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Tia Williams - Sete Dias em Junho

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Bruno Amorim

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Para CC e FF, os meus amores.
N
PRÓLOGO
o ano da graça de 2019, Eva Mercy, de 32 anos de idade, quase
morreu asfixiada com uma pastilha elástica. Estava a tentar
masturbar-se quando a pastilha ficou presa na garganta,
bloqueando a passagem de ar. À medida que ia perdendo os
sentidos, só conseguia imaginar a filha, Audre, a encontrá-la a
sacolejar-se num pijama de Natal, agarrada a uma embalagem de
lubrificante de morango e a um vibrador chamado Capitão (que
vibrava a uma frequência muito mais elevada do que a anunciada, a
ponto de provocar asfixia por pastilha). O título do obituário seria
«Morte por vibrador». Um legado pesado para uma menina de 12
anos que acabara de ficar órfã.
Porém, Eva não morreu. Acabou por conseguir cuspir a pastilha.
Abalada, enfiou o Capitão numa gaveta cheia de t-shirts de
concertos de hip-hop, pôs o antigo anel de camafeu e saiu
calmamente para o corredor para ir acordar Audre, que tinha a festa
de aniversário da melhor amiga nos Hamptons. Não havia tempo
para se deter no seu breve encontro com a mortalidade.
Embora admitisse que era uma mãe do caraças e uma romancista
competente, o verdadeiro talento de Eva consistia na capacidade de
esquecer as merdas estranhas e seguir em frente. Desta vez, fê-lo
tão bem que se esqueceu do óbvio.
Quando Eva Mercy era pequena, a mãe dela dissera-lhe que as
mulheres crioulas viam sinais. Era uma altura em que, para Eva, a
palavra «crioula» estava vagamente relacionada com o estado do
Louisiana e com pessoas negras com apelidos franceses. Só
quando chegou à escola secundária é que percebeu que a mãe era
— qual seria a palavra mais justa? — excêntrica e recorria aos
«sinais» para justificar os seus caprichos. («A Mariah Carey lançou
um álbum chamado Charmbracelet? Vamos estourar a renda em
amuletos de zircónia da Zales!») Ou seja, Eva estava programada
para acreditar que o universo lhe enviava mensagens.
Por isso, deveria ter-lhe ocorrido que iria enfrentar um drama
verdadeiramente transformador depois daquela Tridentada. Afinal
de contas, já tivera uma experiência de quase morte.
E, na primeira experiência — tal como nesta —, acordara num
mundo para sempre diferente aos seus olhos.
DOMINGO
— U
CAPÍTULO 1
MORDE-ME
m brinde à nossa deusa do sexo, Eva Mercy! — clamou um
anjo de mulher, erguendo um copo de champanhe. Eva, com
a garganta ainda áspera devido ao incidente do dia anterior, tossiu
para disfarçar um resfôlego ao ouvir as palavras «deusa do sexo».
As 40 mulheres que enchiam as longas mesas de jantar
aplaudiram ruidosamente. Estavam tocadas. O clube de leitura,
composto por barulhentas mulheres brancas de classe média-alta a
caminho dos 60 anos, viajara de Dayton, no Ohio, até Manhattan
para marcar presença num brunch de homenagem a Eva. A ocasião
era o 13.º aniversário da sua coleção de livros eróticos,
Amaldiçoados, campeã de vendas (bem, ex-campeã de vendas).
Lacey, a presidente do grupo, ajustou o chapéu de bruxa roxo que
tinha na cabeça e virou-se para Eva, à cabeceira da mesa.
— Hoje — bramiu —, celebramos o dia mágico em que
conhecemos o nosso vampiro de olhos de bronze, Sebastian, e o
seu verdadeiro amor, a intrépida e inofensiva bruxa Gia!
As mesas irromperam em berros. Eva estava aliviada por o
delirantemente piroso restaurante da Times Square inspirado no
tema do sadomasoquismo, Um Lugar para Dizer Sim, lhes ter
atribuído uma sala privada. O teto estava forrado com veludo
vermelho e as paredes, decoradas com uma teia de cordas de
bondage e chibatas. Lustres góticos balançavam perigosamente
baixo sobre as mesas lacadas a preto.
A Ementa da Dor ou do Prazer era a atração turística.
Dependendo da escolha, os empregados de mesa em roupa de
bondage podiam dar uma leve chibatada, fazer uma lap dance, ou
outra coisa qualquer. Se o cliente desejasse.
Eva não o desejava. Mas também não era uma desmancha-
prazeres, e as Verdadeiras Donas de Casa de Dayton tinham vindo
de muito longe. Aquela era a sua gente, o fervoroso clube de fãs
que a mantinha à tona. Sobretudo nos tempos mais recentes, em
que o fenómeno dos vampiros (e as vendas dos seus livros) tinha
esmorecido.
Assim, Eva olhou para a ementa e escolheu «Algemas +
Bolachas». E agora estava sentada num trono gótico, com as mãos
algemadas atrás da cadeira, enquanto uma empregada de mesa
enfastiada num espartilho de pele artificial lhe dava biscoitos de
canela à boca.
Eram 14h45.
Deveria sentir-se mortificada. Mas a cena não lhe era estranha.
Afinal de contas, Eva escrevia pornografia de caixa de
supermercado. Enquanto a maioria dos escritores tinha
compromissos para ir falar em livrarias, universidades e casas
privadas sofisticadas, os eventos de Eva eram, digamos, mais
lúbricos. Já tinha participado em sessões de autógrafos em sex
shops, clubes de burlesco e sessões de formação tântrica. Tinha
inclusivamente vendido livros na festa que se seguira ao evento
Feministas em Filmes para Adultos, em 2008.
Eram os ossos do ofício. Sorria com condescendência ao ver as
suas leitoras a deixarem-se arrebatar pelos dois casos perdidos
cheios de tesão, disfuncionais e eternamente jovens que ela
inventara quando era, ela própria, um caso perdido de 19 anos
cheia de tesão e disfuncional.
Eva nunca tivera a intenção de transformar o seu nome num
sinónimo de bruxas, vampiros e orgasmos. Com uma especialização
dupla em escrita criativa e melancolia avançada, tropeçara
acidentalmente naquela vida. Estava no segundo ano da faculdade,
nas férias de inverno. Não tinha para onde ir. Assim, enfiara-se no
seu quarto da residência de estudantes e vertera toda a sua
angústia de adolescente e os seus devaneios de apreciadora de
terror num festim de luxúria e violência, que a colega de quarto
enviara secretamente para o concurso de Nova Ficção da revista
Jumpscare. Eva conquistara o primeiro prémio e tivera direito a um
agente literário. Três meses depois, abandonava a faculdade com
um acordo milionário para escrever livros.
Não deixava de ser irónico que ganhasse a vida a escrever sobre
sexo sensual. Eva não se lembrava da última vez em que tinha
estado nua com alguém, morto-vivo ou de qualquer outro tipo. Entre
a escrita, as digressões, ser mãe de uma pré-adolescente em
ebulição e lutar contra uma doença crónica que umas vezes era
controlável e outras completamente debilitante, estava demasiado
esgotada para um romance com um pénis a sério.
O que não tinha problema nenhum. Quando sentia uma
comichão, esfregava-a nos seus livros. Como um pugilista em
abstinência antes de um grande confronto, Eva fazia uso do desejo
sexual não consumado para dar à história de Sebastian e Gia um
toque de delírio. Era pólvora fictícia.
Contudo, na era das redes sociais, ninguém queria imaginar a sua
autora de livros eróticos preferida completamente pedrada com
analgésicos e a babar-se no sofá às 21h15 todas as noites. Por
conseguinte, Eva apresentava-se sempre impecável, numa elegante
abordagem de maria-rapaz à sensualidade. Nesse dia, no
restaurante, envergava uma t-shirt cinzenta, ténis Adidas, calças de
ganga, argolas douradas vintage e olhos pintados de um tom preto
esfumado. Com os caraterísticos óculos de secretária sensual e
caracóis a caírem-lhe sobre a clavícula, não estava longe de
conseguir convencer qualquer pessoa de que era uma devoradora
de homens.
Eva era uma fingidora extraordinária.
— E bem hajas — continuou Lacey — por reforçares a nossa fé
na paixão, mesmo que a Gia e o Sebastian estejam destinados a
acordar em lados opostos do mundo depois do orgasmo devido a
uma maldição ancestral. Deste-nos uma comunidade. Uma
obsessão. Mal posso esperar pelo Amaldiçoados, Livro Quinze!
Entre aplausos, Eva mostrou um sorriso amplo e tentou levantar-
se. Infelizmente, esqueceu-se de que estava algemada à cadeira e
foi puxada abruptamente para baixo. Toda a gente susteve a
respiração quando ela caiu, desamparada, no chão. A empregada
vestida de dominadora entrou em ação com dois segundos de
atraso e desalgemou-a da cadeira tombada.
— Uau, demasiado Merlot — disse Eva,entre sorrisos, ao
levantar-se. Era mentira; não podia ingerir bebidas alcoólicas devido
aos seus problemas de saúde. Dois goles levá-la-iam às urgências
do hospital.
Ergueu o seu copo de água com gás para o mar de mulheres
sessentonas alegremente embriagadas. A maioria, como era o caso
de Lacey, estava a usar o chapéu roxo caraterístico de Gia.
Algumas tinham um ostensivo pingente com a letra «S» pregado às
blusas Chico’s. Era o «S» de Sebastian, que emulava a assinatura
rabiscada do vampiro (à venda por 29,99 dólares no site
evamercymercyme.com).
Eva tinha o mesmo «S» tatuado no antebraço. Uma decisão
lamentável tomada anos antes por uma mulher confusa numa noite
confusa.
— Não tenho palavras para vos agradecer — disse de jorro. — A
sério, o vosso apoio é o que faz girar o mundo de Amaldiçoados.
Espero que o livro 15 corresponda às vossas expetativas.
Se eu alguma vez o escrever. Tinha uma semana para entregar o
manuscrito e, paralisada com um bloqueio criativo, contava apenas
com cinco capítulos mal-amanhados.
Mudou de assunto num ápice.
— Então, alguém lê a revista Variety?
Era um grupo mais virado para a Redbook e para a Martha
Stewart Living, por isso, não.
— Surgiram notícias entusiasmantes ontem. — Eva pousou o
copo e enrolou os dedos, com as unhas pintadas de preto, debaixo
do queixo. — O nosso desejo foi-nos concedido. A coleção
Amaldiçoados já tem os direitos cinematográficos adquiridos!
Ouviram-se gritos agudos. Alguém atirou um chapéu de bruxa
para o ar. Uma loura corada pegou num iPhone à pressa e gravou o
discurso de Eva para o poder publicar na página de fãs de
Amaldiçoados, no Facebook. Juntamente com várias contas de fãs
no Tumblr e no Twitter, o Facebook era uma plataforma de
promoção de livros extremamente importante para Eva, na qual as
leitoras partilhavam obras artísticas de fãs, trocavam mexericos,
escreviam ficção obscena e debatiam decisões de escolha de
elenco para o filme com que fantasiavam há muito anos.
— Consegui uma produtora — uma mulher negra, graças a Deus
— que compreende bem o nosso mundo. O último filme que
produziu foi uma curta-metragem escaldante para o Festival de
Sundance sobre uma agente imobiliária que seduziu um lobisomem!
Neste momento, estamos a entrevistar realizadores.
— O Sebastian no cinema! Conseguem imaginar? — disse uma
ruiva falsa, arrebatadamente. — Só precisamos de um ator negro
com olhos cor de bronze. Um que morda bem.
— Eva, como é que eu peço ao meu marido para me morder? —
perguntou uma sósia de Meryl Streep, com a voz lastimosa. A
conversa sobre sexo acabava sempre por surgir.
— A excitação através de mordidelas tem uma designação,
sabias? Chama-se odaxelagnia — informou Eva. — Diz-lhe que é o
que queres. Sussurra-lho ao ouvido.
— Odaxelagnia-me — disse Meryl, com a voz arrastada.
— Soa bem — observou Eva, piscando-lhe olho.
— Estou em pulgas para ver a Gia no grande ecrã — interveio
uma morena de voz rouca. — É uma guerreira tão destemida. O
Sebastian é, pretensamente, a personagem mais assustadora, mas
ela matou exércitos de caçadores de vampiros para o proteger.
— Não é? A força da paixão de uma adolescente seria suficiente
para dar energia a nações inteiras. — Com um brilho nos olhos, Eva
lançou-se no minimonólogo que aperfeiçoara há muito tempo. Era
uma das partes que continuava a ser agradável. — Ensinam-nos
que os homens são todos impulso e id, mas as mulheres chegam lá
primeiro.
— E depois a sociedade arranca-no-lo — disse a morena.
— Sem dúvida. — Eva sabia que a dor estava iminente. Antes de
um episódio, a máscara caía-lhe e o lado negro revelava-se. —
Olhem para a história — continuou, esfregando a têmpora. — A
Roxanne Shanté a superar, com 14 anos, homens feitos na arte do
rap. A Serena a vencer o US Open com 17 anos. A Mary Shelley a
escrever Frankenstein com 18 anos. A Josephine Baker a
conquistar Paris aos 19 anos. O diário do liceu da Zelda Fitzgerald
era tão impressionante que o seu futuro marido lhe roubou
passagens inteiras para escrever O Grande Gatsby. A poetisa do
século XVIII Phillis Wheatley publicou o primeiro poema aos 14
anos, quando era escrava. Joana d’Arc. Greta Thunberg. As
raparigas adolescentes reconfiguram o raio do mundo.
Um silêncio eletrizante abateu-se sobre o grupo. Mas Eva estava
a desfalecer. A palpitação nas têmporas agudizava-se a cada
milissegundo. O açúcar agravava o problema, e ela fora obrigada a
comer todas aquelas bolachas. Sabia que não as deveria ter
comido, mas tinha sido algemada.
Absorta, puxou a pulseira de borracha que usava sempre no
pulso. Era uma distração da dor. Um velho truque.
— Lembram-se de quando a Kate Winslet sai do Titanic? —
perguntou a morena. — E depois volta atrás para ficar com o Leo? É
a paixão de uma rapariga adolescente.
— Eu faria isso hoje para ficar com o Leo — admitiu Lacey — e
tenho 41 anos. — Tinha 55.
— Tal como a Gia — disse, com um suspiro, uma mulher pequena
e delicada com um puxo postiço. — Em todos os livros, ela luta para
voltar a ficar com o Sebastian, apesar de saber que, quando fazem
sexo, estão condenados a voltar a ficar longe um do outro.
— É uma metáfora — disse Eva, com a visão cada vez mais
desfocada. — Por mais perigoso que seja o trajeto, nunca nada está
terminado para verdadeiras almas gémeas. Quem é que não quer
uma relação cuja chama se mantenha para sempre, apesar da
distância, do tempo e das maldições?
Ela não queria. A ideia de amor perigoso dava-lhe voltas ao
estômago.
— Confissão — sussurrou uma loura afogueada que já ia no
quarto copo de rosé. — O meu filho joga basquetebol na Ohio State,
e eu fico tão excitada durante os jogos. Para mim, todos aqueles
belos jogadores negros são o Sebastian.
Atónita, Eva engoliu a água com gás com dificuldade.
Vai ser este o meu legado, pensou. Tenho amigos a organizar
manifestações de protesto e a ganhar prémios Pulitzer com ensaios
na New Yorker sobre a raça na América. A minha própria filha é tão
militante que implorou insistentemente a um polícia que a prendesse
na Marcha da Escola Preparatória em Midtown Manhattan. Mas o
meu contributo para estes tempos conturbados será incitar mulheres
brancas de certa idade a descreverem sexualmente estudantes
negros que jogam basquetebol e que, na verdade, não têm outra
ambição senão chegar à NBA em paz.
A cabeça de Eva foi assolada por um martelar ensurdecedor. Com
os dedos trémulos, agarrou a beira da cadeira, retesando-se a cada
pancada. O mundo ficou turvo. Os traços dos rostos das outras
mulheres começaram a derreter-se, como os relógios de Dali; a
confluência de perfumes na sala deixou-lhe o estômago a balançar
e o martelo começou a bater-lhe na cara com cada vez mais força e
rapidez, com o objetivo de a ferir, e ela começou a ouvir tudo a
decibéis dilacerantes: o ar condicionado, os talheres a tilintar, e,
Deus do céu, alguém abriu o papel de um rebuçado no Connecticut?
Aquelas enxaquecas violentas e implacáveis que a torturavam
desde a infância e deixavam os mais consagrados especialistas da
Costa Este estupefactos intensificavam-se sempre com uma rapidez
estonteante.
As pálpebras de Eva começaram a cair. Num disfarce bem
praticado, ergueu as sobrancelhas para se mostrar alerta, lançando
um sorriso deslumbrante para o público. Ao olhar para aquelas
mulheres devassas, sentiu a inveja fina que sentia sempre que
estava num grupo. Aquelas mulheres eram normais. Eram capazes
de fazer coisas.
Coisas estúpidas e triviais. Como atirar-se de cabeça para uma
piscina. Manter uma conversa durante mais de 20 minutos. Acender
velas perfumadas. Beber demais. Sobreviver a uma viagem na linha
F do metro enquanto um saxofonista tocava Ain’t Nobody em altos
berros na carruagem durante nove paragens. Desfrutar do sexo em
diferentes posições. Sorrir com demasiada vontade. Chorar com
demasiado ímpeto. Respirar demasiado fundo. Caminhar com
demasiado desembaraço.
Viver, ponto final. Eva apostava que aquelas mulheres eram
capazes de fazer a maior parte de todas aquelas coisas sem que
uma agonia dilacerante se abatesse sobreelas, como um castigo de
um deus zangado. Como seria esse luxo de não sofrer?
Sou uma alienígena, pensou. Sempre sentira que estava a fazer-
se passar por um ser humano, e já tinha aceitado a ideia. Mas
nunca deixara de imaginar como seria não ter aquela doença.
— Uhhh… Deem-me licença por um segundo — titubeou. — T…
tenho só de ligar para a minha filha.
Pegou na mala, calmamente, e precipitou-se para a porta de
veludo vermelho da sala privada. Serpentou por entre mesas de
teatristas a falarem efusivamente sobre o musical Hamilton e
vislumbrou a casa de banho das mulheres atrás da zona da
rececionista. Acelerou o passo, entrou de rompante num cubículo
para deficientes com um lavatório e vomitou para a sanita.
Deixou-se ali ficar durante alguns instantes, a respirar fundo ao
sabor da dor, tal como a equipa de neurologistas, acupunturistas e
curandeiros orientais a que já tinha recorrido lhe ensinara. Depois,
voltou a vomitar.
Cambaleante, agarrou a borda do lavatório para se equilibrar. O
eyeliner estava esborratado. Era por isso que ela o usava esfumado.
Nunca sabia quando seria acometida por um episódio, pelo que, se
optasse por uma maquilhagem com a estética de uma Rihanna às
três da manhã, poderia fingir que era propositado.
Retirou a caixa de injeções de analgésicos descartáveis da mala.
Baixou as calças de ganga, deixando exposta a coxa salpicada de
cicatrizes, espetou a agulha e atirou-a para o lixo. Por precaução,
abriu uma lata de rebuçados e tirou uma goma de marijuana
medicinal em forma de ursinho (prescrita por um dos principais
especialistas em terapêutica da dor de Nova Iorque, muitíssimo
obrigada). Trincou uma orelha. Que se lixe, pensou, e enfiou a goma
inteira na boca. Aquilo serviria para aliviar a dor até à noite para se
poder aguentar durante os rituais que tinha com a filha depois da
escola e, a seguir, cair na cama.
Com muito cuidado, encostou-se à parede de azulejo. As
pálpebras fecharam-se devagar.
A doença não era sensual. E a deficiência de Eva era invisível:
não lhe faltava um membro nem tinha o corpo todo engessado.
Tinha um nível de sofrimento que os outros nunca poderiam
compreender. Afinal de contas, toda a gente sentia dores de cabeça
de vez em quando, como quando tentavam deixar de beber café ou
quando estavam com gripe. Por isso, Eva escondia a sua doença.
As pessoas só sabiam que ela cancelava planos muitas vezes
(«Ocupada a escrever!»). E tinha tendência a desmaiar, como
acontecera no casamento de Denise e Todd («Demasiado
prosecco!»). Ou esquecia-se das palavras a meio da frase
(«Desculpem, estava distraída»). Ou desaparecia durante semanas
(«Retiro para escrever!», e não, de maneira nenhuma, um
internamento na ala de tratamento da dor do Hospital Mount Sinai).
Era mais fácil dizer umas mentirinhas inocentes do que a verdade.
A propósito: o que é que aquelas mulheres orgásticas do Ohio
pensariam se soubessem que ela tinha vontade de estrangular
Sebastian e Gia? Fazê-los desaparecer para onde quer que aqueles
cabrões do Crepúsculo se evadiam?
Ao início, Eva adorava os livros que escrevia. Escrevia para se
divertir, as ideias a crepitarem como um incêndio descontrolado.
Depois, começou a escrever para as leitoras. Por fim, limitava-se a
aproveitar as ideias de enredos que lia nas secções de comentários
de sites de fãs de Amaldiçoados — o cúmulo da batota para uma
escritora.
Já não conseguia promover o «romance torturado». No passado,
achava que o amor só era verdadeiro se fizesse jorrar sangue. Ela,
Sebastian e Gia haviam sido adolescentes, a partilhar o mesmo
cérebro retorcido. Sebastian e Gia não cresceram. Mas Eva
crescera.
Queria que a coleção Amaldiçoados morresse, mas aqueles livros
permitiam-lhe garantir uma vida estável e segura para Audre. Eva
fizera das tripas coração para poupar a filha à infância que ela
tivera. E conseguira. Desejava apenas voltar a sentir aquela faísca.
Talvez o filme pudesse ajudá-la a resgatá-la.
Além disso, no fundo, tinha esperança de que lhe permitisse
começar de novo. Com o que iria receber, poderia, finalmente, fazer
uma pausa na escrita de Amaldiçoados e trabalhar no livro com que
sonhava, o que lhe borbulhava sob a pele há séculos. Eva era muito
mais do que aqueles romances tolos e devassos (pelo menos,
assim esperava). Chegara o momento de o provar a si própria.
Sentindo-se um pouco melhor, bochechou com o elixir de viagem
que trazia na mala. Quase inconscientemente, levou o dedo médio
da mão esquerda, no qual usava sempre o anel de camafeu vintage
(sentia-se nua sem ele), ao nariz e inspirou. Era um hábito antigo —
o cheiro quase impercetível do perfume de uma mulher qualquer
que o usara num passado distante deixava-a sempre mais calma.
Por fim, na quietude do momento, decidiu consultar o telemóvel.
Hoje, 12h45
Rainha Cece
MINHA CARA. Onde estás? Como tua editora, ESPERO que estejas a escrever.
Como tua melhor amiga, EXIJO que faças uma pausa. Tenho GRANDES NOTÍCIAS.
Responde-me.
Hoje, 13h11
Sidney, a Produtora
Estou a tentar falar contigo há três horas! Penso que encontrámos a nossa
realizadora! Liga-me.
Hoje, 14h40
Minha Bebé
Compraste-me as penas pró meu projeto de arte #iconefeminista preciso delas pró
retrato da avó sobretudo pró cabelo era tão fofo obg mãe bom almoço sexual
embaraçoso bjs
Hoje, 15h04
Jackie, a Estranhamente Hipocondríaca Babysitter que Só Uso em Caso
de Emergência
A Audre já voltou do almoço de pizza da Equipa de Debate. Mas trouxe 20 miúdos
com ela. Escrevi no meu perfil do ChildCare.com que não trabalho com grupos
grandes. (Agorafobia, germofobia, claustrofobia.)
— Céus, Audre — resmungou Eva.
Atordoada com a mistura da goma com a injeção, chamou um
Uber, pediu desculpa às Artistas do Ohio e, seis minutos depois,
estava a caminho de Brooklyn.
— J
CAPÍTULO 2
SUPERMÃE SOLTEIRA
ackie! Onde está a Audre?
Sem fôlego, Eva parou à entrada do apartamento. Varreu
apressadamente com o olhar o espaço luminoso e eclético à sua
frente. As almofadas e os tapetes indonésios (da loja HomeGoods)
estavam no devido lugar. Não havia nenhum livro desalinhado na
estante que ocupava toda a parede atrás do armário púrpura que
ela comprara aquando da morte de Prince. A sua casa em Park
Slope, inspirada no Pinterest, estava exatamente como a deixara.
Park Slope era um bairro de Brooklyn armado em hippie e
completamente descaraterizado com famílias liberais abastadas. A
maioria dos pais tivera os filhos já bem depois dos 30 anos, com a
carreira consolidada na comunicação social, na publicidade, no
mundo editorial ou, num caso muito famoso, na composição das
canções do filme Frozen. Constituído maioritariamente por brancos,
o bairro transmitia uma sensação de diversidade devido aos casos
pontuais de pais do mesmo sexo e crianças birraciais
(predominantemente em combinações de asiáticos e judeus, negros
e judeus ou asiáticos e negros).
Eva e Audre destacavam-se porque: (a) Eva era uma década
mais nova do que as outras mães; (b) Eva era solteira; e (c) Audre
tinha uma mãe negra e um pai negro, e não um pai judeu ou
vietnamita. Ou mulher.
— Oh, olá. — Jackie, a babysitter, estava a relaxar no sofá com
os pés apoiados numa otomana pouco convencional.
— Jackie, eu estava a trabalhar! Vim a correr de Times Square
para aqui!
— A pé? — Jackie, estudante de Teologia na Universidade
Columbia, era muito literal.
Eva ficou a olhar para ela.
— A Audre está no quarto com os miúdos. No Snapchat.
Eva semicerrou os olhos e fechou as mãos em punhos.
— Audre Zora Toni Mercy-Moore!
Ouviu murmúrios vindos do quarto de Audre, ao fundo do
pequeno corredor. Depois, algo a cair. Risadas. Por fim, Audre abriu
a porta e saiu, com um sorriso comprometido.
Com 12 anos, Audre era da altura de Eva, com covinhas, caracóis
e tez cor de avelã. Mas seguia o estilo de Willow Smith e Yara
Shahidi, daí os dois puxos enrolados no cimo da cabeça, o top curto
tingido em tie-dye, os calções cortados e os ténis Fila. Com
pestanas quilométricas e uma postura desajeitada, parecia o Bambi
a participar no Festival de Coachellapela primeira vez.
Troteou em direção à mãe e deu-lhe um abraço apertado.
— Mãe! Estás com as minhas calças de ganga? Ficas tão
giraaaa. — Prolongou os as, não os is.
Eva desembaraçou-se dos braços de Audre.
— Eu disse que podias trazer a equipa de debate inteira cá para
casa?
— Mas… nós estávamos só…
— Pensas que eu não sei o que estavam a fazer? — Eva baixou a
voz. — Cobraste-lhes alguma coisa?
Audre ficou atrapalhada.
— Cobraste-lhes… alguma… coisa?
— É UMA TROCA DE BENS, MÃE! Eu ofereço serviços de
aconselhamento e eles pagam-me! Toda a gente da Escola
Preparatória Cheshire está viciada nas minhas sessões de terapia
no Snapchat. Lembras-te daquela em que curei o medo que a
Delilah tinha de voar em classe económica? Sou uma lenda.
— És uma criança. Quando estás com sono, ainda te enganas a
pronunciar «pequeno-almoço».
Audre suspirou.
— Ouve, quando eu for uma terapeuta famosa a ganhar muitos
milhões por ano, ainda nos vamos rir disto, enquanto tomamos chá
de bolhas.
— Já te disse para parares com essa coisa da terapia — retorquiu
Eva, num tom sibilante. — Não te mando para aquela escola privada
toda catita para extorquires o dinheiro do almoço àqueles miúdos
brancos.
— Ressarcimento — disse Jackie do sofá.
Eva sobressaltou-se, esquecida de que a babysitter ainda estava
na sala. Sentindo que ia ser dispensada, Jackie bateu em retirada
porta fora, enquanto Audre a assassinava com os olhos.
Virou a cabeça para a mãe, num movimento brusco, e disse:
— Já não tenho idade para ter uma babysitter! E a Jackie é
completamente do piorio, com aqueles olhos avaliadores e aqueles
Crocs com meias.
— Audre — começou Eva, esfregando a têmpora. — O que é que
eu digo sempre?
— Resistir, persistir, insistir — recitou Audre.
— E que mais?
— Nunca tive tanto sono como tenho neste momento.
— E QUE MAIS?
Audre suspirou, derrotada.
— Eu confio em ti, tu confias em mim.
— Exatamente. Quando infringes as minhas regras, não posso
confiar em ti. Estás de castigo. Ficas sem dispositivos eletrónicos
durante duas semanas.
Audre guinchou. O barulho repercutiu-se na cabeça de Eva
durante 30 segundos.
— SEM TELEMÓVEL? O que é que eu vou fazer?
— Sei lá! Lê os livros dos Arrepios e escreve poemas para o
Usher, como eu fazia quando tinha a tua idade.
Eva disparou pelo corredor fora e entrou no quarto de Audre.
Havia 20 raparigas amontoadas nos beliches e no chão, uma
mancha de pele bronzeada com as férias de primavera e tops
curtos.
— Olá, meninas! Sabem que são sempre bem-vindas a esta casa
se a Audre me pedir autorização. Mas não pediu, por isso… toca a
andar. — Eva lançou-lhes um sorriso aberto, um cuidado necessário
para não manchar a reputação de «mãe porreira», algo que não
devia ter importância, mas tinha.
— Vamos organizar uma festa do pijama em breve — prometeu
Eva. — Vai ser de arromba!
— Diz-me que não acabaste de dizer «de arromba» — lamuriou-
se Audre, da sala de estar.
Uma a uma, as raparigas saíram do quarto, em fila. Audre estava
de ombros caídos, um salgueiro-chorão vergado de infelicidade.
Tirou um maço de notas do bolso de trás e, à medida que as
raparigas iam saindo, entregou a cada uma os 20 dólares devidos.
Algumas das raparigas abraçaram-na. Parecia um ritual funerário.
— Alto lá! — Eva reparou num rapaz louro que tentava sair
despercebido no meio do grupo. Ele endireitou-se a toda a sua
altura, três cabeças bem medidas acima de Eva.
— E tu quem és?
— Ohmeudeus, mãe. É o irmão emprestado da Coco-Jean.
— És o irmão emprestado da Coco-Jean? Porque é que és tão
alto?
— Tenho 16 anos.
— Andas na escola secundária? — Eva olhou, furiosa, para
Audre, que foi a correr pelo corredor e se atirou para a cama de
baixo do beliche.
— Ando, mas é na boa. Estou no programa do quadro de honra
da escola Dalton.
— Oh, morro de alívio. E porque é que andas metido no meio de
miúdas de 12 anos?
— A Audre é, tipo, uma especialista mental sobredotada. Tem
andado a ajudar-me a controlar a ansiedade que sinto por causa da
minha intolerância ao glúten.
— Uma pergunta rápida: foi a minha filha que diagnosticou essa
intolerância ao glúten?
— Ele tem episódios sempre que come focaccia ou crostini! —
gritou Audre, do quarto. — O que é que tu achas que é?
— Bem, pareces ser um bom — crédulo — rapaz, mas, quanto a
estares aqui na minha casa sem que eu tenha conhecimento, é um
rotundo não.
— Nem acredito que não fui à minha aula de violino de hip-hop
para ouvir isto — resmungou ele, saindo desembestadamente.
Eva encostou-se à porta por um instante a tentar decidir até que
ponto se iria passar. Naqueles momentos, desejava ter o tipo de
mãe a quem pudesse telefonar para pedir conselhos.
Tinha um ex-marido, mas também não podia ligar-lhe para lhe
pedir conselhos. Troy Moore, animador da Pixar, tinha dois estados
de espírito: bem-disposto e muito bem-disposto. Emoções
complicadas perturbavam a visão que tinha do mundo. Fora por isso
que Eva se apaixonara por ele. Troy fora um raio de luz numa altura
em que tudo o mais no mundo de Eva era negro.
Tropeçara nele, literalmente, à entrada do Hospital Mount Sinai.
Troy era voluntário e desenhava retratos para os pacientes. Eva
percebera que gostava dele quando se apressara a esconder as
nódoas negras da terapia intravenosa nos braços (como resultado
da estadia de uma semana no piso de cima). Ao fim de seis
semanas de encontros românticos, espirituosos e ternos, casaram-
se na câmara municipal. Audre nasceu sete meses depois. Mas,
nessa altura, eles já estavam distantes. A mulher por quem Troy se
apaixonara, a mulher que era capaz de manter uma espontaneidade
efervescente nos encontros e nas noites licenciosas era diferente
em casa. Aturdida com a dor e os comprimidos. E a doença de Eva
não demorou a assoberbar a vida de Troy, pondo termo à paciência
e sufocando o amor.
Troy pertencia à Igreja dos que Só Têm Pensamentos Positivos.
Apesar de ver Eva a sofrer — as noites em que ela batia
repetidamente com a cabeça na cabeceira da cama ao dormir, ou a
vez em que desmaiara durante uma exibição de Velocidade Furiosa,
na Blockbuster —, acreditava que o verdadeiro problema era a
forma como ela via as coisas. Não conseguiria melhorar com
meditação? Enviar energia positiva para o universo? (Eva ficava
sempre perplexa com isto. Qual universo? Será que ele poderia
mostrar-lhe os atalhos? Alguém iria receber a energia positiva
quando esta aterrasse, e iria a anfitriã ser Glinda de O Feiticeiro de
Oz, representada por Lena Horne, como ela imaginava?)
Certa vez, tendo ficado a trabalhar até tarde na Pixar, Troy fora
deitar-se junto da sua mulher, que estava em posição fetal. Eva
tinha acabado de injetar Toradol na coxa, e um pouco de sangue
escorrera do penso rápido para os lençóis cinza-azulados. Incapaz
de se mexer devido à dor intensa, deitara-se sobre a mancha de
sangue. Com os olhos entrefechados, viu repugnância e, de forma
latente, martírio.
Eva era nojenta. Não se esperava que as mulheres bonitas
fossem nojentas. Silenciosamente, Troy esgueirara-se da cama e
fora dormir no sofá — e nunca voltara para a cama. Na sessão de
terapia de casal, admitira a verdade.
— Eu queria uma mulher — queixara-se. — Não uma doente.
Troy era demasiado educado para acabar com a relação. Por
isso, Eva libertara-o. Audre tinha 19 meses de idade; Eva tinha 22
anos.
Troy acabara por iniciar uma vida extremamente feliz com a
segunda mulher: uma praticante de yoga chamada Athena Marigold.
Usavam palavras como «paleo» e «artesanal» e viviam em Santa
Mónica, onde Audre passava os verões. No domingo seguinte, ia
apanhar o avião para a «Papafórnia» (o nome que Audre dava às
viagens que fazia para a Costa Oeste), onde Troy se excedia
enquanto pai despreocupado de verão.
Mas coisas mais complicadas? Um quase homem escondido no
quarto da filha? Não era o território dele.
Eva dirigiu-se, cambaleante, para o sofá. Nunca fora capaz de
pensar com clareza com calças de ganga vestidas, pelo que se
meneou para as tirar. Sentada, com as cuecas de Mulher Maravilha,
procurou no Google, no telemóvel«Dicas para disciplinar pré-
adolescentes». O primeiro artigo que apareceu sugeria um «contrato
comportamental». Eva não tinha nem a proficiência jurídica nem a
energia para elaborar um contrato! A bufar, atirou o telemóvel para o
lado e ligou a Apple TV. Quando a vida se tornava demasiado
desafiante, via a série Insecure.
— Mãe?
Eva olhou para cima e viu Audre enquadrada pela entrada
abobadada com 120 anos. Tinha o rosto empolado e raiado pelas
lágrimas. Acrescentara um xaile preto e uns óculos Ray-Ban
gigantes à sua indumentária.
Eva tentou manter um ar severo. Não era fácil sem as calças.
— Audre, o que é isso que tens vestido?
— Este é o meu traje de Melancolia Sofisticada.
— Acertaste em cheio — admitiu Eva.
Audre aclarou a garganta.
— A terapia é a minha vocação. Mas eu devia ter deixado de dar
consultas quando tu me mandaste. Peço desculpa por isso e por ter
recebido o irmão da Coco-Jean. Embora estejas a ser um pouco
heterotípica ao assumires que estamos a ser… estranhas só por ele
ser rapaz.
Heterotípica. As escolas privadas de Brooklyn produziam alunos
ultraprogressivos. Protestavam contra a proibição do aborto e
marchavam a favor do controlo de armas. No mês anterior, a turma
de Audre, do 7.º ano, carregara baldes de água ao longo de três
quilómetros no Prospect Park para se solidarizar com a luta das
mulheres subsarianas.
O lado bom? Uma educação liberal de primeira água. O lado
mau? Miúdos que tinham dificuldade em dividir números decimais
ou em nomear a capital de um estado dos Estados Unidos.
— Dás-me só um segundo, querida? — pediu Eva, suspirando e
fechando os olhos. — Tenho de pensar.
Audre sabia que «pensar» significava «descansar a cabeça» e
voltou para o quarto, amuada. A observá-la com um olho aberto,
Eva sentiu uma pontada de sofrimento. Audre era a miúda mais
sonhadora e encantadora do mundo. De repente, tornara-se um
revirar de olhos em forma de ser humano. Os 13 anos estavam a
chegar, e quem poderia saber que horrores iriam trazer? Ia começar
a sair às escondidas, ou aprender a mentir, ou descobrir a erva. Mas
não a de Eva, que estava bem escondida na gaveta do vibrador.
Foi então que o seu telefone tocou. Era Cece Sinclair, a sua
melhor amiga e a mais famosa editora literária da editora Parker +
Rowe.
Eva atendeu com um atormentado:
— O que foooi?
— Estás viva!
— Segundo o meu Fitbit, estou morta há várias semanas.
— Estás em casa. Estou a ouvir a Issa Rae. Eu estou aqui fora;
vou entrar.
Cece assomou à porta poucos segundos depois. Era
avassaladora em todos os aspetos: um metro e oitenta, pele de
chocolate quente cremoso, caracóis pintados de louro. Produto da
Spelman College, de verões nas vinhas e de cotilhões de luvas
brancas com debutantes dos Dez Talentosos, usava quase
exclusivamente roupa vintage da Halston e parecia sempre saída de
uma capa da Vogue de 1978. Ou pelo menos alguém que conhecia
Pat Cleveland.
E, na verdade, conhecia. Cece conhecia toda a gente. Com 41
anos, era há muito uma das editoras mais ilustres do setor, mas
chamavam-lhe, oficiosamente, Rainha Social dos Letrados Negros.
Arrebanhava autores, apoiava-os e suspirava enredos com cocktails
na mão. E as festas que organizava exclusivamente para membros
do mundo da literatura/arte/cinema eram lendárias. Eva descobrira
tudo isto logo após ter vencido o concurso de contos e Cece se ter
tornado sua editora.
No almoço em que se conheceram, no campus da Universidade
de Princeton, Cece olhara para os «olhos de corsa assombrada e
caracóis caóticos de poetisa de café» (uma descrição que repetia
com frequência) e a sua alma gritara: Projeto!
De súbito, Eva passara a ter uma extremosa irmã mais velha.
Cece ajudara-a a mudar-se para Brooklyn, a desistir dos vícios que
tinha e a aprender a arte de manutenção dos caracóis. Além disso,
apresentara-a a um círculo social de jovens escritores em ascensão.
Cece era mandona como o raio, mas tinha feito por o merecer.
Não existiria uma Eva sem ela.
A trautear, o mulherão cheio de glamour desapareceu na cozinha
e reapareceu poucos segundos depois com um copo de pinot grigio
e o pacote de gelo que Eva mantinha no congelador. Sentou-se ao
seu lado e pousou o pacote gelado no cimo da cabeça da amiga
com um floreado, como se de uma coroa se tratasse.
Cece era uma das poucas pessoas que conhecia
verdadeiramente o problema de Eva e ajudava-a como podia.
— Estou aqui — anunciou com grandiloquência — para discutir a
mesa-redonda do Estado do Autor Negro.
— O evento do Museu de Brooklyn que vais moderar amanhã à
noite? A Belinda é uma das participantes, não é? — A célebre
poetisa Belinda Love era uma boa amiga de ambas.
— Tia Cece! — Audre voltou a aparecer, com a terceira roupa
diferente do dia: um pijama com um unicórnio em néon.
— Audre, fofa! Tenho andado a pensar em enviar-te uma
mensagem para te pedir conselhos sobre gestão da tensão. A
renovação da minha cozinha está a dar cabo de mim.
Audre atirou-se para o colo de Cece.
— Tenta meditação com chocolate. Pões um bombom Hershey’s
Kisses na boca e sentas-te em silêncio enquanto derrete. Não
mastigues. É uma questão de mindfulness.
— Não duvido, boneca, mas existe alguma opção sem açúcar?
— Cece, foca-te — reclamou Eva, pressionado o pacote de gelo
contra a têmpora. — A mesa-redonda?
— Ah. Houve uma autora que desistiu. Apanhou salmonela numa
rulote de comida, na Colúmbia Britânica.
Audre franziu a testa.
— A Colômbia tem uma secção britânica?
Escolas de Brooklyn voltam a atacar, pensou Eva. Nenhuns
conhecimentos de geografia, mas um ás no mindfulness.
— A Colúmbia Britânica é no Canadá, querida — disse Eva.
— Interessante. Eu podia ter ido pesquisar se tivesse um
telemóvel. — Amuada, Audre levantou-se e voltou a desaparecer no
quarto.
— Resumindo — continuou Cece —, propus-te como substituta.
Estás na mesa-redonda! — Abanou os ombros, satisfeita com o seu
toque de mágica. — Todos os meios de comunicação social
relevantes estão convidados. Vai ser transmitido em live streaming.
Este é o impulso de carreira de que precisas.
O rosto de Eva ficou sem pinta de sangue.
— Eu? Não. Não posso… Eu não estou preparada para pregar
sobre raça na América. Tu sabes que a coisa vai ser intensa. Desde
as eleições, todos os eventos de livros de negros se transformaram
numa sessão de chamamento para a consciência social.
— Tu deste à tua filha o nome de uma célebre lutadora pelos
direitos civis. Não pertences ao movimento woke?
— Sim, mas como passatempo. A Belinda e os outros membros
da mesa-redonda são verdadeiros profissionais. Têm prémios da
Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor e
pertencem ao circuito dos talk shows! Qual foi a participante que
desistiu com intoxicação alimentar?
Cece hesitou.
— A Zadie Smith.
Com um esgar de derrota, Eva fez deslizar o pacote de gelo para
cima dos olhos.
— Cece, é uma mesa-redonda patrocinada pelo The New York
Times no Museu de Brooklyn. Eu não sou uma escritora séria. Sou
uma compra de último minuto no aeroporto.
Cece franziu o sobrolho.
— Sejamos totalmente francas. Andaste anos a tentar arranjar um
acordo para um filme. Conseguiste finalmente uma produtora e
agora não aparecem realizadores de qualidade porque a coleção
Amaldiçoados se dirige a um nicho muito restrito. Mostra o teu poder
a Hollywood! Isto vai ser um tesouro de relações públicas. Bem, isto
e o Prémio de Excelência Literária Negra de 2019 que vais ganhar
no domingo.
— Achas que vou ganhar?
— O Amaldiçoados 14 tem uma cena de sexo a três com um
vampiro, uma bruxa e uma sereia — fez notar Cece. — Vais ganhar
nem que seja só pela audácia.
Eva resmungou para a almofada do sofá.
— Isto não é para mim.
— Estás nervosa por teres de partilhar o palco com a Belinda? A
filha de uma cabeleireira?
Eva olhou para Cece, furiosa.
— A Beyoncé é filha de uma cabeleireira.
— Certo. Vai explicar à Audre porque é que estás com medo de
experimentar coisas novas.
Eva levantou os braços. É claro que Cece a apanhara ao referir
Audre. Sempre que Eva fazia alguma coisa, ponderava o quea filha
iria pensar.
A educação de Eva não era a recomendada pelos blogues de
mães. Comiam muitas vezes pizza ao jantar e adormeciam a ver a
série Succession, e, uma vez que os serviços de assistência infantil
eram um luxo, Audre participava em demasiados eventos de
adultos. Além disso, nos dias das dores de cabeça, Eva concedia a
Audre tempo ilimitado no TikTok para poder descansar um pouco.
Mas Eva não se martirizava com estas coisas. O que lhe
interessava em matéria de cuidados maternais era dar um exemplo
forte. Queria que, quando Audre auditasse as suas memórias, se
lembrasse de uma mulher com coragem que criara uma vida do
zero. Sem nenhum homem, sem nenhuma ajuda, sem problema
nenhum.
O mito da supermãe solteira, pensou. E é um logro.
Pressionou as mãos sobre os olhos.
— O que é que eu vou vestir?
Cece riu-se.
— Já tenho um conjunto Gucci reservado para ti. És encantadora,
mas vestes-te como se estivesses a apresentar um podcast de hip-
hop — disse ela, com um suspiro. — Vai ser uma aventura! Os
escritores precisam de estímulos. O teu dia não se pode resumir a
memorizar as tuas avaliações positivas na Amazon. Tem de ter mais
emoção.
— Eu já não faço isso — protestou Eva.
— Por falar em estímulos, importas-te de voltar a consultar o
Tinder? Quando foi a última vez em que conheceste alguém que
não tenhas ignorado ao fim de três encontros?
— Estou a fazer-lhes um favor ao ignorá-los. — Eva apontou para
as cuecas de Mulher Maravilha. — Estarias interessada em foder
isto?
— Há fetiches para todos os gostos — disse Cece,
generosamente.
Eva esboçou um sorriso.
— Quando me sinto sozinha, dou uma olhadela ao Tinder para
me lembrar do que tenho andado a perder. Que é tipos com barbas
com óleo de coco a posar junto aos mesmos murais de Dumbo, com
perfis totalmente escritos com emojis. E depois lembro-me de que
não me sinto sozinha. Apenas estou só. Quando estou em estado
comatoso de tanto escrever e de cuidar da minha filha, quando
estou a sofrer tanto que não consigo cozinhar, falar nem sorrir,
enrosco-me no «só» como uma manta de proteção. O só não se
importa que eu não rape as pernas no inverno. O só nunca se
desilude comigo. — Eva suspirou. — É a minha melhor relação de
sempre.
— Isso é uma metáfora ou estás a falar de um homem chamado
Só? — perguntou Cece.
— Não podes estar a falar a sério.
— O meu porteiro é um rapper do SoundCloud chamado Sincero.
Nunca se sabe.
— Eu gosto de ser solteira — continuou Eva, em voz baixa. —
Não quero que ninguém tenha de me conhecer de verdade.
Ficaram sentadas em silêncio, Eva a puxar absortamente a
pulseira de borracha que tinha no pulso.
— Tenho medo — admitiu, por fim.
— Ainda bem. — Cece deu-lhe um beijo na face. — Já vi aquilo
que consegues fazer quando tens medo.
— Q
CAPÍTULO 3
COMÉDIA ROMÂNTICA
2004
uerida, estás a pé?
A fala arrastada do Louisiana de Lizette era ao mesmo
tempo melosa e leve como um suspiro. Nenhuma mãe soava assim.
— Estás acordada? Genevieve? Minha Evie Fofinha? Minha Eva
Diva? Estás a pé?
Bem, Genevieve, também conhecida como Eva Diva, agora
estava acordada. Tinha as cobertas puxadas até às sobrancelhas e
estava em posição fetal no velho colchão de molas duplo.
Exatamente quatro dias antes, quando Genevieve Mercier e a mãe
chegaram a Washington, DC, vindas de Cincinnati, tinham arrastado
o colchão pelas escadas até ao quinto andar, atirando-o para o
tapete remendado do quarto. E ali ficara. Genevieve e Lizette tinham
o mesmo tipo de compleição descarnada e não tinham dinheiro para
pagar as mudanças, pelo que, depois do esforço feito ao
carregarem o colchão de Genevieve e o colchão de Lizette, além da
pequena mesa de cozinha e de duas cadeiras dobráveis, ao longo
de todos aqueles lanços de escadas, ainda por cima num calor
abrasador de junho, mãe e filha, o duo nómada, decidiram que não
precisavam de mais decoração.
Genevieve abriu um olho e examinou o espaço minúsculo. Tinha
17 anos, e aquele era um novo quarto, mas poderia ser
perfeitamente qualquer um dos que ocupara em qualquer das
cidades em que vivera aos 15, 12 ou 11 anos. Era banal, sem
nenhuma caraterística digna de nota, a não ser uma que era
inconfundivelmente dela: uma mala de xadrez a abarrotar de roupa,
frascos de comprimidos e livros. Semicerrou os olhos para o
despertador das lojas de um dólar, no peitoril vazio da janela. Eram
6h05. Mesmo a tempo.
Lizette chegava sempre a casa quando Genevieve estava a
acordar para ir para a escola. A sua mãe era um animal puramente
noturno. Era como se mãe e filha tivessem personalidades grandes
demais para coexistirem, pelo que a mãe ficava com a noite e a filha
com o dia.
O dia era para pessoas responsáveis, e Lizette era uma mulher
delicada e distraída, demasiado frágil para lidar com as vicissitudes
da vida dos adultos. Como cozinhar. Pagar os impostos. Limpar.
(Uma vez, Genevieve vira a mãe a aspirar durante uma hora sem
perceber que o aspirador não estava ligado à tomada.) A beleza de
Lizette mantinha-as à tona, o que era difícil. Genevieve conhecia
bem as dificuldades, pelo que tratava de tudo o resto. Falsificava a
assinatura de Lizette nos bancos. Controlava-lhe os comprimidos
dos frascos de Valium. Punha os pastéis Hot Pockets de Lizette na
torradeira. Enrolava-lhe o cabelo antes de ela sair para os seus
«encontros com o dinheiro» («Se estás à venda, di-lo sem
rodeios…»).
Mudaram-se várias vezes desde que Genevieve era bebé.
Sempre por causa de homens diferentes que prometiam uma vida
deslumbrante a Lizette. Arranjavam-lhe sempre um lugar para viver
com todas as despesas pagas. E costumava ser uma tremenda
aventura. Genevieve passara o primeiro ano da escola a viver numa
casa de campo chique em Laurel Canyon, que lhes fora arrendada
por um famoso produtor de música pop que lhe oferecera um
papagaio chamado Alanis. No ano anterior, um manda-chuva da
indústria do petróleo tinha-as instalado num chalé em Saint Moritz,
onde o cozinheiro a ensinou a pedir Birchermüesli num alemão
suíço irrepreensível. Porém, à medida que Lizette deixava para trás
os tempos de «jovem com tudo no sítio», o deslumbramento foi
esmorecendo. Devagar, e depois de repente, as cidades foram-se
tornando mais sombrias, os apartamentos mais puídos e os homens
mais agressivos.
O último tipo não lhes pagava o apartamento, mas dera emprego
a Lizette como rececionista no seu bar de cocktails, o Foxxx Trap. E
estava a pagar-lhe o dobro. Genevieve não queria saber porquê.
Lizette arrastou-se para debaixo dos cobertores sem tirar o
vestido justo e provocador que trazia e aconchegou-se junto à filha.
Deu-lhe um beijo cheio de batom na bochecha e agarrou-lhe a mão.
Soltando um suspiro de resignação, Genevieve deixou-se envolver
no abraço exuberantemente perfumado da mãe. Lizette usava
sempre o White Diamonds, de Elizabeth Taylor, e Genevieve achava
a fragrância arrebatadoramente glamorosa, mas também
tranquilizadora.
A mãe poderia ser descrita com essas duas palavras. Diamantes
brancos.
E drama negro.
— Avalia o teu nível de dor, Fruto do Meu Ventre — disse Lizette,
com o seu extravagante sotaque do Sul do Louisiana.
Genevieve levantou a cabeça da almofada e abanou-a
ligeiramente. Fazia-o todas as manhãs para averiguar em que
estado se encontrava e decidir quantos analgésicos teria de tomar
para começar o dia. Felizmente, não estava em agonia. Eram
apenas pancadas lentas e regulares numa porta. Ainda era capaz
de respirar entre as pancadas.
— Eu aguento — respondeu.
— Ainda bem. Então, conta-me uma história.
— Estou a dormir!
— Não estás nada. Vá lá, sabes bem que não consigo dormir sem
uma história.
— Não podemos voltar para o tempo em que eras tu que
contavas as histórias?
— Eu até contaria, mas tu aboliste as minhas histórias há cinco
anos, sua merdinha — arrulhou Lizette, o hálito com vestígios de
bourbon.
No passado, Lizette chegava a casa de manhã e deliciava
Genevieve com contos antes de ela se levantar para ir para a escola
primária. Os preferidos de ambas eram os que tinham que ver com
escândalos antigos deBelle Fleur, a terra natal de Lizette, no
Louisiana. E, embora Genevieve nunca lá tivesse estado, conhecia
o lugar como a palma das suas mãos.
Belle Fleur era uma pequena baía pantanosa onde havia apenas
oito apelidos, a raça era a negra, a cultura era a crioula e a linhagem
de toda a gente remontava ao mesmo casal do século XVIII: um
proprietário francês de uma plantação e uma mulher africana
escravizada. Pelo caminho, os descendentes miscigenaram-se com
povos indígenas e espanhóis, rebeldes da Revolução Haitiana,
gerando uma cultura insular e rica com sabor a folhas de sassafrás,
ao mesmo tempo altamente religiosa e profundamente
supersticiosa. E extremamente pitoresca.
Porém, as mais pitorescas eram a mãe e a avó de Lizette. Tinham
reputação de serem tão selvagens e dramáticas como os seus
nomes: Clotilde e Delphine. Viviam vidas afetadas pelo homicídio,
pela loucura e por uma ira misteriosa. Segredos explosivos e uma
ausência evidente dos pais. Era como se toda a linhagem matriarcal
de Genevieve tivesse sido regenerada espontaneamente a partir de
vagens extraterrestres.
Quando era criança, Genevieve partia do princípio de que eram
histórias do arco-da-velha, meias-verdades. Mas não era por isso
que a avó e a bisavó deixavam de lhe parecer fabulosas.
Lizette não era sentimental. O único momento que lhe interessava
era o que estava a viver. Ainda assim, mantinha um álbum fino e
desgastado, que Genevieve encontrara numa caixa de cartão de
mudanças quando era criança. Na última página, havia duas
fotografias de 10 por 15 com os nomes «Delphine» e «Clotilde»
escrevinhados em baixo, com a letra da escola católica de Lizette.
Genevieve ficara especada a olhar para aqueles rostos até os olhos
ficarem desfocados e as fotografias se amalgamarem. Era como se
o tempo tivesse soluçado. E ela percebera que as histórias de
Lizette eram verdadeiras.
Delphine e Clotilde pareciam assombradas, intensas, selvagens.
Pareciam mulheres nascidas com a mente errada na época errada.
Eram parecidas com Lizette. Eram parecidas consigo.
E, de repente, aquelas mulheres deixaram de lhe parecer
fabulosas. Pareciam-lhe sombrias, perigosas e autodestrutivas. Algo
que lhe era demasiado familiar.
Havia recantos da mente de Genevieve que a aterravam. Não
tinha amigos nem descanso, e a dor definia tudo. Nos melhores
dias, sentia que estava a agarrar-se à sanidade com a ponta dos
dedos. Se a bisavó, a avó e a mãe eram doidas (e, sim, não havia
dúvida de que a mãe era), ela estava a seguir-lhes o encalço.
Genevieve queria ser normal. Por isso, decidiu ser ela a contar as
histórias. Uma vez que, na maioria das vezes, era demasiado cedo
para pensar em algo original, deixava Lizette ligada a enredos de
filmes.
— Era uma vez — começou — uma menina muito bonita a quem
a sorte virou costas e que se chamava Lizette. Usava botas altas e
justas e uma peruca platinada com um corte Chanel e trabalhava…
hum… na Hollywood Boulevard. Na secção de recursos humanos.
Uma noite, conheceu um homem de negócios rico e sedutor que
não se importava que ela não soubesse comer lagosta como deve
ser…
— Pretty Woman — disse Lizette, com um suspiro. — O Richard
Gere é negro, dá para sentir.
— Tu achas que toda a gente é negra até prova em contrário.
— Não ficarei em paz enquanto não vir o relatório genealógico
dele.
Lizette achava que, como Belle Fleur estava cheia de pessoas
negras que pareciam brancas, seria de esperar que muitos brancos
fossem negros. Era uma linha muito ténue no Sul, dizia. Dado que
aqueles proprietários de plantações pecadores e violadores tinham
filhos brancos e filhos negros, toda e gente estava a seis graus de
ser de uma ou de outra cor. O que era o que mais assustava os
brancos do Sul.
Lizette largou a mão de Genevieve e lançou-se numa
espreguiçadela digna de um gato.
— Acho que vou demorar a adormecer. Querida, podes preparar-
me um Lipton?
Genevieve acenou roboticamente com a cabeça. Eram 6h17, e
ela deveria estar a dormir. Mas tinha aquela missão. Era
responsável pelo dia. Por isso, desembaraçou-se de Lizette e
arrastou-se pelo pequeno corredor até à cozinha.
O corredor estava completamente às escuras, mas a luz da
cozinha estava acesa, o que era estranho. Lizette era obcecada por
deixar as luzes apagadas, a menos que fosse absolutamente
necessário. Para manter a conta da luz em valores aceitáveis e
também para que a luz se adequasse aos humores.
Genevieve ficou paralisada, um arrepio a subir-lhe ao peito.
Nãão. Todos os dias menos hoje.
Pedira encarecidamente à mãe para não levar os namorados lá
para casa. E Lizette garantia-lhe sempre que deixaria de o fazer,
que a casa delas seria uma zona livre de homens. Porém, ao fim de
uma noite longa regada a licor, Lizette nunca se lembrava das
promessas feitas. Ou porque é que as tinha feito sequer.
Sentiu-lhe o cheiro antes de o ver. Conhaque Hennessy e cigarros
Newport. Lá estava ele, um homem baixo e rechonchudo que
parecia ter cerca de 60 anos, caído sobre a mesa da cozinha do
Exército de Salvação a ressonar aos soluços. Vestia um fato barato
— lustroso nos cotovelos e joelhos — e usava uma peruca de fartos
caracóis pretos, que tinha tanto de enviesada como de afrontosa.
Genevieve entrou na cozinha com um passo hesitante, o chão de
linóleo a ranger ligeiramente. Curvou-se até ao nível do homem e
estalou os dedos à frente da cara dele. Nada.
Ainda bem, pensou. Desfalecido, era inofensivo.
A suster a respiração, passou por ele em bicos de pés e dirigiu-se
ao armário por cima do lava-louça. Quando se esticou para alcançar
o Lipton, derrubou uma caixa de preparado para panquecas
Bisquick. A caixa bateu na bancada com uma pancada surda,
deixando escapar uma nuvem de pó.
— Genevieve — balbuciou o homem. Tinha uma voz mais aguda
do que devia. E com a rouquidão de dois maços por dia. — ’Tão,
Genevieve? É o teu nome, né?
— É — respondeu ela, virando-se para olhar para ele. —
Conhecemo-nos ontem.
Ele sorriu-lhe, com os dentes manchados.
— Eu lembro-me.
— Não duvido — murmurou ela. Encostou-se à bancada e cruzou
os braços sobre o peito, numa postura defensiva. Com uma risada
abafada, o homem sacudiu-se para tirar o casaco e depois
estendeu-o na direção de Genevieve.
— Pendura isso num sítio qualquer, fofa. — O que ela ouviu foi
algo como: «Peduraissnusitiocaquefofe.»
Olhou para o casaco com absoluta repugnância.
— Não temos cabides.
Com uma risada latida, ele encolheu os ombros e atirou o casaco
para o chão. Depois, recostou-se na cadeira e ajeitou as pernas das
calças com uma precisão lenta e minuciosa. Ao mesmo tempo,
olhava para Genevieve de soslaio, medindo-a do cimo do volumoso
rabo de cavalo até às meias.
Genevieve tinha vestida uma t-shirt de homem Hanes, demasiado
comprida e larga, e calças de fato de treino, pelo que não havia
forma de ele ter um vislumbre que fosse do corpo dela. Mas não
interessava. Ele era o tipo de homem que pretendia intimidar.
Exercer domínio.
Genevieve queria chamar a mãe, que, sabia-o, já estava a dormir.
Fosse como fosse, Lizette não a teria vindo ajudar. Da última vez
que falara à mãe de um desentendimento com um dos namorados
dela, a sombra de… algo… passara pelos olhos de Lizette, que,
depois, o descartara.
— Oh, rapariga, para ele, o perdão divino já está fora de questão
— dissera a mãe, cheia de jovialidade, com um sorriso de estrela de
cinema. — Gostas de ter o que vestir e comer?
Genevieve assentira com a cabeça, com os olhos humedecidos,
mas quase trôpega.
— Muito bem. Sê simpática. Sê afável — advertiu Lizette, ainda
com um sorriso. — Além disso, és demasiado esperta para seres
vítima.
Ao contrário de mim, era o que Lizette dava a entender. Em
matéria de homens, a mãe não era, de facto, esperta. Sempre que
uma das suas relações terrivelmente disfuncionais implodia, ficava
confusa e espantada. E, depois, com esperança renovada, atirava-
se de cabeça para outro imbecil. A esperança era a maior perdição
de Lizette. Era como uma criança numa daquelas máquinas de
agarrar brinquedos nos restaurantes Chuck E.Cheese. A garra
nunca apanhava um brinquedo, por mais estrategicamente que a
direcionássemos. O jogo era claramente um logro. Mas as pessoas
nunca deixavam de tentar porque a esperança de que viessem a
conseguir, nem que fosse por uma vez, as enchia de entusiasmo.
— És bonita — observou o homem, o branco dos olhos raiado de
vermelho. — Tal como a tua mãe. Ainda bem para ti.
— Sim — disse ela, secamente. — Tem-me servido de muito.
Genevieve olhou para aquele otário — a peruca absurda, a
aliança no dedo — e, não pela primeira vez, desejou ser um rapaz.
Se ela fosse um rapaz, mandá-lo-ia para a próxima vida só pelo tom
que ele estava a usar. E depois por ser casado. E ainda por deixar a
mãe dela beber no trabalho, porque sabia perfeitamente que era a
única maneira de ela aceitar oferecer serviços adicionais a altos
preços a clientes VIP.
Sê simpática. Sê afável.
— Mas será que és? — perguntou ele.
— Que sou o quê?
O homem alisou o tecido lustroso na coxa carnuda.
— Que és como a tua mãe?
— De… que forma, exatamente? — Genevieve estava a tentar
ganhar tempo, a tentar perceber como ira defender-se se fosse
necessário. — Os meus passatempos e interesses, é isso que quer
dizer? O signo astrológico? O Ying Yang Twin preferido?
O homem voltou a soltar uma risada latida e agitou o dedo no ar.
— Sua espertalhona.
Levantou-se da cadeira dobrável, dirigiu-se a ela, devagar,
parando a menos de meio metro de distância. Não obstante a
sensação vibrante de desconforto, Genevieve tentou manter-se
firme.
— Que idade tens? — perguntou ele.
— Tenho 17.
— Pareces mais nova — disse ele, aproximando-se mais um
pouco.
Céus, é um desses, pensou Genevieve, com a cabeça acelerada.
Ele tinha mais 45 quilos do que ela, mas estava embriagado e
apático, e ela era rápida. Desesperada, olhou rapidamente em redor
da pequeníssima cozinha. Não havia nada duro com que pudesse
bater-lhe, como uma frigideira ou um jarro elétrico. Não havia nada a
não ser um pacote de aveia Honey Bunches, garfos de plástico e
Capri Suns.
O meu canivete está longe, no meu quarto.
Queria magoá-lo antes que ele a magoasse a ela. Mas lá
apareceu aquela velha hesitação. A mãe precisava daquele tipo.
Fora ele quem lhes arranjara aquele apartamento de merda. Quem
dera um emprego à mãe dela. Estava a ajudá-las. Ela e a mãe eram
uma equipa.
Sê simpática. Sê afável.
— E o senhor, que idade tem? — perguntou, tentando ganhar
ainda mais tempo.
— Tenho 58. — Ele inclinou-se na direção dela, com as pernas
pouco seguras. O fedor à longa noite no bar era pungente. — Mas
tenho vigor.
Com um sorriso largo, pousou a mão suada no braço de
Genevieve, firmemente. Nesse momento, a parte do cérebro de
Genevieve que funcionava à imagem da mãe desligou-se. Ela
manteve-se absolutamente quieta. Os olhos semicerraram-se. Os
sentidos aguçaram-se.
— Quer ouvir uma anedota? — perguntou de repente, com um
sorriso doce.
— Uma anedota? — O homem foi apanhado desprevenido. — Ah.
Pode ser. Eu gosto de anedotas.
— O que é que o lobo comeu quando perdeu o cabelo?
— Não sei. O quê?
Ela sorriu ligeiramente para si própria.
— Quer mesmo saber?
— Deixa-te de brincadeiras. Diz lá!
Ela ergueu os olhos para a peruca que cobria a cabeça do
homem.
— O capachinho vermelho.
A boca dele abriu-se de forma grotesca.
— O… o quê? Ah, sua puta de merda.
Lançou-se para cima dela. Genevieve desviou-se para a
esquerda, conseguindo escapar-lhe. Desequilibrado, o homem
tombou, embriagado, caindo com estrondo no chão, um barril de
banha pesado e lento. Momentaneamente paralisada com o choque,
Genevieve deixou-se ficar no mesmo sítio, com a respiração
pesada. Então, o homem agarrou-lhe o tornozelo e puxou-a para o
chão. Genevieve caiu, desamparada. A sua cabeça explodiu em mil
estilhaços de vidros afiados como uma lâmina.
— Vá à merda! — berrou ela, com as mãos sobre o rosto. Por
puro reflexo decorrente da dor, voltou a levantar-se e pontapeou-o
com força nas costelas.
Enquanto ele vociferava, ela precipitou-se para fora da cozinha a
gatinhar e depois correu para a casa de banho. Bateu com a porta e
trancou-a, com as mãos a tremer acentuadamente. Levou uma mão
ao rosto, a cabeça a ribombar, e tirou um frasco de analgésicos
Percocet da gaveta do lavatório, entrou na banheira e puxou a
cortina para a fechar. Só então conseguiu respirar.
Através da porta oca e barata, Genevieve ouviu o homem a berrar
o nome de Lizette. Depois, as leves passadas de Lizette a correr
pelo corredor em direção à cozinha, a gritar coisas sem sentido.
Por experiência, Genevieve sabia que era melhor esperar na casa
de banho. Enfiou dois comprimidos na boca e mastigou-os secos.
(Tinham sido prescritos pelo médico que ela tinha em Cincinnati,
que, tal como os inúmeros médicos antes dele, resolvera o
problema irresolúvel com opioides.) Enquanto Lizette e o seu
homem protagonizavam uma revitalização muito própria do Circuito
de Chitlin[1], ela enroscou-se de lado, à espera de algum alívio.
Lizette substituíra os gritos histéricos por um arrulho. Depois,
Genevieve ouviu passos em direção ao quarto principal: os pés de
fada de Lizette que mal tocavam no chão, os passos dele, pesados
e dificultosos. Genevieve sabia que era a forma que a mãe tinha
para a proteger: atraí-lo para longe dela e trancar a porta.
Obviamente, nunca lhe passara pela cabeça que poderia
simplesmente mandá-lo embora. Terminar a relação. Chamar a
polícia. Ficar solteira por um minuto, já agora. Arranjar um emprego
por si própria. Financiar a sua própria vida. Encontrar uma solução
para si, em vez de depender de homens horríveis.
Será que és como a tua mãe?
Genevieve enroscou-se ainda mais, deitada de lado, numa
tentativa de se fazer mais pequena. Estava exausta. Só queria fugir
daquele inferno repetitivo e redundante.
Os seus olhos fecharam-se. Tinha apenas mais alguns minutos
para se recompor. Tinha de ir arranjar-se.
Aquele era o primeiro dia na escola nova.
SEGUNDA-FEIRA
— T
CAPÍTULO 4
MANTRA
em de me deixar falar com o Ty, diretora Scott.
A mulher, sentindo-se pressionada, inclinou-se para a
frente, na secretária enxameada de papéis.
— Sr. Hall, da última vez que «falou» com o Ty, fui encontrá-lo
sentado no parapeito de uma janela do quinto andar, com os pés a
balançar na fachada do edifício.
— Ele estava a escrever de forma insípida. Precisava de uma
mudança de perspetiva.
— Ele tem 13 anos. O senhor incentivou uma criança a assumir
um comportamento potencialmente fatal.
— O Ty passou o último ano num centro de detenção juvenil de
máxima segurança. Acha que aquela janela foi o momento mais
exuberante da vida dele? — Sorriu com agrado, escondendo o
pânico que realmente sentia.
Shane Hall não estava onde deveria estar. De acordo com o
itinerário apresentado pelo departamento de publicidade da editora
que o representava, deveria estar no aeroporto há cinco minutos.
Mas Ty era o aluno preferido dele. E pessoas saudáveis e funcionais
não saíam da cidade sem se despedirem.
Aos 32 anos, Shane começava a aprender a ser saudável e
funcional. Quando, 26 meses e 14 dias antes, acordara limpo pela
primeira vez desde que atingira um metro e meio de altura,
percebera que sabia finalmente como se manter sóbrio. Contudo,
não sabia bem como ser um adulto responsável. O programa
incentivava a terapia, mas porra, nem pensar. Ele era um escritor —
porque haveria de desbaratar as merdas que tinha entaladas sem
cobrar nada? Em vez disso, corria oito quilómetros por dia. Bebia o
seu peso em água. Punha sementes de chia no que comia. Evitava
a carne vermelha. E açúcar. E prostitutas.
Aguardava pacientemente o dia em que tudo isto o fizesse sentir-
se normal.
A única coisa que Shane sabia fazer bem desde sempre era
escrever, mas só o fizera embriagado. Tornara-se o menino bonito
dos críticos embriagado. Enriquecera embriagado. Produzira uma
série de «elegias hipnóticas e arrebatadas para a juventude
fragmentada» — segundo o The New York Times — embriagado.
Vencera o Prémio Nacional do Livro dos Estados Unidos
embriagado. Nunca havia escritouma frase que fosse sóbrio, e, na
verdade, tinha demasiado medo de tentar. Por isso, a escrita estava
em pausa por uns tempos. Começou a fazer o que todos os
escritores não praticantes faziam: dar aulas. Como tinha um nome
que abria portas (e atraía doadores) em escolas privadas que
pagavam bem, começou a ser muito requisitado no circuito das
«bolsas para autores visitantes».
Shane dava aulas de escrita criativa a uma elite de cagõezinhos
em Dallas, Portland, Hartford, Richmond, São Francisco e, mais
recentemente, Providence, em Rhode Island. Normalmente, era
contratado para apenas um semestre. Tempo suficiente para os
sacudir e salientar as lacunas nas visões privilegiadas que tinham
do mundo, antes de resvalarem de novo para a complacência.
Contudo, não eram estas as verdadeiras razões por que participava
no circuito de ensino.
Sempre que Shane aterrava numa nova cidade, perguntava ao
condutor do Uber qual era o bairro mais problemático. Ia à procura
da escola mais mal servida da zona, o tipo de escola que obrigava
miúdos de 7 anos a fazerem uma fila ao frio às 7h15 da manhã para
um rastreio de segurança que demorava quase uma hora, o que os
fazia chegar atrasados, acabando por serem expulsos por falta de
pontualidade. O tipo de escola que fechava os olhos aos
seguranças que batiam nos miúdos devido à «linguagem obscena».
O tipo de escola que permitia que crianças traumatizadas, vítimas
de abusos, subnutridas, negligenciadas e muitas vezes sem-abrigo
fossem enviadas para prisões juvenis devido a infrações inventadas.
Recebiam a verdadeira educação nos centros de detenção
juvenil. E, aos 18 anos, percebiam que a principal qualificação que
tinham era a de serem reclusos.
Shane ia à procura de uma escola destas em cada cidade e
depois atirava-se quase literalmente ao diretor, oferecendo
explicações extracurriculares, orientação, ou fosse o que fosse.
Tinha um impulso irreprimível para ajudar aqueles miúdos. Na
verdade, não tinha sequer a certeza de quem estava a ajudar quem.
Shane estava de pé, do outro lado da secretária da diretora Scott,
a apreciar o minúsculo gabinete húmido e frio. Por alguma razão, os
seus olhos detiveram-se num cartaz amarelado colado na parede
verde-vómito:
«Artigos proibidos: aparelhos eletrónicos, óculos de sol, roupa com cores
de gangues.»
«Cores de gangues» estava escrito a vermelho, presumivelmente
para se dirigir a algum membro dos Bloods, um dos gangues mais
conhecidos do país, que estivesse com ideias. A falta de contacto
com a realidade deixava Shane embaraçado. Teria sido ideia da
diretora Scott? Shane estava seguro de que, há 20 anos, a diretora
tinha assumido as suas funções a julgar-se capaz de salvar a
juventude, como Morgan Freeman em Lean on Me. Porém, esses
dias estavam esquecidos — e ela apresentava uma nódoa negra na
face, onde um aluno lhe acertara com um apara-lápis. Shane
assistira à cena.
— Sr. Hall — disse ela, com uma expressão cansada. — Teria
recorrido ao truque da janela com um dos seus alunos das escolas
privadas?
— Não, porque me estou nas tintas para eles. — Shane deteve-se
ao aperceber-se do que acabava de dizer. Céus, tinha de controlar
melhor o que lhe saía da boca. — Quer dizer… eu preocupo-me
com eles. Mas não estou tão envolvido. Aqueles miúdos estão
destinados às melhores universidades do país; são bons. Estão a
usar-me para cartas de referência e selfies.
— O senhor tira selfies com os seus alunos?
Seria pouco ético? Shane não compreendia as redes sociais; não
mesmo. Tinha tantas lacunas no que dizia respeito ao
comportamento civilizado. Não estava muito distante do homem que
era no dia em que desmaiara sobre o ombro de Gayle King quando
Jesse Williams anunciara que ele vencera o Prémio para Melhor
Livro de Ficção da Associação Nacional para o Progresso de
Pessoas de Cor, em 2009.
Os seus fãs achavam-no misterioso — alguém que vivia à
margem e não participava em sessões de autógrafos nem de leitura
nem noutros eventos, porque era um rufia que se estava a borrifar
para tudo. Mas, na realidade, Shane era apenas um caos. E não
queria ser um caos à frente do público. Por isso, logo que teve a
possibilidade de se tornar nómada e de dar cabo da vida em
privado, escondendo-se algures pelos quatro cantos do mundo, não
pensou duas vezes.
Em Tobago, partilhara a sua cabana na praia com uma amiga que
não se chocava com as suas maneiras pouco convencionais à mesa
nem com os seus padrões de sono quase infantis, porque essa
amiga era uma tartaruga. Em Cartagena, deliciara-se a partilhar as
confissões mais demenciais com uma empregada de bar, porque ela
falava quatro línguas e nenhuma delas era inglês.
Shane Hall tivera um êxito tremendo como escritor, mas a escrita
era de uma pessoa que não nascera para ser famosa.
O que, no altamente convencional mundo literário, só o tornara
ainda mais famoso.
Olhou de relance para o relógio e percebeu que estava
perigosamente perto de perder o voo. Avaliou as suas opções e
franziu o sobrolho. Depois, coçou os bíceps, logo abaixo da manga
da t-shirt. Absorto, puxou o lábio inferior com os dedos, por
instantes. Tudo tiques nervosos. Contudo, sentiu uma ligeira
mudança de energia na sala. O olhar da diretora Scott passara de
cansado a… atento.
Shane era uma pessoa inquieta (mais uma coisa de que ele se
apercebera a partir do momento em que passara a sentir tudo). Mas
chamar a atenção para a boca, o braço ou qualquer outra parte do
seu corpo não era justo. Ele sabia que causava uma impressão forte
nas mulheres. Apercebera-se disso quando era pouco mais velho do
que Ty. Na altura, não sabia bem porque é que provocava aquele
tipo de reação, mas também não quisera saber. Limitara-se a ficar
contente por ter um trunfo na manga, algo que poderia usar quando
estivesse desesperado, com fome ou sozinho.
Achas que pareço um anjo? Ainda bem. Talvez me deixes aqui
com a caixa registadora enquanto vais buscar o meu refrigerante
preferido lá ao fundo. Achas que pareço um rufia? Ainda bem.
Talvez me possas contratar para assaltar a casa do teu ex. Achas
que me fodias? Ainda bem. Talvez me arranjes um lugar onde ficar
durante um mês.
Shane neutralizava-se a si próprio. As pessoas saudáveis e
funcionais não se metiam por atalhos.
— Pago-lhe o almoço durante um mês — deixou escapar.
— Desculpe?
Lá estavam os atalhos de novo.
— Tem Venmo? Eu não ando com dinheiro. Tenho dificuldade em
controlar os impulsos.
Com um sorriso abafado e tímido, a diretora disse:
— Vá lá. Ele está de casti…
Ainda a palavra ia a meio, e Shane já seguia pelo corredor fora.
Shane foi encontrar Ty debruçado sobre uma secretária numa sala
de aula vazia. Num estado de quase transe, estava a fazer um
desenho na capa do caderno de composições. Tinha-a rabiscado
tanto que já mal conseguia vislumbrar-lhe o fundo original. Mas, se
lhe passasse os dedos por cima, conseguia sentir o relevo da
esferográfica. Shane via-o a fazer aquilo há várias semanas. Talvez
o reconfortasse de alguma maneira.
Ty era enorme para a idade. Pesava cerca de 135 quilos e, com
um metro e noventa e três de altura, era cinco centímetros mais alto
do que Shane. Tinha uma autoconsciência taciturna que depressa
se transformava em raiva se se sentisse envergonhado ou
ameaçado. Mas confiava em Shane. Shane não o ridicularizava por
usar todos os dias as mesmas calças de fato de treino e camisola
com capuz. E Shane sabia que ele vivia com a tia numa casa de
tráfico de drogas dirigida por um gangue português (e que a mãe e a
irmã tinham sido vistas pela última vez a aliciar clientes, juntas, em
Hartford Park), mas nunca tocara no assunto. Falava com Ty de
igual para igual.
Postou-se em frente dele, apoiando-se na secretária do professor,
e disse-lhe que tinha de sair de Providence.
Ty não ergueu a cabeça.
— Vai pra onde.
— Para Brooklyn. Os Prémios Littie vão ser lá, este domingo —
explicou. — Eu vou ser um dos apresentadores. O que é estranho,
porque não costumo ir a cerimónias de entrega de prémios.
— Porquê.
— Já ouviste falar na Gayle King?
— Quem?
— Não importa— murmurou Shane. — Não costumo ir porque
não significam nada. Em 2013, o Círculo Nacional de Críticos de
Livros atribuiu o prémio de Melhor Livro de Ficção à Chimamanda
Ngozi Adichie, e não a mim. Considero-a melhor do que eu? Não.
Mas é tudo subjetivo.
O canto da boca de Ty curvou-se.
— O stor é louco.
— Sou louco, pois sou — disse Shane. — Porque me preocupo.
Tive de ganhar e perder fortunas, de recorrer uma taróloga e de
participar em demasiadas reuniões dos Alcoólicos Anónimos para
me desenvolver o suficiente para dizer estas palavras. Eu preocupo-
me com as coisas.
Ty sabia que a conversa conduzia a algo.
— Está a dizer isso para dizer o quê.
— Ty, porque é que todas as tuas perguntas parecem
afirmações?
— Que merda significa isso.
— Bem, eu estou a admitir que me preocupo com os prémios. E a
ti, o que é que te preocupa?
— Nada. Não sou mole, nigga.
— Não há niggas aqui.
Ty ficou confuso.
— É dominicano?
— O quê? Não. E os dominicanos são niggas. Googla «diáspora
africana» e aprende alguma coisa. Céus. — Shane abanou a
cabeça. O tempo estava a contar. — Ouve, preocuparmo-nos com
as coisas não nos faz moles. Faz-nos vivos.
Ty encolheu os ombros.
Shane olhou para ele por um instante, com uma expressão séria.
Ty retribuiu o olhar, em desafio.
— Tyree.
— Sim.
— Tens de me ouvir.
— Sim.
— Esta escola não está preparada para te fazer brilhar. Está a
educar-te para a prisão. Todos os teus movimentos são
criminalizados por defeito. Na maioria das escolas, os miúdos não
são expulsos por dizerem «foda-se», não levam choques com um
taser por falta de pontualidade nem são encarcerados por falharem
um castigo. Na maioria das escolas, os rapazes do 8.º ano não são
aterrorizados desta forma. É-lhes permitido serem miúdos e não
terem nada na cabeça senão miúdas e o Roblox.
Os olhos de Ty fixaram-se no caderno. Estava perfeitamente
ciente de que Shane se referia a ele. Fora enviado para o centro de
detenção juvenil por falhar um castigo.
— Ficas zangado com isso? Queres lutar? Não estás errado. Vão
dizer-te que és um animal, mas não és. És uma pessoa razoável a
reagir a uma situação irrazoável. E eu sei, porque já fui como tu.
Tive de ser detido três vezes até ao 12.º ano para aprender a lição
que tu vais aprender hoje. — Fez uma pausa, apercebendo-se de
que estava a falar tão depressa que as palavras se encavalitavam
umas nas outras. — Eu também lutei. Tal com tu.
Bem, não exatamente. Tal como Ty, as palavras «violento e
imprevisível» haviam constado nos arquivos de estudante de Shane
desde o ensino básico. Ao contrário de Ty, a violência de Shane não
tinha que ver com raiva. Shane nem sequer lutava para ganhar.
Lutava para se magoar a si próprio, para amenizar a veia
autodestrutiva: rasgar a pele, estilhaçar os ossos, vomitar sangue. E
fora isso que o fizera andar a saltar de casas de acolhimento para
instituições de acolhimento, até acabar sem nada, porque ninguém
queria adotar um pré-adolescente negro de olhos encovados,
dopado e com compulsões perturbadoras e uma… beleza…
inquietante, estranha num miúdo tão trágico.
— Ninguém te vem salvar. Tens de ser tu a fazê-lo. — Shane
baixou a voz, porque queria que Ty se esforçasse para ouvir o que
ele tinha para dizer. — Não reajas aos seguranças da escola. Não te
metas em lutas. Sê discreto, trabalha com afinco, acaba o
secundário e põe-te andar desta merda desta cidade. E não voltes
enquanto não estiveres em condições de ajudar outro puto como tu.
Estás a compreender?
Silêncio.
— Ty. — Shane deu um passo em frente e bateu com o punho na
secretária de Ty. O rapaz deu um pulo. — Estás a compreender?
Ty assentiu com a cabeça, espantado. Shane era como um tio
divertido que ele não tinha. Hesitantemente, disse:
— Eu fico com demasiada raiva. Não consigo manter a calma.
— Consegues sim. — Os ombros de Shane relaxaram um pouco.
— Tem fé.
— Oh. Igreja.
— Quer dizer, se te ajudar. Mas eu queria dizer fé em ti próprio.
De que é que gostas?
Ty encolheu os ombros amplamente.
— Talvez de… planetas.
— Porquê?
— Gosto… que haja mais coisas lá fora. Não sei. Gosto de pensar
noutros mundos. — Ele estava com dificuldade em descrever algo
em que nunca tinha pensado. — Eu… eu costumava desenhar
planetas quando era pequeno. Merdas estúpidas.
— Boa. — Shane tirou um pacote de Trident do bolso e levou
duas pastilhas à boca. Depois, atirou uma na direção de Ty, que a
apanhou com uma mão. — Há oito planetas, não é? Não me lembro
dos nomes de todos. E tu?
— Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Úrano,
Neptuno.
Shane cruzou os braços sobre o peito.
— Quando te apetecer lutar, recita-os na tua cabeça. É um
mantra. Um mantra é como um feitiço mágico para o cérebro, a
dizer-lhe para ter calma.
— Isso é estúpido.
— Será? Gostas da Guerra dos Tronos, não gostas?
— Não.
— Aprendeste Dothraki sozinho. Eu já vi o conteúdo desse
caderno.
Ty voltou a encolher os ombros, o queixo a desaparecer no
pescoço.
— O que é que a Arya faz? Quando está em perigo? Recita os
nomes das pessoas sobre as quais quer exercer vingança. É o
mantra dela, e mantém-na viva. Os planetas vão ser o teu mantra.
Ty não conseguiu esconder a alegria e a vergonha por ser
comparado com Arya Stark, e a cabeça afundou-se ainda mais no
pescoço, camadas de pele a acumularem-se sob as bochechas.
— O stor tem um mantra? — Ty pronunciou a pergunta como uma
pergunta.
— Tenho.
— Qual é?
— É meu — respondeu Shane, apenas. Tinha um mantra, de
facto. Fora uma prenda de uma rapariga quando ele era miúdo. E,
na altura, quando precisara dele, funcionara.
Olhou para o relógio. Estava na hora de ir para Nova Iorque.
— Precisas de atividades — disse Shane. — O teu professor de
Ciências disse-me que gostavas de astronomia. Por isso, arranjei-te
um estágio no Planetário de Providence. Além disso, todas as
sextas-feiras às 15h30, vais ser tutor de ciências para alunos com
dificuldades. E não te esqueças: Mercúrio, Vénus, Terra, Marte,
Júpiter, Saturno, Úrano, Neptuno.
— Espere. Já sabia que eu gostava de planetas?
Shane abriu um sorriso e deu-lhe uma palmada calorosa.
— E disse que não era capaz de os nomear a todos, mas acabou
de o fazer!
— Claro que sei o nome dos planetas — retorquiu Shane,
apalpando os bolsos das calças de ganga para se certificar de que
tinha a carteira. — Enganei-te.
A boca de Ty abriu-se.
— É o teu mantra, não o meu. Tinhas de ser tu a dizê-lo em voz
alta para que tivesse poder.
— Não estou a perceber nada — sussurrou Ty, estupefacto.
Shane riu-se levemente. Iria ter muitas saudades de Ty. Queria
abraçá-lo, mas o ficheiro do rapaz dizia que ele não gostava que lhe
tocassem. Shane compreendia-o; também não gostava.
Já estava a caminho da porta quando a voz de Ty o deteve.
— Precisa… Vai precisar de ajuda? Em Nova Iorque?
Shane virou-se e olhou para Ty.
— Ajuda?
— Posso ir consigo? — A voz de Ty era um murmúrio tímido. —
Podia ser o seu assistente.
Os ombros de Shane descaíram um pouco.
— Se precisares de mim, eu volto. Seja quando for. Seja por que
razão for. Prometo.
Ty pestanejou várias vezes e afundou-se na cadeira.
— Nem vais ter tempo de sentir a minha falta, puto. Vou estar
sempre a enviar-te mensagens.
O rapaz assentiu com a cabeça.
— Tenho de ir. Porta-te bem. Só isso… Porta-te bem — repetiu
Shane, antes de se precipitar porta fora, praticamente a correr. Já
não tinha mais nada a dizer. E estava atrasado. Sentia dificuldade
em engolir e uma comichão debaixo dos olhos. Mas não iria chorar.
Não o fazia desde os 17 anos.
Sentou-se ao volante do Audi alugado, ligou o ar condicionado no
máximo e seguiu a toda a velocidade pela Route 1 até ao aeroporto
T. F. Green. Gostava demasiado daquele rapaz. Não sabia ser
orientador sem amor. Talvez não fosse uma atividade muito
saudável para si.
Sabia que, provavelmente, Ty não iria aparecer para o estágio no
planetário. Talvez não conseguisse singrar na vida, ponto final. Era
algo que Shane não podia controlar, mas não iria deixar de manter o
contacto. Nunca deixava. Tinha um Ty ou uma Diamond ou uma
Marisol ouum Rashaad em cada cidade. Mantê-los-ia vivos a todos
por pura força de vontade.
O novo Shane não amava para depois desaparecer.
Isso fora o que lhe fizera a ela. Que era a verdadeira razão por
que ia a Nova Iorque.
Shane não queria — nem merecia — nada dela. E detestava a
ideia de perturbar a vida dela ou de desenterrar o passado. Mas
tinha de explicar o que não fora capaz de explicar no passado.
Depois, ir-se-ia embora.
Em seu abono, sabia que era uma péssima ideia. Para sua
desgraça, não iria deixar de o fazer.
Tinha de o fazer. Não era capaz de fingir que mergulhava numa
vida nova quando ainda estava a fugir da antiga.
Ela era um fogo que ele atiçara há muitos anos, e, durante
demasiado tempo, limitara-se a deixar que ardesse sem chama.
Estava na hora de o apagar.
O
CAPÍTULO 5
MERDAS DIVERTIDAS
DE NEGROS
aparato do evento do Estado do Autor Negro era uma cena
digna de ser vista. A mesa-redonda tinha lugar no amplo
Auditório Cantor do Museu de Brooklyn e estava encenada na
perfeição. Para encontrar o espaço, era preciso serpentear por um
labirinto de salas com a exposição mais escaldante da cidade:
Ninguém Lhe Prometeu o Amanhã: A Arte 50 Anos Após Stonewall.
Todos os hipsters bem informados fingiam que a tinham visto.
Quando o público entrava no auditório, já tinha assimilado toda
aquela arte de protesto eximiamente curada e aparecia de peito
cheio para uma conversa faiscante.
O espaço era austero, industrial e moderno, com cerca de 200
lugares sentados e uma enorme janela para a Eastern Parkway,
com o seu aroma caribenho. O público resplandecia de cor. Era a
primeira semana quente do ano e havia uma explosão de vestidos
veranis, batons arrojados e penteados naturais. Via-se uma mistura
de representantes da alta e da baixa cultura a andar de um lado
para o outro: escritores da velha guarda (cujo auge teria sido por
volta dos anos 70 e 80); ensaístas, romancistas e jornalistas
millennials; uma mão-cheia de bloggers literários de óculos
altamente temidos; e alunas da Universidade Columbia e da
Universidade de Nova Iorque, cujos Birkenstocks tão em voga e
inscrições nas t-shirts gritavam «especialização em Estudos
Feministas». Por entre toda esta gente, deambulavam ainda
jornalistas digitais e os respetivos fotógrafos a perscrutar os crachás
que diziam «Olá, o meu nome é…» para perceberem quem valeria a
pena entrevistar.
Eva embalava um copo de água com gás com um rebento de
manjericão. Estava concentrada em apresentar-se como alguém
que não estava a tentar evitar um ataque de pânico. Embora lhe
apetecesse passar algum tempo a conversar com alguns editores
veteranos que conhecia, depressa se apercebeu de que, para a
maioria daquelas pessoas, Eva Mercy era uma desconhecida, ou,
quando muito, um «nome» reconhecido num género que inspirava
um círculo de fãs bastante ridículo. E já faltava pouco para ter de
falar de forma inteligente sobre coisas sérias à frente de toda aquela
gente.
Calma, mulher, disse a si própria, rodando o anel de camafeu
vintage em volta do dedo. Era o seu talismã da sorte, e estava a
contar com ele para se aguentar naquela noite. O anel deixava-a
sempre mais calma. Estava manchado, fendido e devia ter uns cem
anos. Eva não fazia ideia de quem era a mulher da era vitoriana a
quem o anel pertencera originalmente, mas encontrara-o há
algumas décadas no guarda-joias da mãe. Decerto, fora-lhe
oferecido por um tipo qualquer. Mas Lizette detestava joias vintage
— exigia diamantes novinhos em folha, meu querido —, pelo que
nunca o usara. Eva, contudo, apreciava velharias. Um dia, com 13
anos, sozinha e cheia de borbulhas na cara, roubara-o do quarto da
mãe. Lizette nunca dera conta. A mãe dela nunca dava conta de
nada.
— Mana!
Ao ouvir aquela voz familiar, Eva deu meia-volta com um sorriso
aliviado. Era Belinda Love, a poetisa vencedora do Prémio Pulitzer e
uma das participantes na mesa-redonda de Eva. Nas suas
coletâneas, Belinda inseria-se no cérebro de figuras históricas e
escrevia poesia lírica sobre a vida moderna a partir do ponto de
vista específico de cada uma. O seu poema na voz de Langston
Hughes, Nem Tudo é um Hashtag, era icónico.
Eva apaixonara-se imediatamente por Belinda alguns anos antes,
quando ficaram sentadas lado a lado numa das festas exclusivas de
Cece. Filha de humildes cabeleireiros de Silver Spring, no Maryland,
Belinda frequentara a Escola Sidwell Friends com uma bolsa
aquando de Chelsea Clinton e fora consultora dialetal durante dez
anos em filmes com pessoas negras escravizadas ou sobre a era
das Leis de Jim Crow[2] (não será preciso dizer que raramente
ficava sem trabalho). Por mais prestigiado que fosse o seu currículo,
Belinda era uma mistura acessível de uma mulher em contacto com
a terra e uma rapariga do gueto. Gostava de reiki e de leituras
xamânicas, mas também de memes obscenos e de seduzir rapazes
jovens que trabalhavam no setor dos serviços. Tinha acabado de se
separar de um bonzão chileno, que conhecera quando ele andava a
distribuir folhetos em frente da loja da MetroPCS.
— Olááá, Belinda. — Eva abraçou-a levemente para não
emaranhar os colares de feira de rua que ela trazia ao pescoço. As
tranças sintéticas, caraterísticas de Belinda, escorriam-lhe do lenço
com motivos tribais e caiam-lhe sobre o rabo em forma de pêssego.
Parecia uma doula sensual.
— Que vestido! Que corpo!
— Na verdade, nem me consigo mexer — sussurrou Eva. Trazia
um vestido preto justo sem mangas da Gucci com um decote
profundo e botins escarlates com salto-agulha. As mamas estavam
içadas até ao queixo e o cabelo absolutamente liso.
— Não… vieste… para… brincar… nesta… noite… de…
segunda-feira. — Belinda fez Eva dar uma voltinha entre cada
palavra.
Eva ajeitou o debrum do vestido.
— Sinto-me a cabra do escritório num drama de televisão sobre
advogadas depravadas.
— Resultou para a Meghan Markle. Anda, vamos socializar.
Belinda entrelaçou o braço no de Eva e seguiram por entre a
multidão, a conversar.
— Miúda — começou Eva —, há uma pessoa que te quero
apresentar. Ele é giro giro. Olha o Insta dele, @oralpro.
A boca de Belinda escancarou-se.
— Que divina graça…?
— Calma, ele é ortodontista. Fez um belo trabalho ao tratar a
Audre.
— Passo. Já ando de olho num fornecedor giraço do meu Trader
Joe’s. Estive lá hoje a fazer compras para o meu curso de pastelaria
vegana, ministrado pela mulher que inventou o brioche de
corrimento vaginal.
— O brioche de corrimento vaginal — repetiu Eva.
— É famosa por isso.
— Há mais do que zero pessoas famosas por fazerem brioches
de corrimento vaginal?
— Seja como for, podes parar de tentar arranjar-me encontros. Tu
queres é minar a minha vida sexual para teres inspiração para
escrever. Porque é que não marcas tu um encontro com o
@oralpro? Mexe-te! Não continues a desperdiçar essas pernocas
larocas e essa pele jovem.
— Sabes porque é que eu tenho uma pele bonita? — perguntou
Eva, piscando-lhe o olho. — Nenhum homem a dar-me cabo dos
nervos.
Nesse instante, Cece apareceu vinda do nada e pôs a cabeça
entre as duas.
— Pergunta-lhe sobre o Só — disse. Depois, pegou no copo
quase vazio de água com gás de Eva, substituiu-o por um cheio e
voltou a desaparecer no meio da multidão.
Belinda resfolegou.
— Como é que ela se materializa daquela maneira? E do que é
que estava a falar?
Antes de Eva poder responder, uma rapariga jovem com um
cabelo afro pintado de louro e um caicai atirou-se para os braços de
Belinda.
— A sua poesia é a única coisa que me faz aguentar os meus
exames finais na Universidade de Nova Iorque! Pode autografar o
meu livro? — Estendeu-lhe um exemplar desgastado.
— Claro! — Belinda assinou a folha de rosto e fez um gesto para
Eva com o cotovelo. — Esta é a Eva Mercy. Já deve ter ouvido falar
da série Amaldiçoados?
— A minha madrasta lê esses livros — respondeu ela, antes de
tirar uma selfie rápida com Belinda. — Mas eu evito textos com sexo
cis-heteropatriarcal. Lamento.
A rapariga ergueu o punho do Poder Negro e afastou-se. Em
segundos, Cece voltou a materializar-se, fitando-a, carrancuda.— Quem é que deixou a campónia oxigenada entrar? — Cece era
rainha a policiar mulheres com um penteado igual ao seu. Que
perfaziam metade de Brooklyn. — Está a usar calças de ganga do
Walmart?
— Alguma vez entraste num Walmart? — perguntou Eva.
— Fisicamente, sim. Espiritualmente, não. — Cece rodou sobre
os calcanhares. — Para o palco! O espetáculo vai começar.
Belinda agarrou a mão de Eva e seguiram Cece por entre a
multidão, como patinhas.
O palco era acolhedor: uma fila de sofás individuais para Cece, Eva,
Belinda e Khalil. Khalil só chegou depois da apresentação de Cece,
devido a um mal-entendido com o motorista do Uber. O mal-
entendido era ele ter roubado o Uber de outra pessoa e o motorista
tê-lo expulsado.
Khalil era doutorado em Estudos Culturais, tinha 37 anos e
gostava de calças chino e laços Ralph Lauren em tons pastel. Era
famoso pelos livros que escrevia sobre racismo sistémico e vivia
com uma herdeira sueca com mais de 60 anos que lhe financiava as
calças e os laços Ralph Lauren.
No verão em que Eva se divorciou, Khalil, que, na altura, era
colunista da Vibe, andou atrás dela no decorrer de uma série de
churrascos em festas nos telhados do bairro de Clinton Hill. Sem
sucesso. A palavra mansplainer[3] ainda não tinha sido inventada,
mas teria sido útil.
A casa lotada estava completamente envolvida na acalorada
discussão dos membros da mesa-redonda: havia pessoas a assentir
com a cabeça, a rir-se, a gravar lives no Instagram com os
telemóveis. Eva estava aprumada como um fuso no sofá, com os
pés cruzados nos botins de salto-agulha, como era próprio de uma
senhora.
E estava a arrasar.
Sim, nas primeiras vezes em que falou, algumas pessoas
olharam-na com a expressão de quem é esta, afinal?, mas ela foi-as
conquistando aos poucos. De tal forma que começava a perguntar-
se porque é que se preocupara tanto.
À medida que ela, Belinda e Khalil respondiam às perguntas de
Cece, o papel de cada um tornou-se claro: Belinda era a Mana e
Amiga Que Dizia as Coisas Como Elas Eram, Khalil era o Fanfarrão
Presunçoso e Eva era a Irremediavelmente Embriagada pelo
Sucesso Inesperado.
— E eis o que é verdadeiramente bom — continuou Belinda. — O
setor editorial tem dificuldade em tratar as personagens negras a
não ser que estejamos em sofrimento.
Cabeças a assentir e murmúrios do público.
— O que se espera de nós é que escrevamos sobre traumas,
opressão ou escravidão, porque se trata de tropos negros facilmente
comercializáveis. As editoras têm dificuldade em olhar para nós e
ver que podemos ter as mesmas experiências banais, divertidas e
extravagantes comuns a qualquer ser humano…
— Porque isso daria a entender que somos humanos —
interrompeu Khalil. — A SOCIEDADE AMERICANA DEPENDE DA
NECESSIDADE DE DESUMANIZAR, DEGRADAR E NEGAR O
HOMEM NEGRO.
Belinda ignorou-o.
— O meu primeiro romance foi sobre uma arquiteta e um chef que
testemunham um homicídio numa rua secundária durante o apagão
de 2003 e têm sexo escaldante enquanto tentam resolver o mistério.
Foi recusado em todo o lado. Estava sempre a ouvir: «É uma
história engraçada, mas será que podemos saber mais sobre as
dificuldades que as personagens passam enquanto negros em
profissões maioritariamente brancas? — Belinda suspirou. — Mas
que raio, como se não houvesse espaço para merdas engraçadas
de negros. Porque é que eu não posso ganhar milhões com o
Rapariga no Comboio ou o Cinquenta Sombras?
— O Cinquenta Sombras não era mau — observou Cece,
torcendo o nariz. — É verdade que era bom que a Ana rapasse as
pernas. Mas, sim, os escritores brancos têm liberdade para contar
uma boa história simplesmente por ser uma boa história.
— Imaginem que um de nós tentava publicar algo no género do
Rapariga no Comboio — interveio Eva. — Quatro Raparigas de Cor
no Comboio Quando o Suicídio Não É Suficiente.
O público irrompeu em risos, e Eva irradiava a alegria de quem
acabava de chegar às portas do Paraíso. As suas orelhas
espalhavam luz, e as pupilas transformaram-se em emojis de
corações.
— Quando eu era pequena, era obcecada pelo terror e pela
fantasia — disse ela. — Mas as personagens negras eram invisíveis
nessas histórias. Porque é que eu não podia ir para Narnia ou
Hogwarts? Quando escrevi sobre uma bruxa e um vampiro negros,
o setor editorial ficou em choque. Tipo, as criaturas paranormais
podem não ser brancas? Embora exista uma prodigiosa tradição de
vampiros negros… Basta pensar em Blade, em Blacula, de O
Vampiro Negro, no folclore fifollet do Louisiana. Isto para não falar
das bruxas negras, como Bonnie, de Diários do Vampiro, ou Naomie
Harris, de Piratas das Caraíbas… — Deteve-se ao perceber que
estava a revelar um lado mais cromo e a perder o público. — Enfim,
só alguns de nós conseguiram ter êxito neste género, porque pode
ser difícil imaginar um mundo, ainda que fantasiado, em que todos
os donos do poder são negros. Acontece o mesmo na banda
desenhada. Alguém aqui já esteve na Comic Con?
Apenas uma pessoa, muito lá atrás, levantou a mão. Eva olhou
através dos óculos, com os olhos semicerrados, para distinguir a
cara da pessoa, vendo um homem com uma sombra cintilante nos
olhos e o chapéu roxo de Gia. Um fã de Amaldiçoados. Além de
mães que usavam o vinho como válvula de escape, os homens
queer da geração X eram os leitores mais ativos de Eva. E eram
devotos fiéis das contas de fãs de Amaldiçoados nas redes sociais.
O que deixava Eva encantada da vida.
Mas o chapéu de bruxa? Ali? Quando ela estava a tentar
apresentar-se como uma Escritora Séria?
— Eu censuro a cultura da banda desenhada — atirou Khalil. —
Até o Pantera Negra. O verdadeiro herói é Erik Killmonger. Mas,
claro, Hollywood EMASCULA ESTRATEGICAMENTE O HOMEM
NEGRO ASIÁTICO DIVINO PARA SATISFAZER OS PÚBLICOS
EUROCÊNTRICOS.
— Vais buscar o teu material a algum gerador de palavras de
orgulho negro? — perguntou-lhe Belinda, com o microfone
desligado.
— Vai-te mas é lixar, Belinda — sibilou ele, por entre dentes, para
depois continuar. — Bem, sinto que estou a dar mau uso ao meu
dom se não falar da marginalização do homem negro. A
DUALIDADE do CONSUMO e da DESTRUIÇÃO simultâneos do
homem negro.
Belinda deixou escapar um resfôlego exasperado.
— Eu só acho que a forma como sublinhas apenas as
dificuldades do homem negro está gasta, e é muito cinzenta.
Existem mulheres negras no teu mundo?
— Khalil, a tua misoginia negra está a revelar-se — disse Eva,
arrancando mais risos da audiência. Estava a arrasar.
— O que eu quero dizer é que, se nós, enquanto pessoas negras,
não escrevermos com a intenção de DESMANTELAR O
HOOLIGANISMO SUPREMACISTA BRANCO, estaremos a
desperdiçar as nossas vozes. — Ele endireitou o laço. — Dito isso,
os livros como os da Eva também são importantes. A banalidade é
um escape.
— Banalidade? — Eva sentiu-se ofendida.
— Talvez eu devesse ter dito leitura fácil — corrigiu Khalil.
— Talvez seja melhor avançarmos — interveio Cece, parando de
repente. Perscrutou o público e soltou um suspiro ofegante,
agarrando a barriga, firme do pilates. Uma vez que era impossível
chocar aquela mulher, Eva sabia que tinha acontecido algo
cataclísmico. Teria um homem mascarado e armado entrado
sorrateiramente? Teria Zadie Smith acabado por aparecer?
Os olhares dos membros da mesa-redonda seguiram o de Cece.
Viram uma silhueta masculina alta encostada à ombreira da porta,
no canto escuro ao fundo do auditório.
Com um rosto reconhecível.
— Shane… — começou Cece.
— Hall — terminou Belinda.
O público começou a olhar para trás, olhos a percorrerem todos
os cantos da sala. Uma saraivada de exclamações emergiu dos
assentos.
— O quê?
— ONDE?
— Para!
Eva não disse nada.
Quando uma personagem de um filme de terror vê um fantasma,
solta um grito arrepiante. Arranha as faces. Corre sem olhar para
trás. Eva estava encurralada em palco, diante da comunidade
literária de Nova Iorque, pelo que não recorreu a nenhum destes
expedientes. Em vez disso, ficou com as mãos completamente
bambas e deixou cair o microfone, que embateu com estrondo no
chão.
Ninguém reparou, porqueestava toda a gente virada para ele.
— Shane — bramou Cece —, és tu?
Ele olhou para a sala, da ombreira da porta, esboçando um
sorriso acanhado.
— Não — respondeu.
— É ele, sim! — gritou alguém.
— Vem cá acima — chamou Cece.
Ele abanou a cabeça, com uns olhos que gritavam
desesperadamente: Por favor não me obrigues a fazer isso.
— Desculpa? Eu descobri-te quando andavas a limpar quartos no
Beverly Wilshire, rapaz. É bom que venhas cá acima. Deves isso a
toda a gente nesta sala que contribuiu para a tua popularidade,
apesar da forma desleixada como nos trataste.
Shane olhou para trás, como se estivesse a avaliar se poderia
fugir dali. A contragosto, encaminhou-se para o palco.
Eva raramente via as coisas de uma forma nítida. Mesmo com os
óculos postos. A sua cabeça tornava o mundo sempre um pouco
indistinto. Porém, à medida que Shane avançava pelo corredor em
direção aos membros da mesa-redonda — em direção a ela —,
todos os detalhes da sala ficaram claros como água. Estava
dolorosamente ciente de tudo à sua volta e dentro de si.
Não podia ser verdade. Mas ela sabia que era, porque a sua
reação física era operática. A respiração abrandou. O coração
acelerou. Eva começou a tremer, apanhada no fogo cruzado de um
sem-fim de emoções poderosas e contraditórias. Não era
particularmente religiosa, mas sempre sentira que havia… algo…
algures a olhar por si. Por muitas razões, mas sobretudo porque
nunca se tinha encontrado por acaso com Shane Hall. Nunca. Ao
fim de tanto tempo, era, sem dúvida, de admirar, dado que eram
ambos escritores negros da mesma idade que tinham alcançado o
êxito na mesma altura. Se não era intervenção divina, Eva não sabia
o que poderia ser.
Mas ali estava ele, de carne e osso. Era o momento que ela
sempre temera. Contudo, de uma forma mais latente, escondido nas
gavetas do seu subconsciente, não seria também o momento por
que sempre esperara? Que planeara? Ou até sonhara?
Talvez. Mas não daquela forma. Não em público. Não sem
preparação prévia.
O aplauso ensurdecedor transformou a palpitação subtil que
sentia nas têmporas em punhais, lembrando-a novamente de onde
se encontrava. A sala estava em ebulição. Shane era uma estrela
literária. Escrevera apenas quatro romances: Oito, Sobe-e-Desce,
Come na Cozinha e Fecha a Porta ao Entrares. Mas já faziam parte
do cânone. O cenário era sempre o mesmo bairro sem nome,
assolado por uma pobreza devastadora.
As personagens de Shane eram extravagantes, vívidas, quase
seres humanos mitificados. E, com uma arrebatada atenção ao
pormenor, à emoção e aos matizes, Shane manipulava
astuciosamente os leitores, levando-os a mergulhar de tal forma em
cada ideia das suas personagens que só ao fim de 50 páginas é que
percebiam que o livro não tinha enredo. Absolutamente nenhum. Só
uma rapariga chamada Oito que perdera as chaves. Ainda assim,
choravam com a beleza do texto. Oito poderia ter visto um tipo a ser
alvejado enquanto ela estava na rua sem conseguir entrar em casa,
mas os leitores só quereriam saber dela.
Shane induzia os leitores a verem a humanidade, não a
circunstância. Quando terminavam um livro de Shane, ficavam
aturdidos, a pensar como é que ele conseguira arrancar-lhes o
coração do peito antes de eles perceberem o que estava a
acontecer.
A cada cinco anos, mais ou menos, Shane publicava um livro;
dava algumas entrevistas desarticuladas e pouco reveladoras;
participava, contrariado, num segmento da MSNBC; limpava a
época de prémios (a não ser que concorresse a par de Junot Díaz);
garantia uma bolsa avultada para ir algures para escrever mais
merdas clássicas e depois voltava a desaparecer.
Claro que nunca desaparecia completamente. Havia
avistamentos. Estivera na festa de inauguração de uma exposição
de Kara Walker, em Amesterdão, há três primaveras, mas, quando
chegara o momento de ler a introdução que escrevera para o
evento, já tinha desaparecido (assim como Claudia, a curvilínea
agente publicitária de Kara). Em 2008, fora ao Jantar de
Correspondentes da Casa Branca, mas passara o tempo todo a
secar pratos com os empregados, na cozinha. Estivera presente,
sem dúvida, no casamento de J. Cole, na Carolina do Norte, porque
dissera a um convidado que a única coisa de que gostava no Sul
era dos restaurantes Bojangles, o que incendiara imediatamente o
Twitter.
Alguns anos antes, um editor do LA Times lançara o rumor de que
Shane era um embuste. E que quem escrevia os seus livros era
outra pessoa. Porque Shane não se comportava como um escritor
de primeira linha e, na verdade, não parecia ser escritor. Todo ele
era linha do maxilar, lábios carnudos e pestanas irreais: um rosto
que fazia dele especial antes de ele o provar.
Shane Hall era intimidantemente bonito. E, no entanto, nas
poucas ocasiões em que sorria, irradiava luz e calor. Era como olhar
para um maldito raio de sol. O efeito era desconcertante. Dava
vontade de lhe beliscar as bochechas ou de lhe implorar por uma
foda pura e dura, sobre uma superfície macia. O que quer que ele
tivesse passava a ser uma necessidade para quem estava perto
dele.
Eva sabia-o melhor do que ninguém.
Pelo menos, soubera-o, no passado. Não via Shane desde o 12.º
ano.
— E
CAPÍTULO 6
A BRUXA LEVA A MELHOR
SOBRE O MONSTRO
le voltou.
Eva só percebeu que tinha falado em voz alta quando
Khalil e Belinda viraram a cabeça num ápice na sua direção.
— O quê? — perguntou Khalil.
— Voltou para onde? Tu conhece-lo? — sussurrou Belinda, com a
mão a tapar o microfone. O público estava frenético. E Shane
estava a demorar uma eternidade a chegar ao palco, porque havia
mãos para apertar e autógrafos a dar (nos folhetos com o programa
do evento, em livros, no antebraço de uma rapariga mais
atrevida…).
— O que eu quis dizer foi que me custa a acreditar que ele esteja
a aparecer em público — respondeu Eva, atabalhoadamente. — Tu
já o conheces, certo?
— Sim, tivemos ambos bolsas Fulbright, em 2006. Passámos o
verão a escrever na Universidade de Londres — sussurrou Belinda.
— Mas eu mal o via. Basta dizer que, na zona este de Londres, há
um pub em cada esquina.
— Sobrevalorizado — declarou Khalil. — Cheguei a ter uma
entrevista marcada com ele para a Vibe. Fez-me ficar à espera no
Starbucks de West Hollywood durante quatro horas, depois
apareceu, pôs-se a divagar sobre uma tartaruga durante dez
minutos e calou-se. O artigo foi cancelado, como é óbvio. Palhaço.
É por isso que os negros não podem ter coisas boas.
— O ódio é forte neste aqui — comentou Belinda, com malícia.
Ele olhou para ela com uma expressão fechada.
— Estou a ficar farto de ti.
Eva já não estava a ouvir. Porque Shane já estava ali. Em palco,
com eles, envolvido no abraço possessivo de Cece, ao som do
disparo de mil e uma fotografias tiradas com os iPhones. Depois,
Cece largou-o, e os membros da mesa-redonda levantaram-se (Eva,
periclitantemente, nos seus saltos altos e frenesi). Shane
cumprimentou Khalil com um choque de punho e deu um abraço a
Belinda. Depois, ficaram só ele e Eva.
Ela tremia descontroladamente. Não havia nenhuma forma de
conseguir abraçá-lo. Nem sequer de se aproximar dele, um
centímetro que fosse. Decidiu estender-lhe a mão, que se destacou
do braço como um apêndice estranho, e ele apertou-a.
— Sou o Shane — disse ele, a mão dela ainda na dele. — Adoro
o teu trabalho.
— O… obrigada. Eu sou… a Eva. — Parecia pouco segura do
seu próprio nome. Ele apertou-lhe a mão levemente, um gesto
privado, a dizer-lhe para se descontrair. Ela puxou-a imediatamente
da dele.
Um estagiário do The New York Times saiu a correr dos
bastidores com uma cadeira extra, enfiou-a entre a de Cece e a de
Belinda e entregou um microfone a Shane. Toda a gente se sentou.
Khalil estava furioso.
— Bem — começou Cece —, estou certa de que esta figura não
precisa de apresentações. Vamos dar umas boas-vindas calorosas
ao Shane, sim? Shane, podes ficar connosco por uns minutos, não
podes?
Ela lançou-lhe um sorriso radiante de mamã orgulhosa. Olhou
para ele como Diana Ross costumava olhar para Michael Jackson:
Sou mesmo brilhante, caramba;fui eu que descobri este unicórnio.
— Quer dizer, tem mesmo de ser? — perguntou ele, com um
sorriso divertido na voz. Shane crescera na zona sudeste de
Washington e as inflexões continuavam a notar-se no sotaque lento,
vagamente sulista. Aquele «quer dizeeeer» demorou-lhe uma
década a sair.
— Não tens escolha. É a vingança por me teres trocado por
aquele editor da Random House. — Cece fez um gesto na direção
de Eva e companhia.
— Mas eu… hum… não sou a melhor pessoa a falar em público.
Só vim para assistir, na verdade. Isto é constrangedor. — Olhou
para a multidão como quem pede desculpa. — Mas quando a Cece
Sinclair nos manda fazer alguma coisa, nós obedecemos. Não sou
maluco.
— Por confirmar — murmurou Khalil.
Antes que Shane pudesse responder ao comentário, uma jovem
do público levantou o braço. Trazia um boné com a frase «Fazer da
América Nova Iorque». O seu rosto estava vermelho como um
pimento.
— Sr. H-Hall — gaguejou. — Não quero ser malcriada, mas
adoro-o.
Ele sorriu.
— Malcriada seria «detesto-o».
Ela riu-se com uma vontade exagerada.
— Mal posso acreditar que está aqui. Tinha de lhe dizer que o
Oito é a razão por que escrevo. A Oito, a personagem, sou eu.
Nunca vemos raparigas negras ansiosas e deprimidas na cultura
pop. Não existe um Nação Prozac ou um Vida Interrompida negro.
Adoro o facto de ela ser a narradora em todos os livros.
— Obrigado. — Ele remexeu-se na cadeira. — Eu também gosto
dela.
— A Oito é baseada numa pessoa real? Descreve-a de forma tão
íntima. É como se eu estivesse a espreitar algo que não devia ver.
— Acha que a Oito é real?
— Sem dúvida — disse ela, assentindo com a cabeça.
— Então, é.
— Isso não é resposta.
— Eu sei. — Shane sorriu abertamente.
Naquele momento, Eva teve de o fazer. Ganhou finalmente
coragem para olhar para ele — e arrependeu-se de imediato.
A idade enrugara-lhe a pele em redor dos olhos. Eva esquecera-
se da cicatriz serpeante que lhe atravessava o nariz. Shane estava
cheio de cicatrizes. Uma vez, quando ele estava a dormir, ela
contara-as todas. Percorrera-as com a boca. Depois, dera-lhes
nomes, como se fossem constelações.
Calças de ganga perfeitas; botas grosseiras; relógio caro;
compleição alta, magra e fibrosa; barba de dois dias; t-shirt branca
simples. Poderia ser Hanes ou Helmut Lang. Ele que se lixasse —
era exatamente assim que ela gostaria de estar vestida.
Como é que eu vou sobreviver a isto?
Uma jornalista loura que Eva reconheceu ser da Publishers
Weekly levantou o braço. Cece acenou na direção dela.
— Por falar na Oito — começou a loura —, o senhor foi atacado
em alguns quadrantes por escrever exclusivamente a partir de um
ponto de vista feminino. É justo? Como homem, sente-se qualificado
para falar a partir de uma posição feminina?
Chegados àquele momento, Eva, Belinda e Khalil haviam
efetivamente sido relegados para segundo plano.
Shane mordeu o lábio inferior e olhou fixamente para o microfone
que tinha na mão, como se o objeto tivesse as respostas para todos
os mistérios.
— Acho que… não penso muito se sou qualificado para fazer as
coisas. Limito-me a fazê-las.
— Mas é uma atitude arrojada, como homem, explorar a angústia
feminina de uma forma tão íntima.
— Eu não acho que esteja a explorar a angústia feminina. Estou
só… a compor uma personagem? Que tem angústias. — Esfregou
as mãos nas calças de ganga, com um ar absolutamente
desconfortável. — Os escritores devem ir além da própria
experiência, não é assim? Se eu não for capaz de escrever numa
voz feminina, provavelmente estarei na profissão errada e terei de
rever o meu LinkedIn.
— Ah. Tem conta no LinkedIn?
— Não — disse ele, os olhos divertidos. Sussurrou para Cece: —
Eu bem te disse que não tinha jeito para isto.
Naquele momento, o que quer que fosse que estava a manter Eva
sob controlo cedeu. De repente, Eva sentia-se estrondosamente
ofendida com a presença dele. Tinha andado num frenesi a
preparar-se para aquele evento, a decorar deixas com Audre e a
enfiar-se naquele vestido, enquanto Shane podia limitar-se a ser
exatamente quem era. Shane passara toda a sua carreira a fazer
tudo o que lhe dava na gana — a fugir de entrevistadores, a
desaparecer da face do planeta, a passar sonambulamente por
eventos pelos quais Eva seria capaz de matar para ser convidada —
e, em geral, a ser recompensado pelo seu mau comportamento de
uma forma que, na história do trabalho criativo, nenhuma artista
feminina poderia alguma vez dar-se ao luxo de fazer. As mulheres
não tinham a possibilidade de ser rufias.
— Eu não penso; limito-me a fazer.
Parecia tudo tão simples nas palavras de Shane. E tudo o que
Eva fazia exigia tanto esforço. E o pior? Aquele era, supostamente,
o momento em que ela ia provar que era uma escritora a sério, uma
força que tinha de ser reconhecida. E tudo fora por água abaixo no
momento em que Aquele Que Interessava aparecera. Seria aquilo
realmente a vida dela ou uma produção de Mona Scott-Young?
Por todas estas razões — bem como por razões mais antigas e
mais obscuras —, Eva tinha de dizer alguma coisa.
— Eu compreendo o que a jornalista está a dizer — começou
Eva, devagar, para reprimir o tremor na voz. — Estás a apropriar-te
de uma experiência sobre a qual não tens nenhum conhecimento. A
Oito tem problemas. Automutila-se. É suicida. E tu idealizas tudo
isso, fazendo dela uma miúda triste e adorável. A depressão não é
uma «rapariga catastrófica» a verter uma bela lágrima isolada,
enquanto olha, anelante, para as janelas molhadas pela chuva e
debita frases espirituosas. A depressão é trágica. A Oito é trágica. E
um escritor homem a romantizar a doença mental feminina é pouco
adequado.
— Tens razão — disse Shane. Esfregou o maxilar devagar,
pensativo, e depois arrastou os olhos na direção de Eva. Pela
primeira vez, ela retribuiu-lhe o olhar. O que foi um erro.
O ar estava mais denso. Ambos pestanejaram. Uma vez, duas
vezes, e continuaram a fitar-se. Mais do que a fitar-se. A olhar
embasbacados um para o outro. Com um enfoque tão obstinado
que a multidão estava esquecida. O evento estava esquecido.
Sentados entre ambos, encontravam-se Belinda e Khalil, a olhar
de um lado para o outro, como se estivessem nas bancadas de
Wimbledon. Os olhos de Cece arregalaram-se a um nível de animé.
O que estariam a testemunhar?
— É verdade. Não sou uma mulher — começou Shane.
— Exatamente.
— E tu não és um vampiro. Nem um homem.
— Gaffe — murmurou Belinda.
— E, ainda assim, o Sebastian? É um dos retratos mais vívidos e
verdadeiros de masculinidade que já li. Sobretudo no terceiro e no
quinto livros. O Sebastian suga a vida de tudo o que o rodeia. Literal
e figurativamente. E também vai sugar a Gia, um dia. Ele sabe que
vai, mas não consegue deixar de a amar. Talvez por estar ciente de
que, no final, ela vai sobreviver sem ele. Ele sabe que a Gia é mais
rija do que ele. Por ser mulher, é mais forte. As mulheres recebem o
peso do mundo, mas não têm onde o pousar. O poder e a magia
que saem dessa luta? É tão aterrador para os homens que nós
inventámos razões para as queimar todas na estaca só para não
perdermos a tusa. — Shane fez uma pausa. — Tu criaste a
vassoura mágica da Gia dez vezes mais forte do que as presas do
Sebastian. A bruxa leva a melhor sobre o monstro. Isso diz-me tudo
o que preciso de saber sobre a razão por que os homens têm medo
das mulheres.
Eva estava demasiado pasmada para respirar. Contra o bom
senso, os seus olhos voltaram a fixar-se nos de Shane. O que quer
que ele tenha visto neles fê-lo hesitar por um instante. Mas depois
continuou.
— Tu não és um homem, mas escreves sobre a masculinidade
ambivalente como o caraças. Não és um homem e isso não
interessa, porque escreves com os sentidos apurados e reparas no
que ninguém repara, e a tua intuição criativa é tão poderosa que
consegue levar qualquer narrativa a bom porto. Tu vês. E escreves.
Com a Oito, eu faço a mesma coisa. — Ele olhou para ela com uma
familiaridade inconfundível. — Só não sou tão bom como tu.
Belinda inclinou-se na direção de Khalil e sussurrou:
—Queres retomar a conversa da banalidade, ou ficas por aqui?
O maxilar de Eva ficou um pouco indolente. Atordoada, assentiu
com a cabeça, num movimento lento. Não iria deixá-lo perceber a
dimensão da sua estupefação. E recusava-se a deixá-lo ter a última
palavra.
— Bem — conseguiu dizer —, essa foi uma interpretação e peras.
— Foi uma leitura e peras — retorquiu ele, em voz baixa.
— O teu… também.
— Obrigado.
Depois, Eva desviou finalmente os olhos de Shane. E só então é
que ele pareceu lembrar-se de que estava em público e deixou
escapar um pequeno suspiro.
O silêncio que se fez sentir em redor ensurdecia. Ninguém falou;
toda a gente estava petrificada. Em mais de uma década de escrita,
Shane Hall praticamente nunca proferira cinco frases (inteligíveis)
ao público. E, de repente, estava ali, em pessoa, a apresentar um
monólogo feminista lúcido e perspicaz. Sobre Eva Mercy? Era tudo
tão arrebatadoramente fortuito. E, por mais curioso que fosse,
também inconfundivelmente tenso. Quase ninguém no público tinha
lido a série Amaldiçoados e, de repente, mal podiam esperar por
aceder à Amazon.
Eva esqueceu-se do público. Era só ela lá em cima, presa aos
espaços entre as palavras de Shane. Às coisas que ele não dizia.
Rodou o anel de camafeu no dedo.
Ele leu os meus livros todos, pensou, a mexer freneticamente no
anel. Cada palavra.
Então, o único fã de Amaldiçoados começou a aplaudir, o chapéu
de bruxa roxo a abanar. Depois, exclamou:
— Mais um fã! Tem o pin com o «S» de Sebastian?
— Não. Infelizmente estava esgotado sempre que eu ia ao site
evamercymercyme.com.
O rosto de Eva estava a arder. Ele tentou comprar o pin?
Conhece o meu site?
— Só mais uma pergunta, e depois deixamos o Sr. Hall ir à sua
vida — disse Cece, quebrando o feitiço com uma tosse afetada.
Teve de o fazer porque Khalil estava tão furioso por ter perdido a
atenção do público que praticamente jorrava fumo pelas orelhas,
como nos desenhos animados.
Um jovem ruivo, com uns 20 e poucos anos, levantou-se. Parecia
o príncipe Harry, se o príncipe Harry vivesse em Red Hook.
— Boa noite, sou o Rich, da Slate. Belinda, Khalil e Shane, o
vosso trabalho é poderoso. Eva, não a conhecia antes desta noite,
mas foram umas palavras e tanto do Shane.
Eva sorriu com dificuldade, como uma mulher no leito da morte a
tentar mostrar-se forte para os entes queridos.
— Podem referir especificamente algum do racismo explícito que
enfrentam enquanto escritores negros? Shane?
— Eu? Uh… não.
— Não?
Shane repetiu.
— Não.
— Não é por isso que estamos aqui? — perguntou Khalil.
— É por isso que tu estás aqui — replicou Shane.
OK, mas porque é que TU estás aqui?, gritou o cérebro de Eva.
Com as têmporas a palpitar, puxou a pulseira de borracha,
deixando-a escapar contra a pele do pulso.
Como que a ouvir telepaticamente os pensamentos de Eva,
Shane lançou-lhe um olhar de relance. Quando viu a pulseira de
borracha, ficou com uma expressão carregada, preocupada.
Hesitou, como se se tivesse esquecido do que ia a dizer. Era uma
expressão de que ela se lembrava muito claramente. Eva deixou
cair a mão para o lado.
— Quer saber a verdade, Rich? — perguntou Shane.
— Por favor — disse Rich, os olhos a iluminarem-se, tal como os
de inúmeras pessoas brancas liberais desde as eleições. Como se
estivessem ansiosas por ouvir quão mau era, quão maus eles eram,
a culpa a transformá-los em masoquistas. O polegar de Rich pairava
sobre a aplicação de gravação de voz do telemóvel. — Neste clima,
é importante partilharmos testemunhos. Vamos tornar a América
mais responsável. Vamos levar a sério os crimes que o país comete.
Shane pousou o polegar no lábio inferior, pensativo.
— Mas eu não levo a América a sério — disse ele, com a
facilidade despreocupada de quem nunca teve a necessidade de se
preocupar com ser politicamente correto. Ou com ser correto, em
geral. (O departamento de publicidade da Random House haveria
de ter um comunicado de imprensa com um pedido de desculpa
pronto às 8 horas da manhã seguinte.)
Aparentemente, parecia estar à vontade. Ninguém, a não ser Eva,
reparou que, desde a troca de palavras entre ambos, a mão dele
apertava tanto o microfone que os dedos estavam a ficar brancos.
Era a única coisa que o denunciava.
Isso e o microfone a tremer.
— Bem, este clima sociopolítico atual a que se refere? Sempre foi
o meu clima. Desde sempre que enfrento os Trumps e os Pences e
os Lindsey Grahams. O primeiro foi o guarda com quem fiquei preso
numa cela quando tinha 8 anos. Sem leis, sem câmaras, sem
misericórdia. O que aconteceu naquela hora transformou-me no tipo
de pessoa que não se sente obrigada a discutir o racismo com
brancos. — Encolheu os ombros. — Não sou eu que tenho de
explicar o fardo, Rich. São vocês todos que têm de o corrigir. Boa
sorte.
Shane falou com tanta suavidade que não era claro se a questão
o preocupava ao máximo ou não o preocupava nada. Fosse qual
fosse o caso, tinha largado uma bomba. Depois de ter recusado
lançar luz sobre A Luta, acabara por o fazer, e aquela breve história
pessoal tinha mais impacto do que os desvarios precipitados de
Khalil.
— Compreendido — disse Rich.
Semicerrando ligeiramente os olhos, Shane olhou para o crachá
com o nome na camisa de Rich. Um olhar endiabrado atravessou-
lhe o rosto, e ele mudou de assunto com habilidade.
— No entanto, estaria disposto a falar sobre tagliatelle de
cenoura.
Rich resfolegou.
— Leu… o… meu…
— É o Rich Morgan, não é? Escreve sobre comida na Slate, de
vez em quando? Aquele artigo foi uma revelação. Eu não sabia que
se podia fazer noodles com legumes.
— Sugiro o espiralizador da Amazon Prime — interveio Belinda,
com entusiasmo.
— Eu comprei o meu numa encantadora loja de artigos de
cozinha e casa no Lago Como — disse Cece.
Eva fechou os olhos, a pensar se alguém teria posto ácido na sua
água com gás. Aquela conversa era ridícula. Shane mudara
completamente o estado de espírito da sala em milissegundos.
Quando é que ele se tornara tão incauto? Tão conversador? Ela
nunca o tinha ouvido a dirigir mais do que um resmungo a outra
pessoa que não ela.
— Vou encomendar essa merda — disse Shane. — Sou novo na
comida saudável. Tipo, ainda vou na tosta de abacate. Rich,
obrigado pelo seu serviço.
Rich ficou radiante e deslizou de volta para a cadeira.
Khalil estava indignado.
— Ajuda-me a perceber isto. Não queres falar sobre racismo, mas
começas uma conversa sobre massa de hipsters?
Shane encolheu os ombros.
— Saúde é riqueza.
Cece acenou com o braço para o palco, com um floreado.
— Shane Hall, senhoras e senhores!
Shane entregou o microfone que tinha na mão a Cece, passou as
mãos húmidas pelas calças de ganga, não olhou na direção de Eva
e voltou para o público, que o aplaudia sem moderação.
Ainda havia mais 20 minutos de discussão, mas a mesa-redonda
estava efetivamente terminada. Shane roubara-lhes o palco.
E Eva estava um caco.
T
CAPÍTULO 7
TU PRIMEIRO
rinta minutos depois, os espetadores ainda estavam
aglomerados em volta dos oradores, a conversar com eles e a
pedir a Belinda e a Khalil para autografarem os livros que traziam
nas malas. Ninguém trouxera nenhum livro da série Amaldiçoados
para Eva assinar, mas ela ficou subitamente assoberbada com um
influxo de pessoas desejosas de a ouvir falar sobre a saga de
«fantasia feminista» que escrevera. O encantador fã de
Amaldiçoados com o chapéu estava a fazer de equipa de rua
unipessoal de Eva, saltando de grupo em grupo a pregar o
evangelho segundo Sebastian e Gia.
Era tudo o que Eva esperara que acontecesse. Estava finalmente
no radar de um novo grupo da população que comprava livros.
Tipos literários. Pessoas que iriam escrever sobre ela no Twitter e
no Snapchat. Eva iria ser alvo de falatório e (se tudo corresse bem)
deixar de ser uma escritora de nicho e tornar-se uma voz importante
no mundo dos livros. Uma líder de pensamento! Alguém cujo filme
de sexo interespécies as pessoas pagariam para ver!
Porém, naquele momento, não era nada disso que Eva sentia.
Tanto Belinda como Cece tentaram acercar-se delacom um brilho
voraz e mexeriqueiro nos olhos. Mas Eva encontrava-se
convenientemente envolvida numa nova conversa de cada vez que
isso acontecera. Não estava capaz de as encarar. Ainda não. Por
onde é que iria começar?
Com o coração acelerado, olhou de relance para Shane, que se
encontrava no outro lado da sala. Visivelmente desconfortável com
a multidão de fãs que o rodeava, conseguira escapar para uma
esquina ao fundo. (O Shane de 2019 sentia-se mais à vontade no
meio de pessoas do que o Shane de 2004, mas continuava a não
ser um animal social.) Fingia estar a falar ao telefone. Eva sabia que
ele estava a fingir porque ele tinha o telefone no ouvido, mas não
estava a dizer nada. E Eva sabia-o porque não desviava os olhos
dele.
Ele também ia permitindo que o olhar lhe fugisse na direção dela.
Aqui e ali, e, depois, como se não fosse capaz de se controlar…
constantemente. Estava a deixá-la zonza. Tudo aquilo estava a
deixá-la zonza. A palpitação seca nas têmporas. Os saltos
impossíveis dos botins. O vestido de gaja boa. Por alguma razão,
ficara mais apertado e estava a oprimi-la como película aderente.
Eva estava sempre a ajeitá-lo em volta das ancas. Era uma amostra
de tamanho 34, que, na verdade, era um tamanho 32. E Eva vestia
o 36, mas 38 em TPM. Tudo isto, a juntar à violenta colisão entre a
sua vida passada e presente, significava que ela não conseguia
respirar há horas.
O telefone tilintou com uma enxurrada de mensagens de Audre, a
censurá-la por ela se ter esquecido de comprar os materiais de que
a filha precisava para poder fazer o trabalho final de arte da escola
sobre «ícones feministas»:
Hoje, 19h35
Minha Bebé
Mãe, esqueceste-te de me comprar os materiais pró meu retrato da avó Lizette! É pra
sexta! Não consigo acabá-lo sem ter as penas pró cabelo mas não td bem continua a
comprometer a minha criatividade artística até logo bjs
Por uma vez, decidiu ignorar a filha. Também estava a tentar não
pensar na vergonha que sentia por deixar Audre acreditar que a avó
era um ícone feminista. Revisionismo histórico, na melhor das
hipóteses. Mentira absoluta, na pior.
O telefone voltou a tilintar, a notificação de uma nova publicação
do maior grupo de fãs de Amaldiçoados no Facebook. A
moderadora era uma enérgica dona de casa do Vermont, cujo
abastado marido, um distribuidor de árvores de Natal, financiara as
visitas que ela fizera a todos os eventos de todas as digressões de
Eva. @GagaForGia era a maior fã de Eva. E a mais dotada.
O Grupo de Seguidores de Amaldiçoados
Mexerico a chegar de uma cena qualquer de escritores no Museu de Brooklyn. A
nossa Eva (mais uns desconhecidos) falou numa mesa-redonda sobre racismo,
ou algo do género. Fontes dizem que UM DE NÓS estava em palco! Um Escritor
Famoso® chamado Shane Hall? E fartou-se de ELOGIAR a série Amaldiçoados.
Além disso, sabem a assinatura do Sebastian que a Eva tem no pulso? O «S»
em ziguezague?
O tal Shane tem um «G» no pulso dele. NO MESMO LUGAR, O MESMO
TRAÇO EM ZIGUEZAGUE. O «G» é a inicial de Gia, claro. Ele é obcecadoooo.
Mas o enredo adensa-se, amigas. Todas sabemos que a Gia não escreve
utilizando o alfabeto fenício. E a assinatura dela nem sequer é mencionada nos
livros.
E há mais. O Shane Hall tem OLHOS DE BRONZE. Como o Sebastian.
Como sempre, deixem as vossas previsões sobre o enredo do Livro 15 nos
comentários. E #mantenhamseamaldiçoados.
O estômago de Eva caiu-lhe aos pés.
Nuns meros 45 minutos, a sua vida profundamente privada
tornara-se uma telenovela pública.
Eva não fazia a mínima ideia por que razão Shane decidira
aparecer tão estrondosamente na sua vida naquela segunda-feira à
noite, mas sabia uma coisa: Shane tinha de se ir embora. Não
nessa noite, mas nesse preciso momento.
A urgência não era por cauda de Shane, na verdade. Eva tinha
medo daquilo que ela havia sido com ele. Descontrolada.
Irresponsável. Um impulso selvagem e interminável. Fizera de tudo
para enterrar aquela adolescente problemática. E, de repente, ali
estava ele a desenterrá-la.
Dois anos depois de Shane, Eva aterrara em Nova Iorque com um
livro novo, dinheiro novo e um nome novo. Genevieve Mercier
tornara-se Eva Mercy com toda a naturalidade. E Eva Mercy
dedicara-se a construir uma vida tão segura como um filme da
Disney. Casara-se com o homem mais descomplicado à face da
Terra e depois divorciara-se da forma mais amigável possível. Vivia
no bairro mais familiar de Brooklyn. A série Amaldiçoados era
obscena, é certo, mas a recusa em escrever algo novo? A
segurança levada ao extremo.
Mas… a verdade é que às vezes pensava nele. Deitada, sozinha,
na cama de um hospital às duas da manhã, ou durante períodos de
bloqueio criativo. Ele aparecia-lhe nas franjas dos pensamentos.
Sem rosto, apenas uma sensação. O cheiro quente a baunilha
mentolada que ele exalava. A suavidade agreste da pele dele, como
veludo sobre uma superfície irregular.
Haviam-se mantido longe do caminho um do outro durante 15
anos. Eva tinha de descobrir porque é que ele estava ali agora. E
estava disposta até a oferecer os pontos que acumulara no cartão
American Express para o ajudar a comprar um bilhete de avião só
de ida. Precisava que Shane desaparecesse.
Voltou a sentir os olhos dele fixados em si. Com um ligeiro aceno
de queixo, ele chamou-a para o canto da sala onde se encontrava.
Com um olhar severo, Eva fez um gesto a dizer-lhe para ir ele ter
com ela. A situação já era suficientemente tensa. Não se iria pôr a
coxear pela sala de saltos altos.
Shane assentiu com a cabeça. Hesitou. Depois, enfiou os punhos
nos bolsos e encaminhou-se para junto dela.
Eva guardou o telefone na mala. Quando voltou a erguer a
cabeça, lá estava Shane. Mesmo à sua frente.
A sala ressoava de conversas, mas, para Eva, o bulício apagou-
se, transformando-se num zumbido silencioso. Céus, estaria Shane
mais alto? Parecia tão à vontade. Tinha os ombros tão largos; era…
muito. Demasiado.
Eva disse a si própria que tinha de respirar. Não era aquele o
momento. Não iria estar ali a admirá-lo em público. Depois da
pequena atuação de ambos em palco, tinham uma assistência.
— Olá, desconhecido — disse, encolhida da cabeça aos pés.
— Oi.
Os olhos de Shane fixaram-se nos dela. O estômago dela revirou-
se.
Estás bem. Limita-te a dizer o que tens a dizer e põe-te a andar.
Fá-lo agora…
— Podemos encontrar-nos…
— Queres…
— Desculpa, tu primeiro.
— Não, tu.
Eva concentrou-se, endireitou os ombros e começou de novo. Era
excruciante.
— Podes encontrar-te comigo no Kosciusko Café, logo a seguir à
Eastern Parkway? Amanhã de manhã, às dez?
Shane raramente fazia o que lhe mandavam. Mas, desta vez,
assentiu vigorosamente com a cabeça.
— Sim, vamos fazer isso.
— Boa — disse Eva. Depois, começou a balbuciar de tensão. —
Podia… hum… ser agora, mas… tenho de ir buscar uma coisa para
um projeto de arte da minha filha. Penas. Hashtag vida de mãe!
Além disso, tenho de me livrar deste vestido.
Depois enfiou-lhe um papel dobrado na mão. Era o número dela,
rabiscado num recibo da Hale and Hearty que tinha na mala.
— Caso precises…
Shane pô-lo no bolso das calças de ganga. Depois, parou por um
segundo.
— Olha… Eu não sabia que ias estar cá.
— Agora não.
— A sério, o teu nome não estava no convite. Eu nunca
apareceria assim de repente…
— Agora não.
Eva deveria afastar-se naquele momento. Mas não se conseguia
mexer. Ficou ali, especada, as têmporas a latejar, o coração a
ressoar. As pessoas saíam aos magotes do auditório, faziam planos
para o resto da noite, tiravam fotografias. Davam risadas. Tudo
normal. E Shane e Eva estavam ali no meio. A ser tudo menos
normais.
Com uma impulsividade que Eva julgava ter perdido para sempre,
inclinou-se arrojadamente na direção de Shane, reduzindo o espaço
entre os dois. Estavam perto. Demasiado perto.
— Uma coisa — sussurrou ela, os lábios junto ao maxilar dele.
Não queria que mais ninguém ouvisse. — Antes que me esqueça.
— O quê?
— Para de escrever sobre mim.
Só Eva seria capaz de se aperceber da mudança na expressão
de Shane. Viu o estremecimento. O lábioa curvar-se devagar, de
satisfação. Os olhos âmbar, cor de bronze, a brilhar. Era como se
ele tivesse estado anos à espera de ouvir aquelas palavras. Como
se a rapariga cujo rabo de cavalo ele andara a puxar no recreio o
ano inteiro o tivesse finalmente afastado com um empurrão. Parecia
regozijado.
Numa voz rouca e baixa e tão, tão familiar, Shane disse:
— Tu primeiro.
A
CAPÍTULO 8
ASSIM, COM UM BEIJO,
EU MORRO
2004
s têmporas de Genevieve latejavam sem parar. O confronto com
o namorado pedófilo de Lizette, no início daquela manhã,
deixara-lhe a cabeça em cacos. E o sol a brilhar intensamente
no pátio da escola não estava a ajudar.
Era a primeira segunda-feira de junho e o primeiro dia de
Genevieve na escola secundária de Washington, DC.
Era certo que ser uma aluna nova no final do último ano era
estranho. Mas Genevieve fazia da inadaptação uma arte. Nas
quatro escolas secundárias antes daquela, fora carne para canhão
das raparigas genericamente más, ou simplesmente ignorada.
Porém, todas as noites, com a regularidade de um relógio, sacava
do bloco de notas e corrigia todos os males. Reescrevia o dia a seu
favor. Transformava-se em super-heroína. Vingava-se de toda a
gente na ficção.
A culpa é toda minha. Quem é que haveria de querer ser minha
amiga?
O seu rosto estava habitualmente contorcido num esgar
provocado pela dor. No que dizia respeito à conversa, tinha duas
atitudes: causticamente direta ou profundamente sarcástica. Não se
ria. Genevieve não fazia por ser antipática, mas, tal como
acontecera naquela manhã, era habitual já ter vivido cinco vidas
quando chegava à escola. Ainda não tinha aprendido a pôr a
máscara de estar bem, não obstante todos os desastres pessoais.
E, até então, o 12.º ano havia sido um desastre. Sempre
conseguira manter notas de excelência. Mas, naquele ano, as
enxaquecas tinham atingido dimensões góticas. Com demasiada
dor para ser capaz de se focar na escola, começara a faltar e a
passar vários dias na cama, ora numa agonia paralisante ora
dopada com os analgésicos ora numa nauseante mistura de ambos.
As notas máximas transformaram-se em suficientes menos, fazendo
com que Princeton retirasse a sua admissão. Princeton era a sua
salvação. Sem Princeton, o que é que a iria salvar?
Na banheira, naquela manhã, Genevieve tivera uma epifania.
Chegara o momento de ter um amigo. Queria conhecer os segredos
de alguém. E precisava que alguém conhecesse os dela.
Washington seria um novo começo. Iria escolher alguém e
mergulhar de cabeça. Seria assim tão difícil? Pessoas horríveis
tinham amigos. O. J. Simpson tinha amigos.
A última escola que frequentara, em Cincinnati, fora difícil. Mas a
West Truman era ainda mais difícil. O recreio estava sempre em
erupção com miúdos num caos tremendo e sem professores à vista.
Os alunos pareciam retirados de um vídeo dos G-Unit, com t-shirts
sem mangas retro, botas Timberland e extensões de cabelo
coloridas. Batidas frenéticas de percussão go-go explodiam de
rádios portáteis e metade da escola usava t-shirts Madness.
Por sua vez, a aparência de Genevieve era uma mistura de
«Maria-Rapaz» com «Estou-me a Cagar». No primeiro dia na escola
de Washington, estava a usar uma velha t-shirt de um concerto de
Nas, aquando da digressão do álbum Illmatic, calças de malha que
cortara para transformar em calções e ténis Air Force 1. Os caracóis
em espiral estavam apanhados num enorme rabo de cavalo em
cima da cabeça. Como era habitual, escondia a compleição
magricela numa camisa de trabalho masculina demasiado grande.
Deixou-se ficar junto à bancada, num cemitério de cigarros. A
operação Amigo parecia condenada ao fracasso. O pessoal do pátio
da escola parecia impenetravelmente fechado. No entanto, havia
alguns alunos sozinhos, dispersos pelas bancadas. Semicerrando
os olhos sob o sol, perscrutou as filas em busca de um rosto
amigável.
Ele estava sentado na fila superior das bancadas, encostado à
parede de tijolo altamente grafitada. T-shirt e botas Timberland.
Tinha um livro pousado no colo e estava a lê-lo com a testa franzida
em concentração, enquanto mordia o lábio. Parecia que estava a
viver as palavras.
Eu também leio assim, pensou ela.
Então, ele virou a página e ela vislumbrou-lhe os olhos castanhos
salpicados de dourado. O sol bateu-lhe nos olhos e eles reluziram
num brilho de bronze. Seria um efeito da luz? Aquele rapaz irradiava
uma paz tremenda. Um anjo entre os mortais.
Genevieve confiava em rapazes bonitos. Sentia-se segura com
eles porque eles iam atrás da rainha do baile e não dela. O que a
preocupava eram os rapazes do seu nível.
Subiu a bancada instável. Foi então que reparou no gesso
desgastado no braço esquerdo dele. Sem assinaturas. Aproximou-
se um pouco mais e viu a cicatriz fresca de um golpe que lhe
atravessava o nariz. Mais um passo e viu que os nós dos dedos (em
ambas as mãos) estavam pisados em tons de roxo e de verde. E as
pupilas estavam muito, mesmo muito dilatadas.
OK, já não parecia tão angelical. Mas ela estava agora à frente
dele — era demasiado tarde para voltar para trás. Ele ergueu a
cabeça, olhou para ela com amena curiosidade e voltou ao livro.
Another Country, de James Baldwin.
— Olá — disse ela. — Posso sentar-me aqui?
Silêncio.
Antes que perdesse a coragem, sentou-se junto a ele.
— Sou a Genevieve Mercier. — Pronunciou Jon-vii-EV Mare-sii-
EI.
Ele olhou para ela com o cenho franzido.
— É francês.
Ele lançou-lhe um olhar de «Não me digas».
— Posso sentar-me aqui?
— Não.
— És um idiota?
— Oui.
Experiência social falhada. Genevieve já deveria saber que beleza
não era equivalente a perfeição. Vivia com uma antiga Miss
Louisiana, que tinha uma aparência imaculada, mas, certa vez,
limpara o apartamento todo com um lenço de limpeza de rosto da
Neutrogena.
Ainda faltavam 15 minutos para a campainha tocar — e,
entretanto, o sol massacrava-lhe a cabeça. Desajeitadamente,
vasculhou a mochila e retirou um frasquinho de vidro redondo do
tamanho da palma da mão que continha óleo essencial de lavanda e
hortelã-pimenta e esfregou o óleo nas têmporas. O ardor era
agradável.
Então, reparou que ele estava a observá-la, o livro abandonado.
— Tenho enxaquecas — explicou ela. — É tão mau que quase
nunca mexo a cabeça. Por exemplo, se quiser olhar para a direita,
tenho de virar o corpo todo. Assim.
Rodou sobre a anca para se virar para ele. A expressão dele era
carregada e denunciava um misto de desconfiança e confusão.
— Isto é alguma armadilha? Alguém vai saltar para cima de mim
daqui a pouco? — A voz dele denotava sonolência e aborrecimento.
— És alguma traficante? Desculpa lá se te devo dinheiro.
— Pareço-te uma traficante?
— Já tive raparigas a vender. — Ele encolheu os ombros. — Sou
feminista.
— Eu não te armaria uma cilada para saltarem para cima de ti.
Trataria eu do assunto.
Ele olhou para a constituição delicada de Genevieve.
— Tu és do tamanho de um rebuçado.
— Tenho complexo de Napoleão.
— As raparigas não podem ter esse complexo.
— Certo, feminista. — Genevieve revirou os olhos, provocando
um pequeno tornado nas têmporas. Passaram duas raparigas por
perto, que olharam para eles e deram uma risadinha antes de
voltarem a desaparecer.
Ele olhou para Genevieve com o semblante carregado.
— Porque é que estás aqui?
— Estou a tentar fazer amigos — disse ela.
— Eu não tenho amigos.
— Porque é que será?
— Não sei o que dizer às pessoas. — Ele inseriu a parte da
borracha de um lápis no gesso e, num movimento lento, fê-la
deslizar para a frente e para trás. — De que é que as pessoas
normais falam? Do baile de finalistas? Dos Murder, Inc.?
— Não faço a mínima ideia — admitiu ela. — Mas não há
problema! Podemos ficar aqui sentados em silêncio.
— Fica à vontade. — Ele voltou ao livro.
Bem, ele não era propriamente muito acolhedor. Mas pelo menos
ela já conhecia alguém naquela escola enorme e intimidante. Sem
saber o que fazer naquele momento, protegeu os olhos do sol com a
mão e esfregou mais óleo nas têmporas.
Sentiu o rapaz a observá-la novamente. Estava prestes a explicar-
lhe osbenefícios da lavanda para o alívio da tensão quando ele tirou
os Ray-Ban do bolso das calças de ganga e lhos estendeu. Ela pô-
los, admirada com a generosidade dele. Ele expirou (com
resignação?), fechou o livro e encostou-se à parede de tijolo com os
olhos fechados.
Genevieve não foi capaz de evitar fitá-lo. Nunca tinha visto um
rosto como o dele. Sentiu o estômago a revolver-se e mordeu o
lábio. Não. Não podia ter um fraquinho por ele. Não confiava em si
própria; ia sempre longe demais.
Mas olhar para ele não faria mal. Estudou-lhe a expressão
sonhadora e distante, perguntando-se o que teria ele tomado.
— Morfina? — indagou ela. — Cetamina?
Ele abriu um olho.
— Tens a certeza de que não és traficante?
— Tenho receitas médicas legais. Basicamente, sou alquimista. —
Ela fez uma pausa. — «Oh, fiel alquimista, quão portentoso é o teu
bálsamo.»
— «Assim, com um beijo, eu morro» — respondeu ele, pensativo.
— Keats?
— Shakespeare! — exclamou Genevieve. — Sabes de que peça?
— Romeu e Julieta — resmoneou ele.
— És escritor? Ou só um escravo de Literatura Inglesa
Avançada?
Ele encolheu os ombros.
— Eu também escrevo — disse ela. — Escreves alguma coisa de
jeito?
O mesmo encolher de ombros.
Ela sorriu com afetação.
— Eu sou melhor.
Então, ele riu-se. Foi algo improvável e surpreendente, como ser
atropelada por uma fuga de unicórnios em Narnia. Céus, ele era
demasiado. Ela precisava de uma distração.
— Estou… com fome — deixou escapar desajeitadamente. —
Queres um pêssego? Tenho dois.
Ele negou com a cabeça. Genevieve abriu o fecho da mochila e
desenterrou um pêssego e um canivete delicado e afiadíssimo.
Pousou os cotovelos nos joelhos, apertou a mola para fazer saltar a
lâmina e colocou-a sobre o nervo do pêssego. Ficava sempre tão
satisfeita ao sentir o retesamento da pele do fruto sob a lâmina. A
tensão. Com uma pressão suave, a pele rompeu-se e o sumo
escorreu. Genevieve apanhou-o com a língua. Depois, cortou um
pedaço, usando o polegar como base, e levou-o à boca.
Enquanto mastigava ruidosamente, olhou de relance para o seu
novo amigo, que parecia ter acabado de ver o arco-íris pela primeira
vez.
— É assim que comes pêssegos?
— Gosto de facas.
Ele pestanejou. Uma vez. Duas vezes. Depois, abanou
rapidamente a cabeça, como que a descodificar o cérebro.
— Não, meu — disse ele. — É melhor bazares. Estou a tentar não
me meter em sarilhos.
— Sarilhos? Mas…
— Tu és perigosa. E eu sou pior. Eu seria um perigo para a tua
saúde.
— Eu já sou um perigo para a saúde. — Genevieve arrancou os
óculos de sol da cara para dar ênfase. — Agora somos amigos!
Disseste que não sabias como falar com as pessoas, mas estás a
falar comigo!
— Eu disse que não sabia falar com pessoas normais. — Ele
olhou para ela. — Tu não és normal.
Ela não tinha a certeza, mas aquilo pareceu-lhe um elogio. Sentiu-
se compreendida. Isto era algo novo. E lá estava aquele revirar no
estômago de novo.
— Como é que sabes que eu não sou normal? Acabámos de nos
conhecer.
— O que é que és, então?
Genevieve pousou o queixo nas mãos, os cotovelos nas coxas.
Não sabia o que responder. O que era ela?
Estava cansada. Cansada de estar doente, cansada de se meter
em sarilhos com o que lhe saía da boca, cansada de mudar de
casa, cansada de lutar contra homens que julgavam que mães e
filhas faziam parte do mesmo pacote e cansada de odiar quem era.
Talvez não devesse dizer-lhe a verdade. Era demasiado torpe.
Mas talvez a honestidade fosse o que precisava para fazer um
amigo.
Sê simpática. Sê afável.
— Eu não sou simpática — admitiu, baixinho. — Nem afável.
Ele assentiu com a cabeça, devagar. Depois, coçou o maxilar, a
olhar para as botas.
— Eu também não.
Foi assim que começou. Com aquela pequena confissão.
Genevieve nunca tinha contado a ninguém que não estava bem, e,
pelos visto, ele também não. Ela virou a cara na direção dele para
falar. E ficou paralisada. Porque os olhos dele já estavam pousados
nela.
Algo estalou entre eles, um entendimento, um impulso mútuo. E
foi tão extraordinário, tão involuntário, que Genevieve chegou
mesmo a resfolegar. Pasmada, entreabriu os lábios. Depois, deixou
de conseguir respirar por completo, porque ele arrastou lentamente
o olhar sonolento e pedrado dos olhos dela para a boca dela e, de
seguida, de volta para os olhos. Um sorriso seguro e satisfeito abriu-
se no rosto dele. Hesitante, ela retribuiu o sorriso.
Depois, acabou. Ele voltou ao livro, como se aquele olhar
inacreditavelmente íntimo não tivesse acontecido. E o mundo de
Genevieve saiu dos eixos. Tinha, porém, uma certeza.
É meu destino conhecê-lo, pensou.
— Entããão — murmurou —, como é que te chamas?
— Já te disse, não tenho amigos. Deixa-me amuar em paz.
— Não tentes resistir. Porquê o gesso?
Ele suspirou.
— Estou sempre a partir o braço.
— Caramba. Falta de cálcio?
— Não. Faço de propósito.
Genevieve olhou para ele, boquiaberta. A campainha tocou. Uma
voz de barítono gritou algo nos altifalantes e a agitada população de
alunos acorreu ao edifício de tijolo vermelho. Nenhum dos dois se
mexeu.
— Tu não partes os teus próprios ossos — sussurrou Genevieve.
— És só um antissocial a tentar assustar-me para que eu te deixe
em paz.
— Está a funcionar?
— Não. — Genevieve estava atónita. — O que é que se passa
contigo?
Ele sorriu.
— Muita coisa.
— Não consigo imaginar fazer algo tão doentio.
— Não?
Ela seguiu-lhe o olhar, que viajara para o braço dela. A camisola
de homem que ela trazia vestida tinha-lhe descaído do ombro. E as
filas de cortes horizontais superficiais na parte de cima do braço
ficaram à mostra. Alguns estavam cobertos com pensos rápidos, e o
resto eram crostas ou tinham-se transformado em cicatrizes.
Genevieve usava sempre uma camisola grande para esconder
aqueles cortes, mas não era a primeira vez que esta lhe descaía
dos ombros na escola. Tivera sempre pronta a explicação de que
eram eczemas. Nunca ninguém perguntara.
Ela puxou a manga de volta para cobrir o ombro.
— Tu não sabes como é a minha vida — atirou.
— Põe-me à prova — disse ele, os olhos galácticos a comê-la
viva.
Uma corrente selvagem percorreu o corpo dela, algo primitivo,
bruto, desesperado, confuso. Seria por estar a ser vista por quem
era realmente? Por ser testemunhada? A sensação era inebriante e
aterradora. Genevieve ansiara por alguém que partilhasse segredos
consigo. Mas não esperara que alguém a batesse, loucura por
loucura. E não esperara que essa pessoa fosse um rapaz, um rapaz
com aquele aspeto, que olhava para ela daquela maneira.
Sem que ela se apercebesse, ele conseguira penetrar como uma
serpente na cabeça dela e cravar-lhe as presas no cérebro,
envenenando-a de esperança. Um truque cruel.
Genevieve lançou-se para a frente e agarrou-lhe a t-shirt,
puxando-o para o seu nível.
— Para de olhar para mim com se eu estivesse com a tua pila na
boca — disse ela, a ferver, ainda com o pêssego na mão esquerda,
entrefechada. — Já gostas de mim? Achas que és original? Os
rapazes adoram torturar a rapariga esquisita, a anormal. Mas sabes
uma coisa? Já estou um caco, por isso…
Com uma rapidez ferina, ele puxou-lhe o punho que lhe agarrava
a t-shirt e dobrou-lhe o braço atrás das costas. Genevieve
contorceu-se e expirou. Um tremor delicioso rasgou-a por dentro.
Ele manteve-a assim por um instante e depois levou a boca à
orelha dela.
— Não.
— Não o quê?
— Não digas que és anormal.
Largou-a. Depois, arrancou-lhe o pêssego da mão e deu uma
dentada deliberadamente provocadora e húmida. Limpou a boca
com as costas da mão.
— Sou o Shane — disse, exibindo um brilho de triunfo nos olhos.
E foi-se embora.
Genevieve encontrou a sua sala de aula. Ao espreitar à porta,
deparou-se com o caos. Alguns miúdos estavam a dançar num
círculo de breakdance, uma rapariga estava a desentrançar o cabelo
e um rapaz estava a bater com a secretária no chão. Havia quatro
miúdos a dormitar nas cadeiras e um outro no chão. Junto ao
quadro, o professor estava a explicar a fotossíntese, matéria que
Genevieve aprendera no 5.º ano, na escola privada.
Num canto, aofundo, sentado numa cadeira demasiado inclinada
para trás, estava Shane.
Genevieve não estava preparada para o ver depois da cena
monumental que tinham experienciado, e que ela ainda não era
capaz de definir. Saíra da bancada a cambalear, a sentir que tinha
entrado no olho do furacão.
Rodou o anel de camafeu que roubara da caixa de joias de
Lizette. Costumava deixá-la mais calma. Mas não naquele
momento.
Respirou fundo e entrou na sala. A turma foi-se acalmando aos
poucos até chegar a uma vigília silenciosa. Trinta pares de olhos
seguiram-na até uma secretária vazia na fila da frente. Genevieve
sentou-se.
Em reação à súbita calmaria, o professor virou-se.
— Quem és tu?
— Genevieve Mercier. Peço desculpa… perdi-me.
— Estamos todos perdidos. — O professor Weismuller era magro
como um espeto e tinha uma tez amarelada. Parecia que tinha
mononucleose. — Turma, vamos dar as boas-vindas à Genevieve.
— Mas que raio de nome é esse? — bradou uma rapariga.
— Jovem, porque é que o nome dela parece o do Pepé Le Pew?
Genevieve afundou-se na cadeira. O professor Weismuller virou-
se para o quadro.
— Esta cabra deve pensar que é a Aaliyah por ter meia tigela de
cabelo.
— Não é dela — respondeu uma rapariga alta, numas calças de
ganga Apple Bottom, sentada atrás de Genevieve.
Genevieve virou-se para a encarar. Do canto ao fundo, Shane
olhou para Genevieve. E abanou a cabeça. Um aviso que ela
ignorou.
— O que é que disseste?
— Eu disse que esse cabelo não é teu, vadia. E depois?
— Sim, e depois? — interveio um rapaz franzino que apareceu ao
lado da Apple Bottom, presumivelmente o namorado dela. Toda a
turma estava a olhar para Genevieve. Ela estava cercada. A única
pessoa que conhecia encontrava-se quatro filas mais atrás.
Genevieve não iria levar a melhor.
— Nada — murmurou.
— Bem me parecia — disse a Apple Bottom, e a turma voltou
para a barafunda anterior. Atrás dela, Genevieve ouviu O Namorado
a sussurrar para a Apple Bottom:
— Sim, faz essa merda.
Seguiu-se uma calma elétrica. Subitamente, o pescoço de
Genevieve foi puxado para trás, com força, e a cabeça ficou
estranhamente leve. Ela virou-se para trás, e a Apple Bottom estava
a com três quartos do seu rabo de cavalo numa mão e uma tesoura
na outra. O Namorado casquinava.
— Vou chamar o diretor Miller — disse o professor Weismuller,
com uma falta de urgência robótica, e saiu da sala.
Genevieve levou a mão à nuca, onde já não havia cabelo. Uma
fúria enrubescida apoderou-se do seu corpo, e ela empurrou
violentamente a secretária da Apple Bottom, fazendo-a cair de
costas. A Apple Bottom berrou, ilesa, mas presa debaixo da cadeira.
— Mata essa cabra nova! — gritou O Namorado para ninguém.
— Não — retorquiu Shane, levantando-se. — Tu. Luta comigo.
Toda a gente olhou para O Namorado. Era claro que não era o
que ele queria fazer.
Uma rapariga disse:
— Não. Quando o Shane começa com as merdas dele, eu estou
fora. Não se vão pôr todos a fazer merda e a fazer com que me
suspendam agora que estou quase a acabar a secundário.
Pegou na mochila e foi-se embora.
— Luta comigo, mano — repetiu Shane. Estavam quase testa
com testa. O resto da turma formou um círculo largo em volta deles.
O Namorado desferiu um murro fraco, que acertou no nariz de
Shane. Shane cruzou um braço sobre o peito. O Namorado bateu
com mais força. Depois, Shane sussurrou-lhe algo ao ouvido,
fazendo com que ele recuasse verdadeiramente e o esmurrasse na
têmpora. A turma começou a gritar «Dá cabo dele, dá cabo dele», e
o Namorado atirou Shane para o chão, os punhos a voar. Shane
tinha o nariz e o lábio a sangrar, mas não ripostou.
— Parem! — gritou Genevieve. — Meu Deus, Shane, é só cabelo!
De repente, Shane empurrou o rapaz de cima de si e levantou-se.
Tinha a respiração entrecortada, errática. Então, ergueu o braço
magoado, o que estava engessado, e atingiu o Namorado na maçã
do rosto com uma bordoada de uma força assustadora. O
Namorado caiu.
Shane encostou o braço aleijado ao peito, o osso novamente
quebrado. Deixou-se ficar, a tremer, com os dentes cerrados, o
brilho a esvair-se-lhe da pele. Depois, lançou um sorriso sangrento a
Genevieve e caiu, desamparado. Foi a coisa mais aterradora e bela
que ela vira na vida.
— Alguém vá buscar ajuda. Ele está…
A última coisa que Genevieve viu foi o punho da Apple Bottom a
centímetros do seu nariz e, depois, um sem-fim de luzes brilhantes.
Seis horas depois, Genevieve e Shane estavam deitados em camas
lado a lado, num espaço fechado com cortinas das urgências do
United Medical Center. Tinham estado ali o dia inteiro com a
orientadora escolar, a Sra. Guzman, alcandorada entre ambos numa
cadeira dobrável. O Namorado tivera alta e fora para casa com a
avó e uma maçã do rosto fraturada. A Apple Bottom saíra com a tia
e um ombro ferido. Shane tinha o braço ligado com um gesso novo
e, entre o lábio superior e a sobrancelha esquerda, um total de 14
pontos. Genevieve fora a que se saíra melhor, com um olho negro
pavoroso e um corte de cabelo ainda mais pavoroso.
Tanto ela como Shane haviam sido suspensos, mas, como tinham
17 anos e ainda eram menores, não podiam ter alta legalmente sem
que um pai ou tutor os fosse buscar. A Sra. Guzman não conseguia
contactar Lizette, o que não era surpresa nenhuma.
Também não conseguia encontrar o tutor de Shane. Pelos vistos,
Shane morava numa instituição de acolhimento, e nenhum dos seus
responsáveis estava contactável.
Por isso, continuavam ali deitados. À espera. Enquanto a Sra.
Guzman saía por uns instantes para o 37.º cigarro.
Genevieve estava em agonia. Aquele murro deixara-lhe o cérebro
a chocalhar. Os médicos das urgências trataram-lhe o olho negro,
mas, apesar dos pedidos cada vez mais assustados que ela fazia,
só lhe tinham dado um anti-inflamatório para a cabeça. Com o nível
de dores que sentia, era tão útil como um M&M.
Sem conseguir parar de tremer, enrolou-se sobre si própria,
cravando as unhas no antebraço para se distrair.
— Genevieve? — sussurrou Shane, da cama onde estava
deitado.
— Jon-vii-EV — resmungou ela, por entre dentes cerrados.
— Estás bem?
— Não.
Ela viu-o a espreitar para o corredor e a fechar a cortina. Depois,
Shane levou a mão ao bolso das calças de ganga, tirou uma
saqueta de comprimidos e pegou num copo descartável com água.
Deu-lhos.
— Oxicodona ajuda?
— Desfá-lo — disse ela, com voz rouca.
Shane tirou um cartão multibanco (nome desconhecido) daquele
bolso mágico e esmagou os comprimidos em quatro linhas
volumosas de pó, num tabuleiro médico. Pôs o tabuleiro com
cuidado debaixo do nariz dela, segurou-lhe a cabeça com a mão
incólume e ela inalou as linhas, uma a uma. O pó desceu com
dificuldade, mas não demorou a fazer efeito: a dor amainou, o rosto
dela relaxou, os músculos ficaram bambos. Tão bom. A oxicodona
não aniquilava a dor, mas tornava-a irrelevante.
Shane afastou os caracóis destruídos do rosto de Genevieve. Ela
puxou a mão dele para debaixo da bochecha dela. Era ali o seu
lugar.
— És o meu melhor, melhor, melhor amigo — disse ela, com um
suspiro, ébria e apalermada.
— Então, é melhor eu aprender a pronunciar o teu nome.
— Não me interessa o que me chamas — balbuciou ela. — Desde
que me chames.
Shane sorriu.
— Vamos.
— Para onde?
— Eu conheço um lugar. Mas ninguém quer saber onde estou.
Tens pais que se preocupam contigo?
Genevieve pensou em Lizette em casa, à espera de que a filha a
acordasse para ir para o emprego nojento no bar asqueroso do
namorado.
A resposta era óbvia.
Seguiram pelo corredor fora, calmos, serenos. Porém, logo que
chegaram às portas de saída, deram as mãos e desataram a correr.
Onde quer que Shane fosse, ela também iria.
TERÇA-FEIRA
S
CAPÍTULO 9
UM RUBOR VERBAL
hane chegou ao Kosciusko Café, que não era café nenhum, 25
minutos mais cedo. Era um restaurante barato e fora de moda
com 60 anos, uma reminiscência dos tempos em que Crown
Heights ainda era um bairro polaco. A decoração ficara congelada
em 1964: mesas de fórmica, trilhos de iluminação fluorescente,
bancos de vinil vermelho brilhante e ventoinhasde teto, em vez de
ar condicionado. De acordo com a consulta apressada de Shane no
Yelp, a especialidade era lasanha. Mas ele sentia-se demasiado
ansioso para comer.
Na verdade, estava demasiado ansioso para fazer o que quer que
fosse, a não ser sentar-se a uma mesa ao lado da janela. E esperar.
E acalmar o coração ribombante a ver vídeos de reencontros no
aeroporto no YouTube. (Além de correr, esta era a sua forma de
lidar com o nervosismo.)
Eva entrou de rompante às 10h02. Precipitou-se em direção ao
balcão da rececionista, apresentando-se visivelmente diferente da
figura voluptuosa e insinuante da noite anterior. Estava simples, com
os caracóis desordenados, um top de alças justo, calças de ganga
largas, ténis Air Jordan. Óculos injustamente sensuais. Naquela
manhã, estava ainda mais perigosa — se isso fosse possível.
E Shane transformou-se de um adulto contido num adolescente
babado.
Genevieve. É mesmo ela, toda crescida. Eva. Mas também,
indubitavelmente, Genevieve.
A cabeça de Shane estava uma confusão. Como de costume, ele
aparecera no evento da noite anterior sem pensar muito. Nunca lhe
ocorrera que Genevieve pudesse estar presente. O seu único
objetivo era encontrar Cece e, como quem não quer a coisa, pedir-
lhe os contactos de Genevieve. E se Cece perguntasse porquê?
Bem, Shane não sabia ao certo o que lhe teria dito.
Se tivesse pensado demasiado no assunto, não teria vindo.
Viu Genevieve (Eva — tinha de se habituar ao novo nome) a
sussurrar algo à rececionista. Contudo, ela ainda não o tinha visto, e
ele aproveitou aquele momento curto e secreto para se deleitar a
observá-la. Para tentar conciliar a rapariga com a mulher.
Na adolescência, Genevieve era só ossos, linhas aguçadas, uma
vela de ignição esguia de imprevisibilidade. Algo assustadora. Muito
impressionante. As expressões que fazia eram em HD — transmitia
tudo no rosto. E depois havia a covinha, o raio daquela covinha
adorável na bochecha direita. Surgia quando ela sorria; surgia
quando ela falava; surgia quando ela respirava. Também tinha outra
a condizer na bochecha esquerda, mas menos proeminente. Como
se Deus tivesse atingido a perfeição ao conceber a direita e tivesse
dito: «Estou exausto; assim serve.»
A adolescente havia sido irresistível. Aquela mulher era algo
totalmente diferente. A agudeza suavizara-se. Apresentava-se mais
aprumada e falava com confiança e inteligência. Era uma escritora
de mão-cheia; era uma história de sucesso editorial desde os 19
anos e desempenhava esse papel como ninguém. A fúria de
adolescente tinha-se transformado noutra coisa: poder.
A rececionista apontou para Shane e Eva encaminhou-se na
direção dele. Firme e linda.
E ele percebeu que estava lixado.
Eva sentou-se no banco à sua frente, pousando o saco de pano,
onde se lia «Leitora Negra». E estavam finalmente a sós.
Eva, cujas palavras que escrevia eram suficientemente arrojadas
para inspirar mães conscienciosas a sonhar saltar para cima do
cabo de uma vassoura (ou de um negro atraente) e fugir da vida
quotidiana, disse:
— Então. Hum. Olá.
Shane, cujas palavras que escrevia eram suficientemente líricas
para pôr o enfadonho painel do Prémio Pulitzer a enrolar um charro,
a ouvir o álbum Damn e a ruminar sobre os mistérios paradoxais do
homem, conseguiu dizer:
— Óculos. Gosto.
— Oh. A sério? Hum… O-obrigada — disse ela. — Descobri
que… era míope quando comecei a escrever, pelo que fiz uma
cirurgia LASIK. E fiquei com uma visão perfeita durante muito
tempo, até que, há uns anos, em 2017… não, 2015… a minha visão
começou a deteriorar-se. E o meu muito prestável oftalmologista
hassídico, o Dr. Steinberg, disse-me que eu tinha desenvolvido
astigmatismo. Portanto, óculos. Tenho de os usar agora.
Shane tentou, sem conseguir, evitar sorrir ao ouvi-la dizer aquilo.
As palavras dela eram um rubor verbal.
— A palavra «astigmatismo» é estranha — comentou ele. — Soa-
me sempre a estigmatismo.
— Também existe, mas tem um significado diferente.
— Bem, isto não é nada constrangedor.
— Normalíssimo — disse Eva, bebendo o seu copo de água de
uma só vez.
— Estou… estou um pouco sem fala — balbuciou Shane, ainda
impressionado. — Tu estás igual, mas tão diferente.
— A Cece obrigou-me a usar aquele vestido ontem à noite. E
cabelo liso. — Eva acariciou a franja, nervosamente. — A minha
aparência real é esta.
— Eu sei qual é a tua aparência real — retorquiu ele.
Eva remexeu-se ligeiramente no banco e pegou na ementa
encapada que estava em cima do seu prato.
— Tu também estás diferente — começou ela.
— Em que sentido?
— Tens os olhos abertos.
— Estou sóbrio.
— Estou… admirada.
— Eu também.
— Há quanto tempo?
— Dois anos e dois meses.
— É para durar?
— Digo-te daqui a mais dois anos.
— Não, tu consegues.
Shane sentiu um calor a irradiar-lhe o peito, mas ignorou-o.
— Então. Tiveste de fazer de mim maléfico, hum? Um vampiro?
— Se a carapuça te serve — ripostou Eva. — Tiveste de fazer de
mim uma fugitiva adorável com um coração de ouro?
— Eu não te fiz assim. Era o que tu eras.
Eva tirou uma fatia de pão de sete cereais do cesto e começou a
parti-la ansiosamente. Shane não queria deixá-la sozinha com o que
quer que ela estivesse a sentir. Num sinal de solidariedade, também
pegou num pão.
No momento certo, apareceu uma empregada de mesa para
aceitar os pedidos de bebidas. Era uma mulher espevitada com
mais
de 60 anos, uma faixa de renda na cabeça e um sotaque do Leste
Europeu.
— Só água — disse Eva, afetadamente. — Não, vou querer um
batido de chocolate.
— Duass palhinhass? — perguntou a empregada. Piscou o olho a
Eva e depois olhou para Shane de cima a baixo. — Ora, mas que
belo queque de chocolate.
— Uma palhinha — disse Eva.
Shane analisou a ementa e parou nos sumos naturais, sempre
ciente do seu novo estilo de vida saudável.
— Acho que vou pedir um Sumo Verde de Hortelã e Couve Puro e
Explosivo?
— Não me pareces muito convencido — observou a empregada,
antes de virar costas.
— Então — começou Eva. — Leste todos os meus livros.
— Cada palavra. — Shane levou um pedaço de pão à boca. —
Também leste os meus.
— Com um marcador em punho.
— Tudo o que eu disse ontem foi sentido — assegurou ele. —
Sou o teu maior fã. Agora, sou professor de Inglês, e, enquanto os
meus alunos estão a ler Hawthorne nas aulas, eu estou a ler-te a ti.
— Tu a dar aulas? — O ceticismo de Eva era palpável. — Que
escola é que permitiria que te aproximasses dos alunos?
— Eu mudei. — O sorriso confiante dele conferia-lhe
credibilidade. — Acho que é o que os escritores chamam arco da
personagem.
— Estou a ver. — Eva ergueu a cabeça. — Por falar em
escritores. O teu discursozinho sobre o Amaldiçoados? Foi… tipo…
O que é que estavas…
Shane retraiu-se. Nunca lhe teria ocorrido que haveria de chegar
um dia em que não saberiam o que dizer um ao outro. No passado,
tinham um ritmo puramente instintivo. Uma ligação tácita tão crua
que, minutos depois de se terem conhecido, estavam agarrados.
Mas os adultos racionais não se davam às mesmas liberdades.
Claro que, historicamente, Shane não tinha muito jeito para ser
adulto.
— Diz o que tens a dizer — pediu ele. — O que quer que seja, eu
aguento.
— Está bem. — Eva empurrou os óculos para cima, deselegante
e irresistivelmente. — O teu discurso sobre o Amaldiçoados? Foi
muito. Não podes simplesmente saltar de 2004 para 2019, assustar-
me de morte e depois atirar-me com um… um discurso arrebatado
que parece uma tese de doutoramento sobre os meus livros de
erotismo sobrenatural. Aqueles livros são os meus bebés, e até eu
sei que não são assim tão bons. E ouvir-te a falar daquela maneira?
A ti? Ao fim de 15 anos? Mal conseguia respirar. — Ela arquejou,
exasperada. — Porque é que subiste ao palco ontem à noite?
— Porque a Cece me obrigou.
— Podias ter recusado.
— Verdade. E tu podias ter usado calças de ganga.
— Certo, é justo. A Cece manda em todos nós.
— Queres saber a verdade? Eu fiquei abalado. — Shane pegou
em mais pão. — Não estava à espera de te ver. Quando dei por
mim, está-
vamos lá em cima juntos, e tu falasteno Oito e eu… tive um apagão
e falei demais.
— Na verdade, não estávamos a falar de livros, Shane. Toda a
gente percebeu.
— Eu sei. Foda-se. Recebi um certificado de melhor comunicador
nos Alcoólicos Anónimos. Como é que cheguei a este ponto?
— Boa pergunta — disse ela, com contundência.
Com um incrível sentido de oportunidade, a empregada acercou-
se da mesa com o sumo de hortelã e couve verde-radioativo de
Shane e o batido de Eva.
Shane bebeu um gole e arrependeu-se imediatamente. A hortelã
era horrível. Sabia a batido de Listerine. Engoliu, encheu as
bochechas de ar e expirou, desgostoso. Generosamente, Eva
empurrou o batido na direção dele.
— Obrigado — disse ele, bebendo um pouco. Detestava ser
saudável. — Estou aqui para apresentar os Prémios Littie, no
domingo.
— Não. Tu não fazes cerimónias de prémios. Nem mesas-
redondas. E nunca estás em Brooklyn. Tens tido o cuidado de me
evitar.
— Tenho evitado a vida em geral.
Eva revirou os olhos de forma extravagante.
— É verdade! — insistiu Shane. — E tu chegaste aos píncaros.
Conseguiste entrar em Princeton. Casaste-te, tiveste uma filha linda.
— Como é que sabes o que quer que seja sobre mim? Não estás
nas redes sociais.
— Não, as pessoas são já suficientemente estranhas na vida real.
Não preciso de ver as suas psicoses através de filtros patetas
— replicou ele, com o sobrolho carregado. — Mas sim, em alguns
momentos de masoquismo, andei a fazer pesquisas sobre ti. Tu e a
Audre são como a Thelma e a Louise em versão mãe e filha, com as
vossas visitas a museus e viagens e manifestações. Travis Scott no
Radio City.
Eva aprumou-se com merecida presunção.
— A Audre é uma ótima miúda. Ficou com o melhor da mãe e do
pai.
— Como é que ele é? — Shane sabia que estava a ir longe
demais.
— O Travis Scott?
— O pai da Audre.
Eva recostou-se no banco com rigidez. Esboçou um esgar e
massajou a têmpora com os nós dos dedos.
— É estável.
Shane foi mais longe.
— Onde é que ele está?
— Diz-me tu. Para onde vão os homens quando se fartam? — Os
olhos de Eva ardiam. — Não tens nada que ver com isso. Já não me
conheces.
— Eu conheço-te demasiado bem — replicou ele, as palavras
carregadas de uma dor antiga. O tipo de dor que vive nas franjas
dos nossos pensamentos para sempre.
— Estás enganado — retorquiu ela, com um suspiro. — Eu já não
sou quem era. E, quando olho para trás, fico horrorizada.
— Só estavas a tentar sobreviver — disse Shane. — Quando
estamos a afogar-nos, fazemos tudo o que podemos para respirar.
Eva pôs-se a olhar para a sua manicure preta com uma
expressão desesperadamente vazia. Então, o cérebro de Shane
mandou-o proferir a frase mais estúpida de sempre.
— Tenho andado para te ligar.
Ao ouvir-se a dizer aquilo, Shane soube que merecia o erguer de
sobrancelhas incrédulo e indignado de Eva. Parecia igualmente
provável que ela virasse a mesa ao contrário ou morresse a rir.
— Fascinante — disse ela. — Eu tenho andado para experimentar
pôr extensões de pestanas.
Shane voltou a tentar.
— Não consegui ligar-te porque estava demasiado lixado para
tomar decisões racionais. As coisas correram-me mal durante anos.
— Por favor — disse ela, num tom trocista —, és um dos
escritores mais celebrados da nossa geração.
— E um dos mais embriagados — retorquiu ele. — Ouve, a fama
não nos salva. Só significa que os fãs tentam piratear a nossa conta
do Pornhub para obterem os nossos dados do cartão de crédito,
rastrearem o nosso paradeiro e aparecerem no nosso Airbnb na
Nova Zelândia em roupa reveladora de sair à noite.
— Roupa reveladora de sair à noite? Tenho dificuldade em
perceber o teu público.
— Tu tens homens feitos a andarem por aí com chapéus de
bruxa. Grande lata.
— E porque é que não te limitas e ver o Pornhub grátis, como as
pessoas civilizadas?
Shane mostrou-se ofendido.
— Vírus.
— Ah.
— Adiante — disse ele, estalando os nós dos dedos. — Uma
parte dos Alcoólicos Anónimos consiste em corrigirmos os nossos
erros. Eu queria estar completamente limpo antes de voltar a falar
contigo. Agora, estou preparado.
— Ah, então vens falar comigo quando te sentes preparado? Tens
a arrogância de julgar que eu quero falar contigo?
Shane olhou-a nos olhos.
— Sim, tenho.
— Vai-te lixar. — Eva pegou no saco e levantou-se.
— Não te vás embora — pediu Shane, detendo-a com um olhar
suplicante. — Por favor. Eu sei que o que eu fiz é imperdoável.
Quebrei a nossa promessa. E agora posso explicar porquê.
— Não, não podes. Eu dispenso! — Eva não estava bem. Estava
a tremer, e Shane ficou de coração despedaçado ao perceber que a
culpa era dele.
Sempre foi, pensou ele.
— Temos pontas soltas a resolver — disse. — Sabes
perfeitamente. Construímos as nossas carreiras à volta disso.
Eva voltou a sentar-se. A tensão entre eles era palpável, sentindo-
se no ar durante segundos que pareceram horas. Shane rezava
para que Eva falasse, mas ela limitou-se a ficar sentada a olhar,
furiosa, para a mesa, com a cabeça baixa. Começou a rasgar
lentamente o guardanapo em pedaços, a boca cerrada a formar
uma linha fina.
Quando finalmente olhou para ele, os olhos furiosos ardiam como
um incêndio descontrolado.
— Nós não construímos carreiras. Eu construí uma carreira —
disse ela, num grito sussurrado. — Tu escreveste quatro clássicos
embriagado?
Eu tenho de escrever um livro de merda todos os anos para sobreviver.
Não te dás ao trabalho de fazer uma digressão? Eu tenho de estar
sempre em eventos de promoção. Opões-te filosoficamente às redes
sociais? Eu tenho de publicar o meu dia inteiro para manter a relevância.
Estás com sorte que eu não tire uma selfie contigo para obter gostos!
— Com esta luz?
Nos Alcoólicos Anónimos, Shane costumava aliviar a tensão com
uma piada. Por sorte, Eva estava demasiado perdida no seu
discurso inflamado para a ouvir.
— E eu nunca estive na Nova Zelândia! Passo o meu tempo a
trabalhar no Amaldiçoados! Devo um livro novo à Cece e não tenho
nenhuma ideia, e agora vou ficar falida, e sabes o que é pior?
Continuo a deixar o meu livro de sonho para segundo plano!
— Qual é o teu livro de sonho?
— Não interessa — atirou Eva. — O que interessa é que trabalho
que me esfalfo. E tu, quase sem esforço, tornaste-te uma lenda.
— Eu só sou uma lenda porque sou misterioso.
— És uma lenda porque escreves sobre mim. — Eva pegou no
batido de volta, entornando um pouco na mão. Absortamente,
chupou-o.
O cérebro de Shane abandonou a conversa por alguns segundos
angustiantes.
— Aproveitaste-te do meu trauma — continuou ela, enraivecida.
— De um momento em que eu estava em crise. Não era
encantadora. Não era a Oito.
Shane olhou fixamente para ela, destruído. Não era encantadora.
Eva não fazia ideia do efeito que tinha sobre ele. De como ele a via.
Como era possível que ela não soubesse?
— A Oito é encantadora porque tu eras encantadora. — A voz
dele soou firme, perentória. — Não fazes ideia do que eras naquela
altura.
— Eu sei o que eu era.
— Não sabes, não. — O semblante de Shane ficou carregado. —
Tu irrompeste na minha solidão a exigir atenção. Foste
avassaladora. Selvagem, estranha e brilhante, e eu não tive
hipótese nenhuma. Gostava de tudo em ti. Até das partes
assustadoras. Eu queria afogar-me na água em que tu tomavas
banho, caramba.
Eva abriu a boca para falar. Ele abanou a cabeça, mantendo-a em
silêncio.
— Eu idealizo-te na ficção porque já te idealizava na vida real —
continuou Shane. — É um olhar masculino, tens razão. E lamento.
Mas eu só consigo escrever as minhas merdas à minha maneira.
— São as minhas merdas! — Eva bateu com o punho na mesa.
Na mesa à frente deles, uma família ergueu a cabeça das ementas.
— És tu que decides o que é de quem? — perguntou Shane, a
voz a elevar-se. — Eu escrevi quatro romances. Tu escreveste
catorze! Uma série inteira, em que me lanças um enguiço crioulo.
Ela explodiu num riso desconsolado.
— Se eu te pudesse lançar um enguiço, achas que me ficava por
te ridicularizar nos meus livros?
— Se sou um vampiro, pelo menos deixa-me fazer umas merdas
porreiras! Passo a série inteira a acobardar-meem castelos,
enquanto a minha alma gémea, que é um cruzamento da Serena
Williams com a Mulher Maravilha, pode lutar pela verdade e pela
justiça. A única coisa que o Sebastian faz bem é…
— Chega! — interrompeu-o Eva. — Essas cenas pagam-me a
hipoteca.
Shane não disse nada e bebeu um gole de água, devagar. O seu
sorriso diabólico era visível atrás do copo.
— Atiro-te este batido à cara neste instante. Ou julgas que não?
— Eu não estou a fazer nada!
— Ouve — disse Eva, com as faces a arder —, o Amaldiçoados
não era para ser lido por ninguém. Escrevi-o para mim, para me
esquecer de ti.
Fiz de mim a heroína para ganhar a força que eu não tinha. E fiz de
ti um engatatão inútil porque sou mesquinha. Mas transformou-se
numa carreira, e eu nunca consegui fugir de nós.
— Não conseguiste mesmo? Os vampiros podem morrer. E que
tal estacas, luz do sol e essas merdas?
— Os meus vampiros — começou ela, altivamente — só podem
morrer com bisturis de prata marinados em pasta de alho de uma
vinha específica durante o solstício de verão de um ano bissexto.
— Exatamente. — Os cantos da boca de Shane entreabriram-se
num sorriso afetado. — Alguma vez te perguntaste porque é que me
fizeste tão difícil de matar?
— Porque tenho de pagar uma escola privada! Porque é que
estás sempre a escrever sobre mim?
— Não é evidente?
— Aparentemente, não.
— Eu não estou a escrever sobre ti — disse Shane. — Estou a
escrever para ti.
As palavras dele ficaram a pairar no ar por um instante, arrojadas
e inequívocas. Ele hesitou, a pensar qual seria a reação dela.
Estava habituado a dizer a verdade sem se preocupar com a forma
como era recebida. Mas o que Eva pensava era importante.
— Escrevi os meus livros como se tu fosses a única que alguma
vez os iria ler — continuou, com cuidado. — Os meus livros fizeram
o que eu não fui capaz de fazer.
A respiração de Eva abrandou.
— Que foi o quê?
— Falar contigo — disse ele. — E quando li os teus livros, soube
que estavas a ler os meus. Pões tantas pistas. Por exemplo, a Gia
tem de bater nos inimigos oito vezes com a vassoura para os matar.
— O espetro de um sorriso atravessou-lhe o rosto. — Mesmo
quando estavas a desfazer-me em pedaços, soube-me bem. Era
como se ainda tivéssemos os nossos segredos.
A boca de Eva abriu-se ligeiramente, as sobrancelhas a colarem-
se uma à outra. E Shane começou a coçar os bíceps ao de leve, a
barba curta na linha do maxilar. Nenhum deles estava
emocionalmente preparado para aquela confissão.
Quando ele sentiu que Eva estava a olhar para si, imobilizou-se.
Com arrojo, retribuiu-lhe o olhar e susteve-o, um pouco mais do que
deveria. Acendeu-se uma chama entre os dois, que tremeluziu e se
apagou.
Há um universo alternativo em que eu nunca me fui embora,
pensou ele.
— Posso ser sincera? — perguntou Eva.
— Por favor.
— Chorei durante duas semanas quando soube que ia ter uma
filha. — A voz dela mal se ouvia. — Estava a morrer de medo de
que ela viesse a ser como eu. O meu único objetivo de vida é
certificar-me de que o mundo da Audre seja de unicórnios e arcos-
íris. E é. Quando ela está triste, lê O Ano do Sim, da Shonda
Rhimes, ouve a banda sonora do Hamilton e segue em frente. Não
fica a remoer como eu. Como eu ficava — corrigiu-se Eva. — A
minha mãe, a minha avó, a minha bisavó? Eram todas loucas, e é
de família. Mas parou em mim. — Eva fez uma pausa. — Ninguém
sabe nada da minha vida antes de Nova Iorque. Tu apareceres
assim… é um propulsor.
— Eu compreendo — admitiu Shane. — E vou-me embora. Mas
podes dizer-me uma coisa?
Eva encolheu vagamente os ombros.
— És feliz?
Ela parecia desanimada. Era como se nunca ninguém lhe tivesse
feito aquela pergunta, ou como se fosse algo em que ela nunca
tinha pensado. Ou ambas as coisas.
— Estou bem.
— Como está a tua cabeça?
— Já te disse que estou bem — atirou ela, os olhos a inchar.
Cravou os nós dos dedos na têmpora de novo. A dor era evidente.
— Assim tão mal? Ainda?
O silêncio de Eva era resposta suficiente. E as lágrimas à beira de
irromperem.
— Foda-se. — O rosto de Shane era uma máscara de
preocupação. — Tens bons médicos? Tens um… um… homem ou
alguém que te ajude? Alguém toma conta de ti?
— Alguém toma conta de ti? — explodiu ela.
— Bem, não.
— Então, porque é que partes do princípio de que eu preciso de
ajuda?
Eva começou a puxar a pulseira de borracha que trazia no pulso.
Era suficientemente aguçada para lhe deixar a pele vermelha.
Shane já a tinha visto a fazer aquilo antes, no Museu de Brooklyn.
Ao ver a forma compulsiva como ela puxava a pulseira contra a
pele, uma chama de desconforto percorreu-lhe o corpo. Queria
perguntar-lhe o que é que ela estava a fazer.
Mas já sei, não é?
— Não queria aborrecer-te — disse. — Só gostava que tivesses
algum apoio.
— Pois, mas não tenho. Céus, porque é que vieste aqui?
Confundido pela reação dela, Shane respondeu:
— Para te pedir desculpa.
— Não faças isso, por favor — sussurrou ela. — Não sou capaz
de falar daquela noite…
E foi então que uma lágrima caiu. Shane aprumou-se no assento.
Estendeu a mão por cima da mesa e segurou o pulso dela com
carinho.
— Genevieve — disse. E ela começou a soluçar.
— Não venhas atrás de mim. — Eva pegou no saco de pano e
saiu disparada do café.
Shane agarrou-se a uma força de vontade que não sabia que
tinha para não ir a correr atrás dela.
Em vez de a seguir, viu-a a seguir em passo de corrida pelo
passeio que ladeava a Eastern Parkway e a ficar cada vez mais
pequena até que virou na esquina e desapareceu. A cada passo
que ela dava, os anos desvaneciam-se. Shane estava a atirar-se
violentamente para o passado, para o rapaz adolescente antes dos
livros, do sucesso, das viagens. Para a idade das trevas, uma altura
em que a solidão era como areias movediças, uma altura em que se
deixava arruinar para que tudo parasse. E o único ponto de luz em
todo aquele passado fora amar uma bela rapariga com demónios
suficientemente ferozes para aniquilarem os seus.
Durante sete dias, há um milhão de junhos.
— D
CAPÍTULO 10
AS MULHERES
esculpa? — disse Cece, com um arquejo, o latte gelado com
lavanda abraçado contra o peito. A condensação criava uma
enorme mancha húmida na sua blusa de seda da Gucci.
Não se perdia nada, a blusa não era daquela temporada. Além
disso, nada era mais importante do que a inacreditável história de
Eva.
Eva, Cece e Belinda estavam apertadas num sofá rústico de dois
lugares no Maman Soho, um café conhecido pela sua aura de Sul
de França — ou seja, chão de azulejo, trilhos de luzes e
empregadas de bar excentricamente bonitas com franjas e lábios
pintados com desdém. Eva não estava com vontade de ir ao almoço
de emergência com as amigas nesse dia, sobretudo depois de
Shane. Mas não havia como dizer que não àquelas duas.
— O Shane foi o teu namorado da escola? — disse Belinda, com
um arquejo.
Eva afundou-se no sofá rústico. As suas duas melhores amigas
haviam testemunhado a reveladora troca de galhardetes com Shane
em palco, na mesa-redonda da noite anterior, e Eva não tinha como
se esconder delas. Por isso, contara-lhes uma versão resumida da
verdade. Que era a de que ela e Shane tinham saído algumas vezes
quando andavam na escola secundária. Nada de mais.
— O Shane não era o namorado de ninguém — disse ela. — Era
problemático.
— Ou seja, o Shane era o Shane — comentou Cece. — E tu eras
o quê?
— E eu não estava boa da cabeça — murmurou Eva. — Bem, nós
só tivemos uma coisa… momentânea. E depois acabou. Nada de
mais.
— Não. — Belinda brandiu o dedo indicador para Eva, as
pulseiras infundidas de reiki a tilintar. — Nada disso. Pormenores,
por favor.
— Não me lembro de quase nada! — Eva esperava soar
convincente. — É capaz de também não passar de uma
insignificância para o Shane.
— Não é insignificância nenhuma para ele, minha menina —
replicou Belinda. — A forma como ele estava a olhar para ti? As
minhas cuecas desfizeram-se.
Eva suspirou. Precisava de um abraço, de uma sesta, de uma
caixa de Thin Mints. Não daquilo.
— Eva, querida — disse Cece, com uma calma exagerada. — És
a Oito?— Não confirmo nem desminto — respondeu Eva.
Cece ergueu uma sobrancelha cheia de balas.
— Está bem. Sou a Oito — admitiu Eva.
— E ele é o Sebastian?
Após um longo sorvo do seu latte, Eva disse:
— Mais ou menos?
Belinda soltou um grito e abanou o chapéu de palha como se
fosse um leque.
— O que me estás a dizer — começou Cece, com pompa — é
que tu e o Shane Hall… o meu Shane Hall… que foi abordado em
inúmeras das nossas conversas sobre o mundo literário, conversas
em que fizeste de conta que não o conhecias… vocês foram
namorados na adolescência? Almas gémeas secretas que se
inspiraram tanto uma na outra que têm comunicado através da
vossa arte ao longo de quilómetros, décadas, anos de memórias
apaixonadas? — Ela pousou, com estrondo, a chávena de chá
florida na mesa caiada. — Meu Deus do Céu, como é que
conseguiste manter esta telenovela em segredo?
Uma empregada do bar de olhos inocentes olhou de relance para
elas com acutilância. Eva lançou-lhe um sorriso aberto e depois
baixou a voz para um murmúrio.
— Porque eu quase não sobrevivi ao Shane Hall. Quase não
sobrevivi a mim própria. Foi um período negro. A minha vida em
casa era traumática. Eu era uma miúda caótica e zangada. Porque é
que havemos de entrar em reminiscências?
— Na verdade, isto explica muito de quem tu eras quando nos
conhecemos — apontou Cece. — Totalmente ferina. Lembras-te de
quando aquele empregado de bar te chamou «fofa»? Apagaste o
teu cigarro na mão dele! E disseste-lhe: «Anota o meu pedido ou vai
bugiar. Escolhe.»
— Não. Foi: «Anota o meu pedido ou chupa-mos» — corrigiu Eva.
Belinda resfolegou.
— Mas porque é que acabaram?
— Não interessa. — Eva acenou com a mão desdenhosamente.
— Já vivi vidas inteiras desde então.
— Ora aí está. — Belinda cruzou as pernas, as calças largas e
translúcidas a ondular. — Os homens não definem o nosso
percurso. Temos é de honrar o nosso reino feminino. De vibrar com
o nosso plano divino.
Cece revirou os olhos.
— Calma, Badu.
— Quando penso no assunto, que é nunca — começou Eva —,
fico perplexa. Não percebo como é que a nossa relação se tornou
tão intensa tão depressa.
— Eu já senti uma paixão assim — devaneou Belinda. —
Lembram-se do Kai, o porteiro daquele sítio de cachimbos de água
em Bushwick? Fodeu-me até à alma uma noite e eu virei-me e
escrevi um soneto intitulado Arranha-Céus a Penetrarem o Céu da
Noite.
— Foi publicado na Paris Review! — disse Eva. — Admiro a tua
capacidade para escreveres sobre pénis de uma forma tão lírica. É
uma parte do corpo difícil de descrever. Um adjetivo errado e é um
tumor.
Belinda deu uma cotovelada a Cece.
— Tu já experienciaste um amor selvagem?
— Hum… — Ela rodou a palhinha no latte. — Eu morreria pelo
meu cabeleireiro. Já todas vimos o que o Lionel é capaz de fazer
com um cabelo de densidade 4C.
— Morrerias pelo Lionel — disse Eva —, mas não pelo teu marido
com quem estás casada há 20 anos?
Cece conhecia Ken, o marido cirurgião plástico com timidez
terminal, desde o jardim de infância. A aparência dele dava a
entender que Deus se esquecera do aspeto de Billy Dee Williams
em Mahogany e por pouco não acertara em cheio. Faziam um par
perfeito. Spelman College. Morehouse College. A sororidade AKA. A
fraternidade Alpha. Os avós tinham sido melhores amigos na
Universidade Howard[4], na turma de 1946. O que lhes faltava em
paixão era compensado em lógica.
— Eu adoro o Ken, mas não fui feita para paixões românticas. Os
homens são muito infantis. Ainda há pouco, li um artigo sobre a falta
de mulheres no território chinês. Homens adultos estão a viver
sozinhos em casas imundas e a morrer prematuramente porque não
têm mulheres para lhes marcarem consultas médicas.
— Por falar em médicos — disse Belinda —, a minha
ginecologista acabou de fazer um ritual de deusa na minha vagina.
Vaporizou-a, passou-lhe salva e depois proferiu palavras sábias à
minha virilha.
— Será que a minha vagina é sábia? — divagou Cece.
— A minha é burra como o caraças, a avaliar pelas escolhas que
faz — observou Belinda.
Estou mesmo a descarregar os meus fardos aos pés destas
marretas?, perguntou-se Eva.
— Tenho de ir — disse. Mas deixou-se ficar sentada, a expressão
carregada.
Belinda e Cece trocaram olhares. A história de Eva ainda não
tinha acabado. E elas sabiam que nunca a iriam ouvir.
Aquelas três sabiam que pizza cada uma pediria no Roberta, o
número que cada uma calçava e as playlists preferidas de cada uma
no Spotify. Mas Cece e Belinda não sabiam nada sobre a vida de
Eva antes de Brooklyn. Eva fizera alusão a uma infância nómada.
Mas pormenores? Conteúdo real para a sessão de nostalgia? Nada.
Nunca regressava a casa nas épocas festivas. Na verdade, onde
era a casa dela? Belinda e Cece não sabiam, mas respeitavam a
sua privacidade. Passados misteriosos não eram inusitados em
nova-iorquinos transplantados. Ir para Nova Iorque era um ato de
reinvenção. Quem não quisesse reinventar-se ficava em Kenosha,
no Wisconsin.
Quem atravessava a ponte Verrazzano tinha a liberdade de mudar
de pele. O filhinho do papá de Dallas tornava-se o hipster de Red
Hook. O saloio do Tennessee tornava-se um criador de tendências.
Em Nova Iorque, as pessoas eram quem diziam ser.
Eva era reservada. Mas estava claramente em dificuldades.
Cece puxou-a para um abraço. Belinda abraçou-as às duas. Ao
lado, uma aluna de doutoramento ergueu a cabeça do portátil e tirou
uma fotografia para publicar numa story do Instagram
(#Reconfortante #PoderFeminino #ElaFoiPersistente).
— Na altura, eu sentia que era anómala — disse Eva, libertando-
se lentamente do abraço. — Como um extraterrestre. A dor que eu
sentia era tanta que arrasava tudo: o meu pensamento, a minha
personalidade, as minhas emoções… Tudo. Até o Shane aparecer.
— Conheceste outro extraterrestre — comentou Cece.
— E a magia ainda não se desvaneceu! Qual é o signo dele? —
Belinda procurou no Google o aniversário de Shane.
— Nós nunca tivemos magia — mentiu Eva, engolindo um
analgésico em seco. — Só hormonas. Para dizer a verdade, não
devia ser permitido termos orgasmos assim antes dos 21 anos.
Provoca danos cerebrais.
— Dia 30 de março — disse Belinda, com um esgar. — Raios, é
Carneiro. Os cabrões do zodíaco.
— Foge — aconselhou Cece.
— Na verdade, podes estar a precisar de terapia de exposição —
devaneou Belinda, mordiscando um scone intocado de Eva. —
Passar muito tempo com o Shane até desmistificares a memória
que tens dele. Como quando comes 15 dónutes de uma vez para
curares o vício do açúcar.
— Mas eu não tenho tempo para comer o Shane! — lamuriou-se
Eva. — Só hoje, tenho uma reunião com uma possível realizadora e
uma reunião na escola da Audre…
— E um livro que tem de chegar à minha caixa de e-mail na
próxima segunda-feira — lembrou Cece.
— Oh. Pois, primeiro a prosa, depois os amigos — afiançou
Belinda.
Com isto, Eva pegou na mala. Estava a sentir-se aérea e com
comichão devido ao efeito do analgésico, o latejar do cérebro a
esvair-se e a transformar-se numa onda leve.
— Adoro-vos a ambas. Se sobreviver a este dia, mando-vos uma
mensagem mais logo.
Eva não demorou a ver-se novamente ladeada por duas mulheres
dinâmicas num ponto de referência do Soho. Mas, desta vez, no
Crosby Street Hotel, e com Sidney Grace, produtora do
Amaldiçoados, e Dani Acosta, a muito falada realizadora
interessada em filmá-lo.
Situado numa pacata rua calcetada, o hotel tinha um átrio que
parecia um jardim secreto, no qual esculturas excêntricas de cães e
cadeiras rococó coexistiam com plantas luxuriantes. Haveria melhor
lugar para discutir como dar vida ao conto de fadas para adultos de
Eva?
E estava a correr surpreendentemente bem, tendo em conta que
ela estava a meio de uma crise. Nos oito meses decorridos desde
que Sidney comprara os direitos para o filme, a proposta já havia
sido recusada por vários realizadores de renome. Dani Acosta era a
derradeira esperança de Eva. O último filme independente da
realizadora, A Mulher Veio Tocar, sobre uma violinista assombrada
por um fantasma que faz amor com ela invisivelmente duranteas
atuações, fora um êxito no Festival Internacional de Cinema de
Toronto. Dani tinha os lábios pintados de azul-marinho e vestia um
top de alças com lantejoulas, e a única coisa que superava o
entusiasmo que mostrava em relação a Amaldiçoados era o
entusiasmo de Eva em relação a ela.
— … e estou a imaginar visuais luxuriantes e sinistros com notas
subliminares de erotismo, estão a perceber? — Dani crescera em
East Harlem e o seu sotaque tinha um sumptuoso travo de porto-
riquenho de Nova Iorque.
— Como o Drácula de Bram Stocker! — disse Eva, com um
arquejo.
Embebida na sinergia criativa, Dani ergueu as mãos para o
telhado, de onde pendia um candeeiro em forma de cabeça
humana.
— Somos espíritos gémeos, tu e eu.
— Literalmente. — Sidney proferiu «literalmente» da mesma
forma que diria «lamento a sua perda». Estudara em escolas de Los
Angeles frequentadas por meninos bem e tinha um tom
monocórdico e grave que nunca variava. Filha birracial de um
guitarrista dos Earth, Wind & Fire e de uma atriz de séries de
comédia, era bastante bem relacionada. E muito mais astuta do que
dava a entender. Com 27 anos, já tinha produzido dois
documentários para a Netflix.
Sidney estava desesperada por produzir uma longa-metragem.
Dani estava desesperada por provar que não era realizadora de um
filme só. E Eva estava simplesmente desesperada.
— Dani, eu vi A Mulher Veio Tocar duas vezes — disse Eva. — O
que é que inspirou o amante invisível?
— Eu fiz amor com um fantasma — sussurrou Dani. — Estava de
férias num hotel antigo e bastante bizarro em Istambul. Uma noite,
um espírito esvoaçou por debaixo dos meus lençóis e tivemos
relações místicas. Mãos fantasmagóricas a percorrerem o meu
corpo todo.
— Fixe. — Sidney não tinha paciência para aquele entusiasmo
histérico que Dani e Eva tinham uma pela outra. E as questões de
produção? Orçamentos, locais, talento.
— Quem era o fantasma? — Eva tinha os olhos arregalados.
— Acabei por perceber que estava a alucinar devido a uma gripe
intensa que tinha apanhado na Turquia — respondeu Dani, a rir-se.
— Eram as minhas próprias mãos a arrebatar-me!
Eva soltou uma risada.
— Eu meti os pés pelas mãos, passe o trocadilho.
— Gosto de ti. — Dani inclinou-se para a frente, os olhos
castanhos como café a penetrarem os de Eva. — E gosto da tua
bruxa que os tem no sítio. Vamos fazer magia.
Eva olhou de relance para Sidney, que fez um aceno inexpressivo
com a cabeça.
— Dani Acosta… acho que és a realizadora perfeita para a
adaptação do Amaldiçoados — anunciou Eva.
— Coooncordo — disse arrastadamente Sidney, que tinha tomado
essa decisão 40 minutos antes. — Vamos falar do elenco. Novatos?
A Zendaya? Aquelas brasas da série Dear White People?
— Estou a pensar mesmo em gente branca — disse Dani.
— Mesmo o quê? — perguntou Eva.
— Para ser distribuído e financiado como dever ser, este filme
precisa de personagens brancas.
— Mas… as personagens são negras — observou Eva,
atabalhoadamente, suspensa entre a descrença e a confusão.
— São uma fantasia — retorquiu Dani.
— Wakanda é uma fantasia, mas é em África!
— Wakanda tem o poder da Marvel por trás — lembrou Dani. —
Duas personagens principais negras vão pôr em causa o potencial
do Amaldiçoados. Não queremos um filme negro; queremos um
filme em grande. Eu estou a ver o rapaz do Homem-Aranha a fazer
de Sebastian. O Tom Holland? E a Kendall Jenner a fazer de Gia.
Eva estava horrorizada.
— Ela mal consegue fazer dela própria. Já a viste numa
passarela? É como se estivesse a andar sobre uma prancha de
mergulho!
Eva estava a ficar com suores frios de pânico. As pessoas negras
existiam e prosperavam em todos os espaços, domínios e mundos.
E Eva escrevera Gia e Sebastian tão bem que leitores de todas as
raças os aceitavam como eram. Um triunfo em qualquer género.
Amaldiçoados era a versão de Eva de literatura de protesto.
Branquear as personagens apagaria a sua carreira.
— Os vampiros e as bruxas já são «outros» — argumentou Dani.
— Se também forem negros, passam a ser demasiado específicos.
Imagina o que seria encontrar público para um filme sobre um
lobisomem e uma fada do Taiwan.
— Mas eu teria interesse em ver esse filme! — O telemóvel de
Eva tocou no seu colo, interrompendo-lhe a linha de raciocínio. Era
uma mensagem de Sidney.
SÊ INTELIGENTE. A Dani é a nossa última opção de primeiro plano. Podemos limar
as arestas mais tarde. Diz que sim.
— Sim — disse Eva, com o coração a cair a pique. — A Kendall.
O Homem-Aranha. Genial.
Poucos minutos depois, estava no metro a caminho da reunião na
escola de Audre em Brooklyn. O coração latejava-lhe nas têmporas.
Como é que deixara que aquela conversa fugisse de tal maneira do
seu controlo? Onde estava a sua integridade? Talvez ela não tivesse
nenhuma. Só uma vendida seria capaz de branquear e aclarar os
seus bebés fictícios em troca de um cheque. Não. Só a ideia já era
uma tremenda humilhação. Por autopreservação, Eva atirou-a para
trás das costas. Não podia ter um colapso naquele momento; não
tinha tempo.
Pelo menos, Audre era a melhor da turma. Não tinha de se
preocupar com isso.
E foi com esta ideia que se encaminhou para a Escola Preparatória
Cheshire, toda alegre e jovial. Pelo menos ali, sabia que tudo estava
bem no mundo. Seguiu pelos corredores da imensa mansão
vitoriana a passo largo, com a presunção de uma mulher cuja filha
era a rainha do 7.º ano.
Eva sentia-se secretamente orgulhosa da popularidade de Audre,
uma líder numa escola cheia de alfas sobredotados e
hipercompetitivos de famílias biparentais historicamente abastadas.
Era preciso ter confiança para dominar uma multidão. E Audre fazia-
o sendo amistosa e empática, e não uma idiota.
A minha filha de ouro, pensou Eva, ao entrar no gabinete da
diretora da escola, Bridget O’Brien. Com um sorriso luminoso, deu
um beijo na bochecha de Audre e sentou-se ao seu lado, em frente
à secretária de Bridget. O gabinete prestava homenagem aos 150
anos de história da Escola Preparatória Cheshire, com detalhes
como cadeirões da década de 1920 e candeeiros eduardianos a
petróleo.
Bridget era, ela própria, uma referência ao passado. Alta e esguia,
a mulher de 55 anos dava ares de loura hitchcockiana, com o cabelo
platinado num corte pelo queixo penteado para trás e vestidos
cintados Burberry. Tinha dois interesses: eliminar os pés de galinha
a laser e fazer com que a Escola Preparatória Cheshire se tornasse
a melhor escola privada de Nova Iorque antes de se reformar, em
2021. Por isso, dava preferência a alunos que ganhassem prémios.
Audre conquistara medalhas de ouro em campeonatos estatais de
debate e o primeiro lugar em campeonatos regionais de artes
visuais. Era tão valiosa que Eva tinha um convite permanente para o
jantar anual de Natal na vivenda de Bridget, em Cobble Hill.
— A Audre está suspensa — disse Bridget.
— Perdão?
— Estou suspensa — sussurrou Audre.
— Eu ouvi-a! — atirou Eva, só então reparando na mancha
vermelha e inchada em redor dos olhos de Audre. E no seu anel de
camafeu na mão esquerda da filha. Estupefacta, baixou a cabeça
para olhar para o dedo nu. Aquela manhã fora tão caótica que nem
tinha reparado que não estava a usar o anel. Olhou para Audre,
boquiaberta. — O que é que fizeste?
Os olhos de Audre reviraram-se para o teto de filigrana dourada.
Como se aquela pergunta, e não a suspensão em si, fosse a
verdadeira indignidade.
— No início do ano, falámos consigo sobre as consultas de
aconselhamento que a Audre andava a dar aos colegas no
Snapchat. — A voz afetada de Bridget mal conseguia disfarçar as
suas raízes humildes, no seio de uma família irlandesa em Boston.
Até ao primeiro ano da faculdade, na Vassar College, falava como o
elenco de The Departed — Entre Inimigos.
— Mas ela deixou de as fazer — interrompeu Eva,
apressadamente.
— Sim, é verdade, e os vídeos do Snapchat desaparecem ao fim
de 24 horas. Mas uma captura de ecrã dura para sempre. — Bridget
retirou uma pasta de arquivo da gaveta da secretária. — Há
algumas semanas, a Audre publicou um vídeo de uma sessão com
a ClementineLogan.
— Clementine Logan. — Eva começou a recear o caminho que a
conversa estava a tomar. — A mãe da Clementine é a Carrie Logan,
a orientadora de estudos?
— Exatamente — respondeu Bridget, com um suspiro. Fez
deslizar uma folha impressa sobre a secretária na direção de Audre.
— A Clementine fez uma confissão inquietante sobre a mãe no
vídeo. Um aluno fez uma captura de ecrã e criou um meme que tem
vindo a circular a semana inteira.
Eva olhou de relance para a imagem do meme, no qual
Clementine aparecia a chorar, com lágrimas a escorrerem pelas
faces. A imagem estava desfocada, mas a legenda não:
TFW A TUA MÃE ANDA A PINAR COM O TEU PROFESSOR DE INGLÊS.
Eva ficou boquiaberta. Audre fungou.
O sobrolho de Bridget, congelado pelo botox, franziu-se com
alguma dificuldade.
— TFW significa…
— That feeling when[5] — disse Eva. — Eu sei.
— A minha mãe tem 24 mil seguidores no Instagram. — A voz de
Audre era trémula, mas orgulhosa. — Ela está a par da linguagem
das redes sociais.
Bridget parecia aliviada por não ter de explicar o significado do
resto da frase.
— Quer dizer que o professor de Inglês não é o marido dela? —
perguntou Eva, com hesitação. — Céus, Audre.
— Publiquei-o muito antes de tu me mandares parar! — queixou-
se Audre, os puxos a tremerem. — E não fazia ideia de que a mãe
da Clementine Logan era infiel!
— O Sr. Galbraith, o professor de Inglês, foi dispensado —
anunciou Bridget.
— Bridget, eu peço desculpa. Mas a Audre nunca teve intenção
de magoar ninguém.
— Talvez não, mas fica suspensa até ao final da semana. —
Bridget ajeitou o penteado à prova de bala com as pontas dos dedos
com manicure francesa. — E o conselho de honra ainda não decidiu
se a convida de novo no ano que vem.
Audre deixou escapar um resmungo triste. Eva olhou para a filha
amada, o fruto do seu ventre, e desejou estrangulá-la até lhe restar
um fio de vida.
— Audre, podes esperar lá fora por um segundo? — acabou por
dizer.
Encantada por ser dispensada, Audre evadiu-se para o corredor.
Bridget esperou três segundos antes de trancar a porta da sala.
Depois, tirou um maço de Parliament da mala, abriu uma enorme
janela e acendeu um cigarro. Após um longo trago, a sua postura
relaxou.
Bridget só deixava estalar o verniz da elegância para falar
cruamente com alguns pais, escolhidos a dedo.
— Juro por Deus, Eva — murmurou, com um suspiro profundo. —
Não preciso deste melodrama psicossexual agora que estou quase
a reformar-me.
Eva aproximou-se da janela.
— Isto não passa de um erro motivado pela juventude. O que é
que eu posso fazer para resolver a situação?
Agarrou no antebraço de Bridget, esperançosa de que ela se
lembrasse de quão agradável Eva fora no jantar de Natal.
Bridget fitou-a, com os olhos cor de limpa-vidros. Quando falou,
soou exatamente ao que era: a filha de um homem que, todas as
noites, ao longo da infância dela, fazia apostas ilegais na cave com
um grupo de gente da pesada local e usava uma t-shirt que dizia:
«Vim para lutar ou foder, e não vejo a tua irmã.»
— Isso pergunto-lhe eu, Eva.
A pele de Bridget era imaculada, graças às injeções gratuitas de
Restylane do Dr. Reece Nguyen, oferecidas como compensação
para manter a filha, do 9.º ano, na escola, depois do escândalo de
ter sido apanhada a roubar na Forever 21. E o volumoso cabelo de
Bridget estava acabadinho de arranjar, graças às visitas gratuitas ao
Owen Blandi Salon, oferecidas para que ela permitisse que o filho
de Owen, permanentemente sob o efeito da canábis, acabasse o
ensino secundário.
Bridget O’Brien podia ser comprada. Mas o que tinha Eva para
vender?
— Do que é que precisa? — perguntou Eva.
— Conhece algum professor de Literatura Inglesa? — perguntou
Bridget, dando uma passa no cigarro.
— Acho que não, mas…
— Eva, eu posso vir a ser lembrada por este escândalo. Preciso
de o enterrar com o anúncio de um novo professor. Rapidamente.
Tenho de arranjar um substituto à altura para o Sr. Galbraith, e o
lugar da Audre no 8.º ano fica garantido.
Eva detestava ser posta entre a espada e a parede. Bridget era
uma trapaceira, mas Eva passara a vida inteira a fazer das tripas
coração. E estava em causa a sua bebé. Audre não podia ser
expulsa. Teve de se conter ao máximo para não entrar em modo
Genevieve e dizer àquela cabra que se lixasse.
— Dê-me alguns dias — pediu, rodando sobre os calcanhares.
Com a mão na maçaneta da porta, acrescentou: — A Bridget é
mesmo corrupta ao extremo.
— Isto é pela carreira académica da sua filha — retorquiu Bridget,
apagando o cigarro no peitoril da janela. — Já fiz pior por menos.
— Sim, mas não falemos mais do seu penteado de capacete —
ripostou Eva. Depois disso, bateu com a porta com tanta força que
as dobradiças abanaram.
Eva foi dar com Audre encostada à parede, de olhos cerrados. Os
ténis Vans estavam alinhados com os ombros e Audre inspirava e
expirava com constância. A meditar. Eva sabia.
— Audre Zora Toni Mercy-Moore.
Audre abriu os olhos de súbito e atirou-se a Eva, envolvendo-a
num abraço unilateral.
— Mãe, desculpa.
— Eu tento ser a melhor mãe possível. — Eva estava a falar mais
consigo própria do que com Audre. — Como é que a minha filha é
suspensa? Como?
— Desculpa! — repetiu Audre, num sussurro alto.
Desculpas não resolvem o problema, miúda, ouviu Eva a mãe a
dizer.
Sai da minha cabeça!
Eva agarrou no antebraço de Audre e encaminhou-a para um
recanto mais reservado, junto à casa de banho das raparigas. Virou-
lhe a cabeça para que se olhassem de frente.
— Tenho quase a certeza de que desfizeste um casamento.
Percebes as consequências que isso tem?
— Sim! — exclamou ela. — Mas os maridos estão sempre a trair,
sem repercussões. De certa forma, é como se estivesse a desfazer
o patriarcado.
— Oh, vê se cresces. Isto não tem nada que ver com o
patriarcado.
— Tu dizes que tudo tem que ver com patriarcado! — Audre
começou a chorar. As lágrimas deixavam veios de manchas no
blush rosa-claro (a única maquilhagem que tinha autorização para
usar). Tinha um ar tão jovem, como quando brincava com a
maquilhagem de Eva, quando andava no 1.º ano.
— Percebes que vou ter de vender o raio da alma para te manter
nesta escola?
A assentir com a cabeça e a soluçar, Audre viu um colega a
passar no corredor e tapou os olhos com a mão.
— Tudo o que te peço é que sejas ótima na escola, que sejas
excelente em artes, que sejas bondosa e te enrosques comigo a ver
a Stranger Things — argumentou Eva. — Dares cabo da tua carreira
escolar não encaixa neste cenário.
Os olhos de Audre, brilhantes das lágrimas, fecharam-se em duas
fendas. Com uma rapidez estonteante, passou de triste a irritada.
— Talvez eu queira mais do que boas notas e Stranger Things —
disparou. — Quero ser uma borboleta! Voar por aí e seguir o meu
coração. E sabes que mais? Eu nem sequer gosto muito de arte. Só
o faço porque sou muito boa e porque é o teu sonho para mim. O
meu sonho é ser terapeuta de celebridades. Possivelmente com um
franchising de salões de unhas. E tu nunca me deste apoio, já
agora.
— Nunca me tinhas falado de um franchising de unhas!
— Bem, mas já pensei nisso. — Audre recuou um passo, os
punhos nas ancas. — Ouve, fiz asneira. Percebido. Não sou perfeita
como tu.
Eva ergueu os braços.
— Tu sabes bem que eu não sou perfeita.
— És sim! Porque não vives! Só escreves livros que odeias e
vives obcecada comigo. Não tens namorados, não viajas, não fazes
cenas divertidas nem queres nada mais do que o que já tens. —
Audre respirou fundo. — Escreves sobre amor, mas não vais atrás
dele. Não queres nada.
A dor de Eva foi imediata e lancinante.
— Como… é que te atreves a psicanalisar-me?
Animada pelo discurso, Audre foi ainda mais longe.
— Uma pergunta rápida. Porque é que o pai se foi embora? Não
era suficientemente perfeito para ti?
— Desculpa?
— Tu não és uma pessoa — disse Audre, com desdém. — És um
robot.
Depois, a única coisa que as separava era um silêncio
interminável, de fazer latejar as têmporas. Apareceu outro miúdo, a
passar, disparado, pelo corredor. Desta vez, Audre virou costas àmãe, acenou e sorriu. Mas, quando se virou de novo para Eva e lhe
viu a expressão de estupefação estampada na cara, encolheu-se. A
bravata desaparecera.
— Já acabaste?
Audre assentiu com a cabeça, imediatamente arrependida.
— Tens razão — disse Eva, a voz a tremer. — Sou um robot. Um
robot que preparou a tua vida para que pudesses ter a liberdade de
experimentar coisas novas e fazer asneiras sem deixares de ter
uma vida para viver. Eu sou a razão por que podes ser uma
borboleta, sua… pré-adolescente ingrata.
Sentia lágrimas quentes a picarem-lhe os olhos. Não. Tinha de
manter a calma.
— E outra coisa! — exclamou Eva, decididamente sem conseguir
manter a calma. — Quando haveria eu de sair com alguém? Com
que tempo e energia? Entrego-me toda a ti, miúda. Não sobra nada
para mais ninguém! Pensa nisso na próxima vez que fizeres merda
e depois tenhas a incrivelmente irrefletida audácia de criticar as
minhas escolhas.
— Mãe, peço…
— Desculpa. Eu sei — atirou Eva. — Tenho um prazo para
cumprir. Tenho de me ir embora — disse, antes de sair disparada.
Então, parou de repente. — E dá-me o meu anel — acrescentou,
tirando-o do dedo de Audre.
Com isto, deixou a preciosa filha sozinha nos corredores cheios
de histórias da Escola Preparatória Cheshire.
Mal saiu porta fora, para a rua de Park Slope emparedada em
arenito e encimada por um sol escaldante, deixou-se cair nas
escadas da escola. Estava com demasiadas dores para ir a pé para
casa. Por isso, engoliu um analgésico e pôs-se a matutar.
Eva queria coisas, sim. Queria o mundo inteiro para a filha. Queria
ver as personagens dos seus livros no grande ecrã, racialmente
intactas. E, no fundo — bem lá no fundo, onde ela enterrava os
desejos mais ponderosos —, queria ir para o Louisiana e fazer
pesquisa para o livro que sonhava escrever. O livro que poderia virar
a sua vida e a de Audre do avesso. O livro que revelaria a verdade
sobre a sua linhagem, as incorrigivelmente indomadas e
perigosamente selvagens mulheres Mercier.
Eva queria coisas. Só se tinha esquecido de como as obter.
Costumava ser descarada. Onde estava a rapariga que fugira da
mãe para ir ter com Shane, para ir para Princeton e depois para
Nova Iorque? Quem era aquela rapariga?
Havia apenas uma pessoa que se lembrava dela. E andava a
enviar-lhe mensagens desde que ela saíra do café, desembestada.
Com as mãos a tremer, tirou o telefone da mala.
Hoje, 11h15
S. H.
Liga-me.
Hoje, 11h49
S. H.
Por favor, Genevieve.
Hoje, 12h40
S. H.
Só quero ter a certeza de que estás bem. Por favor.
Hoje, 14h10
S. H.
OK, já não tenho o direito de saber nada sobre ti.
Hoje, 14h33
S. H.
Que se lixe. Tenho, sim.
Hoje, 14h35
S. H.
Vou ficar em West Village, na Horatio Street, n.º 81. Vou estar aqui até domingo. Vem
ter comigo se quiseres falar. Qualquer dia, a qualquer hora. Mas, se não vieres, eu
percebo. E vou-me embora e nunca mais te voltarei a incomodar. Só quero que
saibas que te desejo as coisas mais fantásticas, estranhas e maravilhosas todos os
dias do mundo.
Eva ficou a olhar para o telefone. Como se, se olhasse com força
suficiente, o pudesse incendiar. E ela ficaria livre de Shane para
sempre.
Fantásticas, estranhas e maravilhosas. Quando fora a última vez
que ela experienciara algo assim? Não sabia.
Mas sabia que faria qualquer coisa por Audre.
Também sabia que Genevieve sempre espreitara pelas brechas
da sua personalidade: silenciada pela maternidade, pela carreira,
pela autopreservação e pelo senso comum, mas sempre presente.
Eva estava mais velha, mas os ossos sob a pele eram os mesmos.
A mesma chama, reduzida a brasa, à espera de uma faísca que
voltasse a atiçá-la.
E o mais importante? Eva conhecia um professor de Inglês.
S
CAPÍTULO 11
UM ATO AGRESSIVO DE REINVENÇÃO
PESSOAL
hane Hall estava a correr pela vida.
O desastre no restaurante deixara-lhe a cabeça em água. O
seu coração estava desfeito. O estômago estava num enorme
nó. Numa vida anterior, teria lidado com a situação de uma forma
perigosa. Porém, devido ao recente ato agressivo de reinvenção
pessoal, havia deixado de beber. Passara a ser um corredor. Um
corredor com «C» maiúsculo, e apercebia-se de que estava a levar
a coisa a sério, pois comprara uns Nike Vaporfly, os ténis que
estiveram quase a ser banidos dos Jogos Olímpicos por darem
demasiada vantagem aos atletas. E usava o relógio Garmin
Forerunner 945 GPS para monitorizar o ritmo, ao estilo de um
maratonista profissional. Contudo, o mais extraordinário eram as
meias de compressão de nível de elite, recomendadas por Usain
Bolt numa Esquire antiga, cuja página Shane marcara, num lounge
VIP da JetBlue, algures no Midwest. O equipamento era do melhor.
Shane não fazia nada pela metade. Corria com a mesma vontade
com que bebia.
E pouco importava que, nos Alcoólicos Anónimos, ele tivesse sido
advertido para os perigos do vício cruzado: quando se deixa de
beber e se escolhe uma nova obsessão, como o evangelismo ou os
esquemas de marketing multinível ou adotar pit bulls. E, tudo bem,
Shane sabia que o hábito de correr raiava o extremo. Mas haveria
algum vício novo que pudesse assustá-lo? Não poder beber era
aflitivo e Shane fora capaz de ultrapassar o problema. Não poder
fazer qualquer outra coisa seria fácil.
Por isso, corria e corria, até que o ritmo firme e hipnótico das
pisadas e a respiração modulada e focada o persuadiam a acalmar-
se.
Porque já chegava para o dia.
O sol estava prestes a pôr-se, para lá do contorno dos arranha-
céus, no horizonte de Upper Manhattan, e Shane estava a tentar
batê-lo em velocidade. Já tinha corrido os dez quilómetros desde a
casa arrendada em West Village até contornar a South Street
Seaport, passando pela West Side Highway. E já estava de
regresso. Ao início, o seu ritmo era demasiado agressivo,
demasiado rápido, mas, nos últimos dez minutos, começara a
abrandar um pouco. Estava à beira da exaustão. Porém, era isso
que lhe dava força — aquela chama de incerteza, a ameaça do
esgotamento.
E Shane tinha de continuar, porque queria chegar a casa antes de
anoitecer. Não podia ausentar-se do apartamento por mais de uma
hora. Dissera a Eva para ir lá ter se precisasse dele. E estava à
espera dela desde que ela saíra a chorar do restaurante, naquela
manhã. Provavelmente, não teria notícias dela, mas, se por acaso
ela quisesse conversar, ele tinha de estar lá.
Fora ele que a fizera chorar. Era o que fazia sempre: destruía as
pessoas que mais amava, as coisas que o deixavam mais feliz. Vê-
la tão transtornada de novo, sabendo que era por causa dele,
desencadeara um velho pânico, que estava demasiado embrenhado
para o conseguir afastar. Tinha de fazer qualquer coisa. Não podia
deixar que aquela fosse a última vez que se viam.
De queixo baixo, olhos fixos em frente, seguiu a toda a brida pelo
caminho de corrida de West Side Highway, com o reluzente rio
Hudson a serpentear pacatamente à sua esquerda e o contorno dos
arranha-céus de Nova Jersey a marcar o horizonte mais além.
Estava um calor abafado, o tipo de temperatura que nos deixa
apáticos e letárgicos. Turistas visivelmente exauridos deixavam-se
cair nos bancos e o caminho estava cheio de idosos a praticar
jogging e grupos de mães a caminhar com carrinhos de bebé de
marcas caras. Toda a gente estava em modo de descontração,
exceto Shane.
Teria sido egoísta esperar por mais um segundo que fosse da
atenção de Eva quando ele era a razão por que ela não estava
bem? Provavelmente. Teria sido imprudente e infantil enviar-lhe
todas aquelas mensagens? Sem dúvida. Mas Shane já havia
analisado a situação demasiadas vezes desde essa manhã e não
sabia o que mais poderia fazer.
Eu nem sequer devia ter vindo, pensou, quase colidindo com um
casal de 20 e poucos anos, que, de alguma maneira, conseguia
correr a partilhar auriculares.
Mas viera. Começara outro fogo. Desta vez, iria ficar para o
apagar.
Abrandou o passo e ergueu a cabeça para observar o pôr do sol
no horizonte. O céu daquele final de dia estava inflamado com
ondas de fúchsia e lavanda, e, não pela primeira vez desdeque
deixara de beber, Shane ficou admirado perante toda a vida que o
mundo parecia ter. De repente, estava muito alerta. Era como nos
tempos de criança, antes de começar a anestesiar-se. Na altura,
sentia coisas demasiado profundas para o seu próprio bem.
Uma vez, quando tinha 5 anos e estava na fila da caixa numa
Kmart, vira um homem a roubar uma máquina de fazer waffles do
carrinho de uma mulher quando ela estava distraída. A cabeça de
Shane entrara em espiral. E se a mulher não tivesse mais nada para
dar aos filhos de 13 anos, além de waffles, porque o pai desbaratara
o modesto salário de caixa do banco em apostas de futebol de
fantasia e raspadinhas? E se a vida dela dependesse daquela
máquina de waffles? Ficara obcecado com o assunto durante dias.
E as cobras costumavam deixá-lo de rastos. Ficava abalado só de
pensar nelas. Não era capaz de suportar a ideia de ver aqueles
répteis com um aspeto tão delicado a esforçarem-se por seguir o
seu caminho pela floresta sem pernas nem pés. Ficava destroçado!
Achava que tinham uma deficiência demasiado injusta. E costumava
ficar obcecado a fazer desenhos de cobras com quatro pernas, até
perceber que, na verdade, estava a desenhar lagartos.
O mundo era demasiado vivo para o pequeno Shane. O que ele
não sabia era que estava a treinar-se para se tornar um escritor
altamente empático: a perceber os matizes das emoções, a
espreitar a humanidade em lugares inesperados, a ver para lá do
óbvio. Estava a tirar notas para o seu futuro eu, que haveria de pôr
tudo em papel. Tudo o que via, sem tirar nem pôr. E, felizmente,
fazia-o bem. Escrever ajudava-o pelo menos a organizar o cérebro
caótico, mesmo que isso só tivesse acontecido em quatro explosões
intensas em 15 anos.
Já estou a pensar na minha carreira como algo do passado,
apercebeu-se, acelerando um pouco o passo.
Shane escrevera os livros na esperança de limar as arestas da
sua vida. O que não funcionara assim tão bem. A avaliar pelos
críticos, os seus romances eram capazes de reordenar o
pensamento do leitor, suscitando epifanias existenciais. Mas Shane
nunca foi capaz de chegar a si próprio. Na verdade, os seus maiores
triunfos foram seguidos das maiores bebedeiras. Por mais
exorbitantes que fossem os pontos altos, não era capaz de resistir
ao apelo da vaga que haveria de deixá-lo de rastos. A
autodestruição estava sempre iminente.
Não, se escrever tivesse sido a cura, os últimos 15 anos da sua
vida teriam sido muito diferentes. Não teria demorado tanto tempo a
ficar sóbrio. Poderia ter arranjado um lugar permanente para viver,
começado a criar raízes. Teria investido no Seamless ou no Spotify.
Teria levado a atividade de viver a sério.
E teria encontrado Eva há muito tempo.
O Cais 25 surgiu à sua frente. Havia inúmeras pessoas no relvado
com vista para a água a tirarem fotografias ou à espera para
saltarem para caiaques alugados. Shane olhou de relance para os
pais com bebés nos ombros, enquanto as mães tinham as mãos
ocupadas com telefones, lanches, bonecos de peluche ou pacotes
de sumos. Era tudo extraordinariamente exótico. Shane sempre
gostara de ver as famílias à distância e de olhar para elas como se
fossem uma experiência fascinante: aos seus olhos, aquela
intimidade e domesticidade não poderiam ser mais estranhas.
Talvez fosse devido à forma desconexa como crescera, mas não
sabia como cultivar aquele sentido de família. Por isso, rejeitava-o.
Sempre vivera sozinho, longe das multidões e de cidades populosas
— sobretudo de cidades que lhe recordassem Washington —, de
preferência perto do mar e raramente por mais de seis meses.
Apenas casas arrendadas. Havia uma liberdade em morar em
lugares que não eram seus. Deliciava-se com a sensação
vagamente desorientadora das pensões, do alojamento local, da
casa de praia de alguém: locais de passagem, em que as coisas
não batiam completamente certo. Candeeiros em vez de iluminação
no teto. Lençóis com perfumes agressivos de um amaciador
estrangeiro qualquer. Ventoinhas de teto instáveis e estantes
poeirentas com livros dos anos 80 (muitas vezes, westerns
históricos com capas de mulheres de peito grande e, às vezes, um
cavalo). Era impossível acomodar-se demasiado a um lugar que
estava sempre a lembrá-lo de que não era dele.
E também era impossível que alguém o conhecesse. O que era
perfeito. Durante os anos de perdição, Shane não queria que as
pessoas vissem até onde ia a sua instabilidade. A sobriedade
acabaria por vir a mostrar-lhe que toda a gente tinha desequilíbrios,
claro. As merdas dele só estavam mais perto da superfície.
O que é que se passa contigo?, perguntara Eva naquele primeiro
dia, na escola. Shane andava a perguntar-se a mesma coisa há
muitos anos. Mas a primeira vez que pensara a sério na questão
fora quando a ouvira da boca de Eva. Ela perguntara com
curiosidade, não com um juízo de valor.
Shane era um perfeito estranho e confessara-lhe que partia o
braço de propósito, mas ela não o afastara nem condenara. Nem se
rira, o que seria ainda pior. Não tentara convencê-lo a parar. A
generosidade de Eva era extraordinária. A única coisa que ela
queria era saber porquê.
E ele ter-lhe-ia dito. Mas, na altura, não conseguia explicar as
razões por que fazia aquilo a si próprio.
Com um ritmo estável, passou a custo pelo City Vineyard, o
restaurante à frente do rio com as deslumbrantes vistas dos
contornos dos prédios da Baixa no horizonte e os nómadas digitais
a bebericarem rosé em copos de plástico. O perfume doce e
fermentado do bar flutuou por cima de Shane, na brisa quente e
seca, levando-o a correr mais depressa. Com cada pisada, cada
movimento do tronco para a frente, os ossos do antebraço
reverberavam: um latejo tímido, mas com intensidade suficiente
para que ele nunca esquecesse o velho hábito. E o que se passava
realmente consigo.
A primeira vez que ocorrera fora quando Shane tinha 7 anos, o
terrível acontecimento que fizera com que ele andasse de casa de
acolhimento em casa de acolhimento, onde aprendera novos
crimes, novas disfunções e novas formas de não ser amado. Essa
era uma parte do problema. A outra era que, sempre que partia o
braço, doía, mas, quando a dor abrandava, era acometido por uma
extraordinária visão sobre si próprio. Era o único momento em que
via quem era, tão claro como água.
Na segunda vez, estava no 3.º ano, num centro de detenção
juvenil em Washington, e um segurança estava a dar-lhe pontapés
no cu sem dó nem piedade por ter adormecido na hora de almoço.
Shane tentava ripostar, um pequeno Mighty Mouse furioso como o
diabo com punhos rápidos como o fogo. Por fim, o segurança
derrubara-o desferindo um golpe rápido e aniquilante no maxilar e
Shane usara, de propósito, o braço para amortecer a queda. Osso:
partido.
Ah. Sou uma pessoa que não sabe quando parar, apercebera-se.
Outra vez, tinha 12 anos e estava no recreio da escola. Uma
escola cheia de miúdos inadaptados, desordeiros e problemáticos.
Shane já tinha reputação de ser o mais maluco. Em frente de uma
multidão, uma miúda qualquer desafiara um rapaz mais velho para
bater na cabeça de Shane com uma garrafa de vidro de sumo. Só
para ver o que ele faria. Num abrir e fechar de olhos, Shane
prendera-o pelo pescoço e depois atirara-se com ele contra uma
parede de tijolo. Cotovelo à frente. Osso: partido.
Ah. Sou uma pessoa que os outros usam como forma de
entretenimento, apercebera-se.
Mais tarde, quando tinha 17 anos, um idiota de um fala-barato
estava a intimidar uma aluna nova na escola. E, para a salvar,
Shane acertou com o braço engessado na cara dele. Osso: partido.
Ah. Sou uma pessoa capaz de fazer tudo por esta rapariga,
percebera.
Antes de Eva ter colidido com ele de forma tão dramática na
bancada da escola, Shane sentia-se a perder o pé. E era claro que
não havia nenhum orientador escolar, pai ou trabalhador social
preocupado capaz de o manter com os pés assentes na terra.
Depois, conheceu Eva e ela deu-lhe algum ar. Embrenhou-se nele,
ficou gravada no seu cérebro e deu uma volta completa ao mundo
tal como ele o conhecia. Damelhor maneira.
Deixa de pensar no passado. Começa a pensar em como vais
explicar-te a esta mulher.
Shane estava imerso nestes pensamentos quando sentiu o
telefone a vibrar no braço (onde estava guardado, na braçadeira de
corrida Natham para iPhone, considerado o melhor acessório de
2019 pelo RunnersWorld.com). Deteve-se abruptamente no
caminho. Alguns passos atrás de si, um grupo de homens com
bigodes barrocos e músculos hiperdesenvolvidos de Bushwick
derraparam e pararam segundos antes de embaterem contra ele.
— Que raio, meu?
Shane não se apercebeu da colisão iminente porque estava
demasiado ocupado a rezar para que a vibração trouxesse as
notícias que ele esperava. O momento. Eva queria finalmente falar.
Lançou uma súplica silenciosa ao universo na esperança de estar
certo e tirou o telefone da braçadeira.
Eram mensagens de Marisol, Datuan, Reginald e Ty. Quatro dos
seus alunos preferidos a escreverem-lhe de seguida.
Limpou o suor da testa e, abatido pela desilusão, serpentou por
entre os outros corredores até um pequeno trecho de relva tão
verde quanto a Cidade Esmeralda, à esquerda do caminho.
Encontrou um espaço vazio, e deixou-se cair de costas, exausto e
desalentado.
Eva ainda não lhe tinha dito nada. Mas ter notícias dos alunos era
o melhor prémio de consolação
Tal como fizera com Ty, Shane prometera a todos os alunos que
orientava que estaria sempre disponível. Tratava-se de miúdos em
risco. Nenhum deles tinha uma verdadeira figura parental, e ele
ocupara a posição com gosto.
Shane duvidava fortemente que algum dia viesse a ter filhos. Não
confiava no seu ADN. E quanto aos seus pais… bem, tinha a
sensação de que era melhor não saber quem eram. Mas, para um
nómada misantropo sem formação profissional para orientar
adolescentes — e alguém cujos próprios anos de adolescência
poderiam ter inspirado uma série documental arrepiante na Vice TV
—, ele abraçava aquela função. Uma função que lhe assentava
quase demasiado bem. A sua vida como professor tocava-lhe mais
profundamente e revelava-se mais compensadora do que constar
na lista dos livros mais vendidos.
Provavelmente, estava demasiado apegado ao papel de pai
substituto dos filhos dos outros. Houvera alguns momentos — como
quando Bree, a sua aluna preferida em Houston, fizera 16 anos e
fora agredida por um agente depois de um vizinho ter chamado a
polícia devido à barulhenta, mas inocente, festa de aniversário —
em que o seu envolvimento degenerara em algo menos saudável. A
sua reação fora furiosa. Além disso, fora a primeira e única vez que
se sentira instável na sobriedade. Porém, Shane adorava aqueles
miúdos. Eles precisavam de si. E nunca tivera uma recaída, pelo
que o risco valia a pena.
Hoje, 19h57
Marisol
STOR HALL! A comida de gato é venenosa para as pessoas? Foram cometidos erros.
Hoje, 19h59
Datuan
Tudo bem. Cena curtida. O diretor Parker pensava que WTF significava Well That’s
Fantastic[6].
Hoje, 20h02
Reginald
O Sup acabou com a Tazjha ela é uma má namorada disse que os atos valem mais
do que as plantas *palatos *PALAVRAS *PALAVRAS *PALAVRAS Merda para o
corretor automático
Hoje, 20h06
Ty
Td bem Gosto do planetário
As sobrancelhas de Shane franziram-se em surpresa. Ty não
gostava de nada! E, se gostasse, nunca o dizia. Na verdade, ele mal
dizia o que quer que fosse. O objetivo de Shane ao arranjar-lhe o
estágio no planetário fora fazer com que ele se empenhasse em
alguma coisa, mostrar-lhe o que significava ir atrás de uma paixão.
Ergueu os olhos para o céu. Queria estar em casa antes de
anoitecer para o caso de Eva passar por lá. Tinha tempo para uma
chamada.
— Ty! Então, puto? Recebi a tua mensagem.
— Sim.
— Estás a gostar do estágio no planetário?
— É porreiro.
— Conta-me mais. Porque é que estás a gostar?
Silêncio.
— Ty?
— Estou a encolher os ombros.
Shane suspirou. Tinha mesmo de trabalhar as competências de
comunicação com Ty.
— Acabaste de dizer «eu gosto do planetário». É uma afirmação
declarativa forte. Quando expressas uma opinião, tens de estar
preparado para a sustentar com provas viáveis. Estás a gostar com
base em quê?
— Não sei. É tranquilo. Tipo, não sei porquê. — Ty fez uma
pausa. — Quer dizer, na sala celeste…
— Sala celeste!
— É o nome que o Dr. James lhe dá. Na sala celeste, é como se
eu fosse um astrónomo a sério. Tipo, a sério mesmo. Consigo ver o
trajeto do Sol de este para oeste. Ver a Lua de perto.
— Isso é incrível, Ty. Sei que a Lua é a tua cena.
— Sim, e hoje aprendemos coisas sobre os objetos estelares
bizarros. Tipo estrelas de neutrões, pulsares, buracos negros. E
há… há… uma miúda.
Shane sorriu.
— Ah, a sério?
— Sim. Ela ’tá lá às vezes. A desenhar ou não sei quê. Hoje
desenhou uma anã branca.
Shane olhou para o céu sem entender.
— Mas porquê?
— Uma anã branca é uma estrela que esgotou todo o combustível
nuclear.
— Aaah! Como é que ela se chama? Falas com ela?
— Não. Não posso falar com ela.
— É má, hum?
Mais silêncio.
— Ty, estás a encolher os ombros.
— Sim.
— Ouve. Tu és inteligente. És leal. És um dos miúdos mais
interessantes que eu já conheci. Nunca se sabe. Essa miúda pode ir
ao planetário todos os dias na esperança de que fales com ela.
Tenta, pelo menos.
— Posso fazer-lhe uma pergunta. — Como era habitual, as
perguntas de Ty pareciam afirmações. — Como é que sabemos se
estamos mesmo a sentir uma miúda.
Shane soergueu-se e apoiou-se sobre os cotovelos. Gostar da
rapariga do planetário era monumental para um miúdo inseguro
como Ty, e Shane precisava de ter tato.
— Quando é de verdade, nem sequer tens de fazer essa pergunta
— declarou. — Toca fundo. Quase como quando levas um tiro.
— Um tiro — repetiu Ty, aparentemente com dúvidas.
Isto é que foi tato, pensou Shane.
— É assim — prosseguiu Shane. — É como se soubesses que
aconteceu algo dramático. Mas não sabes que as tuas entranhas
foram arrancadas até depois de acontecer. É o que sentimos
quando nos apaixonamos. Quando é de verdade, não te apaixonas
com consciência. Não tens voto na matéria. És atingido com força e
processas a cena mais tarde. Estás a perceber?
Mais silêncio.
— Não vou tentar levar um tiro, mano.
— Ty, é uma metáfora.
— Sim, mas, tipo, eu só quero perguntar-lhe se ela quer ir comer
um gelado comigo, ou assim. Tipo, ao Cold Stone — murmurou Ty.
— Isso já é demais.
— Estás a ver? Nem sequer precisas da minha ajuda! Já tens um
plano — disse Shane, a incentivá-lo. — Convida-a para sair
amanhã. Mostra-te confiante. Se acreditares que és esse tipo, ela
também vai acreditar.
— Se calhar é melhor perguntar-lhe primeiro se ela é intolerante à
lactose.
— Não faças isso em circunstância nenhuma.
— Não, tem razão.
— Ouve, tu consegues — insistiu Shane. — Diz qualquer coisa
depois; conta-me como correu.
— Sim, digo. Obrigado pela ajuda — respondeu Ty, desligando de
seguida.
Shane voltou a guardar o telemóvel na braçadeira, cheio de
esperança no miúdo. Ty ia ficar bem.
O sol tinha acabado de se pôr, e ainda havia a possibilidade —
uma possibilidade remota, uma possibilidade muito ténue — de que
Eva o fosse visitar. Shane começou a correr pelas sinuosas ruas de
West Village, de volta para a Horatio Street.
Havia uma forte probabilidade de o restaurante ter sido a última
vez que veria Eva. Contudo, não podia deixar de querer mais. Vê-la
de novo era algo que o deixava tenso e abalado, mas, no fundo, era
bom. Demasiado bom. No voo para Nova Iorque, imaginara um
milhão de cenários para o reencontro de ambos. Esperara não vir a
sentir nada.
Porém, como acabara de dizer a Ty, não tinha voto na matéria,
pois não?
J
CAPÍTULO 12
VINTE PERGUNTAS
2004
á tinha escurecido quando Shane levou Genevieve para uma
mansão enorme e desabitada na Wisconsin Avenue. Como
sempre, não sentia senão despeito pelas pessoas que tinham
uma casa daquelas e nem sequer se davam ao trabalho de viver lá.
Se fosse dele, só à força é que o tirariam dali.
A decoração parecia a de um museu. Havia detalhes de filigrana
dourada e tapetes de peles de animais por todo o lado. Lustres
tilintantes. Uma tela vertiginosamenteabstrata de salpicos de cores
primárias pendurada por cima de um sofá de pelo de cavalo no hall
de entrada. O sofá era um terror espinhoso, nunca pensado para ser
usado como assento.
Genevieve afundou-se nele imediatamente.
Não perguntou como é que Shane sabia o código do alarme. Ou
porque é que conhecia tão bem a casa mesmo estando esta
mergulhada na escuridão. No dia seguinte, Shane explicar-lhe-ia
que era a casa de uma amiga de infância, que vivia no campus da
Faculdade de Direito da Universidade de Georgetown. O pai dela
era o embaixador da Coreia, e, dado que a família passava mais
tempo em Seoul, a casa costumava estar vazia. A amiga convidara
Shane a ficar lá sempre que precisasse de se evadir.
Shane esperava que Genevieve não lhe perguntasse o que fizera
em troca da generosidade da amiga. Não por ter vergonha. Só não
queria que ela soubesse até que ponto ele estava desesperado.
Mas depois lembrou-se da expressão de Genevieve nas
urgências do hospital, quando ele a convidara a fugir consigo. O
olhar no rosto dela era selvagem, um rasgo de desespero misturado
com entusiasmo. Um sim automático, porque a alternativa era
inimaginável.
Genevieve era uma rapariga que compreendia o desespero.
Shane conduziu-a pela cozinha de azulejos mexicanos até uma
escada de serviço que os levou para uma suite no terceiro andar. O
quarto de uma adolescente caprichosa transformado em quarto de
arrumos no sótão. Havia álbuns de fotografias, bonecas, revistas
antigas, globos de neve e flautas organizados em pilhas bem
arrumadas. Tinha duas portas francesas enormes que davam para
um terraço com vista para um exuberante jardim verde com uma
piscina em forma de rim. Com a mão de Genevieve entrelaçada na
sua, Shane conduziu-a devagar para uma cama de dossel, com
sumptuosos lençóis rosa-claros.
Depois, estendeu a mão para debaixo da cama, de onde retirou
uma bandeja com inúmeros sacos reutilizáveis com erva,
comprimidos, seringas e pós. Estavam rotulados por sensações:
���� (Valium), ������������ (erva), ����� (cocaína), ����� ��
�������� � ��������� �� ������� (anfetaminas), ���� (ecstasy),
��������� (Percocet), e assim por diante.
A rapariga da Universidade de Georgetown era uma viciada em
drogas extravagante.
Shane despiu a t-shirt e deixou-se cair sobre a colcha, junto de
Genevieve. Fumaram uma broca até ao fim. Depois, a certa altura,
enroscaram-se um no outro, o rosto dela aninhado no pescoço dele,
os dedos dele a emaranharem-se nos caracóis dela. Foi um
momento etéreo, delicioso, tê-la tão perto daquela forma inocente.
Dormiu mais profundamente do que nunca.
Por volta das 22 horas, Annabelle Park entrou apressadamente em
casa dos pais. Trazia um minivestido rosa-bebé Juicy Couture e
botões de diamantes. Aconchegada na mala de transporte de
animais Louis Vuitton, estava a sua chihuahua, Nicole Richie.
Annabelle sabia que Shane estava ali. Tinha-lhe ligado. Claro que
ele e a sua bela pila eram sempre bem-vindos. Além disso, era uma
companhia fabulosa porque nunca falava. Ela contava-lhe
mexericos sobre a elite de Washington e ele ficava ali deitado com
um ar enganadoramente atento. Com um sorriso nos lábios,
Annabelle voou escadas acima.
Abriu de rompante a porta do seu antigo quarto. Foi
imediatamente assaltada pelo perfume decadente de erva barata e
pela visão de Shane na sua cama, bem aconchegado com uma gaja
qualquer. Este cabrão todo fodido! O primeiro instinto de Annabelle
foi expulsá-lo ao pontapé, mas… bem, ela não era um monstro.
Para onde iria ele?
Em dez meses, sabia apenas três coisas sobre Shane. A primeira
era que ele vivia num «abrigo para crianças» com uma diretora tipo
Miss Hannigan. A Internet dizia que era um asilo para onde os
menores de idade eram enviados depois de mais de 20 tentativas
falhadas em famílias de acolhimento. Os miúdos «bons» tomavam
medicamentos antipsicóticos que os deixavam dormentes sem se
queixarem, ao passo que os «maus» eram postos em celas
solitárias amarrados a radiadores, numa merda vitoriana retorcida.
Não o podia mandar de volta para lá.
(A propósito, sim, Annabelle estava a sentir alguns ciúmes. Mas
não demorariam a passar. Afinal de contas, ela estava a braços com
os preparativos de um casamento de 125 mil dólares com o Dr.
Jonathon Kim, no Four Seasons, em Georgetown, no outono.)
Sempre que estava vazia, a casa dos pais de Annabelle era o
porto de abrigo para os seus amigos pedrados e para os amigos
pedrados desses amigos. Havia poucas coisas por que ela tinha
menos respeito do que a casa dos pais. Shane e a vagabunda com
o cabelo trágico podiam ficar. Fosse como fosse, os empregados
voltariam na segunda-feira para limpar.
Annabelle entrou de fininho para ver melhor. Shane e a rapariga
tinham olhos negros a condizer. Ela estava agarrada ao braço dele
como se estivesse à deriva numa tempestade marítima de
proporções bíblicas e ele fosse a sua única âncora.
Annabelle sentiu-se triste por ela. Shane não podia ser a âncora
de ninguém. Nunca iria amar nada com a mesma intensidade com
que adorava autodestruir-se.
A segunda coisa que Annabelle sabia sobre Shane era que,
embora ele fosse perseguido por demónios poderosos, escapava
sempre ileso. Mas desconfiava que a rapariga que se apaixonasse
por ele não teria a mesma sorte. Quando a relação acabasse, ela
afastar-se-ia, vacilante, marcada para a vida.
Annabelle desceu as escadas em bicos de pés até à cozinha dos
empregados. Pegou em dois sacos de ervilhas congeladas e numa
garrafa fria de vodca Polugar. Voltou a subir as escadas e pousou
os sacos gelados nos rostos deles (para os hematomas). Depois,
pousou a vodca na mesa de cabeceira. Shane não podia acordar
sem a vodca. Essa era a terceira coisa que ela sabia sobre ele.
Com um movimento presunçoso do cabelo, pegou em Nicole
Richie, rodou sobre os sapatos Jimmy Choo e foi-se embora. Os
detratores de Annabelle pensavam que ela era uma cabra má
viciada em cocaína com maçãs do rosto falsas. E, sim, tinha maçãs
do rosto falsas, mas também tinha um coração de verdade.
Annabelle Park, a pouco tempo de se tornar Annabelle Kim, tinha
22 anos e estava grata por ser adulta. As mulheres adultas sabiam
que não podiam apegar-se a bombas-relógio. As raparigas
adolescentes mal podiam esperar para cair em ruína.
Quando Shane acordou, não sabia que horas eram, que dia era
nem onde estava. Só sabia que tinha acordado sem sobressaltos. A
flutuar. Em paz.
E, à medida que ia ganhando consciência, começou a perceber
que estava a acariciar a pele preternaturalmente suave e doce de
uma rapariga. E que estava aninhado com essa rapariga, e que era
Genevieve. Depois, lembrou-se de tudo. Da escola, do hospital, da
corrida frenética para a casa e de fumarem e fumarem antes de
adormecerem juntos.
De repente, começou a ter lembranças difusas da noite anterior.
Lembrou-se de acordar sobressaltado de um sonho, ao aperceber-
se de que ela estava demasiado longe, e de a puxar para junto de si
com um sentimento de necessidade impensado que nunca se
permitira ter antes. A certa altura, durante um curto momento de
consciência, percebera que estavam a agarrar-se um ao outro de
forma furiosa, sufocando-se mutuamente até ao ponto em que era
quase impossível respirar, mas era um sentimento tão bom que,
antes de adormecer de novo, pensou: Que se lixe! Morrer assim
valeria a pena.
Abriu os olhos. A cabeça de Genevieve estava deitada no seu
braço ileso (que estava cem por cento dormente) e o seu braço
engessado estava pousado sobre a anca dela. Olhou para o quarto
espaçoso de menina, com o dossel sobre a cama king-size a
protegê-los do sol que entrava pelas portas de vidro que davam
para o terraço. O relógio na parede marcava 14 horas. Tinham
dormido 13 horas.
Gemendo um pouco, sentiu os tremores matinais habituais, a
tremedeira incontrolável que o avisava de que tinha de beber.
Rapidamente. Mas não já. Agora, precisava de mergulhar a cara no
calor com perfume de coco do cabelo de Genevieve. Era
inexplicável como ela se havia tornado tão importante para si num
único dia.
Masera costume acontecerem-lhe coisas inexplicáveis, e Shane
aceitava os caprichos da vida. Não sabia se isso fazia de si um
aventureiro ou um idiota, mas uma coisa era verdade: um caminho
de pura racionalidade não lhe traria nada de interessante.
Na bancada da escola, Shane só queria desfrutar da sensação da
vodca com cetamina enquanto lia um livro que já tinha lido 14 vezes.
Era reconfortante saber quais eram as palavras que vinham a
seguir. E isso era o que tornava Genevieve inexplicável. Ele tinha a
sensação de que ela estava destinada a vir a seguir. Como se o
capítulo já tivesse sido escrito e eles estivessem apenas a assumir
os lugares que lhes correspondiam. Como se ele já a conhecesse
de cor.
Inspirou de novo o perfume dela, saboreando-a. Não há nada
melhor do que isto, pensou, ensonado. Foi então que reparou na
garrafa de vodca na mesa de cabeceira.
Subitamente bem acordado, olhou da garrafa para o ombro
perfeito, castanho-amêndoa, de Genevieve e depois de novo para a
garrafa. Com clarividência, concluiu que as duas coisas mais
urgentes no universo eram (a) mantê-la nos seus braços e (b) obter
a vodca. Como conseguir chegar à vodca sem acordar Genevieve
era uma questão de logística.
Com cuidado, e com o braço ileso ainda preso debaixo de
Genevieve, estendeu o braço engessado, os dedos a centímetros
da garrafa. Empurrou Genevieve um pouco para a frente e, com um
esforço hercúleo, esticou-se por cima dela e agarrou a garrafa.
Rodou a tampa com os dentes e bebeu três enormes goles.
Parou para respirar e depois bebeu mais um trago. A tremedeira
abrandou e ele começou a sentir-se normal.
Esticou-se por cima de Genevieve e voltou a pousar a garrafa na
mesa de cabeceira. Olhou fixamente para o teto. Depois, rolou
Genevieve e voltou a estender o braço para a garrafa.
— Quantas vezes vais fazer isso? — perguntou Genevieve, a voz
abafada pela almofada.
— Ena! — exclamou ele. — Estás acordada?
— Agora estou. — Genevieve pegou na garrafa e deu-lha,
virando-se para o encarar. Céus, ela ficava encantadora com a t-
shirt dele, com o cabelo solto e as faces marcadas pelo sono.
— Olá — disse ele, com um sorriso aberto.
Genevieve retribuiu o sorriso, mas depois a sua expressão foi
ficando mais carregada.
— O que se passa? — perguntou ele.
— Não, estou só… Estou confusa — titubeou ela, com um ar
perdido. — O que é que aconteceu? Onde é que estou? E… quem
és tu?
Shane arregalou os olhos. Teria a cabeça de Genevieve batido no
chão com o murro que levara? Teria perdido a memória devido a
alguma concussão? Não. Não. Ele não iria entrar em pânico.
— Qual é a última coisa de que te lembras? — perguntou-lhe.
Genevieve cerrou os olhos.
— Cincinnati.
— Cincinnati?
— É no Ohio — disse ela.
— Estás a falar a sério? — Shane sentou-se e encostou-se à
cabeceira de veludo. Deixou cair a cabeça nas mãos. — Não, não,
não, não…
A boca de Genevieve começou a tremer, os olhos a enrugarem-se
e ela explodiu numa gargalhada.
— Ficaste tão abalado!
— Foda-se — murmurou ele. Contra vontade, esboçou um sorriso
e depois riu-se, ainda trémulo. — Julguei mesmo que tinhas
amnésia.
Com um ar orgulhoso, Genevieve sentou-se junto a ele, ombro
com ombro.
— Fui convincente, não fui? Cresci a ver a telenovela Days of Our
Lives.
— És uma pessoa muito estranha — comentou ele,
reverentemente.
Com um aceno, Genevieve pousou a cabeça sobre o ombro dele.
— Mas, a sério. Lembras-te de como chegámos aqui, certo? Não
estás assustada, pois não?
— Não há nada que me assuste — disse Genevieve, com
confiança.
Shane não acreditou nela porque, nesse preciso momento, o
telefone dela começou a tocar na mochila. E ela encostou-se mais a
ele, tensa. O telefone tocou e tocou, mas ela não fez nenhum gesto
para o atender. Shane perguntou-se quem estaria a ligar-lhe.
Ergueu o braço por cima dos ombros dela e puxou-a ainda mais
para junto de si, na esperança de a fazer esquecer a preocupação
que sentia (ou pelo menos de a abraçar num gesto protetor).
Genevieve soltou um suspiro breve e satisfeito, que acabou num
ligeiro gemido. E Shane teve de se conter até ao limite das suas
forças para não a beijar.
Não podia fazê-lo. Não podia levar a situação para esse ponto.
Com tudo o que acontecera nas últimas 24 horas, beijá-la não
deveria significar nada. Mas, com Genevieve, seria alguma coisa.
Com ela, seria uma promessa.
— Eu nem sequer te conheço — murmurou Genevieve, passando
o dedo indicador por uma velha cicatriz no peito de Shane. —
Porque é que não parecemos estranhos?
— Não perguntes — disse Shane. — Puxas um fio, e a cena
desfaz-se toda.
O telefone de Genevieve voltou a tocar. Desta vez, ela olhou para
a mochila, que havia sido atirada para uma cadeira de vime.
Genevieve tinha o rosto fechado de preocupação e pavor, mas
continuou a ignorar o telefone.
Mordeu o lábio inferior.
— Olha. Queres ir a um sítio qualquer e portar-te mal?
— Mal para um adolescente? Ou mal para ir para a prisão?
— Eu não posso ir presa. Tenho a cara toda negra. Imagina como
ficaria a minha identificação fotográfica.
— Autêntica. — Shane esticou-se um pouco e sentiu algo frio na
perna. Estendeu a mão debaixo dos lençóis e retirou um saco de
ervilhas descongeladas. — Dormimos com ervilhas? São tuas?
— Não. Toda a gente detesta ervilhas.
— Pois. — Shane bebeu um trago da garrafa, com gosto. Algo se
oxidou no seu cérebro, e ele estava a começar a sentir-se
devidamente embriagado. — Vodca boa, esta. — Olhou para a
garrafa com uma expressão confusa. — De quem é a garrafa?
— Tens amnésia? — perguntou Genevieve, com um riso
sarcástico.
— Meu, a minha memória de curto prazo está toda fodida — disse
ele.
— A cetamina é um hábito terrível.
— A vida é um hábito terrível — retorquiu ele, com um brilho
temerário nos olhos. — Queres ir lá para baixo para a piscina e
fumar até cair?
Antes que Genevieve pudesse responder, o telefone dela voltou a
tocar.
— Sim, vamos nadar! — disse ela rapidamente. — Mas e o teu
gesso?
— Película aderente — respondeu ele, com um encolher de
ombros. — Mas nadar não te vai deixar com dores de cabeça? Não
quero que fiques pior.
Genevieve pousou o queixo no braço dele. Olhou para ele com
uma expressão doce, o esboço de um sorriso a assomar-lhe aos
lábios.
— Nunca ninguém me pergunta — disse ela, baixinho. — Eu fico
bem. Mas, se vamos fumar até cair, não podemos afogar-nos?
Shane não sabia o que responder. Estava imerso no rosto dela.
Perdera completamente o rasto à conversa, irremediavelmente
cativado por aqueles olhos ónix, a energia lânguida, o calor radiante
da pele dela contra a dele.
O que importa se nos afogarmos?
Ele já se afogara.
O telefone de Genevieve voltou a tocar. Desta vez, ela lançou a
Shane um olhar a pedir desculpa e tirou o telefone da mochila. Da
cama, Shane viu o nome «Lizette» no ecrã. Genevieve pôs o
telefone em silêncio e atirou-o para a cadeira. E deixou-se ficar a
esfregar as têmporas com os nós dos dedos. O seu humor mudara.
Irradiava ansiedade.
— A tua amiga tem alguma coisa para as dores? — Falou num
tom vago e distante. — Não tenho os meus comprimidos.
Shane estendeu o braço para debaixo da cama para tirar o
material de Annabelle, gatinhou para fora da cama e entregou o
saco com o rótulo dormência a Genevieve.
— Sim, eu vendi-lhe a maior parte desta merda. Depois reponho.
— Obrigada. — Com os olhos baixos, Genevieve tirou uma bolsa
do tamanho de uma navalha de ponta e mola da mochila, e passou
o peso do corpo de uma perna para a outra. Preocupada, começou
a coçar o interior do braço, a pele a arder com um vermelho-vivo.
— Genevieve. Estás bem? — perguntou Shane, aproximando-se.
— Não! — Ela ergueu o braço e deteve-o. — Quer dizer, sim. Só
preciso… de… ir à casa de banho. Dá-me um minuto.
Ele assentiu com a cabeça e disse:
— Faz o que precisares.
Genevieve caminhou sobre o chão perfeitamente encerado até à
casa de banho ao lado, revestida com papel de parede em xadrez
Burberry e com torneiras douradas. Fechou a porta atrás de si.
Shane sabia o que ela estava a fazer lá dentro. Queriaimpedi-la,
mas não tinha nada que ver com o assunto. Por um lado, estavam a
partilhar um espaço naquele momento. Mas, por outro, seria
hipócrita da sua parte ditar quais eram os comportamentos
destrutivos apropriados e não apropriados.
Agarrou na vodca e bateu à porta da casa de banho.
— Posso só ficar aqui? Deste lado da porta?
O silêncio foi demasiado longo. Shane perguntou-se se seria
capaz de arrombar a porta, caso fosse necessário.
— Porquê? — A voz de Genevieve era fraca.
— Para não estares sozinha.
— A sério? — Ela fez uma pausa. Quando voltou a falar, a voz
estava mais próxima. — Sim, acho que sim.
Shane encostou as costas à porta. Esfregou a linha do maxilar,
puxou o lábio inferior e estalou os nós dos dedos.
— Queres falar, ou…
Nesse momento, sentiu uma pressão do tamanho de Genevieve
do outro lado da porta.
— Sim, pode ser. — A voz dela parecia estar à distância do toque.
— Vamos falar.
— Vinte perguntas — disse ele, aclarando a garganta. — Eu
começo. Que tipo de francesa és tu? Haitiana? Argelina?
— Do Louisiana.
— O teu pai é do Louisiana?
— O meu pai é desconhecido.
— O meu também.
— Alguma vez te perguntaste quem é o teu?
— Não, estou bem assim. O conceito de «pai» parece inventado,
como o Pai Natal ou o Coelhinho da Páscoa. — Shane bateu com a
garrafa na perna. — Também nunca acreditei nesses manos.
— Quando eu era pequena — disse Genevieve —, queria que ele
fosse o Mufasa.
Shane hesitou.
— Vou dizer algo controverso.
— Não me digas que nunca viste O Rei Leão.
— É que… a história é escrita pelos vencedores, certo? E se o
Mufasa fosse o mau da fita? E nós não soubéssemos porque ele é a
estrela da história? O «Círculo da Vida» parece propaganda para
pôr os animais das classes operárias no devido lugar. Tipo, vê lá se
te calas, que não passas de alimento. Talvez eu esteja só armado
aos cucos.
— Não estás armado aos cucos; tu és um psicopata — disse ela,
mas ele ouviu-lhe um sorriso na voz. — É a minha vez. Conheces a
tua mãe?
— Não. Órfão. Tu tens mãe?
O silêncio dela foi pesado.
— Às vezes.
— Melhor do que nada, não é?
— Discutível — respondeu ela, com um suspiro. — É a minha
vez. Algum talento escondido?
Shane bateu com o dedo no lábio inferior, perguntando-se se iria
admiti-lo a Genevieve.
— Sei cantar — confessou com hesitação. — Cantar a sério. Num
ritmo de R&B suave qualquer. Tipo, não interessa a canção, até
pode ser o Parabéns a Você. A minha voz parece a do Ginuwine. É
embaraçoso como o caraças.
Genevieve gemeu ao soltar uma gargalhada.
— Canta alguma coisa! Uma canção forte, tipo End of the Road.
Ou a Thong Song. Ou a Beautiful, da Aguilera.
Shane esboçou um esgar.
— Queres que me humilhe para ti?
— Não. Quero que queiras humilhar-te para mim.
Riram-se, e, logo a seguir, ficaram de novo em silêncio. Shane a
bebericar a vodca com pequenos goles e Genevieve calada.
Shane estava a ver a dobrar. Fechou um olho e a visão
reequilibrou-se.
— Olha — começou. — Porque é que fazes isso?
— Não sei. Fico atordoada. — Ela voltou a soar distante. —
Depois, sinto um alívio.
— Dói?
— O objetivo é esse.
— É o mesmo com o meu braço — admitiu ele. — Dói-me, mas
eu preciso disso. Como se fosse a cola que me mantém inteiro.
Genevieve disse algo inaudível. E depois:
— Vou sentar-me.
Shane sentiu o peso dela a descer pela porta. Também se sentou.
Não saberia dizer quanto tempo estiveram assim. O tempo era
elástico. Passado um bocado, apagou. Devia ter dormido
profundamente, porque, quando Genevieve abriu finalmente a porta,
ele caiu redondo de costas, com uma pancada surda.
— Vamos para a piscina! — A voz dela era forte, alegre.
Shane ergueu a cabeça e olhou para ela do chão. Genevieve
apresentava um sorriso brilhante, como se os comprimidos tivessem
feito efeito e a dor que ela sentia tivesse desaparecido. Estava
encharcada, o cabelo a pingar. Teria tomado um duche vestida?
O único sinal de que se cortara era o discreto penso rápido no
interior do antebraço.
Entorpecido, Shane ficou a olhar para a t-shirt encharcada, que se
colava à pele dela, ao soutien, às cuecas, e ficou preso entre um
impulso irremediável de excitação e um fascínio desconfortável. É
como se nada tivesse acontecido. Ela não parecia magoada.
Parecia triunfante. Uma força da natureza.
Por um momento de calor e embriaguez, Shane pensou que tinha
tido alucinações e que imaginara aquilo tudo.
Mas, então, com confiança, ela passou por cima dele a pingar por
todo o lado, saindo do quarto.
— Levanta-te — disse-lhe por cima do ombro.
Sem pensar, Shane levantou-se.
QUARTA-FEIRA
N
CAPÍTULO 13
BASTANTE SENTIMENTAL
a manhã seguinte, as coisas ainda estavam inacreditavelmente
estranhas entre Eva e Audre. O estômago de Eva estava feito
num nó. Tinha menos que ver com o desentendimento, na
verdade, e mais com a forma como haviam falado uma com a outra.
Nunca tinham dito coisas para se magoarem de propósito. Outras
mães e filhas faziam-no. Mas elas não.
Audre saiu de casa em silêncio, sem tomar o pequeno-almoço.
Eva estava devastada — estava mesmo. Mas sabia que tinha de
fazer aquilo. Logo que Audre saiu, pôs um vestido informal de alças,
desordenou os caracóis até apresentarem a voluptuosidade dos de
uma vlogger de cabelos e seguiu a passo rápido para a linha F do
metro. Ao longo dos três quarteirões até à estação, a enxaqueca
passara de levemente aborrecida a uma dor insuportável (humidade
de junho!) e ameaçava esvaziar a temeridade com que saíra de
casa. Entrou na casa de banho de uma loja de conveniência e
autoadministrou o analgésico injetável. Quando chegou a West
Village, tinha a coxa dormente, a cabeça zonza e o cabelo flácido,
mas manteve o foco. Pediu dois cafés gelados num estabelecimento
podre de velho na Eighth Avenue e seguiu a passo de corrida pelas
ruas calcetadas e labirínticas até à morada pretendida.
A Horatio Street transpirava charme de designer e esplendor da
Nova Iorque de outros tempos. À sombra de árvores luxuriantes de
grande porte, o número 81 era o penúltimo do quarteirão, um prédio
de tijolo vermelho do século XIX. Sobressaía em relação aos outros
por ter mais um andar e majestosas escadas que conduziam a uma
imponente porta azul-celeste.
Eva subiu as escadas majestosas do prédio e parou no último
degrau. Respirou fundo, as mãos gélidas, os cafés gelados a
pingarem sobre os ténis Adidas.
Sem nenhuma mão livre para bater à porta, bateu devagar com o
pé. Não aconteceu nada. Bateu de novo. Nada, mais uma vez.
Então, a porta abriu-se.
Shane assomou à entrada, frustrantemente espadaúdo, os olhos
a brilharem, e deslumbrante — t-shirt branca toda enrugada e calças
de fato de treino cinzentas (pornográfico) —, com uma expressão de
choque puro maldisfarçado.
— Estás aqui — disse Eva, com um suspiro.
— Tu estás aqui — retorquiu ele, expirando profundamente. —
Vieste.
Eva assentiu com a cabeça.
— Sim, vim.
Ele levou o polegar ao lábio inferior, num esforço para não sorrir.
— Porquê?
— Para te trazer café — respondeu ela, não sabendo como lhe
dizer a verdade. Estendeu-lhe o copo.
— Obrigado? — disse ele, confuso. — Hum… Então. Fui longe
demais com as mensagens. Desculpa. Foi pela maneira como te
foste embora. Estava preocupado.
— Não há necessidade. Eu estou bem. — Ela vislumbrou o seu
reflexo demasiado nervoso e inquieto na janela. Não tinha ar de
quem estava bem. Parecia que já ia no quinto latte grande.
— Queres entrar?
— É melhor não.
— Oh. — Shane hesitou por um instante antes de acrescentar. —
Queres que eu saia?
Eva vacilou por instantes, apanhada desprevenida. Ali estava ela,
à frente dele, diante daquele bonito prédio antigo, e não preparara
completamente o que tinha para dizer.
— Estás em dívida para comigo — atirou.
— Estou em dívida para contigo — repetiu ele.
— Sim.
Movendo-se ligeiramente, Shane pôs uma mão no bolso.
— Pelo café?
Era tão difícil.
— Não. Quer dizer… Ouve, não vim cá para falar sobre o
passado. Mas depois da forma como acabámos? Naquela altura?
Tu sabes que estás em dívida para comigo.
— Ah — expirou ele, percebendo onde ela queriachegar. — Sim,
sem dúvida, estou em dívida contigo.
— Preciso de um favor.
— O que quiseres.
— A sério?
A assentir devagar com a cabeça, Shane intercetou o olhar dela.
— De que é que precisas?
Concentra-te.
— Podes dar aulas de Inglês na escola…
— Posso — interrompeu-a ele.
— … da minha filha? Não sei por quanto tempo tens de ficar lá.
Mas a diretora está desesperada à procura de um professor de
Literatura Inglesa para o próximo ano letivo. É uma espécie de
emergência.
— Sim.
— Não queres saber porquê?
Com os olhos a reluzirem, Shane disse:
— Contas-me depois.
— É arrojado da tua parte assumires que irá haver um depois.
— É arrojado da tua assumires que não irá.
As sobrancelhas de Eva subiram até à linha do cabelo.
— Desculpa?
— Um depois platónico. — Shane gesticulou para ela com o café.
— O que estás a dizer é que o passado está verdadeiramente para
trás das costas, certo?
— Certo.
— Então, vamos começar de novo. Ser amigos. Tens algum
compromisso a seguir?
De cenho franzido, Eva olhou para o relógio.
— Tenho. A minha vida está… Bem, está a desmoronar-se.
— Queres falar sobre isso?
Eva abanou a cabeça.
— Não. É melhor ir andando.
— OK. — A expressão de Shane não denunciou nada. — Adeus.
Surpreendida, Eva deixou escapar um suspiro involuntário.
— Adeus?
Shane encostou-se à ombreira da porta.
— Queres que eu te convença a fazer gazeta? Se quiseres fazer,
faz. Já és crescida — disse.
— Certo. — Eva inclinou a cabeça, tentando avaliá-lo. — Ainda és
perigoso?
Ele riu-se.
— E tu?
— Eu sou mãe. Escrevo cartas a diretores a exigir salas de aula
energeticamente eficientes.
— E eu estava a pesquisar um retiro zen silencioso cinco minutos
antes de tu teres chegado. Somos tão aborrecidos agora. Em que
sarilhos é que nos poderíamos meter?
Mordendo o lábio inferior, Shane ergueu o copo na direção dela.
— Uma hora — disse ela, batendo com o copo no dele. — No
máximo.
Eva registou o sorriso satisfeito e seguro de Shane. Nunca fora
suficientemente resistente para o suportar.
Começando pelo mais importante, Eva tinha de contar as boas
notícias a Bridget O’Brien. Ao escrever rapidamente o e-mail a
Bridget, os dedos a voarem com entusiasmo sobre o telemóvel, foi
inundada por uma sensação de alívio absolutamente jubilante. O
lugar de Audre na Escola Preparatória Cheshire — e tudo aquilo por
que ambas tinham trabalhado — estava seguro. A carreira
académica da sua bebé estava salvaguardada! Graças a Shane.
Então, tão depressa quanto chegara, o alívio começou a
dissolver-se e a transformar-se noutra coisa: a perceção cada vez
mais clara de que Shane iria ficar em Nova Iorque. Shane na sua
cidade. A infiltrar-se no seu mundo.
Era um pequeno preço a pagar pela carreira académica de Audre.
Não iria preocupar-se com isso naquele momento. Na verdade, tudo
o que sentia era gratidão.
O sol brilhava, amarelo e quente, mas soprava uma brisa
deliciosa: um dia perfeito para se vaguear sem destino. Por isso,
quando Shane sugeriu que caminhassem pela High Line, Eva
acedeu com cautela. Seria uma saída tranquila de um par de
velhos… amigos? O que quer que fossem, Shane e Eva fizeram-se
à escada oculta que dava para a High Line, logo atrás do Museu
Whitney, sempre cheio de turistas. O passeio elevado que ligava
West Village a Chelsea estava repleto de carrinhos de comida,
fontanários e jardins com sombras e vista sobre a cidade. Após uma
caminhada curta, encontraram um minianfiteatro com uma parede
de vidro à frente com vista para a Tenth Avenue.
Eva estava sempre com os nervos em franja, mas sentia-se
surpreendentemente calma na presença de Shane. A multidão
esparsa nos degraus irradiava a tranquilidade contagiosa de um dia
indolente: uma mãe a amamentar, um passeador de cães a apanhar
sol com quatro yorkies, um casal mais velho a bebericar uma
limonada. Eva e Shane escolheram um lugar e lançaram-se numa
conversa de circunstância hesitante. Sobre o tempo. Vendas de
livros. A segunda temporada de Atlanta.
Pouco depois, quando caíram num silêncio fácil, Eva abandonou
a conversa de circunstância e atirou-se de cabeça.
— Entããão — começou ela. — Horatio Street, número 81.
— A minha morada. O que é que tem? — Ele abanou o café,
derretendo o gelo.
— Era a casa do James Baldwin.
— Como diz a placa na porta — observou Shane.
— Não. Eu sou obcecada pelo Baldwin. Sei que ele viveu lá de
1958 a 1961. — Eva ergueu as sobrancelhas, cheia de intenção. —
Escreveu o Another Country naquela casa.
— Foi, não foi?
Ela cruzou os braços e lançou-lhe um olhar fulminante.
— É o romance que estavas a ler na bancada, na escola. Quando
nos conhecemos.
Ele cruzou os braços e retribuiu-lhe o olhar.
— Coincidência poética.
— Shane.
Ele sorriu abertamente.
— És bastante sentimental, mano — disse ela.
— E tu lembraste-te. Por isso, também és. — Com o sorriso a
abrir-lhe o rosto, ele inclinou-se sobre os antebraços, cruzando as
pernas à sua frente. O sol refletia-se-lhe na pele descoberta. Eva
achou-o estupidamente irresistível. — Se tens a oportunidade de dar
significado a um momento, porque não fazê-lo? — continuou ele. —
Eu poderia ter ficado no Ramada Inn com vendedores tristes a
morrerem devagar de lugares-comuns e de tédio. Ou então arrendar
a casa do meu autor preferido, na esperança de me inspirar para
escrever. Se não, pelo menos desfrutar de uma semana rodeado de
simbolismo, num ciclo que se completa.
— E como é que está a correr?
— Estar rodeado de simbolismo? Bem, estamos novamente
sentados numa bancada, 15 junhos depois, pelo que diria que está
a correr bastante bem.
Partilharam um olhar em silêncio. Eva desviou os olhos primeiro.
— Estava a referir-me à escrita — enfatizou ela.
— Já não consigo pôr as palavras a fazerem o que eu quero que
façam. — A voz dele era de resignação.
Eva pousou o café.
— É como aqueles casos em que as pessoas sofrem
traumatismos cranianos graves, ficam em coma e acordam a falar
outra língua. Imagino que seja algo desse género. Escrever sóbrio
pela primeira vez.
— Sim — disse Shane, a refletir sobre a questão. Depois, deixou
escapar uma risada breve e triste. — É exatamente isso. Como se,
um dia, eu tivesse acordado e não soubesse inglês. Estou a tentar
escrever numa língua que já não falo. — E acrescentou: — Não sei
escrever sóbrio. Nunca tinha dito isto em voz alta.
Eva inclinou-se para trás e ficaram quase ombro com ombro.
— Não que eu tivesse visto qualquer vídeo sobre ti, ao longo dos
anos — ela sorriu para ele —, mas nunca me pareceste perdido de
bêbedo. Apenas ensonado.
— Céus, isso tem que ver com os Prémios da Associação
Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor?
— Só estou a dizer que disfarçaste bem.
— Fazer de conta que se está sóbrio é uma arte — explicou
Shane. — O truque é dizer muito pouco e ficar muito quieto. E, se
fizeres isso demasiado bem, é inevitável que o sono chegue.
— Li algures — começou Eva — que, nos sets de filmes, os
atores andam em círculos antes de filmarem as cenas de bêbedos.
Para ficaram atordoados e zonzos.
— Espertos — disse Shane, voltando a rodar o gelo no café, um
som tilintante e tranquilizador. — Sabes o que é que os figurantes
em cenas de multidões fazem para darem a entender que estão a
meio de uma conversa? Repetem as palavras «ervilhas e cenouras»
vezes sem conta. Mas gesticulam, como se estivessem realmente a
dizer merdas.
— Isso é verdade? — Eva tocou-lhe com o ombro. — Faz de
louco.
Enrugando a graciosa fisionomia num cenho carrancudo, Shane
articulou com os lábios: «Ervilhas e cenouras, ervilhas e cenouras.»
Parecia um golden retriever furioso.
Eva explodiu numa gargalhada.
— Qual é a graça?
— Shane Hall, já não és nada assustador.
— Eu sei. Tiro o «mal» do «malandro».
Riram-se ambos, até se esquecerem de qual era a graça. Por fim,
caíram num silêncio confortável a aproveitar o sol. Quando o
telefone de Shane retiniu, ele olhou indolentemente para baixo e viu
que era Ty. Uma selfie da cara redonda do miúdo a sorrir ao lado de
uma rapariga gira com tranças, ambos com cones de gelado na
mão.
Este dia é perfeito, pensouShane, quase inebriado. Está tudo
perfeito.
— Não consigo deixar de notar que estás muito mais leve — disse
Eva, assimilando a expressão dele. — Posso perguntar-te como é
que paraste? Foram os Alcoólicos Anónimos?
Shane pensou na pergunta, enquanto dobrava o invólucro da
palhinha até o transformar num pequeno quadrado.
— Não, detestei os Alcoólicos Anónimos. A partilha interminável e
a terapia de grupo. Tudo para percebermos porque bebemos. Eu
sempre soube porquê, e nunca parei por causa disso. Fiquei sóbrio
porque quis. Era deixar de beber ou morrer. — Virou-se para olhar
para ela. — Sou demasiado narcisista para morrer.
— Pois. Tens a certeza de que a terapia não funcionou?
Shane estava prestes a dar-lhe uma resposta, mas distraiu-se
com o sol a brilhar nos braços nus de Eva. Os seus olhos viajaram
pela pele dela, já não marcada por cicatrizes, mas por dispersas
tatuagens pretas e delicadas. Uma meia-lua; o símbolo do estado do
Louisiana; uma pena, a data de nascimento de alguém gravada
numa videira irrealista cheia de flores, a rodear o pulso. A arte de
Eva era uma bela distração.
Ninguém imaginava o que estava por baixo.
— Como é que paraste, Genevieve?
— Eva — corrigiu ela, baixinho.
— Eu sei — disse ele, após uma pausa. — Para mim, é difícil
dizer.
— Não faz mal — respondeu ela, e não fazia mesmo. — Depois
de… nós, tive de ir para um centro psiquiátrico, para pessoas que se
mutilam.
— Foi a tua mãe que te internou?
— Não, foi a polícia — disse ela, sem oferecer mais informação.
— No centro, descobri que os cortes eram uma reação a um
sentimento de impotência. O único momento em que me sentia em
controlo. — Ela passou a mão pelo braço esquerdo, para cima e
para baixo, como que a protegê-lo de memórias contundentes. —
Antes disso, pensava que era um ritual divino. Os maias
acreditavam que, ao nascerem, os deuses lhes ofereciam sangue,
pelo que se cortavam para o devolverem. Como uma limpeza
espiritual.
— Alguma vez sentes falta de o fazer? — perguntou Shane.
— Às vezes — admitiu ela, com a voz quebrada. — Normalmente,
quando estou no duche. Sinto falta do ardor da água nos meus
cortes. Um pouco doentio, não é?
— Para mim, não — disse ele, sem nenhum tipo de juízo de valor.
Eva deixou-se envolver por aquela energia e relaxou um pouco,
agradecida pelo momento. — Eu não sinto falta de beber —
continuou ele. — Mas sinto falta de ter uma muleta. Ao início, olhava
para as pessoas sóbrias, tipo, raios, andam mesmo por aí a sentir
tudo?
— Pois. Eu sinto falta de ter uma forma de entorpecer tudo.
— Eu sinto falta dos vícios.
Em silêncio, ficaram sentados ombro com ombro, a poucos
centímetros de distância, os corpos a espelharem-se, mas sem se
tocarem.
— Continuas a usar o anel — comentou ele.
Eva não se apercebera de que ele estava a olhar para ela. Com o
coração a palpitar, ergueu a mão e olhou para o velho anel de
camafeu ao sol, com os olhos semicerrados.
— Faz-me sentir protegida, não sei porquê. Tens alguma coisa
parecida? Tipo, um cobertor de segurança?
— Não. — Shane olhou para a rua. — Não, já não.
Eva puxou um caracol para trás da orelha e ficou a observar um
grupo de hipsters a sair do Artichoke Basille’s Pizza, na Tenth
Avenue. Depois, lançando um sorriso tímido a Shane, levantou-se e
desceu as escadas da bancada até à parede de vidro.
Ali, inclinou-se para a frente, encostando a testa ao vidro frio. A
sensação era incrível, como se estivesse suspensa no ar sobre a
rua, mais abaixo. Como se o mundo tivesse parado e começado
naquele local. Os seus olhos fecharam-se devagar, e ela sentiu
Shane a aproximar-se.
— Uma vez, fiz isto com a Audre — contou-lhe. — Parece que
estamos a flutuar, não é? Fecha os olhos.
Ficaram ali por um segundo, ou dois, ou três, antes de ela olhar
de relance para ele.
Os olhos de Shane estavam longe de estar fechados. Ele estava
a absorvê-la com o olhar, a expressão aberta e hipnotizada. Com o
sol, os seus olhos brilhavam num tom mais claro do que era
habitual. Eva lembrava-se daquela cor, o mel com salpicos
dourados. Lembrava-se de tudo. Como era fácil deixar-se cair nele.
Num momento, estava bem; no outro, tinha-se evaporado.
— Vamos — disse Shane, quebrando a espécie de feitiço em que
haviam caído.
Eva pestanejou.
— Onde?
— Procurar novos vícios. Que não sejam perigosos.
— Valerão a pena se não forem perigosos? — perguntou Eva.
— Não sei. — respondeu Shane. Depois, com um entusiasmo
infantil, acrescentou: — Vamos descobrir.
Shane e Eva encontraram o seu primeiro vício seguro: um gelado
artesanal na Little West Twelfth. E atiraram-se de cabeça. Pediram
cones com três bolas antes de voltarem para as ruas labirínticas de
West Village manchadas pelas sombras.
O gelado de azeite escorria pelo cone de Shane, e o gelado de
Eva era de canela e cappuccino. Era delicioso. Toda a tarde fora
deliciosa, de tal forma que Shane já se sentia nostálgico ainda antes
de acabar.
Era como se o contínuo espaço-tempo tivesse soluçado e eles
nunca tivessem deixado de se conhecer. Estavam leves como o ar,
inebriados por uma amizade reacendida. Shane não se atreveu a
desafiar o destino pedindo mais do que aquilo. Aquele momento era
perfeito. Bastava assim. Bastava Eva. Uma Afrodite de Adidas. A
perturbadora e vertiginosamente sensual Eva, que mal tocara no
gelado porque passara os últimos sete quarteirões a desconstruir o
subtexto feminista de Guardiões da Galáxia Vol. 2.
Shane, que nem era grande apreciador de super-heróis, ficou
imediatamente convertido. A paixão de Eva era contagiante. O
sorriso dela parecia não ter peso. A forma como se pronunciava era
tão… mandona. A certa altura, já a meio do discurso, usou os
óculos como bandolete, puxando o cabelo para trás… e Shane ficou
a observar um caracol que escapara a bater-lhe na testa como uma
mola. Num agonizante movimento lento.
Arriscaria tudo só por aquele caracol.
Shane tinha plena noção de que estava a ficar louco. Era quase
demasiado caminhar, falar e comer gelado ao mesmo tempo.
Felizmente, Eva deixou-se cair num banco à porta de um boticário
do século XIX. Quando, finalmente, ela se concentrou no gelado,
Shane fez-lhe a pergunta que tinha na cabeça desde essa manhã.
— Mudança de assunto — disse, atrapalhado. — Porque é que a
tua vida está a desmoronar-se?
Soltando um gemido dramático, Eva contou-lhe acerca do
escândalo do Snapchat de Audre.
— … e a Audre é um sonho. Mas acha que sabe tudo sobre o
mundo. Está desesperada por ser crescida. É assustador! Como
mãe dela, por vezes sinto-me perdida. O meu único exemplo é a
minha mãe, que era muitas coisas, mas «mãe» não era
propriamente uma delas.
Antes de poder responder, Shane reparou que, do outro lado da
rua, numa esquina, uma rapariga de 20 e poucos anos, pele de
azeitona e rabo de cavalo cor-de-rosa, não tirava os olhos deles. A
rapariga fez um esgar, digitou algo no telemóvel e riu-se.
Felizmente, não estava na linha de visão de Eva.
Filha da mãe, pensou Shane, baixando a cabeça. As jovens fãs
eram tão descontroladas. Eram capazes de tatuar «Oito» em oito
partes diferentes do corpo.
— Nunca me chegaste a falar da tua mãe — disse ele, desviando
o olhar da rapariga.
— Hum… — Eva lambeu o gelado. — Vejamos. Era de uma
cidade pequena, Belle Fleur. Quando eu era miúda, as pessoas
chamavam-lhe Mandy, um diminutivo de Mantis[7]. Porque ela
nasceu com as mãos juntas em oração, como um louva-a-deus. Na
baía pantanosa — continuou ela, com o sotaque arrastado do
Louisiana da mãe —, o nosso nome de nascença é só uma
sugestão. — Sorriu. — Lizette assenta-lhe melhor.
— Parece frágil e trágico.
— É a minha mãe — disse Eva, a assentir com a cabeça. — Mas,
enfim, não recebeu formação para nada a não ser para ganhar
concursos de beleza. Chegou ao concurso de Miss Universo em
1987, mas foi desqualificada.
— Uma merda qualquer tipo Vanessa Williams?[8] — perguntou
Shane.
— Não, foi porque não podia participar no concurso de fato de
banho com uma barriga de seis meses. — Eva riu-se. — Depois de
eu nascer, mudámo-nos para Los Angeles, mas ela eramuito baixa
para ser modelo e tinha um sotaque demasiado carregado para ser
atriz. O que a salvou foram os homens ricos. Tornou-se uma espécie
de… amante profissional. O que foi lucrativo por uns tempos. As
casas, as roupas, as escolas, tudo de primeira. Sabes que não me
lembro do interior de muitos apartamentos em que vivi quando era
miúda? Só da vista das janelas dos meus quartos. Um lago artificial
com uma estátua de uma sereia de mármore a fazer de chafariz em
Las Vegas. As traseiras de um luxuoso restaurante persa em
Chicago. Em Atlanta, era uma travessa com uma população densa
de gatos vadios, aos quais dei os nomes dos membros dos Wu-
Tang Clang.
— Isso são muitos gatos.
— Ao fim de cada separação, mudávamo-nos. Quando eu era
adolescente, as cidades eram cada vez mais degradadas, e os
homens que ela escolhia eram um verdadeiro pesadelo. Mas ela
nunca via o que poderia causar problemas, sabes? Era muito infantil
— disse Eva. — Dormia o dia inteiro, saía à noite, e eu ficava
entregue a mim própria. — Eva fez uma pausa, as sobrancelhas
caídas. — A Lizette era uma lunática. Mas a verdade é que a mãe
dela, a minha avó Clotilde? Era outra lunática, sem dúvida alguma.
— Também era uma amante profissional?
— Não, era uma assassina.
— Uma… quê?
— A minha avó Clotilde tinha «ataques». Desmaios, depressões
e… — Eva calou-se de repente.
— E o quê?
— Dores de cabeça violentas.
Shane fitou-a, sem pestanejar.
— A cidade pensava que ela estava possuída. Sobretudo devido
às dores de cabeça lancinantes que tinha depois de beber o
«sangue de Cristo» todos os domingos na missa. Claro que o
sangue de Cristo era só vinho tinto barato, um desencadeador
clássico de enxaquecas. Mas, nos anos 50, ninguém sabia disso. —
Eva esboçou um leve sorriso. — Toda a gente pensava que era
uma…
— Uma bruxa — interrompeu Shane, com um ar incrédulo. —
Uma bruxa com enxaquecas.
A covinha de Eva apareceu.
— Um dia, o meu avô estava a cantar no telheiro, com a sua voz
de barítono. Reza a lenda que ela estava a ter um ataque que já
durava há um mês e não conseguia suportar o barulho, por isso,
passou-se da cabeça e deu-lhe um tiro. O xerife tinha medo dela e
não a acusou, mas correram com ela da cidade. Deixou a Lizette
com uma tia e começou uma nova vida em Shreveport. Ah! E
tornou-se uma empresária. Segundo consta, fazia uma jambalaya
de comer e chorar por mais. E, para ganhar algum dinheiro,
aproveitava a cena da bruxa e vendia a receita em feiras do
condado. «Caldo da bruxa Clo: especiarias beijadas pelo próprio
Satanás.» Os seus rótulos feitos à mão aparecem nos painéis da
estética do Sul no Pinterest. A minha mãe contou-me isto tudo. Era
uma excelente contadora de histórias. É a única coisa que temos
em comum.
Shane recostou-se no banco.
— É essa a tua linhagem? Que cenas extraordinariamente negras
e fantásticas!
— É ainda mais obscuro do que isso. — Eva mantivera estas
histórias em segredo toda a vida, e poder abrir-se deixava-a
extasiada. — Quando a Clo era criança, a mãe dela, Delphine, fugiu
na calada da noite. Sem avisar, escapuliu-se para Nova Orleães e
fez-se passar por siciliana. Mudou o apelido de Mercier para Micelli,
tornou-se corista, casou-se com o procurador-geral, teve um filho
«branco» e conquistou a sociedade dos anos 30. E, quando o
marido morreu, alguns anos mais tarde, herdou a casa dele. Uma
mulher secretamente negra era a dona da melhor mansão do muito,
muito racista distrito de Garden.
— Imagina viver com o medo de ser descoberta — disse Shane.
— Acho que não foi capaz. Aos 40 anos, afogou-se na banheira
durante a festa de Natal anual, com a casa cheia de aristocratas de
Nova Orleães. Escreveu «Passant Blanc» nos azulejos com o
batom. Denunciou-se. — Eva encolheu os ombros vagamente. —
Ao que parece, a história foi enterrada. Tenho primos brancos que
não sabem quem são. Encontrei-os no Facebook. E são bem
brancos, ainda por cima. Brancos e republicanos.
— Tens familiares italianos falsos?
Shane queria mais. Eva ia-se transformando à medida que falava:
as mãos a flutuarem no ar, como que a apanharem pedaços da
história, a voz fluida, a metamorfosear-se. Como se estivesse ela
própria a viver as histórias.
Eva era todas aquelas mulheres.
— Isso é um livro — disse Shane. — Escreve-o, por favor.
— Certo, e qual seria o título? Mães Instáveis e Filhas à Deriva?
— Eva falava como se já tivesse pensado no assunto. E muito. —
Além disso, tenho de escrever o livro 15 antes de começar qualquer
outra coisa.
— É esse o livro a que te referias no restaurante — observou
Shane, lembrando-se. — O que disseste que ninguém iria ler? Estás
enganada! Isso é a história dos negros na América contada por
matriarcas fascinantes com pelo na venta.
— Bem, a Audre não sabe de nada disto. Pensa que a Lizette é
uma heroína. Eu… distorci um bocado a história porque quero que
ela sinta orgulho de quem é — explicou Eva. — Nunca fui a Belle
Fleur, sequer.
— Vai. — A fervilhar de energia, Shane virou o corpo para a olhar
de frente. — Vai.
— Não posso — respondeu Eva, abanando a cabeça. — Teria de
me abrir completamente.
— E porque é que não queres abrir-te?
— Porque aqui dentro é uma confusão — disse ela, secamente.
Ele perguntou-se quando teria sido a última vez que ela se
desmoronara diante de alguém.
— Mas isso é que é material bom — insistiu ele. — És tu.
— Não me posso dar ao luxo de me deixar ir abaixo — disse ela.
Os seus olhos cruzaram-se com os dele. E Shane viu que ela
parecia estar carente. Foi acometido por algo potente e protetor.
Queria pegar nela e fugir. O que, historicamente falando, era capaz
de não acabar bem.
— Shane — disse ela, baixinho. — Porque é que não disseste o
meu nome?
Shane estremeceu, apanhado desprevenido. Era perturbador ser
apanhado entre o que sentia no passado e o que sentia naquele
momento. Se ele dissesse o nome dela, ela deixaria de ser uma
memória. Tornar-se-ia palpável. E ele teria de se confrontar com o
que era real. E a realidade era que Eva Mercy estava a desbobiná-
lo, tão devagar e com tanta segurança como se estivesse a puxar
um fio.
Shane estava ali para fazer as pazes com o passado e partir.
Apaixonar-se por ela não fazia parte do plano.
— Não sou capaz de dizer o teu novo nome.
— Porquê?
— Também não posso dar-me ao luxo de me ir abaixo — explicou
ele, com hesitação.
Ouviu o leve suspiro de Eva e viu os lábios dela a entreabrirem-
se, mas nunca chegou a ouvir a sua resposta, porque, de repente, a
rapariga de rabo de cavalo cor-de-rosa estava à frente deles. A
bloquear o sol. A acenar lunaticamente, como se estivesse a uma
grande distância.
Sacudidos de um grande momento, olharam para cima com
expressões de confusão (Eva) e de aborrecimento (Shane).
— Olááá! — gritou a rapariga. — Sou a Charlii, com dois is.
— Era bom que puséssemos uns pontos nesses is — murmurou
Shane.
— Eu vi que vocês os dois tinham, tipo, uma vibração intensa?
Pensei que poderiam precisar de relaxar, por isso, venho fazer-vos
um convite! Mas depressa, fechamos às três da tarde.
— Um convite para quê? — perguntou Eva.
— Para a Casa de Sonho. Eu sou a rececionista. — A Rabo de
Cavalo Cor-de-Rosa apontou para uma casa indistinta, do outro lado
da rua. Tinha uma porta preta com uma placa que dizia «A Casa de
Sonho», em letras garrafais brancas. Uma mulher de negócios do
centro da cidade com roupas Ann Taylor saiu, titubeante, a bocejar
de satisfação.
— Ahhh — murmurou Eva, olhando para Shane. — Eu li sobre
isto no Refinery29. É uma instalação de arte a imitar as sestas dos
jardins de infância, mas para adultos. Entramos, meditamos,
dormimos, relaxamos. E depois voltamos para o trabalho mais
frescos.
Shane mostrava-se cético. Quando era adolescente teria roubado
todos os idiotas que estivessem a dormir naquela casa.
— Dormir no meio de estranhos é seguro? — perguntou Eva,
muito perto de ler os pensamentos de Shane.
— Temos regras rigorosas — insistiu a Rabo de Cavalo Cor-de-
Rosa. — Então, a Casa de Sonho é uma experiência imersiva de
som e de luz. As salas são escuras;só têm umas luzes lilases
suaves, e há incenso e música hipnótica, mas vocês vão ouvir
diferentes tons, consoante estiverem em pé, sentados ou deitados
— explicou. — Cá fora é o caos, o aquecimento global, Mike Pence.
Lá dentro, há paz, arte, liberdade. É uma alucinação sem ácidos!
Uma pedrada sem drogas? Eva olhou para Shane. Shane olhou
para Eva.
Dez minutos depois, Shane e Eva estavam imersos, a flutuar, numa
sala tipo útero.
Por essa altura, Charlli-Com-Dois-Is Sanchez já publicara a
fotografia tirada com o iPhone X de Shane e Eva no grupo do
Facebook de Amaldiçoados, com uma descrição detalhada do
avistamento. Como coordenadora adjunta da muito restrita
Associação Latinx Bruja da Queens College, era uma tremenda fã
do poder feminino da bruxa de Eva, embora, como nova-iorquina de
nascença, tivesse demasiado estilo para lho confessar.
— A
CAPÍTULO 14
COISAS DE RAPARIGAS
Sparrow faz sempre isto — lamuriou-se Parsley Katzen, cuja
diatribe já ia em dez minutos. — É tão sedenta. Tão
insistente. Audre não estava com paciência para aquele drama.
Parsley só falava de Sparrow Shapiro. E de Riverdale. E Audre tinha
de ficar ali sentada ao lado dela por mais uma hora. Como se o
castigo pudesse piorar muito mais.
— Ontem, usei as minhas botas com plataforma — recomeçou
Parsley — e a Sparrow disse: «Oh, encomendei umas iguais na
Urban Outfitters, no fim de semana passado.» Cabra, não, não
encomendaste. Só precisas de uma desculpa para quando vieres
para a escola a usar as minhas merdas.
Controlando-se para não revirar os olhos, Audre deu a resposta
mais delicada de que se conseguiu lembrar.
— Talvez as tenha comprado mesmo. Todas nós compramos as
mesmas coisas. Olha, estamos ambas a usar Vans Keith Haring.
— Os Vans são omnipresentes — ripostou Parsley. Audre
desconfiava que ela não seria capaz de soletrar «omnipresentes».
Isto não tem nada que ver com a Sparrow roubar as tuas botas,
pensou Audre. Tem que ver com a Sparrow roubar a canção de
entrada no teu bar mitzvah. Como se alguém tivesse o monopólio da
Old Town Road.
Audre não queria continuar aquela discussão. A boa notícia era
que era fácil distrair Parsley.
— As tuas sobrancelhas são tão giras. Fazes microblading?
— Sim! Na Bling Brows. Ficaram bem, não ficaram?
— Icónicas. — Audre conteve um bocejo.
Parsley deu um gritinho e mirou-se no reflexo do iPhone. Deitou a
língua de fora, fez um sinal de paz e tirou uma selfie.
— Sou tão gira, argh.
Perfeito. Audre podia finalmente amuar em paz.
Passara o dia inteiro a tentar conter as lágrimas. Mas, dado que a
sua imagem de marca era Sempre sob Controlo, nenhuma das
outras quatro raparigas no castigo claramente de baixo impacto da
Escola Preparatória Cheshire teria notado.
Audre podia contar pelos dedos de uma mão o número de vezes
em que se demonstrara aborrecida na escola. Ou em que dissera
um palavrão inflamado, tipo «foda-se». Ou em que falara mal de
uma amiga nas costas dela. Nunca ninguém sabia o que ela sentia
realmente.
Audre Zora Toni Mercy-Moore era uma líder, afinal de contas! E,
nas mãos erradas, aquele poder social poderia inspirar manobras
facciosas. Por conseguinte, Audre tentava apresentar-se sempre
positiva, tranquila, em paz. Se o seu dia corresse mal, limitava-se a
ir para casa, desenhava alguma coisa, lia Tu És Uma Durona:
Aprende a Acreditar na Tua Grandeza e Começa a Viver uma Vida
Fabulosa e enroscava-se na cama com a mãe.
Quem tinha de lidar com as emoções de Audre era ela mesma.
Fosse como fosse, os outros miúdos só queriam falar sobre eles
próprios. Se ela deixasse, sem obstruções, eles confiariam nela.
Além disso, uma terapeuta nunca deveria inserir os seus
sentimentos numa sessão. (Audre aprendera este princípio quando
andava no 3.º ano, ao ler Uma Introdução Geral à Psicanálise, de
Freud.)
Por isso, apesar de estar de castigo, de rastos e sem poder sair
dali, sentia-se tranquila. Não interessava que, no dia anterior, a mãe
tivesse dado a entender que Audre era a razão pela qual ela não
tinha uma vida, não tinha amor. Não era verdadeiramente feliz.
Sou um robot para que tu possas ser uma borboleta.
Será que ela sentia que Audre estava a reprimi-la desde sempre?
Teria o seu nascimento sido um erro?
Audre e a mãe nunca haviam tido uma discussão em que
tivessem desabafado tudo o que lhes ia na alma. Estavam
habituadas a resmungar, não a discutir. Porém, no dia anterior, no
corredor da escola, a mãe olhara furiosa para ela, como se ela fosse
a razão de todo o stress, de todos os conflitos e de toda a tensão do
mundo.
Estou a dar-lhe cabo da vida, pensou Audre. Consigo resolver os
problemas de toda gente, menos os dela.
Isso doía, porque a mãe era a sua melhor amiga. Claro que Audre
adorava o pai e a enorme e agitada família na Califórnia. No
domingo, iria viajar para passar o verão na Papafórnia, e já sabia
que ia ser espetacular. Mas o pai era as férias. A mãe era o lar.
Desde sempre, tinham sido só elas duas. A fazerem coisas de
raparigas, a criarem rituais inanes só porque sim. A fazerem
caminhadas aventureiras todos os domingos, a assistirem a
musicais de meados de século passado às quartas-feiras à noite. A
fazerem colagens sobre possíveis vencedores dos Óscares. A
participarem no bingo de drag queens todas as Páscoas. A pedirem
a ementa inteira no brunch de junho no Ladurée (bife au poivre,
macarons, éclairs de chocolate, chá de alfazema, seguidos de Pepto
Bismol!) todos os anos antes da viagem de Audre para a Califórnia.
Espera-se que as pré-adolescentes odeiem as mães, porque a
maioria das mães se esquece de como era confuso ter 12, 13, 14
anos. Como se sentiam à toa e impotentes. Mas Eva compreendia-
a. Validava as suas ideias e opiniões. Além disso, não era como as
outras mães. Era como a tia jovem e cheia de manias de uma série
de comédia da televisão. Aquela a quem se recorria para discutir um
plano B quando a mãe era demasiado intransigente.
Audre idolatrava-a.
Quando Audre tinha 4 anos, tentava saltar para cima da sombra
que a mãe deixava nas paredes. O que não teria dado para vestir a
pele dela.
No seu sexto Natal, pedira ao Pai Natal para fazer com que a mãe
tivesse a mesma idade que ela, para que pudessem ser melhores
amigas para sempre.
Quando andava no 2.º ano, aproximara-se sub-repticiamente de
Eva e colorira-lhe todo o braço com um marcador. Porque ela era
«importante».
Naqueles dias em que Eva estava demasiado ocupada para
reparar, tirava-lhe o anel especial do quarto e usava-o. Para ser
como ela e para se sentir protegida pela magia materna.
E ainda tinha o hábito de se enfiar na cama da mãe todas as
noites, por volta das três da manhã, quando estava com insónias. E
Eva, habitualmente com um saco de gelo na cabeça, encaixava-se
nela para a ajudar a adormecer, a mão quente pousada na sua
bochecha. Os lençóis cheiravam sempre aos óleos de hortelã-
pimenta e de lavanda que Eva esfregava na cabeça à noite. Audre
adorava mergulhar naquele cheiro. E, se não estivesse com
demasiadas dores, Eva canta-lhe uma velha canção de embalar.
Dors, dors, p’tit bébé
’Coutes le rivière
’Coutes le riviere couler
Eva não falava crioulo, pelo que cantava numa versão fonética
abastardada. Dou-dou, tii-bei-bei. Nenhuma das duas sabia o que a
canção significava, mas não interessava. Era então que o sono bom
começava. O sono de hortelã-pimenta e de lavanda e de dou-dou.
Os pensamentos de Audre foram-se transformando lentamente,
passando de tristes a indignados. Ela acha que eu sou um fardo.
Como se fosse muito fácil ser-se a filha de Eva. Uma babysitter
para uma jovem de 12 anos? Controlos constantes, mesmo que
Audre estivesse apenas a ir para casa de uma amiga? E depois
havia toda a cena da saga Amaldiçoados. Quando Atticus Seidman
enviou uma mensagem para a turma inteira com uma passagem
nojenta do sexto livro de Amaldiçoados, Audre teve de entrar no
espírito da brincadeira, enquanto a alma se encolhia.
Não era o sexo em si que a perturbava. Audre fora educada por
uma mãe que usava as palavras certas para as partes íntimas, que
eraconsistentemente honesta sobre o local de onde os bebés
provinham e que apoiava a masturbação («O amor próprio é
fundamental!»). O sexo era natural, mas a sua mãe a escrever
sobre isso não era. Era nojento. Ela era tão assexuada! Era só… a
sua mãe. Aconchegante e gira. Era como imaginar o Pikachu a
escrever pornografia.
No início do ano, a mãe de Ophelia Grey proibira a filha de ir à
festa de aniversário de Audre porque Eva era uma «vendedora de
obscenidades». Apesar do embaraço, Audre estava disposta a
defender a mãe até à morte. Dissera a Ophelia que a mãe dela era
uma reprimida e sugerira-lhe que experimentasse um vibrador
chamado Capitão, sobre o qual lera num artigo no BitchMedia.org.
Eva ficara furiosa com ela. Mas, depois de se ir deitar, Audre ouvira
a mãe a repetir a história à tia Cece e a rir-se até chorar.
Audre tinha orgulho incondicional na mãe. Mas, por causa de um
erro, Eva já não tinha orgulho em Audre.
O que mais poderia ela fazer para agradar àquela mulher? Era
uma aluna modelo. Nunca beijara um rapaz. Sim, experimentara um
cigarro eletrónico numa noite com adolescentes no Brooklyn Bowl,
mas não sentira praticamente nada, até ter ido para casa e
devorado um saco inteiro de doces do Halloween durante os seis
minutos de um tutorial de maquilhagem do contorno do rosto no
YouTube.
Eva não sabia a sorte que tinha por ter uma filha como ela. Se
Audre não a deixava feliz, nada deixaria. Se viver uma vida árida e
sem namorados era suficiente para a mãe, tudo bem. Mas Audre
não tinha culpa. Não pedira para nascer. Aprendera essa lição num
episódio poderoso sobre codependência de Iyanla: Fix My Life.
Além disso, a ameaça de ser expulsa não era o fim do mundo.
Fosse como fosse, Audre estava com dúvidas acerca da escola
privada que frequentava. Não era real. Audre desejava ardente e
secretamente ir para uma escola pública para experienciar a
verdadeira opressão. Era lá que ela poderia contribuir para uma
mudança mais significativa.
Como poderei dizer que sou uma força cultural em contacto com a
realidade quando estou rodeada de tanta opulência inútil?, pensou.
A escola privada é um conceito antiquado e classista.
Audre sentia-se sufocada na Escola Preparatória Cheshire. E
talvez fosse essa a diferença entre ela e a mãe. Eva aceitava ser
sufocada. Mas Audre queria provar a vida, senti-la, fazer coisas, ir a
sítios. Ser uma mulher aventureira. Como a tia Cece! Ou a avó
Lizette.
Audre gostaria de conhecer melhor a avó Lizette. Falavam no
FaceTime, nos aniversários e dias festivos, mas a avó só tinha
estado em Brooklyn um par de vezes. Eva dizia que Lizette tinha
medo de andar de avião — e elas estavam sempre demasiado
ocupadas com a escola e o trabalho para viajarem —, mas Audre
sempre se questionara porque é que a avó Lizette não participava
mais nas suas vidas.
Nas histórias de Eva, Lizette parecia ser divina. Demasiado
bonita, demasiado única, demasiado poderosa para o mundo.
Quando a professora de Arte Contemporânea de Audre lhes pediu
para fazerem um projeto final que consistia em pintar um ícone
feminista, Audre soube que iria pintar a avó Lizette, que ganhara
milhões de títulos na marcadamente racista e misógina indústria dos
concursos de beleza e que, sem educação nem recursos, se lançara
numa carreira de modelo e viajara pelo mundo com a filha. Eva
estava sempre a falar dos anos que passara na Suíça. Além disso, a
avó Lizette ainda conseguira mandar a filha para Princeton! O que é
que ela não era capaz de fazer?
A avó Lizette era uma verdadeira história de sucesso na América.
Ela iria adorar-me, devaneou, os pensamentos a abafarem o
discurso de Parsley sobre o que quer que fosse.
Enquanto Audre continuava absorta, o professor assistente
responsável pela supervisão do castigo, o professor Josh, estava
silenciosamente a passar-se. As raízes do cabelo louro com um
penteado Pompadour estavam suadas e a tez de pêssego e
chantilly apresentava um rubor retinto. Durante toda a sessão,
estivera colado ao Book Twitter, no telemóvel, a seguir os tweets de
mexericos com hiperligações do Literary Hub, do
LiteraryGossipBlog, do BookBiz, etc.
Pôs-se a andar de um lado para o outro, em frente ao quadro
branco, à espera de uma oportunidade para interromper as
raparigas. Parsley fez finalmente uma pausa para recuperar o
fôlego. Então, apelando a todo o charme de escola preparatória que
o conseguira manter à tona na Universidade Vanderbilt quando, na
verdade, queria era deixar crescer o cabelo até aos joelhos, escalar
o Monte Kilimanjaro e escrever sobe a viagem como uma versão
masculina de Cheryl Strayed, Josh aproximou-se da cadeira de
Audre.
— Olá, meninas. Como é que se estão a aguentar?
— Estamos bem, professor Josh — disse Audre. — Estamos a
falar demais?
— Não, não. Está tudo bem! Audre, posso falar contigo por um
instante?
O coração dela afundou-se. Céus, o que é que ela teria feito
agora? Esboçou um sorriso e respondeu:
— Claro. Passa-se alguma coisa?
— Não, não. Está tudo ótimo. É só que… Ah, desculpa, estou
nervoso. — Sacudiu o corpo todo como um cão molhado e
recomeçou. — Audre, a tua mãe conhece o Shane Hall?
Audre franziu o sobrolho e perguntou:
— Quem?
— O Shane Hall, o romancista? Que escreveu o Oito e o Sobe-e-
Desce.
— Ah, sim. — Ela franziu o nariz. Shane Hall escrevia o que ela
chamava «livros da linha F»: os livros de capa dura que os adultos
traziam no metro para darem a entender que estavam a ler Um Livro
Importante e Culturalmente Relevante. Audre era uma leitora
compulsiva, mas não apreciava os livros da linha F. No entanto,
conhecia esse autor.
— Não foi ele que foi apanhado a conduzir sob a influência de
álcool ou de drogas? — perguntou Audre. — Deu na TMZ, acho eu.
A minha mãe não conheceria uma pessoa dessas.
— Shane Hall — devaneou Parsley. — O nome dele parece o de
uma residência universitária.
— Hum, acho que a tua mãe o conhece — insistiu o professor
Josh, estendendo o iPhone diante dos olhos de Audre.
Lá estava a mãe dela, muito chegadinha a Shane Hall num banco.
A comer um gelado. Com o ar mais feliz que Audre alguma vez lhe
vira. Uma espécie de felicidade diferente. O tipo de felicidade que
denota que uma pessoa está, de facto, a viver a sua melhor vida. O
tipo de felicidade que não é, de forma nenhuma, reprimida por uma
filha enfadonha.
Será que a minha mãe namora com este homem?, perguntou-se,
a cabeça num torvelinho de confusão e de mágoa. Estará
apaixonada? Que discurso era aquele do «quem tem tempo para
sair», então? Porque é que ela me mentiu? Ela anda por aí, feliz da
vida, enquanto eu estou para aqui a sentir-me culpada?
— Bem — continuou o professor Josh, de cuja presença Audre se
esquecera —, o Shane Hall é o meu escritor preferido. E eu daria
tudo para que um manuscrito que eu tenho aqui chegasse às mãos
dele. Tenho-o numa pen. Achas que, se eu to der, o poderias fazer
chegar à tua mãe?
Nesse momento, pela primeira vez na sua carreira escolar, Audre
soltou-se.
— Uma pergunta rápida, professor Josh — disse.
— Sim?
— FODA-SE, QUE VIDA DE MERDA É ESTA? — gritou ela.
Depois, pediu desculpa. E desatou a chorar convulsivamente.
P
CAPÍTULO 15
CASA DE SONHO
ara dois céticos cínicos como Eva e Shane, a casa de sonho
parecia demasiado séria logo à entrada.
REGRAS DA CASA DE SONHO
Bem-vindo(a) à CASA DE SONHO. É proibido fumar (incluindo cigarros
eletrónicos), comer, beber, utilizar o telemóvel, tirar fotografias, falar em
voz alta, tocar ou trocar fluidos corporais. Este é um lugar seguro; não o
torne estranho. Por favor, guarde os seus pertences num cacifo. Se
estiver num quarto PRIVADO, pode fechar a porta, mas não há
fechaduras. Cada pessoa recebe uma almofada e um cobertor acabados
de lavar (pelo nosso serviço de lavandaria amigo do ambiente!). Por
favor, coloque-os no cesto para têxteis quando terminar. Quando a sua
hora chegar ao fim, o(a) seu(sua) Guia de Sono irá tocar-lhe suavemente.
Por favor, não ataque o(a) seu(sua) Guia de Sono. Ele(a) está apenas a
fazer o seu trabalho.
E qual é o seu trabalho, caro(a)visitante? Fazer três coisas: Relaxar!
Renovar-se! Recarregar!
«E que bandos de anjos cantem para teu descanso.» — Hamlet
Depois de entrarem, uma Guia de Sono com ar de gazela
ofereceu-lhes almofadas fofas e cobertores acabados de lavar.
Presumindo que eram um casal, conduziu-os a um quarto privado.
Situado nos primeiros dois andares de uma casa de arenito
eduardiana, o labirinto de quartos era, de facto, uma câmara de
sono soporífera. O silêncio era opcional, pelo que se podiam ouvir
sussurros por cima da música ambiente suave, tonal e difícil de
definir. O perfume fumado e doce de incenso flutuava discretamente
pelos corredores, estando cada quarto imerso numa escuridão
quebrada apenas pelas imagens indutoras de sono projetadas nas
paredes. Um dos quartos fervilhava com pontos azuis a palpitarem
suavemente. Outro reluzia com terra de Siena queimada, graças a
uma fogueira crepitante projetada na parede; era tão realista que
Eva quase sentiu o calor tostado ao passar.
Havia pessoas a dormitar no chão, deitadas em enormes
almofadas do tamanho do corpo, a pele a brilhar em diferentes
cores. Num quarto, uma mulher ressonava levemente. Ao lado dela,
estava deitado um homem num fato demasiado grande, os lábios a
articularem um canto silencioso. Ou uma oração. Talvez estivesse a
recitar a letra de Truth Hurts, de Lizzo. Quem haveria de saber? O
importante era que estava relaxado.
Eva não conseguia imaginar-se a adormecer na hora seguinte.
Para dormir, precisava de cinco miligramas de Ambien, um pacote
de gelo, uma injeção de analgésico e a sua aplicação de ruído
branco. Mas a atmosfera de alucinação hippie era tranquilizadora.
Muito perto do sublime. E o melhor era que se tratava de uma
reviravolta inesperada. Como Alice a cair na toca do coelho, ou
Dorothy a entorpecer nos campos de papoilas de Oz. Quando ela se
decidira a ir ter com Shane naquela manhã, estava longe de
imaginar que acabaria naquela casa enfumada e hipnótica. Às
14h50.
Com a filha, com a carreira e com a vida em cacos, Eva não tinha
nada que desperdiçar uma hora naquele lugar. Mas ali estava ela,
perdida para o mundo. Parecia que o que acontecia naquele lugar
não contava para a vida real.
E depois havia Shane.
Eva não estava preparada para se despedir dele outra vez.
Queria desesperadamente fazer a tarde durar. Não havia como fingir
que o dia dela com ele, embora platónico, não estivesse a ser a
maior emoção que sentia há uma eternidade. Era tão fácil.
Assustadoramente fácil.
Eva sentia a sua personalidade a sacudir-se ao lado dele. Shane
estava a levá-la de volta para o seu verdadeiro eu; todos os
momentos patetas, aleatórios, crus e negros que ela normalmente
escondia estavam em plena exibição. E ele absorvia cada momento.
O toma lá dá cá de o seduzir e de se deixar seduzir. Céus, era
emocionante. Eva tinha-se esquecido de como existiam no espaço
um do outro. Aquela velha eletricidade ainda ali estava, a vibrar no
ar entre eles.
Era uma eletricidade que deixava Eva atordoada, que queria
absorver nas suas veias. Sentia-se ousada e atrevida; desperta e
alerta, ao fim de demasiados anos com medo de sentir o que quer
que fosse. E, se não voltasse a ver Shane após aquele dia, ficaria
bem. Aquele dia era suficiente.
Não saiam daí para esta e outras mentiras na Fox News, às oito,
pensou.
Quando chegaram ao quarto que lhes fora atribuído, Eva
espalhou os cobertores no chão atapetado, Shane ajeitou as
almofadas e deitaram-se. E foi então que dois céticos cínicos
ficaram muito, muito ensonados.
Com os olhos pesados, Eva olhou em volta para o quarto
acolhedor (quase claustrofóbico). Era do tamanho de um closet
modesto. Luzes de néon com inscrições de boa-noite decoravam o
teto e emitiam um brilho leve e nebuloso em tons de violeta e azul.
Quatro batidas acesas, quatro batidas apagadas, como uma
pulsação. A cor conferia um tom violeta surreal e tranquilizador à
pele deles.
Eva virou-se para Shane, ajeitando a almofada sob a face. Ele
deitou-se de costas, uma mão debaixo da cabeça. Eva viu-o a olhar
para as palavras a piscar: as pálpebras não demoraram a fechar-se,
as pestanas pousadas nas maçãs do rosto.
— Preciso de um quarto assim em minha casa — murmurou ele.
— Onde é que fica a tua casa?
— Pois, sim, tenho de comprar uma primeiro. — Shane abriu os
olhos e virou a cabeça para ela. — Nunca consegui decidir onde
queria ficar. Antes de começar a dar aulas, mudava-me duas vezes
por ano. Nairobi, Siargao, Copenhaga, qualquer lugar perto da água.
Laos. Fiz um trilho de mota lá uma vez. O Vietname tem o terreno
mais espetacular. Selvas e montanhas e quedas de água. Erva
verde tipo tecnicolor. Tens a sensação de que a topografia está a
acontecer-te a ti. Sabias que lá eles chamam Guerra Americana à
Guerra do Vietname?
— E fazem muito bem — disse Eva, aconchegando a bochecha à
almofada. — Qual é o teu lugar preferido?
— Taghazout, uma cidade naval em Marrocos — respondeu ele,
sem hesitar. — Um miúdo de 9 anos ensinou-me a fazer surf lá.
— A tua vida parece inventada, juro.
— É verdade! — insistiu ele. — E eu tinha jeito. Mas rasguei a
barriga num coral. Provavelmente, deveria ter levado pontos, mas
tinha de manter a postura à frente do miúdo, que não tinha medo de
nada. Já fazia surf ainda antes de começar a falar. Tinha um dedo
mindinho a menos. Cortado. Um cabrão de um pirata. Enfim, pus-lhe
fita-cola e sarou logo.
— Não havia Neosporin na cidade? Deixa-me ver a cicatriz.
Estava quase escuro como breu. Mas Eva sentia o riso sarcástico
de Shane.
— Estás a pedir-me para tirar a camisa?
— Céus, não. — Ela mordeu o lábio. — Puxa-a só um pouco para
cima.
— Estás a pedir ou a mandar?
— A mandar.
Ele fitou-a por um momento, com um olhar capaz de fazer crepitar
o ar; depois, levou as mãos às costas e tirou completamente a
camisa. No escuro, Eva distinguia uma cicatriz empolada e
recortada a serpentear na barriga dele. Viu os braços fortes e o
peito mais vivamente. E os abdominais ligeiramente musculados e
aquela pele suave cor de terra de Siena a descer cada vez mais até
ao trilho descoberto que desaparecia nas calças de ganga. Céus.
Eva queria tanto chupar aquela pele ali. Logo acima das calças de
ganga.
— Porque é que estás sempre a tentar chamar a atenção?
— Foste tu que me obrigaste! — sussurrou Shane para a
escuridão, voltando a vestir a camisa pela cabeça. — Dorme.
— Não consigo dormir — murmurou ela. — Estou distraída.
— Porquê? — Ele virou a cabeça para olhar para ela. Então, os
seus olhares cruzaram-se numa conversa silenciosa. Foi tudo muito
etéreo. Os minutos derretiam-se uns nos outros. Os piscares de
olhos tornaram-se mais lentos, os dois a ostentarem sorrisos
dengosos e satisfeitos.
Por fim, Eva deu uma resposta em que nenhum deles acreditava.
— Estou a tentar memorizar este quarto. É bom material; talvez
venha a aparecer num livro — disse ela, bocejando, falsamente
ensonada. — Na verdade, por mais stressante que seja escrever,
não consigo imaginar-me a não o fazer.
— É inebriante, não é? — murmurou ele, os olhos focados na
boca dela.
— Sim, é um poder que sabe bem. Fazer estranhos rir, chorar,
excitar-se. É melhor do que sexo.
— Será?
— Não me lembro, na verdade — admitiu ela. — Bati no fundo no
que toca a sexo. Já passou uma eternidade.
— Tu? Mas és uma escritora tão indecente.
— Tenho uma imaginação indecente — corrigiu ela.
E às vezes é suficiente, pensou. Na maior parte das vezes, é
solitário.
Uma vez, Cece diagnosticara Eva como uma pessoa sedenta de
ser tocada. (Uma das suas autoras tinha escrito um livro de
autoajuda sobre o assunto.) Quando alguém passava muito tempo
sem ser tocado, acabava por se tornar hipersensível ao mais suave
roçagar. Havia alguma verdade nessa afirmação. No fim de semana
anterior, Eva quase tivera um orgasmo quando a cabeleireira dela
lhe passara o champô na cabeça. E a cabeleireira dela era avó de
seis netos.
Eva passara o dia a evitar conscientemente o toque de Shane. Se
ele se tivesse roçado nela, ela poderia ter explodido.
— Eu também bati no fundo — disseShane. — Nunca fiz sexo
sóbrio.
Eva resfolegou.
— Assim há tanto tempo? Porquê?
Shane não sabia o que responder. Tinha feito bastante sexo, com
muitas mulheres, de formas cada vez mais depravadas; muito dele
fora bom, e a maior parte era uma mancha indistinta. E fora um
alívio parar. As pessoas saudáveis e normais não usavam o sexo
como um atenuante pós-vodca.
— Nunca chegou a acontecer — disse ele.
— Eu não sinto falta — disse Eva, com um movimento
desdenhoso do pulso. — Para dizer a verdade, sou praticamente
virgem de novo. Provavelmente, iria doer.
— Eu estou tão cheio que iria durar uns dois segundos.
— Ainda bem que não vamos ter sexo.
— Eu, por mim, estou aliviado — disse Shane, com um sorriso
voraz.
Eva sorriu para a palma da mão, contra vontade.
— Porque é que continua a ser tão fácil falar contigo?
Shane ficou a fitá-la, até que o brilho nos seus olhos se
desvaneceu ligeiramente.
— Sempre foi. Faz parte de nós.
— Lembras-te de tudo? — sussurrou ela. — Sobre nós?
Shane demorou um pouco a responder.
— É engraçado. A última década é uma mancha indistinta, mas
lembro-me de cada pormenor daquela semana.
— Eu tinha esperança de a ter romantizado ao longo dos anos.
Que nós não tivéssemos sido reais. — As palavras dela soavam
delicadas, frágeis.
Ouviu-se o som quase hipnótico e vago de um piano, e o incenso
rodopiou suavemente. Então, Eva sentiu uma atração familiar. Tal
como quando tinha 17 anos, não havia espaço entre eles. Havia
uma necessidade avassaladora de estarem mais próximos, sempre.
Sem pensar, pôs a mão na dele. Shane apertou-a e levou-a à
boca, dando-lhe um beijo demorado na palma. Ela resfolegou, a
eletricidade a rasgá-la por dentro. Foi um toque levíssimo, mas ela
sentiu-o no corpo inteiro.
Estivera tanto tempo prisioneira da dor que se esquecera de como
sabia bem sentir-se bem. Todo o seu corpo despertou. Subitamente,
estava ciente de tudo: da pele, das células, dos ossos sob a pele. O
coração a palpitar, o âmago a latejar.
Sedenta de ser tocada.
Shane observou a reação dela com as pálpebras semicerradas.
Depois, passou levemente os lábios pelo interior do pulso dela. Eva
soltou o mais breve dos gemidos, as costas a arquearem-se. Era
elétrico.
Sem fôlego e constrangida com a reação que tivera, sentou-se e
enterrou o rosto nas mãos. Não. Estavam num lugar público. Atrás
de uma porta não trancada. Ela era mãe! E Shane, um nome muito
conhecido. Estariam mesmo destinados a serem apanhados a
roçar-se naquelas instalações artísticas temporárias? O letreiro de
boas-vindas dizia que o toque era proibido. Se fossem apanhados, o
Book Twitter implodiria. E Audre atirar-se-ia ao rio East.
Mas, então, Eva abriu os olhos. E lá estava Shane a olhar
fixamente para ela, a olhar para o mundo inteiro como o rapaz
imprudente e irresistível que fora no passado — só que com a
experiência e a gravidade de um homem feito, e uma cicatriz
recortada na barriga de fazer surf no Norte de África e as rugas mais
fodíveis em redor dos olhos —, e mais nada interessava.
Não havia nenhum inferno em que ela não arriscasse cair por
aquele homem. E ele sabia-o.
— Vem cá — disse ele.
Eva sentou-se em cima dele, o cabelo a cair-lhe no rosto. Shane
passou as mãos pela parte de trás das coxas dela e pelas nádegas.
Depois, sem moderação, agarrou-lhe as ancas e puxou-a para baixo
ao seu encontro. Os lábios dos dois estavam a poucos centímetros
de distância.
— Vinte perguntas — sussurrou ele.
— Força.
— Porque é que vieste realmente ter comigo?
— Para te pedir um favor.
— Mentirosa. — Shane virou-a de costas e prendeu-lhe os pulsos
acima da cabeça com uma mão. As pernas dela levantaram-se e
instintivamente envolveram a cintura dele. — Porque é que vieste?
— Por tua causa. — As ancas dela estremeceram de encontro às
dele, desesperadas por fricção. — Porque te queria.
— Sou teu — disse ele, com a voz rouca, deixando beijos quentes
e aspirados pelo pescoço dela abaixo. — É a tua vez.
Eva estremeceu debaixo dele, a boca dele a baralhar-lhe a mente.
Não podia fazer-lhe as perguntas óbvias (Para onde foste? Porque é
que partiste? Como foste capaz?). Ao longo dos anos, preparara-se
para não se importar com as respostas a estas perguntas. Além
disso, aquele momento não tinha que ver com ele; tinha que ver
com ela. Por isso, escolheu algo mais fácil.
— Pensas em mim?
Ele passou a língua pelo pescoço dela, levemente, subindo até à
orelha, mordiscando-lhe o lobo.
— Nunca aprendi a deixar de o fazer.
— Oh — disse ela. Depois, acrescentou com a voz trémula: — É
a tua vez.
— Então, fizeste o que dizias? Romantizaste sobre nós? —
perguntou Shane, os olhos fixados nos dela. — Ou fomos reais?
— Fomos reais — sussurrou ela, quase sem se ouvir.
— Na altura? — Ele pousou-se sobre ela e ela gemeu.
— S-sim — disse ela, com um suspiro. — Na altura. E agora.
Abruptamente, Shane libertou-lhe os pulsos e segurou-lhe o rosto.
Eva fez deslizar as mãos pelas costas dele e agarrou-lhe os
ombros. Devagar, ele baixou o rosto em direção ao dela; depois,
parou. Inclinou-se para baixo, e depois parou. Esperara uma vida
inteira para a ter assim, a vibrar por ele, a desejá-lo, desesperada. E
queria saborear o momento.
Contudo, ela soltou um gemido impaciente, cravou-lhe as unhas
nos ombros, e ele cedeu. Deixou cair a boca sobre a dela,
chamando-a para um beijo exuberante e ardente. O choque
delicioso do beijo foi suficiente para a paralisar, e ela fundiu-se nele,
perdida no calor da sua boca, no movimento da língua, no mordiscar
provocador dos dentes dele, até ser incapaz de formar um
pensamento coerente que não se reduzisse a sim e quero e
ShaneShaneShane. Ele continuou a tentá-la, beijando-a até à
inconsciência. A intensidade diminuiu e transformou-se numa chama
lenta, suave e ardente. Quase demasiado quente para se aguentar.
Só pararam para recuperar o fôlego.
— Mais uma pergunta — disse ele.
— Isto ainda é um jogo? — Eva molhou os lábios com a língua.
— É. — Shane olhou de relance para a porta e depois novamente
para ela. Com os olhos a brilhar no escuro, maliciosamente. —
Continuas a ser má?
— Continuo — disse ela sem pensar, estendendo o braço para
baixo para lhe apalpar a pila, enorme e dura nas calças de ganga.
Esfregou-lhe todo o comprimento, provocando um gemido longo. —
E tu?
— Sim — respondeu ele, puxando o vestido dela para cima e
tirando-lhe o soutien sem alças. Inclinou-se para baixo e passou a
boca, suave e quente, pelos seios inchados dela, os dentes a
fecharem-se num mamilo. Rodou a língua em volta dele, chupando-
o deliciosamente. Depois, com a barba curta a roçar-lhe a pele,
arrastou a boca para o outro. Os suspiros impotentes e tremidos
dela estavam a deixá-lo tão duro que ele não sabia como iria
sobreviver àquele momento. — Sim — rosnou ele, contra o seio
dela. — Continuo a ser mau.
— Porquê? D… diz-me.
Shane ergueu a cabeça e fitou-a. Eva estava radiante, tão marota,
com o vestido puxado para cima debaixo dos braços, a mostrar as
cuecas finas, caracóis por todo o lado, ofegante, a tremer, os lábios
nus e inchados dos beijos. Tinha uma nódoa negra a nascer na
anca onde ele a agarrara.
— Porque já tenho idade suficiente para ter juízo — disse Shane,
puxando-a para um beijo de língua, rápido e indecente. — Mas vou
fazê-lo na mesma.
— Fazer o quê?
— Foder-te. Aqui.
Então, atacaram-se um ao outro. Freneticamente, Shane
conseguiu tirar-lhe as cuecas encharcadas de uma perna, e ela
puxou-lhe as calças de ganga e os boxers para baixo, mas não
havia tempo para ficarem completamente nus. Ele abriu a carteira
para tirar um preservativo antigo (rogando silenciosamente a várias
divindades para que ainda estivesse bom) e colocou-o. Depois,
cobrindo-a com o seu corpo alto e forte, mergulhou nela, com uma
lentidão lancinante, cautelosamente, para não a magoar.
Magoou, mas o ardor foi magnífico. A desejar mais, Eva agarrou-
lhe as nádegas e empurrou-o mais para dentro. Resfolegou, e ele
beijou-a com calma, movimentando-se dentro dela com golpes
estáveis e profundos, e ela não pode fazer mais nada senãoaceitá-
lo, onda de prazer atrás de onda de prazer. Quando ele sentiu o
corpo dela a estremecer contra o seu, fez deslizar a mão por entre
os corpos lisos de suor e semivestidos e passou o dedo do meio no
clítoris dela. Esfregou-a devagar, mas fodeu-a com força. E foi tão
bom, tão intenso, que a fez perder a cabeça, devastando-a e
deixando-a imóvel.
Shane seguiu-a, segundos depois, e, com a boca junto ao ouvido
dela, disse-o finalmente.
— Eva — rouquejou, a voz quebrada. — Eva. Eva.
Proferiu o nome dela como um feitiço, o único nome que alguma
vez interessara. E Eva, com o coração a bater nas costelas, ficou
agarrada a ele na escuridão tingida de violeta. Sentia-se perdida e
encontrada ao mesmo tempo.
Mais tarde, Eva arrependeu-se. Não do sexo. Mas de deixar Shane
naquele quarto, sozinho. De se levantar, vestir, pegar na mala e sair
à pressa. Sem se despedir. Mas, vá lá, o que é que ele esperava?
Eva preparara-se para não se importar com a razão pela qual
Shane a abandonara. Fizera do abandono uma lição. Desde aquele
dia, há 15 anos, nunca se permitira ser abandonada de novo.
Marido, amante ocasional, amante há muito perdido. Não importava.
Eva saía sempre primeiro.
A
CAPÍTULO 16
NÃO HÁ EMOÇÕES SEGURAS
o longo dos anos, Eva tentara esquecer a semana com Shane,
na adolescência. E, na verdade, grande parte das memórias
tinha sido perdida devido ao estado em que se encontrava pela
vodca bebida, os comprimidos tomados e a erva fumada.
Eis aquilo de que se lembrava.
Lembrava-se de estar de pé em frente ao espelho da casa de
banho, a tocar cuidadosamente no olho enegrecido. A passar os
dedos no cabelo meio devastado. Com um suspiro lamentoso,
tentara juntá-lo num rabo de cavalo, mas não conseguira que
ficasse seguro. Depois, Shane aparecera atrás dela no espelho.
— Pareço um poodle eletrocutado — comentara ela, com um
suspiro.
Ele contivera um sorriso.
— Vá, podes rir-te — dissera ela. — Estou com um ar engraçado.
— Não, tu és engraçada — retorquira ele. — Ouve, podias ter o
cabelo a tocar no chão. Podias ser careca. Podias ser cega.
Continuarias a ser bonita, Genevieve.
Shane falava como se a opinião dele fosse um facto. A pele dela
afogueara-se até atingir uma temperatura febril e as palmas das
mãos ficaram húmidas.
Shane recuara e encostara-se à ombreira da porta. Genevieve
dera meia-volta para olhar para ele.
— Pronunciaste bem o meu nome.
— Tenho estado a praticar.
— Di-lo de novo.
— Jon-vii-ev — dissera ele, com um sorriso. — Soa a algo
saboroso.
— Como é que uma palavra pode ser saborosa?
— Sinestesia. É quando recebemos estímulos a mais e os nossos
sentidos ficam confusos. Vês música. Ouves cores. Saboreias as
palavras.
— Ah. — Genevieve ficara com a boca seca. Pestanejara, e
Shane estava à sua frente. Sentia o lavatório na curva das costas.
Sustivera a respiração. Devagar, Shane pusera a mão ilesa em
concha atrás do pescoço dela, o olhar dele a viajar entre os olhos e
a boca dela. Depois, pela primeira vez, beijara-a — uma bicada
demorada e macia como uma almofada. Inocente. De seguida, fora
mais fundo, pousando o braço engessado nas costas dela e
puxando-a para si.
— Sabes mesmo bem — comentara ele, recuando ligeiramente.
— Obrigada… muito. — Atarantada, Genevieve dissera as
palavras ao contrário.
Os olhos de Shane pestanejaram. Parecia ao mesmo tempo
presunçoso e enfeitiçado. Depois, inclinara-se para a beijar mais.
Lembrava-se de receber chamadas da mãe, umas vezes com mais
insistência, outras com menos, durante uns bons dois dias. Nunca
atendera, mas mantivera o volumoso Nokia no carregador para o
que fosse preciso. (Não tinha a certeza do que poderia ser preciso.)
Ao terceiro dia, levara-o para a cozinha, no andar de baixo, para
deixar de o ouvir tocar.
Lembrava-se do primeiro orgasmo não autoinduzido. Estavam
deitados na relva, de roupa interior, junto à piscina, a tostar sob o
calor abafado de Washington. Shane estava a ouvi-la a divagar
sobre como Carrie e O Exorcista representavam o medo masculino
da puberdade feminina.
— Eu nunca confessei isto a ninguém, mas queria ter o período.
Só uma vez — dissera ele, pondo um dos comprimidos do rótulo
puta na língua e depositando-o na boca de Eva com um beijo terno.
— Qual é a tua cena com o terror?
— É um escape.
Ele beijara-lhe a linha do maxilar e continuara até ao pescoço.
Parara junto à jugular e murmurara contra a pele dela:
— Continua a falar.
— É uma maneira segura de… de sentir…
— Sentir o quê?
— Intensidade — sussurrara ela. — Uma emoção sem estar em
verdadeiro perigo.
Ele chupara-lhe a pele sobre a clavícula e abocanhara-a. Depois,
mordera-a. Quente, húmido, forte. Ela sentira a eletricidade a
percorrer-lhe o corpo e soltara um gemido trémulo. Shane
pestanejara. Colocara levemente a mão em concha no pescoço
dela. Roçando os lábios nos dela, dissera:
— Não há emoções seguras.
Apertara-lhe o pescoço, e ela transformara-se em gelatina. Céus.
Genevieve não sabia que aquela era uma necessidade. A boca dele
percorrera, incansável, a pele dela, até onde ela estava encharcada.
Depois, chupara-a até ela não aguentar mais e arrancar punhados
de relva da terra.
Lembrava-se de caminhar no bairro de Adams Morgan ao pôr do
sol. Quando começara a chover, Shane entrara à socapa num
Chevy Nova (utilizando aquele misterioso cartão multibanco) para
esperar que passasse. Shane estava atrás do volante, com
Genevieve no banco do pendura, e snifaram linhas de pó de cima
de um livro de Shane, um exemplar de A Dança do Rapaz Branco,
de Paul Beatty.
Algo pesava na mente de Genevieve, mas ela não sabia como
iniciar a conversa. Tinha tentado e falhado várias vezes. Porém,
naquele momento, a sentir-se elétrica com a confiança da cocaína,
atirara-se de cabeça.
— Tenho de te perguntar uma coisa — começara.
— Sim, diz.
— És virgem?
— A virgindade é uma construção social — dissera ele, com
orgulho.
— A sério — insistira ela, esfregando o nariz a arder. — És ou
não?
— Hum… Não. — Shane parecia vagamente desconfortável. — E
tu?
— Não — respondera ela.
O que ela queria dizer era: «Não, Shane, não sou virgem, porque
estava a fechar a caixa na Marshalls, no verão passado, e o tipo alto
e de olhos inexpressivos do stock que nunca me cumprimentava em
público me convidou para curtirmos; então, fumámos um cachimbo
de água na cave da mãe dele e eu pedi-lhe para ele não o enfiar,
mas ele enfiou, e depois deu-me um dá cá mais cinco por eu não ter
chorado. Não, Shane, não sou virgem. Sou o tipo de rapariga que
depois voltou em busca de mais porque disse a mim própria que ele
me achava especial. Não sou virgem, sou a rainha da ilusão, e os
rapazes mentem, mas eu acredito neles, por isso, por favor, oh, por
favor, tem cuidado comigo…»
— … perguntas? — Shane estava a dizer alguma coisa.
— Desculpa, o quê?
— Estava a dizer porque é que perguntas?
Em vez de responder, Genevieve mordera o lábio e encolhera os
ombros com afetação. Depois agarrara-lhe a cara e beijara-o, até
que a situação se transformara numa sessão de carícias e amassos.
Uma sósia de Tipper Gore batera à janela, a gritar: «Vão para
casa!» Genevieve olhara para ela por cima do ombro de Shane,
abrira a navalha de bolso e fizera um esgar. Com a alça do soutien
nos dentes, Shane mostrara o dedo do meio à mulher. A mulher
agarrara na mala e afastara-se, sem olhar para trás.
Detestavam toda a gente além deles próprios.
Lembrava-se de que, por vezes, Shane acordava a lutar. Via-o a dar
socos no ar, a suar, embrulhado nos lençóis. Instintivamente,
passava-lhe com as pontas dos dedos pelo peito, pelos braços,
pelas costas, por qualquer bocado de pele que pudesse alcançar,
desenhando o sinal de infinito vezes sem conta, pequenos oitos até
ele adormecer.
Era a única coisa que o acalmava.
Era a memória mais débil que ela tinha. Somente anos mais
tarde, quando Shane publicara Oito, é que surgira de novo, com
tremenda intensidade.
Lembrava-se de estar deitada em posição fetal, na cama, a cabeça
a chiar, à espera de que o cocktail de narcóticos fizesse efeito. O
pôr do solbanhava o quarto com um brilho quente de âmbar e cor
de morango. Shane estava deitado de barriga para baixo num canto
poeirento a jogar Scrabble com ele próprio. Com o cenho franzido,
os lábios em bico, murmurara:
— Foda-se. É tão difícil ganhar-me.
Ela fitara-o até ele a encarar, o rosto a brilhar com hematomas
violeta.
— És lindo — ronronara-lhe.
Com um sorriso sarcástico e ensonado, Shane começara a cantar
a poderosa balada de Christina Aguilera, Beautiful. Genevieve
resfolegara e depois explodira numa gargalhada satisfeita porque,
caramba, ele parecia mesmo o Ginuwine!
Com um gemido, Shane enroscara-se em si próprio com uma
autoconsciência infantil, escondendo o rosto debaixo da t-shirt.
Como se baixar a guarda fosse algo novo. Como se o seu lado
pateta (e a absurda amplitude vocal) fosse só para ela.
Genevieve deixara-se adormecer, irremediavelmente conquistada,
e esquecida de que era uma rapariga roubada a roubar momentos
numa casa roubada. E, mais cedo ou mais tarde, teria de pagar por
isso.
Lembrava-se de ir a uma loja de conveniência por volta das duas da
manhã e de surripiar um sem-fim de doces Hostess. Juntos,
apanharam o autocarro para a zona de Barry Farm, no sudeste de
Washington, onde ficava a casa que o tribunal atribuíra a Shane. O
Abrigo de Crianças Wilson era um edifício de um andar num
quarteirão degradado. Pertencia ao condado. Genevieve não
conseguia acreditar que havia pessoas a morar naquela casa.
Parecia uma Staples abandonada.
Sob a translucidez da noite, entraram sorrateiramente pela porta
dos empregados de limpeza. Enquanto Genevieve aguardava num
corredor que cheirava a lixívia e a mijo, Shane entrara nos quartos a
abarrotar e deixara um doce debaixo da almofada de cada criança.
Depois, esgueiraram-se juntos do edifício.
Foram sentar-se na paragem do autocarro, a um par de
quarteirões de distância. Um candeeiro de rua estalado iluminava o
quarteirão. Ouvia-se uma sirene que não se desligava.
— Gostava de os poder proteger. São inocentes, sabes? Na
verdade, o Mike e o Junior são uns pestinhas do pior. Mas são
puros.
— Tu és puro.
Mordendo o interior da bochecha, Shane olhara para ela.
— Se me conhecesses, deixavas de gostar de mim.
Genevieve pousara o queixo no ombro dele e colocara-lhe os
braços em volta do corpo.
— Como é que sabes que gosto de ti?
O sorriso dele tremeluzira e depois desvanecera-se.
— Eu já tive pais — continuara ele, calmamente. — Pais adotivos,
desde bebé até aos 7 anos. E eu gostava mesmo deles. E eles
também gostavam de mim. Um dia, estava a fazer umas merdas
estúpidas com a minha capa de Super-Homem e a saltar da
bancada da cozinha. Parti o braço. A minha mãe adotiva levou-me
às urgências. Estava assustada porque o osso estava visível e eu
estava a perder muito sangue. Passou um sinal vermelho e bateu
contra outro carro, num cruzamento. Ela morreu. Eu não.
» Depois disso, o meu pai adotivo passou a agir como se eu não
existisse. E, mais tarde, mandou-me embora. Quem é que quer
viver com o miúdo que lhe matou a mulher?
Genevieve, demasiado perturbada para responder, entrelaçara
lentamente o braço no de Shane e segurara-lhe a mão. Apertara-a,
oferecendo-lhe absolvição da única forma que podia.
— Mas então… Os miúdos que estão ali dentro? Eu não quero
que sejam presos, como eu fui. Quanto mais vezes vamos presos,
mais difícil é dizermos a nós próprios que aquele não é o nosso
lugar. A prisão é a escola da lição não aprendida. — Fizera uma
pausa. — Provavelmente, hei de voltar para lá uma terceira vez.
— Eu não vou deixar que isso aconteça — prometera ela. — O
que é que gostas de fazer? Além de lutar?
— De escrever.
— Não lutes. Escreve. — Ela encostara-se ainda mais a ele. —
Isso. Um mantra para te manteres longe dos sarilhos.
— Não lutes. Escreve.
— Isso — assentira ela, beijando-o em jeito de bênção.
Lembrava-se de que nunca estavam sóbrios. Shane bebia para
procurar o esquecimento; ela pedrava-se para disfarçar a dor.
Faziam-no juntos, mas ela cortava-se em privado. Na casa de
banho, diariamente, esterilizava a lâmina com algodão embebido em
álcool e depois rasgava algumas linhas na coxa ou no antebraço,
sobretudo, com profundidade suficiente para ver gotas carmesim
brilhantes a escorrerem numa fila perfeita. Entrava num transe
dissociativo quando o fazia, o mundo a abrandar, o ardor a penetrar
a dor. Sempre um alívio abençoado.
Shane via os cortes. Não julgo, dizia. Mas os seus olhos não
demoraram a começar a fixar-se na pele torturada dela com uma
expressão fechada de preocupação. Ambos tinham compulsões
retorcidas, cantos diferentes do mesmo inferno.
No entanto, um dia, ela acordara com uma enxaqueca que lhe
desfigurava o rosto e suplicara-lhe que pressionasse os cortes.
Shane não queria, mas fizera-o. Ela dobrara-se sobre si mesma
com os dentes cerrados. E, quando Shane a recebera nos braços,
ela sentira o peito dele a acelerar. E as lágrimas que ele vertera
molharam-lhe as faces.
Lembrava-se de estar deitada debaixo de uma árvore frondosa no
Rock Creek Park, quase no final. Aquele ciclo deles de pedrada e de
regressão estava a começar a desgastar-lhe os nervos. E a dor
estava a piorar. Tinha acabado de vomitar atrás de uma árvore.
Estava deitada no colo de Shane, e ele esfregava-lhe as têmporas
com óleo de lavanda.
— Sentes falta da tua mãe? — perguntara ele.
Sinto.
— Não — dissera ela. — É um alívio ficar longe dela. Ela tenta ser
boa, mas… não cuida de mim. E tem um gosto de merda em
homens.
— Ela tem noção de que estás assim tão doente, G? Se a minha
filha estivesse…
— Não fales mal dela! — Genevieve pusera as mãos na cara e
irrompera em lágrimas de forma tão violenta que os chocara a
ambos.
— Ei. OK. Desculpa, ela parece ser porreira. Não chores. —
Shane puxara-a com cuidado ao seu encontro e envolvera-a contra
o peito. — Que se lixe, chora à vontade.
O latejar constante do coração de Shane acabara por a embalar
até ela ficar em silêncio.
Algumas horas e alguns Percocets mais tarde, sentira-se
suficientemente bem para voltar a pé para a casa.
— Porque é que odeias os tipos com quem a tua mãe sai?
— Eles magoam-na — dissera ela, secamente.
O mundo zoava e borbulhava. Um bando de pombos passara por
cima deles, a arrulhar, mas parecia estar a quilómetros de distância.
— E magoam-te a ti?
Ela encolhera os ombros.
— Alguns sim. O atual, o patrão dela no bar? Tentou. Eu
empurrei-o e ele caiu, bêbedo. Eu sei desenrascar-me.
— Como é que ele se chama?
Genevieve dissera-lhe o nome dele.
— Qual é o nome do bar?
Ela parara no passeio. Shane também, fitando-a com uma
expressão capaz de derreter uma rocha. Ela dissera-lhe o nome do
bar.
Lembrava-se de acordar naquela noite e de ver que Shane tinha
desaparecido. Não voltara nessa noite nem no dia seguinte. Ela
esperara por ele. Limpara o pó das prateleiras, lavara as casas de
banho, tomara duche, torturara-se nos braços, dormira. Teria ele
desaparecido para sempre? Céus, teria sido novamente preso? Se
assim fosse, fora por culpa dela.
Nessa noite, acordara com uma tempestade retumbante lá fora.
Tinha deixado a porta do terraço aberta, e aquele lado do quarto
estava encharcado. E Shane, encostado à porta do quarto, também.
Todo ele era ossos e músculos definidos, a t-shirt ensopada, o
gesso empapado e partido, e, no pescoço, tinha um corte recente.
Ela sentara-se na cama e ele não se mexera. Limitara-se a olhar
para ela com os olhos caídos e dilatados, o peito a subir e a descer
num staccato violento.
— Ele não te vai incomodar mais.
E fora assim que ela percebera que era tão louca quanto ele. O
medo tinha-se evaporado e a única coisa que ela sentira fora uma
pulsação perversa e potente que a fizera juntar as coxas. Ele
aniquilava dragões que ela não conseguia abater. Era um
desordeiro do caraças. E ela queria aquele poder dentro de si.
As boas meninas deviam desejar um beijo do capitão da equipa
de futebol no baile de finalistas, e não chupar o psicopata atraente.
Mas ela não era boa, porque, poucos segundos depois, estava em
cima de Shane, a puxar-lheas calças de ganga e os boxers para
baixo e a sugá-lo até ele ficar fraco e ela ficar cheia.
Lembrava-se de estar no terraço ao anoitecer a olhar para a piscina
três andares mais abaixo. Sabia que tinha exagerado a tomar…
alguma coisa, porque se sentia num estado de maravilhamento
dengoso e de histeria crescente. Além disso, a dor estava tão
presente que ela mal conseguia seguir os próprios pensamentos.
Mas os pensamentos eram ruidosos.
Sentia que estava tudo demasiado descontrolado. Subitamente, a
dependência em relação a Shane deixara-a aterrada. Quando ele
desapareceu, ela sentiu que estava a desintegrar-se. E se ele não
tivesse voltado? E o que iria acontecer a seguir? A seguir àquela
casa, àquela aventura? Qual era o plano? Iria ele querê-la quando
saíssem dali?
Ela perdia coisas. Perdera a saúde. Perdera Princeton. Iria perder
a mãe, seguramente, depois daquilo. E iria perder Shane também.
Os rapazes deixavam as raparigas depois de dormirem com elas.
Era por isso que ela ainda não tinha dormido com Shane.
Shane era o seu farol. Se ele se apagasse, ela ficaria perdida, a
vogar para sempre em águas obscuras.
Eu não vou sobreviver a isto, pensara, passando a mão no
plástico macio que envolvia a navalha de bolso. Esta dor. É
demasiado.
Talvez devesse deixar-se ir, então.
Subira para a barra horizontal do meio do varandim e inclinara-se
demasiado para a frente, à espera de que a gravidade a levasse.
Porém, sentira o braço duro e engessado de Shane a cercar-lhe o
peito, a tirar-lhe o vento e a puxá-la para o quarto. Pousara-a na
cama e deitara-se junto dela, agarrando-lhe o maxilar com a mão
ilesa.
— Que merda é que estás a fazer? — perguntara-lhe, sacudindo-
a.
Ela pestanejara com indolência. As órbitas dos olhos doridas por
as esfregar com os nós dos dedos ao dormir, numa tentativa de
aliviar o latejo constante das têmporas. Perguntara-se porque é que
se dava sequer ao trabalho.
— Não morras, querida.
— Dá-me uma razão.
— Eu — dissera ele, com a voz rouca. — Fica por mim.
— Egoísta.
— Sim, sou. — Ele passara os braços por trás dos ombros dela e
puxara-a para si. — Preciso de ti, por isso, não podes morrer.
— Só quero que… me deixes.
Com um gemido de desespero, ele deixara cair o rosto na cova do
ombro dela e suplicara-lhe.
— Fica. Eu vou fazer com que valha a pena. Vou fazer com que
seja tão bom, Genevieve. Vais ser tão feliz. Juro. Dá-me a tua dor;
eu sou capaz de suportar tudo. Promete-me que ficas, e eu nunca te
vou deixar. Eu e tu para sempre. Promete-me.
Os olhos dela abriram-se devagar.
Não queria prometer com palavras.
Libertando-se dos braços dele, empurrara-o para trás e sentara-
se em cima dele. Fora buscar a navalha, abrira-a e pegara num
isqueiro, pousado na mesa de cabeceira. Com as mãos trémulas,
mergulhara a lâmina na chama.
O peito de Shane subira acentuadamente, e depois paralisara.
Com cuidado, ela desenhara um «S» recortado e torto no
antebraço, logo abaixo da dobra do cotovelo. Fizera-o com
profundidade suficiente para verter gotículas de sangue no peito de
Shane.
Ele pegara na garrafa de vodca quase vazia, pousada na mesa de
cabeceira, bebera-a até ao fim e estendera-lhe o braço ileso. Ela
voltara a mergulhar a lâmina na chama e desenhara um «G»
enviesado no braço dele, no mesmo lugar.
A dor era intensa, mas eles estavam tão embriagados que os
fizera vibrar. Mais uma coisa para sentirem. Com um rugido ferino,
Shane virara Genevieve de costas, e o resto fora o caos: beijos,
chupões, mordidas e arranhões esfomeados. Depois, ele
mergulhara nela e fodera-a como se estivesse a dar-lhe uma razão
para viver. Não parara até ela se desfazer debaixo de si, a gritar, a
tremer, a soluçar, entregando-se completamente a ele.
Lembrava-se de acordar num abraço apertado. Um perfume familiar
envolvera-a, e ela aconchegara-se ainda mais. À medida que a
nuvem de inconsciência se fora dissipando, ela começara a
reconhecer aquele cheiro. White Diamonds. E drama negro.
Era a sua mãe, lágrimas com rímel a escorrerem-lhe dos olhos de
estrela de cinema.
À luz do dia, o quarto parecia o local de um crime. Os lençóis
estavam todos embrulhados; garrafas vazias entulhavam o chão;
comprimidos e pó polvilhavam a mesa de cabeceira. Genevieve
estava coberta de chupões, arranhões e cortes. O «S» escondido
atrás de gaze. Uma rapariga de ascendência coreana com um
alforge Dior gritava, furiosa, para um telemóvel. Médicos e polícias
enxameavam o quarto. No braço, uma agulha intravenosa ligava
Genevieve a um saco de solução salina. Ouvira alguém a dizer que
ela tinha tido uma overdose.
— Tens sorte por estares viva — dissera uma voz sem corpo.
Viva, sim. Com sorte, não.
— O-onde está o Shane?
— Quem é o Shane? — perguntara Lizette, absortamente, com a
voz arrastada. — Oh, bé. Se eu não consigo fazê-los ficar, tu
também não. As mulheres Mercier estão amaldiçoadas.
Amaldiçoadas.
QUINTA-FEIRA
— E
CAPÍTULO 17
UMA PERGUNTA SEM RESPOSTA
stou a dizer-lhe que aquela coisa lá em cima não é a minha
filha. Ela já foi a todos os psiquiatras do mundo e eles
mandaram-me falar consigo, padre. Ela precisa de um padre. Não
pode dizer-me que um exorcismo não adiantaria nada! Não me pode
dizer isso!
Eram 9 horas e Eva estava deitada na cama a ver O Exorcista no
telemóvel. Acordara uma hora mais cedo com intenção de escrever,
mas, quando o alarme soara (o tom do alarme dela era Cece a
cantar «Escreve o teu, escreve o teu livro» ao som da canção Work,
de Rihanna), decidira ver o filme que mais a reconfortava. Aquela
cena sempre dera cabo dela. A filha de 12 anos da mulher estava
no quarto, horripilantemente possuída pelo diabo, mas o padre dizia
tratar-se de uma mera depressão. Não importava que a rapariga
estivesse a fornicar crucifixos e a levitar. Não era novidade
nenhuma, na verdade — mulheres a dizer a verdade e ninguém a
acreditar nelas.
Depressão o tanas, pensou Eva. Nas palavras da avó Clo, é o
Satanás em pessoa.
Eva conhecia O Exorcista de cor e salteado, e aquela
familiaridade deixava-a sempre bastante mais calma. Depois da
Casa de Sonho, fizera a caminhada da vergonha para casa,
dispensara a babysitter, encomendara pizza do La Villa para o jantar
e comera em silêncio com Audre, após o que ambas se evadiram
para os respetivos quartos. Não se sentira capaz de encarar a filha.
Como poderia ela fazer o que era devido — perguntar sobre os
trabalhos de casa, verificar o estado do projeto de arte de Audre —
quando passara o dia a chavascar em West Village?
Encolhida, Eva enroscou-se numa bola debaixo do edredão
imaculadamente branco. E se eles tivessem sido apanhados? Já
havia pesquisado «Casa de Sonho + Shane Hall + Eva Mercy»
várias vezes e não encontrara nada. Pelo sim pelo não, já tinha feito
uma marcação preventiva numa agência de eliminação das
pesquisas do Google.
Estava estupefacta com a imprudência do seu comportamento.
E havia ainda o impasse silencioso com Audre. Nunca tinham
discutido daquela maneira. Dentro de poucos dias, Audre iria viajar
para a Papafórnia para passar o verão e Eva não era capaz de
suportar a ideia de ela se ir embora zangada.
Antes de Audre acordar para ir para a escola, Eva deixara-lhe o
pequeno-almoço na mesa com um bilhete a dizer «Amo-te, bebé.
Vamos conversar logo, quando chegares.» Depois, voltara para o
quarto. Mesmo naquela situação desconfortável, queria que a filha
soubesse que ela estava ali. Contudo, também precisava de espaço
para si. Ainda estava a formigar com o toque de Shane, com a boca
de Shane, com tudo de Shane. E queria saboreá-lo por todo o
tempo que conseguisse.
Mordeu o lábio, tentando conter um sorriso de culpa e de emoção.
Shane. Eva contara-lhe tudo. Ele tinha-a escancarado, e ela
deixara-se esvair, lenta e doce como mel. Queria odiar tê-lo deixado
entrar de novo. Estava tão preparada para desistir de tudo.
Ao longo dos anos, durante devaneios indolentes, permitira-se
fantasiar com a possibilidade de o encontrar por acaso. Porém, nos
seus devaneios, eles ainda eram miúdos. Não era capaz de
imaginar uma relação de adultos.Julgava que tinha ultrapassado o
que quer que fosse que Shane desencadeava nela. Mas eles já não
eram quem tinham sido. Eram melhores.
Puxou o edredão até ao queixo, as bochechas a arder, e teve uma
epifania. Shane não era algo a ultrapassar. Iria encaixar sempre. Por
mais velha ou jovem ou sofisticada ou crua que ela fosse. Por mais
tempo que passasse.
Shane era inevitável.
Tenho de ter cuidado, pensou. Mas, com Shane, não existia
cuidado. Era como entrar num edifício em chamas. Podia usar
óculos de sol e besuntar-se com protetor solar, mas não deixaria de
arder.
Com um gemido, esfregou uma têmpora e sentou-se, encostada a
três almofadas. Tudo era incerto porque ela se pusera a andar.
Tinha de lhe pedir desculpa. Mas não havia nenhum meme giro para
enviar depois de ter feito sexo quase em público com um ex, de se
vir com tanto ímpeto que lhe escorreram lágrimas dos olhos e de se
ter ido embora com o soutien desapertado a pender-lhe na cava.
Eva julgara que iria sentir-se poderosa se se fosse embora antes
que ele o fizesse. Mas só sentia um vazio. Queria ter ficado presa
nos braços dele para sempre. Ou pelo menos até que a Guia de
Sono lhes passasse uma multa de fornicação por terem infringido as
regras.
Fugir não lhe dava uma sensação de poder. Uma mulher
realmente poderosa teria saboreado o momento.
Foca-te, disse a si mesma. Primeiro passo: enviar-lhe uma
mensagem. Segundo passo: admitir o erro. Terceiro passo: dizer-lhe
que te divertiste. Quarto passo: explicar porque é que isto não pode
ir mais longe.
Pegou no telefone.
Hoje, 9h30
EVA: Lol?
SHANE: Lol? A sério?
EVA: Desculpa.
SHANE: Não, não peças desculpa. Foi mais do que merecido.
EVA: É verdade, mas continuo a achar que agi mal. A forma como me vim embora foi
ridícula.
SHANE: Não, ridículo fui eu, deitado no chão, sozinho, com a pila de fora.
EVA: Na verdade, isso foi um regalo para os olhos.
SHANE: … Obrigado?
EVA: De nada.
SHANE: Posso ver-te? Preciso de te ver.
EVA: Acho que não é boa ideia.
SHANE: Mas tivemos um dia perfeito.
EVA: Pois tivemos! Mas… é melhor ficarmos por aqui. Conseguimos finalmente ter
um desfecho. Um fim.
SHANE: Pareceu-te um fim?
EVA: *silêncio de pânico
SHANE: Não entres em pânico. Também estou abalado como o raio. Podemos
encontrar-nos algures, por favor?
EVA: Falar por mensagem é mais seguro.
SHANE: Mas porquê?
EVA: Ver-te em pessoa faz-me esquecer coisas de que eu deveria lembrar-me.
SHANE: Isso foi um haiku?
EVA: Shane.
SHANE: Eu quero VER-TE. Estás em casa? Vou aí ter contigo.
EVA: Não sabes a minha morada.
SHANE: É fácil de arranjar. Tenho o número da Cece, e tu sabes bem que ela adora
um drama.
SHANE: *silêncio esperançoso
EVA: Foda-se. 7th Avenue, n.º 45. Rés do chão.
SHANE: De certeza? Se não quiseres que nos encontremos…
EVA: Vem cá ter antes que eu mude de ideias.
Eva empurrou os lençóis para trás e ia a sair da cama quando o
telefone caiu e aterrou no tapete felpudo. Apanhá-lo-ia mais tarde.
Em vez disso, começou a andar de um lado para o outro de boxers
e com a t-shirt do concerto da digressão de reunião dos Bad Boy
Family, com os nós dos dedos nas têmporas a latejar e a cabeça a
saltar de pensamento em pensamento.
São 9h45 da manhã! Será que ele queria dizer que vinha já ou só
mais tarde, depois de almoço? Tenho de pôr blush, limpar a sala.
Merda, não temos comida nenhuma a não ser uns restos do Five
Guys que mandei vir e cereais de pequeno-almoço. Será melhor
comprar vinho? Não, não, não, CLARO! O Shane não pode beber
vinho. Calma. Relaxa. Começa com um duche. Será que tenho
tempo de fazer uma marcação para fazer umas madeixas? Merda.
Merda. Merda. Será que estou a ficar louca?
Abriu a porta do quarto e seguiu pelo corredor. A ideia era ir à
cozinha. Primeiro, café. Depois, analgésicos. O resto logo se veria.
A escorregar ligeiramente nas meias felpudas de inverno (estava
sempre com os pés gelados, apesar das temperaturas quase
veranis), correu para a cozinha.
— AH!
Eva saltou um palmo no ar e soltou um grito digno de um filme de
terror. Deparara-se com Audre, sentada de pernas cruzadas no
chão da cozinha. Inclinada sobre o retrato de Lizette. Rodeada por
um monte de penas, tintas, faixas de tecido e lantejoulas. Ao ouvir o
grito de Eva, também Audre deu um berro, pondo-se de pé num
pulo e brandindo o pincel como se fosse uma espada.
Ficaram as duas em lados opostos da cozinha, a respirar
ofegantes e a olhar fixamente uma para a outra. Audre tinha uma
pena bordeaux colada à bochecha.
— O que é que estás aqui a fazer?! — exclamou Eva, agarrada à
cabeça. Aquele grito deixara-lhe o cérebro em cacos.
— Hum, eu vivo aqui? — disse Audre, com uma calma tremenda.
Estava a usar umas calças de fato de treino muito largas de
Princeton e o Chapéu Selecionador de Hogwarts, que colocava
sempre que estava a trabalhar na sua arte. — Que diabo, mãe.
— Tento na língua!
— Oh, peço imensa desculpa. Qual é a resposta adequada
quando a nossa SIMPLES PRESENÇA faz com que a nossa mãe
entre em HISTERIA GRAVE?
— Audre — disse Eva, a tentar controlar a respiração, com a
cabeça e o coração a martelarem desordenadamente. — Meu amor.
Porque é que não estás na escola? Por favor, não me digas que a
Bridget O’Brien te expulsou. Não… me… digas… uma… coisa…
dessas. Porque eu processo a Escola Preparatória Cheshire. Ela
prometeu-me…
— Não fui expulsa! Jesuuuus. É o penúltimo dia de aulas. Temos
o dia livre. Como acontece todos os anos, para que os professores
terminem as avaliações. Não recebeste, tipo, um e-mail?
Eva não conseguia manter-se a par dos e-mails administrativos
da escola. Enviavam um e-mail para tudo, desde avisos sobre uma
epidemia de piolhos a aulas de zumba ministradas por pais.
Com a cabeça muito quieta, Eva deslizou com cuidado para o
banco no cantinho do pequeno-almoço. Audre olhou para ela,
reconhecendo todos os sinais. Bufando, tirou um pacote de gelo do
congelador e atirou-o à mãe, que o apanhou com uma mão.
— Obrigada — disse Eva, com um suspiro, colocando o pacote de
gelo sobre a têmpora esquerda. — Esqueci-me de que dia era hoje.
Acho que estou a ficar maluca.
— Sem comentários — respondeu Audre, amuada. Deixou-se cair
no banco à frente de Eva, uma rapariga ainda não completamente
graciosa, com membros compridos e um pescoço interminável, que,
um dia, seria extremamente elegante. Mas, ali, naquele momento,
ainda era a cria de uma girafa.
Num esforço para se mostrar descontraída, Eva perguntou:
— Como está a correr o retrato?
— Bem.
— Está muito bonito. Conseguiste mesmo captar a essência da
tua avó, embora seja uma obra abstrata. O teu pai vai ficar muito
orgulhoso.
— O pai foi um dos desenhadores das personagens de Monstros
e Companhia e de Brave, Indomável — murmurou ela. — Isto não é
nada.
— Está bem, Audre — disse Eva, sem insistir. — Viste o bilhete
que te deixei esta manhã?
— Vi.
— Alguma resposta?
Audre encolheu os ombros e tirou o chapéu de feiticeira. Debaixo
dele, o cabelo era uma confusão de cachos idênticos aos de Eva.
— Não. Quer dizer, sim. Tipo, acho que devíamos falar.
Audre tinha o lábio inferior saliente e não estava a pestanejar,
porque, se o fizesse, brotar-lhe-iam lágrimas dos olhos. Eva não
deveria estar tão nervosa por iniciar uma conversa difícil com a filha,
mas grande parte da forma como se via a si própria dependia do
que a filha pensava acerca de si. Sabia que era pouco saudável e
um exagero, mas não deixava de ser verdade.
— Não podemos andar assim às apalpadelas uma com a outra,
querida. Tu és a minha bebé. Fazes parte de mim. O meu amor por
ti é maior do que…
— Eu sei, maior do que a Úrsula no final dramático da Pequena
Sereia.
Eva costumava dizer-lhe sempre isto. Era uma daquelas coisas só
delas. Mas Audre não se mostrou comovida.
— Eu começo — disse Eva, com um suspiro. — Desculpa ter
gritado contigo na escola. Não era o local nem o momento. Só que
eu estava perplexa, percebes? Tu és sempre tão certinha. A última
coisa que eu esperava era entrar numa reunião e descobrir que
estavas à beira de ser expulsa.
— Mas tu ages comose eu fosse a pior filha do mundo — disse
Audre. — Sabes porque é que a Parsley estava de castigo? Tequila!
— Ela levou tequila para a escola?
— Não. Ela levou um tampão embebido em tequila para a escola
na vagina dela, deixou que fosse absorvida pela corrente sanguínea
e, ao chegar à quarta aula, estava a cair de bêbeda.
Eva fitou a filha, estupefacta.
— Percebido — disse. — Ouve, eu não acho que tu sejas terrível.
Tenho expetativas altas em relação a ti porque quero que tenhas
todas as escolhas do mundo. Escolhas que eu não tive.
Audre manteve-se num silêncio empedernido. Ao fim de algum
tempo, arrancou a pena bordeaux da bochecha e começou a
desfazê-la sobre a mesa.
— Audre. Diz alguma coisa.
Por fim, Audre ergueu a cabeça e olhou a mãe nos olhos.
— Estás arrependida por me teres tido? Eu dificulto-te a vida?
— Não! Onde é que foste buscar essa ideia?
— Disseste que eu era um fardo, mãe. Disseste que não tens
espaço para uma vida real porque eu absorvo o teu tempo e a tua
energia toda.
— Eu não disse isso!
As sobrancelhas de Audre ergueram-se para o teto.
— Sim, disse isso — admitiu Eva. — E é verdade. Tenho
dificuldade em sair e em fazer coisas espontâneas como as outras
mães solteiras. Mas também não estou interessada nisso. Eu gosto
da minha vida como ela é! Só eu e tu, miúda.
— Só eu e tu, hum?
Eva inclinou a cabeça.
— Sim. Quem mais haveria de ser?
Audre encolheu os ombros insolentemente. Estava a comportar-
se de forma estranha. Aquilo era mais do que uma simples
discussão. Audre estava a esconder alguma coisa.
— Já agora — continuou Eva, sem saber bem o que fazer —,
lembras-te de me teres dito que eu era perfeita? Estou longe disso.
E, quando tinha a tua idade, passei momentos muito maus.
— Andaste numa das melhores universidades do país! E
escreveste um bestseller antes dos 20 anos.
— Querida, e também estava doente. Ainda mais doente do que
estou hoje. Queres saber como é que entrei em Princeton? As
minhas notas desceram tanto no último ano do secundário que eles
cancelaram a oferta. Tive de escrever um ensaio na cama de um
hospital — na ala psiquiátrica, diz-lhe — a suplicar à universidade
para me aceitar de volta. A explicar que tinha uma doença
debilitante.
— A sério? Posso lê-lo? — perguntou Audre timidamente, o
humor a alterar-se um pouco. Estava sempre sedenta de saber mais
sobre a infância da mãe. Quando era pequena, fazia-lhe perguntas
sem parar. «Qual é a tua memória mais engraçada? Alguma vez
tiveste uma paixoneta por alguém que também gostasse de ti? Qual
foi o filme mais assustador que viste no cinema?» Eva nunca tinha
dificuldade em responder a estas perguntas. Quando eram mais
profundas, já não conseguia responder.
— Sim, querida, podes lê-lo — disse, levantando-se para se
sentar no banco ao lado de Audre, que entrelaçou o braço no da
mãe e pousou a cabeça no ombro dela.
— Então, tiveste de lutar para entrar em Princeton.
— Tive, sim.
— E tiveste de lutar para me manter na escola — continuou
Audre. — Como? Quer dizer, o que é que disseste à diretora para
que ela mudasse de ideias?
Audre olhou para a mãe com aqueles olhos enormes de corça,
deixando Eva sem saber o que fazer, por instantes. Não estava
preparada para explicar Shane.
— Fiz-lhe um favor. Encontrei um professor para substituir o
professor Galbraith. O Shane Hall. Já ouviste falar nele?
— Ohhh, ouvi pois — respondeu Audre, de forma enigmática. —
Como é que o conheces?
— Bem, ele é um escritor negro — disse Eva, beijando a testa da
filha. — Nós conhecemo-nos praticamente todos uns aos outros.
— Ah. E conhece-lo bem?
— Quer dizer…
— Gostas mesmo dele?
— Porque é que perguntas isso?
— Porque vi fotografias de vocês os dois. Na rua, ontem. E era
claramente um encontro amoroso.
Eva desembaraçou-se de Audre e fitou-a, a boca escancarada, o
coração a martelar, as têmporas a explodir.
— Audre — começou, com um sorriso curto e forçado. — Não sei
o que viste. Mas, se eu estivesse a namorar com alguém, dir-te-ia. A
sério, o Shane Hall parece-te o meu tipo de homem?
— Tu não sais com ninguém, mãe. Qual é o teu tipo de homem,
afinal? O Homem Invisível?
Aquilo era demasiado. Em poucos segundos, a enxaqueca de Eva
passara de um incómodo a uma dor insuportável. Com a visão a
começar a ficar desfocada, pegou na mala que estava em cima da
mesa e retirou de lá o frasco de analgésicos. Engoliu dois sem
água, obrigando-se a respirar. O efeito entorpecedor rolou sobre a
dor como a maré, levando-a para um ponto inalcançável, pelo
menos por mais três horas, altura em que o efeito haveria de se
esvair e a dor haveria de voltar à costa com a fúria de uma onda.
Eva aceitaria quaisquer tréguas, por mais breves que fossem. Só
bem depois dos 20 anos é que encontrara um médico que lhe
receitara um tratamento eficaz contra a dor, e estava-lhe
eternamente grata. Sobretudo num momento em que precisava de
estar com os sentidos alerta para ter aquela conversa.
— Eu encontrei-me com o Shane para lhe pedir ajuda. Foi só isso!
Não foi um encontro! Na verdade, foi um pouco humilhante pedir um
favor a alguém com quem não falava há tanto tempo. Mas faço tudo
por ti.
Audre pensou nas fotografias da mãe com aquele tipo. Pareciam
o cartaz de uma comédia romântica dengosa. E a mãe parecia estar
a namoriscar de uma forma que Audre nunca tinha visto. Estava
literalmente a atirar-se àquele gajo.
Eva afirmava que não tinha tempo para homens. E depois, do
nada, era apanhada num clima amoroso com um homem de carne e
osso? A partilhar gelado num encontro romântico durante o dia?
Audre andara a vasculhar publicações sobre o Amaldiçoados no
Twitter e descobrira mais fotografias de fãs com os dois a fazerem
olhinhos um ao outro por toda a West Village. Eva estivera com
Shane durante horas. Ou a mãe estava completamente caidinha por
aquele homem ou era uma excelente atriz.
Audre soltou um berro. Subitamente, tudo fazia sentido. Pôs as
mãos sobre os ombros da mãe e começou a chorar e a lamentar-se.
— Nããããããão, mãe! Diz-me que não fizeste isso! Oh, sinto-me
tão mal! Tens razão, sou uma filha do piorio.
— Do que é que estás a falar? — Eva estava atónita com a
histeria repentina de Audre.
— Eu sei que não há limites para o poder maternal. Quer dizer,
dah? Eu li o Mommy Burnout!
— Quem é que não leu? — comentou Eva, que não tinha lido. —
Audre, o que é que tu achas que eu fiz?
— Tu… tu… seduziste aquele homem para me manteres na
escola, não foi? Fizeste sexo com ele por minha causa. E eu nunca
me hei de perdoar!
Eva estava demasiado atónita para articular uma resposta. E
também não tinha tempo, porque a campainha tocou.
Havia-se esquecido. Uma hora antes, estivera a trocar
mensagens com Shane Hall, mas, assim que vira a cara da filha,
tudo o mais se lhe evaporara da cabeça.
Incluindo que Shane estava a caminho. E tinha acabado de
chegar.
C
CAPÍTULO 18
UMA SÉRIE DE DECISÕES
PRECIPITADAS
ece Sinclair tinha um ótimo gosto. Toda a gente sabia disso. Era
a editora de livros mais poderosa do grupo editorial mais
poderoso. Toda a gente sabia disso também. Era, igualmente,
uma anfitriã irrepreensível, uma jogadora de ténis terrivelmente
focada e, provavelmente, a mais importante defensora de escritores
negros e mulatos do seu tempo.
Cece era muitas coisas (demasiadas coisas, poderão algumas
pessoas dizer), mas só havia uma que lhe acelerava a pulsação, a
deixava a vibrar e lhe iluminava o espírito. Era unir os pontos.
Alguém precisava do melhor alfaiate deste lado do Hudson? Ela
tratava do assunto. Alguém precisava de companhia para a Gala do
Studio Museum in Harlem? Ela mandava-lhe um atraente ator de
telenovelas desempregado que aparecia pontualmente à porta às
17h30, impecavelmente vestido. À procura de um personal trainer?
De uma doadora de óvulos? Do contacto de Valerie Jarrett? Cece
Sinclair era a pessoa a quem recorrer.
Cece não tinha as respostas todas. Mas acreditava que tinha. E
era de vital importância para ela que os amigos e colegas, a grande
comunidade literária e as mais sofisticadas famílias negras de todaa Costa Este dos Estados Unidos também acreditassem.
Nesse momento, Cece estava mergulhada em pensamentos no
escritório da sua casa de arenito em Clinton Hill, lindamente
mobilado com uma estética leve de meados do século (financiada
em grande parte pelo salário do marido, Ken, que era diretor-
executivo e cirurgião-chefe na Clínica de Cirurgia Reconstrutiva
Sinclair). Vestida com a sua melhor roupa informal de sábado — um
vestido cintado Proenza Schouler e com as unhas dos pés pintadas
com verniz Essie no tom Ballet Slippers —, estava
extraordinariamente glamorosa, mas também agitada. Porque havia
dois pontos que ela não conseguia unir.
A história de Eva e Shane tinha muitas lacunas. Enormes vazios.
Cece sabia quando uma narrativa estava bem contada, com todos
os pormenores claramente expressos e sem pontas soltas. Fazia
parte do seu trabalho. E a que Eva contara não era uma dessas.
Cece sabia muito bem que Shane não era um mero caso nostálgico
em tons de sépia. Nenhum caso assim deixaria os amantes tão
desconcertados que se sentiram impelidos a escrever sobre o
assunto durante toda a sua vida adulta.
Eva estava a esconder informação. E estava a deixar Cece
maluca. Shane não diria nada, porque Shane era um enigma. Eva
também não iria falar, porque era um enigma embrulhado num
mistério embrulhado em cortinas opacas.
BANG! O som ecoou pelo apartamento.
Que nervos, pensou. Até quando é que o Ken me vai submeter a
este chocalhar incessante?
Ao longo das últimas cinco semanas, o marido de Cece, Ken,
dedicara todo o seu tempo a renovar a mesa de jantar. Sempre a
martelar. As pancadas deixavam Cece a ranger os dentes, mas ela
tentava não o demonstrar. Ken trabalhava tão incansavelmente na
clínica. Os projetos com a casa eram o que o fazia feliz. Tudo bem.
Cece só desejava que o marido encontrasse um passatempo mais
silencioso.
Inspirando por entre dentes, levantou-se abruptamente e
começou a andar de um lado para o outro. Ken costumava dizer-lhe
sempre que ela era metediça, e, embora Cece se fingisse ofendida,
era mesmo. E as mulheres metediças indignavam-se quando eram
deixadas de fora dos mexericos. Ficavam irritáveis e arriscavam-se
a tomar decisões por puro desespero.
E, movida pelo desespero, Cece iria dar uma festa. No dia
seguinte. Uma festa pré-prémios, como pontapé de saída para os
Prémios de Excelência Literária Negra de domingo. Já toda a gente
estava na cidade para os Litties e à procura de sarilhos. Fosse como
fosse, Cece já tinha nos seus planos organizar uma das suas
receções exclusivas para membros.
Sim, Eva afirmara que «preferia morrer» a ver-se encurralada
numa festa com Shane. Mas também era a rainha de ser um
empecilho no seu próprio caminho.
Cece conhecia-a desde que Eva era uma adolescente perdida de
19 anos. Ajudara-a um pouco a crescer e sentia-se responsável por
ela. Sabia, melhor do que ninguém, que Eva estava presa numa
rotina — uma rotina literária, uma rotina de vida, uma rotina de tudo
—, e a falta de inspiração era ruinosa para uma escritora. Talvez ela
precisasse apenas de um empurrãozinho para deixar de andar
sempre imersa em preocupações. Para se libertar! Cece dar-lhe-ia o
cenário perfeito para ela se reunir devidamente com a sua velha
chama, e, se tudo corresse bem, retirar daí inspiração para um livro.
Como parteira literária, não competiria a Cece criar uma atmosfera
que pudesse ajudar os seus autores a fazer magia?
Shane iria ser o convidado especial. Os blogues literários estavam
a vibrar; toda a gente queria vê-lo de perto, na vida real. Não havia
muito tempo para planear a festa, mas os convidados de Cece
nunca esperavam convites atempados, o que vinha a calhar. A
espontaneidade fazia parte da diversão. E o melhor era que Cece
poderia finalmente obter respostas. Shane e Eva eram os seus
filhos da escrita. E, como mãe deles, ela tinha o direito de chegar ao
âmago da situação entre os dois.
BANG!
O Ken tem sido um marido maravilhoso. Mas mais cinco minutos
disto e ponho-lhe veneno na água com gás.
Cece empoleirou-se na secretária, o cérebro de anfitriã a
borbulhar. Iria convidar os suspeitos do costume. Teria de permitir a
presença de crianças para não dar a Eva a possibilidade de usar a
desculpa de «falta de babysitter». Iria correr tudo bem; iria
encurralá-las num dos quartos das visitas com mini-hambúrgueres
do Shake Shack, uma babysitter e o Canal Disney.
Iria telefonar à sua amiga Jenna Jones para que ela lhe
arranjasse algo fabuloso para vestir. Jenna era uma antiga editora
de moda que tinha agora um omnipresente programa de estilo no
YouTube, chamado A Escolha Perfeita. Graças ao seu estatuto de
realeza nesse mundo, conhecia todos os relações-públicas de todas
as casas de moda (mesmo as pequenas e independentes, a que a
própria Cece não tinha acesso). Jenna era a sua arma secreta no
que tocava a estilo.
Sim, iria ligar a Jenna! Se fosse capaz de se lembrar onde tinha
posto o telemóvel, claro. Não conseguia ouvir-se a pensar com o
martelar incessante de Ken.
Saiu disparada do escritório e dirigiu-se à sala de jantar. A sala
estava caótica. A mesa estava virada ao contrário e Ken estava
agachado ao lado, a martelar para colocar uma das pernas no
devido lugar.
— Ken. Estás… a… dar… cabo… de… mim.
O elegante Ken, vulgo Billy Dee Williams Lite, ajeitou os óculos
sobre o nariz e perguntou:
— As pernas parecem-te niveladas?
Com uma expiração extravagante, Cece alisou o vestido e
agachou-se junto a ele.
— Estás quase lá.
— Ainda bem — disse ele, antes de começar a martelar de novo.
— Querido, vou ouvir essas marteladas no inferno.
— Tu não vais para o inferno — murmurou Ken, com um parafuso
pendurado entre os lábios.
— Oh, por favor. Eu tenho uma propriedade lá em baixo —
retorquiu Cece com confiança. Apertou-lhe o ombro, recuou e
recomeçou a andar de um lado para o outro. Havia tanto para fazer
até à festa do dia seguinte.
Quando Cece recebia pessoas, fazia-o com a alma — com,
pensava ela, a energia que a maior parte das mulheres da sua idade
dedicava aos filhos. Só que ela nunca quisera ter filhos. Os livros
eram os seus filhos. Era com eles que se aconchegava à noite,
eram eles que a mantinham quente, eram eles que lhe acalmavam a
mente quando o seu casamento lhe parecia periclitante, as escolhas
de vida lhe pareciam inúteis e o trabalho parecia não andar para a
frente. Belinda perguntara-lhe, no brunch, se ela já tinha sentido
amor selvagem e profundo. O que Cece não sabia como dizer era
que não precisava disso. Sentia-se feliz sem sentir nada demasiado
profundamente. O nível mais alto da vida era suficiente para si. O
início da noite, com a vibrante possibilidade de intrigas e de drama,
e não o final, em que toda a gente estava embriagada, estranha e
sombria. Aprendera há muito tempo que a vida podia ser
amargamente dececionante. Havia golpes e tropeções, mas a tarefa
dela era manter-se interessada no mundo.
Era por isso que Cece era tão boa a cheirar bestsellers. Lia um
manuscrito uma vez e, sem pensar demasiado, sem deixar as
palavras a marinar, sabia se iria funcionar. Quase não tomava o
fôlego entre acabar de ler um romance e convencer a Parker +
Rowe a comprá-lo. E, ao fim de 40 bestsellers, ninguém duvidava
dos seus instintos.
Nem sequer Michelle, da Chicago Robinsons (que Cece
conhecera no Clube de Golfe Farm Neck, em Vineyard, quando
Sasha e Malia ainda eram bebés). Na Conferência da Convenção
Negra do Congresso Nacional, em 2017, quando Michelle divulgara
que estava a concetualizar um livro de memórias, Cece não
precisara de ouvir a apresentação. Sabia, logo à partida, qual seria
o gancho.
— South Side, querida — sussurrara ao ouvido guarnecido de
diamantes de Michelle. — Não deixes de nos falar de South Side.
— A sério? Achas que as pessoas querem saber da minha
infância?
— Não acho, Shelly — dissera Cece sabiamente. — Sei.
Também sabia, instintivamente, que havia um enorme potencial
em Eva e Shane. Só precisavam de… um empurrão. Cece mal
podia esperar para ver que enorme magia é que a sua festa iria
inspirar…e rezava para que Eva viesse a vertê-la para as páginas
do seu novo manuscrito. Eva podia já estar farta de Amaldiçoados,
mas as fãs não estavam, nem a editora. Eva tinha de apresentar
trabalho feito.
Nesse momento, Ken riu-se, de onde estava, sentado no
imaculado chão de madeira âmbar.
— Qual é a graça? — perguntou Cece.
— Estás a congeminar alguma coisa, Celia. Dá para perceber.
— Não estou a congeminar; estou a planear.
Ele riu-se para si próprio, o mesmo parafuso ainda pendurado na
boca.
— A minha miúda metediça.
Cece sorriu abertamente. Era metediça, e era a miúda dele.
Ambas as premissas eram verdadeiras, para o melhor e para o pior.
— Trabalha um pouco mais na perna esquerda — disse ela.
Depois, atirando-lhe um beijo, saiu disparada da sala.
No outro lado de Brooklyn, Shane estava encostado à ombreira da
porta do prédio de arenito de Eva. Tocou duas vezes à campainha e
nada. Talvez ela tivesse mudado de ideias. Começou a repensar
todas as escolhas que fizera até àquele momento.
O mais sensato seria ir-se embora. Mas e se ela não tivesse
ouvido a campainha? Não. Iria esperar um pouco mais. Não podia ir
já.
O dia anterior havia sido demasiado e, ao mesmo tempo,
insuficiente. Deixara-o sem saber o que fazer, e Shane tinha uma
compulsão incansável e profunda para estar junto dela. Queria vê-la
a fazer coisas, a dizer coisas. Dar-lhe a mão, fazê-la rir. Fodê-la até
cair. Dar-lhe tudo o que ela não tinha há tanto tempo. Dar-lhe o
melhor de si mesmo.
De acordo com as orientações dos Alcoólicos Anónimos, eram
proibidos relacionamentos até se estar dois anos sóbrio. Era uma
regra que fazia sentido, mas Shane não poderia ter previsto que Eva
lhe iria acontecer.
Não é de esperar que os relacionamentos do secundário sejam
importantes, pensou. Os nossos lobos frontais ainda nem sequer
estavam desenvolvidos. Como é que poderíamos saber que era a
sério?
Os adolescentes não sabiam distinguir uma paixoneta de algo
mais profundo — quanto mais saber que estavam certos. Aos 17
anos, Shane não tinha acertado em nada. A não ser nela.
Lembrou-se de um pequeno momento na Casa de Sonho. Eva
estava debaixo dele, sem fôlego e em felicidade plena, a boca
tumefacta dos beijos e as faces em fogo do clímax. E Shane estava
profunda e existencialmente feliz. Enterrara a cara no pescoço dela,
erguera-a nos seus braços e agarrara-a com tanta força que não
conseguia imaginar-se alguma vez a ser capaz de a largar.
O abraço parecera-lhe monumental, como se estivessem a fundir
todas as pessoas que haviam sido ao longo dos anos. A fechar o
círculo. Eva aconchegara a cara no pescoço dele, os lábios a
roçarem-lhe a pele sob o maxilar.
— Sentir a tua falta nunca acaba — dissera ela, num suspiro.
Porém, antes de ele ter a possibilidade de lhe dizer o mesmo, ela
saíra de debaixo dele. E desaparecera.
Shane percebia porque é que ela se fora embora. Mas ficara de
rastos. Tinha-a reconquistado para agora a perder de novo.
Sempre se sentira torturado pela memória que tinha daquela
semana. Via tudo muito claramente. Cada pormenor em tecnicolor
vívido. Não havia bebida nenhuma que o fizesse esquecer. Mas o
que Shane não esperava era que os pormenores aparentemente
insignificantes, mas extraordinariamente importantes, sobre Eva, de
que ele se tinha esquecido, voltassem à sua memória.
É como quando o Spotify passa uma música que não ouvíamos
desde miúdos e que nos lembra de quem somos. Tipo «Oh, sim,
sou uma pessoa que sabe a letra toda da música Wild Wild West, do
Will Smith.»
Quando Eva se fora embora, no dia anterior, Shane resignara-se
a deixá-la em paz. Doía como o diabo, mas era o que ele merecia.
Por isso, mantivera-se ocupado durante o resto do dia. Fora correr
dez quilómetros, descansara, não bebera, comera alguma coisa,
não bebera, tentara escrever, não bebera, e, depois, adormecera.
Mas depois Eva enviara-lhe aquela mensagem. E, sem saber muito
bem como, Shane dera por si sentado nas escadas da casa dela, à
espera de que ela abrisse a porta.
O seu telefone tocou e ele tirou-o do bolso das calças de ganga
tão depressa que o bolso ficou do avesso.
Era Ty.
— Tudo bem — disse o adolescente.
— Vamos lá ver — respondeu Shane, olhando para a janela de
Eva.
Shane tinha falado com Ty no dia anterior. E dois dias antes.
Tinha-se comprometido a falar com os seus pupilos duas vezes por
semana para saber como estavam. Por vezes, basta ouvir a voz de
alguém que acredita em nós para dar alguma luz a um dia de
merda.
— Ty, porque é que não estás na escola?
— É o penúltimo dia de aulas — disse ele, sem mais explicações.
— Como está a tua miúda?
— Bem.
Então, Shane lançou-se às questões de resposta rápida que fazia
a todos os seus miúdos.
— Tens feito todos os trabalhos de casa?
— Sim.
— Andas metido em alguma atividade ilegal ou nefasta?
— O que significa «nefasta».
— Criminosa.
Ty fez uma pausa, a pensar.
— Não?
— Andas metido em rixas?
— Não desde que o stor esteve aqui.
— Tens-te mantido hidratado? Dormido oito horas?
— Dormir custa bué, às vezes. O meu cérebro não desliga. Mas
estou a tentar. O meu mantra ajuda.
— Orgulhoso de ti, meu puto.
Shane conseguia sentir o sorriso de Ty a milhares de quilómetros
de distância.
— Stor Hall? Posso… Pode emprestar-me duzentos paus?
— Duzentos dólares? Para quê?
— O nigga da minha irmã aluga um estúdio ou não sei quê, e eu
pensei… Queria só tentar entrar na cena do rap durante um bocado.
Aparecer no SoundCloud, arranjar um contrato.
Shane soltou uma gargalhada. Ao aperceber-se de que Ty não se
ria, parou de imediato.
— Ah. OK, mas desde quando é que és rapper? Nunca me falaste
de música.
— A minha cena é fogo.
— Interessante. Ty, qual é o teu nome de rapper?
— Indeciso.
— O teu nome é Indeciso?
— Não, estou indeciso quanto ao nome.
— Não me leves a mal — disse Shane com cautela. — Mas o
facto de nem sequer teres um nome de rapper faz-me duvidar da
tua sinceridade. Todos os negros, quando chegam ao 3.º ano, já têm
um nome de rapper falso.
O adolescente ficou em silêncio.
— A tua irmã apresentou-te a esse gajo? A Princess?
— Sim.
— A Princess vive num Chrysler esvaziado, estacionado num
Tastee Freez em ruínas. Achas que ia andar com um tipo com um
estúdio legítimo para alugar? Ou será mais provável que te estejam
a enganar?
Encurralado, Ty soltou um suspiro exasperado.
— Tenho de sair daqui — disse, num tom suplicante. — Estava a
mentir. Não como há dois dias. Os manos pensam que eu como
porque tenho ossos largos, mas não como. A Princess e a minha
mãe levam-me o dinheiro todo. Talvez o rap me ajude a fugir. Este
tipo conhece empresários e produtores e não sei quem mais.
— Ty, não te vou dar dinheiro para isso. Não confio nesse
esquema. Tenho de ir, mas falamos sobre isto mais tarde.
— Eu pensava que o stor era de verdade — disse Ty, com uma
voz que mal se ouvia. Parecia destruído. — Paz.
Desligou a chamada, e Shane deixou-se cair contra a porta. Sabia
perfeitamente que Ty não se iria manter na linha. Talvez estivesse a
ser demasiado duro com ele. Talvez lhe devesse enviar o dinheiro.
Cercado por emoções contraditórias, bebeu avidamente uns tragos
de água da garrafa que trazia consigo, no preciso momento em que
uma ruiva alta, que passava com um bebé bem crescido preso ao
peito, parou para olhar bem para ele.
— Meu Deus. Você é o Ta-Nehisi Coates!
— Não. Mas ele iria gostar que pronunciasse o nome dele
corretamente — disse Shane, bebendo o resto da água. — Aprendi
isso da pior forma.
Então, finalmente, finalmente, ouviu o som da porta a abrir. Antes
de poder escolher uma emoção em que se pudesse focar, abriu a
pesada porta de mogno e voou para o interior do prédio.
E
CAPÍTULO 19
OS HOMENS HETEROSSEXUAIS
ADORAM-ME
va demorou uma eternidade a abrir a porta do prédio a Shane.
Estava presa numa discussão com a rapariga mais
hiperimaginativa, teimosa e dramática que Brooklyn já produzira.
(À exceção, possivelmente, de Barbra Streisand.)
Audre estava convencida de que Eva se prostituíra por sua causa.
E, com Shane à espera à entrada do prédio, Eva nãotinha tempo
para a convencer do contrário. Estava a vestir roupas à sorte, do
chão do quarto, e a pôr-se bonita à pressa, enquanto tentava
demover Audre daquela ideia. Isto para não falar do facto de que
não estava preparada para que Shane conhecesse Audre e não
fazia ideia do que lhe havia de dizer depois daquele encontro na
Casa de Sonho.
Quando ouviram a bater à porta, Audre e Eva correram
disparadas pelo corredor fora, mas Audre chegou primeiro à porta.
Abriu-a de supetão e ficou parada, com os punhos nas ancas, a
olhar para Shane com os olhos semicerrados e o semblante
fechado.
Ele deu um pulo de pelo menos uns 15 centímetros.
— Foda-se, caramba!
— Shane! Olha a linguagem! — Eva deslizou até ombreira da
porta com as meias felpudas de andar por casa e afastou Audre do
caminho empurrando-a levemente com a anca.
— Mas é a… Ela…
— Está inesperadamente em casa, sim — atirou Eva, sem fôlego.
Nem imaginava quão absurdas elas deviam parecer. Eva com a t-
shirt do concerto de reunião dos Bad Boy Family e jardineiras curtas
de ganga, vestidas à pressa, o cabelo atado no topo da cabeça
como um ananás fresco; e Audre com o fato de treino e o Chapéu
Selecionador de Hogwarts. Estavam ambas ofegantes, os assuntos
pendentes a borbulharem no ar entre elas. — Shane, esta é a
Audre. Audre, este é o Shane. Hum… Precisamos de um segundo
sozinhos. — Eva agarrou Shane, pasmado, pelo bíceps, usou toda a
força que tinha para o empurrar para o corredor do prédio e fechou
a porta atrás de si.
— Dou-vos cinco minutos! — berrou Audre, a voz abafada atrás
da porta.
Com um gesto para que Shane a seguisse, Eva subiu as escadas,
apressada, até ao patamar do segundo andar, em frente da porta do
apartamento acima do seu. Precisava de estar fora do alcance dos
ouvidos de Audre.
Com uma expiração pungente, deixou-se cair de encontro à
parede com 200 anos e Shane fez o mesmo. Eva perguntou-se
quantos mais amantes ilegítimos aquelas paredes teriam visto.
— Ainda não tinha respirado desde que tocaste à campainha —
disse Eva, arquejante.
— Não me disseste que a tua filha estava em casa! — Shane
sentia um misto de pânico e de entusiasmo. — Céus, é a pessoa
mais gira que eu já vi. Foste tu quem a deste à luz. Um ser humano
inteiro. E estás a deixar-me conhecê-la?
— Só porque me esqueci de que hoje não havia aulas! — Eva
cambaleou, agitada, sem conseguir acreditar que Shane estava ali,
no prédio dela, naquele momento.
— Ah. Ahhh. — O coração dele afundou-se. — Ouve, eu vou-me
embora. Não quero causar-te nenhum constrangimento. Nem a ela.
— Não vás.
— A sério? — Shane ficou radiante.
— Tens de me ajudar com o meu álibi.
— Ah. — O coração dele voltou a afundar-se. — Que álibi?
— A Audre viu fotografias nossas na Internet tiradas por fãs…
Gelado, juntinhos nas escadas… E acho que parecia que
estávamos… Tu sabes. — Eva olhou para ele com uma expressão
sonhadora. — Assim.
— O quê, patetas?
— Caidinhos.
Shane assentiu com a cabeça, os dedos a puxarem devagar o
lábio inferior. O seu olhar baixou, indolentemente, dos olhos de Eva
para a boca dela, para a ausência de soutien dela, e depois voltou a
erguer-se.
A boca de Eva entreabriu-se. Shane olhou para ela com um
sorriso afetado. Todo ele era empertigamento e presunção.
— Estou a imaginar — disse.
— Adiante — continuou Eva, as bochechas a arder —, ela está
convencida de que eu te seduzi para salvar a carreira escolar dela.
— Que me seduziste? Ela usou essas palavras? — Shane levou
as mãos à cara, abafando uma risada. — Oh, não.
— Nunca conheci ninguém tão dado ao dramatismo. — Eva
ergueu os braços e revirou os olhos teatralmente.
— Eu já — disse ele, abrindo um sorriso.
— Esta semana está a ser demasiado para mim. — Eva sentia a
cabeça demasiado pesada para o corpo e deixou cair a testa no
peito de Shane. Deixou-se ficar naquela posição, esfregando a
cabeça no corpo dele, a aliviar a pressão. Só queria ser
tranquilizada.
Shane ficou paralisado por um momento, apanhado de surpresa
pela intimidade. Mesmo depois do dia anterior, não queria tirar
conclusões precipitadas sobre a situação em que se encontravam.
— Está tudo bem — disse baixinho, sem lhe tocar. — Posso
abraçar-te?
— Por favor — murmurou ela, de encontro à camisa dele.
Shane inclinou-se ligeiramente, pôs os braços em volta da cintura
de Eva, ajudou-a a endireitar-se e puxou-a contra si. Em bicos de
pés, ela agarrou-se à camisa dele e enterrou a cabeça no seu
pescoço.
— Mais forte — gemeu ela, e ele apertou-a. Shane queria viver
ali. Enfiou os dedos no cabelo dela e massajou-lhe a cabeça,
delicadamente. — Estás aqui — disse Eva, soltando um suspiro, a
sentir-se tonta —, porque eu te quero aqui.
Shane fez um ruído curto, gutural, que haveria de deixá-lo
embaraçado mais tarde.
— Vamos falar sobre o que fizemos?
— Não temos tempo. A minha filha pensa que eu sou uma
prostituta. Tenho de resolver isso.
— Eu ajudo. — Necessitando de sentir a pele de Eva, Shane
passou as costas dos dedos pela face dela, com ternura. Eva soltou
um suspiro ténue. — A Audre tem uma imaginação fértil, o que não
é difícil, sabendo-se quem é a mãe. Eu sou ótimo com miúdos.
— Mas ela é a minha filha. — Eva ergueu a cabeça para olhar
para ele. — E não era assim que eu queria que a conhecesses.
Quer dizer… não que eu tenha pensado que a fosses conhecer.
— Não, eu percebo — disse ele, pousando o rosto nos caracóis
dela. Coco e baunilha. Tão inebriante.
— Vamos dizer-lhe que somos dois velhos amigos que se
voltaram a encontrar. O que não é mentira — sussurrou Eva,
envolvendo o pescoço de Shane nos seus braços e aproximando-o
ainda mais de si. Ele soltou um gemido e, sem desfazer o abraço,
caminhou com ela para trás até a encostar à parede.
— Só amigos — disse ele.
— Sim — sussurrou ela.
Shane inclinou-se levemente e levou os lábios ao encontro dos
dela, chupando-lhe a língua para a sua boca, atraindo-a para um
beijo profundo e lento. Mordeu-lhe o lábio inferior, devagar, e o
choque foi tão intenso que as pernas dela cederam.
— Está bem — sussurrou ele, na boca dela, antes de a largar
abruptamente e se afastar. Eva pestanejou, um pouco cambaleante.
Satisfeito, Shane pousou o dedo na covinha da bochecha dela.
— Pum! Vamos lá, amiga.
Pouco tempo depois, Eva, Shane e Audre estavam sentados à
mesa da cozinha das Mercy-Moore. A luz que vinha da janela virada
para o jardim era clara, e havia margaridas a desabrochar no vaso
de cerâmica que Eva e Audre tinham comprado nas férias de verão
em Barcelona, há dois anos. A mesa era um artigo vintage que Eva
encontrara numa loja em Williamsburg, que estava em liquidação.
Uns cinco minutos antes de Williamsburg cair na boca do mundo.
Era um bloco fino de madeira de sequoia não tratada assente em
pernas de ferro. Ao longo dos anos, adquirira sulcos e cortes
estranhos, manchas de verniz das unhas, borrões de tinta e
rabiscos antigos de caneta de tinta permanente. Era um cronograma
vivo de Eva e Audre. Nunca nenhum homem se tinha sentado
àquela mesa.
E a julgar pela forma como isto está a correr, esta vai ser
certamente a última vez.
Shane julgara que convencer Audre iria ser fácil. Afinal de contas,
era capaz de lidar bem com uma média de 25 miúdos quase todos
os dias da semana. Porém, aquela rapariga era diferente.
— Quero começar por te lembrar que sou a tua mãe — disse Eva.
— Não tenho de justificar nada do que faço. Mas, uma vez que não
quero que tu digas uma palavra que seja sobre isto a ninguém na
escola, vamos esclarecer a situação. Não é, Shane?
Shane engoliu em seco.
— Sim, sim.
— Aqui o Sr. Hall é um velho amigo meu da escola secundária —
continuou Eva. — Vai estar por cá esta semana e fomos tomar um
café gelado juntos. Não recorri à minha astúcia feminina para o
convencer a dar aulas na tua escola para o ano. Nem sequer sei se
tenho essa astúcia feminina. Talvez já a tenha tido e perdido. Seja
como for, não houve astúcia nenhuma.
— Estou a ver. — Audre endireitou o chapéu de feiticeira e fez um
gesto para Shane. Na sua mais solene voz de capitã da equipa de
debate, disse:— Tem a palavra, senhor.
Na sua mais solene voz de professor de Literatura Inglesa do
ensino preparatório, Shane respondeu:
— Eu sei que é a primeira vez que nos encontramos. E não tens
nenhuma razão para acreditar em mim. Mas eu e a tua mãe
estivemos apenas a relaxar platonicamente, na verdade. Mais nada.
— A sério? A sério, Shane Hall? — Audre pronunciou o nome
dele como se tivesse acabado de ler notícias repugnantes a seu
respeito no Google. O que não era mentira.
— Posso assegurar-te que sou demasiado sério para… concordar
com… o que estás a sugerir.
— É ou não é verdade que foi apanhado várias vezes a conduzir
sob o efeito de álcool? — Audre cruzou os braços sobre o peito.
— Audre Zora Toni Mercy-Moore! Pede já desculpa ao Sr. Hall!
Imediatamente.
— Shane — disse Shane.
— Sr. Hall, peço desculpa. Fui mal-educada — concedeu Audre.
— Mas, mãe, estás a ser hipócrita! Passaste-te completamente com
o irmão da Coco-Jean quando achaste que estávamos a ter um
comportamento impróprio. Como se eu fosse gostar de um cliente.
— Um cliente? — perguntou Shane, surpreendido. — Que
serviços é que prestas?
— E agora eu não posso reagir quando tu estás a ter um
comportamento impróprio?
— Eu… sou… a… tua… mãe. — Eva bateu as palmas a cada
palavra, para maior ênfase. — É meu dever interrogar rapazes de
16 anos que confraternizam com a minha filha de 12. É um assunto
meu. Mas, mesmo que eu trocasse favores sexuais para te manter
na escola, não terias nada que ver com isso.
— Mas não trocaste — disse Shane.
— Claro que não. — Eva pegou na mão de Audre. — Onde é que
foste buscar uma ideia tão asquerosa? É por eu te deixar ver a série
Empire? A sério, querida. Consegues imaginar-me a fazer uma
coisa dessas?
Audre olhou de relance para Shane e depois voltou a olhar para a
mãe.
— Acho que não — disse ela, embora relutante. — Não. Acho que
exagerei. Mas imagina a minha confusão! Dizes-me que não estás a
sair com ninguém. E, no dia seguinte, vejo-te toda agarrada a um
gajo qualquer, um gajo de cuja a ajuda precisas. Não fiz a ligação.
Até tu dizeres que farias qualquer coisa para me manter na escola.
Shane assentiu com a cabeça.
— É uma conclusão compreensível.
— A única coisa que essas fotografias mostram é dois velhos
amigos a porem a conversa em dia — disse Eva.
— Bons amigos — acrescentou Shane, que julgara que iria ser
muito mais eloquente e útil durante a conversa, mas que acabara
por ficar sem saber o que dizer na presença de Eva e da filha
dínamo, que tinha a energia de uma tia-avó a julgar as bizarrias dos
vizinhos no alpendre de casa. Era fascinante ver Eva assim. Uma
mãe!
Há décadas que ele não passava tempo com uma família. Estava
deslumbrado.
Entretanto, Audre pousara o queixo na mão, os olhos a
dispararem entre Shane e a mãe. Aos poucos, a indignação que
sentia começou a transformar-se em curiosidade.
— Então, porque é que nunca falaste do Shane? — perguntou. —
E em que cidade andaram juntos no secundário? Sei que te
mudaste muito devido aos trabalhos de modelo da avó.
Trabalhos de modelo da avó. Eva retraiu-se ao ouvir Audre a dizer
aquilo à frente de Shane, que sabia a verdade.
— Foi numa escola em Washington. Eu vivi lá durante o último
ano do secundário. Foi há muito tempo, querida. — Eva levantou-se
e dirigiu-se à bancada para ir buscar uma banana. — Ufa. Ainda
bem que resolvemos isto. Alguém tem fome? Tenho Toaster Strudel!
— Sr. Hall, peço desculpa por ter tirado conclusões precipitadas
— disse Audre. — Isto foi difícil para mim. A minha mãe nunca se dá
com homens heterossexuais.
— Isso não é verdade — replicou Eva, a boca cheia de banana.
— Os homens heterossexuais adoram-me.
Audre deu meia-volta para olhar para ela.
— Porque é que nunca mais se falaram desde o secundário?
— Eu tenho estado ocupada contigo, Audre. E o Shane anda
sempre em viagem.
— Mas nunca referiste que o conhecias.
Audre disse «o» como se Shane não tivesse um nome e não
estivesse sentado mesmo à sua frente. Shane estava a ser posto de
lado, mas não se importava. Sentia-se encantado por estar na órbita
de Eva e Audre.
— Eu só… Como já disse, viajámos muito — atirou Eva,
atabalhoadamente. — A minha memória está um pouco confusa.
«AJUDA-ME», pediu a Shane, articulando a palavra
silenciosamente com os lábios, atrás da cabeça de Audre.
Shane aclarou a garganta e, sem pensar bem, recorreu ao único
superpoder que tinha. Contou uma história.
— Sabes uma coisa, Audre? A amizade que eu e a tua mãe
temos é difícil de quantificar em termos lineares.
Termos lineares, pensou Eva, impressionada. Estou curiosa por
saber aonde isto vai parar.
— Isto não vai parecer relevante, mas, há uns anos, eu tive uma
tartaruga como animal de estimação. Estava a viver numa pequena
cabana em Popoyo, uma cidade de surf, na Nicarágua. Ninguém
tranca as portas nem nada. Uma manhã, acordei e tinha uma
tartaruga enorme na minha cama.
— Isso é higiénico? — perguntou Eva.
— Chiu, mãe — disse Audre.
— Bem, foi a tartaruga que me escolheu, e não havia nada a
fazer. Gostei logo dela. E cuidei bem dela. Andei todo empenhado a
pesquisar o que as tartarugas comiam, e, duas vezes por dia,
preparava-lhe saladinhas de fruta com grilos vivos a acompanhar.
— Que nojo! — Audre olhou para Eva, encantada.
— Os grilos eram a cena dela, sem dúvida — disse Shane. —
Continuando. Ela gostava de me seguir para todo o lado, e, como
andava muito devagar, eu também abrandava muito o passo para
que ela me pudesse acompanhar. Andávamos os dois a arrastar-
nos pela casa, como dois velhinhos.
— Hum… Codependência — disse Audre. — Continue.
— Ela era a minha pequena amiga, sabes? Eu falava com ela
apenas em espanhol.
— Porquê? — perguntou Audre.
— Ela era da Nicarágua — disse ele, apenas.
— Espera lá — interrompeu Eva. — Tu falas espanhol?
— Suficiente para hablar con una tortuga — respondeu ele.
— És mesmo maluco — disse Eva, rindo-se.
Shane sorriu abertamente, visivelmente orgulhoso de si próprio.
— Bem, um dia cheguei a casa, depois de fazer surf, e ela tinha
desaparecido.
— Para onde é que ela foi? — perguntou Audre.
— Foi curtir com outo escritor bêbedo qualquer, talvez. Eu fiquei
destroçado. Mas, certo dia, ela voltou. E eu deixei tudo. E, dessa
vez, ela ficou por uns bons seis meses antes de se pôr a andar
novamente.
— Muito devagar, presumo — disse Eva.
— Bem cá no fundo, estou sempre discretamente à espera de
voltar a encontrá-la.
— Bem. Tudo será revelado na plenitude do tempo — devaneou
Audre. — Sr. Hall, alguma vez achou estranho estar tão apegado a
uma tartaruga?
— Era estranho. E, como disseste, codependente. — Shane
encolheu os ombros. — Mas eu aceitava a situação. Um dia, ela
apareceu e ficamos imediatamente amigos. Entrámos e saímos da
vida um do outro, mas éramos apegados, independentemente do
resto. Eu e a tua mãe somos assim. Vamos ser sempre amigos, por
mais tempo que passe.
— Estou a ver. Um segundo. — Sem dizer mais uma palavra,
Audre levantou-se da mesa e encaminhou-se para o quarto.
— O que é que eu fiz? — sussurrou Shane para Eva.
— Espera — sussurrou Eva em resposta.
Trinta segundos depois, Audre entrou na cozinha com um novo
traje. Um macacão sem mangas preto e óculos de massa sem
graduação.
— Querida — começou Eva —, que roupa é essa?
— Doutorada em Realidade Psicológica — anunciou Audre, antes
de voltar a sentar-se à mesa. — Sr. Hall, é claro, tendo em conta
essa situação da tartaruga, que o senhor precisa de terapia. Aqui
tem o meu cartão. Posso ajudá-lo, se a minha mãe não se opuser.
— Oponho-me sim — disse Eva. — Shane, faças o que fizeres,
não lhe dês dinheiro nenhum.
— Posso pelo menos fazer mais algumas perguntas? — Audre
inclinou-se sobre a mesa em direção a Shane, em jeito de
conspiração. — Como é que a minha mãe era no secundário?
Assinou o seu anuário? Em que clubes é que vocês estavam
inscritos?
Shane cruzou os braços sobre o peito, pensativo.
— Sinceramente? A tua mãe era a rapariga mais esperta que eu
conhecia. E destemida. Dizia tudo o que lhe vinha à cabeça, como
tu.
Audre alegrou-se.— Acha que somos parecidas?
Shane olhou de relance para Eva, que os observava aos dois,
junto à bancada. Depois, sorriu para Audre.
— Sim, acho. Muito parecidas.
— Não, eu era uma inadaptada. — Eva voltou a sentar-se no
banco, junto à filha. Pôs um copo de limonada à frente de Shane.
— Éramos ambos — disse ele.
— De certa forma — acrescentou Eva —, tu ajudaste-me. Percebi
que não era a única destrambelhada da escola.
— Eu nunca tinha percebido que me sentia sozinho — disse ele.
— Até te conhecer e deixar de o sentir.
Com aquelas palavras, Shane e Eva tiveram um momento e,
durante alguns instantes, prolongados e intensos, esqueceram-se
de que Audre estava ali. Audre sentiu a mudança de temperatura do
ambiente. Levantou-se do banco e deslizou para o colo da mãe.
Era algo que fazia de vez em quando. Quando Eva a ajudava com
os trabalhos de casa. Quando faziam uma maratona de The
Bachelor. Apesar de ser comprida e desengonçada, continuava a
precisar de carinho. Mas aquele era um movimento territorial, felino,
como se ela tivesse captado algo possessivo no olhar de Shane e
precisasse de afirmar que Eva era sua.
Eva percebeu. Pôs os braços em volta da cintura da filha e
apertou-a três vezes, o código secreto delas para «Eu amo-te».
Audre fez o mesmo e relaxou um pouco.
— Querida, não é melhor voltares ao teu trabalho?
— Sim, estou a ir — disse Audre, pulando do colo de Eva e
pegando na sua obra do chão.
Shane observava toda a cumplicidade silenciosa das duas com o
pasmo e a reverência de um rapaz de cidade que visita o Grand
Canyon pela primeira vez. Soltou um resfôlego.
— Foste tu que fizeste isso? Está espetacular.
— Eu gosto de colagens — respondeu Audre, timidamente.
— Faz-me lembrar Man Ray — disse Shane. — Ou, não, como é
que ele se chama, o tipo de Seattle que faz colagens com revistas
vintage? Tem uma perspetiva tão surreal da vida quotidiana. Como é
que ele se chama?
Audre resfolegou.
— Conhece o Jesse Treece? Uau, obrigada! Mas eu nunca
poderei ser como ele.
— Ainda bem — retorquiu Shane. — Tens de ser como tu. Quem
é a mulher na obra?
— A minha bebé é uma grande artista — disparou Eva,
atabalhoadamente, antes de Audre poder responder. — Vamos
mostrar-lhe a tua galeria na parede!
— Mãe. Nãããão.
— Vá lá, deixa-me ser uma mãe orgulhosa.
Eva levou-os a ambos para fora da cozinha e conduziu-os pelo
corredor até perto do seu quarto. A parede estava coberta com dez
anos de retratos emoldurados de Eva e Audre, desenhados ou
esboçados ou pintados com crescente sofisticação por Audre.
Shane ficou calado a estudar a arte de Audre.
Independentemente do suporte, as obras eram luminosas, vívidas e
evocativas. Contudo, Shane reparou também que Audre tinha
enchido o primeiro plano e o plano de fundo de melancolia, por meio
de arranjos de flores secas e mementos vintage. Bonecas de
porcelana e livros poeirentos. Objetos de visita de outros tempos.
Era quase uma manifestação do estilo de Eva. Audre era feliz e
equilibrada, sem a tendência da mãe para as trevas, mas não
deixara de absorver a intensidade de Eva por osmose.
Eva observou Shane a admirar a arte da sua menina e sentiu o
coração a estremecer. Não conseguia evitá-lo. Shane estava na sua
casa, a falar alegremente com Audre, como um colecionador de arte
falaria com uma artista durante uma exposição. Eva tentou
desvalorizar o deleite que sentia. A domesticidade. Porque a
esperança estava a crescer em espiral na sua mente, como uma
serpente a cravar-lhe as presas na pele. Tal como quando
conhecera Shane, quando eram adolescentes, na bancada da
escola.
Cresce, disse para consigo. Já sabes como é que isto acaba.
Claro que sabia. Mas sentia-se tão deliciada que começava a não
querer saber.
— … a colagem deixa-nos um pouco desconcertados — explicava
Audre. — Ver elementos que não deviam estar juntos, percebe?
— Como o teu retrato, não é? Com as penas e o cabelo de
veludo. Quase que parece que está a ondular na brisa.
— Exatamente! — Audre olhou para Eva, radiante. — É a avó
Lizette, já agora. Ela também é uma inconformista. Conheceu-a, não
foi?
— Não, nunca tive esse prazer.
— Ficávamos sempre na casa do Shane — interveio Eva.
— A avó Lizette gosta muito de arte — disse Audre, endireitando
uma moldura enviesada. — Quando a minha mãe era pequena, ela
levou-a ao Museu Georgia O’Keeffe, em Santa Fé. E ao Museu
Picasso, em Paris.
Shane olhou de relance para Eva. Eva fez uma expressão de
retraimento. E, mais uma vez, Audre ficou com a clara impressão de
que lhe tinha escapado alguma coisa.
— Bem… — disse ela, recuando pelo corredor. — Vou acabar a
minha obra.
Shane estendeu-lhe a mão. Ela esboçou-lhe um sorriso confiante
e apertou-a.
— Foi uma honra conhecer-te — disse ele. — És uma pessoa
impressionante.
— Então, pergunta-lhe qual é a capital do Maine — interveio Eva,
com um sorriso malicioso.
— Mãe! — A Shane, Audre respondeu: — Na verdade, não sou
assim tão impressionante. Sou é muito loquaz para a minha idade.
Mas obrigada. E apareça mais vezes.
Com isto, enfiou a tela debaixo do braço e dirigiu-se ao seu
quarto. Antes de entrar, deteve-se de repente.
— Ah — acrescentou, virando-se para eles. — Pergunta rápida.
— Sim? — disseram Eva e Shane ao mesmo tempo.
— Qual de vocês é a tartaruga?
— Desculpa? — perguntou Eva.
— Qual de vocês os dois é a tartaruga? Enfim, o que vai e vem e
volta a ir enquanto o outro espera? — disse ela, rodando sobre os
calcanhares. — É uma metáfora, escritores. Pensem nisso.
Deixou-os sozinhos a olharem fixamente para a frente. Olharem
um para o outro poderia ter atiçado um fogo.
Mais tarde, foram vaguear pelo passeio em frente do prédio de
arenito de Eva. Foi logo depois do jantar, quando os passeios de
Park Slope, cheios de miúdos sem escola, já estavam mais calmos.
O sol punha-se em faixas cor-de-rosa e lavanda. Audre estava em
casa a fazer colagens. Shane e Eva não conseguiam evitar tocar-se
— uma mão no ombro, dedos a passarem pelas faces, abraços
generosos — e também já haviam deixado de tentar. Estava tudo
bem com o mundo.
Eva tinha de ir escrever, pelo que Shane tinha de se ir embora.
Estavam no processo de despedida há quase uma hora.
— Bem — disse ele. — Este foi o ponto alto da minha semana. O
segundo ponto alto.
— A Audre gostou de ti. — Eva estava a tentar controlar o enlevo.
Sentia-se prestes a explodir em plena Seventh Avenue.
— E vocês as duas são simplesmente mágicas juntas —
comentou ele, efusivamente. — Ela é incrível.
— Obrigada — disse Eva, radiante. — Amigo.
— De nada. Amiga.
Ela tocou ao de leve com o ombro no dele. Ele retribuiu o toque.
— Bem — disse ele, estalando os dedos —, vou andando. Deixar-
te acabar de me enfeitiçar no livro 15.
— Ah, por falar nisso — começou Eva, hesitante. — Preciso da
tua opinião. O que achas da ideia de o Sebastian ser branco?
— Isso seria um feitiço e peras.
— Não, estou a falar a sério. O Amaldiçoados vai ser um filme. O
que é entusiasmante. Mas a realizadora quer que o Sebastian e a
Gia sejam brancos. Para apelar ao grande público.
Shane não conseguiu evitar rir.
— Eu? Branco? Vá, deixa-te de brincadeiras.
— Acredita, não é uma brincadeira — retorquiu Eva, prendendo
alguns cachos do cabelo no puxo, no topo da cabeça.
Ao ver-lhe a expressão resignada, Shane percebeu que ela
estava a falar a sério.
— Não podes aprovar isso. Vá lá. Tens demasiada integridade
para essa treta.
— Na verdade, eu só preciso que o filme se concretize. — Com
um leve encolher de ombros, ela encostou-se ao portão da frente. —
Além disso, as personagens são mitológicas. Podem ser de
qualquer raça.
Shane fitou-a durante vários segundos, a tentar perceber se ela
acreditava no que estava a dizer. Ou se estava a tentar convencer-
se disso.
— Tu sabes que não podes fazer isso — retorquiu ele, rejeitando
a ideia.
— Eu preciso deste filme. Vai permitir-me fazer uma pausa, para
eu poder fazer outras coisas.
— A tua função como artista, como artista negra, é dizer a
verdade.
— A minha função como mãe solteira é ganhar dinheiro —
salientou ela. — Já seia verdade.
— Hum… — murmurou Shane, pouco convencido. — Parece que
estás a tentar convencer-te da ideia de branquear as tuas
personagens. Não podes querer uma coisa dessas. O Amaldiçoados
faz parte de ti.
— É só uma história — disse ela, num discreto ponto final.
Shane encostou-se ao portão, ao lado dela, e pegou-lhe na mão.
— Posso fazer-te uma pergunta? É verdade que foste a Paris com
a tua mãe? E a Santa Fé?
— É parcialmente verdade — disse ela, reconfortada com o calor
da pele dele. — A minha mãe namorou, em tempos, com um
comprador de arte. Numa altura em que tinha namorados janotas.
Ele levava-a consigo para os leilões. Visitaram esses museus
juntos. Só não me levaram.
Deixaram-se ficar ali por um instante, em silêncio. De mãos
dadas. Perdidos nos próprios pensamentos, a acariciarem a mão
um do outro. A entrelaçarem os dedos. Era algo absolutamente
natural. Depois, Shane colocou o braço nu ao lado do de Eva, de tal
forma que o «G» dele e o «S» dela se alinharam.
— Como — começou ela — é que explicas isto às pessoas?
— Não explico.
— É assim tão simples? — Eva estava admirada.
— É algo nosso — disse ele, simplesmente. — Sagrado.
— Quem me dera que para mim fosse assim tão simples —
observou ela. — Eu tive de inventar uma mitologia completa para o
explicar. Se o «S» se referisse a uma personagem ficcionada, eu
conseguia viver com ele.
Shane assentiu com a cabeça.
— É como o que fizeste com a tua mãe? Reescreveste a história
dela a pensar no bem da Audre?
Eva apertou-lhe a mão e largou-a.
— O que tu viste não é tudo — disse ela, calmamente. — Entre
mim e a Audre. Passámos por muito.
— Queres falar sobre isso?
Eva afastou-se dele, os ombros a baixarem-se ligeiramente.
— A minha cabeça fica pior quando chove. Uma tempestade
intensa pode deixar-me no hospital durante uma semana. Quando a
Audre era pequena, estes episódios abalavam-na muito, e ela
acabou por desenvolver uma fobia à chuva. Uma gota e ela
passava-se. Durante o furacão Sandy, ela gritou até rebentar todos
os vasos capilares da cara. Ficava demasiado histérica para sair de
casa. Tive de a tirar do infantário por uns tempos.
Não há forma de explicar esta culpa, pensou Eva. Saber que a
nossa filha está em sofrimento e que a culpa é toda nossa.
— Fui a um milhão de médicos. Estava desesperada por
melhorar, por ser normal. Por ela. Um lunático qualquer chegou a
prescrever-me metadona, que agora é ilegal. Quer dizer, é um
opioide. Eu andava completamente pedrada. A Cece veio viver
connosco durante um ano, basicamente.
— Céus, Eva.
— O que eu quero dizer com isto é que muita da minha atividade
enquanto mãe é feita a partir da cama. Pedir o jantar, corrigir os
trabalhos de casa, entrançar o cabelo dela: tudo na cama.
Fisicamente, sou limitada. Mas posso contar histórias. Transformar
coisas assustadoras em magia. As tempestades assustam a minha
bebé? Então, eu digo-lhe que ela é sensível à chuva porque é uma
fada do tempo, como o impundulu na mitologia sul-africana. Tem
uma avó sociopata? Na nossa casa, a avó é uma heroína feminista
excêntrica.
Fingindo uma confiança que não sentia, Eva virou-se para encarar
Shane. O pesar marcado no rosto dele deixou-a vazia.
— Por isso, sim, estiquei a verdade. Mas estou a tecer um mundo
para a proteger do mundo real. — Encolheu levemente os ombros.
— Talvez não seja só para a Audre. Talvez eu distorça as minhas
memórias da Lizette para poder dormir melhor à noite. Não consigo
evitar. Eu sei a verdade, mas há uma parte de mim que ainda a
idolatra.
Shane puxou Eva para os seus braços. Ela deixou-se ir e
aninhou-se no peito dele.
— És a pessoa mais forte que eu conheço — disse ele. — O que
estás a ensinar à Audre sobre capacidade de resistência, força e
criatividade? Ela tem muita sorte em ter-te. É dinâmica como o
diabo, e isso é tudo por tua causa.
Eva ficou imóvel. Depois, afastou-se de súbito.
— Para — disse. — Não faças isso. — Rodou sobre os
calcanhares, abriu o portão e subiu as escadas até à porta do
prédio. Pasmado com a mudança rápida, Shane seguiu-a, subindo
dois degraus de cada vez.
— Paro com o quê? — perguntou.
Eva tirou as chaves do bolso e tentou alinhar a chave certa com a
fechadura, mas, com o tremor, deixou-as cair. Shane apanhou-as do
chão. Com uma exalação exasperada, ela virou-se para ele e
estendeu o braço.
— Dá-me as chaves.
Ele deu-lhas.
— Paro com o quê, Eva?
— Para de me fazeres apaixonar por ti outra vez!
Shane estremeceu.
— E sou eu que estou a fazer isso? Está a acontecer-nos aos
dois.
— A sério? Eu não apareci em… onde quer que tu vives… para
perturbar o teu sossego, vinda do nada. Tu vieste cá para fazer isso.
De propósito.
— Quer dizeeer, na verdade, eu não faço nada de propósito —
retorquiu ele, mantendo a voz baixa, a gozar consigo próprio para
tentar acalmá-la. — Não tinha nenhum plano, nenhuma segunda
intenção, a não ser pedir desculpa. Tudo por causa de uma merda
qualquer dos Alcoólicos Anónimos. Mas não lamento que tenha
acontecido.
— Eu não posso fazer isto — disse ela, o sobrolho franzido de
tensão. — Não posso deixar que me sugues. Acabaste de conhecer
a minha filha. Tenho demasiado a perder.
— Que eu te sugue — repetiu ele.
— Sim.
— É fácil culpares-me, não é?
— Desculpa?
Quase na escuridão, os olhos de Shane reluziam.
— Eu apareci em Brooklyn sem avisar. Sim. Mas vejamos os
factos. Foste tu que foste ter comigo à Horatio Street. Foste tu que
me convenceste a ir à Casa de Sonho. Foste tu que me deixaste lá.
Eu sei que distorces a história para facilitares a tua vida, mas eu
nunca te levei a fazer nada. Já pensaste no teu papel nisto tudo?
— O meu papel? — A voz de Eva elevou-se cinco decibéis. —
Poupa-me, eu nem sequer sou uma pessoa de carne e osso para ti.
Sou só um pedaço de ficção que tu inventaste.
— Não. Tu és ficção que tu inventaste.
Eva queria dar-lhe uma bofetada.
— Muito bem. Vai para casa.
— E vou. Mas deixa-me acabar. Lembras-te daquela casa?
Pregaste-me um susto de morte. Eu dormia com um olho aberto
porque vivia aterrado de que te cortasses demasiado
profundamente. Ou que tomasses um comprimido a mais. Tu
marcaste-nos. Foste tu que fizeste isso. Não há só uma pessoa
perigosa aqui. Há duas. Somos iguais.
Demasiado furiosa para falar, a fervilhar por saber que o que ele
dissera era desconfortavelmente exato, Eva virou-lhe costas,
voltando a debater-se com a fechadura. Quando se virou novamente
para ele, a tremer, descarregou toda a fúria que vinha a conter ao
longo dos anos.
— PARA ONDE É QUE FOSTE?
Admirado, Shane abanou a cabeça.
— O quê?
— Para onde é que foste? — Eva aproximou-se dele, enraivecida,
as chaves a cravarem-se-lhe na palma da mão. — OK, somos
ambos maus. Mas foste tu que desapareceste. Não eu. — Zangada,
limpou as lágrimas dos olhos. Havia casais e famílias a passar,
despreocupados, alheios à mulher chorosa e ao homem com cara
de sofrimento no cimo das escadas. — Ontem foi perfeito —
continuou ela, enfurecida. — Hoje foi perfeito. Tu és tão bom, ainda.
Olha para o tempo todo que perdemos! Como é que pudeste deixar-
me? Naquela manhã, quando acordei e tu… não estavas lá. Tive de
aprender sozinha a respirar de novo num mundo em que tu não
estavas presente. Percebes isso?
Eva resfolegou e fez uma pausa para recobrar o fôlego.
— Tu suplicaste-me para ficar, prometeste-me que nunca me
deixarias. Mas foi tudo mentira. Nunca tentaste contactar-me,
sequer. Nem mesmo para saberes se eu tinha sobrevivido! Diverte-
te destruir vidas e escapar ileso? És doente, ou só um mentiroso?
Eu sobrevivi por ti. Mas tu mataste-me na mesma.
— Eva…
— Eu disse a mim própria que não queria saber. — Eva estava a
chorar abertamente. — Mas quero. Tu quebraste a tua promessa.
Para onde é que foste?
Era o que Shane lhe viera dizer. Mas tudo tinha mudado.
Sobretudo depois de ele ter visto o retrato que Audre fizera de
Lizette e ter testemunhado até que ponto Eva suavizara a história da
mãe dela.
Eu sei a verdade, mas há uma parte de mim que ainda a idolatra.
Shane não queria cortar a ligação emocional que Eva tinha coma
mãe. Mas devia-lhe uma explicação, e essa era a única parte da sua
viagem que ele realmente planeara.
— Eu não te deixei — disse ele, por fim.
— O quê?
— A tua mãe nunca te contou nada?
— Não — respondeu Eva, a voz a quebrar em súplica. — O que é
que aconteceu?
— Eu não te deixei.
O rosto dela foi inundado pela confusão.
— Estás a culpá-la a ela? — Eva tremia de raiva pura e
esmurrava as mãos para as manter estáveis. — Quando eu acordei,
perguntei por ti. Ela nem sabia quem tu eras, Shane.
— Como é que achas que ela foi lá ter? — A voz dele era uma
mistura instável de arrependimento e de dor. — Eu encontrei o
número dela no teu telemóvel e liguei-lhe. Quando ela chegou à
casa, chamou os paramédicos. E a polícia. E pôs-me na prisão.
O sangue esvaiu-se do rosto de Eva.
— Não.
— Pergunta-lhe — disse ele, baixinho. — Pergunta-lhe.
SEXTA-FEIRA
G
CAPÍTULO 20
FOI AQUELE RAPAZ
alveston, no Texas, estava a escaldar. Estava sempre, mas o
final de junho era brutal. Sobretudo no sótão combinado com um
estúdio de ensaios de Lizette Mercier. O ar condicionado da
casa arrendada e a cair aos pedaços recusava-se a trabalhar,
exceto (aleatoriamente) aos domingos, segundas e quartas-feiras.
Para combater o calor abrasador, Lizette espalhara ventoinhas da
Home Depot pela periferia do sótão pintado de cor-de-rosa, fazendo
com que os papéis, boas, vestidos, faixas com brilhos, robes e
outros objetos diversos com lantejoulas esvoaçassem por todo o
lado, como se tivessem sido apanhados numa tempestade de vento.
Lizette deleitava-se com o espetáculo. Por vezes, até atirava
confetes diretamente para a ventoinha, só para habituar as suas
raparigas a serem distraídas por algo enquanto atuavam. Haveria
sempre algo no palco que as desconcentraria. As luzes brilhantes, o
vislumbre de um namorado, o júri a olhá-las de lado. A concorrência
a fazer coisas terríveis para arruinar a presença de alguém no palco,
como lhe acontecera quando Emmaline Hargrove aparecera nos
bastidores a mostrar-lhe o Burt Reynolds nu e peludo, nas páginas
centrais de uma edição da Cosmo dos anos 70.
Quando teria sido? Em 1983? Não, em 84. No concurso de Miss
South Louisiana Mardi Gras. Emmaline Hargrove era escumalha.
Mas Lizette conseguira vingar-se. Primeiro, quando arrebatara a
parte de talento do espetáculo (Brick House em clarinete) e depois
quando arrebatara o pai de Emmaline (o juiz Peter Hargrove).
Lizette ganhara o prémio de Miss Simpatia desse ano. Não fora o
prémio principal, mas deixara-a feliz.
Às vezes as pequenas vitórias contam mais, pensou. É um lema e
tanto, na verdade. Devia colocá-lo numa faixa para as minhas
meninas.
De qualquer forma, estava na altura de substituir a faixa
pendurada na parede do fundo. ������-�� ���� � �� �������. Uma
das suas raparigas fizera-lhe aquela faixa reluzente após vencer o
Miss Crawfish júnior. Já tinha uma década e as lantejoulas da
palavra «fiel» haviam caído. «Mantém-te a ti própria» não fazia tanto
sentido, mas Lizette incentivava sempre as raparigas a serem
independentes, pelo que ainda funcionava.
Lizette não era sentimental, mas adorava receber prendas das
suas alunas: doces, animais de peluche, ramos de flores. O que
mais gostava era de cartões de agradecimento. Era a treinadora de
concursos de beleza mais bem-sucedida da zona da grande
Galveston Beach. O que era um feito assinalável, tendo em conta
que todo o negócio se baseava na publicidade boca a boca.
Nenhum tipo de marketing. E muito menos de redes sociais. Lizette
detestava a avidez do Instagram, e o Facebook parecia-lhe um
anuário da Quinta Dimensão. Para si, todas as «conveniências» que
se dizia servirem para facilitar a nossa vida não passavam de
equivalentes tecnológicos a mosquitos a zumbirem aos nossos
ouvidos. Lizette detestava mosquitos. E detestava ser incomodada.
Além disso, não queria ser encontrada. A Internet não era um
lugar para pessoas com segredos.
A sua primeira cliente fora a filha da vizinha, que ela espiava a
praticar para o Little Miss Forever Beautiful, no quintal partilhado. A
empertigada aluna do 5.º ano andava a treinar uma coreografia de
majorete, mas estava sempre a deixar cair a baqueta.
«Precisas de uma varinha mais longa, querida», gritara-lhe
Lizette, por cima do portão barato de ferro descascado que
separava os relvados das duas casas. «Uma boa para o teu
tamanho!»
Continuara a dar opiniões não solicitadas acerca da atuação da
rapariga e, quando Kaileigh ganhara todos os títulos do concurso,
Lizette percebera que os seus conselhos eram valiosos.
Agora, estava a trabalhar com Mahckenzee Foster, uma diabinha
capaz rebolar os quadris, fazer sapateado e movimentos de dança
acrobáticos. Lizette inclinou-se para a frente, na cadeira de
realizadora, a examinar as formas da rapariga. Lizette não era uma
bailarina com formação, mas sabia o que era ter presença. Quando
trabalhara como empregada de bar, a mera cadência do seu andar
inspirava o caos. Ou pelo menos inspirava homens embriagados e
de cara vermelha a gritar-lhe «Halle Berry». Lizette não tinha
qualquer semelhança com Halle Berry. Era aquele fenómeno dos
brancos que viam um rosto negro bonito e diziam ser parecido com
o primeiro rosto negro bonito que lhes vinha à cabeça. Já tinha sido
comparada com Thelma da série Good Times, com Jasmine Guy de
A Different World e com a rapariga negra da série Já Tocou que
ficou maluca. Nenhuma semelhança.
É só mais uma forma de fazerem com que nos sintamos
invisíveis, pensou. Sabia que a única pessoa com quem ela se
parecia era consigo própria. E com Clo Mercier.
Feitas as contas, o passado não a incomodava. Nada a
incomodava, na verdade. Vivia numa nuvem movida a Xanax,
teimosamente impérvia a sentimentos negativos e a dias negros.
Quando surgia um pensamento depressivo, ela atirava-o para o
lado.
— Mais uma vez, minha doce Mahckenzee — ronronou,
ajustando o quimono para que caísse graciosamente em redor das
pernas. Com 55 anos, olhos de corça sonhadores e cabelo enrolado
com rolo quente a cair-lhe sobre os ombros, parecia estar a gerir um
bordel fino dos anos 40, e não uma empresa de consultoria para
concursos de beleza infantis.
Quando ouviu o Samsung Galaxy a tocar, ignorou-o. O telefone
estava pousado na cadeira de realizador junto à sua, destinada às
mães-galinha que queriam ficar a assistir aos ensaios. Depois de
tocar umas boas seis vezes, Lizette olhou de relance para o nome
no ecrã. Soltou um grito e esmagou acidentalmente a lata de Coca-
Cola Light que tinha na mão direita.
— Cum caraças! — exclamou, pegando no telefone. — Ei, ei, ei.
OK. Mahckenzee? Continua a praticar, boneca. Vou ali abaixo por
um instante. Preciso de fazer uma chamada.
— OK… Menina… Menina Lizette! — disse Mahckenzee,
ofegante, pois estava a dançar sem parar há 40 minutos.
Lizette desceu as escadas. Olhou para o espelho pendurado na
parede, retocou o batom Red Revenge, da CoverGirl, nos lábios
inchados e deitou-se no sofá de imitação de pele.
— Olá, Genevieve — arrulhou, num tom todo meloso e num
sotaque ritmado.
— Olá, mãe. Oi. — A filha parecia estar num frenesi. E perto,
como se estivesse a gritar do quarto ao lado. Devia ser uma
emergência para lhe estar a ligar numa vulgar tarde de junho.
Falavam-se exatamente quatro vezes por ano: duas vezes em abril
(nos aniversários de cada uma), uma vez em setembro (no
aniversário de Audre) e no Natal. Lizette não conseguia imaginar
qual seria a causa daquela chamada. Mas, para a sua filha, tudo era
uma crise.
Lizette quase não a vira desde que Genevieve saíra de casa.
Quando voltara da ala psiquiátrica para onde a polícia a enviara
(Lizette nunca mandaria internar carne da sua carne, por Deus),
Genevieve contara-lhe, numa longa e lacrimosa conversa noite
adentro, que os terapeutas lhe tinham dito que ela precisava de
espaço. Em relação à mãe. Pela sua saúde.
Espaço!
Foram essas as suas palavras, na cozinha daquele apartamento
ranhoso arrendado em Washington. Aquela casa nunca chegara a
ser um lar, mas apenas um purgatório temporário prenhe de azares.

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