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ARIDA Ilha da magia da alma Representada pela sáfira VALUKA Ilha da magia elementar Representada pelo rubi MORNUTE Ilha da magia do encantamento Representada pelo bêrilo rosa CURMANA Ilha da magia da mente Representada pela ônix KEROST Ilha da magia do tempo Representada pela ametista SUNTOSU Ilha da magia da restauração Representada pela esmeralda ZUDOH Ilha da magia da maldição Representada pela opala CAPÍTULO UM Este dia foi feito para velejar. A salmoura do oceano cobre a minha língua e eu saboreio seus grãos. O calor do final do verão venceu o mar; ele mal balança enquanto estou contra a borda do estibordo. A água azul-turquesa se estende a distância, cheia de peixes cirurgião-patela e cardumes de guaiúba que flutuam para longe do nosso navio e se escondem sob finas camadas de espuma do mar. Através da neblina da manhã, há um contorno de montanhas cobertas por nuvens que moldam a ilha mais ao norte do reino, Mornute. É uma das seis ilhas que ainda não vi, mas que um dia governarei. — Para onde estamos indo? — Pergunto. — Para os vulcões de Valuka? Ou as selvas de Suntosu? — O clima é suave o suficiente para que minhas palavras sejam levadas à proa onde meu pai está, com vista para a água. Anos no mar enrugaram sua pele bronzeada, fazendo com que ele parecesse ter mais de quarenta anos. As rugas também o fazem parecer severo, o que eu gosto. O Alto Animancer de Arida, o Rei de Visidia, deve sempre parecer severo. — O mar é um animal perigoso, Amora — diz ele. — E você é preciosa demais para perder. Mas prove sua força para o nosso povo hoje à noite e saberei que você é capaz de enfrentá-lo. Por enquanto, concentre-se em conquistar o trono. — Seus profundos olhos castanhos piscam para mim e ele sorri. — E em anunciar seu noivado. Minha garganta aperta. Ferrick é um homem bom o suficiente, se alguém sonha em se estabelecer com um conhecido da infância. Mas prefiro meus pretendentes diários e seus presentes. Amabons, ginnadas e vestidos dos melhores tecidos, tudo para conquistar a princesa impressionável que eles pensam que sou. Os meninos do reino acham que podem comprar meu amor e título, e eu deixo que eles acreditem. Nada se compara as bugigangas luxuosas de pretendentes famintos, e não estou interessada em acabar com a sua generosidade. — Você está pronta? — As palavras do meu pai são baixas, mas firmes; algo em seus olhos muda. Ele não está falando do meu compromisso iminente. Instintivamente, minha mão vai para a mochila de couro apoiada no meu quadril. O conteúdo faz barulho quando toco suas bordas rígidas. — Estou — digo, embora as palavras sejam ousadas em comparação ao que realmente sinto. Porque, mesmo sendo a única filha do rei, meu povo não me entregará a coroa e deixar que eu reine pelo direito de nascença. Aqui, no reino de Visidia, devo primeiro provar o meu valor a eles se quiser ganhar o título de herdeira. E devo fazê-lo dando uma demonstração adequada da magia aridiana; a magia compartilhada apenas através do sangue da família Montara. Hoje à noite, só tenho uma chance de mostrar que estou apta para reivindicar o título de Animancer – um mestre de almas. Mas meu povo não irá se contentar com um bom desempenho. Eles exigem excelência, e eu os darei exatamente isso. No final da noite, provarei a todos que nunca haverá alguém mais adequado ao trono. As vastas montanhas de penhascos verdes e exuberantes se estendem diante de nós enquanto o mar puxa nosso navio em direção às docas de Arida, minha ilha natal. As falésias estão densamente cobertas pela flora bioluminescente, que, embora linda à luz do dia, rouba a respiração de uma pessoa quando elas espalham suas brilhantes pétalas roxas e rosas sob a lua. É magnífico, mas um grosso nó de amargura contrai meu peito enquanto nos aproximamos. Tento ignorá-lo, mas afunda no meu intestino como uma âncora. Eu amo Arida, mas deuses, o que eu não daria para virar este navio e continuar navegando. Nossas velas incham quando o vento nos leva em direção ao porto, e meu pai se prepara para atracar. Pode-se esperar que eu dirija o reino um dia, mas meu pai ainda se recusa a me ensinar algo tão simples quanto navegar no Duquesa. Como sou uma das duas herdeiras em potencial de Montara, ele me diz que viajar é muito perigoso. Apesar de ter passado muitos anos implorando e argumentando que eu deveria navegar e ver meu reino, ele dificilmente me deixa tocar o leme. Mas isso significa que é hora de se esforçar mais. Hoje é meu aniversário, afinal. Afasto minhas preocupações com as gaivotas que circundam o mastro principal e me junto a ele. Os lábios do meu pai franzem enquanto eu sorrio; ele sabe exatamente o que eu quero. — Por favor? — Descanso minha mão macia ao lado da mão áspera no leme, desejando o brilho beijado pelo sol e calos ásperos do mar que ele usa com orgulho – os sinais reveladores de um viajante. Não resta muito tempo antes de atracarmos. As águas estão ficando rasas, batendo furiosamente contra o navio enquanto nos aproximamos de Arida. Uma pequena multidão de servos e soldados reais nos espera na areia vermelha, prontos para nos levar e preparar-nos para esta noite. — Não. — Papai endireita os ombros para me bloquear. Eu o rodeio para reivindicar seu olhar. — Sim. Só desta vez? O suspiro que ele dá faz seu peito largo tremer. Deve sentir o quanto eu quero isso, porque pela primeira vez na minha vida se afasta e me oferece o leme. Minha mão livre agarra a madeira lisa, sem perder um segundo, e reprimo um arrepio com a sensação entre as palmas das mãos. Natural. Como se minhas mãos fossem feitas para isso. — Você deve ir devagar — diz meu pai, mas não estou prestando atenção. O navio sente cada pedaço da besta, capaz de assumir a promessa de aventura do mar e conquistar qualquer coisa em seu caminho. É forte, destemido, mas sinto sua relutância em me ouvir. Este navio é como meu povo; exige um capitão merecedor e não aceita menos. Raspo minha unha delicadamente contra a madeira e torço o leme, apenas dois centímetros. O navio estremece em resposta, considerando-me. Meu pai fica perto, as mãos tremendo e prontas para assumir o controle, caso algo dê errado. Eu não vou deixar. Sou Amora Montara, Princesa de Visidia e herdeira do trono do Alto Animancer. Não há navio que eu não possa navegar. Não há nada que eu não possa dominar. O vento muda com uma rajada de ar, perturbando as velas e empurrando a embarcação dois centímetros ou mais para a esquerda. Não é uma grande mudança, mas o navio está me desafiando e não sou de perder. Ajusto meu aperto no leme para corrigi-lo. Não preciso olhar para cima para saber que estamos entrando em águas rasas. Posso sentir isso no comportamento do navio, na maneira como sua constante calmaria se transforma em algo rígido e feroz. — Aperte mais a sua mão esquerda. — A voz de meu pai está distante, mas eu faço o que ele diz. O navio range em resposta. Eu sou Amora Montara. Cravo minha unha no Duquesa novamente quando o navio estremece. O poder de Arida está dentro de mim. Você vai obedecer. Duquesa geme quando atingimos a areia, e o impacto sacode meu peito. Perco o equilíbrio e luto para conseguir uma melhor firmeza, mas o leme está escorregadio da névoa do oceano, e meu rosto bate nele. Madeira irregular arranha minha bochecha, fazendo o navio rir enquanto se acomoda na areia. Eu me afasto, passando um dedo pela minha pele. Ele sai pingando sangue. O navio venceu e sabe disso. Não me lembro da última vez que algo me fez sangrar. — Amora! — A voz do meu pai estala de horror. A raiva incha na minha barriga enquanto encaro as mãos que me traíram. Navio maldito. Tudo o que precisava fazer era ouvir. — Pela lâmina de Cato, você está sangrando. Esta noite, devo ser perfeita. Não há espaço para ferimentos feios que sinalizem fraqueza. — É apenas um arranhão. — Eu o afasto. — Mira será capaz de cobrir. A culpa atravessa nas rugas entre as sobrancelhas comprimidas do meu pai. A visão disso faz a raiva rasgar minhas veias como veneno. Não é culpadele que eu esteja sangrando. Não é culpa dele que eu não possa comandar nem um navio que não quer me ouvir. Pego o seu braço antes que ele possa dizer mais alguma coisa. Descemos a ponte do Duquesa, para onde Mira espera na areia da cor de sangue fresco, entre vários homens e mulheres rígidos que vestem blazers leves com detalhes em ouro rosa. Ela usa calças pretas largas e uma blusa combinando que ondula em seu corpo pequeno, presa por pequenas alças de pérolas que brilham sob seus cabelos - um fluxo espesso de ondas tão escuras e elegantes quanto as penas de um corvo. A guarnição sólida de ouro rosa ao longo de sua roupa combina com o emblema real que ela usa com orgulho no peito; é o mesmo que os outros usam – o esqueleto de uma enguia enrolada em uma coroa de osso de baleia. Embora ela seja um pouco mais velha do que eu, o rosto afiado de Mira está prematuramente enrugado pela ansiedade constante. Nos seus cinco anos como minha dama de companhia, ela aproveitou todos os momentos possíveis para me irritar, tão protetora quanto meus pais. Quando vê minha bochecha, ela engasga e me puxa para frente. — Hoje entre todos os dias. — Ela tira um lenço do bolso e esfrega na minha bochecha. A desaprovação feroz persiste nas palpébras de seus olhos azuis apertados, e enquanto espero o veredito, ela franze a testa. — A ferida está fresca, então podemos escondê-la se agirmos rapidamente. Venha, vamos prepará-la. Olho de volta para o meu pai, procurando o seu sorriso de encorajamento. Mas ele fica franzido quando os oficiais o atraem, sussurrando segredos não destinados a sucessores não comprovados. Dou um passo em direção a ele, silenciosamente implorando para que se vire e busque meu conselho ou me convide para a discussão, mas Mira agarra minha mão. — Você sabe que não lhe dirão nada. — Embora sua voz seja suave, as palavras parecem garras. — Não até depois da sua apresentação. Afasto a mão de Mira, deixando o navio roubar minha atenção. Sua madeira range de tanto rir quando se assenta na areia, zombando de mim. O som afunda nos meus ossos e me pergunto: se não posso nem governar um navio, como estou pronta para governar um reino inteiro? CAPÍTULO DOIS Ikaeans encantaram a luz das tochas, cobrindo o caminho lotado embaixo da minha varanda em tons deslumbrantes de rosa, azuis e roxos. Centenas de visidianos escalam os penhascos íngremes da praia até onde a celebração começa na parte inferior do palácio, alguns deles usando caminhos pavimentados, enquanto os mais aventureiros tecem dentro e fora dos eucaliptos arco-íris e sobem a costa, engasgando com zombarias e respirações rápidas, competindo uns com os outros. Um grupo de soldados de Curmanan espera na costa para ajudar aqueles que não podem ou preferem não fazer a escalada. Eles levantam crianças e famílias no ar e sobem os penhascos do norte até onde a celebração aguarda. Eles são hábeis o suficiente com sua magia de levitação, que vem tão facilmente quanto suas respirações. A batida constante dos tambores é mais intensa do que era antes; cada uma delas enche meus ossos enquanto o oco som de percussão enche meu peito. O ar pulsa com energia e risos, quente com o cheiro de carne de porco ricamente temperada e ameixas assadas. Cada pessoa – jovem e velha – está fora hoje à noite. Quando chegar a hora da minha apresentação, não haverá como me esconder dos olhos de Visidia. — Não é magnífico? — Yuriel pergunta. — É melhor do que o teatro por aí, com todas aquelas modas e magias. Deveríamos reunir o reino dessa maneira com mais frequência. — Meu primo se senta no canto da minha cama de dossel, encostado contra um edredom de penas de ganso enquanto apanha uma bandeja cheia de sobremesas luxuosas. Sentado lá, ele parece quase um cisne, cuidadoso para manter qualquer coisa que se pareça com chocolate longe das penas de pavão rosa tingidas que compõem seu traje excêntrico, mas bebendo profundamente de um copo de cristal de vinho tinto de ameixa mesmo assim. Fico distraída com o brilho surpreendente de seus olhos cor de lavanda e a bela maquiagem rosa fluorescente que sai deles. — Quando eu governar, reunirei o reino para muitas celebrações. — Afasto-me da varanda e fecho as cortinas de veludo atrás de mim. Dizer isso em voz alta aquece meu sangue, fazendo minha pele formigar com antecipação por esta noite. Em apenas algumas horas, tudo o que passei dezoito anos trabalhando serão finalmente meus. Meu título como herdeira de Visidia. A oportunidade de navegar e ver meu reino. O direito de não apenas aprender seus segredos, mas de comandá-lo. — Fico feliz em ver que você está confiante — diz Yuriel entre mordidas pegajosas de caramelo gelado. — Vou cobrá-la por isso. Embora Yuriel e eu somos ambos Montaras, nossas semelhanças terminam no sangue em nossas veias. Com um pai que é pálido como a neve em pó, a pele do meu primo é várias tonalidades mais claras que o meu próprio marrom cobre. E enquanto meu cabelo é uma massa de cachos escuros, o dele, como todas as coisas em Ikae, sua cidade natal, é extravagante. É o tom mais forte de branco, puro mesmo nas raízes. Onde eu sou alta e curvada com músculos, ele é macio e delicado - um garoto propaganda de Ikae. Mas nossa maior diferença é que, apesar de sua linhagem real, Yuriel não pode aprender magia da alma. Ele desistiu de tentar quando tinha cinco anos e acidentalmente usou magia de encantamento para tornar o cabelo de tia Kalea verde fluorescente. Embora ele fosse jovem demais para ser responsabilizado por essa escolha, agora é um dever que tia Kalea e eu assumimos sozinhas. Se eu não for considerada uma herdeira apta, meu povo passará para ela; a única Montara remanescente que ainda consegue reivindicar uma mágica. Mas isso não vai acontecer. Ninguém na minha família jamais falhou em sua apresentação, e dediquei muito da minha vida para não ser a primeira. — Amora? — Mira aparece na sala conectada. Suas íris são brancas e vidradas; o olhar de um Curmanan usando a fala da mente. — Seus pais estão prontos para você. — Ela pisca o azul de volta em seus olhos. — Quando estiver pronta, Casem irá acompanhá-la até eles. Yuriel balança as sobrancelhas quando me viro para dar uma olhada final em mim. O arranhão na minha bochecha é quase imperceptível sob camadas de cremes e pós. Meu vestido de crepe é feito para chamar a atenção – azul royal com um top apertado e estruturado, bordado com finas espirais douradas que acentuam minhas curvas e iluminam o calor da minha pele de cobre. É apertado em todas as áreas que posso apreciar, e com meus cachos castanhos escuros presos frouxamente na nuca, o efeito criado é feroz. Mira me oferece uma capa que parece ter sido encharcada de safiras derretidas e polvilhada pela luz das estrelas. Ela a prende no meu vestido, logo abaixo dos ombros, e minha respiração fica presa. Brilha como o sol refletindo na água escura e mancha pontas dos meus dedos com brilho enquanto as escovo pelo tecido macio. — Você realmente se superou — digo a ela, pegando o sorriso orgulhoso que tenta esconder. — Ferrick é um homem de sorte — diz ela. — Você está bonita. Minha felicidade se despedaça. Com o tempo que levou para me encaixar nesse vestido, eu certamente deveria estar linda. E me senti assim antes de Mira mencionar Ferrick. — Obrigada — eu digo rapidamente, tentando apagar os pensamentos do meu futuro noivo. — Estou pronta para ver meus pais. — Boa sorte! — Yuriel aplaude enquanto se serve outro copo de vinho. Eu o deixo para trás no meu quarto; minhas botas estalando contra o chão de mármore enquanto sigo Mira pela porta. Meu guarda, Casem, espera com a cabeça encostada na parede. Como um Valukan, Casem é capaz de manipular o ar ao seu redor. Mas Casem prefere o armamento à magia, e raramente pratica suas habilidades. Ele veste com orgulho o uniforme que todos os guardas reais e soldados visidianos usam, independentemente de qual ilha eles vieram: um blazer azul royal marcante e uma capa de safira cintilante, com costuras prateadas ao longo da revestimento.O emblema real da enguia esquelética brilha intensamente em sua capa quando ele mergulha em um arco ao nos avistar, embora seus pálidos olhos azuis permaneçam em Mira por mais tempo do que em mim. Ele é como um favo de mel ambulante, com sua pele bronzeada e cabelo loiro claro, e eu juro que ele se derrete toda vez que olha para ela. Talvez um dia eles tenham coragem de se beijar e acabar com seu desejo constante. — Vocês dois planejam curtir a celebração? — Eu pergunto enquanto caminhamos, agradecida por ter alguém sóbrio para conversar. — Ou meu pai os colocou em serviço? O silêncio momentâneo deles é a resposta suficiente. — Duvido que seja necessário. — Casem olha por cima do ombro, sorrindo para nós. — Mas cuidar de você hoje à noite é um privilégio. Embora, eu admito... o porco assado cheira como se fosse cozido pelos deuses. Eu não me oporia se você conseguisse guardar comida extra... — Casem! — Mira engasga, mas o guarda ri e eu sorrio. — Vou dizer à equipe da cozinha para deixar algo de lado — asseguro-lhe quando subimos as escadas, meu coração disparando enquanto nos aproximamos da sala do trono. As colossais portas duplas olham para mim, uma presença iminente que arrepia meus ossos. Faço uma pausa diante delas, respirando fundo enquanto tomo um momento para me estabilizar. Após dezoito anos de espera, isso está finalmente acontecendo. Ornamentalmente esculpido com o mapa da terra que comandamos, todo o reino de Visidia se desdobra através das placas douradas, retratadas por uma coleção de ilhas incrustadas de jóias cintilantes. Ilha da magia da alma e a capital do nosso reino, Arida é representada por uma safira brilhante que fica orgulhosamente no meio do mapa. Minha pele esquenta enquanto eu passo meu dedo em minha ilha natal, seguindo diretamente acima até a casa de Yuriel - Mornute, marcado por rosa berila. Uma ilha luxuosa e rica, cheia de habitantes elegantes que usam sua magia de encantamento para ter cabelos roxos em um dia e rosa no seguinte. Mornute é conhecida não apenas por sua mágica, mas também por suas exuberantes vinhas nas montanhas. A ilha do encantamento produz e exporta a maior parte do álcool de Visidia. Embora a cerveja seja deliciosa, o vinho é de longe o meu favorito. À esquerda fica a ilha natal de minha mãe e Casem, Valuka. Marcado por um rubi, é onde a magia elementar é praticada. Enquanto minha mãe escolheu que sua afinidade seja a água, aqueles com magia Valuka podem escolher entre manejar terra, fogo, água ou ar. Abaixo de Valuka, há uma ilha mais ilusória para mim – Kerost, a ilha da magia do tempo, retratada com uma ametista. Embora seja impossível manipular o próprio tempo, aqueles com essa mágica são capazes de mudar a maneira como os corpos interagem com o tempo, diminuindo a velocidade ou acelerando a si mesmos. Temos soldados e funcionários aqui no palácio que vêm de todas as ilhas, mas já faz muito tempo desde que vi a mágica do tempo em ação. Meu pai me contou histórias sobre quão cansativa essa magia pode ser para seus usuários, e é por isso que é a mágica menos praticada de Visidia. À extrema direita de Arida, fica uma espessa pedra de esmeralda que marca o centro de Suntosu, a ilha da magia da restauração. Os curandeiros habilidosos costumam trabalhar para o reino, onde são enviados para enfermarias por toda Visidia, encarregados de cuidar dos doentes e feridos. Mas Suntosu também é a casa de Ferrick, meu noivo, e por esse motivo eu percorro rapidamente pela ilha, não querendo pensar em ter que anunciar nosso noivado. Em vez disso, trago meu dedo para cima, até o ônix que marca Curmana, o local de nascimento de muitos de nossos funcionários reais, incluindo Mira. Penso nos Curmanans que assisti mais cedo, ajudando outros a subir os penhascos. Mas nem todos são hábeis em levitação; alguns, como Mira, são talentosos falantes da mente, capazes de se comunicar diretamente na mente de outra pessoa sem precisar usar os lábios. Meu pai contratou vários deles para trabalhar com os conselheiros de cada ilha, e a mágica deles é como nos comunicamos tão rapidamente. Também é um ótimo recurso para as últimas fofocas do reino. Quando vou puxar minha mão, meu polegar passa por um pequeno buraco no mapa, no extremo sul de Arida, e me inclino para examinar o buraco que antes continha uma linda opala branca. Zudoh. Uma ilha especializada em magia amaldiçoada, banida do reino quando eu era criança. Não sei muito sobre a magia deles – apenas que era usada para proteção. Eles poderiam criar barreiras e encantos que, quando tocados, levariam as pessoas a ver coisas estranhas. A ilha era conhecida principalmente por sua infraestrutura avançada e madeira de engenharia única que se prestava à produção de nossas casas e de nossos navios. Como a ilha mais ao sul, seu clima é o mais frio de todos. Diz-se que os invernos em Zudoh são rigorosos e cheios de neve e nevascas. Não me lembro muito do banimento deles, aconteceu quando eu tinha apenas sete anos de idade. É um assunto delicado de conversas em todo o reino, frequentemente mencionado em sussurros atrás de portas fechadas. Até mesmo meu pai não gosta de discutir isso. Sempre que eu pressionava por detalhes, ele era rápido em dar as costas e dizer que Zudoh não concordava com a maneira como os Montaras governam, e que eles nunca o farão. Além disso, tudo o que sei sobre o banimento de Zudoh foi obtido mantendo um ouvido na rede de fofocas do reino. Ouvi dizer que os conselheiros de Zudoh se voltaram contra meu pai durante uma de suas visitas à ilha, e houve uma briga que o deixou gravemente ferido. Lembro-me vagamente de um breve período em que meu pai parou de me treinar e eu não tinha permissão para vê-lo. Naquela época, assumi que ele estava ocupado; apenas anos depois eu liguei os pontos. É irritante, esperam que um dia eu governe este reino, mas ainda assim me tratam como uma criança por manterem tantas informações em segredo "até que eu esteja pronta". É por isso que estou ansiosa para hoje à noite, mais do que qualquer coisa. No momento em que minha apresentação terminar e eu for oficialmente reconhecida como herdeira do trono, exigirei saber tudo o que há para saber sobre o meu reino. Não vou mais me perguntar. Meu pai não será mais capaz de me manter escondida em Arida, me dizendo para continuar praticando minha magia. Ele terá que me tratar com o respeito que a futura rainha merece. Eu posso ser uma das poucas herdeiras possíveis, mas eu não sou a coisa frágil e quebrável que ele acredita que eu seja. — Amora? — A voz de Mira me chama de volta. Dois guardas do palácio ladeiam meus lados, cada um com a mão apoiada nas maçanetas grossas da porta, esperando. Eu respiro. — Abram. As portas trazem uma onda de ar quando se separam, deixando alguns fios soltos de cachos livres de suas bobinas em meu pescoço e nos meus olhos. Meu peito fica apertado quando minha respiração acelera. Olho de relance para Casem e Mira, que estão de joelhos, com a cabeça baixa, e entro. As portas se fecham atrás de mim. Não há necessidade de luz na sala do trono. Tochas e o brilho das estrelas esgueiram-se pela parede traseira aberta e inundam o espaço cavernoso. Como em qualquer outro lugar dentro do palácio, o chão é de mármore branco, embora aqui esteja parcialmente coberto por um grosso tapete de safira, enfeitado com detalhes dourados. Na extremidade, três tronos feitos de pérolas e ossos de baleia estão no topo de seis degraus de mármore preto. Em breve haverá quatro cadeiras. Uma vez casada, Ferrick sentará ao meu lado toda vez que eu reunir o conselho. Minhas mãos suam, mas não há tempo para me demorar na quarta cadeira invisível. Meus pais estão diante dos dois tronos da frente; a varanda panorâmica exposta com vista para Arida se espalha atrás deles. A luz da tocha encantada ilumina seus perfis e transforma seus sorrisos brilhantes em luas radiantes em miniatura. — Amora. — Meu pai fala primeiro. — Você está linda. — Há uma mesa atrás dele, embora eu não possa ver o que está nela. A realidadedo que está prestes a acontecer transforma minhas pernas em pedra. Trêmula, forço-as a avançar, passo a passo. Pilares de mármore se erguem ao meu lado - há mais quatro entre meus pais e eu. Eu conto cada um enquanto me movo. Um. Mais uma hora até eu provar a Visidia que devo ser a herdeira deles. Dois. Mais duas horas até eu ficar noiva de um homem que nunca vou amar. Três. Mais três horas até eu dar o comando de preparar um navio para zarpar amanhã, e exigir saber todos os segredos sobre esse reino que já foram escondidos de mim. Quatro. Finalmente o nervoso vem, cavando em mim. Me fazendo suar. No final da escada, eu me curvo e meu pai ri. — Venha, Amora — diz ele. — Venha se sentar. Engulo um nó na garganta e subo os degraus rapidamente enquanto começo a andar em direção à minha cadeira – a de trás. Minha mãe agarra meus ombros e me vira. — Essa não — ela sussurra, apontando-me para a maior cadeira – a que pertence ao Alto Animancer. Meu coração é um monstro que se enfurece contra a minha caixa torácica quando meu pai segura meu braço e me guia para seu assento. A sala parece enorme vista daqui. Não há estrelas deste ângulo, nem janelas para a ilha. Somos apenas eu e um espaço vazio que parece grande demais. — Um dia, quando os deuses levarem minha alma ou a ilha não me achar mais apto a governar, é aqui que você ficará sentada. Você governará este reino, como os deuses a criaram para fazer. — A voz de meu pai é distante; meus batimentos cardíacos estrondosos latejam nos meus ouvidos, mais alto que suas palavras. — Eu conheço sua magia, seu controle e sua força. Nos últimos dezoito anos, observei crescer dentro de você todos os dias e não podia estar mais orgulhoso. O poder de Arida é forte dentro do seu sangue, e ainda assim você o conquistou. Agora é hora de provar isso ao nosso povo. Mostre a eles que quando meu tempo acabar, eles poderão depositar sua confiança em você. — Ele se aproxima, desenhando duas dragonas elegantemente cruéis da mesa. As peças ornamentais dos ombros são assustadoramente altas, incrustadas com grossas pedras preciosas para representar as várias ilhas de Visidia, e formam picos irregulares e perigosos que certamente cortarão minha própria bochecha se eu me virar muito rápido. O desejo aumenta, quase me sufocando. Eu nunca percebi o quão leves meus ombros eram até este momento. — Amora, você jura aceitar essa posição que os deuses lhe ofereceram, usando sua magia com honestidade e julgamentos justos? — Ele pergunta enquanto prende a primeira. — Eu juro. — Agarro os braços da cadeira para me firmar. — Você jura defender as leis da magia da alma, sabendo que toda vez que a exerce, deve ser com um propósito? — Meu pai prende a segunda dragona. — Eu juro. Ele recua um passo para me olhar. — E, o mais importante, você jura sua dedicação em proteger o povo de Visidia, mantendo essa mágica durante toda a sua vida? Mesmo sabendo das consequências? Olho para ele com firmeza, com o queixo erguido. — Eu juro. Seus olhos brilham quando a luz da tocha os pega. — Então seu treinamento termina aqui e você pode ser Animancer ao nascer do sol. Você tem minha benção. As pedras roçam meu pescoço e orelhas, forçando arrepios na minha pele. Quando tremo, mamãe pressiona a mão no meu braço, sua presença me estabilizando. — Feliz aniversário, meu amor. Estamos orgulhosos de você. — Sua linda pele marrom brilha tão radiante quanto as falésias à beira- mar ao nascer do sol, a quente sombra âmbar quase uma combinação perfeita da minha. Seus cachos ruivos escovados são volumosos embaixo da sua elegante coroa – uma série de conchas e corais brilhantes, com várias estrelas do mar secas tecidas e incrustadas com delicadas pedras preciosas de safira. Combina com seu vestido azul royal, solto e aparentemente discreto, mas tecido com detalhes ricos. Uma linha vermelha rubi reveste sua capa e a marca como alguém originalmente de Valuka, e um punhado de minúsculos diamantes são espalhados por seu corpete. Suas jóias são o que realmente cintilam – brincos gordos de pérola e diamante, rubis e safiras brilhantes que adornam a gola do vestido enquanto ela se espalha pelo pescoço e anéis finos que fazem seus dedos cintilarem enquanto ela se move. Algo em sua outra mão capta a luz e brilha. Quando me percebe olhando, ela sorri e abre a palma da mão. — Isso pertencia à sua avó — diz ela, balançando um colar na ponta dos dedos. A corrente é de ouro maciço. Ela serpenteia em torno de uma safira pesada que paira no meio, com gotas de diamantes penduradas sob ela. É uma das coisas mais bonitas que já vi. — Ela me confiou quando você era criança. Essas jóias são dignas da futura rainha de Visidia. Antes que eu saiba o que está acontecendo, o colar está preso no meu pescoço. Minha mãe beija minha têmpora, mas meus pais ainda não terminaram. Quando meu pai tira uma coroa de trás do trono, toda a respiração do meu corpo escapa. O capacete gigante foi construído a partir de ossos de baleia e banhada em marfim. Dezesseis pilares ósseos saltam da base e sobressaem pelo menos um pé e meio no ar. São afiados como pingentes de gelo, prontos para empalar, e são suavizados apenas pelas indulgentes flores brancas e azuis que mamãe enfia atrás da minha orelha e tece nos ossos. Se há uma coisa que tenho certeza sobre esta noite, é que estou destinada a usar essa coroa. Quando eu me apresentar hoje, não haverá dúvida de que serei a futura Animancer de Visidia, depois que o tempo do pai tiver passado. Quando meu povo me vir hoje à noite, eles saberão, assim como eu. Levanto-me e abraço minha mãe primeiro, depois meu pai. Ambos me seguram com força, mas tomam cuidado para não bater na coroa ou cortar suas bochechas nas minhas dragonas afiadas. — Faça uma ótima apresentação lá fora. — Minha mãe ajusta as flores no meu cabelo, dando-me uma última olhada antes de sorrir em aprovação. — Mostre ao nosso povo que o poder dos Montaras é forte — diz o pai. — Eu farei mais do que isso. — Eu traço meu dedo ao longo da minha coroa, minha respiração mais fácil e meus músculos relaxando a cada segundo que passa. — Vou mostrar a eles que eu sou forte. Com o peso confortável da bolsa nos quadris, estou pronta. Meu pai abraça meu ombro gentilmente, apenas uma vez, e oferece a mão para a mãe. Está na hora. CAPÍTULO TRÊS Todas as cabeças se viram enquanto Casem me acompanha do palácio até o meio da celebração. Vinhas pesadas, emaranhadas com flores cor-de-rosa brilhantes estão penduradas ao lado do penhasco, roçando meus ombros e tentando serpentear em volta da minha coroa enquanto escalamos a encosta da montanha, onde realizarei minha cerimônia ainda esta noite. Casem me leva através de um mar de pessoas que se separam quando passamos, sem me deixar ficar em qualquer lugar por muito tempo. Enquanto caminhamos, ele respira profundamente e geme. — Pelo sangue de Cato, desejo que meus aniversários cheirem tão bem. Dezenas de vendedores estão empoleirados no caminho da montanha, oferecendo tudo o que poderia imaginar e muito mais - carne de porco assada, bolos de mel úmidos, pudim de banana e doces ricos de Ikae, peixe cru e fatias de manga com cobertura de açúcar, frango, frutas, tudo. Existem até mesmo alguns que vendem coroas de brinquedo ou sabres incrustados com pedras de safira ousadas. Duas mulheres aridianas se posicionam perto dos barris de vinho, rindo ruidosamente enquanto um guarda real tenta conduzi- las para longe e então para as barracas de comida. Uma delas afasta as mãos do guarda com outra risada quase contagiosa. Atrás deles, tochas rosa e azuis iluminam a noite, brilhando com a magia do encantamento de Mornute. Elas iluminam as figuras de artistas e civis que dançam e cantam ao ritmo da bateria, alegres e despreocupados. Risos revestidos de vinho borbulham no ar e se sobrepõem à música. Na praia abaixo, outros ainda estão chegando em seus navios, pegando comida e cumprimentando-se alegremente antes de começarem a subir. — É a princesa! — O sussurro agudo de uma garota Valukanchama minha atenção. Ela olha para minha coroa com uma mandíbula frouxa, e aqueles que a cercam não são diferentes. Observam meus adornos antes de se lembrarem e se curvarem. Diante deles, mantenho meu pescoço alto, apesar do peso da minha coroa, e meus ombros para trás, mesmo quando as dragonas lutam contra mim. Embora parte de mim queira afastar suas formalidades, a verdade é que eu as desejo. Ver meu povo mergulhado em respeitosos laços, endireita ainda mais os meus ombros enquanto meu peito se enche de orgulho. Durante toda a minha vida treinei para proteger essas pessoas, e agora elas finalmente verão o quão capaz eu sou. Enquanto atravesso a multidão, a maioria dos visidianos se afasta nervosamente, olhando a coroa e as dragonas com reverência, enquanto outros correm para me cumprimentar com os apertos de mão oferecidos. Embora reconheço os rostos de alguns, centenas de estrangeiros se reuniram em minha casa para ver sua princesa garantir seu título de Animancer de Arida. Eles vestem as cores de suas ilhas de origem, criando um mar de vários tons e modas. Como Yuriel, os cidadãos de Mornute estão enfeitados de penas – a atual tendência da moda. Uma mulher encantou seu vestido para parecer uma única pena de cisne, com um fino brilho que ondula na cintura até que se desdobra em torno dela. O homem ao seu lado tem uma maquiagem azul vibrante que sai do fundo de seus olhos. Ele usa uma capa de pêssego com ombreiras de penas que brotam do pescoço. A cada poucos passos que dá, a capa brilha com a imagem passageira de um flamingo voando sobre ela. Os filhos de Valuka estão vestidos de maneira mais simples, usando xales soltos e lindas saias ou calças de linho – roupas leves que liberam seus movimentos. Eles brincam em torno de uma das tochas, roubando sua chama e jogando-a para frente e para trás. Uma garotinha loira perde o controle da chama e queima a ponta do xale de rubi. Sua mãe vê o que está acontecendo e golpeia a mão da menina. Ela afasta as crianças da chama e a acende com um aceno de sua palma. Mágica em uma quantidade que nunca vi antes está acontecendo ao meu redor, e eu desejo isso. Uma mulher com uma pele marrom-violeta e um rosto macio emoldurado por cachos parecidos com nuvens veste uma capa de esmeralda de Suntosan, enquanto usa sua mágica para curar a criança Valuka ferida pelo fogo. Atrás dela, um homem de Curmanan de túnica preta flutua dois copos de vinho ao seu lado e carrega pratos cheios de comida para sua família. No meio dessas pessoas, crianças e seus pais se reúnem para assistir a um show de marionetes, uma das dezenas de apresentações de rua que acontecem hoje à noite. — Venha um! — Uma voz vibra dramaticamente por trás do tenda. — Venham todos! — Uma multidão de crianças responde automaticamente, observando com um olhar esbugalhado. Somente após a resposta deles o narrador continua. — Venham se reunir para ouvir a história dos grandes Montaras – conquistadores de magia, protetores do reino! Os pais puxam as crianças para o colo, e me pergunto se elas acham essa exibição tão maravilhosamente exagerada quanto eu. Pego a manga de Casem quando as cortinas de veludo escuro da tenda se abrem para o início de um show e o puxo de volta para as sombras para assistir. — Sério? — Ele pergunta, suspirando enquanto o silencio. — Era uma vez — o narrador sussurra — um monstro cruel que tentou destruir Arida com sua magia. — As luzes piscam na tenda quando um dos artistas levanta a mão – está coberta por um boneco feito de uma forma grosseira para se parecer com um monstro. — Este animal era cruel e procurava corromper aqueles com múltiplas magias. Naquela época, ninguém sabia dos perigos disso. Eles estavam exaurindo seus corpos, levando a mortes lentas e dolorosas à medida que o excesso de magia os consumia. — A mágica tem um jeito de tornar uma pessoa gananciosa — continua ele. — Quanto mais alguém tem, mais eles tendem a querer. A fera atacou essa ganância oferecendo a outros a chance de aprender sua magia – a magia mais poderosa que o mundo já viu, ela havia afirmado. As pessoas aproveitaram a oportunidade, nunca esperando o que o monstro realmente queria delas: suas almas! Suspiros soam da platéia e, ao meu lado, Casem abafa uma risada. Eu cutuco seu cotovelo, parando-o antes que alguém perceba. Para Casem e os espectadores, essa é simplesmente outro conto antigo de nossa história com a qual crescemos. Para mim, este é o meu sangue. Minha descendência. —… a mágica era uma coisa perigosa, perversa — continua o narrador. — Hoje, chamamos isso de magia da alma. Ligou-se à alma após a alma gananciosa daqueles que possuíam múltiplas magias, matando-as! E mesmo com metade da população de Arida destruída, a fera não estava contente. À medida que sua fome aumentava, ela procurava espalhar sua praga. — A besta persegue uma série de bonecos gritando pelo pequeno palco antes de engoli- los. Casem pressiona os lábios com força, forçando um sorriso. Eu deixei que tivesse esse. — Quando toda a esperança parecia perdida — continua a história — uma pessoa se posicionou contra o monstro – Cato Montara! — Um boneco de aparência real do meu grande ancestral pula no palco, animando crianças e adultos. Muitos deles levantam réplicas falsas da faca esfoladora de Cato e aplaudem. — Cato ainda não havia estabelecido a monarquia; era apenas um homem humilde e sem magia que procurava proteger as pessoas que amava. Ele fez um acordo com a besta – se pudesse convencer todos a se contentarem em praticar apenas uma mágica para sempre, então a besta teria que dar a Cato sua mágica e deixar Arida em paz. O animal riu na cara dele e concordou, pois acreditava que as pessoas eram gananciosas demais para tais termos. Não esperava que Cato pudesse convencer os outros a parar de praticar todas, exceto uma de suas magias – e mesmo assim ele o fez. — Cato então venceu a fera com nada além de uma única faca de esfolar, e por causa de seu acordo, sua magia estava eternamente ligada à linhagem de Montara! — As crianças ofegam admiradas, olhando suas facas de brinquedo. A voz do narrador aumenta dramaticamente. — Mas se voltássemos em nossos caminhos, a fera poderia um dia voltar. Então, para proteger nosso povo de ser tentado por várias mágicas novamente, Cato decidiu que as pessoas escolhem apenas um tipo de magia para praticar e vão morar na ilha que agora representaria essa mágica. Ele ficou em Arida, com aqueles que escolheu como conselheiros de cada ilha, e criou o reino. O rei Cato fez de Visidia o que é agora, mas — o narrador abaixa a voz em advertência — não somos os únicos responsáveis por manter a fera afastada. Os Montaras nos protegem, mantendo-o trancado em seu sangue. Se alguma vez se libertar dos Montaras, buscará vingança em todos a Visidia. Destruirá cada uma de nossas almas. As crianças começam a mudar de preocupação, e a voz do narrador volta novamente, perfeitamente sincronizada. — Mas não temas; contanto que não violemos nosso voto de praticar apenas uma mágica, e tenhamos um Animancer que seja forte o suficiente para manter o poder da besta e dominar sua mágica, Visidia permanecerá para sempre em segurança. Orgulho aquece minha pele se arrepiando. É um show incrível, projetado perfeitamente para introduzir a apresentação que estou prestes a dar. Estou tão entretida que pulo quando um garotinho grita da platéia: — Se a mágica é tão perigosa, por que os Montaras ainda a praticam? — Ele ganha um shhh forte de uma mulher que, suponho, é a mãe dele. Outros oferecem alguns risos silenciosos. O narrador está preparado para a pergunta. Sua voz é tímida e suave como melaço. — Não é tão simples. Magia é uma coisa estranha, meu garoto; não é algo que apenas desaparece quando negligenciado. E a magia aridiana é particularmente perigosa, pois a besta que a deu aos Montaras está constantemente lutando pelo controle da alma de seu usuário. A magia deve ser usada e exaurida, caso contrário, ela apodrecerá e crescerá até que a besta se torne forte o suficiente para assumiro controle. — Quando o rei Cato a trancou dentro da linhagem de Montara — continua o narrador — ele fez a missão de sua família dominar e conter a besta, aqueles que recebem o título de Animancer – um mestre de almas. Essa é a razão pela qual nos reunimos aqui esta noite, para assistir a princesa Amora concretizar sua posição como herdeira de Visidia, provando ser capaz de se tornar Animancer. Que ela um dia governe, assim como seu pai, o rei Audric. Nervosimo enche meu peito. Pego o braço de Casem para puxá-lo para longe antes que alguém nos note, mas um bufo da multidão me interrompe. — Certo, porque outro governante preguiçoso é realmente o que precisamos. Meu aperto no braço de Casem afrouxa. Um soprano frívolo responde com uma risada. — Preguiçoso? Por favor, você está balbuciando como um torcedor sem noção do Kaven. As ilhas estão prosperando.” — Talvez a sua ilha esteja prosperando. Mas quase ninguém está visitando Valuka desde que as fontes termais secaram. Sem mencionar Kerost, que mal consegue se manter flutuando. Vários guardas do palácio estão por perto, com os olhos brilhando de curiosidade. Eles não fazem nenhum movimento para parar a calúnia. Da minha posição atrás deles, aqueles que assistem à performance não me notam até eu dar um passo à frente para me apresentar: — Desculpe-me? — O silêncio prende as conversas, uma a uma, os rostos se voltam para mim horrorizados. Os guardas se endireitam de uma vez. — A que governante preguiçoso você está se referindo? Eles olham para a minha coroa. Nas dragonas. Mas seus olhos estão perdendo a mesma admiração que notei anteriormente. O medo ocupa seu lugar. — Nós devemos ir. — Casem segura meu braço e me afasta da platéia. Eu deixo. — Do que aquela mulher estava falando? — Meu sangue queima, aquecendo meus ouvidos e pescoço com aborrecimento. Quem é o Kaven? O que eles queriam dizer com Kerost mal conseguir flutuar? Casem me acena com um toque de sua mão. — Eu não me importaria com isso. Claramente ela não tem ideia do que está falando. — Mas é como se eles tivessem medo de mim. E os guardas do palácio simplesmente ficaram parados lá! A testa dele enruga. — Amora, você está usando uma coroa de ossos e facas para ombreiras. Não interprete o respeito deles como medo. E o que você esperaria que os guardas fizessem? Até os tolos podem falar livremente. Mas as palavras não me acalmam; há algo mais. — Eu deveria falar com meu pai. Os lábios de Casem pressionam em uma linha fina. — Você deveria estar relaxando. Se você ficar muito agitada antes da cerimônia, ficará com toda sua magia irritada... — Isso não é um debate — eu respondo. — Eu preciso falar com ele. Não me faça lutar com você, Casem. Os olhos de Casem caem na minha bolsa, depois na adaga ao meu lado. Treinei com Casem e seu pai, o mestre em armas de nossos soldados, desde criança. Mamãe e papai insistiram que eu aprendesse a me proteger, então Casem é meu parceiro de treino há anos. Mas ele prefere o arco, e posso contar com uma mão as vezes que ele me derrotou com uma espada. — Tudo bem — ele bufa, suavizando com um longo suspiro. — Mas o rei não vai ficar feliz. Encontramos meu pai perto do topo da montanha, em uma área isolada perto da orla do jardim, com conselheiros de toda a Visidia reunidos em volta dele. Apesar das bebidas que vários deles tomam, são tudo menos joviais. Quando passo pelos guardas, vejo seus corpos tensos e suas expressões sérias. O pai de Casem, Olin Liley, está entre eles em um paletó de safira impecável com detalhes dourados. O conselheiro aridiano da realeza se endireita quando o filho se aproxima, estreitando os olhos naquilo que só posso adivinhar que seja um aviso. Casem estava certo - o pai não parece feliz. Mas há um jovem diante dele que parece ainda mais irritado. O conselheiro é mais jovem que os outros, com vinte e poucos anos, no máximo. Suas roupas são caras – uma calça fina de um cáqui macio, uma camisa de linho sem rugas e botas de couro que quase atingem seu joelho. Seu paletó é de um tom brilhante de um rubi e, quando as abotoaduras captam a luz, vejo que estão gravadas com o emblema real. O acabamento que reveste finamente o casaco é de um ouro brilhante – é um representante real de Valuka, então. — Precisamos descobrir uma maneira de impedir isso,— argumenta ele, com o rosto enrugado como se estivesse completamente exasperado. — Por favor, apenas me escute, certo? Todos podem acreditar no que querem sobre Kerost, mas Kaven não vai parar até que ele... — Kaven não passa de conversa. — A dura dispersão de meu pai faz com que os valukanos se arrepiem. Mas antes que ele possa dizer mais alguma coisa, Olin coloca a mão no ombro dele. — Temos companhia, Vossa Majestade. — Ele acena para mim e as sobrancelhas do meu pai levantam de surpresa quando se vira. — Quem é Kaven? — Eu exijo. Os conselheiros voltam a atenção quando eu passo em frente. Seu foco se volta para meu pai, cuja expressão feroz é amplificada dez vezes sob a coroa. Não é tão alta quanto a minha, mas é incrível – um esqueleto revestido de marfim de uma enguia Valuna. É uma criatura do fundo do mar das lendas; uma fera de um metro e meio de comprimento com fileiras de dentes afiados como um punhal – cada um do tamanho do meu dedo indicador – que, segundo os boatos, nossos ancestrais lutaram quase um século atrás. Sua boca é tão grande que o rosto do pai fica dentro dela. O maxilar superior se curva em volta da cabeça e a metade inferior fica embaixo do queixo do pai, como se o comesse. A espinha incrustada de jóias da enguia se estende por suas costas e se curva para cima no cóccix dele. Eu me pergunto se pareço tão aterrorizante na minha coroa quanto ele na dele. — Você não deveria estar aqui, Alteza — responde Olin. — Deveria estar nos jardins, se preparando para a sua apresentação. — Sua atenção se volta para Casem, que murcha atrás de mim. — E eu estarei, assim que alguém me diga o que está acontecendo. — Olho ao redor e para o conselheiro Valukano que agora está de pé atrás de papai. Ele disse algo sobre Kerost, e quando olho os representantes ao seu redor, há uma cor em particular que não vejo: ametista. — Onde estão os Kers? — Meu peito aperta quando a expressão plácida do pai desliza. Quanto mais olho em volta, mais surpreendente é a ausência deles. Não é apenas um representante do Kerost que está desaparecido. Em toda a emoção da noite, eu não tinha notado que uma ilha inteira do meu povo estava desaparecida. — Eles estão bem? — Eles estão bem — diz o pai, ao mesmo tempo em que o conselheiro de Valukan diz: — Estão se revoltando contra Visidia. Meu pai geme, virando por cima do ombro para encarar o Valukan. O jovem olha de volta para ele, enquanto os conselheiros ao redor se mexem desconfortavelmente. — Estou tentando ajudá-lo — pressiona o consultor. — O mínimo que você pode fazer é me ouvir... — Vocês todos estão dispensados. — A raiva na voz estridente do pai faz o conselheiro recuar. Ele abre a boca como se quisesse protestar, mas fechou-a quando seus olhos castanhos encontraram os meus. Tento não olhar de volta quando meu pai diz: — Gostaria de um momento a sós com minha filha. Olin e os outros se curvam antes de empurrar o ombro do garoto Valukano para fazê-lo se mover. — Bem! Mas não diga que eu não avisei! — Ele rosna algumas palavras bem escolhidas, enquanto o resto dos conselheiros se desculpa por sua ignorância e afasta os valukanos. Eventualmente, apenas Casem permanece, embora ele se afaste para um ponto a alguns metros de distância, fora do alcance imediato da audição. — Estranho que eu não o tenha conhecido antes — digo a meu pai. — Eu poderia jurar que conhecia todos os conselheiros. Ele resmunga. — Lorde Bargas estava aparentemente doente demais para fazer a viagem e enviou seu filho em seu lugar. Menino encantador aquele. Invadiu aqui e exigiu uma reunião como se ele fosse o rei. Embora eu não queira, a clara irritação do pai pelo valukano me faz rir. Isso alivia a tensão em seus ombros e limpa um pouco o ar entrenós. — Eu não sabia que lorde Bargas tinha um filho — digo, embora o conselheiro certamente parecesse o filho do representante principal de Valuka – pele marrom suave, mandíbula quadrada forte e um nariz quase irritantemente reto. Ele também tinha um porte semelhante ao barão. Um pouco atarracado, com ombros e braços largos e musculosos nos quais o resto do corpo não tinha crescido, o olhar arrogante de alguém com riqueza para exibir. — O que ele quis dizer quando disse que os Kers estavam se revoltando? — Ninguém está se revoltando. Os Kers estão apenas tentando fazer uma declaração; não é nada com que você precise se preocupar. — Então me diga o que eles estão protestando — eu argumento, incitando um tique na mandíbula do pai. — Certamente é alguma coisa, se estão tentando fazer uma declaração. — Pela lâmina de Cato, você é tão teimosa quanto seu velho. — Ele dá um passo à frente e é impossível determinar se é a raiva que ilumina seus olhos. Eu me firmo, preparada para discutir, mas ele coloca a mão na minha cabeça, pouco antes da minha coroa, e o fogo dentro de mim se esvai. — Eles querem algo que eu não posso lhes dar. — A voz do pai diminui do poderoso barítono que ele usou com os conselheiros para a voz suave e quieta que ele usa em casa. — Kerost sempre foi atormentado por tempestades cruéis. É por isso que empregamos grupos de valukans com afinidade com a água para morar lá, para ajudar a acalmar as marés e impedir que as tempestades destruam a ilha. Mas os Kers não gostam de ser dependentes. Algumas temporadas atrás, comecei a receber relatos dos Kers subornando os Valukans para treinamento. Eles queriam que os valukans lhes mostrassem como controlar a água. Suas palavras arrancam o ar dos meus pulmões. — Eles queriam aprender várias magias? Mas isso é suicídio! Papai grunhe, tirando a mão da minha cabeça. — Se um número suficiente de pessoas praticasse várias magias, nosso domínio sobre a fera cairia. As almas seriam arruinadas, e a fera correria desenfreada. Por isso tive que remover os valukans de Kerost, para acabar com a tentação. Infelizmente, eles foram vítimas de uma forte tempestade no início da temporada passada. E sem a ajuda dos valukans, destruiu parte da ilha deles. É como se mil sanguessugas sugassem o sangue das minhas veias, me deixando fria e enjoada. — E os Suntosans? — Eu pressiono. — Você pelo menos manteve curandeiros lá para ajudá-los? — Eu tive que removê-los da situação também — diz ele, e fico feliz em ver que há pelo menos uma pitada de vergonha avermelhando suas bochechas. — Era para ser apenas até que concordassem em parar de tentar aprender várias magias. Mas então a tempestade aconteceu, e o momento foi... infeliz. Como ele pôde esconder isso de mim? Não apenas ele, mas Mira também. Sendo alguém tão antenada a todas as notícias do reino, certamente ela saberia. Eu devo ser o governante deste reino e pretendo ser grandiosa. Mas como posso proteger Visidia se nem sei o que está acontecendo aqui? — Eu precisava garantir que você não perdesse o foco — diz meu pai, como se estivesse lendo meus pensamentos. — Lembre- se, Amora, até você ou Yuriel ter filhos, é apenas um dos dois possíveis herdeiros que restam para o trono. No momento, a coisa mais importante que pode fazer por esse reino é se sair bem hoje à noite e reivindicar esse título. Fecho os olhos com força quando a frustração cresce dentro de mim, tentando reprimi-lo o suficiente para ver a situação claramente. Eu sei que hoje à noite é importante. E faz sentido que os Kers estejam com raiva. Mas se o pai deixasse que pratiquem múltiplas magias, o acordo de Cato com a besta seria anulado e o reino cairia. No entanto, sem a ajuda dos valukans, as casas dos Kers estão sendo destruídas. Também não podemos deixar isso acontecer. — Precisamos de outra maneira de ajudá-los — eu digo. — Podemos fortalecer sua compreensão dos perigos potenciais da prática de múltiplas magias, mas também devemos fornecer materiais mais fortes para seus prédios e ajudá-los a reparar. Não vamos tirar sua única fonte de proteção. Ele coloca a mão no meu ombro. — E eu não pretendo. Mas, como rei de Visidia, tenho que proteger todo o nosso povo. Ao manter os Valukans lá, houve uma sentença de morte em nosso reino. Mas confie que estamos tentando, Amora. Confie que eu vou consertar isso. É claro que quero confiar que o pai fará as coisas certas, mas o que não entendo é por que ele ainda não está em Kerost, ajudando- os a se reconstruir. Se a tempestade foi na última temporada, por que ainda estamos tentando descobrir isso? — Onde Kaven se encaixa nisso? — Minha cabeça fica mais grossa a cada segundo. Como eu tenho sido tão ignorante? Como todos conseguiram esconder isso de mim? Claramente desejando que a discussão terminasse, o suspiro do meu pai é longo e irritado. — Ele é um homem que não concorda com algumas das decisões que tomei — responde categoricamente. — Mas ninguém pode concordar com tudo que faço, pode? Ele não é uma ameaça para nós. Agora acalme seus pensamentos. Tudo ficará bem por mais uma noite. Pensando no rosto zangado do Valukan, não tenho certeza se acredito na sua fácil demissão. Quero discutir com o pai e dizer que mereço saber mais, mas quando abro a boca, tia Kalea vem subindo a colina com um sorriso. Minha tia não espera permissão para se aproximar, nem sequer para pra pensar por um momento que ela pode estar interrompendo algo importante. Despreocupadamente, apenas evitando minhas dragonas, ela joga os braços em volta de mim com uma risada calorosa. — Oh, minha linda garota! Que visão você é! Enquanto se afasta, ela bate no pai levemente no ombro. — Como um idiota como você conseguiu criar uma mulher tão radiante, Audric? Ela está deslumbrante! Meu pai ri. — Ela recebe todo o seu charme de Keira. Receio que tudo o que ela receba de mim seja teimosia. — E seu senso de aventura — acrescento, o que o deixa quieto, seus olhos suavizando. É um momento estranho e lento, onde ele passa os olhos por mim e depois para a coroa, como se me visse nela pela primeira vez. Quando ele sorri de novo, está quente de orgulho e isso aquece meu sangue. — E meu senso de aventura. — Ele se vira para a irmã e dá um tapinha no ombro dela. — Se você me der licença, devo encontrar minha esposa antes da cerimônia, mas traga Jordi e Yuriel e nós celebraremos com um pouco de vinho depois. Tenho três barris reservados apenas para nós. Ele sorri, parecendo o irmão mais velho e bobo que eu só o vejo quando minha tia está por perto. — E Amora — adiciona calmamente. Me viro, quase recuando quando ele inclina a cabeça para mim. — Eu te amo. Vai se lembrar disso depois desta noite, não vai? Quando você for oficialmente herdeira e partir para todas essas suas grandes aventuras. — Não fique todo sentimental comigo agora — digo a ele, tentando esconder meu constrangimento. — Eu também te amo. Seu sorriso é suave quando ele se inclina para beijar minha testa. Os dentes da coroa de enguia roçam minha bochecha. E então ele se foi, deixando minha tia em seu lugar. Ela está adorável em seu vestido azul suave. É um vestido de festa – uma mistura de safira de Arida e tons suaves de Mornute. Diz que ela entende que suas raízes estão com Arida, mas que não é mais sua casa. É uma mulher pequena, com pele parecida com a do pai, profundamente bronzeada e escovada com ouro por tanto tempo passado ao sol. É gorda e jovem, com apenas as rugas suaves ao redor dos olhos sugerindo sua idade. — Estou tão feliz por ter te encontrado antes da apresentação — diz tia Kalea. — Como você está se sentindo? Desde que me lembro, as mãos da tia Kalea sempre foram as mais macias e quentes que já conheci. Ela as coloca em volta dos meus braços, me segurando perto para que possa me inspecionar com olhos derretidos. São os mesmos olhos que os do pai, mas significativamente menos severos. E embora ela consiga mascarar sua expressão, a preocupação repousa na tensão de suas respirações entre o nó de suas palavras. Se ela quiser manter suavida luxuosa em Mornute, não pode me dar ao luxo de cometer erros esta noite. E também não posso me permitir. Se eu não conseguir demonstrar controle sobre minha magia e provar que domei a fera dentro de mim, ficarei presa até que tia Kalea prove que pode se tornar a sucessora do trono. Dado que a lei determina que um Montara sem magia da alma totalmente controlada não possa permanecer livre, não posso ignorar a possibilidade de que eu possa até mesmo ser executada se for considerada um risco muito alto. Nossa mágica é perigosa demais para não ser totalmente controlada. — Como se eu estivesse treinando minha vida inteira para isso — digo. Tia Kalea procura nos meus olhos por outro longo momento, e há um flash de preocupação antes que ela me puxe para um abraço firme. — Pode fazer isso — ela sussurra, seus cachos grossos fazendo cócegas no meu pescoço. — Ninguém está mais pronto para isso do que você. Embora eu saiba que ela está certa, a ansiedade que me atormenta desde o show de marionetes está aumentando. Me forço a sorrir para ela, tentando apagá-la. Somente depois que tia Kalea recua, Casem hesita um passo à frente. — Não pretendo apressar você — diz ele — mas é hora de Amora ir. — Claro. — Tia Kalea assente, colocando um cacho marrom suave atrás da orelha. Tento não encarar as linhas de preocupação enrugadas entre as sobrancelhas dela, ou pensar em como o nosso futuro depende de eu ter um desempenho adequado. Ela beija minha bochecha antes de se afastar. Mas antes que solte minha mão, seus olhos capturam os meus, e eu não estou preparada para o que vejo dentro deles. Seus olhos não são mais os castanhos ricos que combinam com os do pai – eles piscam um rosa brilhante e penetrante, lá por um momento e voltam a castanho no seguinte. — Faça o seu melhor. — O sorriso da tia Kalea treme. — Por favor. Pelo reino. A ansiedade não se extingue; surge até que são como mãos em volta da minha garganta. O barulho que faço quando suas mãos escorregam das minhas dificilmente é humano. O chão debaixo de mim é como o mar, balançando enquanto suas palavras afundam. Tia Kalea aprendeu a magia de encantamento. Não sou mais uma das duas possíveis herdeiras; Eu sou a única herdeira possível. Se eu falhar, não sobrará ninguém para proteger Visidia da vingança da fera dentro da linhagem de Montara. Tia Kalea me mostrar isso era um aviso – se ela fosse forçada a aceitar a magia da alma de Aridian, essa seria sua segunda mágica. O vínculo com a besta será cortado. — Você deveria esperar. — Minhas palavras são tão trêmulas quanto minhas mãos. — Como pôde fazer isso? — Foi um acidente. — Seus olhos estão molhados quando ela volta para mim, mas eu me recuso a olhar para eles por mais um segundo. Pego o braço de Casem. Os olhos dele se estreitam com a incerteza, não a tendo visto usar magia de encantamento. — Leve-me para os jardins — digo a ele, precisando me afastar dela enquanto a mágica dentro de mim se mexe. — Agora. — Casem obedece sem hesitar. É apenas uma curta caminhada até a entrada dos jardins, e minha cabeça ainda está girando com mil pensamentos quando chegamos. Eu tenho que me esforçar ao máximo para ignorá-los e me concentrar na tarefa em questão, assim como todo mundo me disse para fazer. Não posso me distrair com a traição dela. Esta noite, devo ser perfeita. Um local de adoração, os jardins ficam no topo do pico mais alto de toda a Arida, a cerca de três quilômetros ao norte do palácio. A entrada é através de uma caverna coberta por trepadeiras pesadas e hera espessa que Casem puxa para trás, para que eu possa entrar sem prender meus adornos. — Você tem cinco minutos antes que os outros cheguem — diz enquanto eu mergulho para dentro da caverna, recebida pela flora bioluminescente que reveste as paredes e ajuda a guiar meu caminho para os jardins. No momento em que entro, a visão rouba minha respiração, como sempre. Estes jardins são lindos durante o dia, mas sua verdadeira magnificência brilha sob as estrelas. Um campo de flores indomadas se estende diante de mim, algumas altas o suficiente para roçarem na minha bolsa, enquanto outras gotejam das árvores em perfeita espiral. Grande parte da flora é bioluminosa, pétalas e bulbos brilhando em tons de verde, rosa, azul e roxo. Passo minhas mãos no bulbo de uma flor mais alta que o meu quadril, e ela balança para trás como se estivesse surpresa, suas pétalas se abrindo ao meu toque. Eles brilham quando se abrem, acordando. Atrás delas, nos fundos do jardim, repousa uma pequena cachoeira que brilha tão intensamente quanto as flores, criando um cenário de tirar o fôlego que muitos viajam de todo o reino para ver. Na base da cachoeira, há uma laje de pedra plana com uma fogueira esculpida no centro, que foi erguida como palco para minha apresentação. Sento-me na beira de um lado enquanto as vozes começam a se agitar atrás de mim. Pelo canto do olho, vejo meus pais entrando nos jardins, mas não me viro para eles, no caso de tia Kalea também estar lá. Pressiono a mão no peito e respiro fundo para firmar meu coração. Isso não ajuda muito, então corro o dedo pela borda da bolsa e inclino a cabeça, rezando para que os deuses me firmem. É um sentimento familiar, que me tranquiliza, mesmo quando a antecipação belisca minha pele e vibra ao meu redor. Mais e mais pessoas entram nos jardins, aquecendo o ar com suas conversas e criando um espaço tão cheio de cores e estilos diferentes que é vertiginoso de se olhar. Eu me levanto, me recusando a deixar alguém ver o quão profundamente meus nervos correm. Não consigo pensar em Ferrick, em algum lugar dessa multidão com um anel que eu receberei no momento em que essa apresentação terminar. Não consigo pensar em Kaven, tentando iniciar uma rebelião dentro do meu reino. Ou de Kerost, quebrado e sofrendo com as tempestades. E me recuso a pensar na tia Kalea, que será a morte de Visidia, caso eu falhe esta noite. Mas não vou deixar isso acontecer. Tiro a sacola do quadril e preparo os dentes e ossos que esperam lá dentro. CAPÍTULO QUATRO Passei semanas preparando o conteúdo da minha mochila, garantindo que todos os dentes e pequenos ossos estejam prontos para serem feridos com o cabelo do prisioneiro em que devo utilizar a minha mágica. Porque, embora isso possa ser uma demonstração de mágica, também é uma execução. Ouço o barulho das correntes antes de ver os prisioneiros que estão envoltos nelas. São dez – sete homens e três mulheres – e todos marcados no pescoço com dois X ousados, a marca de alguém julgado e condenado por assassinato. Hoje à noite, alguns estão com marcas falsas. Os guardas os arrastam através da multidão de espectadores para a base da laje de pedra em que estou. Então eles se afastam, deixando os prisioneiros embaixo de mim com medo e raiva em seus olhos. Minha mágica funciona de duas maneiras – a leitura etérea da alma e a capacidade física de acabar com uma alma através da morte. Estes prisioneiros estão aqui para testar o primeiro lado da minha magia; devo determinar quem executar encontrando a alma irremediável entre o grupo. Nunca na minha vida uma execução foi pública. Papai e eu as realizamos anualmente, tarde da noite e nas profundezas de uma prisão subterrânea, levando apenas as almas dos prisioneiros mais imperdoáveis de Visidia para satisfazer e reprimir nossa mágica. Para que uma pessoa fosse selecionada para esta demonstração, sua alma teria que estar além da redenção. A primeira da fila é uma mulher mais velha, cujos olhos escuros travam nos meus com força. Encontro minha magia esperando na minha barriga e puxo pequenos pedaços dela, acordando a besta. Seu calor lambe minha pele, me convidando para ir mais profundamente, conectando-me à alma dessa mulher. A magia espalha calor por minhas veias e por minhas têmporas, e eu me afundo no poder, saboreando-o. Minha visão embaça antes de se afiar rapidamente, revelando um jardim inteiro de almas diante de mim. São das cores das nuvens – algumas como uma tempestade ameaçadora e outras como um diamais claro – e dançam com os movimentos finos da fumaça. Pressiono minhas unhas nas palmas das mãos para me concentrar, e encontro a alma da mulher diante de mim. É como uma estrela do mar morta – desbotada, acinzentada e áspera, mas ainda assim algo que já foi bonito. Ela é mais velha, e com a idade tem havido dor e dificuldades, o suficiente para confundir e quebrar sua alma. Essa mulher é uma farsa. Alguém que está aqui apenas para me testar. Eu passo por ela e vou para o próximo prisioneiro, avaliando sua alma enevoada. Está nublada pela ganância e pela ira, manchada com os sinais de assassinato. Mas ele sente remorso pelos erros que cometeu. Ele sente culpa, o que significa que não é quem procuro. Movendo-se rápida, mas cuidadosamente pela linha, a magia queima meu núcleo enquanto procuro alma após alma. Eu sei que é ele no momento em que o encontro. Na superfície, seu olhar é frio, mas, quanto mais eu cavo, mais sua alma apodrece. É irregular e roxa como um hematoma, descascando nas bordas e a caminho de desaparecer completamente. Sua maldade me arrepia até os ossos. A alma deste homem mostra a mancha de alguém que cometeu os crimes mais sórdidos que se possa imaginar, pior ainda que o assassinato. Um espaço branco brilha por trás das bordas descascadas, me dizendo que não há volta para ele. Ele não sente remorso por suas escolhas, nem simpatia por suas vítimas. — É ele. Dois guardas avançam para levantar o homem sobre a laje de pedra, enquanto os outros prisioneiros são puxados para trás. Alguns suspiram de alívio. Sob meus cílios, espio meu pai. Ele assente um pouco, e eu relaxo, sabendo que já consegui a primeira metade dessa apresentação. Escolhi o prisioneiro certo, e agora é hora de provar o domínio do lado físico da minha magia. — Qual é o seu nome? — Tiro minha adaga da bainha na minha coxa e a uso para cortar um punhado de cabelo do homem. Sua resposta vem com uma voz tão rouca que ele precisa tossir para sair. — Aran. — Aran — repito — olhei para sua alma e vi não apenas sua corrupção, mas também o prazer que você sente pelo caos e pela dor que causou. Você não tem remorso pelos crimes que o trouxeram até aqui, sua alma foi longe demais para ser consertada. Arrepios rolam pela minha espinha quando ele inclina a cabeça para trás e sorri. Tento não imaginar quem ele matou, ou se sua família está assistindo da multidão. Como futura governante deste reino, não posso ter pena dessa família, e eles sabem disso. Aran certamente não teve pena das famílias de suas vítimas. O silêncio aumenta à medida que eu estabilizo minha respiração nervosa, golpeio uma pederneira e deixo as chamas da fogueira queimarem entre nós. — Você tem alguma última palavra? Aran cospe aos meus pés, mas não recuo. Em vez disso, enrolo os cabelos cortados em torno de um dos dentes da minha pilha e deslizo minha unha por ela. Sua mandíbula se contrai quando ele instintivamente passa a língua por cima dos dentes, e eu sei que a mágica está funcionando quando vejo o momento em que o medo se instala em seus ossos. — Tudo bem, então. — Eu seguro o dente acima do fogo. — Vamos começar. Jogo o dente nas chamas e o homem convulsiona violentamente, cuspindo uma poça de sangue. No meio desse sangue, há um dente, que me agacho para pegar, meu corpo pulsando enquanto a magia arde dentro de mim. Me afundo no poder. O lado físico da minha magia é baseado em trocas equivalentes. Se quero machucar os ossos de alguém, preciso oferecer um osso primeiro – qualquer osso, e algo mais que seja ligado à alma em que eu quero usar minha magia. Hoje à noite, eu uso o cabelo de Aran. Para tudo que é tirado, um pagamento igual deve ser dado, e é por isso que a pessoa não morre até que eu utilize o seu sangue. Eu poderia acabar com ele lentamente, se quisesse. Poderia quebrar osso após osso, ou drenar seu sangue até que ele não passasse de um saco de carne. Mas não sinto prazer nessas mortes. É meu dever como Montara usar minha magia, ou a fera dentro de mim ficará mais forte e tentará assumir o controle. E assim, papai e eu escolhemos um prisioneiro por ano cada – o pior dos piores – para ajudar a conter nossa mágica. Faço a morte deles o mais rápida e indolor possível; mas, para fazer isso, preciso de muito do sangue deles, que é onde entram os dentes. Embora eu pudesse usar qualquer coisa para obter o sangue – um braço, uma perna, um olho – fazer com que alguém perdesse alguns dentes é o mais maneira humana que conheço para obter a quantidade que preciso. Enquanto trabalho, sei, sem dúvida, que ninguém será capaz de questionar minha habilidade. Tenho o controle total da besta e da magia que corre minhas veias. O sangue de Aran flui constantemente de sua boca enquanto arremesso outro dente ao fogo, e seus olhos se arregalam de medo. Confiante, olho de soslaio para o rosto do meu povo e fico de pé, querendo que eles me vejam. Que vejam a herdeira do trono; a sua princesa, que passou a vida inteira dominando essa mágica não por si mesma, mas por eles. Mas, com o meu foco na multidão, vejo que não me observam com o orgulho ou a reverência que espero. Horror assola seus rostos. Eu avisto um homem cobrindo os olhos de sua filha, o rosto torcido em choque. A réplica da faca de Cato treme em suas mãos. Então vejo tia Kalea, seus lábios enrolados de nojo por uma magia que ela nunca quis. Em minha mente, vejo seus olhos cintilando de cores e tenho que acalmar minhas mãos trêmulas antes que alguém possa perceber. Estou fazendo tudo o que devo para cumprir meu dever, e ainda assim não há respeito ou amor aos olhos de Visidia. Só medo e repulsa. Minhas mãos hesitam sobre o fogo quando a confiança que eu construí como armadura ao meu redor se despedaça. Tudo o que fiz foi por eles. E mesmo assim... meu próprio povo me teme. Meu peito aperta quando a realização me oprime fortemente. Assisto cada gota de sangue espirrar dos lábios de Aran para o chão. Ouço as respirações agudas ao meu redor e sinto o peso do terror do meu povo pressionando-me, tão pesado que não consigo respirar. O pânico sobe do meu estômago até a garganta, subindo, se instalando e arranhando. Minha atenção sai da minha magia quando absorvo a reação do meu povo, e a mágica dentro de mim se esvai. É isso que a besta estava esperando; meu controle escapa e ela salta. A magia afunda suas presas em mim mais profundamente do que nunca. O calor outrora reconfortante agora queima as pontas dos meus dedos e se espalha pelo meu corpo como fogo, me despedaçando. É como se algo atrapalhasse a minha respiração, quase incapaz de encontrar ar o suficiente para encher meus pulmões. Enfio minhas mãos trêmulas contra os lados e tento me concentrar nas centenas de rostos medrosos que olham para mim. Mas não posso fazer isso. A magia me consome. Um poder cru e urgente percorre cada fenda do meu ser enquanto esfrego o meu polegar coberto de sangue no dente do prisioneiro, sentindo o peso de sua força vital pulsar sob as pontas dos meus dedos. Jogo-o nas chamas, depois pego um osso da minha mochila e faço o mesmo. Aran grita quando um osso do seu dedo se torce e quebra. Mas não me encolho, encontro outro osso e um punhado de dentes. Atiro-os no fogo e abro caminho para dentro e através do corpo do prisioneiro, rasgando-o polegada por polegada. Mais suspiros soam da platéia, junto com gritos indiscerníveis de protestos, enquanto Aran engasga com os dentes que caem de sua boca. Mas o barulho dificilmente me atinge através da névoa. Eu não sinto o calor do fogo contra minhas bochechas, ou o cheiro da chama que queima meus cabelos enquanto pego esses dentes, sangue e tudo para reabastecer minha mochila. — Sua alma é perversa — me ouço dizendo a Aran enquanto ele cava as unhas no chão e respira fundo. — Você não merece uma morte rápida. A besta sussurra sem piedade na minha cabeça, dizendo-me para livrar a ilha desse homem contaminado, e depois encontrar outros. Limpe sua alma da terra e destrua o resto dos prisioneiros também. E então, por que parar nos prisioneiros?Toda alma é má de alguma maneira, então por que não levá-las todas? Sem fôlego, sou atraída para a pilha de ossos ao meu lado. Gotas de suor frio descem pelo meu pescoço enquanto eu pego um, enrolo com seu cabelo, e mergulho-o em seu sangue. O fogo chicoteia diante de mim, fervendo de fome. Eu ofereço o osso, e ele se parte e racha quando as chamas o devoram. O grito de Aran raspa contra a sua garganta desgastada quando cada osso em seu dedo se quebra, um de cada vez. Mesmo com o barulho da cachoeira atrás de nós, seus soluços atravessam os jardins. — Misericórdia. — Ele cospe sangue com cada palavra distorcida. — Por favor, pelos deuses, misericórdia. — Os deuses não ouvem os pedidos dos ímpios — ouço-me dizer. — E eu também não. Em algum lugar distante, vozes gritam, mas não me importo com o que dizem. Deixei que minha magia o atravessasse, jogando osso após osso no fogo até Aran não ser mais do que um monte de membros mutilados na laje de pedra. Seu corpo contorcido está quebrado, os membros impossivelmente torcidos. Ele é argila deformada que moldei à minha vontade e pintei com sangue. Eu me preparo para outro ataque quando uma mão agarra meu ombro. Me viro, rosnando para os olhos castanhos derretidos que olham de volta para mim. Demoro um momento até perceber que eles pertencem a meu pai. Seus olhos estão molhados, e minha pele coça de desconforto. — Amora. — É um apelo desesperado que se instala em meus ossos e apaga a magia ardente. Cambaleio quando minha visão pisca, a névoa desaparecendo. — Por favor, você tem que parar. A multidão em nossa volta se agita, gritando sons distorcidos que fazem parecer que meu cérebro está sendo comprimido. Me concentro apenas no pai, usando-o como uma âncora para me arrastar de volta à realidade. A magia interna assobia seu protesto, mostrando as presas enquanto luta para manter o controle. Eu a enfio dentro de seu porão, sufocando enquanto empurro a volta. Meu pai me abraça com força, os dedos fortes cravando na minha pele cada vez mais até minha visão clarear e eu engasgar com o cheiro de sangue. Começo a tremer enquanto observo as manchas nas palmas das minhas mãos e dedos, a fumaça queimando meus pulmões. As pedras abaixo de mim balançam quando a realização aparece: perdi o controle da minha magia. A tontura faz meu peso me trair e eu caio de joelhos. Soltei a besta, e ele roubou meus sentidos até me reivindicar completamente. Aran está diante de mim, morto. Ele não parece mais humano, toda carne desfiada e membros mutilados. Eu aperto minhas mãos na terra enquanto tento reconhecê-lo, mas é inútil. Quando usada corretamente, minha mágica é destinada a dar a alguém uma morte rápida. Mas não havia nada de rápido nisso; Aran foi torturado e mutilado. E fui eu quem fez isso. Pressiono minha testa contra a sujeira, os olhos ardendo quando me inclino diante de seu corpo. — Eu sinto muito. Pelos deuses, sinto muito. Mas minhas desculpas não importam. Ao ouvir as palavras que o povo de Visidia grita, sei que nem os deuses podem me ajudar agora. — É a besta! — Ela destruirá tudo! — Ela é quem deveria ser executada! Vai matar todos nós! Vejo o rosto da minha mãe na frente da multidão. Seu corpo fica rígido enquanto tia Kalea está com o queixo caído de horror. Yuriel está entre eles, apertando sua mão no braço da mãe com força. Seu rosto outrora corado com vinho está agora em pânico. Papai está diante de mim, de costas para a multidão, para que apenas eu possa ver o terror em seus olhos ou a fúria da sua respiração. Quando suas mãos começam a tremer, ele as pressiona firmemente ao lado do corpo. Minhas próprias mãos estão cobertas de sangue, e eu não sou a única olhando para elas. — Não posso protegê-la disso — sussurra meu pai com urgência, quase como se as palavras desesperadas fossem para si mesmo. Então ele diz mais alto, em um sussurro áspero que quebra sua voz. — Pelos deuses, Amora, eu não posso te proteger disso! Não tenho tempo para me recompor antes que braços me puxem por trás. Dois guardas deslizam as mãos debaixo dos meus braços, evitando por pouco cortar seus rostos nos ossos pontiagudos da minha coroa e nas dragonas irregulares enquanto me prendem com força. — Sinto muito. — O peito do meu pai se agita. — Vou dar o meu melhor para consertar isso. O mundo está girando. Girando. Girando. Uma frieza cruel se espalha profundamente em meus ossos. Começa no meu estômago e se espalha pelas pernas, depois pelos meus braços. Pontos pretos atormentam minha visão e ameaçam me dominar quando os tremores secundários de muita magia fazem seu movimento. Se não fosse pelos braços ao meu redor, eu não seria capaz de ficar de pé. Controlar a fera em meu interior e mantê-la domada consome tudo o que há em mim. Tento manter meus olhos em meu pai, firmando minha visão o suficiente para vê-lo virar o rosto e fechar os olhos com decepção. É um olhar que atravessa meu peito e me machuca. Centenas de visidianos olham para mim sem piedade, e eu fecho meus olhos contra seus gritos, desejando que a magia me consumisse completamente. Mal me permiti ouvir meu pai enquanto ele fala, suas palavras como mil facas. — Levem-na para a prisão. CAPÍTULO CINCO Eu estabilizo minha visão trêmula nas barras da cela, usando-as como um foco para me escorar. Abraçando meus joelhos com força, tento conservar meu calor contra o frio intenso que rasga minha pele. Embora já tenha estado nessas prisões muitas vezes antes, nunca foi dessa forma – sem as minhas armas e esquecida em uma cela. Eu tinha cinco anos quando meu pai me levou às prisões, numa noite de outono. Estava com os olhos turvos e meio acordada enquanto viajávamos pelo ziguezague, observados apenas pelas estrelas enquanto o resto de Arida dormia. Foi assim até que a luz da lua piscou atrás de nós, meus olhos foram forçados a se ajustar à pouca luz da tocha da prisão e ele me disse que era hora de reivindicar minha magia. Eu estava empolgada. Mas, também houve um arrepio nos meus ossos que floresceu mais profundamente nas prisões que viajamos. A sensação de estar prestes a realizar algo significativo, sem entender realmente o que isso significava. Séculos atrás, os Valukans ajudaram a construir a prisão na base da montanha, esvaziando-a para formar três longos túneis, cada um deles formando uma prisão única. O primeiro túnel é para pequenos crimes e sentenças curtas. A segurança neste setor é mínima, com guardas do palácio posicionados do lado de fora da entrada. O segundo é reservado para crimes mais ofensivos, como agressão ou mesmo assassinato em alguns casos. A segurança lá é mais forte; todos os guardas são portadores de magia e altamente treinados vindos das várias ilhas. A terceira prisão é para os criminosos mais perigosos e é reservada apenas para aqueles com almas que o pai ou eu consideramos as mais perigosas. É uma prisão para quem não matou apenas uma vez, mas mataria cem vezes mais. Aqueles que agrediram suas vítimas da maneira mais desprezível e não sentem remorso. Sua segurança é uma das melhores do reino; não há celas, mas salas fechadas protegidas por guardas que eu nunca iria querer enfrentar em uma luta. Papai e eu viajamos pelas profundezas do terceiro túnel. Os nervos agarravam meu pescoço, fazendo meus cabelos se arrepiarem enquanto as paredes ao nosso redor se tornavam mais apertadas e escuras. A cada passo à frente, o cheiro metálico de sangue ficava mais denso no ar. Nós não paramos até chegarmos à sala selada mais distante, parando apenas para que um guarda pudesse usar três chaves para nos deixar entrar. Não me lembro muito do que aconteceu depois, mas lembro do rosto da prisioneira e das correntes que a prendiam. Ela era uma mulher pouco mais velha do que eu sou agora, com cabelos loiros e olhos azuis em pânico. Recordo-me de que não conseguia parar de encará-los, imaginando o que ela fez para merecer esse destino quando meu pai pressionou uma adaga em minhas mãos – a mesma que eu uso agora. — É assim que deve ser, Amora. — Papai guiou minha mão trêmula
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