil num sentido
mais elevado, pois o que é a maioria do nosso sobrestimado e
hipotético conhecimento senão a presunção de que sabemos algo,
que nos impede de usufruir das vantagens da nossa real
ignorância? Aquilo a que chamamos conhecimento é muitas vezes a
nossa verdadeira ignorância; e a ignorância, o nosso questionável
conhecimento. Após longos anos de aturadas diligências e de leitura
de jornais — porque o que são, afinal, as bibliotecas científicas
senão compilações de jornais? —, um homem reúne uma miríade
de factos, arruma-os na memória e, depois, em algum momento da
vida, vagueia pelos Grandes Campos do Conhecimento. Isto é,
começa a pastar como um cavalo e liberta-se de todos os arreios
que repousam no estábulo. Daria por vezes o seguinte conselho à
Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil: «Vão pastar na
relva. Já comeram palha que baste.» Chegou a Primavera com as
suas verdejantes colheitas. Até as vacas são conduzidas para as
pastagens rurais antes do fim de Maio; apesar de ter ouvido falar de
um camponês aberrante que mantinha a sua vaca no celeiro e lhe
dava palha a comer todo o ano. Geralmente esta é a forma como a
Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil trata o seu gado.
A ignorância do homem nem sempre é só útil, mas bela, ao passo
que os seus supostos conhecimentos são geralmente piores do que
inúteis, além de até os podermos considerar feios. Com que homem
prefere lidar: com o que nada sabe sobre um assunto e, algo
particularmente raro, sabe que nada sabe, ou com aquele que sabe
alguma coisa sobre o assunto, mas julga que sabe tudo?
A minha ânsia de conhecimento é intermitente, mas o meu anseio
por banhar a cabeça em atmosferas que os meus pés desconhecem
é constante. A coisa mais elevada a que podemos aspirar não é ao
conhecimento, mas à compreensão pela inteligência. Não sei se
esta consciência superior se resume a algo mais definitivo do que
um romance ou uma grande surpresa sobre a súbita revelação da
insuficiência de tudo a que chamamos conhecimento — a
descoberta de que há mais coisas no Céu e na Terra do que a
nossa filosofia sonha. É como o sol que desfaz a neblina. Os seres
humanos não podem compreender num grau mais elevado, tal
como não podem olhar directa e serenamente para o Astro-Rei.
«Não podem compreendê-lo como quem compreende um
pormenor», proferiam os oráculos caldeus.
Há algo de servil no hábito de invocar uma lei a que devemos
obedecer. Podemos saber de cor as leis importantes por
conveniência própria, mas uma vida bem-sucedida não conhece
leis. É com certeza uma descoberta infeliz saber que uma lei nos
subjuga de formas que desconhecíamos. Vivam em liberdade, filhos
da névoa — no que diz respeito ao conhecimento, somos todos
filhos da bruma. O ser humano que escolhe viver em liberdade é
superior a todas as leis, em virtude da sua relação com o legislador.
«É um dever vivo», afirma Vishnu Purana; «é o que não deriva da
nossa servidão que nos liberta; todos os outros deveres apenas
atingem a letargia; todos os outros conhecimentos são apenas fruto
da habilidade de um artista».
É impressionante a escassez de acontecimentos ou crises na
nossa história, quão pouco exercitámos a nossa mente, e como tão
poucas experiências vivemos. Alegremente me convenceria de que
me desenvolvo de forma rápida e vigorosa, embora o meu próprio
crescimento perturbe este autocontrolo entediante — e apesar de
travar lutas ao longo das noites longas, negras e opressivas, ou
tempos sombrios. Bom seria se as nossas vidas fossem até uma
tragédia divina, e não uma farsa ou comédia trivial.
Dante, Bunyan e outros autores parecem ter exercitado a mente
mais do que nós: sujeitaram-se a uma cultura que as nossas
escolas e universidades não infundem. Até Maomé, embora muitos
se encolerizem ao ouvir o seu nome, tinha muito mais por que viver
— sim, e por que morrer — do que eles têm.
Quando, com curtos intervalos, somos atingidos por pensamentos
ao passear por um caminho-de-ferro, podem os vagões passar que
não os ouvimos. Mas logo, devido a alguma lei inexorável, a nossa
vida continua e os vagões regressam.
Brisa suave que flutuas invisível
E que vergas os cardos em torno
da tempestade Loira
Viajante dos vales ventosos,
Porque tão cedo largaste os meus ouvidos?
VI
Se é verdade que todos os seres humanos sentem atracção por
algo que os impele para a sociedade, também há que mencionar:
poucos se sentem atraídos pela natureza. Na sua relação com ela,
as pessoas parecem geralmente, não obstante as suas artes, de
condição inferior à dos animais. Não costuma ser uma relação
bonita, como é a destes. Quão pouca consideração temos pela
beleza da paisagem! Recordemo-nos de que os gregos chamavam
ao mundo beleza ou ordem, embora não saibamos claramente
porque o faziam, e consideremos o facto, na melhor das hipóteses,
uma curiosidade filológica.
A meu ver, creio que, no tocante à natureza, vivo uma espécie de
vida de fronteira, nos confins de um mundo em que faço incursões
esporádicas e rápidas; e o meu patriotismo e a minha fidelidade
para com o estado desses territórios nos quais me refugio são os de
um salteador.
Rumo a umavida a que chamo natural, seguiria de livre vontade
até um fogo-fátuo através de terra pantanosa e lodaçais
inimagináveis, mas não houve luar nem pirilampos que me
indicassem o caminho que conduz até lá. A natureza tem uma
personalidade tão vasta e universal que jamais lhes conseguimos
distinguir um só traço. O caminhante dos campos por ele
conhecidos e que se estendem em redor da minha terra natal dá por
si, por vezes, noutro território — não é o descrito nos documentos
que atestam a propriedade dos seus donos, ou seja, num campo
longínquo nos confins da actual Concord, onde cessa a sua
jurisdição, e onde a ideia que Concord sugere deixa de ser
sugestiva. Estas quintas que eu mesmo sondei, estes limites que eu
próprio tracei, afiguram-se-me ainda turvos entre a neblina; mas não
há processo químico que os fixe, desvanecem-se da superfície do
vidro, e o quadro que o artista pintou por baixo mantém-se indistinto.
O mundo a que estamos geralmente habituados não deixa rasto e
não celebra a passagem de cada aniversário.
Certa tarde, fui dar um passeio até à Quinta dos Spaulding. Vi o
entardecer iluminar um pinhal imponente no lado oposto do
horizonte. Os seus raios dourados percorriam os trilhos do bosque
como se o fizessem num nobre salão. Fiquei impressionado, como
se uma família ilustre e encantadora, igualmente antiga e
referenciável, e para mim desconhecida, se tivesse fixado nessa
parte da Terra a que dão o nome de Concord, tivesse por aio o Sol e
escolhido não fazer parte da comunidade da aldeia, evitando
receber visitas. Vi nos campos de arandos dos Spaulding o jardim
da família, o seu pátio de recreio, mais além no bosque. As pinhas
maiores eram os beirais do telhado. A casa não se encontrava
imediatamente visível; árvores cresciam nela. Pareceu-me ter
ouvido um riso abafado. Os membros da família pareciam reclinar-
se entre os raios de sol. Têm filhos e filhas. Estão bem instalados. O
trilho da carroça do fazendeiro que atravessa o salão da família não
os desencoraja de todo, pois é no seu fundo lodoso que o céu por
vezes se espelha. Nunca se ouviu falar desta família e não se sabe
que a temos por vizinha — mesmo que eu já tenha ouvido o
patriarca assobiar enquanto guiava a sua parelha de bois pela casa.
Nada se compara à serenidade das suas vidas. No seu brasão
figura um líquen, somente. Observei-o pintado nos pinheiros e nos
carvalhos. Os seus sótãos são as copas das árvores. Não
pertencem a partidos. Não se ouvem ruídos de trabalho em marcha.
Não me pareceu que tecessem ou fiassem. Percebi, contudo,
quando o vento cessou, o mais doce e melodioso sussurrar que se
pode conceber — como o som de uma colmeia longínqua em Maio,
assim se manifestou o som dos seus pensamentos. Não lhes
escutei pensamentos indolentes, e ninguém de fora podia ver o seu
trabalho, pois nem enleios nem coisas supérfluas estorvavam as
suas lides.
Porém, é-me difícil recordá-los. Desvanecem-se
irremediavelmente da minha memória, mesmo agora que falo neles
e tento invocá-los. Só depois de um longo e sério esforço para
tornar as ideias mais nítidas é que tenho a clareza de se
encontrarem ali mesmo, reais. Não fossem famílias como esta, já
teríamos abandonado Concord.
Na Nova Inglaterra, diz-se que cada vez menos pombos nos
visitam todos os anos. As nossas florestas não têm poisos para
eles. Assim, tudo leva a crer, que também menos pensamentos
visitam cada adolescente todos os anos, pois os arvoredos das
nossas mentes jazem devastados — destruídos por alimentar as
inúteis fogueiras da ambição, ou vendidos como lenha —, e quase
não há um ramo no qual possam habitar. Já não constroem ninhos
nem se multiplicam entre nós. Numa estação mais suave, talvez
uma ténue sombra paire sobre a paisagem do pensamento, nas
asas de algum pensamento na sua migração primaveril ou outonal,
mas, olhando para o céu, somos incapazes de detectar a substância
do pensamento em si. Os nossos pensamentos alados
transformam-se em aves domésticas. Já não voam nas alturas e só
almejam o esplendor de uma galinha-chinesa ou de uma
Cochinchina. Esses
gra-a-a-andes pensamentos, esses gra-a-a-andes homens de
que se ouve falar!
Abraçamos a terra — mas quão raramente a escalamos! Penso
que devíamos elevar-nos mais. Podíamos ao menos trepar a uma
árvore. Como trepei aquele pinheiro-alvar muito alto no topo de uma
colina. Embora tenha ficado bastante arranhado, fui amplamente
recompensado, pois descobri no horizonte montanhas que nunca
antes vira — vi muito mais do céu e da terra. Podia ter andado à
volta do tronco de uma árvore durante setenta anos que decerto
nunca as veria. Mas sobretudo descobri ao meu redor — era quase
o fim de Junho —, no extremo dos ramos mais altaneiros, uns
minúsculos rebentos vermelhos em forma de cone, a fértil flor do
espinheiro-alvar voltada para o céu. Levei de imediato para a aldeia
a agulha mais altaneira do espinheiro e mostrei-a a uns estranhos
jurados que caminhavam na rua — pois era semana de julgamento
—, a agricultores, negociantes de madeira, lenhadores e caçadores.
Nunca tinham visto nada semelhante, mas pasmavam diante dela
como se de uma estrela cadente se tratasse. Dizem que os antigos
arquitectos faziam nos acabamentos dos topos das colunas um
trabalho tão perfeito como na base das colunas, nas partes mais
visíveis!
Desde os primórdios, a natureza fez crescer os minúsculos
rebentos da floresta apenas rumo ao céu, acima da cabeça dos
homens e longe da sua vista. Vemos somente as flores que pisamos
nos campos. Desde os tempos mais longínquos, os pinheiros
desenvolvem os delicados rebentos nos ramos mais altos do
bosque todos os verões, assim como sobre as cabeças dos filhos
peles-vermelhas da natureza e dos seus filhos brancos. Todavia,
raro é o agricultor ou o caçador que na terra os tenha avistado.
Sobretudo, não podemos dar-nos ao luxo de não viver no
presente. Entre todos os mortais, abençoado é o que não perde um
segundo a relembrar o passado. É anacrónica a filosofia que não
nos manda escutar o cantar do galo nos celeiros próximos. Esse
som relembra-nos normalmente que estamos a enferrujar e a ficar
antiquados nas nossas ocupações e nos nossos hábitos de
pensamento. Já a filosofia desse bendito ser humano se resume a
um tempo mais moderno do que o nosso. Há algo diferente nela, é
um testamento mais novo — o evangelho segundo o momento
presente. Não ficou na retaguarda; levantou-se cedo e começou
cedo o dia, e estar onde ele está é viver plenamente, nas primeiras
fileiras do tempo. É a expressão do carácter saudável e da pujança
da natureza, uma vanglória para o mundo — a salubridade de um
regato que corre, uma fonte de musas, e que celebra o instante que
passa.
Onde reside este carácter sadio não se aprovam leis que
condenam escravos fugitivos. Quem não traiu o seu mestre muitas
vezes depois de ouvir cantar o galo?
O mérito deste canto reside em ser alheio a todo o queixume. O
cantor pode facilmente comover-nos às lágrimas ou fazer-nos rir,
mas quem é capaz de despertar em nós a pura alegria do
amanhecer? Quando, entregue a meditações melancólicas, sinto a
quietude dos trilhos do bosque ao domingo, ou, quando estou num
velório, ouço o canto de um galo distante ou próximo: «Pelo menos
alguém está em paz»; e recupero o ânimo de repente.
Num dia de Novembro passado aconteceu um extraordinário pôr
do Sol. Passeava num prado, onde nasce um pequeno regato,
quando o Sol, antes de desaparecer, num fim de tarde cinzento e
frio, alcançou um ponto no horizonte e os raios mais suaves e
matinais incidiram na relva seca, nos troncos das árvores do
horizonte oposto e nas folhas dos carvalhos-anões na encosta do
monte, enquanto as nossas sombras se alongavam para o leste do
prado, como se fossem os únicos obstáculos aos seus raios.
Apresentou-se como uma luz que nunca imaginara, e o ar era tão
afável e plácido que se pôde concluir estarmos no Paraíso. Quando
reflectimos e concluímos que não era um fenómeno isolado e
irrepetível, mas que aconteceria inúmeras vezes e para sempre, em
tardes infinitas, para alegrare descansar a criança que por ali
aparecesse àquela hora tardia, tornou-se um espectáculo ainda
mais glorioso.
Num qualquer prado ermo onde não se vêem casas, o Sol põe-se
em toda a sua magnificência e com todo o esplendor que se esbanja
até às cidades, talvez como nunca antes se pôs — onde há um
solitário falcão cujas asas se douram na sua luz, ou apenas um rato-
almiscarado que espreita do seu lugar de vigia. E onde há talvez um
riacho negro no meio do pântano, que há pouco brotou, enredando
lentamente um cepo a decompor-se.
Caminhámos sob aquela luz tão clara e pura, que tudo dourava.
Uma luz tão suave e serenamente resplandecente que pensei que
nunca me banhara em águas tão douradas, calmas e silenciosas. A
vertente oeste de cada bosque e todos os seus terrenos elevados
reluziam como os confins dos Elísios, e o sol atrás de nós parecia
um gentil pastor que nos conduzia ao lar ao fim do dia. Assim
vagueamos para a Terra Santa, até ao dia em que o sol brilhe mais
do que nunca e reluza também nos nossos corações e espíritos,
iluminando a vida num grande e radiante despertar; tão quente,
tranquilo e dourado como uma colina no Outono.
FIM
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Se é verdade que todos os seres humanos sentem
atracção por algo que os impele para a sociedade,
também há que mencionar: poucos se sentem
atraídos pela natureza.
Na sua relação com ela, as pessoas parecem
geralmente, não obstante as suas artes, de
condição inferior à dos animais. Não costuma ser
uma relação bonita, como é a destes.
Quão pouca consideração temos pela beleza da
paisagem! Recordemo-nos de que os gregos
chamavam ao mundo beleza ou ordem, embora
não saibamos claramente porque o faziam, e
consideremos o facto, na melhor das hipóteses,
uma curiosidade filológica. A meu ver, creio que,
no tocante à natureza, vivo uma espécie de vida
de fronteira, nos confins de um mundo em que
faço incursões esporádicas e rápidas; e o meu
patriotismo e a minha fidelidade para com o estado
desses territórios nos quais me refugio são os de
um salteador. Rumo a uma vida a que chamo
natural, seguiria de livre vontade até um fogo-fátuo
através de terra pantanosa e lodaçais
inimagináveis, mas não houve luar nem pirilampos
que me indicassem o caminho que conduz até lá.
A natureza tem uma personalidade tão vasta e
universal que jamais lhes conseguimos distinguir
um só traço. O caminhante dos campos por ele
conhecidos e que se estendem em redor da minha
terra natal dá por si, por vezes, noutro território.
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	FICHA TÉCNICA
	Prefácio
	I
	II
	III
	IV
	V
	VI
	◉

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