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◉ É verdade, hoje em dia não somos mais do que uma pálida versão dos cruzados, e a esta fraqueza nem os caminhantes intrépidos escapam, pois não se comprometem com proezas intermináveis. As nossas expedições são apenas passeios que terminam à noite no conforto da lareira da qual partimos. Metade da caminhada não é mais do que percorrer lugares já conhecidos. Devíamos ir mais longe no mais simples dos passeios, e talvez, no espírito da aventura infinita, nunca mais regressar – preparados para enviar de volta aos nossos desolados reinos os nossos corações embalsamados, quais singelas relíquias. Se estão dispostos a deixar pai e mãe, irmão e irmã, mulher e filho e amigos, e não voltar a vê-los; se pagaram as vossas dívidas, e escreveram o vosso testamento, trataram dos vossos assuntos, e são homens livres; então estão preparados para uma caminhada. A vida reside no lado selvagem. O mais vivo é o mais selvagem. O que ainda não se subjugou ao homem, a terra retempera-o. Aquele que avança em frente incessantemente, nunca descansando das tarefas, se desenvolve depressa e exige infinitamente à vida, irá sempre encontrar-se num novo país ou no meio selvagem, rodeado da matéria-prima da vida. É como se transpusesse os troncos das árvores derrubadas das florestas primitivas. FICHA TÉCNICA info@almadoslivros.pt www.almadoslivros.pt facebook.com/almadoslivrospt instagram.com/almadoslivros.pt © 2021 Direitos desta edição reservados para Alma dos Livros Titulo: Andar a Pé Título original: Walking Autor: Henry David Thoreau Tradução: Raquel Ochoa Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Capa e ilustrações: Vera Braga / Alma dos Livros Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-9054-10-3 1.ª edição em papel: Abril de 2021 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal, salvo as exceções devidamente previstas na lei. A presente edição não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico de 1990 Prefácio Nos meus passeios, depois de traduzir este livro, comecei a atravessar baldios, numa sede de terrenos sem cimento, estrada ou calçada, num inegável apelo ao prazer de trespassar, e assim comecei a encontrar tesouros, por exemplo, trilhos escondidos debaixo dos pinheiros centenários, trilhos abertos porque alguém ali passeia, repetidamente, mas nunca se vêem — os caminhantes são uma raça discreta e silenciosa. Na viagem, não importa aonde se chega, mas sim o partir, é um dito conhecido, ou outra forma de dizer que nunca podemos dar-nos ao luxo de não viver o tempo presente, a cada segundo, a cada metro palmilhado, porque cada um dos nossos momentos debaixo do sol é o maior erário, se conseguimos ESTAR ALI... Quem diria que a liberdade é a realidade e que as leis e os compromissos são a ficção? Quem diria, nesta vida de corrida e competição, que os nossos músculos em andamento se desenvencilham das correntes em que cada um se deixou enredar por não exercer o seu lado selvagem? Quem e por que razão se deixou apartar tanto da natureza ao ponto de já não se considerar um torrão dela? Sempre soube que caminhar me trazia lucidez, aumentava a minha ânsia de conhecimento e acalmava a minha busca furiosa para um sentido — um —, ao de leve que fosse, por o absurdo cósmico da vida. Mas foi Thoreau, neste seu radical panfleto, quem me conseguiu explicar a lógica entre a caminhada e o ser livre. «Há algo de servil no hábito de invocar uma lei a que devemos obedecer. (...) Vivam em liberdade, filhos da névoa — no que diz respeito ao conhecimento, nós somos todos filhos da bruma. O ser humano que escolhe viver em liberdade é superior a todas as leis.» Tudo é mobilidade, movimento, dança de constelações. Há que descobrir o significado por trás de cada palavra, neste livro, na vida, andando-a, caminhando-a. Caminhar e dançar são, afinal, sinónimos, e à (há) falta de horas a dançar, que nunca encontremos justificação para deixar de caminhar. Raquel Ochoa Sintra, Fevereiro de 2021 I Quero dizer uma palavra em nome da natureza, pela liberdade absoluta e pelo espírito selvagem, em contraste com a liberdade e a cultura meramente civilizadas — considerando o homem um habitante da natureza, ou uma parte ou parcela dela, e não como mero membro da sociedade. Quero fazer uma afirmação radical, e, se puder, de forma enfática, pois já existem suficientes defensores desta civilização: dos padres aos directores da escola. E cada um de vós encarregar-se-á disso. Apenas encontrei uma ou duas pessoas no curso da minha vida que compreenderam a arte de caminhar, ou seja, de dar grandes passeios — e que tinham talento, assim dizendo, para vaguear, na nossa língua, saunterer, palavra maravilhosamente derivada «dos vadios que erravam pelo país, na Idade Média, pedindo esmolas, sob o pretexto de irem para a Terra Santa, até as crianças gritarem “Aí vai um peregrino da Terra Santa”», um sainte-terrer, um saunterer, um vagabundo. Aqueles que nunca alcançam a Terra Santa nas suas peregrinações, como o fingem fazer, são de facto meros vadios e vagabundos; mas os que lá vão são saunterers no sentido real, tal como o entendo. Alguns, todavia, reivindicam a origem da palavra à expressão sans terre, sem-terra ou propriedade, que, por isso mesmo, num certo sentido, significará não ter casa específica, mas que igualmente se sentem em casa em todo o lado. Pois este é o segredo da errância bem-sucedida. Aquele que se mantém sempre sentado em casa pode ser o maior errante; e o sem-terra pode não ser mais nómada do que um rio sinuoso, cujo propósito persistente é encontrar o percurso mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira suposição, que, de facto, é a mais provável origem do termo. Pois cada caminhada é uma pequena cruzada, pregada por um tal Pedro, o Eremita, que existe dentro de cada um de nós, para que partamos e reconquistemos a Terra Santa das mãos dos infiéis. É verdade, hoje em dia não somos mais do que uma pálida versão dos cruzados, e a esta fraqueza nem os caminhantes intrépidos escapam, pois não se comprometem com proezas intermináveis. As nossas expedições são apenas passeios que terminam à noite no conforto da lareira da qual partimos. Metade da caminhada não é mais do que percorrer lugares já conhecidos. Devíamos ir mais longe no mais simples dos passeios, e talvez, no espírito da aventura infinita, nunca mais regressar — preparados para enviar de volta aos nossos desolados reinos os nossos corações embalsamados, quais singelas relíquias. Se estão dispostos a deixar pai e mãe, irmão e irmã, mulher e filho e amigos, e não voltar a vê-los; se pagaram as vossas dívidas, e escreveram o vosso testamento, trataram dos vossos assuntos, e são homens livres; então estão preparados para uma caminhada. Para me cingir à minha experiência, eu e o meu companheiro (às vezes tenho quem me faça companhia) temos prazer em imaginarmo-nos cavaleiros de uma nova, ou antes, velha, ordem — não Equestre ou Cavalheiresca, nem de Cavaleiros Andantes ou Paladinos, mas Caminhantes, uma classe, a meu ver, ainda mais antiga e venerável. O espírito heróico e cavalheiresco que antigamente pertencia ao Cavaleiro parece agora residir, ou prevalecer, no Caminhante, no Andarilho — não no Cavaleiro; uma figura como uma espécie de quarto estado, além da Igreja, do Estado e do Povo. Temos a impressão de que nestas redondezas nos encontramos quase sozinhos na prática desta nobre arte; embora, para dizer a verdade, pelo menos se as suas afirmações são honestas, a maioria dos meus conterrâneos gostasse de caminhar de vez em quando, como eu faço, mas não pode. Nenhuma riqueza compra os incontornáveis prazeres, liberdade e independência em que assenta a fundação deste ofício. Deriva apenas da graça de Deus. Para nos transformarmos em caminhantes, precisamos de uma licença directa dos Céus. Há que ter nascido caminhante para pertencer a esta casta. Ambulator nascit, non fit (nasci ambulante, não me fiz). Algunsdos meus conterrâneos, em boa verdade, conseguem lembrar-se e descrever-me caminhadas que fizeram há dez anos, nas quais, imagine-se, tiveram a bênção de se perder meia hora no bosque; mas eu sei muito bem que desde aí se limitaram às estradas do país, por mais que pretendam integrar esta selecta classe. Sem dúvida que foram elevados por um momento, como se de uma reminiscência de um anterior estado de existência se tratasse, quando ainda eram homens da floresta e foras-da-lei. «Chegado aos verdes bosques Numa linda manhã Escutou os suaves chilreios De pássaros cantores.» «Há muito tempo», disse Robin, Que não vinha a estes bosques; E é meu desejo Caçar os pardos veados que ali vejo.» Creio que não consigo preservar a minha saúde física e espiritual se não passar quatro horas por dia, pelo menos — e frequentemente passo mais do que isso —, a deambular pelos bosques, montes e vales, absolutamente alheado de todas as obrigações mundanas. Nessas ocasiões, bem poderiam apostar um cêntimo pelos meus pensamentos, ou mil libras, que nada perderiam. Quando por vezes me lembro de que artesãos ou caixeiros ficam nos postos de trabalho não só a manhã, mas também a tarde, muitos deles de perna cruzada, penso que merecem algum reconhecimento por ainda não terem cometido suicídio. Eu, que não consigo permanecer fechado no meu quarto por um único dia sem enferrujar, e às vezes me resgato para um passeio ao anoitecer, demasiado tarde para redimir o dia perdido, quando as sombras nocturnas já se mesclam com a luz solar, já me senti como se tivesse cometido um pecado do qual devia ser punido, confesso que fico atónito com o poder da resistência, para não falar da insensibilidade moral, dos meus vizinhos confinados em lojas e escritórios todo o dia durante semanas e meses, e, sim, anos quase seguidos. Não sei de que fibra são feitos — ali sentados agora às três da tarde, como se fossem três da madrugada. Bonaparte sabia bem o que era coragem a altas horas da noite, mas matar à fome uma guarnição inteira à qual estamos ligados pelo afecto e companheirismo é uma coragem insignificante comparada com a que vos permite ficar sentados de bom humor às três da tarde. Espanta-me que por essa hora, ou digamos entre as quatro e as cinco da tarde, já tarde para os jornais matutinos e muito cedo para os vespertinos, não se ouça em toda a rua uma explosão geral que dissipe uma legião de ideias e fantasias mesquinhas e antiquadas e que areje a rua para a sanar deste mal. Não sei como as mulheres, circunscritas em casa muito mais do que os homens, aguentam esta situação; mas tenho razões para suspeitar de que muitas delas não a toleram de todo. Nas tardes de Verão, depois de sacudir o pó das mangas dos nossos fatos, passando apressadamente defronte das genuínas fachadas dóricas ou góticas das casas que transmitem um ar de repouso, o meu companheiro sussurra que provavelmente os seus moradores devem estar a fazer uma sesta àquela hora. Pois então eu aprecio a glória da arquitectura, que nunca se recolhe, mantendo-se sempre cá fora, erguida, em vigília aos que dormem. Sem dúvida que o temperamento e, acima de tudo, a idade interferem no assunto. À medida que um homem envelhece, aumenta a sua capacidade para se sentar quieto e ocupar-se com actividades de interior. Com a chegada do inverno da sua vida, torna-se uma criatura de hábitos vespertinos, começando enfim a sair apenas ao pôr do Sol e em meia hora caminha tudo o que necessita. Mas o caminhar de que falo em nada se assemelha a fazer exercício, como se costuma dizer, não se refere a uma prescrição médica tomada a determinadas horas — nem como os halteres desenvolvem os músculos; é sim o empreendimento e a aventura do dia. Se procura exercício, busque-o nas fontes da vida. Imagine um homem a levantar pesos para cultivar a sua saúde, quando essas fontes de vida borbulham em prados longínquos desprezados por ele! Além disso, deve caminhar como um camelo, tido como o único animal que rumina enquanto caminha. Quando um certo viajante pediu à criada de Wordsworth que o levasse ao escritório do seu amo, ela respondeu: «Aqui está a sua biblioteca, mas o seu escritório é lá fora.» Viver imenso na rua, ao sol e ao vento, provocará inquestionavelmente uma certa rudeza de carácter — causará o crescimento de uma membrana mais espessa sobre algumas das qualidades mais delicadas da natureza humana, e também nas mãos e no rosto, tal como o intenso trabalho manual retira alguma sensibilidade às mãos. Do mesmo modo, ficar em casa, por outro lado, pode desencadear indolência e torpor, para não dizer fragilidade da pele, acompanhada de um aumento de sensibilidade a certas impressões. Talvez fôssemos mais susceptíveis a determinadas influências importantes para o nosso crescimento moral e intelectual se o sol nos tivesse queimado menos e o vento houvesse soprado mais brando. De facto, é difícil encontrar a justa proporção entre macieza e aspereza. Mas parece-me que é uma película que vai cair com facilidade — e que o remédio natural tem de ser encontrado na mesma proporção em que a noite se deixa render pelo dia, o Inverno pelo Verão e o pensamento pela experiência. Quanto mais ar e luz do Sol houver nos nossos pensamentos, melhor. As mãos calosas de um homem do campo equivalem, melhor do que os dedos lânguidos de um ocioso, aos tecidos aprimorados do respeito próprio e do heroísmo, cujo toque emociona o coração. É mero sentimentalismo o de quem dorme de dia e se pensa alvo e puro, longe de ver tisnada a pele ou de ter os calos da experiência. Quando caminhamos, naturalmente vamos para os campos e florestas: o que seria de nós se só caminhássemos em jardins e em zonas comerciais? Certos filósofos de algumas correntes sentiram a necessidade de trazer a si os bosques, dado que não se deslocavam até eles. Plantaram bosques e alamedas de renques de plátanos onde se prestavam a subdiales ambulationes, passeios em pórticos a céu aberto. Claro que de nada vale dirigirmos os nossos passos para as florestas se eles não nos levam ali por inteiro. Fico alarmado quando me acontece, quando o meu corpo caminhou uma milha pelos bosques, mas o meu espírito está ausente. No meu passeio da tarde, gosto de esquecer completamente as tarefas que realizei de manhã e as obrigações sociais. Mas acontece, às vezes, não conseguir sacudir de mim a civilização com facilidade. Os pensamentos à volta de algum trabalho correm na minha cabeça e não me encontro onde o meu corpo está — perco a consciência. Gostaria de voltar a estar presente. Que faço eu nos bosques, se a minha concentração foge para algo que não é o estar ali? Recrimino-me e não consigo evitar um arrepio quando me reconheço tão abstraído, mesmo se são nobres os motivos da abstracção — o que, de facto, acontece com frequência. A minha zona proporciona-me muitas caminhadas interessantes; e embora as faça há anos, quase diariamente, e às vezes dias a fio, ainda não posso dizer que a palmilhei toda. Uma paisagem absolutamente nova torna-me muito feliz, e posso tê-la em qualquer tarde. Andar duas ou três horas a pé levar-me-á a uma parte tão desconhecida que nunca esperaria ver. Uma simples casa no campo jamais notada por mim é por vezes tão interessante como os domínios do rei de Daomé. Há, de facto, uma espécie de harmonia a ser encontrada entre os recursos de uma paisagem num raio de dez milhas, ou seja, nos limites de um passeio à tarde, e a sétima década da vida humana. Nunca se pode dizer que se compreendeu tudo. Hoje em dia, quase todo o pretenso progresso da humanidade — como a construção de casas, a desflorestação, incluindo o abate de árvores de grande porte — simplesmente deforma a paisagem, e torna-a insípida e vulgar. Quem me dera que houvesse um povo que começasse a queimar as vedações e deixasse a floresta viver! Vi cercas semidestruídas, os postes soltos no meio do prado, e um avarento mundano acompanhado de um agrimensor a tentar encontrar os seus marcos, enquanto o Céu o rodeava, e ele não viu os anjos à volta, agitados, mascontinuava a procurar um velho buraco no meio do paraíso. Olhei de novo, e vi-o de pé no meio de um pântano infernal, rodeado de demónios, vi que ele encontrara os marcos exactos, devido a três pedras nas quais haviam fixado uma estaca, e olhando mais atentamente, reparei que o Príncipe das Trevas era o seu agrimensor. Começando à minha porta, posso facilmente caminhar dez, quinze, vinte, ou qualquer número de milhas, sem passar por nenhuma casa ou sem atravessar caminhos excepto os que as raposas e as doninhas fazem: primeiro sigo ao longo do rio, depois pelo ribeiro, e de seguida pelo campo e pelos limites da floresta. Nesta zona, há milhas quadradas sem vivalma. Do cimo de muitas colinas, avisto ao longe a civilização e as residências dos homens. Os agricultores e os seus trabalhos são pouco mais do que marmotas e respectivas tocas. Alegro-me ao ver o pequeno espaço ocupado na paisagem pelo homem, igreja, estado e escola, comércio, manufactura e agricultura, até a política, de todos o mais alarmante. A política não passa de um campo minúsculo ao qual se acede por uma estrada ainda mais restrita. Por vezes para lá se dirige um viajante. Se querem ir para o mundo da política, sigam a grande estrada — vão atrás do comerciante, mantenham a poeira nos vossos olhos de tão perto o seguirem, e chegarão lá directamente; pois este mundo ocupa apenas um lugar específico, não ocupa todo o espaço disponível. Afasto-me dele como quem atravessa um faval e entra na floresta, e logo o esqueço. Em meia hora de caminho, alcanço lugares à superfície desta terra onde nenhum homem permanece um ano inteiro, e onde, consequentemente, a política não fecunda, pois não passa de cinza de charuto nas mãos de alguém. A vila é o local para onde as estradas convergem, uma espécie de alargamento da estrada real, como um lago num rio. É um corpo cujos braços e pernas são as estradas — com quatro ou três caminhos que se cruzam e lhe dão acesso, uma estrada pública e o percurso comum dos viajantes. A palavra deriva do latim villa, em conjunto com via, caminho, ou do mais antigo ainda ved ou vella, que Varrão dizia derivar de veho, de transportar, porque a aldeia ou vila é o local para onde e de onde as coisas são transportadas. Aqueles que ganhavam a vida a transportar animais chamavam-se vellaturam facere. Daí, a palavra latina e a nossa vila; bem como vilão, o que sugere uma certa degeneração a que os aldeões se entregavam. Sem nunca viajarem, fatigavam-se dos que chegavam à aldeia, dos viajantes que circulavam. Alguns nem sequer caminham; outros fazem-no pela estrada; poucos atravessam a natureza. As estradas são construídas para cavalos e negociantes. Eu não as frequento muito porque não tenho pressa para chegar a alguma taberna, loja, estrebaria ou armazém aonde elas conduzem. Sou como um cavalo que corre na pradaria, não vou pela estrada por escolha. O paisagista, para representar a estrada, assinala a figura humana. Não me poderia escolher como modelo. Desbravo a natureza tal como velhos profetas e poetas, Menu, Moisés, Homero, Chaucer. Podem dar-lhe o nome de América: mas não é América, nem Américo Vespúcio, nem Colombo, nem os outros foram descobridores daqueles lugares. Pelo que sei, há mais verdade na mitologia do que em qualquer versão histórica sobre a chamada América. De qualquer modo, há estradas antigas que vale a pena percorrer, como se agora, que estão abandonadas, nos conduzissem a um destino certo. É o caso da velha estrada de Marlborough que já não vai dar a Marlborough, suponho, a não ser que Marlborough seja o sítio aonde ela me leva. Ouso citá-la aqui porque creio que há sempre uma ou duas estradas assim em cada localidade. II A velha estrada de Marlborough Onde antes se cavou por dinheiro Mas nunca se lhe sentiu o cheiro, Onde Martial Miles, sozinho, trilha por vezes o pó do caminho, E Elihaj Wood o fez, Receio que de nada vale, porém. Ninguém se vê: só Elisha Dugan se entrevê — homem de vida ruste vai à caça e faz lume, sem nada a confundir-lhe o passo só tem de lançar o laço. Vive em solidão ténue, A vida alegre é simplesmente Comer regaladamente. Se na Primavera se reergue A vontade de partir, O longe a surgir Na velha estrada de Marlborough. Ninguém a mantém Pois ninguém por ali vem; Mas que é a estrada da vida Nenhum cristão o duvida. Poucos nela se prolongam Quando a trilham: Somente os convivas, à vez, De Quin, o irlandês. Que estrada é esta, que estrada, Senão uma direcção sonhada, Um puro desejo Para vogar sem ensejo? Grandes marcos de pedra há nela, Mas não se vê gente que a cruze, E há cenotáfios dos povoados Repletos de nomes gravados. Vale a pena ir ver Onde podemos ser. Onde é possível viver. Ordenados por que rei? Nunca o saberei. Quando e por quem erguidos? Que homens foram os escolhidos: Gourgas ou Lee, Clark ou Darby? Têm por grande aspiração Ser de eterna duração; Nas lajes de pedra fina, Quem passa ali se inclina E em pouco mais que um verso Transborda todo o Universo. Se outro por ali passar, fundeia o profundo olhar. Sei de um par de linhas Que muito bem ficariam, E até podiam resistir Na literatura sem igual; Se as leio, sei que as relembro Até ao próximo mês de Dezembro. Linhas para na Primavera compreender, Quando o gelo derreter. Se a fantasia libertares E a tua casa deixares, Granjearás o mundo inteiro Na velha estrada de Marlborough. III Actualmente, nesta zona, a melhor parte da terra não é propriedade privada; a paisagem não tem dono, e o caminhante desfruta de uma liberdade relativa. Mas possivelmente virá o dia em que será retalhada nos chamados parques, nos quais uns poucos privilegiados terão o seu gozo em exclusivo — quando as vedações se multiplicarem, locais intrespassáveis e outros engenhos inventados para limitar o homem à estrada pública, e, nesse dia, caminhar sobre a superfície da Terra criada por Deus implicará invadir a propriedade de algum senhor. Desfrutar muito de algo significa normalmente uma pessoa privar-se do seu verdadeiro deleite. Aproveitemos hoje todas as oportunidades, antes que esses abomináveis dias cheguem. Porque será tão difícil por vezes determinar para onde nos devemos encaminhar? Acredito que há um magnetismo subtil na natureza, o qual, se rendidos inconscientemente, nos levará ao caminho certo. Não nos é indiferente o rumo escolhido. Há um caminho certo; porém a nossa desatenção e estupidez têm propensão para o errado. Gostaríamos de dar aquele passeio, nunca antes feito por nós neste mundo físico, o que simboliza perfeitamente o caminho que adoraríamos percorrer no mundo interior e espiritual; e por vezes, sem dúvida, é difícil escolher uma direcção, porque não existe uma ideia clara no nosso espírito. Quando saio de casa para uma caminhada, ainda indeciso quanto à direcção que os meus passos devem tomar, e submeto a decisão ao meu instinto, por estranho e bizarro que pareça, dirijo-me inevitavelmente para sudoeste, para um bosque em particular, ou prado ou pastagem deserta, ou monte naquela coordenada. A agulha da minha bússola não é rápida a acalmar-se — demora a fixar-se, e nem sempre aponta em rigor para sudoeste, é verdade, mas anda por ali, fixando-se entre o oeste e o sudoeste. O futuro, para mim, aponta nessa direcção, e essa parte do planeta parece-me inesgotável e rica. O traçado que limitaria os meus passeios seria não tanto um círculo, mas uma curva de cento e oitenta graus, parecida com uma dessas órbitas dos cometas que se crê formarem curvas de não retorno; neste caso, abrindo para oeste, onde a minha casa ocupa o lugar do Sol. Às vezes fico indeciso e ando às voltas por um quarto de hora, até decidir, pela milésima vez, que vou caminhar para sudoeste ou oeste. Para este, vou a contragosto; mas para oeste sigo livremente. Para acolá, nada tenho para fazer. Custa-me a crer que possa encontrar bonitas paisagens ou suficientes lugares intocados e liberdade para lá do horizonte a leste. Não me entusiasma a perspectiva desse passeio; mas acredito que a floresta que vejo no horizonte a oeste se estendeininterruptamente até à orientação do sol-poente, e não há vilas nem cidades com dimensão suficiente para me perturbar. Deixem-me viver onde me apetece. Neste lado é a cidade, naquele é a natureza, e cada vez mais me desprendo da cidade, deixando-me absorver pela natureza. Devia preocupar-me menos com este facto, se não acreditasse que esta tendência prevalece nos meus patrícios. Devo caminhar até Oregon, e não na direcção da Europa. É esse o rumo da nação, e posso dizer que o progresso da humanidade avança de leste para oeste. No espaço de alguns anos, testemunhámos o fenómeno da migração para sudeste, na colonização da Austrália; mas isto apresenta-se como um movimento retrógrado, e, julgando o carácter moral e físico da primeira geração de australianos, ainda não se revelou ser uma experiência de sucesso. O povo tártaro pensa que não há nada para lá do Tibete, a oeste. «É o fim do mundo», dizem eles; «além há mar infinito». Vivem então num leste sem fim. É rumo a leste que compreendemos e nos debruçamos sobre obras de arte e da literatura, procurando as origens do ser humano; para oeste, vamos em busca do futuro, com espírito empreendedor e aventureiro. O Atlântico é como o rio Lete: quando o atravessamos, recebemos a oportunidade de esquecer o Velho Mundo e as suas instituições. Se não formos bem-sucedidos, provavelmente resta uma oportunidade para a humanidade antes de chegar às margens do Estige, o rio que faz a fronteira entre a Terra e o Além; refiro-me ao rio Lete que é o Pacífico, três vezes mais amplo. Não sei como interpretar isto, ou até que ponto é uma evidência de singularidade, a de que um indivíduo coincide nos seus mais inconsequentes passeios com as migrações gerais dos humanos; mas sei que algo semelhante acontece no instinto migratório dos pássaros e quadrúpedes — que, em certos casos, se sabe ter afectado uma família inteira de esquilos, impelindo-os a uma deslocação enorme e misteriosa, sendo vistos, segundo testemunhos, a atravessar amplos rios, cada um na sua casca, com a cauda levantada como se servisse de vela, e usando os esquilos entretanto mortos na travessia de caudais menos volumosos, formando pontes e atravessando-as. Algo semelhante ao furor que ataca o gado doméstico na Primavera, e a que chamamos bichos- carpinteiros, afecta também nações e pessoas, quer permanentemente quer de forma passageira. Nenhum bando de gansos selvagens grasna nos céus de uma cidade o tempo todo, mas até certo ponto, se eu vendesse casas, isso desvalorizaria o seu valor imobiliário, e provavelmente tomaria essa anomalia em consideração. É então que apetece, em peregrinação, Ir aos santuários de cada região. Todo o pôr do Sol a que assisto inspira-me o desejo de rumar ao oeste, tão distante e belo como aquele onde o Sol mergulha. Aparentemente, ele emigra para oeste todos os dias e deixa-nos a tentação de o acompanhar. É o Grande Pioneiro do Oeste seguido pelas nações. Sonhamos todas as noites com as montanhas vislumbradas no horizonte, apesar de, possivelmente, serem apenas resultantes de condensação de vapor, douradas por derradeiros raios solares. A Atlântida, bem como as ilhas e os Jardins das Hespérides, uma espécie de paraíso na Terra, parece ter sido o grande Ocidente dos antigos, envolto em mistério e poesia. Quem não imaginou, ao olhar para um pôr do Sol, os Jardins das Hespérides, e a origem de todas estas fábulas? Colombo sentiu a inclinação para oeste com mais intensidade do que qualquer outro antes dele. Seguiu o instinto e encontrou o Novo Mundo para Castela e Leão. Uma multidão de homens, naqueles dias, sentiu a fragrância verdejante desses pastos distantes. Ora se espraia o sol pelas colinas, Ora mergulha na baía do ocidente; Quando chega ao zénite, o manto azul sacode; Amanhã, por frescos bosques e novos campos corre. IV Em que zona do globo se pode encontrar uma área de dimensão igual à ocupada pela maioria dos estados americanos, com terra tão fértil e tão rica onde vingam tantas culturas e, ao mesmo tempo, os europeus se adaptam tão bem? Michaux, que só conhecia parte do nosso território, dizia que «havia um incomparável maior número de espécies de árvores de grande porte na América do Norte em relação à Europa; nos Estados Unidos da América há mais de cento e quarenta espécies de árvores que excedem os nove metros de altura; em França somente trinta atingem este tamanho». Mais tarde, os botânicos confirmaram cabalmente as suas observações. Humboldt viajou até à América para concretizar os seus sonhos de jovem de estudar a vegetação tropical, e ali contemplou a sua impressionante perfeição nas primitivas florestas da Amazónia, a mais gigantesca selva da Terra, que descreveu com imensa eloquência. O geógrafo Guyot, também ele europeu, vai mais longe — tão longe que não sei se o subscrevo; excepto quando afirma: «Tal como a vegetação é feita para o animal, e o mundo vegetal é feito para o mundo animal, a América está feita para o homem do Velho Mundo... Ele vai no seu encalço. Deixa os planaltos da Ásia, percorre de etapa em etapa até à Europa. Cada um dos seus passos marca uma nova civilização, superando a anterior, com maior força de desenvolvimento. Chegou ao Atlântico, estancou-se perante a orla deste desconhecido oceano, cujas dimensões não domina, e regressou ao chão que pisa, por algum tempo.» Quando já exauriu o rico solo da Europa, e se sente revigorado, «então recomeça o seu empreendimento de aventura em direcção ao oeste como nos tempos remotos». Disse-o Guyot. É deste impulso para o oeste, entrando em contacto com o obstáculo do Atlântico, que nasce o comércio e o empreendedorismo dos tempos modernos. Michaux, enquanto jovem, no seu Travels West of the Alleghanies, em 1802, diz que uma pergunta nas novas colónias da América era: «“De que parte do mundo vens?” Como se estas vastas e férteis regiões fossem naturalmente o ponto de encontro e território comum a todos os habitantes do planeta.» Empregando uma palavra latina antiquada, eu diria: Ex oriente Lux; ex occidente Frux. Do Oriente, a luz; do Oeste, os frutos. Sir Francis Head, viajante inglês e governador-geral do Canadá, diz-nos: «Tanto no hemisfério norte como no do sul do Novo Mundo, a natureza superou-se nas suas criações pela sua maior escala, mas não só, pois pintou o cenário inteiro com cores mais brilhantes e garridas do que as que delineiam e embelezam a Velha Europa... O céu da América parece infinitamente superior, com o ar mais puro, o frio mais intenso, a Lua parece maior, as estrelas são mais brilhantes e os trovões mais sonoros, os relâmpagos mais espectaculares, o vento mais forte, a chuva mais pesada, as montanhas mais altas, os rios mais longos, as florestas mais vastas, os prados mais extensos.» Esta afirmação bastará para contradizer a de Buffon sobre esta zona do mundo e as suas criações. Há muito tempo, Lineu disse: «Nescio quae facies laete, glabra plantis Americanis» (Não sei o que há de alegre e suave no aspecto das plantas americanas); e creio que neste país não existem, ou há poucas, Africanae bestiae, feras africanas, como os romanos lhes chamavam, o que também é particularmente conveniente para a fixação do homem. Diz-se que num raio de cinco quilómetros da cidade de Singapura, todos os anos, alguns habitantes são arrastados por tigres; mas o viajante pode dormir à noite nos bosques, sem recear as bestas selvagens, de quase todo o território da América do Norte. São testemunhos encorajadores. Se aqui a Lua parece maior do que na Europa, provavelmente, também o Sol. Se o céu da América se nos afigura infinitamente mais alto e as estrelas mais cintilantes, estou convencido de que simbolizam a elevação à qual a filosofia, a poesia e a religião dos seus habitantes podem almejar. Com o tempo, quiçá, o divino firmamento pareça muito mais magnânimo na mente de um americano, e os sinais que o povoam como estrelas ainda mais brilhantes. Acredito que o clima influencia o homem — tal como há algo no ar da montanha que nutre o espírito e o alimenta. Não irá o homemdesenvolver maior perfeição intelectual e física sob estas influências? Ou é irrelevante o número de dias de nevoeiro que suportou na sua existência? Sou de opinião que seremos mais imaginativos, que os nossos pensamentos ficarão mais claros, lúcidos e mais sublimes, como o céu que nos rodeia — o nosso raciocínio mais compreensivo e amplo, como as nossas planícies — o nosso intelecto, mas em grande escala, como o nosso raio e trovão, os nossos rios e montanhas e florestas — e os nossos corações se assemelharão em tamanho, profundidade e grandeza aos nossos mares continentais. Possivelmente, o viajante sentirá algo, ele mesmo não sabe definir, algo de laeta e glabra, de deleite e felicidade. Se não, porque continua o mundo a girar, e porque teria sido descoberta a América? Escusado será dizer que para os americanos... A estrela do império dirige-se para oeste. Como verdadeiro patriota, teria vergonha em acreditar que Adão no Paraíso estava mais bem situado do que o mais humilde camponês a viver nos bosques deste país. As nossas simpatias em Massachusetts não se reduzem a Nova Inglaterra; apesar de estarmos desavindos com o Sul, simpatizamos com o Oeste. É lá que se situa a casa dos nossos filhos mais novos, tal como os escandinavos fizeram do mar a sua herança. É demasiado tarde para estudar hebraico; até é mais importante compreender o calão de hoje em dia. Há alguns meses, fui ver uma paisagem do Reno. Assemelhava- se a um sonho da Idade Média. Deixei-me flutuar ao longo do seu histórico caudal, mais do que apenas na minha imaginação, passando debaixo das pontes construídas pelos romanos, e reconstruídas por heróis posteriores, passei por vilas e castelos cujos nomes eram música para os meus ouvidos, e cada um deles era alvo de uma lenda. Havia Ehrenbreitstein e Rolandseck e Coblentz, que apenas ouvira falar na história. Ruínas que me interessam supremamente. Parecia erguer-se das suas águas e dos socalcos cobertos de vinha uma música em surdina, como a dos cruzados partindo para a Terra Santa. Deixei-me flutuar sob um feitiço, um encantamento, como se tivesse sido transportado para uma idade heróica, e respirasse o ar de tempos cavaleirescos. Logo de seguida, fui apreciar uma paisagem no Mississípi, e enquanto subia a sua margem em plena luz do dia, ao ver os barcos a vapor a carregarem as provisões de lenha, contei as cidades a serem erguidas, vislumbrei as ruínas recentes de Nauvoo, testemunhei os índios a atravessarem o caudal, e, como antes olhara o Mosela, agora observava o Ohio e o Missouri e ouvi as lendas de Dubuque e das Escarpas de Wenona. Continuando a focar-me mais no futuro do que no passado ou no presente, vi que este era um caudal do Reno de uma espécie diferente; que os alicerces dos castelos continuavam por lançar, e as pontes famosas ainda estavam para ser erguidas sobre o rio; e senti que esta era a idade verdadeiramente heróica, apesar de não o sabermos, porque o herói é normalmente o mais simples e discreto dos homens. O Oeste de que falo é apenas outro nome para o mundo desabitado; e o que me tenho preparado para dizer é: na natureza está a preservação do mundo. Cada árvore estende as suas ramagens para as entregar ao meio ambiente. As cidades importam árvores a qualquer preço. Os homens cultivam a terra e navegam os mares por causa delas. É das florestas e do meio selvagem que vêm os bálsamos, as raízes e as cascas que fortalecem a humanidade. Os nossos ancestrais eram selvagens. A fábula de Rómulo e Remo serem amamentados por uma loba não é insignificante. Os fundadores de todos os Estados que se tornaram soberanos também tiraram o seu sustento e vigor de semelhante fonte natural. Por não se deixarem amamentar pela loba, as crianças do império foram conquistadas e exiladas pelas crianças das florestas setentrionais que o foram. Confio na floresta e nas pradarias, e na noite que faz medrar o trigo. Exigimos uma infusão de abeto, de cicuta ou da árvore da vida. Há uma diferença entre comer e beber para viver ou por gula. De facto, os hotentotes devoram sofregamente a medula dos cudos e de outros antílopes crus, de forma sistemática. Alguns dos índios do Norte comem medula crua da rena árctica, assim como outras partes, inclusive até a ponta dos cornos, se for mole. E nisto talvez se tenham antecipado a muitos cozinheiros de Paris. Aproveitam o que normalmente alimenta a fogueira. Talvez seja mais nutritivo e saboroso para criar um homem do que boi cevado ou porco do açougue. Mostrem-me a natureza cuja visão seja insuportável para toda a civilização — como se vivêssemos na medula dos antílopes devorados vivos. Eu emigraria para os confins das zonas onde os tordos cantam — terras selvagens que ainda nenhum homem ocupou; para as quais, creio, já estou aclimatado. O caçador africano Cumming conta-nos que a pele do alce, assim como a da maioria dos antílopes que já matou, lança o mais delicioso perfume de árvores e relva. Quem me dera que os homens fossem como os antílopes, também eles parte da natureza, uma sua parcela, e que as pessoas assim anunciassem a sua presença aos nossos sentidos, e nos indicassem quais os terrenos da natureza que mais percorrem. Não sinto predisposição para ser satírico, quando advirto que o casaco do caçador, ao lançar o odor de almíscar, é um cheiro mais doce do que o emanado normalmente pelos casacos do mercador ou do professor. Quando pego nas roupas destes, nada me sugere que deambulem pelas pradarias e pelos campos floridos, mas antes pelos mercados poeirentos e pelas bibliotecas. Uma pele bronzeada é muitíssimo respeitável, e talvez a cor trigueira seja mais adequada ao homem dos bosques do que o branco. «O cara-pálida!» Não me admira que o africano tenha sentido pena dele. O naturalista Darwin disse: «Um homem branco a tomar banho ao lado de um homem do Taiti era como uma planta passada por lixívia pelas artes do jardineiro, comparada com uma planta viçosa, verde-vivo, a crescer vigorosa nos campos abertos.» Bem Johnson exclamou: «Quão próximo do bem está o que é belo!» E eu digo: «Quão próximo do bem está o que é selvagem!» V O mais vivo é o mais selvagem. O que ainda não se subjugou ao homem, a terra retempera-o. Aquele que avança em frente incessantemente, nunca descansando das tarefas, se desenvolve depressa e exige infinitamente à vida, irá sempre encontrar-se num novo país ou no meio selvagem, rodeado da matéria-prima da vida. É como se transpusesse os troncos das árvores derrubadas das florestas primitivas. Para mim, esperança e futuro não estão nos relvados ou nos campos cultivados, nem nas vilas ou cidades, mas nos pântanos impermeáveis e instáveis. Quando, antes, analisava a minha predilecção por alguma quinta com intenção de a comprar, apercebia-me com frequência de que me sentia atraído somente pelos metros quadrados do profundo atoleiro — uma bacia natural num canto do terreno. Essa era a pérola que me encantava. Valorizo mais os pântanos existentes à volta da minha vila do que as hortas cultivadas na aldeia. Não existem cenários mais belos para os meus olhos do que as densas plantações de adrómeda-anã (Cassandra calyculata) que cobrem os campos sensíveis da superfície terrestre. A botânica não vai mais longe do que dizer-me os nomes dos arbustos que aqui crescem — o mirtilo, a Adromeda paniculata, o louro-ovelha, a azálea e a ródora —, todos comuns no pântano tiritante. Tantas vezes me ocorre que gostaria de ter a minha casa junto a essa extensa e enfadonha área de arbustos vermelhos, desprezando outros canteiros de flores ou arvoredo, sem arbustos podados e adornos elegantes, nem estradas de cascalho — ter este fértil local sob as minhas janelas, não carrinhos de mão cheios de areia retirada da cave em obras. Porque não situar a minha casa, a minha sala, com vista para esse lugar, ao invés de para um fraco aglomerado de curiosidades, aquela pobre desculpa para a natureza e arte, a que chamo o meu pátio? Foi um esforço para o limpar e dar-lhe um aspecto decente quando o carpinteiro e o pedreiro partiram,a pensar tanto no transeunte como no morador. A vedação frontal de mais bom gosto jamais me despertou a atenção; os ornamentos mais elaborados depressa me cansam e entediam. Construa-se então os peitoris das janelas sobre o próprio pântano (posto que não seja o melhor local para construir uma adega com boas condições), pois assim não há acesso aos cidadãos por esse lado. Os pátios frontais não são feitos para serem calcorreados; quando muito, para passarmos por eles rumo às traseiras. Embora me possam julgar desnaturado, se me propusessem entre ir morar na vizinhança do mais bonito dos jardins que o engenho e a arte humana já conceberam ou frente a um pântano lamacento, definitivamente, decidir-me-ia pelo pântano. Quão inúteis têm sido, pois, todos os vossos esforços para mim, ó conterrâneos! O meu ânimo cresce infalivelmente à escala dos ambientes acabrunhados que encontro no exterior. Dêem-me o oceano, o deserto ou a região selvagem! No deserto, ar e solidão compensam a necessidade de humidade e fertilidade. O viajante Burton diz isso: «O nosso ânimo melhora; tornamo-nos francos e cordiais, hospitaleiros e determinados... No deserto, as bebidas alcoólicas só incitam o aborrecimento. Há um gozo profundo numa existência puramente animal.» Aqueles que há muito viajam bastante pelas estepes da Tartária declaram: «Ao regressar às terras cultivadas, a agitação, a perplexidade e o tumulto da civilização oprimem-nos e sufocam-nos; o ar parece não nos preencher os pulmões, e a qualquer momento julgamos que vamos morrer de asfixia.» Quando me quero divertir, procuro um bosque escuro, o mais denso e interminável e, na linguagem dos da cidade, o pântano mais medonho. Entro num pântano como quem se enfia num local sagrado — o sanctum sanctorum. Ali encontra-se a força, a essência da natureza. A mata agreste cobre o solo virgem — e o mesmo terreno serve para o homem e para as árvores. A saúde de um homem requer para a sua vista tantos alqueires de prado quantos os carregamentos de estrume de que uma quinta precisa. Pois aí se encontra o mais importante alimento que o sustenta. Uma vila subsiste não tanto pela quantidade de homens honestos lá existentes, mas pelos bosques e pântanos que a rodeiam. Uma cidade onde se descortine a sua floresta primitiva ondulando em plena força, e onde uma floresta apodreça no subsolo, tem condições para produzir não somente milho e batatas, mas poetas e filósofos para as gerações futuras. Num solo assim cresceu Homero e Confúcio e outros, e de um solo assim selvagem provém o Reformador comendo gafanhotos-migratótios e mel. Preservar animais selvagens implica normalmente uma floresta onde possam sobreviver e deambular. O mesmo acontece com o homem. Há um século, vendiam pelas ruas cascas de árvores retiradas das nossas matas. No próprio aspecto dessas árvores primevas e enrugadas havia, creio, um processo de curtir que enrijecia e consolidava a fibra de que são feitos os pensamentos dos homens. Ah, como me entristece a degeneração nestes dias da minha aldeia nativa, quando não se consegue encontrar uma braçada de cascas com boa espessura, e já não produzimos alcatrão e terebentina! As nações civilizadas — Grécia, Roma, Inglaterra — devem a sua existência às florestas originais que há séculos se decompuseram onde hoje estes países se erguem. Sobrevivem enquanto o solo não está exausto. Infelizmente para a cultura humana! Pouco se deve esperar de uma nação, quando se debela a sua riqueza vegetal e por isso é obrigada a fazer adubo dos ossos dos seus ancestrais. Então os poetas sustentam-se apenas das gorduras supérfluas e os filósofos vão buscar inspiração às suas medulas ósseas. Diz-se ser missão dos americanos «trabalhar o solo virgem», e que «aqui a agricultura assume proporções desconhecidas em qualquer outra parte do mundo». Julgo que o fazendeiro expulsa o índio precisamente porque ele reivindica a terra, o que o torna mais forte e, de certo modo, mais natural. Demarcava há dias, a mando de um proprietário, uma faixa direita de terra com cento e trinta e duas varas de comprimento, atravessando um pântano cuja entrada podia ter sido a inspiração para escrever as palavras que Dante leu na entrada do Inferno — «Despojai-vos de todas as esperanças, antes de entrar» —, ou seja, de jamais sair dali; ou como eu vi o meu patrão a afogar-se, de facto com lama pelo pescoço, a nadar para salvar a vida, na sua propriedade, posto que era Inverno. Era dono de outro pântano parecido, que consegui medir, por estar alagado; porém, no que diz respeito a um terceiro terreno pantanoso, que pude avaliar à distância, dizia ele, para ser honesto consigo mesmo, não poder desfazer-se desse terreno de forma alguma, devido ao lodo que o compunha. E o homem quer construir um fosso em torno do pântano em menos de três anos e reclamar as terras com a magia da enxada. Refiro-o apenas como um exemplo da sua classe. As armas com que obtivemos as nossas vitórias mais importantes, e que como herança devem passar para as próximas gerações, não são a espada nem a lança, mas os engenhos que desbravem caminhos nos bosques e que destruam os montes de turfa, a enxada, a sachola, enferrujados pelo sangue de muitos pântanos e enegrecidos pela poeira de muitos prados duros de conquistar. Foram os próprios ventos que transformaram os campos de milho dos índios em pradarias e que apontaram o caminho que eles não tinham a destreza de seguir. Não havia melhor ferramenta com que o homem pudesse furar a terra do que a concha de molusco. Mas o fazendeiro arma-se do arado e da enxada. Na literatura, só o que é selvagem e natural nos atrai. O tédio não é senão sinónimo de submissão. É o pensamento incivilizado, livre e sem rédea de Hamlet e da Ilíada, das Escrituras e das mitologias, que não se aprendem nas escolas, que nos delicia. Tal como o pato-bravo é mais ágil e engraçado do que o doméstico, também mais belo é o pensamento livre — o pato- selvagem, que, entre o orvalho, se ergue bem alto sobre os pântanos. Um livro realmente bom é algo natural, inesperado, inexplicavelmente notável e belo, como uma flor silvestre encontrada na pradaria do Oeste ou na selva do Leste. O génio é uma luz que torna a escuridão visível, como a luz de um relâmpago, e que despedaça talvez o próprio templo do conhecimento — e não uma vela acesa na pedra da lareira do homem, que empalidece diante da luz do dia comum. A literatura inglesa, desde os tempos dos trovadores até aos dos poetas da Região dos Lagos — incluindo Chaucer, Spencer, Milton e Shakespeare —, não emana uma força nova e, neste sentido, livre. É essencialmente uma literatura dócil e civilizada que reflecte a Grécia e Roma. A sua qualidade selvagem é ser uma floresta verde, e o homem selvagem que o habita, um Robim dos Bosques. Abunda nela um suave amor pela natureza, mas não pela natureza em si. As suas histórias revelam-nos quando os animais selvagens se extinguiram, mas não quando se extinguiu o homem selvagem que as habitou. A ciência de Humboldt é uma coisa; a poesia, outra distinta. O poeta de hoje, apesar de todos os progressos da ciência e dos conhecimentos reunidos pela humanidade, não tem qualquer vantagem sobre Homero. Onde está a literatura que manifesta a natureza? Seria necessário um poeta que tivesse ao seu serviço os ventos e os regatos, para que estes falassem por ele; um poeta que mantivesse as palavras presas ao seu sentido original, como os agricultores que, na Primavera, cravam novamente as estacas levantadas pela geada; um poeta que, ao utilizar as palavras, lhes revelasse a sua origem, que as transplantasse para a página como raízes que se fixam na terra, e cujas palavras fossem tão verdadeiras, frescas e naturais que se abrissem como botões na Primavera, embora permanecessem ocultas entre duas páginas bolorentas numa biblioteca — palavras que dessem fruto todos os anos para o leitor leal, segundo a sua espécie, em harmonia com a natureza circundante. Não me lembro de versos que possa citar que expressem completamente esta sofreguidãopela natureza. Ainda que se aproxime desse estilo, a melhor poesia é insuficiente. Não descortino em toda a literatura, antiga ou moderna, uma passagem que me faça alcançar a natureza que tão bem conheço. Notem que reclamo algo que nem a era augustana nem a isabelina, nenhuma cultura, resumindo, podem dar. A mitologia é o que fica menos aquém. Quão mais férteis são as raízes da natureza que a mitologia grega encerra do que as da literatura inglesa. A mitologia é a colheita do Novo Mundo antes de se ter exaurido o seu solo, antes de a fantasia e a imaginação terem sido afectadas por pragas, e ainda hoje é fértil, onde quer que o seu vigor se mantenha intacto. Todas as outras literaturas resistem apenas como o olmo sobranceiro às nossas casas; mas a mitologia lembra um grande dragoeiro das Antilhas, tão velho quanto a humanidade e, quer assim seja quer não, resistirá o mesmo tempo, pois é a decadência de outras literaturas que forma o solo onde a literatura floresce. O Oeste prepara-se para juntar as suas fábulas às do Leste. Tendo os vales do Ganges, do Nilo e do Reno já fornecido a sua colheita, resta esperar o que os vales do Amazonas, do rio da Prata, do Orinoco, do São Lourenço e do Mississípi vão produzir. Talvez quando, no decurso das eras, a liberdade americana se tornar numa invenção do passado — tal como é de algum modo uma ficção do presente —, os poetas do mundo se inspirem na mitologia americana. Os sonhos mais loucos dos homens livres não deixam de ser verdadeiros, embora não agradem ao senso comum dos ingleses e americanos de hoje. Nem todas as verdades interessam ao senso comum. A natureza reserva um lugar para a vide-branca e outro para a couve. Algumas verdades são evocativas, outras meramente sensatas, como costuma dizer-se, e outras ainda, proféticas. Certos tipos de doença podem prenunciar formas de saúde. Os geólogos descobriram que as figuras de cobras, de grifos, de dragões viadores e outros ornamentos excêntricos da heráldica se inspiram em fósseis de espécies extintas antes da criação do homem, e que «indicam um vago e obscuro conhecimento de um estado preliminar da vida orgânica». Os hindus imaginavam que a Terra assentava num elefante, que por sua vez se suportava numa tartaruga, e esta sobre uma serpente. Sendo talvez uma coincidência irrelevante, não é absurdo referir, a este propósito, que um fóssil de tartaruga grande o suficiente para suster um elefante foi recentemente descoberto na Ásia. Confesso que sou tendencioso no que toca a estas extravagantes teorias, as que transcendem a ordem do tempo e da evolução. São as mais sublimes recriações do intelecto. A perdiz adora ervilhas, mas não aquelas com que há-de ir parar ao prato. Resumindo, todas as coisas boas são selvagens e livres. Há algo numa nota musical, produzida por um instrumento ou pela voz humana — por exemplo, o toque de uma corneta numa noite de Verão —, que, pela sua qualidade espontânea, e não estou a ser irónico, me relembra os uivos que soltam os animais selvagens nas florestas nativas. É um traço da sua bestialidade, parece-me. Dêem- me por amigos e vizinhos homens selvagens, e não gente civilizada. A impetuosidade do selvagem não é senão uma pálida expressão se comparada com o que há de horrível na sociabilidade entre os homens e entre os amantes. Adoro ver os animais domésticos a reafirmarem os seus direitos nativos — sinal de que não perderam por completo os hábitos selvagens e o vigor natural; por exemplo, quando vejo a vaca do meu vizinho escapar-se do pasto no começo da Primavera e nadar corajosamente pelo rio, num caudal gelado e cinzento, com vinte e cinco ou trinta varas de largura, de volume aumentado pela neve derretida. É a travessia do búfalo do Mississípi. Esta proeza confere, parece-me, uma certa dignidade ao rebanho. As sementes do instinto são preservadas por tempo indeterminado sob o espesso couro dos cavalos e do gado, quais sementes no ventre da terra. Todas as travessuras dos animais são inesperadas. Certo dia, vi uma manada de doze bois e vacas a correr e a pular freneticamente, como ratazanas ou gatos gigantescos. Abanavam a cabeça, espetavam a cauda; lestos, subiam e desciam as colinas, e notei, pelos chifres e pela agitação, as suas semelhanças com a tribo dos veados. Mas, ai deles! Um súbito e estridente «parem já!» poria de imediato fim ao seu ardor, reduzindo-os de animais vivos a peças de carne comestíveis, e enrijecendo os seus flancos e tendões como uma locomotiva. Quem senão o Demónio gritaria à humanidade «parem já!»? Com efeito, a vida do gado, tal como a de muitos homens, é apenas uma espécie de movimento mecânico; mexe um flanco de cada vez, e o homem, com a sua maquinaria, está meio caminho entre o cavalo e o boi. Onde bate o chicote, fica- se paralisado. No caso dos ágeis felinos, ocorreria a alguém pensar numa fatia da sua tenra carne, tal como se pensa em bifes de vaca? Rejubilo que os cavalos e os bezerros tenham de ser domesticados antes de se transformarem em escravos do homem, e que os próprios homens tenham ainda uma vida divertida enquanto jovens antes de se tornarem membros submissos da sociedade. Sem dúvida, nem todos os homens são igualmente domináveis; e lá porque a maioria, como os cães e as ovelhas, é subordinada por uma predisposição inerente, não há razão para dominar os outros e para que estes se verguem e se baixem ao mesmo nível. As pessoas são em essência semelhantes, mas foram concebidas em tão grande número que há diferenças entre elas. Quando se trata de cumprir uma tarefa vulgar, um indivíduo sair-se-á tão bem como outro; mas, no caso de um propósito mais elevado, a excelência individual pode sobressair. Qualquer humano sabe tapar uma fenda por onde entra o frio, mas só um poderia protagonizar este exemplo. Confúcio disse: «As peles do tigre e do leopardo, depois de curtidas, são como a pelagem do cão ou da ovelha.» Mas não compete a uma cultura verdadeira domar tigres, nem tornar as ovelhas ferozes. E curtir a pele do tigre para dela fazer sapatos não é a melhor aplicação que se lhe pode dar. Quando leio de relance uma lista de nomes de homens de língua estrangeira, como uma lista de oficiais militares ou de autores que escreveram sobre um tema em particular, recordo que um nome nada quer dizer. Menschikoff, por exemplo, não é aos meus ouvidos mais humano do que os bigodes de um gato, e pode até pertencer a um rato. Tal como para nós soam os nomes dos polacos e dos russos, o mesmo acham eles dos nossos. Os seus nomes parecem uma lengalenga infantil: Iery, fieryichery van, tittle-tol-tan. Imagino um bando de crianças selvagens que infesta a terra, e a cada uma o seu pastor atribuiu um som bárbaro do respectivo dialecto. Os nomes dos homens são, garantidamente, tão frívolos e vulgares como Bose e Tray, nomes de cães. Penso que seria proveitoso para a filosofia se os homens tivessem nomes mais genéricos, pelos quais fossem conhecidos. Bastaria saber apenas o seu sexo, e quiçá o tipo ou a variedade, para conhecer o indivíduo. Não estamos dispostos a acreditar que todos os soldados do exército romano tinham um nome próprio, pois não se pensava que cada um possuísse um carácter distinto. Actualmente, os nossos únicos verdadeiros nomes não passam de alcunhas. Conheci um menino que, por causa da sua energia extraordinária, tinha a alcunha de Sem-Medo entre os amigos, e este ímpeto suplantava designadamente o nome de baptismo. Alguns viajantes contam que um índio não tem nome próprio, ganha-o, e que deriva da sua reputação. Em algumas tribos, um índio adquire um novo nome a cada proeza sua. É lamentável que um homem tenha um nome apenas por conveniência, sem o conquistar. Não permitirei que meros nomes façam distinções, e continuarei a ver as pessoas como pertencendo a rebanhos. Um nome familiar não torna um homem menos estranho. Ao selvagem talvez seja permitido reter em segredo o seu nome de guerra conquistado nos bosques. Todos temos em nós um ser selvagem, e o seu nome natural está gravado algures no nosso ser. Vejoque o meu vizinho, que tem nome de família William ou Edwin, se desfaz dele como um casaco. Não lhe assenta quando dorme ou está furioso, ou quando se move por alguma paixão ou inspiração. Parece que oiço por vezes o nome do seu ser selvagem dito pela família numa língua ora ríspida ora melodiosa. Eis em rigor a equilibrada mãe natureza, vasta, cheia de beleza, e com tanto afecto para com os seus filhos como o leopardo para com as crias; todavia, em tão jovem idade, somos desmamados e entregues à sociedade, à cultura que é exclusivamente um conjunto de interacções das pessoas — uma espécie de cruzamento consanguíneo, que produz, quando muito, uma mera nobreza inglesa, uma civilização votada ao efémero. Na sociedade, nas melhores instituições da humanidade, é fácil detectar uma certa tendência para a precocidade. Quando ainda devíamos ser crianças, já somos homenzinhos e mulherzinhas. Dai-me uma cultura que retire muito estrume dos campos e que explore o solo — e não uma já viciada em fertilizantes, de ferramentas e de modernos modos de cultivo! Muitos dos pobres estudantes de olhos doridos de que ouvi falar desenvolver-se-iam mais depressa, não só intelectual mas também fisicamente, se, em vez de se deitarem tão tarde, se recolhessem cedo. Talvez haja um excesso de luz inspiradora. O francês Niépce descobriu o actinismo, o poder que os raios solares encerram e que desencadeia um efeito químico. As rochas de granito, as estruturas de pedra e as estátuas de metal «sofrem igualmente o efeito destrutivo das horas de sol e, não fossem os propósitos da natureza não menos admiráveis, desintegrar-se-iam ao mais suave toque do mais subtil agente do universo». Mas Niépce observou que «os corpos que sofriam essa mudança à luz do dia tinham a capacidade de se regenerar durante a noite, quando tal influência já não actuava sobre eles». Deste modo se inferiu que as «horas de escuridão são tão necessárias para os corpos inorgânicos como a noite e o sono o são também para o reino orgânico». Assim, também a Lua não brilha todas as noites, dando por vezes lugar às trevas. Penso que, assim como nem todos os alqueires de terra se cultivam, o mesmo acontece aos seres humanos. Parte será semeada, mas a maioria deve ser prado e floresta, não só para uso imediato, mas a fim de preparar o solo fértil para um futuro não imediato, para a decadência anual da vegetação que nele se mantém. Há mais letras para uma criança do que as inventadas por Cadmo. Os hispânicos têm uma expressão que ilustra bem este conhecimento selvagem e obscuro — Gramatica parda —, uma espécie da sagacidade materna ligada à imagem do leopardo que já citei. Já ouvimos falar da Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil. Diz-se que saber é poder, ou algo semelhante. Creio que é igualmente necessária uma Sociedade para a Difusão da Ignorância Útil, algo que intitularei «Conhecimento do Belo», útil num sentido mais elevado, pois o que é a maioria do nosso sobrestimado e hipotético conhecimento senão a presunção de que sabemos algo, que nos impede de usufruir das vantagens da nossa real ignorância? Aquilo a que chamamos conhecimento é muitas vezes a nossa verdadeira ignorância; e a ignorância, o nosso questionável conhecimento. Após longos anos de aturadas diligências e de leitura de jornais — porque o que são, afinal, as bibliotecas científicas senão compilações de jornais? —, um homem reúne uma miríade de factos, arruma-os na memória e, depois, em algum momento da vida, vagueia pelos Grandes Campos do Conhecimento. Isto é, começa a pastar como um cavalo e liberta-se de todos os arreios que repousam no estábulo. Daria por vezes o seguinte conselho à Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil: «Vão pastar na relva. Já comeram palha que baste.» Chegou a Primavera com as suas verdejantes colheitas. Até as vacas são conduzidas para as pastagens rurais antes do fim de Maio; apesar de ter ouvido falar de um camponês aberrante que mantinha a sua vaca no celeiro e lhe dava palha a comer todo o ano. Geralmente esta é a forma como a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil trata o seu gado. A ignorância do homem nem sempre é só útil, mas bela, ao passo que os seus supostos conhecimentos são geralmente piores do que inúteis, além de até os podermos considerar feios. Com que homem prefere lidar: com o que nada sabe sobre um assunto e, algo particularmente raro, sabe que nada sabe, ou com aquele que sabe alguma coisa sobre o assunto, mas julga que sabe tudo? A minha ânsia de conhecimento é intermitente, mas o meu anseio por banhar a cabeça em atmosferas que os meus pés desconhecem é constante. A coisa mais elevada a que podemos aspirar não é ao conhecimento, mas à compreensão pela inteligência. Não sei se esta consciência superior se resume a algo mais definitivo do que um romance ou uma grande surpresa sobre a súbita revelação da insuficiência de tudo a que chamamos conhecimento — a descoberta de que há mais coisas no Céu e na Terra do que a nossa filosofia sonha. É como o sol que desfaz a neblina. Os seres humanos não podem compreender num grau mais elevado, tal como não podem olhar directa e serenamente para o Astro-Rei. «Não podem compreendê-lo como quem compreende um pormenor», proferiam os oráculos caldeus. Há algo de servil no hábito de invocar uma lei a que devemos obedecer. Podemos saber de cor as leis importantes por conveniência própria, mas uma vida bem-sucedida não conhece leis. É com certeza uma descoberta infeliz saber que uma lei nos subjuga de formas que desconhecíamos. Vivam em liberdade, filhos da névoa — no que diz respeito ao conhecimento, somos todos filhos da bruma. O ser humano que escolhe viver em liberdade é superior a todas as leis, em virtude da sua relação com o legislador. «É um dever vivo», afirma Vishnu Purana; «é o que não deriva da nossa servidão que nos liberta; todos os outros deveres apenas atingem a letargia; todos os outros conhecimentos são apenas fruto da habilidade de um artista». É impressionante a escassez de acontecimentos ou crises na nossa história, quão pouco exercitámos a nossa mente, e como tão poucas experiências vivemos. Alegremente me convenceria de que me desenvolvo de forma rápida e vigorosa, embora o meu próprio crescimento perturbe este autocontrolo entediante — e apesar de travar lutas ao longo das noites longas, negras e opressivas, ou tempos sombrios. Bom seria se as nossas vidas fossem até uma tragédia divina, e não uma farsa ou comédia trivial. Dante, Bunyan e outros autores parecem ter exercitado a mente mais do que nós: sujeitaram-se a uma cultura que as nossas escolas e universidades não infundem. Até Maomé, embora muitos se encolerizem ao ouvir o seu nome, tinha muito mais por que viver — sim, e por que morrer — do que eles têm. Quando, com curtos intervalos, somos atingidos por pensamentos ao passear por um caminho-de-ferro, podem os vagões passar que não os ouvimos. Mas logo, devido a alguma lei inexorável, a nossa vida continua e os vagões regressam. Brisa suave que flutuas invisível E que vergas os cardos em torno da tempestade Loira Viajante dos vales ventosos, Porque tão cedo largaste os meus ouvidos? VI Se é verdade que todos os seres humanos sentem atracção por algo que os impele para a sociedade, também há que mencionar: poucos se sentem atraídos pela natureza. Na sua relação com ela, as pessoas parecem geralmente, não obstante as suas artes, de condição inferior à dos animais. Não costuma ser uma relação bonita, como é a destes. Quão pouca consideração temos pela beleza da paisagem! Recordemo-nos de que os gregos chamavam ao mundo beleza ou ordem, embora não saibamos claramente porque o faziam, e consideremos o facto, na melhor das hipóteses, uma curiosidade filológica. A meu ver, creio que, no tocante à natureza, vivo uma espécie de vida de fronteira, nos confins de um mundo em que faço incursões esporádicas e rápidas; e o meu patriotismo e a minha fidelidade para com o estado desses territórios nos quais me refugio são os de um salteador. Rumo a umavida a que chamo natural, seguiria de livre vontade até um fogo-fátuo através de terra pantanosa e lodaçais inimagináveis, mas não houve luar nem pirilampos que me indicassem o caminho que conduz até lá. A natureza tem uma personalidade tão vasta e universal que jamais lhes conseguimos distinguir um só traço. O caminhante dos campos por ele conhecidos e que se estendem em redor da minha terra natal dá por si, por vezes, noutro território — não é o descrito nos documentos que atestam a propriedade dos seus donos, ou seja, num campo longínquo nos confins da actual Concord, onde cessa a sua jurisdição, e onde a ideia que Concord sugere deixa de ser sugestiva. Estas quintas que eu mesmo sondei, estes limites que eu próprio tracei, afiguram-se-me ainda turvos entre a neblina; mas não há processo químico que os fixe, desvanecem-se da superfície do vidro, e o quadro que o artista pintou por baixo mantém-se indistinto. O mundo a que estamos geralmente habituados não deixa rasto e não celebra a passagem de cada aniversário. Certa tarde, fui dar um passeio até à Quinta dos Spaulding. Vi o entardecer iluminar um pinhal imponente no lado oposto do horizonte. Os seus raios dourados percorriam os trilhos do bosque como se o fizessem num nobre salão. Fiquei impressionado, como se uma família ilustre e encantadora, igualmente antiga e referenciável, e para mim desconhecida, se tivesse fixado nessa parte da Terra a que dão o nome de Concord, tivesse por aio o Sol e escolhido não fazer parte da comunidade da aldeia, evitando receber visitas. Vi nos campos de arandos dos Spaulding o jardim da família, o seu pátio de recreio, mais além no bosque. As pinhas maiores eram os beirais do telhado. A casa não se encontrava imediatamente visível; árvores cresciam nela. Pareceu-me ter ouvido um riso abafado. Os membros da família pareciam reclinar- se entre os raios de sol. Têm filhos e filhas. Estão bem instalados. O trilho da carroça do fazendeiro que atravessa o salão da família não os desencoraja de todo, pois é no seu fundo lodoso que o céu por vezes se espelha. Nunca se ouviu falar desta família e não se sabe que a temos por vizinha — mesmo que eu já tenha ouvido o patriarca assobiar enquanto guiava a sua parelha de bois pela casa. Nada se compara à serenidade das suas vidas. No seu brasão figura um líquen, somente. Observei-o pintado nos pinheiros e nos carvalhos. Os seus sótãos são as copas das árvores. Não pertencem a partidos. Não se ouvem ruídos de trabalho em marcha. Não me pareceu que tecessem ou fiassem. Percebi, contudo, quando o vento cessou, o mais doce e melodioso sussurrar que se pode conceber — como o som de uma colmeia longínqua em Maio, assim se manifestou o som dos seus pensamentos. Não lhes escutei pensamentos indolentes, e ninguém de fora podia ver o seu trabalho, pois nem enleios nem coisas supérfluas estorvavam as suas lides. Porém, é-me difícil recordá-los. Desvanecem-se irremediavelmente da minha memória, mesmo agora que falo neles e tento invocá-los. Só depois de um longo e sério esforço para tornar as ideias mais nítidas é que tenho a clareza de se encontrarem ali mesmo, reais. Não fossem famílias como esta, já teríamos abandonado Concord. Na Nova Inglaterra, diz-se que cada vez menos pombos nos visitam todos os anos. As nossas florestas não têm poisos para eles. Assim, tudo leva a crer, que também menos pensamentos visitam cada adolescente todos os anos, pois os arvoredos das nossas mentes jazem devastados — destruídos por alimentar as inúteis fogueiras da ambição, ou vendidos como lenha —, e quase não há um ramo no qual possam habitar. Já não constroem ninhos nem se multiplicam entre nós. Numa estação mais suave, talvez uma ténue sombra paire sobre a paisagem do pensamento, nas asas de algum pensamento na sua migração primaveril ou outonal, mas, olhando para o céu, somos incapazes de detectar a substância do pensamento em si. Os nossos pensamentos alados transformam-se em aves domésticas. Já não voam nas alturas e só almejam o esplendor de uma galinha-chinesa ou de uma Cochinchina. Esses gra-a-a-andes pensamentos, esses gra-a-a-andes homens de que se ouve falar! Abraçamos a terra — mas quão raramente a escalamos! Penso que devíamos elevar-nos mais. Podíamos ao menos trepar a uma árvore. Como trepei aquele pinheiro-alvar muito alto no topo de uma colina. Embora tenha ficado bastante arranhado, fui amplamente recompensado, pois descobri no horizonte montanhas que nunca antes vira — vi muito mais do céu e da terra. Podia ter andado à volta do tronco de uma árvore durante setenta anos que decerto nunca as veria. Mas sobretudo descobri ao meu redor — era quase o fim de Junho —, no extremo dos ramos mais altaneiros, uns minúsculos rebentos vermelhos em forma de cone, a fértil flor do espinheiro-alvar voltada para o céu. Levei de imediato para a aldeia a agulha mais altaneira do espinheiro e mostrei-a a uns estranhos jurados que caminhavam na rua — pois era semana de julgamento —, a agricultores, negociantes de madeira, lenhadores e caçadores. Nunca tinham visto nada semelhante, mas pasmavam diante dela como se de uma estrela cadente se tratasse. Dizem que os antigos arquitectos faziam nos acabamentos dos topos das colunas um trabalho tão perfeito como na base das colunas, nas partes mais visíveis! Desde os primórdios, a natureza fez crescer os minúsculos rebentos da floresta apenas rumo ao céu, acima da cabeça dos homens e longe da sua vista. Vemos somente as flores que pisamos nos campos. Desde os tempos mais longínquos, os pinheiros desenvolvem os delicados rebentos nos ramos mais altos do bosque todos os verões, assim como sobre as cabeças dos filhos peles-vermelhas da natureza e dos seus filhos brancos. Todavia, raro é o agricultor ou o caçador que na terra os tenha avistado. Sobretudo, não podemos dar-nos ao luxo de não viver no presente. Entre todos os mortais, abençoado é o que não perde um segundo a relembrar o passado. É anacrónica a filosofia que não nos manda escutar o cantar do galo nos celeiros próximos. Esse som relembra-nos normalmente que estamos a enferrujar e a ficar antiquados nas nossas ocupações e nos nossos hábitos de pensamento. Já a filosofia desse bendito ser humano se resume a um tempo mais moderno do que o nosso. Há algo diferente nela, é um testamento mais novo — o evangelho segundo o momento presente. Não ficou na retaguarda; levantou-se cedo e começou cedo o dia, e estar onde ele está é viver plenamente, nas primeiras fileiras do tempo. É a expressão do carácter saudável e da pujança da natureza, uma vanglória para o mundo — a salubridade de um regato que corre, uma fonte de musas, e que celebra o instante que passa. Onde reside este carácter sadio não se aprovam leis que condenam escravos fugitivos. Quem não traiu o seu mestre muitas vezes depois de ouvir cantar o galo? O mérito deste canto reside em ser alheio a todo o queixume. O cantor pode facilmente comover-nos às lágrimas ou fazer-nos rir, mas quem é capaz de despertar em nós a pura alegria do amanhecer? Quando, entregue a meditações melancólicas, sinto a quietude dos trilhos do bosque ao domingo, ou, quando estou num velório, ouço o canto de um galo distante ou próximo: «Pelo menos alguém está em paz»; e recupero o ânimo de repente. Num dia de Novembro passado aconteceu um extraordinário pôr do Sol. Passeava num prado, onde nasce um pequeno regato, quando o Sol, antes de desaparecer, num fim de tarde cinzento e frio, alcançou um ponto no horizonte e os raios mais suaves e matinais incidiram na relva seca, nos troncos das árvores do horizonte oposto e nas folhas dos carvalhos-anões na encosta do monte, enquanto as nossas sombras se alongavam para o leste do prado, como se fossem os únicos obstáculos aos seus raios. Apresentou-se como uma luz que nunca imaginara, e o ar era tão afável e plácido que se pôde concluir estarmos no Paraíso. Quando reflectimos e concluímos que não era um fenómeno isolado e irrepetível, mas que aconteceria inúmeras vezes e para sempre, em tardes infinitas, para alegrare descansar a criança que por ali aparecesse àquela hora tardia, tornou-se um espectáculo ainda mais glorioso. Num qualquer prado ermo onde não se vêem casas, o Sol põe-se em toda a sua magnificência e com todo o esplendor que se esbanja até às cidades, talvez como nunca antes se pôs — onde há um solitário falcão cujas asas se douram na sua luz, ou apenas um rato- almiscarado que espreita do seu lugar de vigia. E onde há talvez um riacho negro no meio do pântano, que há pouco brotou, enredando lentamente um cepo a decompor-se. Caminhámos sob aquela luz tão clara e pura, que tudo dourava. Uma luz tão suave e serenamente resplandecente que pensei que nunca me banhara em águas tão douradas, calmas e silenciosas. A vertente oeste de cada bosque e todos os seus terrenos elevados reluziam como os confins dos Elísios, e o sol atrás de nós parecia um gentil pastor que nos conduzia ao lar ao fim do dia. Assim vagueamos para a Terra Santa, até ao dia em que o sol brilhe mais do que nunca e reluza também nos nossos corações e espíritos, iluminando a vida num grande e radiante despertar; tão quente, tranquilo e dourado como uma colina no Outono. FIM ◉ Se é verdade que todos os seres humanos sentem atracção por algo que os impele para a sociedade, também há que mencionar: poucos se sentem atraídos pela natureza. Na sua relação com ela, as pessoas parecem geralmente, não obstante as suas artes, de condição inferior à dos animais. Não costuma ser uma relação bonita, como é a destes. Quão pouca consideração temos pela beleza da paisagem! Recordemo-nos de que os gregos chamavam ao mundo beleza ou ordem, embora não saibamos claramente porque o faziam, e consideremos o facto, na melhor das hipóteses, uma curiosidade filológica. A meu ver, creio que, no tocante à natureza, vivo uma espécie de vida de fronteira, nos confins de um mundo em que faço incursões esporádicas e rápidas; e o meu patriotismo e a minha fidelidade para com o estado desses territórios nos quais me refugio são os de um salteador. Rumo a uma vida a que chamo natural, seguiria de livre vontade até um fogo-fátuo através de terra pantanosa e lodaçais inimagináveis, mas não houve luar nem pirilampos que me indicassem o caminho que conduz até lá. A natureza tem uma personalidade tão vasta e universal que jamais lhes conseguimos distinguir um só traço. O caminhante dos campos por ele conhecidos e que se estendem em redor da minha terra natal dá por si, por vezes, noutro território. ◉ FICHA TÉCNICA Prefácio I II III IV V VI ◉