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Copyright © 2016 por Marcio Paschoal Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores. Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente todos os detentores dos direitos das imagens que ilustram este livro. Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas nas próximas edições, bastando que seus proprietários entrem em contato com os editores. edição Virginie Leite revisão André Marinho e Hermínia Totti projeto gráfico e diagramação Natali Nabekura caderno de fotos Ana Paula Daudt Brandão capa Raul Fernandes imagem de capa Arquivo pessoal Rogéria foto do autor © Pedro Curi adaptação para e-book Marcelo Morais CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P284r Paschoal, Marcio Rogéria [recurso eletrônico]: uma mulher e mais um pouco / Marcio Paschoal. - 1.ed. - Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-5608-015-8 (recurso eletrônico) 1. Rogéria, 1943-. 2. Travestis - Brasil - Biografia. 3. Livros eletrônicos. I. Título. 16-35835 CDD: 920.930676 CDU: 929-055.34 Todos os direitos reservados, no Brasil, por GMT Editores Ltda. Rua Voluntários da Pátria, 45 – Gr. 1.404 – Botafogo 22270-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2538-4100 – Fax: (21) 2286-9244 E-mail: atendimento@sextante.com.br www.sextante.com.br mailto:atendimento@sextante.com.br http://www.sextante.com.br/ “No palco não há censura, não há sexo. No palco nós somos o que queremos ser.” Fernanda Montenegro SIGNIFICADO DO NOME ROGÉRIA “famosa com a lança”, “lanceira célebre” ou “lança gloriosa”. É a variante feminina de Rogério, nome originado do germânico Rodger, composto pela junção das palavras hruot, que quer dizer “fama, glória”, e ger, que significa “lança”. ASTOLFO, HOMEM-MULHER A história de vida de Astolfo Barroso Pinto mais parece ficção. Suas aventuras, os sucessivos desafios, a forte personalidade e a afirmação profissional o tornaram único e abriram caminho para o surgimento do artista irresistível, quase mítico: Rogéria, também conhecido, carinhosa e anacronicamente, pelo epíteto de “travesti da família brasileira”. Meus fãs são as avós, as mães, as tias que chegam e falam pros filhos, netos e sobrinhos: “Olha, esta é a Rogéria!” Me apresentam como se me conhecessem há anos. Engraçado, os homens me chamam de senhora, eu construí essa imagem de respeito. Falo com muita gente. Quando vejo uma senhora que me sorri, vou até ela e converso. Ouço muito as pessoas dizerem: “Sempre tive vontade de falar que acho você uma simpatia, Rogéria!” Adoro. Também recebo críticas e aceito numa boa. Quase sempre têm razão. Meu Facebook, meu Twitter é andar na rua. Tenho essa disponibilidade, gosto disso. Meus amigos sempre reclamam: “Você parece um trem parador!” Sou cobrada, testada pelo povo, talvez por isso represente, de certa forma, um pedaço da família brasileira. No conto “O homem-mulher” do livro homônimo do escritor carioca Sérgio Sant’Anna, o protagonista, Adamastor Magalhães, ou Zezé, desde a sua origem, em Belém do Pará, queria ser um misto de menino e menina. Morando com a mãe, a tia solteirona e duas irmãs, já na adolescência começou a representar o feminino, vestindo-se de mulher. Primeiro no Carnaval, para depois perder-se de si mesmo tentando atestar no seu cotidiano essa realidade dúbia. Longe de querer se transformar num travesti, Adamastor, heterossexual, foi aproveitando cada vez mais seu corpo-figurino, ambivalente, que queria se oferecer ao mundo como um personagem único, o de homem-mulher. Na verdade, um lésbico. O único caminho possível para ele era a representação cênica e o teatro. No êxito ou no fracasso, um personagem de vida e palco, que só na teatralização poderia encontrar refúgio. Seria possível traçar um sutil paralelo com a realidade que aqui se quer contar. De Belém para Cantagalo, norte do Rio de Janeiro, Astolfo Barroso Pinto seria o Adamastor que criara o seu próprio Zezé performático. Cada qual com seu modo e grau, realidade e ficção dando vida a seus personagens e assumindo opções sexuais (Rogéria com homens, Zezé com mulheres), na antevisão da arte como única saída. Destaque-se a diferença de resultados na trajetória de cada um: na ficção, Adamastor não consegue o sucesso de Zezé e comete suicídio. Já Astolfo, no dia a dia, leva sua Rogéria, com talento e superação, ao improvável êxito. Ficcional ou real, a conjunção de verdade e ilusão na construção dessas vidas está na sua maravilhosa capacidade de dar voz e alento às próprias fantasias. A ESTREIA “Não nasci, eu estreei.” No dia 25 de maio de 1943, uma quarta-feira ensolarada, num quarto de uma casa no município de Cantagalo, a jovem Eloah Barroso entrava em trabalho de parto. Dois médicos e um padre foram chamados para uma emergência. A indicação era o uso de fórceps, cuja fama, ao longo da história, nunca fora boa. Se mal utilizado, poderia causar danos ao cérebro, aos olhos, às orelhas, ao nariz e aos nervos faciais do bebê. A mãe perdia sangue, e era preciso abreviar o período expulsivo, quando a mulher faz força para dar à luz a criança. Depois de algumas horas e muita tensão, nascia Astolfo Barroso Pinto, um bebê saudável de 3,10 quilos, primeiro filho da união de Eloah com Dídimo Acácio Pinto, um maquinista da Leopoldina. O nome foi herdado do avô materno, Astolfo Barroso, figura importante da comarca de Cantagalo, terra de Euclides da Cunha. A escolha tinha sido de Eloah, que morava em Niterói mas quis ter o filho onde seu pai nascera. Curiosamente, antes de se decidir pela homenagem ao velho Astolfo, o casal cogitava dar ao menino o nome de Edmundo. Mãe e filho passaram apenas 15 dias na cidade antes de retornar a Niterói, onde moravam na rua Doutor Carlos Maximiano, 186, Fonseca. O casamento de Eloah e Dídimo dava evidentes sinais de que não iria longe e, de fato, não demorou a ocorrer a separação. Eloah confessava que ficara arrependida já na lua de mel. Ao entrar no quarto e tirar seu vestido de noiva, na célebre frase “Enfim, sós”, ela certamente preferiria ter ficado só. Ainda assim, antes da separação, o casal teve outro filho, Cyr Assis Barroso Pinto. AS REINAÇÕES DE TOFINHO “Não fui um viadinho infeliz.” A infância do menino Astolfo foi igual à de tantos outros. Cresceu cercado da atenção de muitos tios e tias, primos, além da dedicada Eloah. A casa tinha quintal, ele subia em árvores, pulava muro, caçava rãs, pegava goiaba no vizinho, corria de cachorro, não faltavam brincadeiras e traquinagens. Chamava o avô Astolfo de pai, a avó Beatriz de mãe, e a mãe de mãe Loá. Logo depois da separação de Dídimo e Eloah e do nascimento de Cyr Assis, Astolfinho, com 3 anos, teve seu primeiro grande confronto: o sequestro pelo próprio pai. Estava com a avó Beatriz quando o pai foi pegá- lo para cortar o cabelo e sumiu com ele por quase quatro meses. Naquela época, mães separadas não eram bem-vistas, e Eloah teve de batalhar para conseguir seu filho de volta. O fato de estar empregada e ter uma boa estrutura familiar (incluindo o irmão recém-nascido de Astolfinho) ajudou o juiz a se convencer de que a criança deveria ficar com a mãe. Dídimo só iria rever o filho Astolfo quando ele completasse 12 anos. Astolfinho não gostava de brincar de bonecas (na verdade, tinha pavor delas), mas já se notavam nele alguns trejeitos femininos. Descia as escadas puxando um pano, como se fosse um vestido longo. Alguns comentários de que o filho parecia uma menininha não abalariam nem modificariam o comportamento de Eloah. A mãe acordava de madrugada para ir trabalhar no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, em São Cristóvão. Sempre que podia, levava Astolfinho, que já era bem conhecido por lá, falante e comunicativo. Até demais, a mãe lembrava. Num jantarem família, perguntaram a Astolfinho quando ele iria casar. A resposta foi tão rápida quanto desconcertante: “Ainda nem arranjei um namorado...” A avó Beatriz se incomodava um pouco com o jeito estranho do neto e lhe dava alguns beliscões. O engraçado era que, mesmo parecendo uma menina, vivia na rua como um moleque e brigava sempre com os meninos. Na verdade, Astolfinho batia em quase todos os garotos do quarteirão. Mais tarde, o menino perguntaria à mãe se ela nunca tivera vergonha de levá-lo com ela para o trabalho. Eloah garantia que não e dizia que ele era muito querido por todos os militares. Quando ela não o levava, perguntavam por ele. Na verdade, Eloah sempre protegeu e amparou o filho, em qualquer situação. E isso foi fundamental para formar a personalidade do pequeno Astolfo. Tive a maior mãe do mundo e nunca sofri bullying. Toda vez que aconteceu alguma coisa comigo foi porque eu quis. Minha mãe foi uma mulher tão maravilhosa que nunca teve vergonha de mim. A convivência com os tios também deixaria marcas. Na ausência de Eloah, tia Neusa, sempre autoritária, era a mais presente, embora fosse tio Dodô quem lhe cobrasse educação, respeito e dedicação aos estudos. Se não fizesse os deveres de casa ou se fosse alvo de reclamação da professora, tomava uma boa surra com vara de goiaba. Tio Dodô foi importantíssimo na minha formação. As surras com a tal vara de goiaba eram merecidíssimas. Acho até que me bateu pouco. Se tivesse caprichado mais, sem dúvida, eu estaria formada por Harvard. Tio Nilton, que não tinha uma perna por causa de um acidente de trem, brincava sempre com ele. Mas quem mais cedo percebeu as inclinações femininas de Astolfinho foi tio João. Em parte porque surpreendeu o sobrinho dançando mambo e imitando Cyd Charisse num concurso com as primas e as amigas. Claro que Astolfinho foi o vencedor. Quando tio João estava internado no hospital com câncer de próstata, fui visitá-lo. Perguntei sobre o episódio do mambo. Ele riu. Eu quis entender por que ele não tinha comentado com ninguém na família. Ele me disse que percebia meu jeito desde que eu era pequenino, mas que não se preocupou porque sabia que eu tinha talento, lembrando como todos me aplaudiram quando dancei aquele mambo. Nós rimos muito. Foi a última vez que vi meu tio João. Com 5 anos, ao lado da mãe, Astolfinho presenciou matarem um porco. Ficou horrorizado e gritou, rivalizando com o animal que estrebuchava. Sentiu-se muito mal com toda aquela violência. A mãe explicou que havia um motivo para sua reação: ele já presenciara várias matanças em outras vidas. Minha mãe era espírita. Em casa dava passes, tirava espíritos obsessores usando crucifixo, rezas e imantações, numa forma de exorcismo. Crianças, principalmente, entravam passando mal, meio tortinhas, e saíam curadas. Apesar de ser um pouco como São Tomé, ver para crer, nunca duvidei dos dons espirituais de minha mãe. Ela dizia que eu era filho de Iansã. Uma vez estava sozinho, deitado no sofá, pensando nisso, e levei um trambolhão, quase caí para trás. Fiquei branco e gritei muito assustado. Minha mãe veio e comentou sorrindo: “Ah, Iansã já esteve aqui...” Com espírito de liderança, Astolfinho – agora chamado de Tofinho – logo se tornou chefe da sua turma de amigos. Falante e carismático, comandava o grupo que se aventurava pela vizinhança, descobrindo novidades. Havia uma ponte nas proximidades, e os meninos iam lá para pegar rã. Tofinho deu com uma cobra-d’água e ficou em pânico, histérico. Os meninos estranharam, mas ninguém se atrevia a zombar dele. Tinha faniquitos, mas era bom de braço. Todo mundo já desconfiava que ele era meio viadinho, mas ninguém falava nada. Pelo menos, na sua frente. Em casa não era diferente. Uma vez, passando pó de arroz, ficou com o rosto todo branco. Surpreendido pela mãe, pensou em fugir, tomado de vergonha. Diante daquela cena, Eloah simplesmente abraçou o filho e comentou que ele parecia um palhacinho. Sempre que Tofinho lhe perguntava por que ele não era igual aos outros meninos, a mãe explicava que havia passado muito hormônio para ele durante a gravidez. Os tios e primos também pareciam aceitá-lo naturalmente. Ninguém comentava nem julgava, apesar dos nítidos sinais de sua feminilidade. Vaidoso, com os cabelos cortados no estilo Príncipe Danilo, certa vez, olhando-se no espelho, Tofinho achou que suas orelhas eram enormes. Não eram orelhas de abano, mas o incomodaram a ponto de decidir que, a partir dali, dormiria sempre de lado para que elas ficassem coladas. Esse hábito seria mantido por toda a vida. Tofinho gostava de ficar perto das meninas para poder pentear o cabelo delas. Ou, então, ia ver os meninos jogarem futebol ou brincar com eles de Tarzan. Seu irmão, Assis, ficava maluco de raiva porque sabia que quem ia ser a Jane e pular do cipó para ser agarrado pelos garotos era Tofinho. Por isso, o caçula sempre arrumava um jeito de não participar da brincadeira. O interessante era que os dois irmãos se davam bem, um protegendo o outro. Uma vez, Assis chegou em casa com o nariz sangrando. Quando eu vi, gritei, perguntando o que tinha acontecido, quem fizera aquilo. Assis, chorando, disse que tinha brigado com o Darci. Aí, me baixou uma Blanche DuBois e saí na rua atrás do Darci. – Foi você quem deu um soco no meu irmão? – perguntei. – Fui eu, por quê? – desafiou Darci. Quebrei ele de porrada. Minha surpresa foi meu irmão ter ficado uma fera comigo. Ele reclamou que sabia se defender sozinho, não precisava de ninguém. No fundo acho que era vergonha de ver o irmão, viado da turma, batendo nos meninos. O fato era que, se mexessem com ele, mexiam comigo também. A fama de valente de Tofinho corria: era meio mariquinha, mas brigava bem e tinha uma força danada. A consagração definitiva veio com o episódio das bolas de gude. Tinha um garoto, o Zezé, que metia muito medo nos meninos. Ele chegava e todos fugiam. Eu estava sozinho jogando bola de gude quando ele apareceu. Me arrepiei todo, mas disfarcei. Ele foi e desmanchou minhas três búlicas, depois pegou todas as minhas bolas de gude. Eu ainda aguentei firme e calado, mas, quando ele passou a mão na minha bunda, voei nele e, como uma anaconda, agarrei seu pescoço, o enforcando. Foi difícil tirarem ele das minhas mãos. Depois disso, o tal Zezé nunca mais mexeu comigo, e os meninos passaram não só a me respeitar, como a me temer. “Eu nunca sofri bullying, eu sou o bullying.” Uma brincadeira que Tofinho adorava era a de Cleópatra. Erguido numa espécie de liteira improvisada, que podia ser um caixote ou uma cadeira, gritava para seus soldados: “Ataquem!” Os meninos, sem saída, perguntavam a quem atacar. E Cleópatra/Tofinho dizia, decidida: “Lutem contra os inimigos. Não estão vendo os inimigos? Finjam, isto é cinema!” O cinema sempre foi uma de suas grandes paixões. Eloah levava o filho para assistir aos filmes desde pequeno. Beirando os 9 anos, Tofinho ensaiava um corpo com curvas e pernas grossas. As brincadeiras de Cleópatra agora recebiam novos adeptos, alguns garotos um pouco mais velhos. E Tofinho pressentia no olhar deles intenções estranhas, embora não permitisse nada diferente. Podia ser mariquinha, mas também podia ficar bem agressivo. Quando me transformava na rainha Cleópatra, um menino bem lourinho sempre passava a mão nas minhas coxas, mas eu não falava nada, porque ele estava sendo discreto e ninguém percebia. Uma tarde, no rio da Alameda, perto da ponte, uns garotos pediram que eu colocasse um biquíni. Gritavam: “Tofinho, biquíni! Tofinho, biquíni!” Eu adorava fazer poses, e eles todos se masturbavam. Eu nem sabia bem o que era aquilo, mas, como bom geminiano, já imaginava. O importante era que, se eu não quisesse, ninguém tocava em mim. Eu não deixava. O cotidiano na casa dos irmãos Astolfo e Assis era estudar até o meio- dia, almoçar e ir para o colégio José Bonifácio, no bairro do Fonseca. Tofinho tinha duas amigas de sala de aula: Maria da Glória e Jairden. Viviam sempre juntos. Na hora do recreio, porém, os meninos eram separadosdas meninas. Os garotos iam todos jogar futebol, e ele ficava deslocado, num canto, assistindo à partida, sem o menor interesse. Assis era um dos destaques do time. Sempre fora bom em esportes. Um dia, veio um menino me perguntar, claro que para me provocar: – Astolfinho, tá tristinho, tá? Não pode ficar com suas amiguinhas, né? – Quem te mandou vir aqui? Eu te chamei? Volta pro teu futebol – respondi na hora. O menino voltou, rindo. Aí, pensei: “Sabe de uma coisa? Enchi o saco de ficar aqui olhando. Vou jogar também.” A turma não concordou, mas, como meu irmão Assis era um dos melhores do time, ameacei: – Se não me deixarem jogar, o Assis sai do time. Meu irmão, solidário, ainda que constrangido, saiu. Logo o time começou a perder, eles chamaram Assis de volta e me colocaram de goleiro. Foi um fiasco, cada chute, um gol, e eu fugindo da bola para não me machucar e gritando: “Uiii!” Eles ficaram loucos de raiva: – Tá vendo, você não sabe jogar. Não perdi a pose e, deixando a quadra, desdenhei: – Eu só queria mostrar que entrava no jogo. Agora, não quero mais, podem jogar. A noção de respeito aos mais velhos, de nunca responder à mãe e de jamais falar palavrões Tofinho aprendeu em casa. Na escola, a disciplina era com uma descendente de italianos, Dona Lili, a severa professora de matemática. Rubicunda, usava umas espalhafatosas pulseiras amarelas de conchas pelo braço grosso e sardento. Com ela não havia moleza. Entrou certa vez em sala e surpreendeu Tofinho dançando mambo: “Sr. Astolfo, se eu pegar o senhor dançando de novo, vai ter surra de vara.” Por mais que os colegas insistissem, antes da aula de Dona Lili, não iria mais dançar mambo. A sexualidade começava a aflorar e, no caso de Tofinho, junto com ela, algumas dúvidas. Havia uma dicotomia entre seu lado fresco e afetado e o jeito de moleque que brigava na rua. Justamente na fase de vida em que aconteciam as explorações e descobertas a respeito dos órgãos genitais, a diferença entre o corpo feminino e o masculino surgia de maneira latente. Era o momento de maior interesse pelo corpo do outro. Teresinha e Jurema eram minhas primas prediletas. Sempre que podia, estava com elas. Uma ocasião, peguei as duas arriadas na porta do banheiro. – O que vocês estão fazendo aí? – perguntei. – Estamos vendo o tio tomar banho. Eu olhei também. – Meninas, que horror! Aquilo dele é enorme! Um acontecimento nessa época também marcaria o menino Astolfo. Dentro do ônibus lotado, voltando do trabalho no laboratório, Eloah viu um homem tentando se roçar no filho. A coisa estava fugindo do controle, mas ela, percebendo a tempo, não só afastou o homem, como lhe deu a maior reprimenda. Tofinho ficou impressionado com a malícia do sujeito e a prontidão do socorro da mãe. Foram os primeiros sinais de que o mundo em volta não era só de inocências, e ficou evidente a importância de Eloah em sua vida. O lado sensível, ligado à arte e propenso à religiosidade, cedo se manifestou, quando Tofinho pedia à mãe que o levasse à igreja. Tinha predileção pelos casamentos e verdadeiro fascínio pela cauda dos vestidos das noivas. Quanto mais longa, mais bela. Quando não havia missa, ele passeava pela igreja. À sacristia não retornaria, por causa da imagem do Cristo morto, que achava mórbida. Admirava-se com as imagens de Nossa Senhora nas laterais da igreja. A mãe explicava que todas eram mães de Jesus. Mas o que ele gostava mesmo era de subir ao lugar do canto orfeônico e ficar próximo à mulher que tocava o órgão. Tofinho tinha predileção pela “Ave-Maria”, de Gounod. Foram os contatos iniciais dele com a música e a religião. Aos 10 anos, Astolfinho teve sua primeira paixão de adolescente. Platônica, claro. O motivo de sua excitação tinha o nome de Danilo e estava com 17 anos. Mas ficou só nisso. Tofinho era bom de imaginação. O cinema sempre o fascinou. O cunhado de tio João também adorava cinema e, como sabia que o sobrinho de João era mariquinhas e dançava muito, dava ingressos para ele assistir aos filmes, contanto que imitasse Carmen Miranda. A família ficava de olho. Contudo, nem sempre essa vigilância funcionava. Uma ocasião, vendo Tofinho cabisbaixo e solitário, um desconhecido se aproximou dele: – Você está assim, por quê? – Eu queria ir ao cinema, mas não tenho dinheiro – respondeu o menino. O homem o chamou para ir a sua casa, dizendo que lhe daria o dinheiro. Fez o menino deitar na cama e o ficou alisando. Tofinho sentiu medo, mas não passou daquilo. De lá correu para o cinema. Queria ver Palavras ao vento, com Lauren Bacall. Só que acabou sendo barrado na entrada. O filme era proibido para menores de 18 anos. ADOLESCÊNCIA “Se meu pai não me aceitasse, o problema não seria meu.” Ao completar 12 anos, Tofinho reencontrou o pai, que não via desde o episódio do sequestro, quando tinha 3 anos. Foi um encontro amistoso, embora Dídimo deixasse bem claro que não aceitava a homossexualidade latente do filho. Deu conselhos, fez perguntas, tentando convencê-lo a se modificar. Tarefa infrutífera, pois, internamente, Tofinho já se considerava feminino. Se o pai não o aceitasse, o problema não era dele. Nada iria mudar. Nessa época, Astolfinho começava a sentir prazer em se tocar. Eu botava a mão, o pau endurecia, e eu me esfregava todo. Fiquei viciado. Ainda muito infantil, ele apenas explorava o próprio corpo. Na masturbação, o prazer do adulto está além do físico, a excitação passa pela fantasia. Para a criança, é somente uma experiência sensorial: ela descobre que é gostoso e vai repetir. Do lado da casa de Astolfinho, havia um vizinho, com seus trinta e poucos anos. Morava com a mãe e era boxeador. Sempre olhava diferente para Tofinho e suas pernas grossas. Numa tarde, estava na cozinha da casa deles, e a mãe teve que sair. Ele me empurrou para o banheiro, abaixou minha calça, pegou seu pau e começou a pincelar meu ânus. Ele gozava loucamente. E não foi uma nem duas vezes. Sempre que ficávamos sozinhos isso acontecia: a mãe saía e ele me arrastava pra casa dele. Eu gostava, mas não gozava. Só ele. Acho que me sentia envaidecido. Sabia que ele não ia me penetrar e relaxava, me sentindo fatal. Além disso, havia o proibido, o risco de a mãe dele descobrir, ou alguém da minha família. Ainda bem que ninguém nunca desconfiou. Até hoje a imagem dele tremendo todo e ejaculando em mim me povoa a cabeça, um tipo de fetiche fortíssimo. Lembro que ele vivia com um cigarro no canto da boca. Eu achava o máximo. Quando vi o Sean Connery em 007 Contra o satânico Dr. No, na cena do cassino em que a mulher pergunta seu nome e ele responde com o cigarro no canto da boca: “Bond, James Bond...”, fiquei louco a ponto de me masturbar dentro da sala de cinema. Antes de Astolfo completar 13 anos, sua mãe se casou com Cristalino da Rocha, e a nova família se mudou para o Rio de Janeiro, bairro de Todos os Santos, numa casa na rua Doutor Ferrari. Cristalino, um homem negro e forte, era apaixonado por Eloah e muito bom para ela. Tinha duas filhas do casamento anterior, se dava bem com Assis, mas era evidente a sua implicância com Astolfo. A recíproca era verdadeira. No início até se aturavam e evitavam confrontos. Com o tempo, a situação começou a se tornar quase insustentável. No meio, Eloah tentava administrar. O padrasto, no fundo, não afinava com a postura do enteado, e este, cada vez mais, se assumia. Astolfo ficava irritado quando Cristalino o mandava ao Engenho de Dentro fazer compras, carregando bolsas pesadas. Era uma estratégia do padrasto para que o enteado ficasse mais másculo. Astolfo exagerava nas poses, parecia fazer de propósito, com o intuito de provocá-lo. Quando chovia, colocava um biquíni por baixo da capa de chuva e descia a rua Honório. Havia uns rapazes no bar que já sabiam que vinha o maluquinho do biquíni. Então, Astolfo abria a capa e se mostrava sofregamente. A rapaziada assobiava e aplaudia. Ele fechava a capa e saía, vitorioso. De certa forma, já havia nele os pendões artísticos, o precoce glamour pelo palco. Numa casa vizinha à deles,havia umas meninas que viviam na janela e, sempre que viam Astolfo, diziam para quem quisesse escutar: “Ih, lá vai o viado.” Na mesma hora vinha a reação: “Piranhas invejosas!” Eu tinha ódio dessas vizinhas e, quando nos encontrávamos, a baixaria era total. O cômico foi terminarmos amicíssimas e confidentes. Junto às amigas Mariazinha e Dilinha e às primas Lucilene, Osmeia e Osmede, Astolfo dava seus shows. A primeira vez que cantou foi uma música do repertório de Núbia Lafayette, “Devolvi”, de Adelino Moreira: (“Devolvi o cordão e a medalha de ouro e tudo que ele me presenteou...”). Todas ficaram bastante surpresas e impressionadas. Astolfo também. Astolfinho fez o primeiro ano ginasial no Colégio Plínio Leite. A professora, Dona Tereza, elogiava seus cadernos, todos encapados por Eloah, mas era rígida no quesito comportamento. E um tanto preconceituosa também. Uma vez Astolfinho foi à aula de anel, com um brilhante falso enorme. Dona Tereza chamou-lhe a atenção: – Seu Astolfo, esse anel é de homem? Todos na sala começaram a rir. O menino não perdeu a pose: – A senhora vem aqui para dar aula de português ou pra dizer o que eu devo ou não usar? Imediatamente posto para fora de sala, ficou na diretoria, à espera da liberação do responsável, no caso sua mãe. Não ia dar certo naquele colégio, concluiu Eloah. Acabou transferido para outro estabelecimento de ensino, o Barcellos Costa. No Barcellos, os professores não demonstravam, mas tinham medo de mim. Eu notava uma discriminação no ar, mas nada era dito. Tinha um professor de ginástica, grisalho, bonitão, que sempre me mandava ficar no fim da fila dos exercícios. Eu usava um shortinho bem curto, e minhas pernas já eram bem grossas... Astolfo cursou até o terceiro ano científico. Era bom em quase todas as matérias, só tinha dificuldade em matemática. Mesmo assim, desistiu de se preparar para o vestibular. Talvez fizesse alguma faculdade um dia, mas, naquele momento, tinha outras ambições. “Homossexual é cabeça. Não é só a penetração que faz o viado. Você já tem que nascer assim.” A cada dia aumentava nele a vontade de se vestir de mulher. Seria uma forma de se expressar, relacionada a roupas, sapatos, maquiagem, adereços e acessórios, enfim, com a caracterização feminina. Já se sentia meio mulher, e era como se, ao se vestir assim, acalmasse uma angústia com a qual ele mesmo não conseguia atinar. Era Carnaval, e Astolfinho, então com 14 anos, viu ali uma oportunidade única: colocou um maiô Catalina preto, uma saia amarela e um chapeuzinho para disfarçar o cabelo curto. Não se maquiou nem pôs peruca. Era o suficiente. Todos que passavam por ele mexiam “Que lindinha!”, “Vai aonde, gracinha?”. Astolfinho estava adorando. O azar foi sua tia Neusa o flagrar passando e logo contar a Eloah. Resultado: uma bronca daquelas e, como castigo, o fim do Carnaval para ele. Na realidade, a bronca da mãe não era propriamente por ele se fantasiar daquela maneira, mas sim por deixar-se ser visto. Proibido de ir aos bailes, só lhe restava o cinema, e olhe lá. Por isso, foi ao Cine Central, perto da Estação das Barcas, a fim de assistir ao filme Como agarrar um milionário, com Marilyn Monroe no papel principal. Paixão à primeira vista. Aquela loura era tudo o que ele queria ser. Se Astolfo já era meio viado, agora nada mais o seguraria. Astolfinho queria ser Marilyn. Emendava as sessões do filme, das duas até as oito. A cena do banheiro, na qual a atriz aparecia de vestido fúcsia e se mirava no espelho, simplesmente o deixava sem respirar. Nunca tinha visto uma imagem tão sensual e feminina. A imagem de Marilyn marcaria para sempre a sua vida. Em 1958, prestes a completar 15 anos, Astolfo acompanhava a seleção canarinho pelo rádio. O Brasil jogava na Suécia sua sexta Copa. O escrete prometia, com novos craques do nível de Pelé e Garrincha unidos à velha guarda de Zito e Didi. Um garoto passou por ele e disse: “Se o Brasil perder, vou te bater. Se o Brasil vencer, vou te comer.” Como se sabe, naquele ano o Brasil sagrou-se campeão invicto. O menino era abusado, mas lindo de morrer. O Brasil ganhou, e eu fui atrás dele para que cumprisse a promessa. Mas ele não me comeu. Demos apenas uns beijinhos e deixei ele pegar nos meus peitinhos. Sempre tive peitinhos. Cheguei a pensar que era pela masturbação, mas não era. Sabe garoto que tem peitinho? Eu era assim. No final, depois de tanto sarro, acabei batendo uma punheta nele. Foi a primeira vez que fiz isso com alguém. Devo isso ao Pelé e ao Garrincha. Pouco tempo depois, Astolfo teve a primeira relação sexual. Apaixonou-se por um rapaz bonitão, Geraldo, que morava no bairro e era sustentado por um advogado. Vivia contando vantagens, e Astolfo, fortemente impressionado, deixou-se levar. Ele me chamava de “Minha princesa” e eu me desmanchava todo. Geraldo era lindo e tinha um pau enorme. Quando transamos, foi traumático. Não tive prazer nenhum, ele praticamente me estuprou. Eu só queria ser mariquinhas, não sabia que mariquinhas tinha que dar a bunda. Fiquei machucado demais, mas pensava estar apaixonado... O PADRASTO “Não gostei quando ele me chamou de viado.” O começo do casamento de Eloah com Cristalino, como quase todo início, parecia perfeito. Havia, porém, um senão: o padrasto continuava a implicar com o enteado. Mais precisamente com a sua homossexualidade. Para Cristalino, aquilo era inaceitável e precisava de conserto. Não foram poucas as ocasiões em que se desentenderam, embora tentassem sempre manter algum respeito. Uma noite, Cristalino brigou feio com Astolfo, que tinha a mania de ir à cozinha de noite pegar coisas na geladeira. Ele ralhava comigo e eu não dava muita bola, mas escutei bem quando me chamou de viado. Pensei: “Você não vai cair na cilada de ser racista e responder.” Então me lembrei que Lélia, uma de suas filhas, tinha perdido a virgindade. Naquele tempo perder o cabaço era quase sinônimo de ser puta. Respondi na lata: “Posso ser viado, mas sua filhinha é piranha!” O ambiente, antes péssimo, tornou-se quase insuportável. Eloah estava grávida e, talvez por isso, Cristalino tenha administrado as diferenças com Astolfo. Alguns meses depois nasceria Flávio Barroso da Rocha. Curiosamente, bastante parecido com Astolfo, a mesma cor dos olhos, nariz igual. O comentário geral era: “Igual ao Astolfinho, só que mais moreninho!” O destino pregaria uma peça em Cristalino. Como a pagar pela boca, Flávio, quanto mais crescia, mais dava sinais de aparente feminilidade. A ponto de os amigos brincarem com Astolfo que em breve teria um novo “concorrente”. Astolfo não escondia a satisfação, embora começasse a se preocupar, imaginando que poderiam criticá-lo por haver sugestionado o irmão caçula ou influenciado na formação dele. Nunca tive problema que meu irmão fosse gay. Tenho muito orgulho de ter sido escolhido para ser o seu padrinho de crisma. Com alguns amigos, Astolfo passou a frequentar bailes de Carnaval. Já era conhecido no bloco do Gelo, tradicional grupo de foliões do largo do Catumbi, que se caracterizava por usar roupas brancas. Numa dessas festas, voltando para casa, fantasiado de mulher e com biquíni, pegou um ônibus na Central. Um grupo de rapazes começou a mexer com ele. Quando ia saltar no ponto, um deles puxou o biquíni, que acabou rasgando. Ele não podia deixar que descobrissem que não era mulher. Foi socorrido por um homem forte, prestimoso e gentil, que se apresentou como funcionário aposentado dos Correios e Telégrafos. Rapidamente o afastou do movimento, e Astolfo relatou-lhe o ocorrido. O homem se prontificou a ajudá-lo. Tinha agulha e linha no seu quarto numa pensão não muito longe dali. Enquanto o homem costurava, Astolfo notou que ele estava excitado. Naquele momento, sem hesitar, retirou o membro já enrijecido da calça do homem, pôs na boca e começou a beijar e chupar. Foi sua primeira experiência com sexo oral. Na época em que o Aterro estava sendo construído, Astolfo costumava ir tomar sol com os amigos no bairro da Glória, em frente à Igreja do Outeiro.Chamavam aquele pedaço de Mar Del Plata. Eles apanhavam mexilhões e cozinhavam em uma lata de leite. Certa vez, Astolfo estava com Wanda, um viado com corpo escultural. Os dois, de biquíni, faziam os mexilhões quando dois policiais militares se aproximaram. – O que é isso? – perguntaram. – Estamos tomando banho de sol, não pode? – Vocês são meninos ou meninas? – Somos meninas, se vocês quiserem... Os policiais não gostaram e levaram os dois para a delegacia no Catete, com a justificativa de atentado ao pudor. Me lembro que nos deixaram, eu e Wanda, detidos numa cela, com um monte de homens dentro. Aproveitamos para namorar. Ficamos excitadíssimos com aqueles presos todos. O “xerife” dos presos veio logo na frente e foi o primeiro. Depois, os outros. Morríamos de medo de algum policial acabar vendo tudo. Quando o delegado foi comunicado, deu a maior bronca nos guardas: “Vocês estão loucos? Prenderam dois viados e um deles ainda é menor. Quero prender é bandido. Manda tudo embora.” E nós saímos da delegacia do Catete, de biquíni e vitoriosos. Quando Astolfo completou 17 anos, Eloah se separou de Cristalino e se mudou com Astolfo, Assis e Flávio para a rua Licínio Cardoso, em Triagem. Foi um tempo em que Astolfo ia a todos os musicais da Metro e, sempre que podia, assistia aos filmes nacionais. Dos filmes estrangeiros, mantinha- se fiel a duas paixões: Marilyn Monroe, a loura sensual que sonhava um dia ser, e Bette Davis, ícone de atriz. “Nem todo homem é marginal, nem toda mulher é prostituta, nem todo travesti é bandido.” Também começava a frequentar a Cinelândia, tradicional reduto dos gays. Lá conheceu uma turma de travestis da pesada. Naquele pedaço da cidade, Astolfo se desprenderia das amarras, desprezaria seus recalques e iria fazer tudo o que sempre tivera vontade. Precisava arrumar um novo nome, já que Astolfo não combinava. Por um tempo foi Karina Monroe, depois Erika Von Strausberg. Nenhum deles pegou. Uma das mais influentes no grupo era Lívia Bellini. Tinha esse nome porque era apaixonada pelo jogador de futebol, capitão da seleção brasileira. Uma fixação, sendo famosas as histórias que contava sobre seu relacionamento com o jogador, fruto de sua louca fantasia. Um dos pontos de encontro do grupo era o Teatro República, na avenida Gomes Freire, onde os bailes de Carnaval eram concorridos. Aos poucos, Astolfo (ou Karina ou Erika) foi ganhando espaço nos bailes. Certa vez, Astolfo foi convidado pelo grupo a participar de um assalto a uma residência. Na hora inventou uma boa desculpa e disse que não podia. Soube depois que o tal assalto fora frustrado porque a dona da casa tinha fechado a janela por onde pretendiam entrar. No reduto também lhe ofereceram Pervitin (metanfetamina), mas Astolfo recusou, nunca fora chegado às drogas. A importância da formação familiar na personalidade de cada um moldaria, certamente, seus atos futuros. Não acredito muito nessa história do “Diga-me com quem andas...”, porque eu conheci as piores pessoas e não me deixei influenciar por nenhuma delas. Até amiga na cadeia eu fui visitar. Quando era criança, quis pegar uma moeda no bolso do meu avô Astolfo para comprar uma mariola. Ouvi uma voz da consciência: “É roubo!” Fiquei sem mariola. Isso é uma questão de caráter. Astolfo vivia a postura mais neutra dos travestis. Não precisava sobreviver da venda de sexo, não se intoxicava de drogas e álcool, não deformava o corpo com injeções de silicone industrial ou óleo Nujol, não passava pelas agruras que eles passavam na tênue linha que separava o normal e o aceito da marginalidade. Astolfo era gay e adorava fantasiar-se de mulher, mas não praticava o estilo travesti de vida. Também se sentia feliz como homem. Especialistas em sexualidade entendem que os travestis, em sua grande maioria, são biologicamente identificados com o seu sexo de nascimento. O padrão comportamental é sentirem-se, ao mesmo tempo, como homens e mulheres, não cogitarem mudar o sexo biológico e terem, geralmente, atração por pessoas do mesmo sexo. TV RIO “A TV Rio foi o meu Actors Studio.” O ano era 1962. Um amigo, Fábio Pimenta Pillar (que depois se tornaria Fabette Shuiller), contou que estavam precisando de um maquiador na TV Rio. Astolfo resolveu arriscar. A programação da TV Rio tinha muito da TV Record de São Paulo, da família Machado de Carvalho. A direção-geral era de Walter Clark, e os programas humorísticos despontavam como o carro-chefe: O riso é o limite, Chico Anysio show, entre outros. Havia sucessos como Espetáculos Tonelux, com Neide Aparecida, e uma série de shows com a nata do teatro de revista e suas vedetes: Virgínia Lane, Carmem Verônica, Dorinha Duval, em programas como Show Praça Onze e Noites cariocas. Quando Astolfo chegou para a entrevista na sede da TV Rio, na avenida Atlântica, em Copacabana, já havia alguns candidatos. Foi recebido pelo maquiador do Chico Anysio, o argentino Óscar, que pediu que maquiasse alguém. Depois de conferir o resultado, Óscar não teve dúvida: “Fica, você está empregado!” Astolfo era autodidata. Desde pequeno se metia a maquiar as primas, depois as colegas e por fim os amigos gays. Um deles, Pierre (mais tarde Brigitte de Búzios), foi testemunha: “Sempre pedia a ele que me maquiasse, sua mão era firme. E ele dizia que a maquiagem era para iluminar as pessoas. Como ele era uma negação na cozinha, quando pintava meus olhos no melhor estilo da Cleópatra vivida pela Elizabeth Taylor no cinema, eu brincava dizendo que ele sabia fazer um olho, mas não um ovo.” O primeiro trabalho importante de Astolfo foi como maquiador exclusivo de Emilinha Borba para o programa do Paulo Gracindo, com Rosinda Rosa, Valentina Godoy e Darlene Glória. Com Darlene, viveu uma história curiosa. Astolfo foi assistir a um show no Teatro Recreio com algumas amigas. Impressionado com a voz de Darlene, quis falar com ela no camarim, ao fim do espetáculo. No meio de tanta gente, conseguiu chegar perto e declarar sua admiração. Foi quando o produtor Silva Filho resolveu colocar todo mundo para fora. Darlene puxou-o pelo braço: “Entra aqui, finge que é meu camareiro.” Tempos depois, já como maquiador da TV Rio, Astolfo reencontrou Darlene: “Você é aquela que não deixou o Silva Filho me expulsar do camarim!” Os dois riram muito. Então, Astolfo pegou o cabelo dela, fez um penteado à la Grace Kelly, caprichou na maquiagem e disse: “Vou te apresentar a uma pessoa que vai fazer de você um sucesso.” Era Carlos Alberto Loffler. Na semana seguinte, Darlene era a estrela do Noites cariocas. Por causa de seu bom trabalho, Astolfo começou a se destacar. Foi nessa época que ganhou o nome com o qual iria brilhar. A atriz Zélia Hoffman (que fazia a personagem Maria Teresa, esposa do coronel Limoeiro, interpretado por Chico Anysio) resolveu chamá-lo de Rogério, que considerava mais “soft”, justificando que Astolfo era formal demais. O novo apelido acabou pegando. Agora já era comum Rogério maquiar os grandes nomes da cena artística. Além das cantoras Emilinha, Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Maysa, Linda e Dircinha Batista, maquiou Elis Regina no começo de carreira. Também passaram por suas mãos atores do Teatro dos Sete, como Sergio Britto e Fernanda Montenegro, e até astros internacionais, como Carmen Sevilla, Rita Pavone, Trini Lopez e Sarita Montiel. Uma dessas artistas acabou tornando-se sua grande amiga: Elizeth Cardoso. Fui tomar um café e, quando cheguei para trabalhar e vi a Divina na minha cadeira esperando para ser maquiada, simulei um desmaio, digno de Bette Davis. Era a maneira de expressar meu sentimento, admiração e reverência. Elizeth foi uma das melhores pessoas que conheci na vida. Muito boa para mim, dava conselhos, me recebia em sua casa para jantar e sempre me ajudava de alguma forma. A mãe dela, Dona Moreninha, me adorava. Eu imitava uns cantores e ela quase morria de rir. Sempre que podia eu acompanhava a Elizeth. Quando ela aceitou o desafio do maestro Diogo Pacheco para cantar no Municipal as Bachianas brasileiras,eu estava lá atrás, vendo a maquiagem, o vestido. No palco do João Caetano, no show com Jacob do Bandolim, fui eu que fiquei na coxia, cuidando de tudo. Sofri quando ela passou quase quatro anos sem gravadora. Elizeth não merecia... Era uma intérprete rara, uma mulher enluarada. Ainda havia a famosa rixa, sustentada pelas fãs, entre as cantoras Emilinha e Marlene. E Rogerinho no meio. Eu maquiava as duas. Era fã de Emilinha, mas acabei me espelhando mais em Marlene, que artisticamente tinha mais a ver comigo. Ela interpretava suas canções exatamente como uma atriz diz seu texto dramático. Quando Marlene estreou na TV Rio e fui chamado para maquiá-la, logo depois já estávamos almoçando juntas. Tanto Emilinha quanto Marlene eram ótimas pessoas. Emilinha era a maior gorjeta da televisão, e Marlene sempre me incentivou e foi muito boa comigo. Outra amiga querida, a atriz Zilka Salaberry, sempre pedia a Rogerinho uma dica de maquiagem para seus papéis. Certa vez Zilka recorreu a ele para uma maquiagem especial para uma peça em que interpretaria uma dona de bordel. Ela estava preocupada porque era visada pelos papéis de bruxa que fazia como ninguém e queria acentuar a diferença entre os personagens, evitando qualquer associação com as tais bruxas. Me lembro da aflição da Zilka para compor a dona de um bordel, que, ainda por cima, fumava charuto. Ela tinha medo de ficar parecendo com uma bruxa. Como o cabelo dela estava longo, puxei todo para trás, à la Sarita Montiel, mas tanto, tanto que os olhos também ficaram puxados. Na hora, Zilka reclamou, mas, quando a maquiagem ficou pronta, foi um sucesso. Ela arrasou. Toda maquiagem, para Rogerinho, tinha uma história: Nair Bello, Sarita Montiel, Consuelo Leandro, Trini Lopez, Carmen Sevilla, Dalva de Oliveira... Trini Lopez dava um trabalho, seu rosto era todo esburacado, um horror. Dalva de Oliveira estava sempre com uma cara triste, eu sentia uma pena danada, sabendo que ela passava por uma fase difícil. Bebia muito, chegava calada e ficava no mundo dela, até ser chamada para entrar em cena no Show Praça Onze, que estrelava. Até hoje quando escuto a gravação de “Que será / da minha vida sem o teu amor / da minha boca sem os beijos teus... / que será...”, me lembro dela e me dá uma tristeza enorme. Além de maquiador, eu era amigo dos artistas. Uma vez Sarita Montiel veio gravar um filme (Samba) aqui no Rio e me pediu para guardar suas joias, pois já tinha sido roubada: “Hija mia, han me robado una gargantilla de rubi, cuida de mis bijous.” Também fiquei amiga de Carmen Sevilla e seu marido, Augusto Algueró, muito simpáticos. Quando maquiei a Carmen para a TV Rio, ela gostou tanto que me contratou para a maquiagem de um show que fez num clube em Bonsucesso. A fama de Rogerinho se espalhava. Ao vê-lo com seu material de maquiagem numa caixa de sapatos, Jô Soares brincou com ele. A resposta rápida viraria seu primeiro slogan: “Pode ser caixa de sapatos, mas só eu, querido, de um tijolo faço um blush!” Era tempo de Carnaval, e Rogerinho adorava badalar nos bailes da fuzarca do Teatro República. Vestia-se de mulher e se perdia no salão. E enganava direitinho. Os homens vinham segurá-lo por trás, mas ele logo se desvencilhava para poder pular, dançando “Se a canoa não virar / olê olê olá / eu chego lá...”. Quando Rogerinho não tinha roupa para ir a um baile, sempre havia quem emprestasse. A atriz Renata Fronzi era uma das que mais o ajudavam. Naquele tempo, as próprias atrizes é que faziam suas roupas e cuidavam dos figurinos. Uma vez o costureiro de Renata flagrou Rogério usando um vestido da atriz. Foi um escândalo, mas no final tudo acabou bem. Outro entrave era a metamorfose em mulher. Rogério não podia ir pronto de casa e não tinha onde trocar de roupa. Quem intercedeu a seu favor? Um jovem cantor que começava a fazer bastante sucesso: Roberto Carlos. Um dia, na TV Rio, fui maquiar o pessoal do programa Hoje é dia de rock – Jair de Taumaturgo, Wanderléa e Roberto Carlos –, e eles notaram que eu estava diferente. Foi o Roberto quem perguntou: “Por que você está tão calado, Rogerinho?” Então, me queixei que não tinha um lugar para me vestir de mulher. Ele me disse que tinha um escritório no Centro e me deu a chave. Foi a minha salvação. Roberto é especial mesmo. Sempre foi. A fase como maquiador foi fundamental na formação artística de Rogério. Para quem sempre sonhara em conhecer Hollywood e cursar o Actors Studio, a TV Rio seria a alternativa tupiniquim bem-sucedida. De fato, sua concepção de dramaturgia teve início no contato direto com os atores. A partir dessa interação, aceitou convites para trabalhos extras como maquiador em várias peças de teatro. O contato com o pessoal do Teatro dos Sete foi o mais importante. Rogério pôde ter acesso a autores sobre os quais, até então, nunca ouvira falar. Do suíço Friedrich Dürrenmatt, na peça A visita da velha senhora, maquiou a personagem de Fernanda Montenegro, a vingativa Claire, caracterizada com o rosto pálido, carregado nos cílios brancos, sob um véu transparente. Conheci Fernanda Montenegro jovem, com vinte e poucos anos, aquele olhar de Nossa Senhora, que, anos mais tarde, ela faria tão bem no Auto da compadecida, do Suassuna. Quando a maquiei pela primeira vez, ela estava grávida da Fernandinha, e seu olhar tinha já o brilho de mãe. O Fernando Torres era um brincalhão e sempre mexia comigo. Todas as características brincalhonas a filha herdou dele. Nathália Timberg era fina, chique, usava muitas palavras em francês. Pena que naquela época eu não falava nada de francês. Educada e gentil, sempre me dizia: “Meu filhinho, por favor.” Sergio Britto já era mais fechado, se bem que extremamente atencioso. Uma vez conversei com ele e confessei que meu grande sonho era ser ator. Era impensável, naquele tempo, um homem vestido de mulher no Teatro dos Sete, ainda mais que eu não possuía quase nenhuma experiência de cena. Mas era uma ideia que eu tinha desde criança, quando fazia a Jane do Tarzan ou a Cleópatra da Elizabeth Taylor. Sonhava ser a Marilyn, de Os homens preferem as louras, ou a Bette Davis, de A malvada. Sempre quis ser atriz. E não era somente sonho ou vocação, mas uma determinação. Rogério queria mesmo tornar-se um artista de palco. Ouvia sempre os comentários de que seu lugar não era como maquiador, e sim como ator, embora sofresse com os possíveis obstáculos de sua opção de se vestir de mulher e, principalmente, ser aceito como tal. O GRANDE AMOR “Tive um grande amor e duas paixões.” Aos 19 anos, conheceu Múcio, o grande amor de sua vida. Uma relação que culminaria em casamento e duraria três anos e meio, só terminando pela pressão dele para que Rogéria escolhesse entre o amor e o palco. Ele me viu num baile de Carnaval, marcamos um encontro para o dia seguinte e fui vestida de homenzinho. Mesmo assim, ganhei um beijo na boca que quase desmaiei. Namoramos quase um ano. Era um amor pra valer. Só que não conseguíamos ter sexo. Uma vez, encontrei a mãe dele, que me disse: – Olha aqui, meu filho precisa casar, ter filhos, formar uma família... Eu entendi a indireta e fiquei arrasado, claro. Múcio logo compreendeu o que tinha acontecido: – Você falou com a minha mãe, né? Ele, então, me convidou para morarmos juntos. Foi até a minha casa para falar com mamãe. – Você quer ficar com meu filho? Você trabalha? Então, pode vir morar aqui. Ele foi morar conosco. Éramos eu, ele, minha mãe e meus irmãos. A família estava formada. Tudo maravilhoso, mas ainda faltava o sexo. Certa noite, ele foi me buscar e acabei fazendo sexo oral nele. Pensei que seria o fim, tinha chupado meu marido, o que ele pensaria de mim? Meu casamento acabou, ele vai pensar que sou um qualquer. Estava errado. A coisa esquentou de vez. Na nossa primeira relação, comecei a chorar, ele me beijou na boca e disse que me amava. Quando me convenci que amava e era correspondido, disse a ele: – Agora, me fode! Foi uma loucura! Jamais pensei que um dia fosse ser amado assim por um homem. Múcio foi o meu único amor.Só que aconteceram muitas coisas durante todo esse tempo. Uma vez, ele sumiu e, quando reapareceu, eu o levei para ver um teste que faria para um espetáculo. Quando terminou, ele me mandou escolher: – Ou o show business ou eu! Se não tivesse me colocado contra a parede... Aquilo foi fatal, nada ia me fazer abandonar a carreira, os holofotes. Mas foi um amor e tanto. Com ele sentia aperto no coração, beijava na boca, chorava e tinha orgasmo. Tudo junto. Só com ele... ENFIM, ROGÉRIA “Não adianta se vestir de mulher, achar que é mulher. Mulher não é órgão genital, está na cabeça, no coração.” O ano era 1963, e uma das primeiras telenovelas brasileiras estreava na TV Rio: A morte sem espelho. Escrita por Nelson Rodrigues (com o pseudônimo Verônica Blake) e dirigida por Sergio Britto, tinha no elenco Fernanda Montenegro, Paulo Gracindo (que estreava em televisão), Rosita Thomaz Lopes, Ítalo Rossi, entre outros. A censura vetou sua apresentação às oito e meia da noite. Walter Clark apelou, sem sucesso, até para Dom Helder Câmara. Conseguiu finalmente autorização para as dez da noite, mas a novela não teve boa repercussão, sendo encerrada antes do previsto. Todo mundo me atazanava, dizendo que eu devia arriscar e buscar meu espaço. Fernanda Montenegro estava fazendo uma novela na TV Rio, e eu a maquiava. Perguntei a ela: – Será que um dia vou poder fazer teatro? – Claro, por que não? – Como é que eu vou para o palco vestida de mulher? – Arte independe de sexo. Se você tem talento vai dar certo, não custa nada tentar – disse Fernanda. Aí eu fui e aconteceu. Teatro República, concurso de fantasias, Carnaval de 1964. Com uma fantasia simples de Dama da Noite, vedete famosa do Moulin Rouge de Paris, o maquiador Rogério foi aclamado pelo público e empatou em primeiro lugar com o travesti Suzy Wong, ricamente vestido. Surgia uma estrela. Entrei no concurso do República, com uma fantasia que era só um espartilho preto bordado com flores, cinta-liga, salto alto e um chapéu com um rabo de galo verde em cima, e empatei em primeiro lugar com a bicha mais rica da festa, Suzy Wong, deslumbrante numa fantasia de canutilho, toda em dégradé, do verde ao branco, com um leque de pluma enorme. Quando anunciaram o resultado, fui falar com ela, meio que pedindo desculpas, e Suzy me disse: – Você é uma estrela! O locutor, então, anunciou meu nome: – Ele é Rogério, maquiador da TV Rio. E o povo começou a gritar: – Ro-gé-ria! Ro-gé-ria! Quer dizer, meu nome artístico foi dado pelo público, melhor batismo não há... A partir desse episódio, Astolfo, ex-Rogério, assumia, de fato, o novo nome e a nova personalidade. “Um homem vestido de mulher está a um passo do ridículo. Mas para o artista não existe ridículo.” Um conhecido, Jorge Maia (Jane Angel), estava presente no concurso do Teatro República e falou com Hugo de Freitas, que organizava um espetáculo de travestis. Jorge lhe disse que há muito não via um travesti com tanta classe. Quando desceu os 35 degraus da escadaria do teatro, parecia uma Ziegfeld Girl, dos áureos tempos pré-Broadway, anos 1930. Jorge me falou do show de travestis que estavam montando e perguntou se eu topava fazer um teste. Topei na hora, claro. No tal teste, quase enlouqueci o maestro, já que não era comum travesti cantar. O básico era coreografia e playback. Passei no teste e entrei no elenco. No dia 29 de maio de 1964, com uma fantasia de baiana bordada por sua mãe, Dona Eloah, Rogéria estreava na Boate Stop Club, na Galeria Alaska, em Copacabana, onde funcionava o antigo restaurante Gato Preto. O nome do show era International Set. Aberta até de madrugada, a Galeria Alaska atraía alguns turistas, a turma gay, curiosos e moradores sem sono. A galeria ficava embaixo de dois blocos de 12 andares, com 19 apartamentos por andar. Atravessava o quarteirão, indo da avenida Atlântica à Nossa Senhora de Copacabana. No térreo, do lado da praia, era vizinha dos restaurantes El Faro e Rio Jerez, com suas casquinhas de siri, que, invariavelmente, tinham mais miolo de pão que siri mesmo. Do lado da avenida Nossa Senhora de Copacabana, dava para a 13a delegacia. No seu interior, pés-sujos, lanchonetes e uma boate que se destacava, a Stop Club, que depois viraria Boate Sótão e rivalizaria com a Katakombe, a preferida dos frequentadores do lugar. O show International Set começou a fazer enorme sucesso. Em pleno início da ditadura, o espetáculo representava, de certa forma, um tipo de provocação ao Establishment. A tensão gerada pelo golpe militar curiosamente encontrava naquele espaço da Zona Sul carioca o seu reduto de diversão fácil e burlesca, com alguns valores tradicionais festivamente pervertidos. Estreei junto com a ditadura de 1964. Era um tempo meio triste e preocupante, mas eu pensava comigo: “Você não pode se meter nisso, já é um protesto ambulante, um homem vestido de mulher fazendo vedete em Copacabana não é pouca coisa.” Eu sabia que muita gente estava sofrendo perseguições, mas me sentia impotente e tinha de seguir minha vida. A direção do espetáculo era de Bijou Blanche, travesti antigo da Boate Favela, na avenida Atlântica, lugar que se notabilizou por haver projetado o travesti Ektor (Sofia Loren) para os palcos do Night and Day, do Carlos Machado. Bijou mandou Rogéria abrir os trabalhos. Isso podia significar certo desprestígio. Tinha 21 anos e contava só com a força da minha juventude. Fiz sucesso cantando um samba do repertório da Marlene: “Quero sambar, e ninguém vai dizer que não, quero sambar...” Cantava esse samba e depois entrava no final com todo o elenco. Nos primeiros shows, explorava muito aquele negócio de transformista. Uma boa peruca, pernas de fora e pronto. Numa tarde, recebo o telefonema de minha amiga Brigitte de Búzios contando que tudo mudaria no show. Não ficaria ninguém do meu grupo da Cinelândia, somente eu. Bijou também queria me afastar, mas Francisco Bouzas, dono da boate, não deixou: “A maquiadora fica, ela é a atração do show!” De fato, houve uma cisão entre os travestis de Copacabana e os da Cinelândia. Nessa briga, algumas colegas de Rogéria acabaram sendo vetadas, como Eloína e Fabette. Foram chamados, então, os melhores travestis da praça. Além de Brigitte, Valéria, Wanda, Manon, Marquesa, Jean-Jacques, Gigi Saint-Cyr e Nádia Kendall. Os atores Carlos Gil (com uma imitação perfeita de Carmen Miranda), Jonas Mello e Jerry di Marco completariam o elenco. As aparições de Rogéria passaram a ser comentadas. Novos figurinos, mais ricos, foram comprados. Rogéria apresentava-se agora com um belíssimo vestido Schiaparelli rosa-shocking e uma peruca prateada. Sempre com lotação esgotada, o show ganhava novos esquetes. Foi quando Rogéria ganhou da amiga e comediante Consuelo Leandro uma peruca nova, louro tiziano. Percebendo o potencial do negócio, o espanhol Bouzas preparou-se para investir. Um dia, chegou ao camarim e comunicou que, a partir daquela noite, Rogéria seria a última a se apresentar. Tinha virado a estrela do espetáculo. Por essa época, Rogéria foi convidada para uma entrevista na TV Record, no programa Gente do Rio, do jornalista Alfredo Souto de Almeida. O cenário era simples, e Rogéria era entrevistada em cima de um piano. Era a primeira vez que aparecia na televisão. Não demoraria e Rogéria se veria obrigada a deixar o emprego como maquiadora. A TV Rio, em plena utilização dos novos recursos do videoteipe, passou a lhe exigir demais, com a extensão dos horários, que avançavam até a noite. Rogéria extenuava-se, cobrindo as duas funções: maquiadora e estrela de show. Planejava a compra de uma nova peruca e precisava ser mandada embora da tevê para receber o dinheiro da indenização, mas ninguém tomava a iniciativa. A demissão veio com o rumoroso caso de Rogéria com dois conhecidos artistas de São Paulo, da linha dos programas de humor, que protagonizaram escandalosas cenas de sexo nos camarins da emissora. O disse me disse dos bastidores chegou à direção. Rogéria forçara a sua saída da TV Rio. Havia um camarim especial na TVRio para dois artistas de São Paulo. Peguei duas garrafas de champanhe, me tranquei com eles lá dentro e foi a maior sacanagem. A TV Rio toda ficou sabendo. Aí, fui mandada embora e pude investir na nova carreira, comprando minha peruca loura, Jakbell, por 5 mil cruzeiros. O International Set ficaria em cartaz por nove meses. Tal qual uma gestação, serviu para construir a base de um novo tipo de show, bem mais ambicioso. Antes era explorada a curiosidade em torno dos travestis, seus corpos e sua beleza impressionantes, num desfile cuja tônica passava pela sensualidade e o deboche, com quase nenhuma contrapartida artística. Para essa nova montagem foram chamados especialistas no showbiz, e dedicou- se mais atenção aos conteúdos teatral e musical. Estava sendo criado o primeiro grande show de travestis do Rio de Janeiro, o Les Girls. “Ninguém pode se achar estrela. As pessoas é que têm de dizer que você é uma estrela.” Rogéria sonhava com um espetáculo nos moldes da emissora onde havia trabalhado, no qual os travestis pudessem cantar e dançar. Bouzas foi acionado, e uma equipe de produção de renome, convocada. Basicamente a mesma que fazia o Show Praça Onze, na TV Rio: Luiz Haroldo na direção, Mário Meira Guimarães no texto, letras e versões, João Roberto Kelly na direção musical e Djalma Brasil na coreografia. Os figurinos eram de Viriato Ferreira, e a confecção de Afonso Guedes. O Les Girls acabou se transformando numa luxuosa comédia musicada, cujo diferencial era a categoria imposta ao elenco por Haroldo, exigente no desempenho dos travestis como atores, além das composições inéditas de Kelly com as letras bem-humoradas de Meira Guimarães. Um ano lotando direto, o show iria se tornar um divisor de águas na vida e na carreira de muitas estrelas dos shows transformistas. As filas na Galeria Alaska eram enormes. Muita gente da TV Rio me prestigiou. Nair Bello, minha saudosa amiga, me deu os sapatos altos, de strass, que havia comprado nos States, com o marido Irineu. Elizeth me emprestou vestidos mais de uma vez. Na minha estreia, Sylvinha Telles, tão querida, veio direto da Boate Zum Zum, onde se apresentava num show de bossa nova, trazendo uma corbeille de flores. Uma noite, ela também mandou para o meu camarim uma caixa com um presente deslumbrante: um vison, que joguei em cima do ombro e matei de inveja as outras bichas. O mais divertido aconteceu numa noite de gala, quando recebemos no camarim a visita de Josephine Baker. Não vou esquecer o Fábio Pillar (Fabette Shuiller) tentando impressionar a diva: – Madamê, seu vestidê é maravilhosê! Virei para ele e disse: – Bicha, filha da puta, isso é francês, seu viado? Rimos muito naquele dia. La Baker, claro, ficou sem entender nada. O espetáculo Les Girls permaneceria muitos anos em cartaz. Da Boate Stop Club, na Galeria Alaska, passaria para o Teatro Dulcina, na Cinelândia (com o nome de Agora é que são elas). O enredo era bem simples e mostrava um consultório de um psiquiatra que ouvia os problemas de belas mulheres (travestis) que cantavam, dançavam e desfilavam figurinos elegantes. Eu fazia cinco papéis, inclusive o de Chapeuzinho Vermelho. Nesse quadro, o Carlos Gil, hilário, fazia a vovó, que precisava de uma operação plástica. Valéria cantava “Rancho da Praça Onze”, marcha-rancho com letra de Chico Anysio. O elenco tinha Brigitte de Búzios, Marquesa, Carmen, Manon e Nádia Kendall. O sucesso do International Set nos deu muito prestígio. Mariozinho de Oliveira e os rapazes da Clube dos Cafajestes deram uma festa num big apartamento no Leme só para nós. Todo o elenco foi convidado. Eles montaram até um palco para nossa exibição. Teve uma hora que fui fazer xixi e vi o Baby Pignatari no banheiro, de porta aberta, sacudindo seu pau enorme só para chamar a minha atenção. Mas ele já era meio velho, e eu não estava a fim. Cada uma de nós recebeu como pagamento perfumes franceses Jolie Madame. Chique, não? Bons tempos aqueles... Com várias formações de elenco, viajariam por quase todo o Brasil e a América do Sul. Aonde chegavam, os travestis se tornavam o centro das atenções. Em algumas cidades, eram recebidos como heróis, em outras, como espécimes raros. Havia ainda algum preconceito e consequente violência. Em Jaguarão, município que fazia fronteira com o Uruguai, foram expulsos da casa de espetáculos. A confusão teve início quando o show não começou devido ao atraso da orquestra. Incitado por um grupo de rapazes da cidade, todo o auditório passou a atacar o elenco, que se viu obrigado a pedir refúgio na casa de um morador. O curioso foi que, anos depois, Jaguarão instituiria um concorrido concurso de Miss Gay. Fomos com o Les Girls para São Paulo. A manchete dos jornais era “Travestis do Rio invadem São Paulo”. Estreamos na casa de espetáculos Oásis e depois fomos para a Boate Cravo e Canela. Em pleno meio-dia, parei o trânsito no Centro de São Paulo, vestida de mulher, a convite de um jornal que estava fazendo uma matéria comigo. O público paulista nos recebeu muito bem. Fiquei um ano direto em São Paulo. Quando voltei ao Rio, o show seguiria para o Uruguai e a Argentina. Eu não quis. Para sair do Brasil, só cruzando o Atlântico. PRIMEIRA PAIXÃO “Sempre digo aos meus amores: cuidado com as minhas viagens. Entre um voo e outro eu esqueço você.” Nessa temporada paulista, Rogéria conheceria uma nova paixão, o empresário Oswaldo, o Vadico. O relacionamento, recheado de ciúmes e brigas, duraria quase um ano. Com Vadico, geminiano igual a mim, aprendi a diferença entre amor e paixão. No amor, você tem orgasmo com o coração, na paixão você só enlouquece. Vadico me mandava calar a boca, me dava umas porradas de ciúme, tapas na cara, como Glenn Ford em Rita Hayworth no filme Gilda. Eu adorava as cenas, e era uma delícia apanhar, embora nunca deixasse ele me machucar, que eu não sou louca. E também porque ele era riquíssimo, porque apanhar de pobre, meu amor, é uma merda! Mas não fiquei com ele pelo dinheiro porque nunca fui puta. Além de ricaço, era lindo de morrer, moreno de olhos verdes, e me dizia coisas do tipo: “Antes de ir pro show passa aqui só pra eu te ver!” Um romântico sedutor. Mas, coitado, vivia em conflito por não ser homossexual e se questionando: “Porra, como fui gostar desse cara?” Brigava com isso. Era bastante inseguro, e mulheres não gostam de caras inseguros. E eu provocava mesmo, merecia levar uns trancos. Algumas vezes, Vadico me batia na frente de todo o elenco, e minhas colegas morriam de inveja e diziam, em coro: “Ah, por que não encontramos um homem assim?” Uma vez, sem motivo nenhum, quando me deixava em casa, terminou tudo. Me desesperei. Pus um disco da Dalva de Oliveira e chorei tanto, tanto, lágrimas de paixão e ódio. Não podia ficar em casa. Desci e fui até a Boate Caixotinho, da Dora Lopes, para tentar distrair a cabeça e as mágoas. Lembro que fiquei na mesa com Agnaldo Rayol. No dia seguinte Vadico me ligou e disse que só tinha terminado para ver se eu sofria, uma espécie de teste. Aquilo me tirou do sério. Por mais que estivesse apaixonada, eu ia me vingar. Na outra semana, estava no Michel, na Boca do Luxo. Antes do show começar, um amigo veio me dizer que Vadico estava no meu camarim. Chegando bem na porta, para ele poder escutar, comentei alto o quanto estava feliz, como nunca antes na vida. Livre e amando muito. Quando entrei, ele estava verde. Fiquei com medo de que quisesse me bater, mas ele saiu sem falar nada. Vim para o Rio, não queria mais sofrer com aquela paixão. Tive de retornar a São Paulo, encontrei com ele no restaurante Papai. Saí, e ele correu atrás de mim. Quis resistir, mas não pude. Ficamos mais um tempo, mas a paixão acabou minguando. Tão subitamente como havia começado, terminou. Paixões costumam ser assim. VEDETE DO CARLOS MACHADO “Quando eu entrava vestida de Marilyn, me sentia nas estrelas.” Foi Bibi Ferreira quem colocou Rogéria no palco, cantando pela primeira vez, em 1966, na então TV Tupi. A canção era “Balanço Zona Sul”, de Tito Madi (“Balança todapra andar / balança até pra falar / balança tanto que já balançou meu coração / balance mesmo que é bom / do Leme até o Leblon/... balance os cabelos seus / balance e cai mas não cai/ e se cair vai caindo caindo/ nos braços meus”). Bibi cantou ao lado de Rogéria e Brigitte de Búzios, as três com o mesmo figurino, só variando a cor. Bibi foi uma das principais referências artísticas de Rogéria e, sem dúvida, sua mais importante incentivadora. Só tinha visto Bibi fazendo My Fair Lady. Já havia assistido ao filme com a Audrey Hepburn, mas nada se compara ao que Bibi fez no palco com Paulo Autran. Enlouqueci. Bibi era bem superior. Depois ainda a veria em Medeia e Gota d’água (duas vezes). Rogéria voltou a morar em Niterói, agora na rua Barão do Amazonas, no Centro. Os amigos insistiam para que ela alugasse alguma coisa no Rio, pois os shows terminavam de madrugada. Mas Rogéria explicava que só em Niterói tinha a mãe, cafuné, carne assada, feijão e farofa, assim como melzinho para curar faringite. Certamente, diante de tanta efervescência e agitação, lá encontrava refúgio e abrigo. Além do mais, costumava brincar, em Niterói havia muito mais homem do que no Rio. Recém-chegada de São Paulo, ainda esquecendo as marcas de uma paixão bruscamente terminada, Rogéria tentava se divertir no sobrado da rua do Lavradio, no Centro do Rio, na badalada Casa de Irene, residência de alguns gays e ponto de encontro boêmio. Foi quando recebeu o telefonema de sua mãe, avisando da chegada de um telegrama urgente. Era da parte de Carlos Machado, convidando-a para participar do espetáculo As Pussy Pussy Cats, na Boate Fred’s, com texto de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), coreografia de Juan Carlos Berardi e figurinos de Gisela Machado. Não se tratava de qualquer convite, era um sonho trabalhar com Machado. A Boate Fred’s ficava na avenida Atlântica, próximo ao Leme, no local onde depois foi construído o Hotel Méridien, que hoje é o Windsor- Atlântica. Naquele tempo havia um posto de gasolina no lugar, e a boate ocupava o andar de cima. Sérgio Porto costumava brincar que “o cliente enchia o tanque do carro embaixo e a cara em cima”. E, quase que invariavelmente, tinha razão. A casa abria às dez da noite, e os shows começavam pontualmente à uma da madrugada. A procura era enorme, o lugar vivia lotado e o clima era meio de cabaré. Espetáculos de revista predominavam, mesclando o teatro convencional com música e comédia de costumes, estrelados por mulheres belíssimas, vedetes como Marivalda, Marina Montini, a argentina Poche Grey, Esmeralda Barros, Aizita Nascimento e Lady Hilda. Vivia-se um tempo de mudanças e inseguranças. Com o surgimento dos travestis, um novo e inusitado tipo de vedete aparecia. Isso em plena ditadura, período obviamente contraindicado a transgressões. Machado temia que suas relações com o governo anterior pudessem atrapalhar os negócios. Ainda assim, arriscou na montagem do Pussy Cats. À procura de nomes, o de Rogéria foi indicado pela atriz Irene Ravache, que a conhecia desde os tempos de maquiador na TV Rio. Devo muito a Irene, não posso esquecer. Me lembro de uma sessão de maquiagem em que fiz nela um olho à la Greta Garbo. Ela ficou deslumbrante. Era uma mulher bonita de tudo, com um coração de ouro. Seu marido, na época, o Hiram, também era muito meu amigo. Era técnico de luz e foi o iluminador do show no Fred’s. Quando eu entrava, vestida de Marilyn, como a personagem Lolita, e cantava “My Heart Belongs to Daddy”, de Cole Porter, Hiran me jogava todos os holofotes, e eu me sentia nas estrelas. Machado pensava em investir em astros internacionais e, volta e meia, convidava artistas de renome. Como já havia acontecido com o Ivaná (Ivan Monteiro Damião), bailarino francês, filho de portugueses. Outra dessas atrações foi a transexual francesa Coccinelle (Jacques Charles Dufresnoy), a mais famosa da época. Rogéria ficou sua amiga e, anos mais tarde, iriam se encontrar em Barcelona e Paris. Na verdade, Carlos Machado andava precisando de uma atração. No show já estavam confirmadas as atrizes Lilian Fernandes, Zélia Martins, Suely Franco e Rossana Ghessa. A indicação de Rogéria sofreu, de sua parte, certa rejeição. Mas acabou resignado, muito em função de sua mulher, Gisela, adorar Rogéria. Sempre dizia ao marido que mandasse todas embora e ficasse só com ela, que era sozinha um espetáculo. No ensaio do Pussy Cats, eu tinha um número de charleston. Para poupar minha voz, resolvi não cantar nos ensaios. Machado não gostou e mandou cortar o número: “Sem ensaio, não canta.” Colocou a dançarina Marlene Barroso no meu lugar. Mas foi até melhor. Na estreia, fiquei só com o número final e entrei me apresentando: “Meu nome é Rogéria e estou louquinha...” Depois cantei a versão em português de “My Heart Belongs to Daddy”, o mesmo número que Betty Faria tinha feito em 1963, no show Xica da Silva. No final a crítica destacou: “Com um número apenas, Rogéria rouba o espetáculo!” Machado teve que me aturar mais quatro anos. O show As Pussy Pussy Cats seria um dos maiores sucessos da Boate Fred’s. Como registro, a participação do conjunto Os Originais do Samba lançando o famoso “Samba do Crioulo Doido”, que se transformaria num grande sucesso de Sérgio Porto. Sérgio foi um grande admirador de Rogéria. Nos ensaios do espetáculo, ela o via sempre mexendo com o estilista de moda Dener, a quem chamava de “bicharoca”. Rogéria não conseguia disfarçar seu pânico: se com o Dener era assim, imagine com ela... Mas Sérgio a tranquilizava: “Não tenha medo, é só brincadeira. Não olho você nem como homem, nem como mulher, para mim você é artista.” No começo tinha pavor do Sérgio e de suas brincadeiras, mas logo fui vendo que ele era respeitador, bem simpático, e sempre que podia me elogiava. As pessoas comentavam, inclusive, que era demais o carinho dele por mim. Saímos em algumas ocasiões e me diverti bastante com ele, sempre alegre e com aquela sua maluquice genial. Ficava envaidecida quando ele dizia que confiava no meu talento para resolver todos os textos que escrevia para mim. Depois do Pussy Cats vieram Máquina de fazer doido e Deu a louca em Hollywood. No primeiro, um cantor/ator prometia: era Ary Fontoura, que trazia para o espetáculo a experiência de intérprete de músicas românticas em bordéis de Curitiba, sua cidade natal. Outra atração era Amândio, agora comediante assíduo dos teatros de revista. Rogéria acabou ganhando mais números e se destacando numa paródia sobre Dener. Uma das melhores partes do show era quando Rogéria cantava “Nabucodonosor”, composta por Sérgio Porto, especialmente para ela: NABUCODONOSOR Nunca mais quero sair fantasiado Nunca mais quero brincar no Carnaval Nunca mais, ai, nunca mais serei vaiado Naqueles bailes do Municipal Foi no ano passado, eu me fantasiei, imaginem vocês Fui pra lá carregado, todo enfeitado, com mil paetês Com miçangas e vidrilhos, apliques, lantejoulas Bordados eu tinha até mesmo nas minhas ceroulas Quantas noites tive que ficar acordado Quantas noites eu cheguei mesmo a passar mal Quantas noites eu caprichei nos meus babados Pra quase ir em cana no final Começou o desfile, a fofoca comia em pleno salão Sonho de Messalina, não sabe de quem, levou um bofetão Esplendor Renascentista foi desclassificado Aí deu um pulo pra cima e caiu desmaiado Foi então que desisti de desfilar Foi então que abandonei a passarela Foi então que começaram a me estranhar E o povo já gritava, prende ela! E o povo já gritava, prende ela! Terminou o desfile, eu só não chorei porque não sou mulher E mesmo que fosse, eu nunca seria como uma qualquer Fui pra minha casa curtindo a minha dor Rasgado e amassado de Nabucodonosor Sérgio escreveu para a entrada da marcha: “Uma homenagem à turma do terceiro sexo, já quase passando para segundo.” A letra era uma sátira aos desfiles de fantasia, em particular os do Municipal, com seus extravagantes personagens. A censura não permitiu o título original, “Marcha da bicha louca”, por isso a canção foi gravada pelo Quarteto emCy como “Nabucodonosor”. Em Deu a louca em Hollywood, Rogéria dividia os holofotes com Lilian Fernandes. Exigência de Machado, Rogéria se revezava em várias estrelas, em trocas rápidas de figurino, com muitas joias, perucas e vestidos caros. Entrava de Jean Harlow, a seguir Carmen Miranda, uma deslumbrante Pola Negri, fechando como Marilyn Monroe. Numa dessas apresentações, o famigerado delegado Deraldo Padilha – que perseguia aqueles que portassem calças justas, botando um limão na cintura que tinha de descer até o pé – foi ao Fred’s e, bem ao seu estilo, num rompante homofóbico e abusivo, exigiu de Machado a saída de Rogéria: “Eu não quero esse travesti aí. É mau exemplo.” O bafafá chegou ao conhecimento de Dona Marina (Marina de Almeida Brum Duarte), da Divisão de Censura de Diversões Públicas. A censora alertou Carlos Machado que, se Rogéria não voltasse a trabalhar, a casa seria fechada. No final, com esse apoio oficial, Rogéria continuou no palco. TEATRO RIVAL Em meio a toda essa agitação e sucesso no Fred’s, Rogéria foi convidada por Gomes Leal para participar do espetáculo que ia ser montado no Rival, reunindo a nata dos travestis da cidade. Foi uma sensação indescritível ver meu nome estampado no letreiro do fantástico Teatro Rival, coração da Cinelândia, rua Álvaro Alvim, 36. Me deu um arrepio e um frio na barriga. Era que ali eu me sentia no paraíso. A verdade é que ninguém é vedete pra valer sem passar pelo palco do Rival. O pessoal que ia ao Fred’s era esnobe e tinha vergonha de aplaudir forte. Mas no Teatro Rival era a glória, o melhor público do mundo. O próprio conceito do teatro de revista era “passar em revista” os principais acontecimentos do momento. Um pouco de humor, bastante sátira política, piadas de duplo sentido em profusão, boa música e, principalmente, mulheres bonitas. O Rival, nos anos 1960, recebeu as maiores vedetes da cidade, como Virgínia Lane, Elvira Pagã, Mara Rúbia, Luz del Fuego. Grandes artistas começaram as suas carreiras na revista, como Grande Otelo, Oscarito, Agildo Ribeiro e Dercy Gonçalves. Com a censura do novo regime, a partir de 1964, o gênero começou a entrar em declínio, sendo, em parte, revivido pelo inesperado surgimento dos travestis no lugar das antigas vedetes. A atriz Ângela Leal, que depois herdaria do pai a administração do Rival, explica o ressurgimento do teatro de revista com os espetáculos de travestis: “Quando o teatro de revista estava por baixo, em total decadência na época da ditadura e da censura, foram Rogéria e os travestis amigos que mantiveram e preservaram o Teatro Rival, o gênero da revista, com glamour, elegância e beleza, fazendo até parte da nossa contracultura.” Devido a seu compromisso com Machado, Rogéria apresentava-se somente na parte final do show, e de lá seguia direto para o Fred’s. Os shows do Rival eram de terça a domingo, sendo que quinta-feira havia ainda matinê. Entre 1967 e 1968, Rogéria participaria de três montagens no Rival. Eram espetáculos ousados, usando e abusando de um humor satírico, com muita improvisação e luxo. O primeiro, Vem quente que estou fervendo, ainda fazia parte dos shows com títulos baseados nas letras de músicas de sucesso, principalmente da Jovem Guarda, como Papo firme é pra mulher ou Elas são tremendonas, uma ideia do proprietário da casa, Gomes Leal. O show marcaria a estreia dos travestis no centro da ribalta, com direção de cena a cargo de Henrique Delff, famoso por suas coreografias nas luxuosas encenações da Praça Tiradentes. O destaque era a interpretação de Rogéria para “Viola enluarada” (Marcos e Paulo Sérgio Valle), elogiada pela crítica, merecendo uma citação de Jaguar no Pasquim. Outra curiosidade era que o programa da peça, além dos créditos de praxe e do minicurrículo dos travestis, trazia uma espécie de prólogo, destacando o travestismo, enfatizando que a arte não tinha cor, nome nem sexo. O argumento frágil com o fito de justificar a arte das “meninas” perdia-se no discutível palavrório: “... uma arte toda especial, o se conseguir transformar água em vinho, também, o é, com todo o respeito e amor, milagre mudar o camarim para o palco, o homem na mulher. Todos podem discordar, todos devem respeitar. Só somos gente na proporção que fazemos dos outros gente.” No final, em letras maiúsculas, como um pedido de aceitação subentendido, o grito de alerta: “TRAVESTI É ARTE, TRAVESTI É GENTE!” Com certeza ainda haveria as vozes dissonantes da nova moda, e o travestismo não seria de todo bem-aceito, apesar da curiosidade que despertava. A censura mantinha-se presente. Para se ter uma noção, havia na primeira fila do palco do Rival três cadeiras reservadas aos censores. Quando eles apareciam, Gomes Leal avisava que, naquela noite, não se poderia falar em política, nada de cacos com segundas intenções ou críticas veladas ao regime. Várias vezes a censura proibiu os espetáculos, e os travestis tiveram que arrumar as suas coisas e se retirar do local. Depois, com a liberação do show, voltavam com suas malas de roupas. Isso porque não podiam sair na rua vestidos de mulher, somente no Carnaval, ainda assim somente se aparentassem ser homens com roupas femininas – se parecessem mulheres perfeitas seriam presos. Ainda havia o dinheiro curto, já que os travestis ganhavam menos do que gastavam com os figurinos. Mesmo assim, as “meninas” seguiam no seu ritmo e ditavam uma moda que ameaçava se firmar. Tanto que o sucesso do primeiro espetáculo justificou a criação de outro, mais trabalhado e adornado: Oh, que delícia de bonecas. O script era de Meira Guimarães, a coreografia de Delff e a direção musical de Edson Menezes, que também assinava a trilha sonora. A tendência era o público homossexual se identificar e ver no show exemplos a serem seguidos. As “bonecas” eram: Rogéria, Marquesa, Shirley Montenegro, Gisela, Georgia Bengston, Suzy Wong, Fabette Shuiller, Manon, Helô, Cassandra, Veruska, Wanda, Jaqueline Dubois, Eloína, Rita Moreno, Darla, Jane Di Castro, Guildá, Françoise e a apresentadora Monique. Rogéria entrava na parte final do espetáculo, cantando “Daddy” e, depois com a participação de todo o elenco, no número de encerramento “Doll Fashion Show”. O terceiro espetáculo de Rogéria no Rival foi Bonecas em ritmo de aventura. O modelo era igual ao anterior, apenas com a mudança na direção musical, agora sob o comando do maestro Guary Maciel (mas com os mesmos músicos). A direção era do próprio Gomes Leal. No letreiro do teatro, a chamada: “Rogéria – Rainha do Travesti.” O elenco mantinha Marquesa, Shirley Montenegro, Georgia Bengston, Fabette Shuiller, Veruska, Eloína e Darla, entrando Ly Ribachea, Nádia, Natalie, Karina, Dorianne, Ellis, Aloma, Danielle, Yeda Brown e o apresentador Abílio Campos. Rogéria cantava “Roleta da sorte”, com Natalie e Ellis, e fechava, com o elenco todo reunido, com “As estrelas do mundo” e “Rio primavera”. Nesse terceiro show no Rival, pela primeira vez, houve um choque de vaidades no elenco. Eu vinha notando que Darla procurava ficar sempre na frente, toda colocada, com caras, bocas e sorrisos, querendo aparecer mais que as outras. Aquilo foi me incomodando. Numa noite, no meio do show, peguei-a pelo braço e a coloquei atrás, trocando de lugar com Karina, que era bem mais bonita e com sentimento de equipe. Se dependesse de mim, não ia permitir de jeito algum uma disputa de egos no meu grupo. As “meninas” estavam ganhando destaque, e isso era incontestável. No Carnaval de 1968 foi curioso notar como o Baile dos Enxutos (baile de rapazes com roupas femininas) tinha tomado vulto. Um fenômeno estranho acontecera, nas barbas da ditadura. Rogéria era a grande vedete do Carlos Machado. A tolerância social aparente apontava para o florescimento dos travestis que agora frequentavam livremente todos os bailes e blocos carnavalescos. A liberação de homens vestidos de mulher, um modismo antigo e irreverente, recebia novos adeptos, e as fantasias agora eram mais caprichadas e bem-acabadas. De certa maneira, era uma fase que traduzia umreflexo de pequena abertura por parte dos militares. Logo depois a censura recrudesceria sob a terrível forma do Ato Institucional No 5, fechando o Congresso e, por tabela, qualquer voz dissidente do regime. Uma luz que se apagava no final do túnel. Havia uma explicação para isso. No começo dos anos 1960, com o boom do gênero, os travestis somente eram vistos nos bailes de Carnaval, nos clubes gays e em shows. A partir de 1969 começou a ficar notória a tendência de proliferação deles pelas calçadas das cidades grandes, vendendo o corpo em troca de dinheiro. Ainda havia a ideologia moralista e a censura do governo Médici, que desencorajavam de vez essas apresentações. Com isso, os militares passaram a vetar peças que, de alguma forma, abordassem o tema da homossexualidade. Era natural, então, que o número de produções com travestis viesse a cair progressivamente. SEGUNDA PAIXÃO “Eu posso fazer coisas que uma mulher não pode, porque sou homem.” Nesse clima, em plena vigência da censura e repressão, aconteceria a segunda grande paixão de Rogéria: o policial da Scuderie Detetive Le Cocq Mariel Mariscot. Além de se apresentar no Rival e no Fred’s, Rogéria, em plena forma, fechava a madrugada, às cinco da manhã, participando de shows nas boates da Zona Sul, notadamente no Beco das Garrafas, berço da bossa nova. Como nos teatros ela só recebia o salário no fim do mês, depois das apresentações ia de bar em bar, onde recebia seu cachê na hora. Um dos locais onde batia ponto era a Boate Holiday, na avenida Atlântica. É dessa época sua amizade com um crooner que também se apresentava por lá, cantando em inglês e com o pseudônimo de Johnny Bradfort. Tempos depois seria mais conhecido como Tony Tornado. Tony foi um dos primeiros a cantar soul music por aqui. Era um craque. Ficamos amigos e cansamos de sair juntos na madrugada. Uma ótima companhia, me chamava sempre de Seu Astolfo. Numa madrugada, com muita chuva, o show seria no Beco das Garrafas, na Boate Little Club, produzido pelo coreógrafo e amigo Denis Duarte. Precisando de grana, Rogéria apareceu por lá. Antes de eu me apresentar, Denis me pediu, pelo amor de Deus, que eu olhasse para qualquer um na plateia, menos para o Mariel, para não arranjar problema. Pronto, não deu outra: o homem ficou na primeira fila. Ali começou tudo. Na minha estreia no Little Club ele estava numa mesa com várias mulheres. Foi inevitável que eu me sentisse atraída. E eu também sentia o olhar dele sobre mim. Ele voltou algumas vezes, até que, numa noite, já de madrugada e chovendo horrores, o espanhol Silva, um dos sócios da boate, ia me levar na Praça XV para eu voltar a Niterói. Um carro encostou. Era Mariel: – Vem cá, quando é que eu vou levar a senhorita? – Agora – disse Silva, me mandando sair e entrar no carro de Mariel. Paramos na Praça XV e ficamos conversando até as nove da manhã. Falamos da vida, de sentimentos, do que pensávamos sobre as coisas… E eu vestida de garoto! Fui pra casa completamente enlouquecida. E aí começou essa loucura maravilhosa, e não demorou para eu me apaixonar. Passamos a nos ver às escondidas. Eu sofria muito com isso, pois ficava sempre relegada a segundo plano e, nessas horas, me sentia angustiada. Além disso, ele era muito possessivo. Eu já era estrela no Carlos Machado. Perto do fim do ano, estava com ele e seus amigos policiais na Boate Pink Panther, em Copacabana. Ele saiu para dançar com uma garota. Não tive ciúmes, era uma mulher. Foi quando um policial me tirou para dançar. Ele passou por nós e me jogou na cabeça uma taça de champanhe. Ele então saiu e subiu com a menina para o apartamento ali perto que dividia com outro policial, Tigrão. Saí arrasada, fui chorando da rua Rodolfo Dantas até Niterói. Ficar com a menina vá lá, mas me atirar aquela taça, na frente de todo mundo... Quando cheguei, minha mãe abriu a porta e eu caí em seus braços. – O que foi, meu bem? Você não pode sofrer assim – tentou me consolar. Ela me deu um calmante, e eu apaguei. Não o procurei mais e não atendi a suas chamadas. Quando chegou a noite de réveillon, eu estava no Fred’s. Na praia, as pessoas preparando suas oferendas, me deu uma tristeza profunda, sem explicação. Quando voltava à boate, o porteiro me avisou que tinha uma encomenda pra mim. Eram flores, uma caixa com tulipas e um bilhete: “Com amor, Mariel.” Eu perdoei tudo e voltamos. Rogéria já havia se casado uma vez e tivera seu grande amor, Múcio. Como vedete, conhecera duas paixões fulminantes: Vadico, um bonitão e milionário paulista, e Mariel, um badalado policial carioca. A diferença era que, com Múcio, com quem morara, tivera carinho, sexo e orgasmo. Já com suas paixões era um fogo terrível, mas igual dificuldade de obter prazer. Era como se, com Múcio, aparecesse o Astolfo – centrado, romântico e amoroso – e, com Vadico e Mariel, surgisse a Rogéria – frenética, vaidosa e sem amarras. Como no clássico de Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro. Tanto que o término da relação com Múcio fora em decorrência da escolha entre o médico (o amor deles) e o monstro (a carreira dela). Rogéria passou a entender melhor que, sentimentalmente, a dicotomia entre Astolfo e Rogéria deveria ter um fim. Depois do amor verdadeiro e das paixões alucinantes, Astolfo agora daria as cartas, no comando, segurando a onda de Rogéria, o monstro com sede de desejos impossíveis. Eu enlouquecia com as minhas paixões, mas, quando chegava a hora da cama, era uma merda! Brochada total! Lembro da primeira vez com Mariel que foi a melhor e uma das únicas que tive realmente algum prazer. Ele tinha várias mulheres, eu sabia e não ligava. Até já fizera um show no aniversário de uma namoradinha dele, a Aninha. Não tinha ciúme delas, mas não sabia o que elas pensavam de mim. Uma noite estava com ele no seu apartamento da Rodolfo Dantas, quando ouvimos a campainha tocar insistentemente. Ele me mandou ficar no banheiro. Aí, entra uma mulher transtornada, a Suely Pinto, que era louca por ele: “Você é um viado, Mariel. Quem transa com viado é viado!” Começaram a discutir, e ela pegou a arma dele e ameaçou: “Eu sei que ela está aí. Eu vou matar essa bicha!” Imediatamente pulei dentro da banheira, fechei as cortinas de plástico e comecei a rezar uma Ave-Maria. Nisso, escuto uma bofetada. Mariel havia conseguido desarmar a Suely, mandando a louca embora. Nessa noite tivemos sexo pela primeira vez, e ele gostou. Homem gosta muito de bunda, uma coisa impressionante. Deve ter sido bom, porque do jeito que eu estava apavorada, com o cu apertadinho, deve ter ficado bem mais gostoso. Mariel se dizia totalmente heterossexual e nem imaginava ver o pênis de Rogéria. Seria o fim de tudo. Rogéria sabia disso e se virava para que isso não acontecesse e estragasse o encanto. A tática usada com Mariel para meu pau nunca aparecer eu tirei da cena de Carroll Baker, da personagem Babydoll Meighan, no filme Boneca de carne, de Elia Kazan, roteiro de Tennessee Williams. Na cena de sedução de Babydoll, ela colocava uma almofada entre as pernas, para ficar sensual e provocar o amante. Passei a fazer isso sempre, uma almofada, um travesseiro, uma garrafa de vinho, qualquer coisa. Rogéria nunca se envolveu ou quis saber da vida profissional dele. Tinha noção de que o namorado era um policial da pesada, mas nunca lhe ocorreu conversar sobre nada relacionado a isso. O namoro com Mariel durou mais um ano. Na verdade, Rogéria sabia que aquele caso, uma espécie de devaneio, estava fadado a terminar a qualquer momento. Tratava-se bem mais de uma questão de vaidade e afirmação pessoal, afinal ele tinha dispensado tantas mulheres bonitas para sair com ela. Um dia, saí com um ator, o Milton Rodrigues, que ia me dar uma carona. Uma bicha viu e foi fazer fofoca. Na madrugada seguinte, Mariel apareceu no Litlle Club com Lorena Capelli, um travesti que me perseguia, desde os tempos do Vadico. A bicha era linda, tinha luz própria, mas só queria viver atrás do meu brilho, fazia tudo pra ser eu, imitava o meu jeito, o meu cabelo e, claro,queria o meu homem. Na hora que vi os dois, na minha cabeça, pensei: “Você acabou de me perder!” Fiquei arrasada alguns dias, mas logo superei. Na saída do Rival para o Fred’s, um menino me ofereceu carona. Chamava-se Nei, 18 anos, se dizia louco por mim, era lindo de morrer, rico e o pai trabalhava na Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento). Passamos a nos ver mais. Ele sempre ia me buscar no Rival. Na semana seguinte, encontrei Mariel. – Você me esqueceu? – ele quis saber. Me mantive firme e respondi: – Claro que não, mas agora somos só bons amigos. Mariel acabou sabendo do Nei e ameaçou quebrar o carro e a cara dele. O menino resolveu enfrentá-lo, e eu falei: – Não se meta nessa, vamos sair logo daqui. Mais uma semana e eu havia esquecido completamente o Mariel. E nunca mais nos vimos. Mariel Mariscot teve prisão preventiva decretada, sob a acusação de pertencer ao Esquadrão da Morte, e mais tarde seria expulso da Scuderie Le Cocq. Na década de 1970, teve uma filha, Marielsa, do casamento com a atriz Elsa de Castro. Namorou ainda a atriz Darlene Glória e a modelo Rose di Primo. Foi morto em 1981, no Centro do Rio de Janeiro, quando estacionava o carro para uma reunião com bicheiros. Lorena Capelli viajaria à Europa e faria sucesso na Espanha. Resolveu fazer a operação para mudança de sexo. Levada a uma nova cirurgia (alongamento do canal vaginal), veio a falecer por complicações graves no pós-operatório. Nei, o garoto de 18 anos, sempre que encontrava com Rogéria na saída do Rival lhe dava cortes de carne, que o pai devia conseguir pela Sunab: filés, alcatra, maminha, cordeiro. Durante quase dois meses nunca faltou carne na casa de Rogéria em Niterói. Aquele menino me trazia tanta carne que quase virei vegetariana... ÁFRICA PORTUGUESA “Conheci homens lindos. Era uma caçadora de sexo.” A TV Excelsior convidou Rogéria para fazer um programa-piloto com o sugestivo título Quem tem medo de Rogéria?. Na pauta, variedades, notícias de bastidores, programação cultural e amenidades. Rogéria que, até então, havia passado estranhamente incólume pelo crivo dos censores, dessa vez não escapou. O programa foi retirado, sem maiores explicações, da grade da emissora. Nessa época Rogéria fazia uma participação na comédia Enfim sós... com o outro, direção de Wilson Silva e argumento de João Bethencourt. A história girava em torno de dois gêmeos (Augusto César Vannucci), um arrivista e um simplório garçom, e as confusões previsíveis com suas respectivas namoradas (Leila Santos e Rossana Ghessa). Como registro curioso, o beijo técnico de Rogéria em Vannucci. Grande Otelo e Annik Malvil também tiveram participações especiais. A seguir, Rogéria atuou em O homem que comprou o mundo, de Eduardo Coutinho, que, mais tarde, se firmaria como respeitado documentarista. Produzido por Zelito Viana e com música de Francis Hime, o filme é uma curiosa sátira política, com passagens que remetem ao glauberiano Terra em transe. No elenco, Flávio Migliaccio, Marília Pêra, Hugo Carvana, Raul Cortez, Jardel Filho, Cláudio Marzo, Fregolente, Milton Gonçalves, entre outros. Rogéria fazia uma agente secreta. Havia uma cena em que carregava Migliaccio nos braços, o que quase lhe causou uma distensão muscular. A trama, passada numa sociedade fictícia, era sobre um cidadão comum que recebia um cheque milionário que podia pôr em risco a economia do país. Lançado no ano do AI-5, em um contexto crítico, a real intenção foi debochar da Guerra Fria e do imperialismo e cutucar a ditadura militar. Ousado para a época, o roteiro, no entanto, ficou demasiadamente restrito à cadeia onde estava o personagem de Migliaccio. Destaque para Marília Pêra bem jovem, excelente no papel da noiva (Rosinha), e para a cena da hilária partida de futebol entre os guardas, que retrata bem o grau de alienação reinante. Como estrela do Carlos Machado, Rogéria saiu na capa da Revista do Rádio e foi entrevistada para a Capricho por Gilberto Luiz di Pierro, o Giba Um, que destacou sua incrível e agitada vida de transformista: de dia como homem e à noite botando peruca e se maquiando para entrar em cena. A matéria era ilustrada com fotos do show Deu a louca em Hollywood, com Rogéria como Marilyn e ao lado das bailarinas, uma delas, Suely Antonelli, mãe da atriz Giovanna Antonelli. O ambiente político sombrio e o glamour do cenário artístico internacional faziam Rogéria começar a pensar em sair do país. Numa conversa com a atriz Glauce Rocha, ouviu dela o conselho: “Você já fez Carlos Machado, que é o Zig Follies brasileiro, está na hora de fazer um espetáculo no exterior.” Eu adorava a Glauce Rocha, uma flor delicadíssima. Quando a maquiava na TV Rio, notava que ela ficava na cadeira, preocupada, tensa, pálida, murmurando seu texto. Quando eu terminava, ela colava suas mãos nas minhas. Suas mãos ficavam gélidas porque dentro de alguns minutos iria fazer ao vivo uma cena. Glauce parecia estar na Finlândia. Vivia me dizendo: “Rogéria, seu lugar não é aqui, você precisa ir para Paris.” Como recusar a sugestão de uma grande atriz como Glauce? Coincidentemente, o coreógrafo e bailarino Denis Duarte havia sondado Rogéria sobre a possibilidade de ela participar de um show na África portuguesa. Em novembro de 1969, Rogéria assinou contrato para fazer sete apresentações em Angola, no espetáculo Sua Excelência o Samba. De mala e cuia, Rogéria viajou como estrela da companhia, dirigida por Denis e integrada por numeroso elenco, para tentar a carreira internacional. Os anos 1970 prometiam. Em Angola, Rogéria ficou hospedada na ilha dos Padres, na baía do Mussulo, ponto turístico com praias paradisíacas. O show estava marcado para o night club Tamar, em Luanda, e trazia uma seleção mais que heterogênea de extratos musicais e clichês do gênero samba-exportação. No palco, revezavam-se muitas mulheres de biquíni, uma dupla carioca de comediantes (Ari Lopes e Glória Norton), o conjunto Los Únicos, um músico (Ely Cavaco de Ouro), uma dançarina (Salambô), uma cantora (Ronny Vally) e até uma fadista (Gina Guerra). Na estreia, Rogéria entrou logo após Ronny cantar “Ave-Maria no morro”, de Herivelto Martins, numa interpretação que chamou a atenção. O crítico de um jornal local exaltou a extensão vocal de Ronny e desbancou Rogéria, dizendo tratar-se apenas de um travesti bonito e nada mais. Rogéria ficou arrasada. Ela ainda não tinha entendido a lógica do público angolano. Denis providenciou para que, no segundo espetáculo, houvesse uma mudança na entrada dos artistas, e Rogéria pôde render mais a cada espetáculo, inclusive fazendo números de sapateado, dança que começara a aprender e que estava bem ao gosto dos angolanos. Certo dia, na saída do camarim, já sem peruca e maquiagem, um senhor de terno estava à sua espera. Era o dono da Paris-Match de Angola. Tinha adorado o show e marcou uma entrevista com ela para sua próxima edição. A reportagem de capa, com oito páginas, renderia frutos, e Rogéria passaria a ser vista com outros olhos, admirada e requisitada para novas entrevistas. Passados sete meses e finda a temporada da montagem de Denis, Rogéria recebeu o convite para um show-solo na então capital de Moçambique, Lourenço Marques (atual Maputo). Durante os ensaios, começou a perceber que o ambiente da casa noturna não era dos melhores. Nas primeiras apresentações, comprovou sua suspeita: era obrigada a ficar na mesa e beber com os fregueses. Rogéria demonstrou sua insatisfação e, para evitar maiores confrontos e prejuízo, o dono do lugar conseguiu um contrato para que ela se apresentasse na Boate Primavera, na cidade de Beira, capital da província de Sofala, segunda maior cidade do país depois da capital. Ao menos o ambiente era calmo. A casa era de espetáculos musicais, e a plateia, mais respeitosa. Rogéria conheceu uma japonesa que se apresentava por lá, Lima Kim, que cantava com o timbre de voz da Shirley Bassey. As duas ficaram amigas e trocaram ensinamentos. Kim tinha longa experiência com o público luso-africano, enquanto Rogéria tentoufazê-la melhorar a postura no palco. Essa cantora japonesa enlouqueceu com a minha mise-en-scène. Passei para ela todo o sentimento de palco e mostrei a descida de mão, como a que Fanny Brice de Barbra Streisand fazia em “His Love Makes Me Beautiful”, de Funny Girl. Ela também me ajudou bastante com a colocação de voz e seleção de repertório que os africanos mais gostavam. Foi então que Rogéria recebeu uma proposta para se apresentar na Boate Moulin Rouge, uma das melhores casas noturnas de Beira e que lhe pagaria três vezes mais. Quando procurei o dono da boate pra informar que ia trabalhar na Moulin Rouge, ele ficou uma fera e me deu um ultimato: “Daqui você não sai. Ou volta pro Brasil ou vai pra PIDE.” Entrei em pânico, as coisas lá não funcionavam como eu pensava. A PIDE era a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, do governo Salazar, a temida polícia das fronteiras, responsável pelos serviços de imigração e passaportes. Fiquei desesperada. Me lembrei de um delegado de polícia que tinha assistido ao meu show e depois me visitado no camarim. Na manhã seguinte lá estava eu na delegacia de Beira. O tal delegado me recebeu. Eu chorava de nervoso. “O que a menina Rogéria está aqui a fazer?”, ele quis saber. Contei tudo, abri o jogo. Ele era meu fã e resolveu a questão na hora, pelo telefone. Eu estava livre para trabalhar na Moulin Rouge e longe da ameaça da PIDE. A maioria dos artistas desses shows morava na própria boate. Cada um tinha o seu quarto. Ao menos nessa nova casa o quarto de Rogéria era decente. Pequeno, mas limpo e bem arejado. Rogéria estava mais animada. No roteiro do espetáculo ela se apresentaria antes de uma dupla inglesa, atração que encerrava a noite. Só que o sucesso de Rogéria foi tamanho que, a pedido da própria dupla, ela passou a encerrar o show. De fato, apresentar-se depois do impacto causado pela aparição de Rogéria seria contraproducente. A Moulin Rouge começou a lotar, e as performances de Rogéria chamavam a atenção. A cada noite apareciam novos fregueses e, com eles, a nata da sociedade local. Na Moulin Rouge conheci os portugueses mais lindos do mundo. “Fiz” todos eles, o máximo possível. Eu era uma caçadora de sexo. Em Moçambique não havia prostituição, e o apetite era imenso. Interessante que não fiquei com nenhum africano negro. Eles eram raros por lá. Naquele tempo pude presenciar inúmeras cenas de racismo. Muitos eram barrados na boate. Rogéria mandava sempre dinheiro para sua mãe pelo correio. Era arriscado, mas nunca houve problema. A temporada em Beira estava chegando ao fim, e a grana começou a ficar curta. O dono da Moulin Rouge perguntou se ela tinha interesse em se apresentar numa feira em Zambezi, distrito de Zâmbia. De início, Rogéria recusou. Já ouvira dizer que ali era uma região de conflitos étnicos. O dono me pediu e disse da importância da minha presença lá, então perguntei quanto me pagariam para fazer o show: “Não te pago mais de cinco contos.” Não representava muito, mas, sem outras perspectivas, aceitei. Quando Rogéria chegou, soube que os músicos contratados para o evento já haviam escutado as fitas, então não foi necessário ensaiar muito. Tinha bastante gente na feira, de quase toda a África, Rogéria se apresentou e foi um sucesso estrondoso. Uma ovação inesperada. Quando terminou, o gerente chegou pra mim e disse: – Faça outra vez o show! – Mas como assim? – Faça outra vez o show, igualzinho! Pela primeira vez na vida tive de fazer o mesmo show duas vezes para a mesma plateia. Foi o bis mais longo da minha carreira. O hotel onde Rogéria estava hospedada ficava bem afastado do centro. Tinha uma decoração rústica, onde predominava o exótico. Exótico demais. Rogéria achou aquilo um tanto esquisito. Fiquei num hotel bem estranho, muito longe de tudo. Em volta não havia nada, só natureza. Fazia calor, e resolvi sair, arejar um pouco, dar uma volta no lugar. Na hora tive medo de um leão vir me comer. De repente me dei conta de onde estava. E me apavorei: “Querida, você está na África, se um leão surgir aqui, você está fodida!” Voltei correndo, entrei no hotel e tranquei a porta do meu quarto. Não fui mais nem na portaria! BARCELONA “Não sou uma transexual, sou uma artista que se sente mulher.” De volta a Beira, Rogéria começou a pensar na proposta que recebera de Raul Dubois, empresário brasileiro radicado na Espanha, para uma série de apresentações em Barcelona. Uma proposta tentadora, ainda mais que sua temporada em terras africanas já se estendera mais do que o esperado. Rogéria comprou a passagem aérea para Barcelona, com escala em Lisboa, naquela mesma semana. Fez as malas, tomou as vacinas, despediu-se dos amigos que fizera, pegou seus traveler’s checks, seus cacarecos e sonhos e partiu rumo à Europa. No aeroporto de Lisboa, quase perdeu a chamada do voo para Barcelona. Pegou um táxi e seguiu para o endereço fornecido por Raul: Boate Gambrinus, na entrada de Las Ramblas, casa onde já haviam se apresentado travestis badalados, como Maria de La O e Violeta La Burra. Ao chegar, foi recebida friamente por Raul, que pagou a corrida do táxi. A decepção estampada no rosto dele era clara: havia contratado uma estrela, imaginara encontrar uma louraça, glamourosa e bem-vestida, e não um homenzinho com jeito de lésbica. O constrangimento foi recíproco. Rogéria também se sentiu mal. Como explicar que era homem e que só se vestia de mulher para se apresentar? Instalada precariamente no quarto dos fundos da boate, começou a se arrepender da mudança. Pelo menos na África, se não fosse pela ameaça dos leões, estaria sendo mais bem-tratada. Um agravante: foi logo informada de que não daria para se apresentar na boate, já que, pelas leis franquistas da época, travestis somente poderiam trabalhar se mudassem de sexo. As estrelas da casa eram as transexuais Dodo Pigalle e Claudia La Mar. Para piorar, viu-se obrigada a cumprir algumas tarefas para o seu sustento. Eu fiquei uma semana lavando o banheiro da boate para poder pagar estadia e comida. Tinha de ser forte, mais uma vez. Eu pensava comigo que havia de me portar como uma atriz. Se está lavando vaso sanitário, é para poder sobreviver, você está na casa dos outros. Usei toda a minha capacidade de atriz dramática, coloquei umas luvas e lavei as latrinas imundas. Não posso ter nenhuma vergonha disso. Mas também não poderia se sentir feliz, afinal para uma pessoa que sonhava em conquistar os europeus com sua arte, o começo não poderia ser mais sombrio. Depois do décimo dia, recebeu a visita da amiga Brigitte de Búzios, que se espantou ao saber que Rogéria não estava trabalhando nos palcos e sim, nos banheiros. O porteiro explicava: “Acá no podrás trabajar, hay que tornarse mujer.” Rogéria pediu a Brigitte que intercedesse junto a Raul e pedisse que, ao menos, a ouvissem cantar. Raul concordou e ligou para o patrão, que marcou de passar na boate dali a uma hora. Rogéria vestiu-se rapidamente, colocou uma peruca e dirigiu-se ao palco, onde alguns músicos ensaiavam. Em pouco tempo percebeu que não inspiravam confiança. Naquela época não havia playback. Rogéria não falava espanhol e seu inglês era tosco. Desanimada, concluiu: “Esses caras não vão saber tocar nada.” O senhor Julio Rocamora, o patrão, tinha acabado de chegar, e Raul apresentou os dois. Rogéria decidiu na hora que cantaria sozinha, à capela. Escolheu “Hello, Dolly”, canção-título do musical homônimo, famosa na interpretação de Louis Armstrong. “It’s so nice to have you back where you belong, hello, Dolly, I say hello, Dolly...” Quando terminou, o senhor Rocamora já havia decidido: Rogéria começaria a trabalhar naquela mesma noite. Ninguém precisaria saber se era operada ou não. Tanto Dodo Pigalle quanto Claudia La Mar estranharam, tentando disfarçar uma ponta de despeito, ainda assim foram felicitá-la: “Muy buena, muy buena!” Certamente não sabiam que Rogéria mudaria, naquele lugar, a antiga concepção sobre os travestis. Com o sucesso, que veio rapidamente, Rogéria ganhou status e passou a contracenar comCoccinelle, a grande atração da Gambrinus. Coccinelle (Joaninha, em francês) fizera a vaginoplastia na famosa clínica do Dr. Georges Burou, em Casablanca. Rogéria e ela haviam se conhecido no Rio nos tempos do Carlos Machado. Não demorou e Coccinelle convidou Rogéria para morar com ela. Ficaram amigas e sempre saíam depois dos shows para comer pollo. Uma das especialidades de Coccinelle era a culinária, sabia cozinhar como poucas. Não à toa, Rogéria chegou a engordar seis quilos durante o tempo em que morou com ela. Conversavam muito em espanhol, e Rogéria assimilaria vários truques passados por ela sobre a profissão. Foi Coccinelle quem primeiro a aconselhou a tomar hormônios. Ela sabia de uma receita fabulosa que não tinha grandes contraindicações. Rogéria anotou, mas não teve coragem de iniciar o tratamento. Quem sabe um dia... Logo o sucesso de Rogéria pagaria seu preço. Informados de que havia um brasileiro que se apresentava como travesti, os policiais apareceram com uma intimação para que ele parasse de trabalhar. De peruca e maquiagem, homem não podia se apresentar. Eram determinações superiores. Rocamora tentou, então, convencê-la e lhe sugeriu uma operação de troca de sexo, acenando com a proposta de conseguir até um programa especial de televisão. Ela se tornaria a estrela da casa. “Rogeria, opera-te!”, disse, taxativo. Você acha que alguma vez na vida eu pensei em cortar o meu pau? Nunca. A mulher não é órgão genital, a mulher está dentro de mim. Canso de ouvir as pessoas encantadas com o meu movimento das mãos, uma coisa bem feminina. Minha altura é ideal para uma mulher, 1,68m, não tenho gogó, sem contar a minha presença em cena, meu physique du rôle, quando boto um saltinho 15 e fico enorme. Enfim, esse jeito de mulher ninguém me ensinou, nasci assim, não aprendi com ninguém. Não necessito de nenhuma genitália feminina. CARROUSEL DE PARIS “Um travesti precisa de inteligência e talento para saber que não é mulher de verdade.” Após seis meses em Barcelona, era a hora de Rogéria sair da Espanha. Não ia se operar de forma alguma. Sua amiga Valéria, que morava em Paris, sempre a chamava para ir para a capital francesa. Era o grande sonho de Rogéria. Dizendo a todos que, antes de se operar, ia tirar um fim de semana de folga para ver a neve em Andorra, fez sua mala e pegou o trem para Paris. Foram mais de 12 horas de viagem. Não tinha dinheiro para o avião. Valéria a esperou na Gare d’Austerlitz, uma das estações ferroviárias de Paris. Hospedou-se no Hotel Darcet e, por intermédio de Valéria, logo conseguiu um teste para entrar no seleto elenco do Carrousel de Paris, um templo do transformismo, onde trabalharam os travestis mais famosos, como Coccinelle, Zambella, Bambi, Fétiche, Gazelle, Triana e Capucine. Teve muita sorte ao ter escolhido uma canção hebraica folclórica, “Hava Nagila”, e o dono, Monsieur Marcel, judeu-árabe, aprovou-a na hora. Na noite de sua estreia no Carrousel de Paris, Rogéria teve uma ajuda inesperada. Trabalhava como garçom no local um ex-travesti, Rita del Oro, que, ao vê-la no teste, ficou admirado: “Rogeria, mi hija, yo te digo algo, he trabajado con Coccinelle, Moby, Kiki Moustic, y nunca he visto nada como tú.” Na hora, Rogéria não deu tanta importância ao entusiasmo do novo fã, mas, antes de o show começar, Rita foi para a porta da boate dizendo a todos que logo mais iria se apresentar ali uma artista especial, uma vedete de verdade. Nos camarins, ainda com roupa masculina, enquanto me arrumava, podia notar o olhar debochado das meninas. Nessa hora, só me lembrava da personagem Eve, de Anne Baxter, no filme A malvada. Fingi-me de morta e me preparei para a virada. Eu só tinha a peruca, Valéria me emprestara um vestido lindo, verde; me pintei, batom na boca, e coloquei um salto, e todos sabem que o salto dá um aplomb. Entrei em cena cantando em inglês na França. Foi um choque. Ganhei um prestígio que Chou-Chou, Câline, Cynthia, Gazelle, aquelas travestis lindas não tinham, o prestígio artístico. A partir dali começaram a me respeitar um pouco. Valéria e a turma foram para uma temporada no Japão, e Rogéria, já acertada com o Carrousel, ficou no Darcet. Deslocada, estranha, vestindo-se ainda como homem e se apresentando como mulher à noite, Rogéria conheceu uma adolescente francesa, Lulu, com quem ficaria bastante impressionada. A menina tinha 19 anos e era homossexual. Lulu era uma graça, tinha um cabelo curtinho, jeito másculo que me atraía. Uma mistura de Fellini e Salvador Dalí. Eu estava passando por uma fase carente, morando num hotel e começando a aprender a língua francesa. Ela dizia adorar minha maneira de andar. Tudo o que eu queria que um homem dissesse para mim, ela dizia. Mas na hora do sexo, a coisa não funcionou como esperávamos. Eu avisava: “Não me mostra os seus seios, Lulu, que eu vou brochar. Quando estava só nos beijos na boca, tudo bem, mas, na hora agá, acabava o romance. Eu falava para ela não me usar, me namorar, me beijar só nos lábios, não botar a língua, me fazer sentir cortejada, não me possuir. Mas não adiantou, o desejo venceu, ela me possuiu e tudo piorou. Não deu certo na cama, porque era sexo demais, dois de cada lado. É sabido que homens e mulheres têm diferentes respostas a estímulos sexuais. No início do relacionamento ambos têm desejos semelhantes, ou seja, espontâneos. Com o prolongamento da ligação, acentuam-se as diversidades. As mulheres passam a precisar mais de novos estímulos, como carinhos, falas erotizadas ou mesmo atitudes mais românticas ou sedutoras. No caso de Rogéria, ficava claro que sua persona sexual tendia para o feminino. Era ela, e não Lulu, quem mais necessitava desses incentivos externos. Astolfo podia ser homossexual, mas Rogéria pensava sexualmente como mulher. No passado, tivera seu maior relacionamento homoafetivo bruscamente interrompido pela dicotomia entre o amor-família e o brilho dos holofotes que sua carreira apontava. Depois, duas paixões fulminantes, porém fugazes. Em ambos começava a se delinear em Rogéria sua crescente filofobia, isto é, medo de se apaixonar e perder o controle de suas emoções e vir a ser rejeitada. A partir de Paris, iniciava-se efetivamente sua transformação de corpo e alma. Rogéria mudou-se para um hotel um pouco melhor, o Ódeon. Mas por pouco tempo, já que recebeu um convite do travesti Chou-Chou para morar em seu apartamento, na rue du Saucir, 32, Quartier Rome. Ela aceitou. Ficaram amigas e muito unidas. Quando conheci Chou-Chou, ela ainda não tinha feito a cirurgia de troca de sexo. Lindíssima, se parecia muito com a Michelle Pfeiffer. Era uma das mais bonitas que conheci, com olhos verdes que fascinavam. Sempre bronzeada, frequentava as praias da Tunísia para pegar cor. Très chic. Chou-Chou tinha mania de comprar roupas. Vestidos, botas, casacos e calças. Consumista ao extremo, depois de um tempo enjoava dos objetos e os vendia a Rogéria, quando não a presenteava. Ela vivia insistindo para Rogéria melhorar sua aparência, já que a concorrência em Paris era enorme, e os travestis, todos produzidos. Chou-Chou ponderava: “Você, Rogerriá, tem muito talento, mas no fim da noite termina sempre sozinha porque não tem cabelo, não tem seio, não tem sexo, é totalmente indefinida!” Rogéria, então, passou a cogitar a hipótese de mexer na sua imagem. Conheceu Dimitri, especialista no método da eletrólise, depilação elétrica em cada folículo piloso que eliminava os pelos e impedia seu crescimento. Era doloroso, cada folículo levava de três a cinco minutos. Naquele tempo ainda não havia depilação a laser. Dimitri era um grego lindo. Ele tinha assistido a um show meu e ficara meu fã. Tinha feito travesti, mas não era gay. Inclusive, era casado com uma mulher linda. A verdade era que estava louco por mim. Eu ia na casa dele quando a mulher não estava e, depois das sessões de eletrólise, transávamos loucamente. O resultado foi magnífico, quando me vi sem aquela sombra negra do bigode, já me senti outra pessoa. A TRANSFORMAÇÃO “Só tenho duas preocupaçõescom o visual: não parecer prostituta nem homem vestido de mulher.” A transformação definitiva de Rogéria aconteceu por causa de uma grande mudança em seu cabelo. Até então ele tinha sido um problema recorrente em sua vida. Quando ainda era maquiadora, nos tempos dos bailes do República, quis pintá-lo de vermelho, mas não sabia como. Naquela época, usava-se Janax (pasta para alisamento capilar), que causava feridas no couro cabeludo. Ela resolveu passar mercurocromo no cabelo para ficar ruiva, o que acabou resultando em raspar a cabeça para voltar ao normal. Rogéria nunca se sentira satisfeita com sua cabeleira. Quando estava em Barcelona, fui a um cabeleireiro alemão que acabou com meu cabelo. Ele disse que meu louro estava muito claro, esbranquiçado, foi escurecer e os fios quebraram todos. Já em Paris, resolvi cortar o cabelo num barbeiro, perto do Boulevard des Batignolles. Levei uma revista com a foto de Jane Fonda, que tinha cortado os cabelos à la garçonne, em protesto contra a guerra no Vietnã. Pedi pra ele: corta meu cabelo igual ao dela, para ele crescer direito. Com o clima seco de Paris, o cabelo ganhou força e, quando começou a crescer, todos ficaram impressionados. Em seis meses meu cabelo estava no ombro. Blonde total. Um sonho antigo, desde os tempos do Cine Central, em Niterói, assistindo inebriada a Como agarrar um milionário, sempre quis ser loura como a Marilyn. Seguindo as instruções de Coccinelle, Rogéria tomou o hormônio progesterona e fez três aplicações de Ovociclina. Com a injeção de hormônios, meus peitos começaram a pular. Parei na terceira dose. Queria ser Marilyn, não Jayne Mansfield. Com os hormônios, cabelos louros, depilada e magra, unhas longas e quadradas (dica dos tempos de vedete com Carmen Verônica), só lhe faltava uma correção no nariz. A cirurgia de um dia foi realizada numa clínica no 6ème arrondissement. Pronto! O encontro de Astolfo com seu lado mulher estava terminado. Agora Rogéria passaria a incorporar o lado feminino em seu cotidiano parisiense 24 horas por dia. O teste final aconteceria no metrô de Paris, entre as estações de Pigalle e Montparnasse, na companhia da transformista Dany Dan e da transexual Capucine. “Vamos ver se você passa por mulher, vagabunda, bicha ou homem”, disseram. Rogéria, de rabo de cavalo, vestido simples e um salto não muito alto, recebeu alguns olhares de cobiça, mas ninguém riu nem debochou dela. A maioria das pessoas sequer tomou conhecimento. Rogéria havia passado no teste, com louvor. Estava pronta. O veredicto foi de Dany: “Tu es prêt à voler!” Você está pronta para voar. Rogéria optava definitivamente pela figura feminina, embora jamais esquecesse que era homem. Queria viver como mulher, sem ser uma. Era homossexual e vestia-se como mulher, mas a arte viria na frente de qualquer escolha do gênero. Também não esqueceria o preconceito de outros travestis e transexuais franceses, que nunca saíam com ela quando ainda se parecia com um rapazinho. A razão dessa discriminação era o medo de descobrirem que não eram mulheres. Até hoje recorda com satisfação o dia em que colocou um aplique e saiu, gloriosa, com Capucine, a flanar pela Champs-Élysées. Primeira foto de Astolfo, com seis meses. Com o cachorro Rex, na casa do avô em Niterói. Tempo de caçar rãs, brincar de bola de gude e tentar jogar futebol. Aos 17 anos, quando frequentava os bailes da Cinelândia como Karina Monroe. Acima, preparada para o show International Set, na Boate Stop Club, na Galeria Alaska. À esquerda, capa da Revista do Rádio, com a chamada sugestiva: “Ela é linda, mas... é ela mesmo?”, e como rapaz, na época em que trabalhava como maquiador da TV Rio, em reportagem para a revista Sétimo Céu, em 1963. Os “meninos” do show Les Girls: Brigitte, Carmen, Rogéria, Marquesa, Jerry di Marco e Valéria. Flagrantes ousados no camarim da Stop Club, antes do espetáculo Les Girls: nua com casaco de peles e como a sensual “noivinha”, um dos sucessos do show. Arrasando como vedete de Carlos Machado na Boate Fred’s, no show As Pussy Pussy Cats, com texto de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). O Beco das Garrafas recebe Rogéria. O berço da bossa nova se rende ao seu charme e mistério. Suas apresentações são cada vez mais comentadas. Acima, na entrada da Boate Little Club, posando com Mariel Mariscot, seu futuro affair. Logo abaixo, foto de um ensaio produzido pelo cabeleireiro Silvinho para a revista Manchete. O ensaio acabou não sendo publicado. No espetáculo Deu a Louca em Hollywood, como Marilyn Monroe. No show, Rogéria ainda se revezava no figurino de várias estrelas, como Jean Harlow, Pola Negri e Carmen Miranda. Com o mesmo enredo dos shows da Stop Club, agora no Teatro Dulcina, na Cinelândia, Rogéria comandava o espetáculo Agora é que são elas. No detalhe, os livretos de outros shows de que participou nos anos 1960, ficando conhecida como Rainha do Travesti. No filme Enfim sós... com o outro, o beijo técnico em Augusto César Vannucci. O que mais se temia acabou não acontecendo: o rigoroso Serviço de Censura do período de ditadura não vetou a cena. Cartazes e programa dos famosos shows na Boate Carrousel de Paris, na capital francesa, onde se apresentavam os mais belos travestis do mundo, como Capucine, Chou-Chou, Gazelle, Cynthia, Triana e Zambella. Com a fama, Rogéria fez um ensaio com o badalado fotógrafo André Nizak. Rogéria passou o réveillon de 1972 no Auberge des Pyramides, no Egito, terra de sua diva da infância, Cleópatra. Fachada do mítico reduto de transformistas, o cabaré Madame Arthur, em Montmartre, onde várias celebridades foram assistir às apresentações de Rogéria. Sensualíssima na foto de divulgação do show no Cassino Belle Vie, em Biarritz, na Suíça. Apesar da exuberante forma física, nesta fase Rogéria não tinha uma vida sexual muito ativa. Em turnê pela Europa, no início da década de 1970, passando pelas mais concorridas casas de espetáculo. Conhecida como La Brasiliana, Rogéria abria o show na Boate Moulin Rouge, em Florença, ao lado de Cynthia e Chou-Chou. Com Mona Christ e Eloína, em foto promocional no Egito. Cantando em Lausanne, na Suíça, na Casa Tabaris. Rogéria causou alvoroço ao retornar ao Brasil em 1973. No detalhe, a famosa capa do Pasquim de outubro daquele ano: a Monalisa com o rosto de Rogéria. Em entrevista ao jornal, ela contou suas aventuras e seus sonhos. No alto, elenco do show-desfile Charme 74, da Ducal, com Rogéria, Wanderléa, Eliana Pittman e Jô Soares no centro, como mestre de cerimônias. Acima, em Copacabana, ao lado de Silvinho, na saída da peça Por via das dúvidas, no Teatro Princesa Isabel. Nos bastidores do Teatro Princesa Isabel, conversando com Marília Pêra. Ao lado de Older Cazarré, na pornochanchada da Boca do Lixo paulista, O sexualista. Na passagem por Nova York, com Pelé que, na época, jogava pelo time americano Cosmos. Dois momentos com Agildo Ribeiro: na divulgação do show Misto Quente, na Boate Monsieur Pujol, em Ipanema. À esquerda, dirigida por Agildo Ribeiro no espetáculo Alta rotatividade. E na foto do passaporte de Astolfo Barroso Pinto. Famoso ensaio na revista Manchete, em que Rogéria mostrava seus dois lados, masculino e feminino. DROGAS E PROSTITUIÇÃO “Mesmo não sendo puta, acho que já fiz mais coisas que muita profissional do sexo.” Em seu début parisiense, Rogéria travaria contato com a prostituição e o uso de drogas pesadas no meio que frequentava. Eu me lembro bem que, depois do teste que fiz para o Carrousel, ainda vestido de homem, fui ao apartamento de umas amigas e vi uns oito travestis com um garrote, aplicando injeções, e cada um passando para o outro a heroína. A moda não era maconha, nem cocaína ou haxixe, era pico na veia. “Não quer experimentar?”, ofereceram. Aquilo me deixou chocada. Tímida, recusei. As pessoas imaginam a Rogéria muito louca, mas, no final das contas, sou bem careta. Minha experiência com drogas teve vida curta. Tomei ácido lisérgico duas vezes. Na primeira,fiquei feito uma idiota conversando com o desenho animado que passava na televisão e, na outra, no apartamento de uma bicha amiga, cabeleireira, cismei que era uma andorinha e queria sair voando pela janela. LSD pode ser muito bom para quem não tem imaginação, mas não é o meu caso. Cocaína, experimentei quando tinha 23 anos. Fiquei com medo de enlouquecer e só pensava: “Ai, bicha, como você é burra!” Veio numa bandeja de prata, cheirei aquilo e não senti nada. Uma mulher ficou tão doida que queria pegar no meu pau de qualquer jeito. “Para com isso, menina!”, cortei logo. Achei uma merda. Ainda repetiria umas cinco vezes e, na maioria delas, fazendo sexo com homens, porque eles levavam e insistiam pra que eu usasse. Mas nunca me fez a cabeça. Somente uma vez foi mais ou menos e fiquei meio ligada. Foi numa festinha, estava com uma atriz famosa. Mas vinte minutos depois tinha passado. Aí ela falou para mim: “Pega na bebida!” Então, vi que a cocaína era alimentada pelo álcool. E eu não gosto muito de beber. Champanhe, só francesa, raramente um Prosecco. Acabei ficando na minha e só assistindo às pessoas se drogarem mais. Nunca foi a minha praia. Com a prostituição, a relação de Rogéria sempre foi transparente. Não conseguia ter sexo com alguém pelo qual não sentia atração. Se transasse e gostasse, não via razão para cobrar nada. Uma vez, ainda no Hotel Ódeon, em pleno verão de Paris, viu um mecânico, sem camisa, consertando um caminhão. Na mesma hora foi até ele e o convidou para subir ao hotel. Ele se justificou o tempo todo, explicando que não tinha dinheiro, e foi um castigo até Rogéria conseguir convencê-lo de que era de graça. O homem, desconfiado, foi até o fim não acreditando no que acontecia. Em compensação, uma semana depois, saindo à rua num fim de tarde, foi seguida e assediada de forma acintosa por um estranho. Um guarda que passava por perto desconfiou e levou-a até a delegacia sob acusação de prática de racolage (aproximação com intenções de comércio sexual). Foi preciso o tal homem declarar que era ele quem a estava assediando para que ela pudesse ser liberada. Ao menos ele, que havia sido até um pouco ríspido, teve a consciência de inocentá-la. Melhor assim. Nesse período, a vida noturna parisiense sofria certo patrulhamento a fim de que não ocorressem abusos, e o flagrante de racolage era passível de punições que iam de simples advertência a abertura de processo, em caso de reincidência. Com o tratamento hormonal, intensificavam-se algumas modificações na libido de Rogéria. Ela se apresentava agora no Cassino Belle Vie, em Biarritz. Estava no auge de sua forma e beleza e, paradoxalmente, sem vida sexual. Os hormônios cobravam a sua conta, e ela demorou um pouco a voltar a ter vontade de fazer sexo. Exuberante, ia angariando fãs e paixões, sempre os mantendo a distância. Uma musa de gelo. Com o tempo, o organismo foi se recuperando, e Rogéria voltou ao normal. Suas colegas travestis não entendiam o comportamento sui generis de Rogéria. Afinal, todas tinham seus “maridos”, seus amantes financiadores, e aquelas que não tinham faziam seus clientes. Era a norma e o costume. As amiguinhas avisavam: “Cuidado com a brasileira, que ela não cobra. Ela é aquela que dá de graça.” Rogéria bem que tentaria. A pressão era enorme. Orientada por Chou- Chou, foi visitar um cliente milionário e usual, um ex-político francês. Tirando a minha roupa, olhava para aquele velho horroroso e, de cara, vi que não ia rolar. Ele ainda se esforçou, animado. Num determinado momento, questionou: – Você não se excita? – Com o senhor, não. Ele me xingou em francês, me encheu o saco e o mandei à merda em bom português: – Vá se foder! Ele se assustou com a minha reação. Colocou o dinheiro na minha bolsa e saiu rápido. Pensei: “Quer saber? Vou levar. Perdi meu tempo.” Contei a história para Chou-Chou, que me disse: “Você é maluca, chèrie!” Em outra tentativa, Chou-Chou arrumou um cliente mais jovem e bonito. E avisou: “O cara é lindo, se você não cobrar, quero ver agora a desculpa.” Quando olhei o bofe, um cara lindo, eu sairia com ele fácil, fácil. Fizemos um sexo maravilhoso, ele me deu o dinheiro e coloquei na bolsa. Fui ao banheiro tomar banho e ouvi baterem a porta. Quando saí, vi que ele tinha ido embora e levado todo o dinheiro. Tive de pedir a Chou-Chou que pagasse o táxi quando cheguei. “Você não tem jeito. Onde já se viu ir ao banheiro e não carregar a bolsa? C’est impardonnable...” Rogéria e Chou-Chou tornaram-se tão parceiras que houve uma vez em que a amiga pediu a Rogéria que fizesse, no lugar dela, um programa com seu michê, um milionário milanês. Estava tudo marcado, mas Chou-Chou não poderia viajar devido a um compromisso inadiável. Ela já sabia que Rogéria não tinha vocação para fazer sexo com uma pessoa por quem não se sentisse atraída. Ainda assim, ousou pedir-lhe, justificando a gravidade da situação. Rogéria, de início, recusou, mas, com a insistência dela, cedeu. Tudo acertado, embarcou para Milão e registrou-se no hotel combinado, perto da Galleria Velasquez. Quando abri a porta do quarto, tive um pressentimento ruim, de que o bofe seria um horror. Mas me enganei redondamente. Era lindo. Um cavalheiro. Conversamos, pedimos um jantar e tomamos champanhe. A toda hora me perguntava se eu era homem também. “Je suis mâle, oui.” A verdade era que, apesar de muito bonito e charmoso, tinha um pinto tão pequeno... Logo me confidenciou que a fantasia dele era ser passivo. Comi o italiano, e ele ficou louco por mim. Deu bem mais dinheiro que o combinado. Me pediu que não contasse nosso segredo a ninguém, principalmente a Chou-Chou. Retornei a Paris e entreguei a grana toda a ela, afinal tinha feito aquele michê em sua consideração. Admirada, disse que outra, em meu lugar, teria ficado com o dinheiro. Respondi: “Mas eu sou Rogéria, meu amor.” Eu morava na casa dela, e ela nunca me cobrara nada, era o mínimo que eu podia fazer. Um tempo depois, o milanês telefonou para Chou-Chou querendo saber de mim. Ela, um pouco enciumada, me perguntou: “O que você fez com o meu italiano, chèrie, que ele não te esquece?” Eu ria e desconversava... MADAME ARTHUR E ELLE ET LUI “Posso não ser mulher, mas eu peguei cada piteco...” A rotina de trabalho de Rogéria compreendia uma passada pelo mítico reduto de transformistas, o cabaré Madame Arthur, na rue des Martyrs, em Montmartre. O local, que se transformara num ponto turístico, reunia um grande número de estrangeiros. No Madame Arthur, Rogéria foi surpreendida com a presença do então todo-poderoso ministro da Fazenda, Delfim Netto, que foi atestar a fama do travesti brasileiro. Com outro admirador famoso, um piloto de Fórmula 1, considerado, à época, um dos homens mais bonitos do mundo, Rogéria teve um affair. Tive um caso com o piloto de corridas francês – que Deus o tenha. Ele me achava uma força da natureza. De tão entusiasmado comigo na cama, dizia, brincando: “Não sabia que no Brasil havia vulcões!” Ele me achava ardente demais. Por recomendação do patrão, Monsieur Marcel, Rogéria cantava duas músicas, no máximo, no Madame Arthur. Depois seguia para Montparnasse, quase sempre de carro, com o travesti Bambi, para o palco do Carrousel, na rue Vavin, 29, e finalizava a noite ao lado, no Elle et Lui (rue Vavin, 31) casa noturna frequentada por lésbicas e voyeurs, muito em voga nos anos 1970. Rogéria fazia sucesso. Seu repertório incluía hits de Shirley Bassey e seu carro-chefe era o sucesso de Elis, “Upa, Neguinho” (Gianfrancesco Guarnieri, Edu Lobo). Extrovertida, ia até as mesas apertadas e conversava com a plateia. Numa noite, sentou-se no colo de Jean-Paul Belmondo, em outra cantou para Sacha Distel. Rogéria lembra que Aristóteles Onassis ia muito ao Elle et Lui e sempre lhe pedia para cantar “I Who Have Nothing” (Jerry Leiber, Mike Stoller), sucesso na voz de Shirley Bassey. Era comum, trabalhando no Carrousel, dar de cara com figuras famosas da alta sociedade, personalidades do mundo das artes, da moda e da política. Uma noite, aguardandoa vez para entrar em cena, ouvi um rebuliço no fundo da boate: era Maria Callas que chegava. No palco, um travesti fazia striptease. Convidada a entrar e ir para sua mesa, Callas recusou e ficou esperando em pé. Depois soubemos que ela disse que não atrapalharia uma artista que estava se apresentando. Esperou a bicha acabar seu número e só depois se dirigiu ao seu lugar. Isto se chama ética, educação. Já gostava de Maria antes, depois dessa então... “Quando chega um cara, com o maior jeito machista, eu digo pra mim mesma: pronto, lá vem uma boneca.” Na sua temporada em Paris, pertencendo ao cast do Carrousel, Rogéria pôde conhecer o melhor da noite local. O ex-namorado de Yves Saint Laurent, Jorge Lago, a apresentou a Zizi Jeanmarie, famosa bailarina do Casino de Paris, e a seu marido, o coreógrafo Roland Petit. Ficaram amigos e frequentaram lugares badalados. No Maxim’s, Rogéria usou uma chinchila alugada. Na discothèque New Jimmy’s, de Regine Choukroun, ficou frente a frente com Marlon Brando. Com Zizi e Roland dei uma esnobada no Marlon Brando. Lembro que ele filmava O último tango em Paris. Eu ia fazer 30 anos, estava no auge da minha beleza. Estávamos no New Jimmy’s da Montparnasse, jantando. Eu estava deslumbrante, loura, com um caftan que Brigitte de Búzios me trouxera de Nova York, bota Yves Saint Laurent de verniz... Brando deu de cara comigo subindo uma escada e me olhou. Ele parou e ficou me encarando. Na certa deve ter imaginado que eu ia falar com ele. No fundo ele não me interessava como homem, e sim como artista. Queria tirar uma foto, mas achei melhor não pedir. Depois soube que ele era chegado, mas não estava mais naquele figurino lindo do Stanley Kowalski [do filme Uma rua chamada pecado]. Era um senhor meio barrigudinho, mais para um chefe mafioso [como o personagem Don Vito Corleone de O poderoso chefão]. No melhor estilo Julia Roberts no filme Uma linda mulher, Rogéria tinha um fã italiano que, sempre que ia a Paris, a levava aos melhores lugares, apenas para não se sentir sozinho. E também por ver nela um exemplo de classe e sofisticação. Quem soube primeiro dessa paixão foi Madame Raymonde, gerente da boate e braço direito de Monsieur Marcel. Ela foi a responsável por intermediar o encontro. A princípio não topei encontrar o italiano, avisei Madame Raymonde que não fazia sala para clientes. Mas ela me disse que o rapaz era um gentleman e só queria companhia, não haveria sexo. Além do que era generoso, pagava muitíssimo bem e me levaria aos mais caros restaurantes e casas de espetáculos de Paris. Então paguei para ver. Ou melhor, quem pagou foi ele. Peguei emprestado com Chou-Chou seu casaco chiquérrimo de pele de macaco, um arraso, e fomos ao L’Alcazar ver shows e jantar. Conversávamos em italiano e francês. Ele mostrou-se realmente um cavalheiro, e nos demos muito bem. Outro admirador inusitado de Rogéria foi um árabe de Riad, que mantinha seu nome em sigilo. Ele também assistira ao show e se apaixonara. Madame Raymonde novamente intercedeu, explicando que o tal árabe era um cliente vip e milionário do petróleo. Fui conhecer o tal árabe. Não é que me surpreendi? Esperando por um sultão gordinho, encontrei um jovem, de uns 27 anos, bonitão, com um bigode negro e expressão séria, mistura meio tosca de Omar Sharif com Freddie Mercury. Ele não queria falar nada sobre ele, nem sequer seu nome verdadeiro. Eu só o chamava de “sheik”. Fui logo explicando que tinha meu show para fazer e não poderia ficar muito tempo. Ele me fez uma proposta surpreendente: passarmos um weekend em Londres, hospedados no Hilton Park Lane Hotel, com todos os custos, incluindo o cachê dos espetáculos que eu deixaria de fazer, por sua conta. A cereja do bolo foi o convite para assistirmos à ópera Norma, de Bellini, no Royal Opera House. Irrecusável. Com o aval de Madame Raymonde, claro que aceitei. Meu árabe era tímido, mas adorava champanhe. Depois de umas taças ficava no ponto. Quando chegamos ao hotel cinco estrelas, depois da ópera, fiz um striptease como uma sacerdotisa druida, inspirada na ária “Casta Diva”, e o tal sheik ficou maluco. Me diverti horrores com ele. Passamos quase uma semana badalando em Londres. Ele queria uma companhia animada e champanhe, e eu adorava me divertir e gastar petrodólares. Tudo perfeito. Nessa mesma época, Rogéria soube da estreia em Londres do musical Applause, baseado no filme A malvada, estrelando Lauren Bacall, no papel de Margo Channing. De Paris reservou seu lugar numa das primeiras filas e comprou passagem aérea. Numa manhã de folga, pegou o avião rumo a Londres. Assistiria à peça e voltaria no dia seguinte. Já no avião, sentou-se ao lado de um rapaz bonito e bem-arrumado. Começaram a conversar, e Rogéria contou-lhe o motivo da viagem. Ele achou graça. Disse ser judeu e trabalhar como vendedor. Mostrando vivo interesse, o rapaz sugeriu dividirem o quarto do hotel. Conhecia um ótimo que ficava bem perto do Her Majestic Theather, onde a peça estava em cartaz. Rogéria percebeu suas intenções e ficou na dúvida se deveria dizer a ele que não era mulher. Mesmo sem lhe dizer que eu era homem, topei dividir o quarto. Ele não me perguntara sobre meu sexo, e eu também não tinha perguntado se fizera circuncisão. Estávamos quites. Fomos de táxi direto para o hotel. Tomei um banho, mudei de roupa rapidamente e fui para o teatro. Nem fiz o bofe, não tinha cabeça, queria chegar cedo ao teatro. Ele disse que me esperaria para jantar. Depois do espetáculo, fui direto aos camarins. Eu estava um luxo, vestido decotadíssimo, casaco de peles e joias. O segurança deve ter me confundido com alguma atriz. O fato é que me deixou passar. Na porta do camarim de Mrs. Bacall, a camareira avisou: “Go quickly.” E, frente à diva, me apresentei, emocionada: – I came from Paris only to see you, Mrs. Bacall! Ela não demonstrou muita emoção. Perguntei se ela falava francês: – Un peu. Então, eu disse logo: – Je suis un garçon! Palavra mágica. – Oh! – ela abriu um sorriso. – Ah, bien, opéré, sex-changed? – Non, madame! Ela pegou no meu braço, sentou comigo e só faltou passar a mão no meu pinto para conferir se eu era mesmo homem. Ficamos quase uma hora conversando. Não pedi para tirar foto, pois ela já estava sem maquiagem e eu, como artista, sei bem como é isso. Quando voltei ao hotel, estava nas nuvens. Ainda fiz um sexo maravilhoso com o vendedor judeu, que não ligou para o fato de eu não ser mulher. – I’m not a girl – expliquei. – Never mind – ele disse na hora. Desconfio até que já sabia... De manhã, ainda no aeroporto de Heathrow, enquanto aguardava o voo de volta a Paris, repassei toda a minha aventura. Um dia para nunca esquecer. ITÁLIA: LA BRASILIANA “Eu pensava que já tinha visto de tudo na cama…” Monsieur Marcel comunicou às meninas que havia acertado uma longa turnê pela Europa, pelo Irã e pelo Egito. A troupe Carrousel ganhava cada vez mais prestígio e tinha sido convidada a se apresentar nas melhores casas noturnas. Em Nápoles, no Club 87; em Milão, no El Marocco; em Florença, no Moulin Rouge; em Genebra, no Picadilly; e em Lausanne, na Casa Tabaris e no Casino Canet. No Egito havia duas apresentações acertadas no Auberge des Pyramides, e no Irã, havia a possibilidade de se apresentarem no palácio do Xá. Iniciariam pela Itália – Milão, Nápoles e Florença. Chou-Chou avisou Rogéria que ela apresentaria os espetáculos. – Mas eu não falo italiano! – reagiu Rogéria. – Ah, Rogerriá! Estávamos na Boate Moulin Rouge, em Florença. Tinha terminado o show, e o cameriere Pepe, um garçom muito simpático de quem fiquei amiga, me informou que um cliente italiano queria falar comigo. Avisei que não fazia esse tipo de negócio. O pobre Pepe só faltou implorar de joelhos, explicando que o tal lhe prometera due mille lire, grana à beça. Então, começou a contar todos os seus problemas de família, que estava velho, passando necessidades, etc. Eu disse: “Chega, Pepe, eu vou!” Era para conversar, nada mais, somente para ele poder ganhar as liras. Na mesa, o italiano, que falavainglês fluentemente e era superssimpático, me confidenciou ser voyeur e me propôs que saísse com uma pessoa e ele assistisse. Me daria todo o dinheiro que eu quisesse. Era muito rico. Notei que ele trazia um pacote de papelão, que nunca largava. Saímos dali e fomos até a Piazza Del Duomo. Havia umas mariconas por lá fazendo ponto. Vi um garoto novo, lindo, meio isolado. Cheguei até ele e o convidei para irmos ao hotel. Era de Nápoles e tinha uma carinha de bandido. Ele pediu cem dólares. Chou-Chou e Bambi já haviam me alertado para tomar cuidado com os napolitanos, gente perigosa. Mas na hora não vi nenhum problema. Seguimos para um hotel ali próximo. O italiano pediu que eu fosse ativa com o napolitano. Com aquela eu não contava, mas ainda assim topei. Me servi do garoto, que era um bofe maravilhoso, para o deleite do voyeur que se masturbou o tempo todo. Quando fomos acertar o pagamento, eu vi que o pacote estava cheio de dólares. Era muita grana. – Are you crazy? Você tá louco? – cochichei. Imagina se o michê visse aqueles dólares todos. Que perigo! Tratei de me livrar logo do garoto. Negociamos. Ele queria mais por ter sido passivo. Nem discuti. – Qui per voi – disse, dando-lhe cinco notas de cem. Quando ele saiu, dei um tapa na cara do italiano. – Esses garotos de programa são um perigo! Se ele descobre a sua grana, estávamos mortos! Ele concordou, meio assustado, e me pediu desculpas. Para terminar, queria que eu urinasse nele. – Como!? Era só o que me faltava. Ele ficou na cama e, enquanto eu mijava na cara dele, ia tirando os dólares do pacote e me dando. Foi então que me pediu o impensável: que eu defecasse nele! Isso já era demais. Eu vi que não era uma puta, porque puta faz de tudo, eu não. – Stop now! Pode parar tudo aqui! Mandei ele pegar os dólares e sumir. Por mais que eu tenha vivido e escutado um monte de coisas malucas, quando ele me pediu aquilo... Que horror! Ainda falei pra ele: – Você deu sorte de eu não ser uma bandida e te roubar tudo. Dê graças a Deus de eu não fazer essa linha marginal. Sai logo daqui com esse pacote de dinheiro, seu escroto! Suma! Mas ele já deixara, espalhado pelo quarto, uns dois mil dólares. Que levei comigo, claro. SEXO COM UMA MULHER “Não sou bissexual, não tenho vontade de transar com mulher.” Rogéria já experimentara uma relação com uma jovem lésbica, mas nunca fora ativa com uma mulher. Em Genebra, conheceria um suíço, renomado negociador de pedras preciosas, e sua mulher. O casal morava num belíssimo apartamento em frente ao Lac Leman. Ele costumava ir sozinho a shows de travestis e já assistira a Rogéria algumas vezes e ficara encantado. No fim de um espetáculo, chamou-a para fazer uma proposta, aparentemente, irrecusável. Tinha acabado o show na Boate Picadilly e fui até a mesa do meu fã suíço. Ele estava animadíssimo e me perguntou: – Você tem casa própria no Brasil? – Claro que não, por quê? – Se quiser, poderá ter, só depende de você! E me propôs uma transa a três: eu, ele e sua mulher. O trato era de eu comer a mulher dele. Tentei argumentar que jamais tinha feito isso, amava as mulheres, mas não com sexo. Não adiantou. O apartamento era em troca dessa transa, uma fantasia sexual antiga da esposa dele, quase uma obsessão. Topei. Ele avisou a mulher, pediu a conta, pagou e fomos para o apê deles. Eu tremia de medo, apavorada, não sabia se iria conseguir. Só de pensar, tinha vontade de vomitar. Quando fui apresentado a ela, a coisa piorou. Era bonita, meio cheinha, vestia um modelo Chanel, um horror. Na hora me deu uma tremedeira. Não ia conseguir. Mesmo assim, com champanhe gelada no balde, uma boa música ao fundo, fomos para o quarto. Ele começou a dançar comigo, a me beijar, enquanto a mulher ficava nos olhando e se acariciando. Quando ele viu minha ereção, chamou ligeiro a esposa, que veio correndo e se atirou nua na minha frente, de pernas abertas. Era um bocetão tão bonito, rosa. Eu pensei na hora: “Agora sei por que os homens gostam tanto disso.” Meti rápido. Ela estava toda gosmenta, melada, gozava como uma louca e gemia. Quis beijar minha boca. Não, na boca, não! Se meu peito fosse de silicone, tinha explodido de tanto que foi apertado e chupado. Ela gritava, parecia descontrolada. Puxava meu cabelo e gozava. Fui percebendo que eu estava brochando. Não era bissexual, não sentia prazer naquilo. Comecei a me desesperar: “Como levantar esta piroca, meu Deus? Como fazer?” Pensei, então, num antigo fetiche meu: estava na Roma do império, numa banheira enorme, cheia de porra branca; dezenas de soldados e gladiadores batendo uma punheta e esporrando em mim. O pau subiu na hora. Ela sentiu e gozou mais umas duas vezes. E ainda queria mais. Acho que nessa hora meu amigo suíço começou a se incomodar e tirou ela de baixo de mim. Deu-lhe uns tapas e ela saiu, toda feliz. Nisso ganhei um cheque que dava para comprar o meu apartamento. A verdade era que não tivera, até então, a menor vontade nem curiosidade em transar com uma mulher. O que me moveu foi grana para o apartamento. Não sei se as pessoas entenderão isso, mas é a verdade nua e crua. “Diamantes são os melhores amigos das mulheres.” Ainda em Genebra, Rogéria conheceria um lorde inglês, coronel excêntrico e rico que tinha uma mansão em Park Lane, Londres. Apaixonado por Rogéria, convidou-a para viver com ele num castelo nos arredores da capital inglesa. Considerava que era uma lady de verdade. Chegaram a morar juntos num apart-hotel em Paris durante um curto tempo. Mas a vida monástica e nobre da Lady Rogéria não combinava com seu estilo e ânsia de viver. A primeira vez que vi o meu lorde, ele estava cercado por vários travestis, eram como moscas no mel. Bilionário, ingênuo e disponível, tornava-se presa fácil nas mãos deles. Na noite anterior, me mandara uma corbeille enorme com um bilhete dizendo que me amava. Quando cheguei, dei logo um esporro: – Você diz que me ama e, quando vejo, está rodeado de bichas por todos os lados. Ele se desculpou: – Você quer sair comigo? – Querido, não tenho grana, joias, relógio de marca e roupas chiques, e não estou disposta a sair com ninguém por mixaria. Ele insistiu e combinamos de sair no dia seguinte, à tarde. A primeira coisa que ele fez foi entrar na joalheria Port Royale e me comprar uma esmeralda com vinte diamantes e um relógio de platina Movado. Ele foi um cara maravilhoso para mim. Tentei viver com ele num apart-hotel, saindo do apartamento de Chou-Chou, mas ele roncava muito. Roncava e me comprava joias. Uma vez tivemos uma briga porque ele me traiu com uma napolitana. Peguei todas as joias e atirei na cara dele: – Vá à merda! No dia seguinte, tinha o dobro das joias. Parecia o maior golpe da minha vida. O sonho dele era morar comigo num château em Londres, no meio de Park Lane. – Você me acha com cara de morar em um castelo? Ele justificava, tentando me provar que eu tinha todas as características de uma aristocrata. Eu lhe explicava que era gênero, eu era a atriz. Ele teimava, e eu decretava o fim do seu sonho: – Você acha que sou mulher de morar em castelo? Isso é coisa de bicha velha. Quando terminamos, coitadinho, ele vivia me seguindo pelas ruas de Genève. Depois soube que ficou com um monte de travestis e se deu muito mal porque todas, claro, só queriam o dinheiro dele. Fiquei com algumas joias, mas aturei muito ronco dele. Em junho de 1972, quando estava se preparando para mais uma apresentação no Picadilly, Rogéria recebeu a notícia do trágico acidente com o avião da Japan Airlines, em Nova Délhi. Morria Leila Diniz, e o Brasil perdia um dos seus maiores ícones de liberdade de comportamento, representante legítima da revolução feminina e da nova ordem da mulher brasileira. Não saía da minha cabeça aquela foto de Leila grávida, de biquíni, que representava um tempo de mudanças. A notícia da sua morte foi um choque. Tinha conhecido Leila na TV Rio, quando ela foi fazer sua maquiagem para um comercial. Estreava na tevê numa novela da Globo (Ilusões perdidas). Foi amor à primeira vista.Era impossível resistir ao seu jeito simples e espontâneo. Ela era tão tímida, mas já louquinha. Num encontro, tempos depois, me disse que, quando me conheceu, pensou: “Tenho que perder essa minha insegurança, tenho que ser mais louca que esse viado!” IRÃ E EGITO “Era o tipo de homem que devia estar doido para dar. Me vendo como mulher seu problema se resolvia.” Ainda com a trupe Carrousel, Rogéria conheceria lugares mais exóticos. Em Teerã, capital do Irã, por exemplo, houve uma apresentação especial, no palácio branco de Sadabad, com a presença do Xá Mohammad Reza Pahlavi e sua terceira esposa, Farah Diba. Sempre muito sorridente, Farah pediu a Rogéria que cantasse “Ne me quitte pas”, de Jacques Brel. Mas sucesso mesmo ela fez cantando “Mas que nada”, de Jorge Ben. Com as meninas, no hotel, conheceu o haxixe. Não sentiu nada, além de uma fome enorme que a fez esvaziar o frigobar do hotel. Houve uma noite, após um show numa casa em Shemiran, que passamos por uma experiência incrível com um dos homens mais fogosos que eu vi. Eu estava curtindo um narguilé especial com as meninas, Eloína, Chou-Chou, Ambre e Mona Christ, quando ele se apresentou. Era jovem, forte, um militar iraniano belíssimo. Sua proposta, de início, parecia piada: ele queria fazer sexo com nós todas de uma vez. Isto é, naquela noite. Não é que conseguiu? O cara era um espanto! Nunca tinha visto nada igual. Nem eu, nem as meninas. Ele nos posicionou de bruços, lado a lado, e ia nos penetrando. A cada entrada eram cem dólares. Só em mim foram seis vezes. Depois, já satisfeita, eu pedi para sair, e as meninas ainda ficaram mais. Uma maravilha de homem. Nossa rápida passagem pelo Irã foi um sonho de mil e uma noites. Além do garanhão guloso, ainda experimentei o caviar de lá, o famoso gris-bleu. Até hoje sonho com ele. O caviar, claro. No Cairo as coisas não correram tão bem para Rogéria. Com fortes dores abdominais, foi internada às pressas no hospital Anglo-Americano, com uma grave crise de peritonite. Operada em caráter de urgência, só na hora o cirurgião soube que a paciente não era uma mulher. Fui ao Egito ver as pirâmides e a esfinge, e terminei sendo salva por um espírito do faraó, o Dr. Lanthiak. O cara era alto, pálido, esquelético, parecia uma múmia, Mas era um craque, pois não fiquei com nenhuma cicatriz. Quando voltei ao Cairo, quatro meses depois, fui vê- lo para agradecer. Na segunda estada no Egito, Rogéria, além de rever o Dr. Lanthiak, pôde, enfim, conhecer as pirâmides, o Farol de Alexandria, o museu egípcio e a praça Tahrir, além do mausoléu real de Sema, onde, sugerem alguns arqueólogos, estariam os restos mortais de Cleópatra. Para quem sempre quis ser a rainha egípcia nas brincadeiras de infância, em Niterói, foi frustrante saber que ninguém tinha certeza de onde ela estava enterrada. Fiquei hospedada no Auberge des Pyramides. Tinha um escritor e poeta egípcio bem conhecido por lá que não me largava, com aquele olho pidão para cima de mim. De que adiantava ser poeta e apaixonado, mas gordo e horroroso? Porém ele era companheiro e prestativo, me levou na grande pirâmide de Quéops. Eu queria conhecer a câmara da rainha, mas desisti ao saber que não era a da Cleópatra, que fora enterrada num mausoléu em Alexandria. O poeta se ofereceu para me acompanhar até lá. Foi uma decepção. Não vi nada da Cleópatra, descobri que ninguém sabia onde ela tinha sido enterrada. O tal farol não tinha graça, o rio Nilo estava imundo. Não saí do hotel, fiquei tomando sol na piscina. Na volta ao Cairo, visitei o museu egípcio na praça Tahrir. Meu amigo poeta me olhava estranho, parecia com medo. Na saída, foi a maior confusão. Eu estava de botas, com uma calça justa e uma blusa ban-lon. Menino! Quando vi, estava cercada por aqueles homens horríveis, tarados. Apavorado, o poeta me colocou depressa num táxi e por pouco não conseguimos sair de lá. Foi a minha primavera árabe particular... Era fevereiro de 1973, e Rogéria soube que o Santos Futebol Clube também excursionava pelo Cairo. O time tinha acabado de vencer o amistoso contra o National por 5 a 0, com 2 gols de Pelé. O técnico era o Pepe. Claro que ela foi procurar os jogadores. Na confraternização, acabou se envolvendo com um craque do time santista. Fomos logo para a cama, um tesão louco. O rapaz tinha um pau enorme, uma beleza. Mas a grande decepção: ele não queria me comer, queria ser comido! Tentei de tudo para que mudasse de ideia. Ao menos uma troca, mas infelizmente o negócio dele era ser passivo mesmo. Era o tipo de homem que devia estar louco pra dar, mas não tinha coragem. Queria dar a bunda, mas não podia se imaginar viado. Me vendo como mulher seu problema se resolvia. Uma pena, com um pau daquele. Um desperdício... Ainda no Cairo, Rogéria recebeu um telegrama de Hugo de Freitas confirmando o convite para ela estrelar um show no Rio de Janeiro, com texto de Max Nunes e direção de Agildo Ribeiro. Era um contrato atraente, com passagem, direito a hospedagem em apartamento em Copacabana e outros detalhes comumente oferecidos a uma autêntica superstar. Não dava para recusar. Comunicou seu desligamento da trupe a Monsieur Marcel, explicando-lhe a razão: sua volta, triunfante, à terra natal. Mas não deixou as portas fechadas. Se tudo desse certo, poderia retornar no ano seguinte. Em seu lugar entraria Dany Dan, chamada às pressas de Paris. Rogéria recebeu um adiantamento em dólares para providenciar alguns figurinos em Paris. Em entrevista ao radialista Simon Khoury, confidenciou a forma sui generis que usou para transportar o dinheiro para o Brasil. O Hugo de Freitas tinha enviado dinheiro para mim, dinheiro que não tinha entrado comigo. Não tive dúvida, escondi os dólares no ânus. Como sempre, fui asseada, o dinheiro estava todo enrolado dentro de um preservativo. Fiquei com medo das autoridades da polícia egípcia, afinal eram 5 mil dólares, destinados à compra de roupas, tecidos, plumas e paetês em Paris. Ainda pedi ao cônsul brasileiro que me acompanhasse até o aeroporto. Não houve burocracia, revista, ninguém tocou em mim, e eu com medo de soltar um peidinho e as notas de dólares se espalharem todas... Gelei quando vi que o avião em que viajaria era de uma companhia de aviação estatal russa, a Aeroflot: “Pronto, agora vou ser presa como contrabandista e espiã!” Só relaxei e retirei os dólares do “esconderijo” quando o avião se aproximava de Paris. O RETORNO AO BRASIL “Jamais seria um transexual porque eu amo ser o Astolfo.” No dia 7 de abril de 1973, Rogéria retornou ao Brasil. Na sua coluna social, no telejornal das dez, Ibrahim Sued destacava: “Bomba! Bomba! Aterrissou hoje no Rio a famosa travesti Rogéria!” Com o título “Rogéria – Esta mulher era um homem”, a revista Manchete publicou uma entrevista em que ela declarava: “Voltei definitivamente transformada em mulher!” Rogéria, no entanto, esclarecia que tomara somente hormônios, não havia feito a operação de troca de sexo. A matéria mostrava que, depois de um misterioso tratamento hormonal e de ter brilhado nos palcos parisienses, onde se apresentavam os travestis mais famosos do mundo, Rogéria voltara para estrelar uma peça no Teatro Princesa Isabel, no Rio. Durante o ensaio fotográfico, o escritor e jornalista Calos Heitor Cony comentou que Rogéria era o único travesti que durante o dia não tinha uma cara amarelada. Talvez querendo se referir aos demais travestis daquela época que viviam maquiados, mais parecendo bonecos de cera. De cabelos longos e louros, com a pele bronzeada pelo sol do Oriente, elegante e falante, as mudanças física e mental de Rogéria impressionavam. E confundiam. Ao chegar a Niterói e encontrar o velho avô Astolfo, foi pega de surpresa. Do alto de seus 90 anos, ao olhar com atenção para o neto, ele foi taxativo: “Você não é mais meu neto!” Houve um suspense no ar, logo dissipado: “Agora, você é minha neta!” Também Dona Eloah no começo ficou indecisa ao ouvir do filho que a vida dele mudara radicalmente e que, agora, sentia-se outra, inteiramente outra.A mãe entendeu mal e concluiu que o filho havia se operado. Rogéria, transformista desde a adolescência, considerava-se transgênero e garantia nunca ter cogitado uma cirurgia de redesignação sexual, declarando-se feliz com sua genitália masculina. Se um dia optasse por uma operação de troca de sexo, minha mãe seria a primeira a quem eu comunicaria. Quando cheguei, ela não sabia se me chamava de ele ou ela. Até que um dia, atravessando a baía, na barca Rio-Niterói, ela viu o jeito como os homens olhavam para mim, com admiração por uma mulher. A partir de então, passou a me chamar no feminino. Dona Eloah, em entrevista à jornalista Regina Nascimento, da revista Amiga, declarava: “Conheço o meu filho, sei que ele tem o corpo de homem, a alma de mulher e a consciência de ator. Astolfo é o alicerce de Rogéria e, desde criança, foi criado como qualquer outro garoto. Eu nunca coloquei em questão o tema homossexualismo e sim a orientação para a cultura e o estudo, dando o apoio necessário para que ele pudesse se impor na sociedade como Rogéria.” Rogéria ia desfazendo as incertezas e também se acostumando com a nova postura. Nunca fora tão Rogéria, embora Astolfo ainda se mantivesse vivo e atento em algum canto de sua alma, como um pedaço dela que se eclipsava, mas ainda permanecia no controle. Eu tenho uma simbiose bem-ajustada, me dou muito bem com o Astolfo e a Rogéria. Vivo numa metamorfose diária, de construir e desconstruir. Na intimidade, quando tiro o sapato alto, tomo banho, prendo o cabelo e boto uma camisa bem velhinha, sou de volta Astolfo. É tudo bem natural. Rogéria é a grande performance do Astolfo. A verdade era que Rogéria representava o lado bom, a realização pessoal, a vitória de uma latente minoria e o respaldo social trazido pela realização artística e fama advindas. Mas, e se fosse feia, desajeitada e malsucedida artística e financeiramente, teria sido assim? A reação de sua família e de todo mundo seria menos tolerante? Deve-se ter noção do outro lado da história para alguns deles: marginalizados, sem opção de emprego fixo, ridicularizados, escória social, vítimas do preconceito e da violência – seja por assassinato ou mesmo suicídio – e da ausência de afeto nas relações pessoais. Fica óbvio que, sem o glamour e o sucesso, o caminho da superação a se trilhar não é assim tão simples. Astolfo conseguiu que sua Rogéria sobrevivesse e se sobressaísse num país paradoxalmente despreparado para isso. Mais do que fama e admiração, ou justamente por meio delas, conquistou o respeito de toda uma sociedade. Ou de boa parte dela. Estamos nos famosos anos 1970, e Rogéria começava a ensaiar para a peça Por via das dúvidas (ou por dúvida das vias), texto de Max Nunes e Haroldo Barbosa, e direção de Agildo Ribeiro. O visual e a postura andrógina de alguns popstars (Secos & Molhados, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dzi Croquettes) andavam na moda, e isso, de certa forma, abrandava o rigor da censura e a rigidez dos códigos de comportamento. Assim, era de esperar que segmentos correlatos, como o dos travestis, se tornassem mais bem-aceitos. No entanto, os produtores da peça que Rogéria estrelava enfrentaram inúmeros problemas com a censura, que agora recrudescia. No Teatro Ipanema, a peça Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde, foi retirada de cartaz após duas semanas de estrondoso êxito. Os modos peculiares da personagem principal, uma professora tirânica interpretada por Marília Pêra, poderiam ser associados aos métodos dos militares no poder. Uma analogia inevitável para a época. O show MPB4 na República do Peru, escrito pelos integrantes do grupo em parceria com Chico Buarque e Antônio Pedro, também sofria com os sucessivos cortes impostos pelos censores, e seus autores eram extremamente visados. Mas por que Rogéria? O que ela representava de ameaça política? Talvez se tratasse da vigilância aos velhos e bons costumes, ou pior: mera hipocrisia. O fato foi que, na estreia da peça, no Teatro Princesa Isabel, no Leme, um aviso de embargo foi colocado, adiando a apresentação até segunda ordem. O gestor do teatro, Orlando Miranda, procurou contornar a situação, ajudado por Ibrahim Sued. Depois de alguns esforços e pequenos ajustes, a peça acabou sendo liberada. Com cenários de Arlindo Rodrigues e figurinos de Viriato Ferreira, o espetáculo finalmente estreou. Rogéria tinha o apoio dos atores Luiz Pimentel e Ruy Cavalcanti, e ainda contou com a participação de quatro jovens modelos. No programa da peça, além de um texto extraído de uma entrevista de Rogéria ao Pasquim em 1973, Fernanda Montenegro escreveu que era fantástico poder ver Rogéria como atriz: “Um ser humano se automoldando a ponto de alcançar esplendorosamente seu sonho impossível.” Um aval e tanto. Num artigo da revista Veja, a jornalista Maria Helena Dutra apontava Rogéria como herdeira do prestígio de uma Mara Rúbia ou Virgínia Lane: “Rogéria possui os exageros e as afetações de toda vedete, canta mal, mas disfarça suas falhas com personalidade, e estabelece logo no primeiro contato uma enorme comunicação com a plateia através de improvisos, charme, simpatia – e uma saudável e irreverente desinibição que a torna capaz de dizer duras verdades por meio de muitos sorrisos.” Após três meses lotando o Princesa Isabel, a peça foi para o Teatro da Galeria, da rua Senador Vergueiro. Basicamente o mesmo elenco, com a diferença de que os ingressos eram a preços populares, exigência de Rogéria. Nessa época, Rogéria atenderia a um pedido de Haroldo Costa e também se apresentaria no espetáculo Nossa escola de samba, na Boate Sucata, substituindo Rosemary. A previsão inicial era de o show ficar mais um mês em cartaz, mas, devido ao sucesso, estendeu-se por oito meses. Quando estava na Sucata, um famoso pintor brasileiro foi me ver. Hugo de Freitas, que era meu empresário, combinou uma ida minha ao apartamento dele. Me convenceu, dizendo que era importante, me daria prestígio. No fundo queria ganhar dinheiro comigo, conseguindo clientes famosos e ricos. Foi terrível, me senti uma garota de programa de luxo. Fiquei deslocada no apartamento dele. Era muita cocaína. Pensava: “E se ele morre aqui, agora, comigo?” Ele me ofereceu presentes, buscando me impressionar: “Por que não pega um quadro desses pra você?” O quadro devia valer uma fortuna, mas não sei ganhar dinheiro assim, não consigo ir pra cama com quem não tenho tesão. Mesmo que fosse Picasso... Haroldo Costa, impressionado com a repercussão do show na Boate Sucata, convidou Rogéria para uma turnê nos Estados Unidos. No entanto o empresário americano, dono da boate, se opôs, com o argumento de que naquele país não havia essa tradição de exibir travestis e, quando acontecia, partia sempre para o burlesco. Para Rogéria, a recusa foi ótima, já que recebera o convite do publicitário italiano Livio Rangan, ligado à Casa Rhodia, para participar de vinte apresentações com o espetáculo Charme 74, patrocinado pela cadeia de lojas de roupas Ducal. Era uma espécie de show-desfile, com duração de duas horas e meia, que fechava com uma campanha publicitária visando o lançamento da coleção de inverno da Ducal. O show apresentava a transformação pela qual as mulheres passaram desde o início do século XX, associada ao cinema, à música e ao teatro. Junto com Rogéria, Eliana Pittman, Wanderléa e algumas das modelos mais conhecidas da época. Rogéria entrava em três partes do espetáculo: na primeira, como Mistinguett, cantora francesa do Folies Bergère de Paris nos anos 1920, cantando seu maior sucesso, “Mon homme” (“Sur cette terre, ma seule joie, mon seul bonheur, c’est mon homme, j’ai donné tout c’ que j’ai, mon amour et tout mon cœur, à mon homme...”); na segunda, dançando um tango, na pele da atriz e dançarina polonesa, radicada nos Estados Unidos, Pola Negri, que brilhou no cinema e foi amante de Charles Chaplin e Rodolfo Valentino; e, finalmente, como Marilyn Monroe. Wanderléa fazia Judy Garland, Marlene Dietrich e Carmen Miranda; e Eliana Pittman, Josephine Baker, Lena Horne e BillieHoliday. O mestre de cerimônias era Jô Soares, encarregado de todas as ligações entre os números e as modelos. No show do Charme 74 pedi um adiantamento de 8 mil cruzeiros ao Lívio para fazer o meu guarda-roupa com o Viriato Ferreira. O vestido vermelho de Marilyn e o de aranha da Pola Negri foram um sucesso. Rogéria passaria praticamente todo o ano de 1974 excursionando pelo interior de São Paulo com esse show-desfile, uma produção orçada em 500 mil cruzeiros, quantia significativa à época. A montagem dos palcos durava cerca de 14 horas, e as viagens eram feitas em dois caminhões, um ônibus e um número variável de carros. Com os cachês, Rogéria compraria seu apartamento na rua Sete de Setembro, bairro de Icaraí, Niterói, onde passaria a morar com a mãe, seu tio Aguinaldo e seus dois irmãos, Assis e Flávio. Durante esse tempo, Rogéria assistiu a uma apresentação fantástica de Elis Regina, no Centro de Convenções do Anhembi. No final da récita, dirigindo-se ao camarim da estrela, encontrou Claudette Soares, que a avisou para ter cuidado porque ela já não era mais a mesma pessoa que haviam conhecido. Rogéria ficou receosa. De repente, foi puxada pelo braço pela própria Elis: “Virou estrela, é, Rogéria, está esnobando as outras?” Pôde comprovar que, a despeito de tudo o que falavam dela, Elis continuava a mesma da época da TV Rio. Eu me lembro da sua figura nos bastidores da TV Rio, novinha, mirrada, sem graça. Eu já era um maquiador famoso, e Elis não era ninguém, nem o Furacão, nem a Pimentinha. Engraçado que a primeira vez que ela veio se maquiar eu não dei muita bola, até a tratei com certo desdém. Ela gostou do meu toque e perguntou: – Você vai me ver cantar? Com ar de enfado, respondi que sim. Quando a vi no programa Noites de gala, ao lado de Jorge Ben, Wilson Simonal, Trio Irakitan e Marly Tavares, não tive mais dúvidas de que ali estava uma das maiores cantoras que o Brasil teria. ESTADOS UNIDOS, PORTO RICO E VENEZUELA “A primeira coisa que gosto de fazer, se vejo alguém interessado em mim, é logo dizer a verdade: não sou mulher.” Ao ver Rogéria no palco, o empresário americano que antes vetara sua presença mudou de ideia e aceitou a indicação de Haroldo Costa e Mary Marinho. Estava tudo acertado para a realização do Royal Carnival from Brazil, em Nova York, no tradicional Escuelita Night Club. O show era composto basicamente de números folclóricos, carnavalescos e variedades, sustentado pelo tripé mulher (no caso, travesti), samba e batucada. Produtor do show, Haroldo Costa até hoje lembra da disciplina e da seriedade de Rogéria: “Sem dúvida, um dos mais talentosos e versáteis atores brasileiros, com um incrível senso profissional.” O Haroldo insistiu para que eu fizesse o espetáculo, com a condição de não dizer ao público que eu era homem. Subi nas tamancas: – Mas, Haroldo, eu não quero enganar ninguém, não vou passar por mulher! Na hora agá, no final, depois de cantar “A voz do morro”, do Zé Kéti, eu brincava com a plateia, pedindo para ser beijada. – Hello, can you kiss me? Os americanos nem desconfiavam que eu era homem. – Oh, yes! – respondiam. E todos me beijavam. Então, eu dizia: – I’m not a girl, I’m a guy! Era um acontecimento, o público ficava de queixo caído. E as mulheres, que antes estavam receosas e cheias de ciúme, adoravam. Rogéria aproveitou a viagem e passou uns dias em Nova York, na casa da amiga Brigitte de Búzios, muito bem localizada, na 45th com a Oitava, a um pulo da Broadway. Assistiu à montagem de Bob Fosse de Chicago, com Chita Rivera, e The Wiz, de Charlie Smalls, no Majestic Theatre, com uma trupe só de atores negros. Ainda deu tempo de badalar no Ebony e sair numa foto com Pelé, que estava por lá com o time do Cosmos. Me impressionei com a simpatia e a simplicidade do Pelé. Ao me ver, foi bastante solícito e se ofereceu para tirar uma foto. Uma pessoa maravilhosa e iluminada. Nessa noite tive um flerte com o goleiro do Cosmos, um americano lindo que cheirava a pasta de dente. Mas só uns beijinhos e amassos, não deu tempo para nada além disso. De lá, o show, agora com o título de Carnaval real del Brasil, seguiu para Porto Rico, na rede de hotéis e cassinos Flamboyán, e depois para Caracas, na Venezuela, no Hotel Tamanaco. No final, havia um desfile de fantasias em que a plateia determinava a vencedora. Rita Cadillac, uma das dançarinas, conta como era difícil competir com Rogéria no quesito sedução. “Não tinha para ninguém, ela pegava todos os homens. Impressionante. Nós íamos para a varanda do Hotel Flamboyán e todos os caras só olhavam para ela. Parecia um magnetismo, nunca vi igual. Se eu sou hoje o que sou, devo muito a ela. Foi quem me ensinou tudo, a ser feminina, sexy, me posicionar, me ensinou a ser mulher.” Em Caracas, fiquei hospedada no Tamanaco e resolvi dar uma volta. O hotel era lindo e tinha uma área verde enorme, com jardins e árvores, meio um labirinto de tanta planta. Dei de cara com o jardineiro, que ficou me olhando. Era lindo, uns braços musculosos, alto, magro. De propósito me coloquei estrategicamente numa parte bem afastada e fechada do jardim, e ele veio direto, como abelha no mel, foi logo me agarrando. Fiquei com medo, porque não tinha dado nem tempo de explicar que eu era homem, o cara não ia ver uma boceta e ia querer me matar. Mas ele foi direto na minha braguilha, já sabia direitinho e era exatamente isso que queria. Me fez um sexo oral ali mesmo, de joelhos. De repente, me apareceu do nada um guarda florestal, talvez segurança do hotel. Pronto! Pensei: “Agora acabou tudo.” Mas nada, ele ficou olhando com cara de safado. Então o convidei para a farra. Ficamos ali, os três, foi ótimo. As apresentações em Porto Rico e na Venezuela foram diferentes, assim como a receptividade e a interação com o público. Em Porto Rico, o sucesso de Rogéria foi tamanho que a produção conseguiu sua participação num programa da televisão local, de grande popularidade. Haroldo Costa recorda: “Foi um acontecimento. Pela primeira vez em Porto Rico um transformista se apresentava na tevê, quebrando um tabu até então existente por lá. O impacto de Rogéria pode ser mensurado por um episódio inusitado. Minha mulher, Mary Marinho, coreógrafa do show, teve uma súbita crise renal e foi levada a um médico que, por coincidência, tinha visto nosso show na noite anterior. Pois bem, enquanto a Mary se contorcia de dor, o doutor insistia querendo saber se os cabelos (sempre belos) da Rogéria eram falsos ou verdadeiros.” Já em Caracas, com exceção dos jornalistas e funcionários do hotel que já haviam sido informados que Rogéria era um travesti, as pessoas não entendiam que ela era um rapaz. Não compreendiam as brincadeiras e achavam que ela era uma mulher que estava fazendo um papel ridículo, querendo se passar por homem. Haroldo e Mary se divertiam com isso: “Ué, você não está feliz de passar por mulher?” Eu estava puta com aquela história, quase botando o pinto pra fora. Em Porto Rico o povo era mais arejado, adorei a plateia de lá, mais caliente e participativa. À repórter porto-riquenha Rubita Cervoni, Rogéria explicou sua curiosa opção de vida e palco: “Yo, vestida de hombre, era un chico guapo, pero no se podia decir si era hombre o mujer. Yo no soy mujer. Fisicamente uno puede cambiarse, pero mentalmente no.” Rubita concluía a matéria assim: “Rogeria resulta una asignación excepcional porque se trata de un caso en que una persona, con mentalidad de hombre, ha escogido como profesión el imitar de una mujer. Rogeria habla con la mayor franqueza, muy segura de si misma.” Nesse momento de vida, Astolfo, como Rogéria, pensava, andava, cantava, falava e vestia-se como mulher, embora jamais quisesse ser uma. Via-se como um artista, antes de qualquer coisa. Sempre conviveu com o risco de se expor e parecer ridículo. Sua personalidade, no entanto, o fez duro na queda frente aos desafios. É muito tênue o fio que separa o ridículo do sublime. Para algumas pessoas, devo parecer ridícula, mas sempre me achei sublime. CINEMA E TEATRO“Imagina se eu ia fazer uma cena nua, correndo com o saco aparecendo.” Retornando da turnê pelos Estados Unidos, Rogéria recebeu um convite para filmar O sexualista, pornochanchada produzida na Boca do Lixo paulista e dirigida por Egydio Eccio, com Agildo Ribeiro, Nadir Fernandes e Older Cazarré no elenco. Rogéria fazia o papel de um travesti (Candy). O roteiro, assinado por Marcos Rey, autor de Memórias de um gigolô, contava a história de um escritor de um dicionário de sexo (Agildo), único herdeiro da fortuna do tio (Cazarré), que planejava, junto com a namorada (Nadir), provocar a morte dele, fazendo-o enfartar ao sair com uma mulher e descobrir tratar-se de um travesti (Rogéria). Nesse filme, Rogéria interpretava a canção “Diamonds Are a Girl’s Best Friend”, eternizada por Marilyn Monroe no filme Os homens preferem as loiras, de 1953. Foi divertidíssimo filmar O sexualista. Na cena final, quando minha personagem, Candy, é desmascarada, há um nu total, plano de costas, em que tiram sua roupa e ela sai correndo, fugindo de todos. Na hora pedi uma dublê, de preferência uma figurante com o corpo belíssimo. Imagina se eu ia fazer essa cena, nua, correndo com o saco aparecendo. Rogéria ainda trazia alguns resquícios do Astolfo das brigas de rua em Niterói. Pegando um táxi para Copacabana, perdeu todos os seus documentos, numa briga com o motorista. Peguei um táxi para Copa, e o chofer mal-educado reclamava de tudo, achava tudo ruim, dirigia mal e xingava os outros motoristas. Se visse uma mulher no volante, então... Aí eu fiquei cheia e mandei que ele parasse. O sujeito começou a engrossar. Eu estava vestido de mulher. Voei em cima dele. Depois fiquei pensando: “Sossega, Astolfo. Você não vive dizendo que é uma mulher? Como é que vai sair na porrada desse jeito com um chofer de táxi?” Moral da história: na confusão, perdi meus documentos. Como é que vai passar pela cabeça daquele taxista que eram meus documentos se tudo estava com nome de Astolfo? Com a lição, Rogéria adotaria um comportamento mais de acordo com sua postura. Não combinava com sua escolha de vida ficar saindo no braço por aí. Acalmou-se. Sua amiga Valéria, contudo, não passava por uma fase assim tão calma. Voltando com o amigo Cezar Sepúlveda de uma sessão de fotos num estúdio em Ipanema, Rogéria resolveu visitar a amiga, que ensaiava na Boate Monsieur Pujol, de Alberico Campana, com o show Misto quente, em dupla com Agildo Ribeiro. Chegando lá, conversou com Pedrinho Mattar, que fazia a parte musical, e soube que as coisas não andavam bem. Valéria, insatisfeita com a produção, exigia que todo o cenário do show do Teatro Princesa Isabel fosse levado para a boate. Como o espaço era menor, tornava-se inviável. No dia seguinte, Rogéria recebeu um telefonema de Alberico pedindo seu comparecimento urgente à boate. Foi comunicada do afastamento de Valéria e, surpresa, recebeu o convite para substituí-la. Antes de aceitar, consultou a amiga. A Valéria não ficou sentida comigo, não. O meu show ficou sendo Misto quente 2 ou Misto quente do outro lado. O novo espetáculo ficaria em cartaz na Boate Monsieur Pujol por cinco meses e ainda teve uma minitemporada em São Paulo, na Boate Café Concerto. Guardo com carinho a lembrança da minha noite de estreia no Café Concerto, do Parque do Ibirapuera. No final do show, a grande Regina Duarte entra no meu camarim e me pergunta: “Menina, onde você aprendeu a fazer tudo isso?” Uma glória ouvir isso de uma atriz do porte da Regina. Outro acontecimento causava rebuliço nessa boate: todas as noites o playboy e socialite paulistano Chiquinho Scarpa enchia o camarim de Rogéria com corbeilles de flores acompanhadas de bilhetes inflamados. Também foram bem animadas e comentadas as idas de Rogéria, após o show no Café, à Boate Hippopotamus, de Ricardo Amaral. Antes do meu show, dei uma passada de manhã para conhecer a Hippopotamus, do Ricardo Amaral, mas tudo estava em obras. A inauguração tinha sido marcada para aquela noite. Concluí que daquele jeito não daria tempo. Depois da minha apresentação no Café, uma e tanto da madrugada, quando cheguei à Hippo, tomei o maior susto: a boate estava pronta! Um espetáculo, toda decorada, uma das mais bonitas que conheci, e olha que não foram poucas. Tinha um aquário enorme, com um jacaré dentro. A fina flor do jet set paulistano comparecia em peso ao local. Eu ficava sempre com Gisella Amaral e Danuza Leão. Foi lá que conheci o José Wilker. Ele me procurou porque queria me conhecer pessoalmente. Enquanto isso, Agildo (direção) e Carlos Machado (produção) acertavam os detalhes de um novo espetáculo, o Alta rotatividade. Com os ensaios a todo vapor, estreou na Boate Sucata, no Rio, em julho de 1976. Na noite carioca, quatro espetáculos chamavam a atenção naquela época. O crítico da revista Veja Antônio Chrysóstomo comentou o show da dupla Agildo e Rogéria na Sucata; o de Miele e Sandra Bréa, na Boate Vivará; e as apresentações musicais de Ruy Maurity, no Museu de Arte Moderna, e do conjunto O Terço, no Teatro João Caetano. Alta rotatividade era, sem dúvida, o grande destaque, sempre com casa lotada. Capitaneado por textos bem-humorados de Max Nunes e Haroldo Barbosa, o espetáculo era estruturado a partir de perguntas feitas à dupla Rogéria e Agildo por Ary Fontoura e Leila Cravo. O cenário era simples, com um fundo cinza-prata, dois banquinhos e dois microfones, onde se revezavam as duas atrações e os respectivos coadjuvantes. Chrysóstomo elogiava as atuações de Fontoura e Rogéria, e ressaltava que a jovem atriz, Leila Cravo, não acompanhava as diabruras de um Agildo em plena forma, notadamente nas imitações de Dercy Gonçalves, Chacrinha e Nelson Rodrigues. O espetáculo mesclava autodeboche, criatividade e molecagem, mas alguns senões foram observados, como a direção excessivamente televisiva, em detrimento dos recursos cênicos de palco. Como se tudo estivesse sendo registrado por câmeras de uma tevê imaginária. Mas o amplo sucesso, traduzido pelos nove meses da peça em cartaz, compensava os pequenos deslizes, e o show agradava ao público e à crítica, forçando inevitáveis comparações entre Rogéria e Sandra Bréa, com nítida vantagem para a primeira, bem mais à vontade em seu papel de show-woman, contando piadas, cantando, dançando e mexendo com a plateia. Após a carreira na Sucata, o espetáculo seguiu para uma curta temporada de três meses em São Paulo, no Teatro Brigadeiro, para retornar, a preços mais acessíveis, no Teatro Princesa Isabel. O próprio Agildo justificava: “Viemos a São Paulo para testar o formato do show em um teatro. Os ingressos agora estão bem baratos, 70 cruzeiros, e 40, estudantes. Agora o povo do Rio vai poder assistir, já que antes só ouvira falar.” Rogéria sempre se divertia com Agildo, que inventava histórias escalafobéticas, coisas que nunca aconteceram, somente para arrancar risadas. Ficou famosa a história do empresário nordestino que queria levar Rogéria para se apresentar no Acre, em Roraima, em Rondônia e no Tocantins. O cara era de uma grossura impressionante e, quando Rogéria quis saber se iria ganhar um bom dinheiro, ele respondeu: “Se vai ou não ganhar dinheiro, não posso garantir, mas que você vai voltar para o Rio com o cu parecendo um fole, vai.” O tal empresário existiu realmente, mas não se sabe se o caso teve o desfecho contado por Agildo. E Rogéria, claro, não fez essa turnê. O show Alta rotatividade resultou num disco, gravado ao vivo, pelo selo Phillips. Rogéria poderia até ter processado a gravadora por má-fé ou impedido o seu lançamento, uma vez que seu nome e sua foto foram usados na capa embora o disco só contivesse os números gravados por Agildo. Foi uma tremenda falta de ética da gravadora, e tudo por puro preconceito, além de burrice e pouca visão de negócios. Resultou num disco sem pé nem cabeça. Jane Di Castro também foi vítima desses preconceitos e não conseguiu gravar. Um dos argumentos das gravadoras era de que a ditadura não gostava de bichas, olha que absurdo... O espetáculo ficaria emcartaz por mais três anos. Nas apresentações no Princesa Isabel, Ary Fontoura, impedido por suas gravações na novela, era substituído por Luiz Pimentel, e Leila Cravo, por Maria Odete. Vindo da temporada de São Paulo, o costureiro Ronaldo Esper assinava o guarda- roupa de Rogéria. A peça ainda passou por várias capitais e cidades do país, utilizando, com total êxito, o formato de Rogéria brincar e provocar a plateia. Sempre com irreverência, ela conquistava o público com sua simpática ousadia. Em Maceió, por exemplo, o cronista da Gazeta de Alagoas ressaltava seu carisma com os mais velhos, as crianças e até os empedernidos pais de família da sociedade local: “No final do show vi, com grande surpresa, muitos machões de Maceió, com suas esposas, apresentando-as a Rogéria.” Mas o grande atrevimento aconteceria na capital federal, quando foi parar no colo do então chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. Ainda bem que sabem diferenciar e aceitar as minhas brincadeirinhas. Eu já me engracei com o general Golbery, homem forte da ditadura, e me sentei no colo dele num show que fiz em Brasília. Algumas pessoas depois me disseram que eu pagaria caro pela insolência, mas o general levou na boa, até gostou, e não precisei ser exilada. SEXO SEM AMOR “Nós éramos um prato cheio para os fofoqueiros de plantão.” Durante as apresentações no Teatro Princesa Isabel, Rogéria iniciou um tórrido romance com um grande nome da imprensa. Os encontros eram sempre às escondidas, com o tempero do perigo de serem descobertos. Eu me envolvi, mas protegi seu nome, sua imagem, a própria carreira dele. Foi por amor que eu o preservei. No fundo, eu tinha pouco a perder, até ganharia com o provável escândalo, mas a carreira dele terminaria. Lembro que ele me convidava para ir à Boate Convés, na Barra da Tijuca, pois lá era escurinho e poderíamos dançar. Eu lembrava que não era escuro o suficiente e que nós éramos um prato cheio para os fofoqueiros de plantão. Nosso caso foi especial, meio autoafirmação do glamour daqueles anos de badalação. Chegamos à conclusão, depois de um tempo, de que deveríamos parar de nos encontrar. Quando terminamos, ele me confidenciou que era bastante agradecido por eu tê-lo preservado o tempo todo. Todas as vezes em que a gente se reencontrava, ele, com a mulher, havia sempre muito carinho e respeito. Algumas pessoas, na época, chegaram a nos flagrar juntos, presenciavam a paquera, mas, graças a Deus, nada vazou para a imprensa. Esse segredo ficou só entre nós. “Eu só era ativa com um homem se ele fosse muito macho. Não tenho tesão por viado.” Tal qual a personagem Júlia d’Aiglemont, do livro A mulher de trinta anos, do francês Honoré de Balzac, referência às mulheres fogosas na casa dos 30, Rogéria vivia uma espécie de apogeu sexual. Teve várias paixões, a maioria efêmeras, volta e meia vivenciando toda a intensidade dessas loucas aventuras, embora consciente de tratar-se de uma mentira. Deixava-se, no entanto, levar por essas breves paixões. Na verdade, estava apaixonada era pela vida. Lembro de um ator, na época noivo de uma miss lindíssima, que desfilava com ela, tirava fotos, ia às boates, ao teatro, restaurante e, de madrugada, acabava lá na minha casa para fazer sexo oral e outras sacanagens comigo. Eu preferia ser passivo, gostava de dar prazer e me decepcionava um pouco quando o homem queria se entregar. Já tive grandes surpresas. Julgava que ia ser Julieta e tinha que me contentar em ser o Romeu. Teve um outro ator de cinema pornô, bem conhecido, que foi para a cama comigo. Era machão, mas na hora agá me pediu para ser ativo com ele. Foi uma festa. Quando acabou, veio me esculhambar, dizendo-se arrependido e me questionando como eu tinha feito aquilo com ele. Não admito isso. A bem dizer, esse tipo de homem, machão e que dá o rabo, não é homossexual, é vicioso. Nem todos os homossexuais gostam de sexo anal, e muitas mulheres fazem anal sem ser homossexuais. A sexualidade é, ao mesmo tempo, simples e complexa. Passei a minha vida sendo macho e fêmea, Adão e Eva, Cleópatra e Marco Antônio, João e Maria... Numa noite, quando saía com Ricardo Amaral de uma apresentação do Alta rotatividade, Rogéria conheceu um paulistano rico e bonitão, que lhe ofereceu carona. Ele viria a se transformar numa espécie de personal sexual (Rogéria o apelidou de Mr. Foda). Mantiveram esses encontros íntimos e esporádicos por quase 12 anos. Conheci o meu paulistano misterioso na saída do show. Era um taradão. Nunca soube quase nada de sua vida. Também não me interessava. Ele apenas me procurava, de tempos em tempos, para transar. Me telefonava e marcávamos nos hotéis. As trepadas eram fantásticas. Tinha o pau mais lindo do mundo, mas gostava também de ser passivo. Adorava beijar e me pedia que cuspisse em sua boca. Ele colocava em mim e gozava muito rápido. Depois eu ia à forra. Ele me pedia para prender o cabelo com um rabo de cavalo e, como uma Helena de Troia, no melhor estilo lesbian chic, o comia de várias maneiras. Era muito bom de cama e de imaginação. Eu o chamava de Mr. Foda. Ficamos nessa por mais de dez anos. Da mesma forma que apareceu, também sumiu. Rogéria sempre teve consciência dos riscos assumidos e dos enfrentamentos claros que sua opção traria. Ser travesti impunha certos limites intrínsecos que ela pretendia superar. E não havia maneira melhor para vencer essas barreiras do que se esmerar na arte. Nesse momento de vida começou, então, a busca por trabalhos que pudessem reafirmar sua escolha artística. Sabia que suas atuações como vedete e show-woman eram receitas de sucesso. Havia o escárnio, a curiosidade sobre sua figura dúbia e o humor escrachado. Mas sonhava em ousar mais. Já que a televisão e a música vetavam sua aparição, sob o ranço preconceituoso da censura, Rogéria voltava-se para o cinema e o teatro. Ela já havia participado de uma pornochanchada e agora ambicionava um trabalho mais sério. Recebeu com satisfação e aceitou na hora o convite de Julio Bressane para participar do filme-cabeça O Gigante da América, de 1978. Com indícios de inspiração na obra de Dante Alighieri, o roteiro trazia a saga de um homem passando por inferno, purgatório e paraíso, tendo como cenário a América. O tal homem, durante sua jornada, ouvia e refletia sobre problemas ligados à existência e à colonização. O elenco numeroso e heterogêneo tinha, além de Rogéria, Jece Valadão, José Lewgoy, Martim Francisco, Carlos Imperial, Wilson Grey, Tânia Bôscoli, Antônio Pedro, Colé, Maria Gladys, Clóvis Bornay, entre outros. Os vinte primeiros minutos do filme não contêm diálogos. Rogéria entra em cena apanhando do personagem de Jece Valadão e em outro momento é perseguida por um pênis gigante. Há uma passagem cômica, em que os personagens de Lewgoy e Martim Francisco dialogam como dementes. Uma das cenas mais curiosas é a da sala de torturas no purgatório, onde duas mulheres, só de calcinha, são acorrentadas, apalpadas e lambidas por uma morena de luvas e por um sujeito não identificado. O filme foi uma loucura. Até hoje me lembro daquela piroca enorme de borracha atrás de mim. Uma piroca opressora. Deus me livre! Uma coisa boa de que me lembro foi ter ouvido do Lewgoy que eu era o único travesti que ele respeitava e considerava artista. Como eu sabia que ele não gostava desse gênero, o elogio ganhou ainda mais peso e valor para mim. A seguir, Rogéria teve uma participação no filme Gugu, o bom de cama. Gugu (Agildo Ribeiro) era um estilista homossexual e talentoso, porém sua mãe (Consuelo Leandro) queria vê-lo casado e realizar o sonho de ter um neto. Ela recorria a uma mística charlatona (Nair Bello), e a vida de Gugu acabava virando de ponta-cabeça. Terminava casando com uma de suas colegas de trabalho e tinha um filho. Não suportando mais ser um homem de família e ter de cuidar de sua insaciável mulher na cama, ele fugia para o Rio de Janeiro, onde se tornava um costureiro de sucesso. Vinte anos depois, seu filho resolvia conhecê-lo. O problema era que ambos tentavam sero que não eram. Mais chanchada impossível. Rogéria fazia o papel dela mesma e aparecia dublada e revelando os seios. Nessa época fazia sucesso na televisão o seriado da Globo Plantão de polícia, que ficaria no ar por três temporadas. Com Hugo Carvana como o jornalista investigativo Valdomiro Pena, Marcos Paulo como o editor do jornal e Lutero Luiz como o fotógrafo Bezerra, foi um dos primeiros seriados televisivos a tratar de temas pesados, como o tráfico de drogas e crimes contra prostitutas e homossexuais. Aguinaldo Silva, um dos idealizadores do programa, sugeriu o nome de Rogéria para uma participação especial. Ela foi comunicada, mas, uma semana depois, informaram que seu nome havia sido retirado da pauta. Estava toda feliz e animada para participar do seriado e recebo o telefonema do diretor Jardel Mello, meu amigo de longa data, me perguntando se eu tinha algum problema com a Rede Globo. Eu, espantada, perguntei por quê. Ele me disse que tinham retirado o meu papel. Fui direto ao Boni, que me recebeu na hora e garantiu que não havia nada contra mim e que essa decisão era exclusiva do núcleo. Ora, se não tinha sido do chefe nem do diretor, só podia ter sido do ator principal. Alguém que trabalhava no seriado não ia com a minha cara e não quis que eu fizesse o papel. PRÊMIO MAMBEMBE “Só conquista respeito quem se dá ao respeito.” Ainda na fase de tentar imputar seriedade ao seu trabalho como atriz, Rogéria recebeu, com satisfação e alguma surpresa, o convite do diretor de teatro Aderbal Freire-Filho (na época conhecido como Aderbal Júnior) para a peça O desembestado, baseada no conto homônimo do livro Últimos sinos da infância, do baiano Ariovaldo Mattos. Também faziam parte do elenco Grande Otelo e Nelson Caruso. Os três personagens, de classe média, viviam os problemas fruto da realidade política e econômica do país, passando pela aceitação passiva da miséria, os impasses morais e a corrupção. O papel de Rogéria era o de uma beata, Zulnara, puritana que vivia rezando e fugia de tudo usando a religião, numa alegoria à alienação oriunda de uma religiosidade extremada e fanática. Curioso, e de certa forma preocupante, notar que os problemas focados no drama de Ariovaldo, passado no final dos anos 1970, permanecem atuais e atuantes apenas com a alternância de alguns nomes e endereços. Quando recebi o convite do Aderbal Júnior, fiquei um pouco ansiosa. De fato, era uma ótima oportunidade de mostrar definitivamente que eu não era uma bicha louca, e sim uma artista. Mas, quando li a peça, detestei de cara a minha personagem e fui conversar com o Aderbal: – Como vou fazer essa mulher podre, horrorosa? E ele me provocou: – Ué, você só sabe fazer mulher com plumas e paetês? Eu tinha lido em Stanislavski que “se você não ama o personagem, não vai conseguir fazê-lo”. Com o tempo fui mudando de ideia e falava comigo mesma: “Querida, aqui não tem bom ou mau papel, vontade ou não de fazer.” Aí, resolvi encarar. O crítico de teatro Macksen Luiz escreveu sobre a peça destacando a atuação surpreendente de Rogéria: “O talento de Rogéria está revelado e à espera de produtores que saibam explorá-lo, não como um fenômeno extraterreno, mas com um potencial artístico de um intérprete sensível e inteligente.” A peça foi encenada no teatro do América F. C. e deu a Rogéria o prêmio Mambembe, como revelação (no início houve uma dúvida dos jurados se seria atriz ou ator). Era uma espécie de certificação do que ela mais aspirava: ser reconhecida não como um cara que se vestia de mulher, mas como uma atriz (ou ator) de verdade. O destino ajudou Rogéria a receber a maior premiação de sua carreira. Quando ela acabou de assinar o contrato para atuar em O desembestado, começaram a surgir convites para shows, apresentações e viagens. Rogéria só fez a peça porque, caso não cumprisse o contrato, seria suspensa por um ano de praticar qualquer atividade artística. Na verdade, relutou bastante e só seguiu em frente por obrigação contratual. No dia 18 de junho de 1979, morria, aos 80 anos, no Rio de Janeiro, o grande ator Procópio Ferreira. Ícone da nossa dramaturgia, da velha escola do teatro, ao lado de Dulcina de Moraes e Jaime Costa, Procópio tinha trabalhado em mais de 400 peças. Sua admiração especial por Rogéria fez com que a filha, Bibi, o levasse uma noite para assisti-la. Certos elogios podem pôr a gente na berlinda ou sem ação. Uma vez, o mestre Procópio Ferreira foi ao meu camarim depois de um espetáculo e, na frente de uma porção de gente, falou: “Certos quadros são perfeitos quando vistos de longe, de perto descobrimos imperfeições. Com você, minha filha, é exatamente o contrário.” Quase desmaiei. Para mim, foi como ganhar outro Mambembe. O escritor e jornalista Artur da Távola também escreveu sobre Rogéria em sua crônica no jornal O Globo: “Rogéria, o travesti que antes de tudo é uma artista de primeira, tem a seu favor ter enfrentado a barra do travesti em tempos muito mais repressivos, machistas e agressivos, tempos de muito menor aceitação de sua maneira de ser e representar.” Na peça, pela qual foi premiada, Rogéria vivia uma moça pudica, sem pintura, cabelo para trás, casada com um homem que vivia na igreja (Grande Otelo). Um papel dificílimo, mas que convenceu a crítica. Perguntada por uma repórter se gostaria de repetir outro papel dramático como aquele, Rogéria, realista, respondeu negativamente, já que a peça e o papel não tinham lhe dado o dinheiro de que precisava. Fazer teatro sério é muito bom, as pessoas elogiam e te respeitam, mas na hora de pagar as contas é o velho teatro de revista que me sustenta. É a minha frescura que rende. Quero viver bem e em paz com as minhas obrigações. De fato, os espetáculos que Rogéria estrelava como vedete eram os que garantiam sua sobrevivência material. A realidade mostrava um cenário em que o teatro de revista parecia estar definitivamente atrelado aos shows com travestis. Pairava no ar, ainda, uma teimosa curiosidade em relação ao suposto exotismo deles. Baseado nessas premissas do mercado, da quase certeza de êxito e lotação garantida, o produtor João Paulo Pinheiro iniciou os trabalhos para a realização de um musical de travestis, em forma de revista, com muitas plumas, paetês e humor. Para a direção foi convidada Bibi Ferreira, um nome de consenso do teatro nacional. Houve uma primeira reunião com a produção e os principais travestis em atividade, e Bibi logo perguntou por Rogéria, em sua opinião, o nome certo para estrelar o musical. Sem ela, nada feito. No documentário Retratos brasileiros, de Lara Velho, no depoimento de Bibi pode-se entender a preferência da diretora: “Rogéria sempre teve a faculdade de saber estar em cena, sempre soube se vestir e se arrumar. É difícil encontrar uma pessoa que goste de canto e tenha voz, além de falar tão bem, e Rogéria se expressa em vários idiomas.” Quando Rogéria foi chamada, ao saber do caráter luxuoso do projeto e de quem a dirigiria, aceitou na hora. O carnavalesco Joãosinho Trinta seria o responsável pela programação visual, com figurinos de Marco Antonio Palmeira e Eloína. O roteiro era de Arnaud Rodrigues. Com o nome de Gay Fantasy, título sugerido por Rogéria, inspirado no disco de John Lennon, Double Fantasy, o show estreou em fevereiro de 1980 no teatro da Galeria Alaska, em Copacabana. Em cena, uma viagem interplanetária dos travestis em busca de um planeta em que não houvesse a concorrência das mulheres. Basicamente calcado em clichês, o texto era apenas um pretexto para as performances e provocações dos travestis (Rogéria, Eloína, Marlene Casanova, Claudia Celeste, Jane Di Castro – na época somente Jane – e Veruska). O sucesso foi total, lotações esgotadas, venda de cadeiras extras e uma procura bem acima da média das outras casas de espetáculo. O crítico do Jornal do Brasil, Yan Michalski, reclamou do verdadeiro caos que foi a noite de estreia, tendo a situação se agravado com a presença maciça dos convidados, num número bem superior ao da capacidade da sala. A Polícia Militarteve de ser chamada para tentar organizar a confusão. Nada mais emblemático. O êxito comercial não deixava dúvidas: Rogéria e as meninas arrasavam na noite carioca. Um público heterogêneo marcava presença, entre figuras do soçaite local, como Odile Rubirosa, Adalgisa Teruszkin, Sueli Stambowsky, Jorginho Guinle com Fernanda Bruni, além de personalidades do mundo artístico, Jô Soares, Sylvia Bandeira, Elke Maravilha, Nélia Paula, Alcione, Clara Nunes, Tony Ramos, Elizeth Cardoso, Alcione Mazzeo, Sônia de Paula, Nestor de Montemar, Marina Miranda, o cabeleireiro Silvinho e até o ex-primeiro-ministro de Portugal Mário Soares. Elke Maravilha não se cansava de elogiar a atuação de Rogéria e revelar que a amiga, de tão feminina, contrariava os preceitos genéticos e tinha até um útero. O colunista social Ibrahim Sued destacava que milhares de turistas argentinos na cidade eram presenças cativas no Teatro Alaska. Como em Buenos Aires eram proibidos os shows com travestis, a curiosidade dos visitantes era enorme. A crítica recebeu o espetáculo com restrições, admitindo o resultado expressivo dos números, ressaltando a garra e a atuação das meninas, mas registrando negativamente alguns equívocos e exageros. Flávio Marinho queixava-se da falta de originalidade e da inspiração no modelo da Broadway: “Quando os travestis entenderem que um simples e comunicativo número é mais eficaz que uma cópia pobrinha do finale de Chorus Line, o musical gay estará se encaminhando para sua autoafirmação. Seja como for, do jeito que está, não deixa de ser um passo à frente.” A resenha negativa mais enfática foi do jornalista de O Dia Armindo Blanco: “O texto é um horror e constituiria cruel afronta à condição humana dos travestis, se estes, afinal, não tivessem assumido tão alegremente o grau de ridículas aberrações a que os reduz o autor, com a surpreendente cumplicidade da ‘diretora-geral’ Bibi Ferreira.” Sobre Rogéria, foi ainda mais agudo: “Admito até um agressivo carisma em Rogéria, embora às vezes pareça uma Liza Minnelli dotada de hormônios masculinos e macaqueando-se a si mesma.” A crítica do Armindo Blanco ao Gay Fantasy foi recalque puro. Tudo porque eu fui mexer com ele na plateia sem saber que era crítico de teatro. Ele estava com uma mulher do lado, daí eu perguntei se ela era filha dele. Era a esposa. Ela achou que eu estava sacaneando. Juro por Deus que não sabia que era ele. Até hoje ele usa isso para me ferir, e você não pode levar em conta um problema pessoal para criticar um artista. O show teve enorme repercussão, e os personagens citados logo viravam nota de jornal ou apareciam em colunas sociais. A ex-primeira- dama Yolanda Costa e Silva mandou um recado por intermédio de seu advogado, exigindo a retirada do seu nome de uma piada contada no show. Numa sátira ao Jornal Nacional, o travesti Veruska noticiava o casamento de Yolanda com o filho de Roberto Carlos, que era deficiente visual. Interessante que não fazia parte do texto original, era um caco criado por Veruska. A fim de evitar problemas judiciais, o nome dela foi substituído pelo de Beki Klabin, que, ao contrário, não se opôs à menção, só comentando, com humor, que preferia que fosse o pai do noivo a se casar com ela. Numa outra apresentação, Rogéria fez menção a Angela Ro Ro e ao caso dela com Zizi Possi. Em resposta, a cantora a teria ameaçado. Foi um prato cheio para as revistas de fofoca, que publicaram o contra-ataque de Rogéria: “Sou muito homem e não tenho medo da Angela Ro Ro.” A cantora disse ser vítima do sensacionalismo barato e dos boatos e afirmou nunca ter assistido ao show de Rogéria nem fazer a menor objeção em ser citada, ao contrário, achava até uma promoção interessante: “Estão querendo me colocar contra a turma gay. Queria deixar claro que respeito o show da Rogéria ou qualquer outro trabalho. Tudo isso não passa de fofoca.” Gay Fantasy seguiu sua carreira vitoriosa, sempre com o elenco original (com exceção de Jane que teve de viajar ao exterior por causa de um compromisso assumido anteriormente e foi substituída por Samantha). O espetáculo comemoraria 300 apresentações em dezembro de 1981, numa concorrida festa na Boate Da Vinci, em São Conrado, no Rio de Janeiro, com a presença de grande parte do elenco e de vários convidados ilustres, entre eles Moacyr Deriquém, Jorge Dória, Íris Bruzzi, Arlete Salles, Roberto Talma, Maria Zilda, Neuza Amaral, Myriam Pérsia e Leina Krespi. Quando chegou à boate, Bibi Ferreira foi a mais festejada. Rogéria cantou, acompanhada do pianista Luiz Carlos Vinhas, e Emílio Santiago e Zezé Motta improvisaram uma canja no final. PORTUGAL: ARTISTA DE TRAVESTI “Umas meninas botavam a bunda no caminho para eu roçar. Eu ficava muito sério e dizia: “senhoras, por favor!” Em setembro de 1980, aproveitando uma brecha nos shows, Rogéria passou dez dias em Lisboa, contratada para três apresentações na Boate A Gata e no Cineteatro Monumental. O repórter António Duarte, que foi esperá-la na chegada ao aeroporto, teve uma surpresa: “Contávamos ver desembarcar um homem, mas surpreendeu-nos o facto de termos à nossa frente uma mulher de feições correctas, cabelos loiros, olhos eximiamente maquilhados, unhas pintadas, vestindo calças compridas justas e uma camisa decotada que deixava antever os seios. Enfim, uma ‘mulher’ autêntica. Não fossem os calcanhares um pouco grossos, e poder-se-ia pensar que se tratava de um manequim!” Em Portugal estavam também Mike Oldfield, no Porto, e os Ramones, no Pavilhão de Cascais, além da atriz Delfina Cruz e a fadista Cidália Moreira na revista Não deites foguetes no Teatro Variedades de Lisboa. Os shows de Rogéria, chamada por lá de “famosa artista de travesti”, foram concorridos, com vários convidados e a participação especial do cantor alentejano Xico Jorge. Ao voltar de Lisboa, no mesmo período em que fazia o Gay Fantasy, Rogéria apresentava-se também em outro show, no início da madrugada, no restaurante-boate Sambão & Sinhá, situado à rua Constante Ramos, em Copacabana. O proprietário, Ivon Curi, era seu amigo. Ao tabloide O Lampião, Rogéria explicou suas aventuras e a saia justa por que passou com as mulatas nos camarins do Sambão. Ivon foi o melhor patrão que eu tive. Eu me apresentava num show com umas mulatas lindas de morrer. Ele até ofereceu seu escritório para que eu usasse como camarim, mas preferi ficar com as meninas. Aliás, uma experiência única. Eram 18 mulheres; eu me trocava junto com elas, que passavam de peito e xoxota de fora na minha cara o tempo todo. No começo foi gozadíssimo, porque havia umas meninas que, quando eu passava no corredor, botavam a bunda no caminho para eu roçar. Eu ficava muito sério e dizia: – Senhoras, por favor! Aí elas falavam: – Ah, Rogéria, tem tanto travesti que também gosta de mulher. Mas não Rogéria. Tirei isso da cabeça delas. Mas antes, meu Deus, quase fui currada! A fase de Rogéria no Sambão & Sinhá foi muito profícua, tanto financeira como socialmente. Juntando o que ela ganhava lá com o dinheiro dos shows do Gay Fantasy, algumas economias e a venda do apartamento em Icaraí, ela comprou seu tríplex no bairro de Santa Rosa, em Niterói. Dona Eloah e Assis ficariam morando lá, enquanto Rogéria e Flávio seguiam com seus trabalhos e compromissos no Rio. Flávio iria se tornar um profissional bastante requisitado, trabalhando para a TV Globo como maquiador e cabeleireiro. Rogéria era quem mais o aconselhava e cobrava. Flávio sabia que o irmão tinha orgulho dele e reconhecia sua importância: “Astolfo ou Rogéria, como preferirem, foi meu irmão, meu padrinho e referencial de pai. Devo a minha mãe e a ele minha formação e educação. Um dos meus maiores orgulhos foi nunca ter lhe pedido nada, sempre fui à luta, assim como ele, que foi um exemplo de vida na minha carreira.” No palco do Sambão, Rogéria conheceu várias personalidades. Nunca iria esquecer uma noite em que mestre Chico Anysio elogiou-a no camarim, dizendo que se destacar no meio de todas aquelas mulheres era coisa de estrela. A cantora francesaMireille Mathieu, sem acreditar que Rogéria era um homem, visitou-a no camarim e as duas se divertiram, uma sentando no colo da outra. Ficaram amigas. Na saída de um show, também nasceria um caso furtivo com um famoso ator de cinema e novela. Nos aproximamos no restaurante do Ivon. Ele ia me pegar e ficávamos no maior love. Mas me sentia incomodada ao mesmo tempo que ficava com um enorme tesão. Ele era meio machão e tinha a maior vergonha de querer dar para mim. Eu ficava superexcitada quando ele pedia ‘Vai devagar, por favor’. Apagava todas as luzes para não se ver dando a bunda. Naquela hora com ele, eu não me sentia um homem, era como se eu fosse uma mulher dominadora, poderosa, em cima dele. Claro que nosso caso foi rápido, ele não esperava sentir vontade de ser comido por mim. Estragava toda a sua macheza. Eu compreendi e respeitei. Já estava acostumada, pois era comum isso acontecer. Os caras chegavam para dar para mim porque me viam como fêmea. As mulheres também davam em cima. Antigamente eu achava que eram só as lésbicas, mas rolava muita curiosidade. As mulatas do Sambão, por exemplo, mulherões, ótimas, realizadas sexualmente, mas queriam dar para mim. E reclamavam, falando que eu era uma chata, que eu era a única que não comia. Sexo anal, para mim, é detalhe. O sexo de verdade está na cabeça de cada um.” O ACIDENTE “Não tem mais cicatriz nenhuma. Tirei a dor da cicatriz do meu coração.” Madrugada chuvosa, véspera de Natal, 24 de dezembro de 1981. Depois de uma apresentação do Gay Fantasy, Rogéria voltava de carona com sua produtora, Regina Pinheiro. Vinham do Engenho de Dentro, onde tinham acabado de deixar o travesti Samantha, quando o carro delas foi fechado por um caminhão na rua Visconde de Niterói, quase em frente à quadra da Mangueira, numa bifurcação para a Quinta da Boa Vista e o Maracanã. Numa manobra brusca para tentar escapar da batida, o carro se chocou contra um monumento ali existente. Com a violência do impacto, o vidro dianteiro estilhaçou-se e Rogéria sofreu ferimentos por todo o rosto. Socorrida e levada para o Hospital Pedro Ernesto, foi submetida a uma delicada cirurgia plástica. Pode-se dizer que a operação foi extremamente bem-sucedida, já que ela corria sério risco de perder a vista direita, tamanha a extensão do corte entre as pálpebras e a sobrancelha. Ainda internada, Rogéria fez questão de receber todos os amigos e repórteres. Dona Eloah não saía do lado da filha. Rogéria, tentando manter o humor, dizia a todos que estava mesmo necessitada de um descanso, pois havia mais de dez anos não sabia o que eram férias. Estava à beira da estafa. Ela teve alta no dia 30 de dezembro, porém não pôde retornar ao show. Precisaria de, no mínimo, uns dois meses para se recuperar totalmente. Um dia, um cigano leu a minha mão e falou: – Você vai viver muito, mas vai ter um acidente. – Eu vou morrer? – Não, mas vai ficar quebrado. Eram quase seis da manhã, véspera do Natal. Estava muito cansada, quase dormindo. Não sei se foi o efeito do champanhe que eu tinha bebido. O carro não estava correndo tanto para bater e acontecer o que aconteceu. Moral da história: eu estava sem cinto, o carro bateu e foi terrível na hora. Não senti dor nenhuma, mas era muito sangue. Quando saí do carro, minha primeira preocupação foi colocar a mão nos olhos para sentir que eles estavam no lugar. Agradeci à Santa Luzia. Enfim, esse acidente era para acontecer na minha vida. As pessoas ao redor foram muito solícitas e gentis. Parou logo uma Kombi que me levou ao hospital. Me lembro que, quando entrei, uma enfermeira veio com um tubo na minha garganta para que eu vomitasse. Retirei o tubo que estava me machucando e pus o dedo na goela. Coloquei tudo para fora e apaguei. Tive que fazer transfusão, quase morri por falta de sangue. Foram cortes profundos no rosto, machuquei bastante a boca. Quando vi que faltava um pedaço da minha boca, quase desmaiei. Estava transfigurada, entrei em paranoia e chamei o médico, que me tranquilizou: “Rogéria, a gente não vai mexer na boca, porque boca cresce.” Fiquei mais calma, mas ainda bem preocupada. Enquanto estava me restabelecendo, tentei não me desesperar e pensava: “Você deve agradecer a Deus, escapou de morrer.” Era tanta gente para me ver, as enfermeiras traziam os amigos e parentes. Estava ficando cansada demais, era muita gente me visitando. No primeiro dia, quando me olhei no espelho, concluí: “Acabou tudo pra mim!” Parecia que um leão tinha me dado uma patada na cara, tinha perdido tecido da face, o cabelo estava cortado meio como um escalpo, aquela coisa meio Frankenstein, um horror. Eu lembro que Bibi falou: “Cara se conserta com plástica. Se tivesse quebrado a perna, seria pior.” Ela tinha razão, mas, aos 38 anos, quebrar a cara, assim? Não que eu vivesse só de beleza, mas... Meu maior temor foi o de ficar cega. Já imaginou um viado cego? Não ia usar olho de vidro nem morta. Cheguei a pensar que ninguém iria me amar mais e que minha carreira havia acabado. Rogéria foi submetida a duas plásticas e uma raspagem na cartilagem do nariz. Como alguns cacos de vidro teriam entrado no seu olho direito, a primeira operação foi realizada em caráter de urgência no próprio Pedro Ernesto pelo cirurgião-plástico Cláudio Cardoso de Castro, a quem Rogéria fez questão de agradecer, destacando sua eficiência e presteza que evitaram que perdesse uma das vistas. Três anos depois, ela faria os últimos acertos e correções com o Dr. Ivo Pitanguy. Um mês e meio após o acidente, Rogéria voltava à ativa, aparecendo no programa de Agildo Ribeiro na Globo, o Estúdio A-Gildo, ao lado de Lucinha Lins, Ísis de Oliveira e o cabeleireiro Silvinho. Como uma fênix, eu retornava e aparecia na televisão, usando uma espécie de faixa na cabeça, uma bandagem, para disfarçar as marcas do acidente. Quando entrei no camarim do programa do Agildo, notei certo constrangimento, tipo “Ai, meu Deus, que desgraça aconteceu com ela?”. Meu amigo Silvinho me chamou: “Vamos, Rogéria, vamos nos arrumar.” Tinha uma purpurina, que não era glitter mas parecia uns diamantezinhos, que ele jogou no meu cabelo e fez um cacho para a frente a fim de esconder as cicatrizes. Depois de penteada e maquiada, subi no palco e entrei em cena, cantando, com a cara quebrada, como se não houvesse acontecido nada. Artur da Távola escreveu em sua crônica que eu fazia meu début televisivo, onde já deveria estar havia bastante tempo. Olhando no espelho e vendo por tudo que eu havia passado, falei para mim mesma: “Não tem mais cicatriz.” Eu tinha tirado a dor da cicatriz do meu coração. Rogéria retornava também ao palco do Teatro Alaska, reassumindo seu posto no espetáculo Gay Fantasy, usando bandagem na testa, coberta por uma peruca de franjinha. Em maio de 1982, o Gay Fantasy fez uma curta temporada em São Paulo, no Teatro Procópio Ferreira, da rua Augusta, sempre com casa lotada. Foi lá que o espetáculo comemorou 500 apresentações. O diretor de teatro Ulysses Cruz criticou a direção de Bibi Ferreira e destacou os improvisos de Rogéria: “Se o que interessava aos produtores era só o nome da grande Bibi, conseguiram. Ela empresta ao espetáculo uma seriedade de que, certamente, prescinde... Nada de gostoso improviso e desbocado falar das atrizes em cena. Tudo está ortodoxamente marcado. Sintomaticamente, o melhor momento do show é, quando após a apoteose, Rogéria aparece e faz uma descontraída brincadeira com a plateia. Aí, sim, estamos entrando no reino do carisma e da magia.” No final, de alguma maneira, ainda que de forma um tanto sinistra, o acidente de carro com Rogéria ajudou-a a consolidar sua imagem como atriz. A ESTRELA PROIBIDA “A censura na televisão é muito estranha.” Com a repercussão positiva de suas aparições no programa Studio A-Gildo, começavam a se abrir as portas para a atriz Rogéria nesse segmento. Desde os shows do Alta rotatividade, em 1976, Agildo dava insistentes declarações de que a televisão não sabia a estrela que estava perdendo ao vetar a presença de Rogéria. A ideia dodiretor do programa, Augusto César Vannucci, era testar sua popularidade e, principalmente, sua aceitação junto ao grande público. Evidente que Rogéria havia se tornado um travesti diferenciado e querido pelo seu carisma e, sobretudo, por suas posições ousadas e autênticas. Era uma nova personalidade de travesti: além de bonita, seu estereótipo fugia ao terrível lugar-comum do gênero, sempre ligado, de alguma forma, à linha marginal. A censura aos travestis na televisão, inicialmente atribuída à ditadura militar, já não se mostrava tão veemente. A ausência de um critério lógico sobressaía, traduzida pela aceitação parcial e, cada vez mais clara, da homossexualidade nas esferas sociais e, por extensão, nos programas de televisão. Em 1970, a novela Assim na terra como no céu, de Dias Gomes, tinha apresentado o primeiro personagem gay da teledramaturgia nacional, com Ary Fontoura no papel do costureiro Rodolfo Augusto. Em 1975, na novela O rebu, de Bráulio Pedroso, havia o vilão Conrad Mahler, um banqueiro homossexual interpretado por Ziembinski. Já as mulheres teriam de esperar mais alguns anos até que, em 1988, os autores de Vale tudo, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, criassem o casal Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin), lésbicas assumidas, que chegaram a andar de mãos dadas na novela, o que não foi muito bem-aceito pelo público. As situações ainda eram calcadas em discretas menções, mas refletiam a realidade social em cada época. Nos programas de humor, faziam sucesso personagens como o pai de santo homossexual Painho, de Chico Anysio, ou o Capitão Gay, de Jô Soares. Este último, curiosamente, de forte empatia com as crianças. Mas nada chamava mais a atenção, no começo dos anos 1980, do que o estilista e apresentador Clodovil Hernandes, na própria Globo, alcançando excelente audiência com o programa TV Mulher. A censura na televisão é muito estranha. Eles preferem as bichas vestidas de homem. Nunca apareci de seios de fora na tevê e sempre mostrei o talento que eu também tenho. Nessa época, o produtor João Paulo Pinheiro procurou Rogéria e lhe propôs um espetáculo nos moldes do Gay Fantasy, porém em formato reduzido, visando excursionar pelo país. A direção artística seria da própria Rogéria. A ideia era fazer uma homenagem ao teatro de revista, com muito luxo, um guarda-roupa chique, humor rasgado, sátira política, números com público e striptease. Ou seja, a fórmula usual: música, sensualidade e irreverência. O nome do show seria Gay Girls e o elenco-base reuniria Rogéria, Marlene Casanova, Samantha, Kiriaki e Elaine, além dos bailarinos Estêvão Santos, Ernesto Grindelle e Jorge Guamar, com coreografia de Eduardo Allende. As passagens com números de plateia eram a graça maior do espetáculo. Rogéria brincava com o público, falando da enorme quantidade de gays na cidade, apontava alguns, sentava no colo de outros, chegava mesmo a beijar um ou dois. Era mestre em manter contato direto com os espectadores e fazia questão de, politicamente, elogiar sempre o sexo feminino. Dizia que não pensava em tomar o lugar de ninguém e brincava que eles, travestis, eram apenas imitações falantes e divertidas do verdadeiro sonho que eram as mulheres. Rogéria nocauteava as possíveis defesas de um público conservador, aniquilando com naturalidade e bom humor qualquer mito sobre os travestis. O show foi um sucesso de público pelas capitais e cidades por onde passou. A primeira apresentação aconteceu em 15 de julho de 1982, em Porto Alegre, no Teatro Presidente. Depois seguiu para o Grêmio Atiradores Novo Hamburgo, e para a Biblioteca Pública de São Leopoldo. Dali, foi para o Teatro Carlos Gomes, em Vitória; para o Teatro Maria Bethânia, no Rio Vermelho, e para a Boate Holmes, do Salvador Praia Hotel, ambos na capital baiana. No final de agosto, Gay Girls chegou ao Teatro Deodoro, em Maceió. Em setembro, a turnê seguiu para o Teatro Alberto Maranhão e fez uma apresentação extra na Boate Belas Artes, em Natal. De lá, foi para Fortaleza, no Theatro José de Alencar. Em Belém, o show estava marcado para o Theatro da Paz. Curiosamente, na chegada do grupo à capital paraense, um movimento da Assembleia local reprovou o show, em nome dos bons costumes, o que resultou numa procura bem acima da expectativa. O belíssimo teatro ficou lotado. Como a procura por ingressos se intensificou, foi organizada uma sessão especial no Iate Clube Pará. A temporada paraense fechou com uma canja no boteco Gato & Sapato, na Lapinha. O Gay Girls ainda se apresentou em Manaus, no restaurante Signos’s; em São Luís, num badalado evento no Teatro Artur Azevedo; em Brasília, no Teatro Escola-Parque; em Campo Grande, no Teatro Glauce Rocha; e em Cuiabá, no restaurante-boate Kedad’água. Na passagem por Mato Grosso, ficamos hospedados numa pequena fazenda. Logo na minha chegada notei que um tipo, provavelmente o capataz, não tirava os olhos de mim. Era um homem bonitão, jeitão de capiau, com aquela pinta de caubói. Nem pensei duas vezes, chamei o cara para conversar. Ele parecia enfeitiçado por mim, e o convidei para darmos uma volta. Ele ofereceu sua camionete. Normalmente, quando vou ter uma relação com alguém, aviso logo que não sou mulher. Mas naquela noite foi impossível. O homem cismou que eu era a cantora Cláudia Barroso, que, na época, todos julgavam ser namorada do Waldick Soriano. Não houve jeito de convencê-lo do contrário. Ele tinha todos os discos dos dois. Depois de uns amassos, fomos pra trás do carro e fui logo dizendo: “Olha, não toca na minha boceta. Se o Waldick souber, te dá um tiro nos córneos. Ele não liga que comam o meu cu, mas na frente, nunca!” Foi um desempenho de atriz. Ele acreditou, não notou nada demais e me comeu gostoso. Antes de irmos embora, ainda me deixou um long-play da Cláudia para que eu autografasse. Não autografei, claro, aí já era demais. Em outubro, Rogéria retornou ao Rio para uma temporada de duas semanas no Cineshow de Madureira. Em entrevista à revista Fatos & Fotos, ela disse que, apesar de ter passado a adolescência nos subúrbios da cidade, até então nunca tinha mostrado seu trabalho ao público dessa área. Dali seguiram para Niterói, no Teatro Leopoldo Fróes, onde Rogéria também se apresentava pela primeira vez. Era, de certa maneira, uma espécie de passado revisitado. O Gay Girls ainda passou por Recife, no Teatro do Parque, e por Teresina, no Centro de Convenções, antes de encerrar a temporada no Teatro Procópio Ferreira, em Nova Iguaçu. Rogéria, bastante animada, já iniciava os ensaios para seu novo show na Sala Funarte e também para uma nova montagem de revista, com a direção de Jorge Fernando. SALA FUNARTE: O OUTRO LADO DO ESPELHO “Sempre me dei muito bem com intelectuais.” O ano de 1983 se iniciava curto para tantos planos. Érico de Freitas, diretor da Sala Funarte Sidney Miller, convidou Rogéria para um show dentro da série Carnavalesca, com direção de Thereza Aragão. Ainda havia os ensaios para outro espetáculo no Teatro Alaska, dirigido por Jorge Fernando, o Rio Gay. Sem contar com a cobertura do Carnaval, pois Rogéria tinha sido contratada pela Rede Bandeirantes para fazer reportagens na avenida e nos bailes. Os ensaios para o show Umas e outras na Sala Funarte aconteciam com os músicos do grupo Fulia, finalista do MPB-Shell de 1982, com quem Rogéria dividiria o palco. Thereza Aragão havia chegado ao nome dela ao buscar uma intérprete para canções carnavalescas: “Cantoras de Carnaval estão quase em extinção. Lembrei que, no passado, as grandes lançadoras de sucessos no Carnaval eram as vedetes, mas onde estão elas hoje em dia? Quem é a grande vedete agora senão Rogéria?” Mas a escolha de uma intérprete-atriz-transformista não foi um consenso. O Jornal do Brasil publicou várias notas críticas, justificando que a Sala Sidney Miller não comportava shows com esse viés popular. Nas entrelinhas havia uma questão, na visão deles, herética: “Como Rogéria vai cantar na Sidney Miller?” Ao tabloide Folha da Praia, numa reportagem intitulada“O travesti da abertura”, Rogéria desabafava: “Não sei por que o Jornal do Brasil faz campanha contra mim. Se estivesse criticando o meu trabalho artístico, tudo bem. Mas, no fundo, o que eles criticam é a minha condição homossexual. É uma discriminação inadmissível num veículo que se diz liberal, e inaceitável numa época de abertura política.” Na verdade não era o Jornal do Brasil, e sim alguns intelectuais e pessoas ligados à Funarte que estavam tentando sabotar o show. Aconselhada por seu empresário a reagir e se posicionar, Rogéria aproveitou o convite para participar do programa da Rede Bandeirantes Canal Livre, com Roberto D’Ávila como mediador e, como entrevistadores, as cantoras Marlene e Elizeth Cardoso, o empresário Ricardo Amaral, a jornalista Ana Maria Bahiana, o cabeleireiro Rudi, a universitária Ivana Curi (filha de Ivon) e a atriz Bibi Ferreira. Rogéria falou sobre homofobia e sobre sua luta para ser aceita como artista. Comentou que ainda se incomodava com o uso da palavra “travesti”: “Travesti, quando não tem dinheiro para silicone, usa Nujol. Eu sou um ator transformista, não sou um panaca vestido de mulher.” No programa, Marlene comentou que não conseguia mais ver Rogéria como um homem, já se habituara a vê-la como mulher. Não me sinto psicologicamente uma mulher. Mas quando estou maquiada, pronta para entrar em cena, eu me olho no espelho e penso: “Não é que eu sou capaz de fazer uma mulher fantástica?” A verdade é que eu me vestindo de homem seria uma balela. Tenho as formas redondas. Para que essa onda de preconceito não tomasse vulto foi preciso, então, uma carta aberta ao público, uma nota de apoio de artistas, capitaneada pela cantora Miúcha e assinada por nomes como Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Ferreira Gullar, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Marieta Severo, Dias Gomes, Georgiana de Moraes, Jaguar e Ricardo Cravo Albin, para corroborar que Rogéria era uma artista reconhecida e premiada em 1980 pelo Serviço Nacional do Teatro. Na carta, os signatários afirmavam: “Queremos testemunhar que se trata de uma profissional de nível, cujos méritos artísticos foram reconhecidos inclusive pelo Inacem, que lhe outorgou o prêmio Mambembe.” A cantora Miúcha se lembra bem desse episódio: “Foi certamente uma perseguição preconceituosa. Implicaram com ela porque era travesti, esquecendo que Rogéria era uma artista competente, grande sedutora, uma rainha no palco. Ela sempre teve uma tenacidade fora do comum. Tudo a que ela se propunha, ia em frente e conseguia.” O show na Sala Funarte estreou no dia 1o de fevereiro com lotação esgotada. Rogéria cantou sucessos de Lamartine Babo, Chiquinha Gonzaga, Dalva de Oliveira, Marlene, Emilinha Borba e Zilda do Zé; parodiou Carmen Miranda e Virgínia Lane; e festejou as cantoras da moda Gal Costa, Bethânia e Beth Carvalho. Nesse show, resolvi improvisar e descer do palco para cantar com a plateia o samba-enredo do Salgueiro e, de repente, num agudo, minha voz falhou. Olhei para o maestro e pedi: “Muda o tom, pianista!” Acabando de cantar, comentei com o público: “Se não fosse homem, estaria perdida.” Era um show tipicamente de Carnaval, começava com o “Hino do Carnaval brasileiro”, de Lamartine Babo, e terminava com um sucesso do Gonzaguinha. Foram 52 músicas e, no final, o pessoal ainda queria mais. Em fevereiro de 1983, no jornal O Globo, a jornalista Ana Maria Bahiana destacava numa crônica intitulada “No outro lado do espelho, a mais louca fantasia” que “Rogéria tem uma bela voz, uma técnica impecável, uma simpatia natural, uma alegria sem fingimentos e uma coisa que ninguém treina ou fabrica: carisma, o estar à vontade numa situação irreal como a do palco, viver um personagem como se ele, o personagem, fosse e não fosse ele mesmo, o intérprete. Acima de tudo, a dubiedade que a estrela Rogéria/Astolfo trouxe ao conceito original do espetáculo é enriquecedor e iluminador – não é no Carnaval que os homens se vestem de mulher? Não é aí que se flerta com a loucura, que se confundem os papéis? O espetáculo trabalha sobre essa fantasia e, ao mesmo tempo, reporta de maneira eficiente e simpática as muitas visões de mulher que já povoaram e povoam o Carnaval... um show recomendável a quem tem e a quem não tem coragem de passar para o outro lado do espelho”. Já durante os primeiros ensaios da nova versão de revista Rio Gay algumas novidades poderiam ser observadas. O diretor Jorge Fernando dava mais importância às atuações, fazendo vir à tona os possíveis talentos de cada um dos travestis. Rogéria passou a arriscar até alguns números de sapateado que aprendera assistindo aos musicais de Ann Miller e Eleanor Powell. Na época, o dramaturgo Vicente Pereira, responsável pelo roteiro, admirava-se com a facilidade de improvisação de Rogéria: “Ela é mestre no improviso. Sua inteligência geminiana faz o autor se sentir seguro, seu texto compreendido nas mínimas sutilezas, acrescido de uma preciosa colaboração de quem nasceu para o showbiz.” Nessa nova concepção de dramaturgia, eles não poderiam mais continuar como meras cópias afetadas da imagem feminina. O roteiro tinha um humor mais inteligente, no qual a referência à homossexualidade era implícita, de uma forma mais discreta e distante do tom grosseiro tão comumente empregado em espetáculos desse gênero. As cenas se desenvolviam num misto de representação e metateatro, como personagens e como eles próprios. Em detrimento das antigas e manjadas dublagens de atrizes e cantoras estrangeiras famosas, havia números musicais em português (trilha sonora de Paulinho Machado). O elenco era o mesmo do Gay Girls (Rogéria, Samantha, Marlene, Kiriaki e Elaine), mais Desirée e novos bailarinos. Os figurinos e a coreografia eram de Juan Carlos Berardi, e os cenários, de Américo Issa. As mudanças marcariam um passo à frente, ainda que se afastando um pouco do formato original de revista, como ressaltado na crítica de Flávio Marinho na revista Visão: “... da metade para o fim, o espetáculo fica com um pé no show, sacrificando a proposta do teatro de revista.” Já a jornalista Tânia Brandão escrevia no jornal carioca Última Hora que “Rogéria não tem rival no seu gênero, sua luz no palco definitivamente entontece. Não há mistério, apelação ou engodo no que faz. O teatro é seu elemento. Transformista, ela é atriz, espécie de primeira-dama maldita. Com lamês, plumas, paetês, strass e uma classe insuportável, diante dos olhos felizes do público agradece os aplausos todos com nobreza dos que têm aura”. Em uma noite com lotação esgotada, Rogéria receberia flores em seu camarim do Teatro Alaska, com um bilhete assinado por um político de renome: “Agora que já não tenho mais mandato, agora que o povo não me reelegeu, será que não posso ser eleito pelo seu coração?” Não era o primeiro, nem seria o último político a tentar se aproximar dela. Parecia que Rogéria exercia um fascínio sobre a classe. Obviamente, bem poucos assumiam e enviavam representantes. Eram assessores, secretários e amigos de figuras importantes atrás de uma entrevista com ela. Cansei de recusar esse tipo de assédio. O que eles ainda não tinham entendido era eu ser apenas uma atriz. Só e nada mais. O Rio Gay lotou o Teatro Alaska. Rogéria comemoraria seus 40 anos de vida e 100 apresentações do espetáculo numa animada festa na Boate Circus, em São Conrado. Um coquetel, seguido de jantar, com direito a bolo com 40 velinhas. A mãe de Rogéria estava presente, assim como todo o elenco do Rio Gay, incluindo Jorge Fernando e Vicente Pereira. Prestigiaram a aniversariante Jorge Dória e Íris Bruzzi, Moacyr Deriquém, Chico Recarey, Mauro Mendonça e Rosamaria Murtinho, João Paulo Pinheiro, Silvinho, Jaguar, Jane Di Castro, Lucinha Lins e Cláudio Tovar, Maria Zilda, Miguel Falabella, Arlete Salles, Lady Francisco, Caíque Ferreira, Sônia Clara e Zevi Guivelder, entre outros convidados. Após seis meses, a temporada no Teatro Alaska se encerraria, e o show seguiria em turnê. Nesse período, Rogéria fez rápidas incursões na televisão. Participoudo programa Batalha dos astros, um game no modelo do jogo da velha, e também do humorístico Viva o Gordo, na Rede Globo. O Rio Gay passou pelo interior paulista (Ribeirão Preto, Piracicaba, Santa Bárbara do Oeste, Rio Claro, Mogi Mirim, Americana); pela Bahia, no Teatro Castro Alves; pela Paraíba, no Teatro Santa Rosa; por Brasília, no Escola-Parque; e, por fim, por Goiás, no Teatro Goiânia. FREUD X ROGÉRIA “Eu nasci homossexual.” Rogéria vinha apresentando sintomas de estresse, naturais na medida em que viajava sem parar, numa roda-viva de excursões. Sua carreira sempre fora pontuada por seguidas mudanças abruptas no seu modus vivendi em cada lugar que se instalava. Como uma cigana, perambulara por vários países e cidades e convivera com culturas díspares. Se, por um lado, tais experiências possibilitaram a abertura da mente e do entendimento, também propiciaram uma sensação de falta de teto, um radical necessário a que alguns chamam de porto seguro. Hotéis, casas de amigos, pensões e correlatos não preenchiam o sentimento apaziguador de um lar. Nessa fase da vida, Rogéria encontrava-se confusa, abatida. Pensou em procurar a ajuda de um analista. Freud e Lacan estavam em voga. Já conversara com Marília Pêra a respeito, e esta colocara em dúvida a eficácia de um tratamento psicanalítico naquele momento. Qual o motivo de tanta dúvida e inquietação numa hora dessas? Marília achava que Rogéria arriscava perder a sua espontaneidade. Quando Rogéria, isto é, Astolfinho, tinha 16 anos, sua mãe levou-o a um psiquiatra. Um tanto contrariado, ele somente concordou em ir porque era um pedido de Dona Eloah. A primeira pergunta do psiquiatra foi quando eu começara com essas tendências. E, numa espécie de sermão, tentou me sugestionar: – Você, um rapaz tão bonito, tão inteligente, esperto, ainda no começo de vida, me diga, por que quer ser assim, contra a natureza das coisas? Por quê? Aí, eu disse a ele: – O senhor vai na rua, pega uma pica, enfia naquele lugar, e depois vem me dizer se é bom ou não é. Para Rogéria, a homossexualidade é uma questão de genética: ninguém se torna gay, as pessoas já nascem gays. Uma teoria ainda hoje bastante discutível, mas que, no caso dela, se aplicava bem. Psiquiatras e psicólogos ainda não chegaram a um consenso, mesmo que a maioria discorde de que tenha origem nos genes. O estudo da genética ainda engatinha, e qualquer conclusão seria arriscada. No entanto, há pesquisas que atestam a possibilidade de alguns indivíduos terem uma alteração no cromossomo que define a sexualidade e que isso poderia ser um fator determinante. Outra corrente da psicanálise aceita que a genética pode favorecer um comportamento mais feminino ou masculino, mas não homossexual. Para a psicanálise, um estudo sobre a homossexualidade só terá sentido quando envolver o psiquismo de uma pessoa, suas identificações, valores, sua formação como produto de uma cultura. Rogéria achava seu comportamento fruto de uma coisa mais espiritual que social, e não acreditava na formação de um homossexual, e sim em seus componentes genéticos. O assunto é polêmico, ainda mais se levarmos em conta que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, até 1973 os homossexuais eram classificados como doentes mentais, e a homossexualidade, considerada uma doença. O manual DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) e o CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) diagnosticavam a travestilidade e a transexualidade como patologias. Rogéria, com sua homossexualidade precocemente assumida, não se incluía nessa lista de enfermidades patológicas. Contudo, vinha de seguidos estresses e sentia-se cansada com a maratona de viagens. Tinha olheiras profundas, estava sem dormir direito e chorava por qualquer motivo, o que poderia significar uma instabilidade emocional momentânea. A psicanálise foi uma grande decepção para mim. Cheguei ao consultório de um conhecido psicanalista judeu e saí ouvindo que meu grande transtorno tinha origem religiosa. Ele me falou: “Você tem um grave problema de culpa que mistura religião com sexo.” Aí desisti de Freud, né? Após Rogéria ter contado suas crenças, da fé em Cristo e Nossa Senhora, o analista imediatamente identificou na religião católica a razão para seus males. O tal analista estava sugerindo que eu era uma maluca. Confundiu tudo. Me achou uma doente mental. Ele via a minha sexualidade como uma doença que piorava com a culpa que a religião me causava. Pode? Saí daquele consultório pior do que estava e fui para casa. No dia seguinte cheguei a pensar em voltar lá e dizer na cara dele: “Você é um psicólogo de merda!” Tudo o que eu queria era chorar num ombro, desabafar com alguém. Minha vida estava uma loucura. Nunca mais farei análise, eu sou a minha própria psicóloga. ROGÉRIA E A RELIGIÃO “Acredito na reencarnação. Acho que já fui uma rainha. Para vir de Rogéria, devo ter sido uma rainha muito má.” A Igreja Católica diz não discriminar os homossexuais. Apenas prega a todos os fiéis (gays ou não) que o exercício da sexualidade só é possível dentro do matrimônio aberto à fecundidade e à procriação, porque este é o projeto original de Deus, desde o princípio da Criação. Numa viagem ao Brasil, o próprio Papa Francisco disse: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” Não me interessa ir contra os dogmas da Igreja. Padres não podem casar? Escândalos de pedofilia? Quanto ao fato de a religião católica condenar a homossexualidade, eu penso assim: se em 24 horas o corpo apodrece, por que dar tanta importância a ele? Eu devo cuidar da alma, devo cuidar do meu espírito. Eu tenho um contato direto com Deus por meio das minhas orações. Rogéria lida com a prática religiosa da mesma forma que se relaciona com a psicanálise. Dito de outro modo, ela é seu próprio padre e sua própria psicóloga. Quase ninguém a imagina como uma pessoa tão fortemente ligada à religião, alguém que reza todos os dias e possui uma fé inabalável na Santa Trindade e em vários santos católicos. Aprendi a orar com minha mãe. Desde bem cedo umas imagens de sexo me perseguiam e me atormentavam. Ela me aconselhava: “Concentre-se nas palavras da oração, saiba afastar essa gente ruim dos seus pensamentos, tem que expulsar essas influências negativas da cabeça.” Para mim, a oração é tudo. Depois que rezo me sinto blindada. Mas tem que aprender a orar. Quando você começa a rezar, o demônio vem sob forma de pensamentos ruins, você tem que aprender a expulsá-los da mente. A água é o melhor descarrego. Depois do banho, com o corpo limpo, é a hora ideal para se rezar, seja qual for sua religião. Eu tenho no meu coração a alegria em Jesus desde a barriga da minha mãe. Se não fosse Cristo na minha alma, eu não teria forças para viver neste mundo tão sem sentido. Rogéria é o sincretismo religioso em pessoa: católica, embora mantenha um lado meio espírita, meio umbandista, que aprendeu com Dona Eloah. Não tenho nada contra qualquer religião, embora algumas exagerem na forma de tentar convencer os outros, uma chatice, como se fossem as únicas com a receita para se chegar a Deus. Uma vez um evangélico me disse: – Você precisa conhecer o Senhor. – Já me dou com Ele faz tempo, querido – respondi. Tenho muitos fãs evangélicos, só não trato de assunto de religião com eles. Outro dia, estava vendo alguém dando depoimento na televisão dizendo que tinha deixado de ser gay e me deu vontade de estar na plateia para gritar: – Se você deixou de ser gay, por que continua com essa voz de viadinho? Acorda, bicha! Deus ama a gente como a gente é. Não me venham com essa história de que Jesus não me ama, não. Já recebi bênção de padre da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, no Leme, sob o olhar de aprovação de todos os presentes na missa. Eu sou católica, tenho essa afinidade com Jesus e Nossa Senhora, mas também sou filha de Iansã com Ogum. Vi minha mãe baixar alguns santos e se desenvolver espiritualmente. Eu ficava de longeobservando. Quantas vezes ela não rezou as pessoas e afastou quebrantos e maus-olhados? Ela tinha esse poder. O importante para mim é a oração. No alto, participação especial no filme O gigante da América, de 1978, dirigido por Julio Bressane. Acima, a comentada cena em que Rogéria é perseguida por um pênis de borracha, numa alegoria conceitual da opressão masculina. Com Nelson Caruso e Grande Otelo na peça O desembestado, dirigida por Aderbal Freire-Filho, que deu a Rogéria o prêmio Mambembe de Atriz Revelação em 1979. Rogéria volta à Galeria Alaska, com o espetáculo Gay Fantasy, no início dos anos 1980. A capa da revista Fatos e Fotos registra o enorme sucesso da peça: Rogéria com Veruska, Eloína e Jane Di Castro. Rogéria dirigida por Bibi Ferreira em Gay Fantasy. No espetáculo, com muitas plumas, paetês e humor, interpretava um pot-pourri de Judy Garland. A repercussão foi tanta que, na semana da estreia, a casa lotou e houve venda de cadeiras extras. Com o elenco do musical Rio Gay (Samantha, Marlene Casanova, Desirée e Perla), de 1983. No show, a inovação: os travestis cantavam sem as tradicionais dublagens. Cartazes: do Teatro José de Alencar, em Fortaleza, com o pocket-show Gay Girls, que rodou o país inteiro nos anos 1980; do musical Rio Gay no Teatro Alaska; e da célebre apresentação de Rogéria na Sala Funarte Sidney Miller, Umas e outras, da série Carnavalesca, dirigida por Thereza Aragão. Cartaz do espetáculo de música e humor, Adorável Rogéria, no Teatro Higino, em Teresópolis, que agitou a cidade serrana nos anos 1980. O roteiro e a direção eram da própria Rogéria. Na foto, as meninas do elenco: Andréa Gasparelli, Elaine, Rogéria e Desirée. Fotografada pela revista Manchete, no Carnaval de 1984, ao lado das amigas Wilma Dias e Watusi, cada uma destaque por uma escola de samba. Com Clodovil Hernandes no baile Gala Gay, na casa de espetáculos Scala, no Leblon. No Carnaval de 1988, desfilando pela escola de samba Unidos do Jacarezinho, substituindo Xuxa e distribuindo beijinhos na Marquês de Sapucaí. Na primeira edição do baile Gala Gay no Canecão, em 1982, com Roberta Close e Guilherme Araújo. Com Sandra Bréa. Rogéria estava no baile fazendo a cobertura para a TV Bandeirantes. No badalado baile do Pão de Açúcar, o “Sugar Loaf Carnival Ball”, entre os craques Franz Beckenbauer e Carlos Alberto. Rogéria como Madame Lysiane, na peça Querellle (1988), baseada no livro de Jean Genet, com direção de Fábio Pillar. Gerson Brenner fazia o papel do marinheiro. No camarim do Teatro Dulcina, onde Querelle era encenada, Rogéria se maquia diante do espelho. No detalhe, a foto de Marilyn Monroe como inspiração. Rogéria na fachada do Teatro Alaska, em cima do restaurante El Faro, em Copacabana, divulgando seu novo show, Selvagens da madrugada. Na esteira do sucesso da Noite dos leopardos, ela se apresentava acompanhada de rapazes musculosos, num show erótico-musical. Em Barcelona, três meses de uma minitemporada de sucesso, na concorrida Boate Belle Époque, em 1992. Cartaz de divulgação da peça Diva, no Teatro dos Grandes Atores, na Barra da Tijuca, nos anos 1990. Como jurada no programa de auditório da Rede Manchete, ao lado de Lug de Paula (Seu Boneco), Chiquinho Scarpa e Magda Cotrofe, no início dos anos 1990. Com Sidney Magal no musical Roque Santeiro (1996), baseado na obra de Dias Gomes. Com direção de Bibi Ferreira, Rogéria fazia a cafetina Matilde. No filme Copacabana, dirigido por Carla Camurati, em 2001, com Luís de Lima, Laura Cardoso, Ida Gomes e Ilka Soares. Rogéria diante da controversa foto em que aparecia nua, na exposição “Heróis”, do fotógrafo Luiz Garrido, no Salão Negro da Câmara dos Deputados, em Brasília, 2007. Com Miele e Chico Caruso, no show Homenagem à trois, no Bar do Tom, no Leblon, 2012. No espetáculo Divinas Divas, que reuniu um grande número de travestis pioneiros. Em 7 – O musical, dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho, no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, em 2007. A imagem de Rogéria em anúncios: primeiro travesti a fazer propaganda no Brasil para a loja de acessórios de moda Cirilo; no lançamento nacional da Du Loren, coleção Afrodite; com Carlos Moreno, no slogan “Rogéria é quase mulher, Bombril é quase de graça”; e na campanha do site de classificados grátis “Bom Negócio”. À esquerda, ao lado de Chico Anysio, na gravação de uma entrevista para o personagem Alberto Roberto, no humorístico Zorra Total, da Globo, em 2001. À direita, com Camila Pitanga, nos bastidores da novela Babilônia, como Úrsula Andressa. Destaque na novela das seis, Lado a lado (2012-2013), fazendo Alzira Celeste, mãe do personagem de Maria Padilha e avó do personagem de André Arteche. Pela primeira vez um homem fazia o papel de mãe e avó na televisão. CARNAVAL “As pessoas se soltavam de tal forma no Carnaval que cometiam barbaridades.” O Carnaval sempre representou a real possibilidade para os homens transgredirem certos valores. Os blocos de rua e as festas em clubes abriram as portas para a fantasia se soltar de vez. Para os travestis, o pioneiro Baile dos Enxutos, com os organizadores anunciando homens elegantemente vestidos com roupas femininas e chamado originalmente de Baile dos Garotos Enxutos, foi um marco. O início foi no Centro da cidade, na Praça Tiradentes, no Teatro João Caetano, no Teatro Recreio e no Cine São José. Depois, com o empresário Guilherme Araújo, em 1982, passou para o Canecão, em Botafogo, Zona Sul carioca, com o nome de Gala Gay. Logo na sua estreia, numa terça-feira de Carnaval, bateu recorde de público (5.400 pagantes), sem contar os que não conseguiram entrar, engarrafando todo o trânsito nos arredores. Em março de 1982, a revista Fatos & Fotos – Gente fez uma edição inteira com ampla cobertura do baile e fotos só de travestis. Gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, drag queens e simpatizantes de todos os cantos do mundo passaram a se encontrar nas terças de Carnaval no Gala Gay. Depois do Canecão, o baile foi para a casa de espetáculos Scala, no Leblon, mantendo o pique e atraindo a atenção de todos. Com o passar do tempo e da curiosidade, foi saindo de moda e, desde 2010, acontece no clube Scala Rio, na avenida Treze de Maio. Rogéria, contratada pela Rede Bandeirantes para fazer a cobertura exclusiva do baile Gala Gay, no Canecão e no Scala do Leblon, tornou-se uma figura tradicional no Carnaval, com sua maneira extrovertida e autêntica de se comunicar. Aconteciam coisas incríveis durante as transmissões do Gala Gay. Uma vez uns rapazes cismaram de botar o peru na minha mão para aparecer no vídeo. Acabei com a graça deles na hora. Já pensou? Mas o mais engraçado aconteceu com um italiano que não sabia que eu era homem. Ele me dava muito beijinho... Eu peguei o microfone, a câmera se aproximou e falei para os telespectadores: “Ele não sabe que eu sou homem, vou fazer ele dar vários beijinhos e depois direi que sou homem, tá? Chamem a família toda pra ver!” O italiano deu um berro quando eu falei: “Não sou uma donna, sou um ragazzo.” Foi ótimo! Tudo ao vivo. A audiência foi lá em cima. Rogéria passou quase duas décadas cobrindo os bailes gay do Scala. Suas aparições eram sucesso garantido. Brigitte de Búzios, sua amiga, lembra que uma vez pegaram um trânsito terrível e se atrasaram. Quando chegaram, havia uma multidão em frente ao Scala, e elas, sem alternativa, foram pedindo licença no meio de toda aquela gente. “De repente, quando o pessoal via a Rogéria, toda produzida, ia abrindo espaço, numa espécie de reverência espontânea, digna das grandes estrelas da Broadway. Ela era amada pelos frequentadores do baile do Scala”, conta Brigitte. Certa vez, quando participava de uma dessas coberturas no Scala, Rogéria foi convocada para acabar com a farra de uma televisão falsa que chamava as bichas para uma suposta entrevista e jogava água na cara delas. Com seu prestígio, pediu e conseguiu terminar com a brincadeira. Não à toaganhou naquele ano a faixa de Embaixadora do Gala Gay. Rogéria sempre tentava minimizar os escândalos e as situações esdrúxulas provocadas por quem pretendia aparecer de qualquer maneira na tevê. Tinha de tudo, e ela devia tomar o maior cuidado, já que as transmissões ocorriam ao vivo. As pessoas se soltavam de tal forma no Carnaval que cometiam barbaridades. E não eram só as bichas, não. Houve uma vez, numa cobertura da Bandeirantes do baile do Sírio- Libanês, uma cena incrível. De repente me aparece uma senhora de uns 60 anos e, no meio de uma entrevista, se vira e arria a calça, com aquela bunda caída, um horror. Pedi ao câmera: “Pelo amor de Deus, não me mostra essa senhora que vai pegar mal pra mim, vão pensar que fui eu que armei tudo.” Tive de chamar outra reportagem e sair dali, porque a mulher não me largava, queria porque queria mostrar ao mundo aquela bunda caída... Quando a televisão resolveu priorizar o Carnaval na Bahia e reduzir o espaço dos bailes gay, Rogéria achou melhor sair. De repente, a cobertura do baile entrava tarde da madrugada, estava perdendo audiência para os trios elétricos de Salvador. Era pouco tempo no ar. O sacrifício não valia a pena. Agora as pessoas estavam ali só para aparecer, e eu apresentava tudo para divertir o público. As pessoas que não tinham brincado Carnaval esperavam até terça-feira para ver a Rogéria. Nunca fiz esse trabalho por dinheiro, porque sempre ganhei uma merreca. Eu fazia porque os travestis me paravam na rua e diziam que iam se matar se eu não fosse aos bailes. Como todo modismo, as frescuras e maluquices dos enxutos e das bonecas já não causavam mais tanto frisson. Sinal dos tempos e fim de uma época de ousadia e extravagâncias. Durante uma cobertura do baile do Scala, Rogéria aproximou-se de um jovem e promissor jornalista que, com o tempo, se especializaria em fofocas de famosos e que naquele ano também fazia a cobertura do Carnaval. Quando esse jornalista, jovem, começando na carreira e com toda a pinta de homenzinho, chegou perto de mim, logo deu para sentir que ia acontecer alguma coisa. Na hora da cama, minha decepção: ele foi logo pedindo para que eu fosse ativa. Verdade que ele tinha uma bunda branquinha, linda... O que fazer? Fiz meu rabo de cavalo e dei nele, dei na cara dele, e ele gostava. Quase sempre eles gostam de ser maltratados. O que estranhei foi ele não dar uma palavra, de vez em quando dava apenas um gemido. Ficou quietinho o tempo todo. Para mim isso é o fim, a palavra é tão ou mais importante que o sexo em si. Outra coisa que me incomodou nele foram as perguntas frequentes sobre os famosos que tinham ido para a cama comigo. Parecia fixação. Adorava as minhas histórias, do escritor consagrado que gostava de farras com muitas mulheres e enfiava uma vela no rabo para ficar mais excitado; ou do artista plástico badalado que só transava com cocaína; ou do cantor e ator com quem eu não consegui transar porque tinha um pau enorme, fora do comum: duro, eu não aguentava, e meio mole, sempre escapulia. Ele se divertia com os detalhes. Já devia ser sua tendência para fofocas. Eu sabia que ele não ia contar a ninguém, se não eu esculacharia com ele. Ficamos sem nos falar durante um bom tempo. Soube depois que tinha casado e não me convidara para a cerimônia. Talvez com medo de que na hora que o padre perguntasse se havia alguém contra, eu pudesse gritar lá de trás da Igreja: “Eu comi muito o noivo.” No Carnaval de 1984, Rogéria saiu como destaque na Acadêmicos do Salgueiro, com o samba-enredo “Skindô, Skindô”, ficando na quarta colocação do Grupo A. Nesse desfile, seu salto quebrou, mas ela não perdeu o ritmo nem o rebolado, sendo bastante aplaudida. Rogéria já havia sido campeã, desfilando pela Imperatriz Leopoldinense, também como destaque, no Carnaval de 1981, com o samba-enredo em homenagem a Lamartine Babo, “O teu cabelo não nega”(Só dá Lalá). O TRAVESTI DO BRASIL “Nunca acredite em atrizes, nós mentimos muito.” Querendo ou não, Rogéria passaria a ser identificada como o travesti mais famoso do país e, com isso, recaía sobre ela, involuntariamente, o papel de representante natural dos homossexuais. Em Paris, no início dos anos 1980, Rogéria já participara de uma passeata a favor das minorias – judeus, negros, homossexuais – levada por uma amiga, intelectual de esquerda, Betch Cleinman, que a hospedara em seu apartamento. O estopim da marcha-protesto fora a explosão de uma bomba, colocada numa mochila pendurada em uma bicicleta estacionada do lado de fora de uma sinagoga na rue Copernic, no rico 16ème arrondissement de Paris. Rogéria aceitou ir à passeata, pois advogaria uma causa que era dela também. Afinal, se a extrema-direita vencesse na França, todos os gays e travestis terminariam prejudicados. Nessa época, diante dos constantes escândalos que envolviam travestis brasileiros, as oportunidades, que antes pareciam tentadoras, começavam a rarear. Os donos de boates já hesitavam em aceitá-los. E Rogéria já sentira na pele a mudança de tratamento, obrigada a aguardar por mais de quatro horas para ter liberada sua entrada no aeroporto de Orly. A realidade era que os travestis, que viam na França a chance de enriquecer, encontravam-se agora marginalizados. Sobre a cobrança de uma maior atuação de Rogéria em defesa dos homossexuais no Brasil, ela explicava que nunca tivera contato com os chamados movimentos organizados, embora sempre se dispusesse a dar apoio a suas causas e reivindicações – à sua maneira, mais na base dos rompantes e tomadas de posição na mídia. Como no desentendimento com a atriz Dina Sfat, em 1981. Numa entrevista logo após a separação de seu marido, o ator Paulo José, a atriz vaticinava, com ironia, que, na temporada do verão de 1982, a moda voltaria a ser a velha transa homem com mulher, e que os homossexuais dos dois sexos passariam à míngua. Rogéria tomou as dores e saiu em defesa da classe, rebatendo Dina com o argumento de que os relacionamentos homem-mulher nunca teriam saído de moda e que ela parasse de tripudiar à toa os gays, que não tinham nada a ver com as frustrações dela. O disse me disse acabaria, como no caso de Angela Ro Ro, em acusações de fofocas e distorções por parte da mídia, interessada em escândalos que davam notícia. Fato semelhante iria se repetir, anos depois, com a atriz Cássia Kiss, que, no programa de Fausto Silva, na Globo, declarou que não aceitaria bem um filho gay. Rogéria reagiu em entrevista a jornais e revistas, e as duas se estranharam. Com o tempo, mais precisamente oito anos depois, o mal-entendido seria superado, com as duas selando a paz na casa da atriz na Barra da Tijuca, no Rio, com direito a chá com torradas. Depois de quase dois anos viajando pelo país, somente retornando ao Rio para honrar alguns compromissos, Rogéria preparava seu novo espetáculo Adorável Rogéria, marcando sua volta à casa que a consagrara, o Teatro Alaska. O espetáculo, uma espécie de revival de seus shows performáticos, tinha o intuito de resgatar aquele público que, embora cativo, afastara-se um pouco, devido a sua guinada de carreira, voltada às produções mais elitistas. Comecei a perceber que não ganhava mais nada montando peças difíceis como Orquestra de senhoras, que, financeiramente, não compensam. O teatro é maravilhoso, mas nem sempre te dá o desejado. A velha história se repetia, isto é, o retorno da crítica, o reconhecimento artístico, tudo isso é muito importante, mas não paga conta. Foi com esse pensamento que Rogéria produziu seu novo show, mais leve, de entretenimento, que agradasse aos turistas que formavam a maioria da plateia da Galeria Alaska. O título era uma homenagem a Marília Pêra, que encenara com sucesso a peça Adorável Júlia. O roteiro e a direção também eram da própria Rogéria, e o elenco de apoio era formado pelos travestis Desirée, Elaine e Andréa Gasparelli. Adorável Rogéria estreou no início de 1986, com Rogéria interpretando músicas carnavalescas, sucessos da Broadway e do cinema e algumas canções românticas em francês. Amarca do espetáculo, claro, eram suas intervenções, conversando com os espectadores. Nessa época, Rogéria era constantemente assediada. Uma das histórias de camarim mais fantásticas inclui um jogador de futebol, tricampeão mundial com a seleção brasileira no México, em 1970. Tinha ainda muita gente no camarim, e as pessoas começaram a se retirar para que eu me preparasse. Todo mundo saiu, menos ele, que ficou para me ver. Eu ia me arrumar, e ele ali me agarrando, parecia enlouquecido, me puxando, uma loucura. Eu pedia para ele sair, logo iam me chamar, propus sairmos depois, mas ele não abaixava o fogo. Só se acalmou depois que eu fiz um sexo oral com ele. Adorável Rogéria teve uma carreira longa, entremeada por outras produções, mas marcando a presença de Rogéria em excursões, com a entrada também dos travestis Marlene Casanova, Perla e Tânia Litieri, como no teatro da Ospa, em Porto Alegre; no teatro do Centro Cultural da Imprensa Oficial em Belo Horizonte; em Fortaleza, no Piano-Bar My Way, anexo ao Iate Clube; e na Boate Blue Sky, em Cuiabá, no encerramento do 1o Encontro GLS contra a Discriminação Sexual. Dez anos depois de Adorável Rogéria, surge um novo desafio: participar da montagem de Roque Santeiro – O musical, baseado na obra de Dias Gomes e dirigido por Bibi Ferreira. Nas reuniões iniciais para seleção de elenco, Bibi sugeriu o nome de Rogéria para o papel de Matilde, a cafetina dona do bordel. Na novela da Globo, que foi ao ar em 1985, Matilde tinha sido interpretada brilhantemente por Yoná Magalhães. A princípio, o autor não recebeu bem a sugestão de Bibi, pois imaginava outra atriz para o papel. Mas a opinião da diretora acabou prevalecendo, e Rogéria foi convidada. Quando a Bibi me convocou, tive um chilique, senti medo e emoção, ao mesmo tempo, e comecei a chorar. Mas, como boa geminiana, com ascendente em Leão, não pensei duas vezes em aceitar o novo desafio. Nos primeiros ensaios no apartamento de Bibi, na avenida Ruy Barbosa, no Flamengo, Dias Gomes ficou admirado com o trabalho de Rogéria e logo mudou de opinião sobre a sua escolha para o papel de Matilde. A saga de Roque Santeiro começou em 1963, quando Dias Gomes finalizou a peça, inicialmente intitulada O berço do herói. Dois anos depois, no dia da estreia, sua encenação foi proibida, sendo a primeira obra vetada pela censura do governo militar. Numa tentativa de levar a peça para o cinema, Dias Gomes escreveu um roteiro adaptado, também vetado pela censura federal. Àquela altura, Dias já era um alvo fixo dos militares. Dez anos mais tarde, o autor resolveu adaptar a peça para o formato de telenovela, com o pomposo nome de A fabulosa história de Roque Santeiro e sua fogosa viúva, a que era sem nunca ter sido, alterando várias passagens, trocando o nome de quase todos os personagens e incluindo algumas tramas paralelas para despistar. Quando já havia escrito mais de 50 capítulos, recebeu a notícia de sua proibição para a tevê. O motivo: a interceptação de um telefonema de Dias para o historiador Nelson Werneck Sodré, em que confessava toda a farsa engendrada. Finalmente, em 1985, com o país em processo de democratização, a novela foi liberada. Dias Gomes declarou na época que, ao retrabalhar o texto original para a nova novela, mantivera os nomes dos personagens e a maior parte da estrutura da trama. “Perguntam-me insistentemente se eu atualizei a peça. Pergunto eu: uma peça que fala de hipocrisia, impunidade, corrupção e queima de arquivo precisa ser atualizada?”, provocou. O musical com Rogéria estreou em 1996 no Teatro João Caetano, no Rio, mas não obteve o sucesso esperado, possivelmente em função do esgotamento acarretado pelo sucesso da telenovela. O veterano ator Carlos Kroeber recusou um dos papéis, talvez antevendo alguns percalços, como a diferença de estatura entre Sidney Magal (Roque Santeiro) e Nicete Bruno (Porcina), além do excesso de bailarinos e atores no palco. Rogéria foi elogiada pela crítica por sua surpreendente e destacada atuação. Seu personagem era uma prostituta que se aliava aos poderosos para manter seu bordel e inaugurar a Boate Sexus, onde se passava boa parte da trama. No desfecho trágico do musical, diferentemente da novela, é Matilde quem mata Roque Santeiro, a mando dos figurões da fictícia cidade de Asa Branca. Na cena em que mato Roque, não me porto como aquelas atrizes que precisam acender incenso para exorcizar o personagem. Eu represento os atos da Matilde, não os sinto. E não preciso de uísque nem nada para entrar em cena. Eu nasci para o palco. Terminada a peça, volto a ser a Rogéria. O musical teve trilha sonora composta por Caetano Veloso, Guarabyra, Dominguinhos e Nando Cordel, e direção musical de Luiz Carlos Sá. Os figurinos eram de Fernando Pamplona e Márcia Lávia. No elenco: Agildo Ribeiro, Nicete Bruno, Sidney Magal, Bemvindo Sequeira, Milton Gonçalves e mais de 30 atores, cantores e bailarinos, numa superprodução patrocinada pelo governo estadual, através da Funarj. “Quem não tem Xuxa sai com Roxéria.” No Carnaval de 1988, a escola de samba Unidos do Jacarezinho, rebaixada ao segundo grupo, faria seu desfile com o samba-enredo “Parabéns pra vocês” (Macambira e Batista do Jacarezinho) em homenagem à apresentadora Xuxa Meneghel, que seria o principal destaque da escola, desfilando num enorme carro alegórico em forma de disco voador que girava e soltava fumaça. O presidente da escola, Francisco Sérgio Brolo, o Kojak, foi surpreendido com o pedido de um cachê alto. A decepção foi geral, já que todos na escola imaginavam que Xuxa fosse se sentir feliz em desfilar cercada de crianças da comunidade. Correndo contra o tempo e dispondo de modesto orçamento, Kojak convidou a rainha dos travestis para substituir a dos baixinhos. Rogéria aceitou na hora. Quem não tem Xuxa sai com Roxéria. Vou me divertir e levar tudo na brincadeira. Espero que a Xuxa também. Será uma gozação que ela terá de encarar com todo o peso de sua fama. Com sua fantasia rosa-shocking, saia à altura da cintura, brincos enormes e botas até os joelhos, Rogéria saiu de destaque, fez sucesso, distribuiu beijinhos-beijinhos e tchau-tchaus na Marquês de Sapucaí, com toda as pompas e plumas a que tinha direito. Vinte anos depois, em 2008, Rogéria seria novamente destaque, dessa vez fazendo parte da comissão de frente da São Clemente, com o enredo “O clemente João VI no Rio: a redescoberta do Brasil”. Vinha como Maria I, a rainha louca, mãe de D. João VI. Única escola representante da Zona Sul no Grupo A, a São Clemente abriu o desfile no domingo. Rogéria teve apenas três semanas para ensaiar o papel, mas mostrou na Sapucaí que não haveria pessoa melhor para a comissão de frente da escola. Loucura era com ela mesmo. Foi uma coisa doida. Os bailarinos me jogavam para o alto como se eu fosse uma Ana Botafogo, esquecendo que eu era uma bicha de quase 65 anos. Quando eu fazia os últimos preparos para entrar na avenida, senti todo o nervosismo. Já havia desfilado, mas comissão de frente era diferente. Valia nota para a escola. A responsabilidade era grande. Para enfrentar um desfile daqueles, com tanto destaque, naquela idade, tinha de ser muito louca mesmo. No começo a minha maior preocupação foi em relação ao preparo físico. Comi muita banana. Estava cansada, pois tinha começado a minha maquiagem ao meio-dia. Meu penteado demorou três horas para ficar pronto. Colocamos muito laquê para não cair. Não sabíamos se choveria. Tinha estudado todos os detalhes da vida da minha personagem. Sabia, inclusive, que ela tinha muito piolho, mas eu não podia ficar coçando a cabeça na Sapucaí, né? O meu nervosismo se transformou em empolgação ao chegar ao setor 1 da avenida. Mas não foi fácil, cheguei a passar mal ao fim do desfile. O desempenho de Rogéria foi elogiado pelo coreógrafo da comissão de frente, o bailarino Caio Nunes, que foi quem teve a ideia de convidá-la para desfilar: “Estou muito feliz com o trabalho desenvolvido. Ela chegou muito cansada e emocionada, pois já é uma senhora. Acho que a Rogériafoi a louca perfeita para o papel.” No Carnaval de 2010, Rogéria desfilou num carro alegórico da Mangueira, dentro de uma gaiola. Com o samba-enredo “Mangueira é música do Brasil”, a escola ficaria em sexto lugar. JEAN GENET E OS LEOPARDOS “Uma transição de homem para mulher no palco é fácil, mas no dia a dia é fogo.” Final de 1988, um show fazia especial sucesso na Galeria Alaska. Era a Noite dos leopardos. Criado pelo travesti Eloína, livremente inspirado em espetáculos que já aconteciam nos Estados Unidos, o show tinha como base o striptease masculino. Ainda inédito por aqui, logo se transformou num acontecimento. Eloína procurou a ajuda de Rogéria a fim de montarem o show, que consistia em quadros com 12 rapazes exibindo seus corpos para a plateia. Os leopardos eram, em sua maioria, jovens de classe média baixa, muitos deles vindos de academias de musculação do subúrbio. O público que ia assistir ao espetáculo era, predominantemente, de homossexuais. Mas também havia curiosos e até algumas celebridades, como Caetano Veloso, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, a socialite Claude Amaral Peixoto, a autora de telenovelas Glória Perez, entre outros. Eloína lembra que a procura para entrar no elenco dos Leopardos era impressionante, tanto quanto o constrangedor teste a que os candidatos eram submetidos: deviam provar sua capacidade de ter ereção na frente de outras pessoas. O físico era privilegiado em detrimento do talento. Cerca de 300 rapazes se apresentaram, mas apenas o ator Guilherme de Pádua, mais tarde tristemente conhecido pelo assassinato da atriz Daniella Perez, conseguiu alguma projeção. Maurício Gimenes ainda fez uma ponta na novela De corpo e alma, na Globo, interpretando ele mesmo, um stripper de boate. Uma adolescente carioca, acompanhada de mais três amigas, deu seu depoimento, descrevendo a única vez em que foi ver o espetáculo: “O teatro era bem escuro. Ao entrar, procuramos um lugar perto do palco. Envergonhadas, sentamos. Vimos que a plateia era toda masculina, somente nós de mulheres. Até aí, tudo bem, pois estávamos empolgadas só pelo fato de termos entrado. Começou o show, um striptease aqui, outro ali, um malandro carioca, um homem vestido de leopardo, um marinheiro, outro bombeiro. Era um desfile de fantasias e corpos perfeitos. Ao fim da música, alguns ficavam apenas de sunga e outros até sem sunga. De repente as luzes se apagaram e começaram a circular objetos fosforescentes pelo palco, uns grandes, outros menores, não entendemos bem essa parte do show. Ao final do espetáculo, subia ao palco Rogéria, um ícone travesti, e todos os leopardos apareciam pelados no palco, com tudo, tudinho à mostra e ainda por cima eretos. Percebemos que os objetos fosforescentes eram camisinhas que brilhavam no escuro. Nos demos conta que estávamos na noite gay dos leopardos.” Rogéria recorda que o público que ia ver os leopardos era formado por gente disposta e, em alguns casos, com comportamento um tanto fora dos padrões de educação e normalidade. Um verdadeiro teste de fogo. Uma vez, fui brincar com um casal e o cara se meteu a valente, levantou-se e gritou: – Sai, sua bicha ridícula! Na mesma hora respondi: – Ridícula é essa cocaína escorrendo do teu nariz, meu bem! O público, claro, veio abaixo e o cara teve de meter o rabo entre as pernas e ficar quietinho. Na verdade, não tinha cocaína nenhuma, eu inventei na hora. Uma outra noite, um despeitado começou a gritar, quando eu tinha acabado de entrar: – Piranha! Piranha! Nem esperei, na hora interrompi o show e disse que não ia continuar enquanto aquele senhor não encontrasse a mãe dele! A cantora e atriz americana Liza Minnelli, fugindo dos paparazzi e de um jantar com o pessoal da prefeitura, apareceu de surpresa na Galeria Alaska para ver o show dos leopardos. Logo avisaram a Rogéria da luxuosa presença, e ela caprichou naquela noite, cantando, vestida toda de preto, o clássico “New York, New York”. Quando acabei o show, Liza veio ao meu camarim e me deu um abraço demorado, falando: “Marvellous, Marvellous!” Trocamos algumas palavras em inglês, mas ela tinha de sair logo para escapar do assédio das pessoas. Em 1989, surge na novela Tieta do agreste, da Rede Globo, adaptação por Aguinaldo Silva do romance de Jorge Amado, uma personagem controvertida. Era Ninete, braço direito da protagonista Tieta (Betty Faria) na interiorana Santana do Agreste, onde acontecia a trama. Interpretada por Rogéria, Ninete marcou sua carreira ao lançar luz sobre os preconceitos em relação aos travestis. Rogéria, de certa forma, representava a si própria e sua dubiedade, traduzida pela frequente ressignificação de gêneros que também fazia parte do seu cotidiano na vida real. Até hoje ela se lembra da cena em que o personagem de Roberto Bonfim (Amintas) passa a mão na bunda de Ninete e recebe um soco de volta, assim como uma tremenda chamada: “Moça coisa nenhuma, cara. Você tá vendo alguma senhora aqui na sua frente? Fique sabendo que o meu nome é Valdemar.” Eu tinha as marcas do acidente no lado direito do rosto e, quando falava “Meu nome é Valdemar”, me davam um close. Aí, escutei o diretor Reynaldo Boury dizer: “Ih, como vamos fazer essa cena?” Mas eles deram um jeito, colocando meu cabelo sobre a cicatriz e criando um plano de luz especial. A cena saiu maravilhosa. Lembro que o Roberto Bonfim caía sobre a mesa do bar. Depois da gravação, perguntei a ele por que tanto exagero, não era para cair assim. Roberto respondeu, rindo: “Você viu o tamanho do soco que você deu pra câmera?” De fato, acho que exagerei um pouco na porrada. A Ninete de Rogéria atraiu a atenção dos espectadores e provocou muita curiosidade. Entre os personagens, uns achavam-na simpática, outros, com a voz muito grossa. O personagem de Armando Bogus (Modesto Pires) espantava-se com o tamanho dos pés dela. Perpétua (Joana Fomm) achava que ela era outra quenga, igual à irmã Tieta, enfim, o assunto em Santana do Agreste era só Ninete, a mulher que não era bem uma mulher. O autor Aguinaldo Silva explicava: “Era uma novela com o tom bastante debochado para a época. Eu criei a Ninete especialmente para Rogéria. Ela entrou na novela, cheia de feras, já com grande sucesso de audiência, e abafou. Trabalhei três semanas com a Ninete e depois ela saiu deixando muita saudade e lembranças.” Ninete foi o primeiro personagem travesti da teledramaturgia nacional, embora o travesti Claudia Celeste tenha sido o primeiro a participar de uma telenovela, alguns meses antes, em 1988, na extinta Rede Manchete, em Olho por olho, escrita por José Louzeiro e Geraldo Carneiro. O curioso foi que Claudia Celeste fazendo um personagem feminino e de certo destaque não foi identificado como travesti. “Quem tem bagagem cultural nunca vai pagar por excesso de peso.” O produtor Francis Mayer preparava a versão teatral de Querelle, baseada no livro de Jean Genet, publicado pela primeira vez em 1947 e já filmado, com certa repercussão, pelo cineasta alemão Rainer Fassbinder, em 1982. Francis pensou em Rogéria para o papel de Madame Lysiane, personificada no cinema pela atriz francesa Jeanne Moreau. A peça contava as agruras do marinheiro homossexual Georges Querelle que, vivendo entre o bordel e o cais do porto, se entregava a um caminho sem volta num suicídio moral e festivo. A história de vida do “maldito” Jean Genet, autor da peça, confunde-se com suas obras, permeadas de marginalidade, degradação e opressão social, resultado de sua criação em orfanato e depois em reformatórios para jovens delinquentes. Vivendo de roubo e prostituição, escreveu grande parte de suas peças e livros na prisão. A direção de Fábio Pillar pensava uma forma mais amena e poética que a exibida nas telas por Fassbinder, optando por um maior simbolismo na sugestão de cenas em vez da representação mais cruel e realista do filme. Como a dona de um bordel, Rogéria era a única mulher em cena, ao lado de mais dez atores, incluindo Gerson Brenner na pele do marinheiro Querelle e um ainda desconhecido Guilherme dePádua. Rogéria sabia que ela própria era uma personagem e tanto, criação inspirada de Astolfo que dera certo e permitira-lhe fama e reconhecimento artístico. O autor Astolfo fundia-se com a personagem Rogéria. Já não podiam mais viver separadamente. Por isso, nos ensaios e nas primeiras apresentações, ela procurou separar-se o máximo possível de sua personagem-tipo. Não queria sua Madame Lysiane parecida com a vedete esfuziante Rogéria. A crítica notou e assinalou a passividade da atriz. Nas sessões seguintes, ela se soltou mais, e sua personagem na peça ganhou vida e humor cênicos. Querelle era um marinheiro, traficante de drogas, que mata um colega e vai se refugiar num bordel. Lá resolve unir o prazer sádico com a morte, e come e é enrabado por todo mundo. Eu não quis ser influenciada pela Jeanne Moreau e adotei uma linha mais econômica, tentei separar Rogéria da Lysiane. O público estranhou, e o crítico do Jornal do Brasil escreveu que não estava entendendo a nova Rogéria, pálida, sem sabor, contida. E ele estava certo. Cheguei ao teatro e retomei a peça com toda a força, dei vida à personagem. A peça estreou no Teatro Dulcina, depois foi para o Casa Grande e fez um fim de semana no teatro da UFF, em Niterói. A cenografia e os figurinos eram de Rosa Magalhães. Um dos destaques da montagem foi a trilha sonora composta por Cazuza. Uma composição em especial, em parceria com Lobão, chamava a atenção: “Quero ele” (“Quero ele / mas quero muito / ouço no meu gravador murmúrios dele / procuro ele no mar, por todo o navio / quero ele, menino triste / quero ele por trás dele / por cima da mesa / quero Querelle, quero querê-las / quero tê-las, seus bagos, suas orelhas (...) quero Querelle e seu irmão [quero Rogéria e seu pauzão] / quero em Brest todos os santos / quero as fadas e os gigantes /... quero escovar seus dentes / passar colônia / contar histórias pra sua insônia / quero curar seu mal de sexo / quero sem nexo, sem camisinha / quero, sim, quero carinho / quero a luz dos obscuros / quero querer / quero mamar / quero preguiça / o Rio, Angra, Paranaguá / quero vocês, meus companheiros / meus marinheiros / meus caloteiros / quero vocês / quero, com a faca, cortar a dor / e ser mulher [mulher Rogéria, Astolfo macho]”). Tanto Gerson Brenner quanto Guilherme de Pádua, que participaram da peça Querelle, tiveram suas vidas marcadas por eventos trágicos. O primeiro, ferido gravemente ao reagir a um assalto, ficou meses em coma; e o segundo foi condenado pelo assassinato da atriz Daniella Perez. O Gerson era um rapaz decente, bonito, cheio de vida... Por que foi reagir ao assalto? Tenho receio de procurá-lo e não conseguir disfarçar as lágrimas. Se for visitá-lo, não vou poder esconder que estou morrendo de pena e isso não fará bem a ele. Já o Guilherme, para cometer aquele horror só estando louco ou sendo muito burro. Tinha tudo para fazer uma bela carreira, era bonito e talentoso. Um pouco puxa-saco. Um dia foi à minha casa e ficou me ouvindo cantar. Mostrou sensibilidade, não notei nenhuma maldade em sua alma. Só uma vez me chamou a atenção nos ensaios quando o personagem dele matava um tenente. Fábio apagava as luzes nesse momento, mas ele continuava com o assassinato. Eu me perguntava: Por que, meu Deus, se estará tudo no escuro? Mas pode ser apenas coincidência. De verdade, seu mal foi na escolha da namorada. Paula Thomaz era frequentadora assídua da Galeria Alaska e sentia prazer em tirar os homens das bichas, sempre foi uma barra-pesada. Guilherme encontrou a companheira errada. Foi um assassino cruel, hipócrita, fez o que fez e ainda teve o desplante de ir ao enterro e consolar a mãe da vítima. Com distúrbios na fala, motricidade e capacidade cognitiva, em tratamento para recuperação, Gerson Brenner vive em São Paulo. Seu último trabalho foi na novela Corpo dourado, da Rede Globo, em 1998. Guilherme de Pádua foi condenado a 19 anos e seis meses de prisão pelo assassinato a golpes de tesoura da atriz Daniella Perez, em 1992. Saiu da prisão em 1999, depois de cumprir um terço da pena. Atualmente trabalha na Igreja Batista da Lagoinha, bairro de classe média baixa de Belo Horizonte. “O espetáculo musical era a minha paixão.” Em comemoração aos seus 25 anos de carreira, Rogéria retornou ao teatro de revista, ao palco das vedetes, reduto onde tudo começara, onde podia se esbaldar, cantando, dançando e provocando. Novamente tendo a produção de Francis Mayer, a direção de Fábio Pillar e figurinos de Luiz Eustáquio, estreou em 8 de fevereiro de 1990, no Teatro Alaska, o musical Folia tropical. Amo fazer teatro sério e adorei minha participação em Tieta, pois foi a oportunidade de sentir de perto o gostinho da fama e ser assediada na rua até por crianças. Mas o espetáculo musical era a minha paixão, onde podia cantar, mostrar meu lado de comediante e ainda exercitar o dramático, como fiz em Folia tropical. O espetáculo foi montado a partir do enredo do filme A malvada; eu fiz a criada Eve, de Anne Baxter, e Marlene Casanova interpretou a Margo Channing, personagem de Bette Davis. Era a partir do relacionamento sadomasoquista entre as duas, estrela e fã, que o show tinha os seus melhores momentos de humor. Rogéria tinha no eclético repertório a atração maior do seu show. O roteiro musical começava com “Emoções” (Roberto e Erasmo Carlos), depois vinha um pot-pourri de boleros (“Sabor a mi”, “La Barca”, “Aqueles olhos verdes”, “Perfídia”), um de standards da música norte-americana (“Night and Day” e “I’ve Got You Under My Skin”, de Cole Porter, e “The Lady Is a Tramp”, de Richard Rodgers e Lorenz Hart); uma homenagem a Marilyn Monroe (na única canção dublada do show) e outra a Carmen Miranda (“Disseram que eu voltei americanizada”, música de Vicente Paiva e letra de Luiz Peixoto, samba-desabafo que Carmen gravou quando, já famosa nos Estados Unidos, chegou ao Brasil em 1940); uma exaltação ao teatro de revista francês (“C’est ça la revue”, clássico do repertório de Line Renaud); outra ao público feminino (“O mundo é da mulher”, do filme It’s a Woman’s World); e fechava com mais uma de Roberto e Erasmo, “O show já terminou”. PATERNIDADE “Eu já sonhei em ganhar cinco Oscars, mas nunca sonhei em ficar grávida.” O padrão da família brasileira – formado por pai, mãe e filhos – começava a dar sinais de transformação. Desde o início dos anos 1980, notava-se uma tendência natural a possíveis adaptações, e cada vez mais havia os núcleos familiares anaparentais, isto é, que não possuem relação direta de descendência, compostos por avós, irmãs, irmãos, tios, amigos, junção de casais separados, dos que não queriam ter filhos e até daqueles que não queriam formar família. A aceitação de famílias de casais gays com filhos jamais foi assegurada pelo Congresso, já que todas as conquistas (união estável, adoção de crianças) deram-se por intermédio do Judiciário. De acordo com o censo de 2010, havia no país mais de 60 mil famílias homoafetivas, refletindo um fenômeno social que não mais poderia ser controlado por leis. Rogéria sempre havia defendido sua posição de apoio à união estável entre homossexuais, com ou sem filhos, em detrimento de haver ou não cerimônias de casamento. A união civil entre os homossexuais era fundamental e inevitável. Já o casamento entre gays, a cerimônia, é coisa de bicha maluca. Não tem a menor relevância, é puro jogo de cena. A família costuma ainda renegar os homossexuais. O cara fica rico junto com o parceiro, vão criando juntos uma vida, um deles morre de repente e a família vem e arranca até a pia. Sobre formar família, Rogéria tinha uma posição bem definida. No início não quis se casar por dedicação à carreira. Depois preferiu não se sentir presa a ninguém, vivendo com sua mãe e seu irmão. A maior parte do tempo viajava, tinha seus casos, ficava sozinha e dava-se bem com seus moinhos e manias. Na casa de Rogéria, em Niterói, havia suas cadelinhas da raça maltês, a Ice-cream Pennalton e suas crias, Marilyn, Bebel e Mink, todas Pennalton de linhagem nobre e muitobem-cuidadas por Dona Eloah. Numa entrevista, Rogéria falou sobre nunca ter pensado em ter filhos. A possibilidade da paternidade não havia passado pela sua cabeça. Era uma questão resolvida. Bette Davis sempre disse que estrelas jamais deviam ter filhos. Poucas atrizes conseguem ser boas mães e atrizes com o mesmo desempenho. Há exceções, é claro. Uma é Glória Pires, esta conseguiu ser tanto excelente mãe como atriz. Pudera, com a educação primorosa que teve. Seu pai, o Tuneca (Antônio Carlos), eu conheci bem, desde os tempos da TV Rio. Uma pessoa íntegra, dos poucos homens fiéis que vi na vida. Era louco pela Elza, sua mulher. Poucos se lembram, mas ele fez para a televisão um personagem gay, para mim o melhor. Era um cabeleireiro português, e Consuelo Leandro e Carmem Verônica, suas clientes. Antônio Carlos não debochava do personagem, gay e português, fazia com naturalidade, captava o lado humano e não deixava de ser engraçadíssimo. Rogéria nunca cogitou, de fato, procurar uma mulher para ter um filho. Ela e a mãe ajudavam a criar o Marcelo Henrique, filho da empregada da casa, a Marlene. De início, houve a questão de como o menino encararia a escolha da “mãe” adotiva, um homem vestido como mulher. Mas, com calma, tudo lhe seria mostrado e explicado. Minha mãe gravava meus trabalhos na tevê para mostrar a ele quando crescesse. Ele iria entender. Um dia eu lhe dei uma bronca tão forte que minha mãe, na hora, avisou: “Rogéria, se você continuar assim, ele vai descobrir logo que você é homem...” Marcelo Henrique e Marlene permaneceriam com Dona Eloah até Rogéria se mudar definitivamente para o Rio, indo morar no Leme. Além da nova moradia de Dona Eloah em Niterói ser menor, Marlene conseguira um novo emprego. Rogéria ainda veria Marcelo algumas vezes, mas, aos poucos, com a distância, foram perdendo o contato. Rogéria foi convidada pelo diretor José Joffily para atuar no longa policial A maldição do Sanpaku. Com roteiro de Jorge Durán, o filme contava a história de Poeta (Felipe Camargo), que tenta dar um golpe em uma perigosa quadrilha e provoca a ira do chefe (Sergio Britto), homem disposto a tudo para reaver seu dinheiro. Rogéria fazia Loura, a personagem que assassinava as pessoas. Envolvidos também na trama, Gafanhoto (Roberto Bomtempo) e a namorada, Cris (Patrícia Pillar), belíssima mulher que trazia nos olhos a marca da tragédia. Sanpaku é uma palavra japonesa que significa “três brancos”. As pessoas têm olhos de sanpaku quando a área branca dos seus olhos é visível também na parte inferior, entre a íris e a pálpebra. De acordo com uma tradição antiga, elas são vítimas de uma espécie de maldição, costumam morrer prematuramente e em circunstâncias, geralmente, trágicas. Alguns exemplos de famosos com esse tipo de olhos eram John Kennedy, Marilyn Monroe, John Lennon, Lady Di e Michael Jackson. Meu papel era ótimo, só que o diretor cortou várias cenas na montagem e o filme ficou meio sem nexo. Eu fazia uma assassina que trabalhava para o Sergio Britto, homem ambicioso e cruel que desejava uma pedra preciosa que valia 200 mil dólares e conseguia contrabandeá-la dos Estados Unidos para cá. O contrabandista, Felipe Camargo, com o auxílio de sua amante, Patrícia Pillar, lindíssima, entregava uma cópia para o chefão, que iria fazer de tudo para ter a joia verdadeira. No final, eu acabava matando todo mundo, inclusive meu próprio patrão. Minha melhor cena era quando, depois de matar todos, eu fugia feliz dirigindo um Porsche. O curioso era que, por não saber dirigir, eu ficava com a mão no volante e um rapaz, embaixo, entre minhas pernas, ia mexendo na embreagem, no freio e no acelerador. No filme eu usava joias de verdade, Valentino, emprestadas por uma amiga, condessa. Mas nem o figurinista notou. Dizem que, em cena, as bijuterias aparecem melhor que as joias verdadeiras Também nunca perguntei ao Joffily o motivo de ele ter cortado as cenas. A maldição do Sanpaku ganhou três Kikitos no Festival de Gramado, nas categorias de ator coadjuvante (Roberto Bomtempo), fotografia e edição. No Festival de Brasília ganhou como melhor filme e melhor atriz (Patrícia Pillar). “Se o cara me quer como ativo, é o Astolfo que está ali. Agora, se ele me quer como mulher, Marilyn Monroe ressuscita.” Aproveitando o modelo do show dos leopardos, Rogéria voltou à Galeria Alaska, em 1991, com um novo espetáculo, o Selvagens da madrugada, apresentações únicas, todo sábado à meia-noite. Rogéria subia ao palco ao lado de rapazes musculosos, num show erótico-musical. A ideia não era nova, embora a fórmula parecesse funcionar de forma cíclica, ora virando mania, ora caindo no esquecimento. No Selvagens da madrugada, eu comandava nove ou dez rapazes de corpos invejáveis que faziam números ligados a várias modalidades esportivas, como futebol, capoeira, caratê, e algumas danças afro. Acabamos nos apresentando em várias cidades. Numa dessas viagens, um iniciante na política, que se destacaria no futuro, aproximou-se de Rogéria. No início ela tentou evitar, mas, depois de alguma insistência dele, aceitou se encontrarem. O caso não durou mais do que uma noite. Desde o começo, pressentia que não ia dar certo. A única coisa interessante era aquela atmosfera noir, às escondidas, perigo e aventura. Isso me excitava. Mas quando ficamos a sós, ele insistia em dizer que era meu fã. Eu brochava na hora. “Querido, me esculhambe, por favor! Não tem essa de fã! Agora aqui é Rogéria, a bicha maluca que você tem de desprezar.” Gosto de sofrer na cama, que meu homem me deixe em frangalhos e depois fique com pena de mim. Mas ele toda hora deixava escapar que era meu admirador, com aquela cara de bobão. Eu precisava das palavras certas, ditas na hora certa. Já gozei muito só com as palavras, mas ele era um desastre. Tinha tudo para ser um bom político e péssimo amante. AS ENTREVISTAS POLÊMICAS “Dar o rabo é coisa pra macho.” Travesti mais famoso do Brasil, diva do transformismo, vedete do showbiz, atriz-revelação do Mambembe, Rogéria era constantemente requisitada para entrevistas, e ela não decepcionava, com declarações corajosas, revelações bombásticas e respostas francas e diretas, de alguém que fazia questão de ser vista como realmente era. Danuza Leão, ao entrevistá-la, dizia ver à sua frente uma mulher total. Para o jornal GLT Lampião, disse no início dos anos 1980 que, caso gostasse de mulher, daria em cima da atriz Maria Zilda. Entrevistada por Aguinaldo Silva, contou que acreditava em reencarnação e que, na sua próxima, se pudesse escolher, não voltaria nem homem nem mulher, mas bicha outra vez, porque a vida de bicha era divertida pra cacete. Em 1976, na revista Status, listou para o jornalista Daniel Más algumas desvantagens de ser mulher, como o uso obrigatório do secador, sempre fazer pé e mão, ter que se depilar, usar brinco que aperta, cinta-calça (mesmo não tendo celulite, usava a cinta-calça por ser mais feminino), maquiagem, creme em volta dos olhos, fazer limpeza de maquiagem, etc. Também contou de sua emoção ao dar de cara com Diana Ross em Nova York e disse que adorava o casal Carlos Alberto Torres e Terezinha Sodré. Aos repórteres Chiquito Chaves e Tim Lopes, do jornal O Repórter, em abril de 1981, Rogéria comentou ter um caso com a atriz e bailarina carioca Wilma Dias, famosa por sair de uma casca de banana na abertura do programa humorístico O planeta dos homens. Wilma era muito amiga do Agildo, ia sempre nos ver no Alta rotatividade. Ela trabalhava com ele num programa de humor da Globo. Também atuou em vários filmes. Ela gostava muito de mim, era um amor de garota. Várias mulheres deram em cima de mim. Amo as mulheres, mas não para comê-las. Não tenho tesão em mulher. Tive um namorico com a Wilma, sim. Ela teve vontade, mas nunca chegamos às vias de fato. Os humoristas do Casseta & Planeta diziam, no especial Casseta Fraude, de 1991, que Rogéria era “o melhor em matéria de mulher, já que não menstruava”. Com o título “Tudo o que você sempre quis saber de um travesti e nunca foi machopara perguntar”, a entrevista revelava uma Rogéria autêntica, direta e sem meias verdades. Ela dizia suspeitar que as mulheres só concordavam com sexo anal para agradar seus parceiros e afirmava que nunca tivera problema de rejeição com os homens, porque, se eles comiam até bananeira, não iam comer uma Rogéria, toda produzida? Explicava também como fazia para esconder o saco, sem se machucar, contando que houve uma noite de amor em que quase desmaiou de dor quando levou uma “palmada” de seu homem, bem no meio das bolas. Na época que dei a entrevista para o Casseta, eu disse que dar o rabo era coisa pra macho e que achava que “o simples fato de fazer sexo anal não quer dizer que seja homossexual”. Um ator de novelas da Globo me visitou e trouxe um exemplar da revista. Ele queria saber se eu achava aquilo mesmo. Eu confirmei, claro, precisa ser muito homem, sim. Dar a bunda não significa ser viado, o gay está só na cabeça. Senti que ele ficou tão feliz, mais leve, como se tivessem tirado um peso de cima dele. Acabamos na cama. Na verdade, devia estar louco pra me dar e não sabia como. Em 2012, no programa Provocações, da TV Cultura, Rogéria explicou a Antônio Abujamra seu estranho porém harmonioso convívio entre os dois lados, masculino e feminino. Nunca quis ser mulher, só representar. Uma fantasia que vinha take by take, cena por cena. Quando ia ao banheiro dava preferência sempre ao das mulheres, para não pensarem que estava atrás de homens. Se o banheiro estivesse limpo, sentava-se, se não fazia em pé mesmo. O maior incômodo, quando usava o banheiro feminino, era a fila. Em 2013, no De frente com Gabi, do SBT, Rogéria confessou a Marília Gabriela seu orgulho em ser conhecida como o travesti da família brasileira e um símbolo da luta pelos direitos de igualdade sexual. No mesmo ano, com Luciana Gimenez, no Luciana by Night, da RedeTV!, admitiu que, como Rogéria, nunca carregou mala na vida e sempre deixou os homens pagarem a conta dos restaurantes. Quando o assunto era barata havia uma dicotomia: no início, tinha um chilique à la Rogéria, gritando por socorro. Se ninguém viesse, Astolfo entrava em cena e esmagava a barata com uma chinelada, sem problema. Algumas entrevistas causaram aborrecimentos por terem sido distorcidas ou malconduzidas. Transtornos do ofício de quem está sempre exposta e não costuma medir muito as palavras. Rogéria fica triste e revoltada, por exemplo, com as insistentes perguntas e indiretas de vários jornalistas sobre se ela tinha ou tivera um caso com Agildo Ribeiro, pelo simples fato de trabalharem tanto tempo juntos, como se para trabalhar com um travesti necessariamente tivesse de haver sexo. Agildo sempre considerou Rogéria uma parceira extraclasse, notadamente no seu envolvimento de improvisação com a plateia: “Fico boquiaberto com o talento e as possibilidades dela em cena. Rogéria é um dos artistas mais completos, dança, canta e em números de plateia não tem pra ninguém. Foi e será uma das grandes atrações desse país.” Agildo Ribeiro foi uma das pessoas mais importantes na carreira de Rogéria, que o tinha como um irmão. Outra fofoca que incomodou Rogéria envolvia uma suposta declaração da atriz Darlene Glória. Talvez, por brincadeira ou provocação, eu nunca soube, Darlene deu uma entrevista dizendo que quis me comer e eu fugi dela chorando. Não gostei nada. Soube que passou por uma fase depressiva. Sempre a tratei superbem, com todo o mimo. Lady Hilda morria de ciúmes. “Só porque ela é loura...”, brincava. Na época, me lembro que comentei: “Sou viado e ficam inventando mulher pra mim, imagina encarar uma xoxota numa hora dessas...” Mas o que mais deixou Rogéria contrariada foi uma entrevista, dada no camarim do Bar do Tom, que saiu no site Gente, do IG, em outubro de 2012, com o título: “Rogéria sem mágoas: meus tios me bolinavam sob meu consentimento”. Dizer a verdade, muitas vezes, é tão difícil quanto ocultá-la. São dois extremos. Triste é quando tentam distorcer o que falamos. SARITA MONTIEL E VODCA “De vez em quando eu adoro o homem que eu sou.” Convidada por sua amiga Suzy Parker, Rogéria acertou uma minitemporada de três meses em Barcelona, para se apresentar como atração na Boate Belle Époque, com a travesti italiana Dolly Van Doll. Sentia saudades da Europa e aproveitaria para rever alguns amigos. Suzy conseguiu que Rogéria se apresentasse num programa da tevê espanhola Ven al Paralelo, cuja estrela era Sarita Montiel, velha conhecida de Rogéria dos tempos da TV Rio. Rogéria pensava em lhe fazer uma surpresa. Ao se encontrarem, no entanto, Sarita não reconheceu na bela e esfuziante travesti o menino maquiador de trinta anos antes. Rogéria, constrangida, nada lhe revelou. O sucesso de suas aparições no Belle Époque renderia outros convites. Rogéria se apresentaria em nova temporada, com shows na discothèque Capitán Bananas, na Sala Metro e na boate gay Oh’Patmos. Suzy Parker já sabia que Rogéria faria uma bela temporada: “Ela arrasou e deixou todo mundo querendo mais. Estava em plena forma, um coquetel de talento: um pouco de cantora, vedete e atriz. Tenho orgulho de ser sua fã e sua amiga.” Num dos últimos dias de Rogéria em Barcelona, Suzy festejava 30 anos de carreira e tinha organizado uma festa badaladíssima na Sala Apolo. Já de madrugada, Rogéria resolveu esticar numa boate da moda, reduto de homossexuais e simpatizantes. Logo que cheguei, notei um cara lindo de morrer. Ele disfarçava, mas também me olhava. Só que a concorrência era grande e cruel. Havia um monte de travestis jovens e lindos, e eu já era quase uma cinquentona. Mas resolvi acreditar. Dancei na pista, joguei cabelo, dei umas pintas e, quando voltei para a minha mesa, o menino só olhava pra mim. Sorri, e ele sorriu de volta. Resolvi me chegar. Nascera na Holanda, devia ter uns 20 anos e era jogador de futebol do Barcelona. Falava bem o espanhol. Saímos dali e fomos para o apartamento. Estava indo tudo bem, até a hora da cama, Aí, surpresa: ele queria o Astolfo! Ainda tentei inverter, um homem lindo, com aquele corpo... Mas percebi que não havia chance. Eu uso a criatividade e jogo com a fantasia sexual do homem, porque é disso que ele gosta. Sou homem quando o parceiro quer e uso o lado feminino quando ele gosta de mulher. Mas o que acaba prevalecendo no final é o meu lado de ator. Ou atriz. Então, parti para aquela esculhambação que era mulher ser homem, prendi meu cabelo, e comi aquele rabo loucamente. Acabamos, levei o holandês até a porta. E ele: – Puedo volver alguna vez? – Si, quando quieras. – Ahora! Quase não acreditei, o holandês do Barcelona queria bis. Falei a ele que não tinha mais 18 anos, mesmo assim, fizemos a segunda. Ele se vestiu todo de novo e na porta quis voltar. Na terceira, não tinha mais pau, dei-lhe muita porrada. Fui bem sapatona e coloquei o gringo bem debaixo dos meus pés. O pior foi que ele adorou, com aquelas bochechas vermelhas de tanto tapa. No dia seguinte, tinha flor na porta e um convite para jantar. Depois de Barcelona, Rogéria partiu para Nova York, tinha combinado ver sua amiga Brigitte e se apresentar no Brazilian Circle, no Queens Plaza da 41st Avenue, três noites com o show The Wonderful Rogeria. De acordo com o jornal latino de Nova York, El Tiempo: “Directly from Brazil, Rogeria for three special Halloween nights.” Rogéria tomaria um susto em Nova York, ao acompanhar Tina Caprity a uma festa de casamento. Fazia muito calor, eu não tinha comido nada. Minha amiga me ofereceu o que eu pensei ser uma limonada gelada. De estômago vazio, morta de sede, bebi tudo de um gole. Só que havia vodca, e eu não senti. Pedi outra e bebi. As pessoas comigo estavam tranquilas, achando natural. Pensaram que eu era doidona, não sabiam o quanto eu era fraca para bebida. Ainda mais vodca, a que não estava acostumada. Fiquei animadinha. Devia ser umas dez da noite. Ainda pedi uma terceira limonada e lá foi mais um pouco do suco geladinho. Resultado: me lembro que fui a um lavabo, me senti tonta, achei que ia cair e fiquei por lá,esperando melhorar. Apaguei e só acordei no dia seguinte. Minhas amigas, apavoradas, acharam o pior. “Imagina se ela morrer justo aqui... Por que não avisou que não bebia?” Eu expliquei que não sentira o gosto da vodca. Ou talvez tivessem colocado alguma coisa no meu copo... Não me lembro de coisa alguma que aconteceu naquela noite. Só sei que acordei, linda e fagueira, naquele lavabo: “Onde estou, onde estou?” Retornando ao Brasil, Rogéria começou a filmar o longa-metragem A causa secreta, de Sergio Bianchi. Com roteiro baseado em conto homônimo de Machado de Assis, o filme, um drama, mostrava uma pesquisa de campo de atores que se preparavam para sua próxima peça. A pedido do diretor do espetáculo (Renato Borghi), o elenco se dedicava a um laboratório sobre a dor, a miséria e a violência do país. Nas filas do Serviço Nacional de Saúde, em hospitais públicos e nas próprias ruas, eles encontravam pessoas passando por diversas dificuldades. Com reações variadas, da empatia à raiva, os atores iam percebendo uma indiferença cada vez maior à dor e à humilhação dos marginalizados. Uma cena em que um dos personagens torturava longamente um rato com fogo causou polêmica. Bianchi argumentou que havia motivos bem mais relevantes para chocar o público do que a cena do rato, como crianças carentes passando fome ou pacientes negligenciados num hospital público. No artigo “Causa secreta é libelo contra indiferença”, o crítico Luiz Zanin Oricchio, do jornal O Estado de S. Paulo, ressaltava: “O filme é construído em torno dessa acomodação ao sofrimento (alheio), uma estratégia de sobrevivência social como outra qualquer. Choca mais ver um animal torturado que uma criança passando fome. A miséria nacional já produziu seus anticorpos sociais. Um deles é a indiferença.” Já Carlos Alberto Mattos escreveu no Jornal do Brasil uma resenha intitulada “Uma morbidez coletiva que assola o Brasil” em que dizia: “Um grupo teatral prepara uma adaptação do conto de Machado e vive situações típicas de um país conflagrado: a insensibilidade das elites à frente da miséria urbana, a inutilidade do debate de ideias diante do sofrimento físico, as humilhações sexuais embutidas no jogo do poder e até a falta de uma política de saúde para o país desfilam pela tela, em pílulas nada doces.” No filme, Rogéria fazia uma mulher que recebia pessoas com aids em sua casa, cuidava delas e as defendia numa cena em que eram entrevistadas por participantes do grupo de teatro. Não recebi nenhum tostão por minha participação nesse filme, nem sequer fui convidada para assistir. Soube que estava passando no cinema por meio de amigos. A causa secreta ganhou prêmio de melhor diretor (Sergio Bianchi) e melhor atriz (Cláudia Mello), no 27o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro; e o prêmio de melhor ator e atriz coadjuvantes (Rodrigo Santiago e Ester Góes), pela Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1994. NA CAMA COM ROGÉRIA “Conheço muito homem que dá a bunda e não é homossexual, é um vicioso.” Em 1983, com a confirmação do primeiro caso de aids no Brasil – inicialmente conhecida como a “doença dos 5 H” (homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos, ou seja, usuários de heroína injetável, e hookers, profissionais do sexo) e depois como a “peste gay” –, o mundo acompanhava com apreensão a evolução-relâmpago da doença, agora não mais um “privilégio” dos homossexuais. A morte de Cazuza, em 1990, deixou Rogéria chocada. Num tempo obscuro, de escassas informações e muita especulação, vários artistas e intelectuais estavam morrendo, entre eles Michel Foucault (1984), Rock Hudson (1985), Henfil (1988), Lauro Corona (1989), Freddie Mercury (1991) e Anthony Perkins (1992). Os atores Caíque Ferreira e Claudia Magno estavam em estado grave e faleceriam no início de 1994. Rogéria perdeu vários amigos. O alarmismo e os preconceitos geraram traumas diversos, e ela não ficaria imune a essa atmosfera. Dez anos depois do seu surgimento no país, em 1993, o antirretroviral AZT começava a ser produzido por aqui. A Organização Mundial da Saúde anunciava a ocorrência de 10 mil novos casos de aids por dia no mundo e aprovava a primeira vacina candidata a testes em larga escala em países pobres. No Brasil, o total de casos aproximava-se dos 20 mil. Coincidência ou não, depois de filmar com Bianchi sobre aidéticos, Rogéria conheceu um costureiro, portador do vírus HIV, por quem ficou vivamente impressionada. Não sei bem explicar o motivo de minha enorme atração por aquele rapaz. Tão tímido e retraído, não tinha mais de 20 anos. Quando todos iam sair, pedi a ele para ficar. Conversamos e ele me contou sobre sua vida. Me disse que tinha um namorado e então confessou que era HIV positivo. Eu o agarrei e beijei tanto. Não sei o que me deu na hora. Não teve sexo. Com gay não rola. Mas foi como se a vida estivesse me mostrando: “Olha, podia ser contigo!” Ali, naqueles beijos, me senti vencedora de um terrível preconceito. Em agosto de 1993, Rogéria aceitou um convite para fazer uma participação especial no show Miss Gay, em Teresina, no Clube das Classes Produtoras, em benefício do Lar da Esperança, casa de apoio aos portadores do HIV. “Gosto de homens difíceis, daqueles que falam que destestam bicha e que na hora se derretem me chamando de loura gostosa.” Como passou a ficar menos tempo em Niterói, Rogéria decidiu vender o apartamento tríplex, que dava muito trabalho a sua mãe, para comprar outro menor no Rio de Janeiro. Escolheu um com vista para o mar, na avenida Princesa Isabel, em Copacabana, que foi alugado para temporada. Com a renda, alugou para ela um apartamento conjugado, na rua Gustavo Sampaio, no Leme. Quando estava em Paris, meu sonho era morar num apartamento em Versailles. Agora, estou nesse meu apezinho que adoro, aqui no Leme. Conheço todo mundo, tenho minha cama, meu banheiro, meu armário, minha janela, minha televisão, para que mais? Nunca fui boa dona de casa, não gosto de ficar arrumando a cama, detesto lavar louça e faço ovo frito no micro-ondas. As pessoas imaginam minha vida com glamour, serviçais, mil cômodos, prataria, quadros caros pelas paredes. Nada. Só tenho pôsteres da Marilyn e outros com algumas fotos minhas. Sou meio franciscana, minha vida é essa, com total simplicidade. Sou bem feliz assim. Dona Eloah ficou em Niterói com o filho Assis. Tinha sua aposentadoria, e viveriam com conforto. Nunca pensou em sair de lá, apesar de não querer se separar de Rogéria. O caçula Flávio Barrozo já se mudara para o Rio, onde tinha sua vida e sua carreira. Quando Rogéria comprou o apartamento de Copacabana, quis colocar no nome da mãe, mas Dona Eloah recusou. Decerto sabia que Rogéria teria problemas com a família, caso ela morresse antes, ordem natural das coisas. Já morando no Leme, Rogéria aproximou-se de um ator de teatro, que também gostava de cantar, e combinaram um encontro íntimo. De novo, aquela história de ser o ativo. Rogéria já estava se incomodando com isso. Prefiro ser passiva. Gosto de homens magros, com o pau grande e que me esnobem. Mas ele não era nada disso. Queria mesmo era dar pra mim. Naquele caso, pensando melhor, não era para ser uma surpresa, pois ele tinha o pau minúsculo, era para dar o cu mesmo. Falei para ele: “Esse pau aí não serve pra porra nenhuma.” Não foi uma noite maravilhosa, claro. Da outra vez foi com um empresário famoso e bem galinha. Ele era tão gostoso. Eu comia ele e ele me comia. Pedia pra ele me bater, mas ele batia muito forte. Porque apanhar é muito difícil, tem de ser dentro do sexo, na hora certa, e não pode exagerar. Eu aguentava, mas estava ficando demais. Numa noite, quando ele me acertou o terceiro tapa, pulei e gritei: – Eu peço pra bater, não pra dar porrada! – Desculpe, mas eu pensei... – Pensou é o caralho, assim vai me quebrar, porra. Depois ele brochou com o esporro e nunca mais voltou. Sexualmente, o ano de 1996 foi representativo para Rogéria. Parecia na moda transar com travestis e ser passivo. Ela decidiria nunca mais ser ativa. Já não tinha maisvontade nem idade. Havia um camelô aqui perto da minha rua, um jovem negro, forte, bonito, bom caráter. Como ele vivia duro, dava um dinheiro para ele. Ele se sentia à vontade aqui em casa. Ele transava comigo, diante do espelho. Eu gozava horrores! Era uma loucura. Ele vinha todo suado da rua e, enquanto tomava banho, eu já estava excitada. Um belo dia, ele chegou e disse que queria que eu o comesse. Relutei, tentei convencê- lo a não fazer aquilo, achei que iria profaná-lo. No final, acabou rolando um clima, mas eu não o quis mais. Depois de alguns meses, parei de falar com ele. Foi melhor assim. Nesse intervalo, estava namorando um chofer de táxi, bigodudo, machão, uma delícia. E lá veio ele, de novo, com a ladainha de ser passivo. Cheguei para ele e falei: – Olha, vou te comer, mas é a última vez. Acabou, parei de ter tesão em comer. Ele nem ligou, achou que era gênero, mas algo falou dentro de mim. Foi de repente. Afinal, não sou uma lésbica. Desde aquela vez, nunca mais fui ativo com ninguém. Interessante como Rogéria passava a incorporar sua anima feminina ainda que aceitando-se como homem. Era como que sua parte mulher, ao ser ativa, assumisse um comportamento lésbico, ou seja, fazendo sexo no papel de um homem. Com isso, e também talvez pela idade, passou a comportar-se sexualmente como uma mulher “normal”. ROGÉRIA ABAFA NA TELEVISÃO “Não sou uma mulher fantasiada, sou uma atriz 24 horas por dia.” Rogéria passaria a aparecer mais assiduamente na televisão, em diferentes horários e em programas de grande audiência, o que traduzia sua aceitação popular. Homossexuais, bissexuais, assexuais, transgêneros, drag queens ou kings, independentemente do senso pessoal de pertencer a alguma vertente, Astolfo Barroso Pinto, ou Rogéria, parecia transcender o gênero e aos poucos ia firmando sua imagem na cena televisiva nacional. Foi assim na grade da Rede Globo, no humorístico Sai de baixo (1997), criação de Luis Gustavo e Daniel Filho, direção de Dennis Carvalho e José Wilker, no episódio “Adivinhe quem vem para jantar”, com sua personagem Brigite. O programa era encenado ao vivo em duas sessões que eram gravadas e depois editadas antes de ir ao ar. Quando entrei no palco do teatro, senti a vibração da plateia. Miguel Falabella comentou: “Nossa, como eles te adoram.” Oscarito veio falar comigo depois que, se eu fosse da época dele, ia ser a estrela do espetáculo, não ia ter pra ninguém. Quando estava em São Paulo gravando o programa, Rogéria, a fim de sexo, saiu no início da madrugada e foi à caça no bas-fond paulista, na Boate Val Improviso, um inferninho que ficava embaixo do Minhocão. A frequência era das mais ecléticas, tinha de tudo: michês, soldados, marinheiros, putas, artistas, travestis, gente da noite e da alta sociedade. Logo que chegou, Rogéria encantou-se por um rapaz bonitão, cara séria e solitário, num canto da boate. Tomaram uns drinques da casa e logo combinaram de ir para o hotel. Mas, antes, Rogéria pediu-lhe que fosse ao banheiro com ela, pois queria ver o tamanho do pênis dele. Eu não conseguia sair com um cara se eu não o conhecesse ou se eu não soubesse qual o tamanho do pau dele. O tamanho do cacete pode não ser o principal para as mulheres, mas, para mim, é. Quando pedi a ele que fosse ao banheiro comigo pra eu “Conferir a mala”, o cara ficou uma fera e começou a me desancar: “Que decepção, pensei que você fosse a estrela que eu sempre imaginei, mas não, você não passa de uma travesti de esquina, uma babaca sem sentimento.” Na verdade, ele tinha ficado uma arara porque eu havia questionado a piroca dele. Foda-se. Devia ser uma porcaria. Fui embora. Um tempo depois volto a São Paulo e vou de novo na Val. Quem estava lá? O próprio, de novo no balcão, sozinho. Nem dei bola, fingi que não o vi. Mas ele veio, me pedindo mil desculpas e dizendo que agora topava ir ao banheiro para eu ver o pau dele. Aí eu falei: “Ah, agora, sim.” E não é que o rapaz tinha uma mala e tanto? Por que não me mostrou logo naquela noite? Enfim, depois de tudo acertado, fomos ao hotel. Passamos a noite juntos. Pedimos o café da manhã no quarto enquanto ele ia falando da sua vida. Então, o susto: o infeliz confessou que era um assassino, contratado para matar pessoas, que vivia disso. Quase desmaiei, mas tentei manter a classe e a calma. No fundo não estava com medo dele, mas dos eguns que cercavam ele. Me disse estar apaixonado e que faria qualquer coisa por mim. Saímos do hotel e fomos dar uma volta no Largo do Arouche. De repente, veio uma senhora me pedir um autógrafo. Aí, pensei: “Imagina se a polícia está atrás desse cara e me vê com ele. Irão pensar o que de mim?” Nos despedimos e marquei com ele de noite no Val. Apareci por lá e falei com ele rapidamente, terminando tudo e pedindo que nunca mais falasse comigo ou me procurasse: “Você não disse uma vez que eu era um travesti de esquina, uma babaca sem sentimento, então sou mesmo assim. Adeus.” Nunca mais vi esse homem. Nem voltei na Val. Depois da participação no Sai de baixo, Rogéria apareceria no programa interativo Você decide (1999). Em cada episódio eram encenados casos especiais, com um final diferente a ser escolhido pelos telespectadores por meio de votações pelo telefone. Rogéria fez o papel dela mesma, no episódio “Mulher 2000”. O programa foi ao ar no dia 11 de março e teve seu final exibido apenas nas regiões Norte e Nordeste devido ao blecaute que afetou boa parte do país na hora do programa. A própria Rogéria, até hoje, não conseguiu ver. No ano seguinte estava no humorístico Zorra total, no quadro “Rosto a rosto”, com Alberto Roberto (Chico Anysio). Chico foi um grande mestre. Um pouco antes de começarmos a gravar o quadro em que seria entrevistada pelo galã Alberto Roberto, comentei que funcionava melhor no improviso e na intuição. Chico pediu para me tirarem o texto porque íamos improvisar. Quase me escangalho de rir em cena quando lhe falei que havia feito a peça Querelle. Na mesma hora ele disse que conhecia muito. Eu perguntei, curiosa, se ele já tinha visto. E o Alberto Roberto: “Clararo, quem não conhece a famosa ‘casa do Querelle’, já me mandaram muito para lá...” Foi difícil controlar as risadas. Chico era um artista genial e generoso. Em 2002, fez uma rápida passagem pela novela das sete Desejos de mulher, escrita por Euclydes Marinho, com direção de Dennis Carvalho e José Luiz Villamarim. Os personagens de José Wilker e Otávio Müller eram homossexuais, mas o tema não chegou a ser explorado, ganhando contornos cômicos. José Wilker, Otávio Müller, Vera Holtz e Chris Couto desfilaram em um trio-elétrico na sexta edição da Parada do Orgulho Gay, em São Paulo, nas cenas finais da novela. Me lembro de uma cena em que José Wilker fazia um gay e eu tinha que esculhambar com ele. Como sou muito teatral, acho que exagerei um pouco na dose. Wilker se assustou e, depois da cena gravada, caiu na gargalhada: “Menina, mas você me atacou!” Naquele mesmo ano, no seriado Brava gente, com histórias adaptadas de obras da literatura, Rogéria fez uma participação como Sissi no episódio “O enterro da cafetina”, baseado no livro de contos de Marcos Rey. E no seriado A grande família, no episódio “Ô, velho gostoso”, Rogéria apareceu como ela mesma, no Carnaval, entrevistando foliões no Baile das Cachorras, entre eles, o personagem Agostinho (Pedro Cardoso). Na novela das nove Paraíso tropical (2007), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, novamente sob a direção de Dennis Carvalho, Rogéria faria a personagem Caroline, uma transformista. A trama central era a história das gêmeas Paula e Taís (interpretadas por Alessandra Negrini), fisicamente idênticas, mas com personalidades opostas. A curiosidade foi Rogéria contracenar com Daisy Lúcidi (Iracema). As duas se reencontraram depois de quase 40 anos: Rogéria havia sido maquiadora de Daisy, nos tempos da antiga TV Rio. Para compor sua personagem, Rogéria se inspirou na atriz Tippi Hedren, a Melanie Daniels do clássico de Hitchcock Os pássaros. Naquele mesmo ano, Rogériafez a Tia Dolly, em participação especial no humorístico Toma lá, dá cá, no episódio “Dolly Pancada Seca”. A gravação do Toma lá, dá cá era ao vivo também. Quando entrei foi um arraso, estava com um figurino lindo do Carlos Tufvesson. O melhor foi uma cena em que minha personagem Dolly tinha de dar com uma garrafa na cabeça da síndica, a minha amiga Stella Miranda. Acontece que me confundi na hora e, em vez de pegar a garrafa cenográfica, peguei a de verdade e já ia dar na cabeça da Stella, quando gritaram para eu parar! Rogéria também foi Lulu, a mestre de cerimônias de um concurso de dança da terceira idade, no seriado semanal Dicas de um sedutor (2008), protagonizado por Luiz Fernando Guimarães no papel de um consultor sentimental. Em 2010, fez um travesti, o pai de Pedrão (Marcius Melhem), no sitcom Os caras de pau, estrelado por Melhem e Leandro Hassum (Jorginho). Com Fernanda Lima, no programa de auditório Amor & sexo (2011), participou de um quadro discutindo sexo e amenidades. No ano seguinte, apareceria no seriado para o público adolescente Malhação, como Carmen e Rômulo Rios. No SBT, Rogéria e Nany People fizeram quatro participações no humorístico A praça é nossa, ao lado de Carlos Alberto de Nóbrega, entre dezembro de 1999 e janeiro de 2001. No bordão “Amigas”, elas trocavam farpas e insinuações maldosas, mas conseguiam manter a classe no final. Ao longo da carreira, Rogéria fez ainda várias aparições como jurada em programas de auditório, desde o Chacrinha, passando por Bolinha, Gilberto Barros e Silvio Santos. Na TV Rio vi o início do Chacrinha, preparando seu palco, ajudado pelos filhos Nanato e Leleco, uma família trabalhando junta. Chacrinha era muito generoso, pernambucano de bom coração. No Silvio Santos fui jurada uma única vez e acabei cantando “New York, New York”. Além de jurada de concursos de misses gays e afins pelo país afora, Rogéria foi avaliadora da beleza da mulher brasileira, como jurada do concurso Miss Brasil 2001, que elegeu a gaúcha Juliana Borges como a representante do país no Miss Universo. Apelidada de Miss Bisturi, Juliana causou polêmica por ter se submetido a 19 operações plásticas: lipoaspirou o abdômen, a cintura e parte das costas; recauchutou os seios com 160 ml de silicone em cada um; injetou microcápsulas do produto para aumentar maçãs do rosto, mandíbula e queixo; aumentou os lábios; extraiu pintas espalhadas pelo corpo; e amenizou as orelhas de abano. Comentando o fato, a eterna miss Brasil, a baiana Marta Rocha, disse que histórias como a de Juliana Borges eram extravagâncias do mundo moderno: “Acho um pouco de exagero. Na minha época (1954) não podia nem pintar o cabelo.” É quase inacreditável essa história das cirurgias. No começo pensei que era estratégia de marketing, depois soube que ela foi até confundida com um travesti. Votei nela porque vi que era inteligente na hora do teste para falar. Ela era formada e não ficava lendo O Pequeno Príncipe. Deu um banho nas outras. Durante esse período em que Rogéria aparecia eventualmente na televisão, notava-se que seus personagens repetiam-se em travestis ou similares, numa imagem alegórica e estigmatizada, oriunda do próprio personagem que criara. A grande chance de reverter esse possível estereótipo surgiria em 2012, com o convite para participar da novela das seis Lado a lado. Quando soube que faria a Alzira Celeste, mãe da personagem da Maria Padilha e avó do personagem do André Arteche, chorei de felicidade. Era a primeira vez que um homem fazia o papel de mãe e avó na televisão. Escrita por Claudia Lage e João Ximenes Braga, Lado a lado, que ganhou o Prêmio Emmy Internacional, tratava da emancipação feminina, suas lutas e conquistas. Com viés crítico ao machismo da época, abordava preconceitos sofridos pelas mulheres divorciadas, que viviam fora de casa e queriam trabalhar, assim como os dramas da ilegitimidade e daquelas que tinham filhos fora do casamento. Foi a primeira telenovela brasileira a apresentar um casal protagonista negro (Camila Pitanga e Lázaro Ramos), que dividia os holofotes com outro casal romântico, formado por Marjorie Estiano e Thiago Fragoso. Não posso esquecer a preparadora de elenco Andrea Cavalcanti. Ela estava sempre a meu lado, me incentivando e me tirando o melhor. Andrea me policiava e não me deixava exagerar, porque sou assim mesmo, pareço um tufão quando entro em cena e ouço os diretores: “Menos, Rogéria, menos!” Andrea me pedia para ser menos over, que tevê não era como o teatro. Nessas horas me lembrava do Agildo me dizendo que eu tinha excesso de talento e personalidade. Em 2013, Jaguar escreveu uma crônica no jornal O Dia intitulada “A velha dama digna”: “Se você acha que o título tem a ver com Fernanda Montenegro, que interpretou A velha dama indigna, de Brecht, acertou na mosca. E acredito que ela esteja gostando de ver Rogéria na novela Lado a lado. Ela arrasa no papel de Alzira, veterana atriz aposentada. Eu ia quase todas as noites vê-la e principalmente ouvi-la no Teatro Rival, lá se vão 50 anos. Uma das melhores cantoras brasileiras, e isso quando havia: Elis, Maysa, Elizeth, Clara, Ângela Maria, Elza Soares, Nana, e por aí vai, uma constelação. Antológica sua interpretação de ‘Ne me quitte pas’, páreo duríssimo para Édith Piaf. Acidente de percurso: foi na conversa de um empresário, fez tratamento com hormônios femininos e acabou prejudicando a belíssima voz natural. Mas não o talento e a garra...” Jaguar é muito querido. Já fui madrinha de uma exposição dele no Museu de Arte Moderna, no Rio, em 1966, em plena ditadura militar, luz do dia, vestida de mulher. Um escândalo. Em outubro de 1973, Rogéria foi a entrevistada do Pasquim, sabatinada por Jaguar, Ziraldo (sua mulher, Vilma, fez questão de participar para poder ver Rogéria de perto), Millôr Fernandes, Fortuna, Ivan Lessa, Sérgio Cabral e Caulos, responsável pela criação e pela montagem da famosa capa, colocando o rosto de Rogéria sobre o de Mona Lisa. Caulos explicou que conseguiu convencer Millôr sobre a ideia da capa, contando que havia uma teoria sobre a possível homossexualidade de Leonardo da Vinci e que o modelo para o famoso quadro tinha sido um garoto. Millôr, então, concluiu que fazia todo o sentido a capa com Rogéria e Mona Lisa. DIVINAS DIVAS “Às vezes ser o vencedor não significa nada, o importante é o que vai sobreviver ao tempo.” Nos anos 1990, Rogéria investiria mais na sua veia de cantora em seus shows. Assim foi no espetáculo Diva, ao lado de Deoclides Gouvêa, no Teatro dos Grandes Atores, na Barra da Tijuca, e depois no teatro da UFF, em Niterói. A produção era mais uma vez de João Paulo Pinheiro. Rogéria cantava um pot-pourri de Elis Regina e antigos sucessos de Carmen Miranda, Ângela Maria e Dalva de Oliveira, além de incorporar algumas estrelas imortais, como Marilyn Monroe e Marlene Dietrich. Toda vez que cantava “Sempre te amarei” (Sergio Malta), do repertório de Dalva de Oliveira, me lembrava do ocorrido no concurso de rádio Uma canção por um milhão, ganho por Helena de Lima. Dalva, a grande favorita, ficou em segundo com essa música. Ela tinha um agudo impressionante, com perfeita emissão. Quando ouvia o disco, via que ela conseguia atingir notas muito altas, chegando a cantar quase como se chorasse (“Eu te amarei eternamente / sempre te amarei... mesmo num adeus, mesmo a chorar / eu te adorarei, eu sempre te amarei...”). No dia do concurso eu a vi, ela estava péssima, passando por problemas particulares. Parecia que queria perder de propósito. O terceiro lugar ficou com a querida Elza Laranjeira, que tinha uma voz linda, cantando “Eu sei que vou te amar”, do Jobim e do Vinicius. Quando alguém chega e reclama que não venceu, se achou injustiçado e coisa e tal, eu conto essa história. Às vezes tirar o primeiro lugar, ser o vencedor não significa nada, o importante é o que vai durar, sobreviver ao tempo. Especializando-se na diva Carmen, Rogéria apresentaria no teatro do Barra Shopping, em curta temporada, o show Taí, Carmen Miranda. O repertórioera com os sucessos da cantora, como “Taí” (Joubert de Carvalho), “Chica chica boom chic” (Harry Warren, Mack Gordon), “Disseram que eu voltei americanizada” (Vicente Paiva, Luiz Peixoto), “Tique-taque do meu coração” (Alcir Pires Vermelho, Valfrido Silva), “Adeus, batucada” (Synval Silva) e “Boneca de piche” (Ary Barroso, Luís Iglésias). O melhor elogio que eu ganhei fazendo o show em homenagem a Carmen Miranda veio de Aurora Miranda, que me disse que eu tinha o mesmo brilho no olhar da irmã. Meses depois, no café do Gláucio, do Teatro Gláucio Gil, estreava em janeiro de 2001 o espetáculo Rogéria no tom da bossa, com direção musical e violão de Jorge Lima. Rogéria mais suave, cantando bossa nova, destacando a interpretação de “Por causa de você”, parceria de Dolores Duran e Tom Jobim (“Ah, você está vendo só / do jeito que eu fiquei / e que tudo ficou / uma tristeza tão grande / nas coisas mais simples / que você tocou...”). Os dois espetáculos não tiveram boa aceitação e ficaram pouco tempo em cartaz. Voltando ao cinema, Rogéria participou de um curta-metragem, de gênero experimental, Hi-Fi (1999), com direção de Ivan Cardoso, que tratava do movimento concretista de São Paulo a partir de fragmentos da obra do poeta Augusto de Campos. No elenco, Carlos Imperial, Wilson Grey e os poetas concretistas, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald. No ano seguinte fez uma vilã em outro curta, O vestido dourado, com direção de Aleques Eiterer. O filme contava a história de um garoto que sonhava ganhar um concurso e tornar-se “estrela” de espetáculos de travesti, usando como figurino um vestido dourado e fazendo playback de sua cantora favorita, Maria Bethânia. Eu fazia uma mulher terrível, tirana. Em cena eu tratava muito mal uma senhora. Quando me vi na tela, levei até um choque. Em 2001, convidada por Carla Camurati, fez uma participação especial, como ela mesma, Rogéria, no filme Copacabana, estrelado por Marco Nanini no papel de Alberto, um fotógrafo às vésperas de completar 90 anos que, subitamente, começa a relembrar o passado, enquanto seus amigos preparam-lhe uma festa-surpresa. Rogéria interpreta, no filme, a valsa “Rosa”, de Pixinguinha, com letra parnasiana de Otávio de Souza (“Tu és divina e graciosa / estátua majestosa do amor...”), com um registro mais grave do que o seu habitual. No elenco, também, Miriam Pires, Laura Cardoso, Walderez de Barros e Ida Gomes. Nanini ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema Brasileiro de Miami, e Laura Cardoso recebeu indicação como melhor atriz coadjuvante no Grande Prêmio BR do Cinema, 2002. Em 2003, Rogéria faria, ao lado da atriz Maria Pompeu, uma curta temporada no Teatro Gláucio Gil, como convidada no show Cabaré, café, sarau etc. e tal. O roteiro tinha como base um cardápio com poemas e textos de escritores brasileiros, que era distribuído na entrada. Depois o público selecionava aqueles que Maria Pompeu deveria recitar, intercalados a canções que Rogéria interpretava. A Maria Pompeu é um exemplo de dignidade, cultura e amor ao teatro. Era uma batalhadora incansável, com aqueles seus imensos olhos azuis e sorriso meigo, inventava sempre uma maneira de seguir em frente. Nessa época, Rogéria foi chamada para trabalhar na peça Eles dançam!, inspirada em cenas do filme norte-americano Studio 54, de 1998, sobre a famosa boate nova-iorquina. O roteiro da peça, que estreou no Teatro do Posto Seis, em Copacabana, focalizava o cotidiano dos strippers, com direito a exibição de nu frontal. O participante da segunda edição do Big Brother Fabrício Amaral narrava as cenas, comentando e anunciando o que iria acontecer. Sob a direção de Francis Mayer, Rogéria aparecia no final, como atração do show, cantando duas músicas e fazendo um número com a plateia. Eu só entrava por 15 minutos, vestida da cabeça aos pés. Alguns rapazes que se achavam o máximo, possivelmente enciumados, me receberam mal. Estavam despeitados porque eu catalisava os olhares do público e tomava conta do espetáculo. E olha que não eram homossexuais. Morriam de inveja da minha performance, já que, apesar de bonitos, não sabiam representar. Ficaram bastante contrariados quando souberam que eu ia fazer a participação especial. Em 2004, Rogéria foi convidada para se apresentar no Teatro Rival, num show comemorativo dos 70 anos de existência do teatro. O espetáculo reuniu um grande número de travestis pioneiros, que se reencontravam ali. No final da apresentação de Rogéria, Ângela Leal comentou com elas sobre como seria fantástico ter todas aquelas divas juntas novamente num grande espetáculo. Jane Di Castro aproveitou a ideia e resolveu colocar no papel o projeto das Divinas divas, reunindo as meninas e convidando Berta Loran para a direção. No início seria uma única apresentação, mas, em função do sucesso de público e crítica, passou a ser mensal. Também foram realizados shows extras na Sala Baden Powell, em Copacabana, e em excursões pelo país. Rogéria também viajava com as transformistas Andréa Gasparelli e Vick Shinaider com o show Divas Forever. O espetáculo Divinas divas resultou no projeto de um longa-metragem da atriz Leandra Leal, um documentário musical visando resgatar a trajetória de oito artistas pioneiras: Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios – os primeiros homens que se travestiram de mulher nos palcos cariocas nos anos 1960, no Brasil da ditadura militar. O fato de essas artistas terem completado, em 2014, cinco décadas de carreira e ainda estarem em atividade como cantoras, atrizes e comediantes foi o ponto de partida para contar essa história de superação, sacrifícios, enfrentamentos e que abriu caminho para a transcendência do gênero diante da arte, ajudando, de quebra, a revolucionar o comportamento sexual e desafiar toda a moral de uma época. Leandra Leal, estreante como diretora, explica: “Ninguém fica 50 anos em cartaz à toa, elas não são sobreviventes, são vitoriosas. Não se trata de um documentário sobre travestis, que discute e investiga o gênero, mas um documentário sobre oito artistas.” O fio condutor do filme foi a gravação de um show, no próprio Teatro Rival, que serviria para apresentar suas trajetórias e contar um pouco de suas vidas. Em 2007, Rogéria estava animada com sua participação em 7 – O musical, da dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho, com trilha sonora de Ed Motta. Foram meses de árduos ensaios até a estreia no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes. O musical, livremente inspirado no conto de fadas da Branca de Neve, trazia sete protagonistas: Alessandra Verney, Alessandra Maestrini, Eliana Pittman, Ida Gomes, Rogéria, Tatih Köhler e Zezé Motta. Rogéria fazia o papel de uma proprietária de bordel (Dona Odete) com suas meninas Elvira (Gottsha) e Madalena (Marya Bravo). De acordo com uma cartomante (Zezé Motta), a personagem de Alessandra Maestrini (Amélia) precisava cumprir sete tarefas para recuperar seu amado, a última delas era arrancar o coração de uma jovem. Por isso, ela acabava indo ao bordel de Dona Odete. A crítica Barbara Heliodora escreveu sobre o espetáculo no Segundo Caderno do jornal O Globo: “Há restrições, é verdade, a serem feitas a 7 – O musical, mas também muito a ser apreciado nesse desconstruído conto de fadas contado por uma equipe de primeira linha.” Rogéria foi elogiada por seu desempenho pelo crítico Macksen Luiz: “As sete atrizes mostram vozes preparadas... Rogéria não deixa sua figura ultrapassar o personagem...” O Charles e o Cláudio capricharam, me senti na Broadway. Eu fazia uma cafetina, e o figurino tinha umas botas roxas e um xale de prata de cortesã. Teve uma noite em que estava em cena com a Gottsha e uma mosca enorme, que eu achei que era uma abelha de tão grande, entrou na minha unha. Eu sacudia a mão desesperadamente. Foi um horror. NU FRONTAL EM BRASÍLIA “Não tive tanto problema com a ditadura, nunca me meti em política. Eu já era uma transgressão: um homem vestido de mulher.”Em novembro de 2007, o fotógrafo Luiz Garrido reuniu, na exposição “Heróis”, 24 retratos em preto e branco de várias personalidades, entre elas, Lula, Tom Jobim, Zagallo, Oscar Niemeyer, Fernando Collor, Drauzio Varella, Fernando Gabeira e Diego Hypólito. Programada para o Salão Negro da Câmara dos Deputados, em Brasília, foi cancelada menos de 24 horas após sua abertura ao público. O motivo não poderia ser mais surreal: uma foto mostrando a atriz Rogéria, de camisa social, gravata, meia três- quartos e tênis, com seu órgão genital apertado entre as pernas, deixando à mostra apenas os pelos pubianos. O fato, ou melhor, a foto desagradou à diretora de Relações Públicas da Casa, que argumentou que o local não era ideal pois havia a possibilidade de crianças passarem por lá. A saída encontrada foi colocarem a tal foto atrás de um biombo. Em nota divulgada pela Secretaria de Comunicação Social, a Casa informou que a exposição havia sido cancelada “após se esgotarem todas as possibilidades de negociação com a diretora do evento” e de “todas as alternativas viáveis” terem sido avaliadas. A diretora rebateu: “É inacreditável que, dentro da Câmara dos Deputados, se faça uma coisa dessas. Não recebi nenhum comunicado. Havíamos feito um acordo, aceitamos isolar a foto, como eles pediram, e aí eles retiram a exposição inteira, com esse argumento completamente excessivo, incabível.” A repercussão foi tão rápida quanto polêmica, e o resultado, obviamente, geraria uma ampla e gratuita divulgação. Um mês depois, os organizadores decidiram que a exposição “Heróis” seria relançada no Espaço Cultural Contemporâneo (Ecco), no centro de Brasília, fazendo parte do projeto Foto Arte 2007. Animadíssima, Rogéria fez questão de comparecer à noite de reestreia. Precedida por muita badalação, sua aparição no vernissage foi notícia, quando tirou várias fotos ao lado de seu retrato, proibido de ser exposto na Câmara dos Deputados. Clodovil Hernandes, deputado federal à época, ao saber que a amiga Rogéria estava em Brasília, fez questão de prestigiá-la. Impossibilitado de comparecer por conta de compromissos pessoais, foi representado por sua assessoria, que entregou a Rogéria flores com um cartão de congratulações. Ao comentar com os repórteres que cobriam o evento o convite que acabara de receber de uma revista masculina para posar em nu frontal, Rogéria fez uma clara alusão à sua famosa resposta ao questionamento sobre se nunca tivera vergonha de ser um travesti: “Teria vergonha é de roubar.” Sou uma artista que independe da questão de sexo. O povo de Brasília não censurou Rogéria. A foto foi batida no estúdio do Luiz Garrido. Fiz seminua. Nua, só por 50 milhões de dólares, ou melhor, euros. Me venderia, mas não roubaria. Provocada, já que haviam proibido a sua foto, Rogéria reagiu ironicamente e respondeu à classe política, declarando que ela nunca roubaria. Ao pedir 50 milhões de dólares, era como se dissesse que todos tinham o seu preço, e o dela era aquele. Na verdade, a quantia totalmente fora da realidade era uma forma de mostrar que não posaria nua (nem mostraria seu pênis), querendo preservar a sua imagem. Na ocasião, a coluna do Ancelmo Gois, no jornal O Globo, noticiou que o famoso travesti Rogéria ficara bravo ao ser convidado por um fotógrafo a tirar a roupa para ele e mostrar suas partes íntimas. Rogéria não teria gostado nada da proposta e, irritada, teria feito a contraproposta exorbitante (50 milhões de dólares). Rogéria já havia posado para revistas masculinas, sendo capa da Close, nos anos 1970, e tendo feito um ensaio para a Homem, em 1981, com direito a chamada de capa: “Exclusivo: Rogéria, o travesti, na pureza de sua angelical nudez.” Claro, sem o nu frontal. Essa mesma edição trazia um pôster central com a chacrete Fátima Boa Viagem. Junto às fotos de Marco Aurélio Rodrigues, o destaque para os dizeres: “Badalada, assumida e deslumbrante, Rogéria, um dos travestis mais cotados do momento: ‘Não sou uma bichinha ridícula!’” Em janeiro de 2010, Rogéria aceitou participar da 28a Encenação da Fundação da Vila de São Vicente, por ocasião dos festejos de 478 anos da cidade paulista. O gigantismo do evento ficava claro a partir do próprio subtítulo, “O maior espetáculo do mundo em areia de praia”. O cenário, os figurinos e adereços eram de época, a trilha sonora tinha sido especialmente composta para a festa, havia balés coreografados e efeitos especiais. Mais de mil atores da comunidade participavam do espetáculo, dividido em 15 cenas que retratavam o fim do conflito local entre os índios e os portugueses e a longa viagem de Martim Afonso até chegar a São Vicente, para dar início à fundação da vila. A personagem de Rogéria era Europa. Entre os outros atores convidados estavam Henri Castelli (Martim Afonso), Julio Rocha (João Ramalho), Juliana Knust (Ana Pimentel), Cissa Guimarães (América), Nuno Leal Maia (Cabral) e Marissol Dias (Bartira), bailarina do programa de Gugu Liberato que, dois anos depois, seria eleita Garota Fitness Brasil 2012. Ao todo, seriam dez apresentações, de pouco mais de uma hora de duração, numa arena especialmente montada na praia do Gonzaguinha. Juliana Knust e Cissa Guimarães vieram me perguntar com quem eu fazia as unhas. Eu expliquei que minhas unhas duravam dez dias, porque eu nunca lavava louça, não ia à piscina, nem pegava sol na praia. Esse era o segredo. A gente se divertiu muito. Não posso esquecer a homenagem que recebi durante os shows. O Julio Rocha chegou e me perguntou se eu podia cantar para uma aniversariante que ele conhecia. Eu falei, tudo bem. Surpresa! A aniversariante era eu mesma. Foi lindo. O Júlio me disse que não havia ninguém mais de bem com a vida do que eu nos camarins. Isso me fez entender alguns futuros problemas que eu ainda teria na carreira. Não vou citar nomes, mas compreendi que minha alegria e entusiasmo eram motivo de irritação para homens e mulheres. E eu que pensava que eram só os viados que eu incomodava. Após a encenação de São Vicente, Rogéria começou a trabalhar no roteiro de um pocket-show de 80 minutos, no qual pudesse cantar e contar suas histórias. Contratou os músicos e começou os ensaios de Rogéria e os Astolfos, que seria encenado no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro. O repertório incluía alguns clássicos, entre eles o sucesso de Piaf, “Non, je ne regrette rien”, de Michel Vaucaire e Charles Dumont, e “Se todos fossem iguais a você”, de Tom e Vinicius. Entre uma canção e outra, Rogéria convidava a plateia para ouvir as aventuras e desventuras de seus 48 anos de atribulada carreira, desde o começo como maquiador na TV Rio até o reconhecimento público como atriz. A MORTE DA MÃE “Tive a melhor mãe do mundo.” A fase não era das melhores. O show com os Astolfos não estava emplacando e, para culminar, Rogéria recebeu a triste notícia do falecimento de Dona Eloah. Minha mãe não quis vir para o Rio comigo, ficou com meu irmão Assis em Niterói. Ela vivia bem, tinha uma boa aposentadoria. Quando eu soube da terrível notícia, logo me lembrei de nossas conversas sobre a morte. Minha mãe sempre foi muito espiritualizada, ela me dizia: “Pela ordem natural das coisas eu tenho de ir antes.” Eu não queria saber de aceitar essa história, pois tinha uma verdadeira loucura por ela. Minha mãe nunca me decepcionou. Houve uma separação física, tenho de admitir, mas tudo isso foi obra de Deus, me afastando dela para que eu pudesse resistir ao sofrimento da perda. Na última vez, quando fui visitá-la, já podia notar que não viveria por muito tempo. Minha satisfação maior foi que ela nunca foi para um hospital, nunca foi entubada, a cabeça dela era melhor que a minha, sempre lúcida. Só fumava demais e acabou morrendo de enfisema pulmonar. Morreu em casa, sentada ao lado do meu irmão. Falou que estava se sentindo mal e, pá, fez a passagem dela. Ela ia completar 92 anos. Morreu em 29 de maio de 2011, o mesmo dia da minha estreia no showbiz em 1964. A vida tinha de seguir. Rogéria estrearia seu novo programa na televisão, Preliminares,no Canal Brasil, em junho de 2011. Sua personagem, Madame Rogerriah, dava dicas culturais e sexuais. Eliezer Motta, no papel de Nero Fera, era uma espécie de consultor amoroso, e Tuninho Menucci era o Tonhão Borracha, um borracheiro crítico de cinema, especializado em filmes de pornochanchada. Tonhão analisava os grandes clássicos do pornô nacional, como Oh, Rebuceteio!, Os violentadores de meninas virgens, Retrato falado de uma mulher sem pudor, Pensionato de mulheres, Caçadas eróticas, entre outras pérolas do gênero. A direção era de André Barcinski. Numa das gravações do programa, que acontecia em São Paulo, uma chuva de granizo interrompeu os trabalhos. O próprio diretor relatou em seu blog as aventuras de Rogéria na ocasião: “Estava ontem num estúdio em Pinheiros, gravando um programa de tevê apresentado pela mitológica Rogéria. Tudo ia bem até o meio da tarde, quando um estrondo parou a gravação. Parecia que o telhado estava desabando. Fui à rua ver o que estava acontecendo. Pedaços de gelo do tamanho de bolas de gude caíam, amassando carros e quicando na calçada. Em poucos minutos, a rua toda ficou coberta, e a água começou a invadir o estúdio. Enquanto o mundo caía lá fora e a equipe tentava impedir a inundação, Rogéria, completamente alheia ao caos, contava a uma assistente casos de sua primeira viagem ao Irã, nos anos 1970. Suspendemos a gravação. O carro que deveria buscar Rogéria ficou retido num engarrafamento e não conseguiu chegar a Pinheiros. Tentamos vários pontos de táxi na região, sem sucesso. A única solução para levá-la ao hotel, na Paulista, era o metrô. Rogéria, num bom humor tremendo, achou a ideia ótima: ‘Faz anos que não ando de metrô em São Paulo, vai ser uma aventura.’ E foi mesmo. Primeiro, andar pelo Largo da Batata com Rogéria, de salto, lenço na cabeça e óculos escuros Prada, sendo cumprimentada e chamada de ‘linda’ e ‘gostosa’ por várias pessoas. ‘Eu amo São Paulo, aqui eles sabem reconhecer os artistas’, ela dizia. Na estação do metrô Faria Lima, outro caos: a fila chegava quase à rua. Sugeri procurar um restaurante para esperar o pandemônio passar. O bairro todo estava sem luz, e os faróis de trânsito, apagados. Pinheiros era uma visão do inferno. Rogéria não se abalou: ‘Vamos andar a pé, assim eu conheço um pouco do bairro!’ Andamos uns oito quarteirões e paramos numa cantina. O lugar estava sem luz, mas o maître foi gentil e nos atendeu. Rogéria aprovou a comida: ‘Nem em Roma comi uma massa como a sua, dê os parabéns ao chef!’ Paramos na rua dos Pinheiros para tentar um táxi. Ninguém parou. Rogéria resolveu agir: ‘Meus amores, podem deixar que eu vou chamar um táxi. São Paulo não vai deixar Rogéria a pé!’ E ela ficou na esquina, com o braço esticado, dizendo ‘Uhuuuu! Pelo amor de Deeeus, um táxi! Ajuuudem!’ Em três minutos, um táxi parou. O carro subiu a Rebouças, que estava em obras. Levamos quase uma hora para chegar à Consolação. Rogéria parecia estar se divertindo. Sentada no banco da frente, contava ao motorista histórias de suas primeiras visitas a São Paulo, nos anos 1960: ‘A gente ia às boates ouvir bolero, coisa chique, não esses bate-estacas horríveis de hoje.’ Quando o táxi passou em frente à Nostromondo, famosa boate gay na Consolação, ela não se conteve: ‘Ah, a Nostro... Quantos shows não fiz lá? Quantos prêmios não ganhei? Que saudades!’ Levamos mais 40 minutos para andar três quarteirões na Paulista. E, aí, a paciência de Rogéria parecia estar chegando ao fim: ‘Gente, o que é isso? Nunca vi um engarrafamento desses, que horror.’ Até que outro táxi emparelhou com o nosso, e o motorista a reconheceu: ‘Rogéria, você está linda, cada dia mais jovem...’ E ela respondeu: ‘Ah, meu amor, que bondade a sua! Você é que está lindo, com esse bigode chiquérrimo! Deus te abençoe, querido!’ E virou-se para nós, no banco de trás: ‘Puta que pariu, eu amo essa cidade!’” HOMENAGEM À TROIS (E OUTRAS HOMENAGENS) “Foi gostoso ouvir que eu era uma artista acima de qualquer rótulo.” Uma ideia que deu certo foi a união de Rogéria com Luiz Carlos Miele e Chico Caruso, no espetáculo Homenagem à trois. No roteiro, música, piadas, brincadeiras e histórias. Sextas e sábados, no Bar do Tom. No repertório eclético, canções como a romântica “Molambo”, de Jayme Florence e Augusto Mesquita, a jovem guarda “Namoradinha de um amigo meu”, da dupla Roberto e Erasmo, a bossa nova “Tereza da praia”, de Billy Blanco e Jobim, e uma versão de “Rio antigo”, de Chico Anysio e Nonato Buzar. O trio era acompanhado ao piano por Alfredo Cardim. Nosso espetáculo no Bar do Tom foi um sucesso, se dançava, se cantava, se contava piada, havia esquete e era uma alegria. Me diverti horrores. O Miele era impossível. Ele se despediu de mim, pouco antes de morrer, num telefonema em que matava as saudades. Contou que estava comentando com sua mulher, Anita, o quanto se divertia comigo na época do Bar do Tom. Nunca esquecerei quando me disse que eu era uma artista acima de qualquer rótulo que quisessem me dar. Foi gostoso ouvir isso. Vou sentir sua falta. O Chico era um gentleman. Uma vez cheguei cansada, abatida, pálida, e me queixei com ele no camarim: – Ah, hoje estou sem pique, também com essa minha cara envelhecida... E ele, em cima, rebateu: – Rogéria, você tem um brilho no olho, nem precisa de maquiagem. Escutar isso do Chico nos ensaios me dava alma nova. O show foi muito bom para nós três. Para mim, então, veio na hora certa, pois a temporada no Teatro Clara Nunes, com os Astolfos, não tinha mesmo embalado. No programa de entrevistas de João Gordo, na rede MTV, Rogéria recebeu uma inesperada homenagem. Preparada para uma possível provocação ou hostilidade, se surpreendeu com a revelação do apresentador de que ela representava a mãe dele. Rogéria se emocionou com o sincero elogio, afinal era um reconhecido e assumido travesti. Partiu da terra natal de Rogéria, Cantagalo, a homenagem da dupla sertaneja local Maury & Mozart, que gravou uma música especialmente composta para ela (“Valente feito leoa / é dócil feito menina / reluz mais que lantejoulas / brilha mais que purpurina / Rogéria a noite é sua / Brilha mais, pode brilhar / seus amigos conterrâneos querem te homenagear”). Outra manifestação que mexeu com Rogéria veio do diretor Jorge Fernando, no programa da Rede Globo, Divertics, em 2013, quando, ao final do episódio para o qual ela fora convidada, todo o elenco, de peruca loura e vestido vermelho, igual a ela, lhe entregou flores. Ao longo da carreira, diversas homenagens foram feitas a Rogéria, como a do jornal Última Hora, de São Paulo, que promoveu uma festa para a entrega dos prêmios às dez personalidades mais marcantes da noite de 1980. Rogéria era uma delas, ao lado de Elis Regina, Paulo Autran, Marly Marley, o maestro Diogo Pacheco, Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes e Ary Toledo. Outro reconhecimento significativo ocorreu em 2015, no Museu de Arte do Rio (MAR), na exposição “Tarsila e mulheres modernas no Rio”, que reuniu mais de 200 peças para destacar o papel de figuras femininas na construção da sociedade brasileira do fim do século XIX até meados do século XX. Tendo como ponto de partida a arte de Tarsila do Amaral – que viveu no Rio e retratou a cidade –, a mostra abordou um amplo espectro de mulheres: da fazendeira Eufrásia Teixeira Leite, que aboliu a escravidão em suas propriedades e aplicava no mercado de capitais, à poeta Gilka Machado e sua filha, a bailarina Eros Volusia, passando por Carmen Miranda e vedetes do teatro de revista. A inclusão de Rogéria entre essas mulheres representa emblematicamente a figura feminina (adotada por um homem) no processo de rompimento de barreiras e preconceitos. Mas, intimamente, a maior homenagem que recebeu, e ainda hoje recebe, é as pessoas chamarem-na na rua de “Dona Rogéria” ou de “Senhora”, por respeito à sua carreira e opção artística. Ao completar 70 anos de vida e prestes a fazer 50 de carreira, Rogéria ganhou uma festa de aniversário na Boate Le Boy. No dia seguinte, foi assistir ao balé O lago doscisnes no Theatro Municipal. Ainda teria um bolo com champanhe para poucos e íntimos. E no dia 12 de junho de 2013, estreava à frente do talk-show Com frescura, no Canal Brasil. O título era uma analogia inversa e irreverente do programa de Paulo César Pereio, Sem frescura. O talk-show era semanal, todas as quartas-feiras à meia-noite, com direito a reprise nos sábados às três da madrugada. Eram apenas 15 minutinhos de entrevistas com gente interessante. Eu fazia a linha livre: fale o que quiser falar. Não pretendia arrancar confissões íntimas de ninguém, tudo muito à vontade. Já tinha tido um programa no Canal Brasil, agora eles repetiam a dose e cometiam a loucura de me dar um novo. A direção era outra vez de André Barcinski, com quem já trabalhara em Preliminares, e o cenário era um enorme sapato alto vermelho, que servia como sofá. A primeira temporada recebeu personalidades como o diretor e ator de filmes pornô Carlo Mossy, o rapper MV Bill, o eterno roqueiro Serguei, a marrom Alcione, o maldito Rogério Skylab, a cantora e compositora Angela Ro Ro, a astróloga Leiloca, as atrizes Lucinha Lins e Alcione Mazzeo, os cartunistas Chico Caruso e Allan Sieber, a escritora Thalita Rebouças, o compositor e produtor musical Michael Sullivan, o cineasta Neville d’Almeida, o Dzi Croquette Ciro Barcelos, o travesti Jane Di Castro e os comediantes Castrinho e Paulo Silvino. Algumas entrevistas tiveram certa repercussão, como a de Mossy, diretor do clássico As sete vampiras, de 1987. Na conversa, ele afirmou ter se envolvido sexualmente com quase todas as mulheres com quem havia contracenado. Alcione Mazzeo se emocionou, relembrando algumas passagens de sua vida. Angela Ro Ro trocou ideias sobre maquiagem e lhe revelou ter também um avô chamado Astolfo. Já Serguei contou, mais uma vez, a história de seu namoro com Janis Joplin em Saquarema. Alcione Mazzeo adorava o lado “família” de Rogéria, sempre falando sobre a mãe e perguntando por seu filho, quando se encontravam: “Rogéria conheceu meu filho Bruno bem pequeno e sempre pergunta por ele. Alto astral, esfuziante e afetuosa, conquista a todos com seu carisma. Um exemplo de autoestima, sempre cuidada, elegante, linda e... com um cabelo divino! Deveriam fazer uma estátua no Rio em sua homenagem.” Aos 71 anos, Rogéria ainda era uma das figuras mais divertidas do mundo artístico. E com essas credenciais virou personagem da campanha do site de classificados BomNegócio.com. O anúncio mostrava um homem entrando em casa sem camisa, após praticar exercícios, acompanhado de uma mulher. Nessa hora, tomavam um susto: em cima de uma cristaleira rosa, a cabeça de Rogéria aparecia provocando a mulher, chamando-a de lambisgoia e pedindo para liberar o seu namorado, um bofão: “Libera a moita, capivara!” A moça, claro, sumia com Rogéria e anunciava a cristaleira. O filme publicitário sucedia outros comercias da marca com personalidades como Diego Maradona, Tiririca, Narcisa Tamborindeguy, Paulo Gustavo, Sérgio Mallandro, Supla e Compadre Washington, conhecido pelo bordão “Sabe de nada, inocente”. Rogéria foi pioneira em campanhas comerciais, sendo o primeiro travesti a fazer propaganda, quando, em 1982, participou do comercial de acessórios e pronta-entrega da marca Cirilo. A foto, publicada em várias revistas, mostrava Rogéria saindo de um avião, com acessórios de moda feminina espalhados pela pista do aeroporto. Em janeiro de 1998, participou do lançamento nacional da Du Loren, na coleção Afrodite – sutiã com arco e calcinha em formato de coração. Na foto promocional, Rogéria estava só de paletó, camisa social e gravata, ao lado de duas modelos. No ano seguinte, contracenando com o ator Carlos Moreno, fez seu anúncio mais famoso, da marca de esponja de aço Bom Bril, com o slogan “Rogéria é quase mulher, Bom Bril é quase de graça”. SEXO DEPOIS DOS 70 “O sexo é importante e igual para todos os gêneros.” Um episódio faria Rogéria repensar sua vida e sua postura sexual. Estava em uma festa e um rapaz se aproximou. Começaram a conversar, mas Rogéria não sentia nada de extraordinário que a mobilizasse. Ele era ginasta de um clube carioca e dava aulas. Seguia a carreira desde bem novo e era até bonito, apesar de não muito alto. Mas era bajulação demais, muito “Rogéria, você é o máximo”, “Rogéria você é um ícone”, etc. Esse tipo de lisonja exagerada, além de deixar Rogéria constrangida, esfriava sua libido. Em determinado momento, no entanto, ele se declarou intensamente e de uma maneira inusitada, e Rogéria passou a lhe dar mais atenção. Era um ginasta, bem falante e desinibido. Já tinha participado de torneios aqui e no exterior. Depois de uns uisquinhos, veio todo animadinho me elogiando e isso me brochou. Só repetia frases do tipo “Você é a minha estrela, minha musa...” Um saco. De repente, me segredou que eu era seu fetiche total. Sua fantasia sexual era que eu colocasse meus bagos na boca dele! Menino, tive vontade de rir na hora, mas, depois, não sei por que, aquilo me excitou. Daí, topei um encontro e marcamos no dia seguinte na minha casa. Quando ele chegou, eu estava pronta. Sabia que não era mulher que ele queria, mas não ia ser ativa. Coloquei óculos escuros, prendi o cabelo e botei um négligé preto. Eu ia fazer o personagem da Rogéria para ele, era esse o seu desejo sexual. Ele quase enlouqueceu, teve até uma ejaculação precoce. Depois colocou meus bagos em sua boca e ficou me chupando todo o tempo. Eu deixei ele me usar, realizei a fantasia dele. Depois dessa noite, comecei a ver que me excitava só com a fantasia, o delírio, com o ator. A idade e a experiência trazem a necessidade de novidades, de surpresas. E a imaginação é a nossa grande aliada. A idade cobrava altos preços, e Rogéria não era mais a mesma. Seria necessária uma adequação em seu ritmo, o físico não combinava mais com abusos ou extravagâncias. Porém, sua necessidade de sexo permanecia como antes. Numa entrevista a um site de notícias, Rogéria narrou uma experiência em que confessava ter transado com um rapaz negro maravilhoso, de uns 18 anos, e terminado quase desconjuntada. Eram os limites do corpo. Não consigo me aquietar. Dizem que os homossexuais têm mais desejo sexual. Acho uma mentira, o sexo é importante e igual para todos os gêneros. Com o tempo, Rogéria revira a sua opinião, pois no início da década de 1980, numa entrevista a Aguinaldo Silva e Alceste Pinheiro, para o jornal Lampião, ela tinha afirmado que o homossexual tinha uma dose acentuada de sexualidade. De qualquer forma, seu apetite sexual sempre foi grande. E não diminuíra, ao contrário, parecia ainda maior. O que mudara fora o foco. Estava acostumada a ter sexo diariamente, agora eu vejo que é inviável. Digo para mim mesma: “Dá um tempo, menina! Você não para de sentir tesão? A vida não é só sexo, baixa um pouquinho essa bola.” Achei melhor passar a ter sexo só uma vez por semana. Assim já estava bom. Às vezes penso em relaxar mais e esquecer o sexo, mas a vida não colabora. Outro dia, estava numa sauna e saí com um rapaz novinho, que era igual ao Lee Van Cleef, aquele vilão dos filmes de faroeste spaguetti do Sergio Leone. Tinha a mesma cara de ave de rapina. E o melhor, não sabia quem eu era, uma maravilha. Quando ele deu a primeira, eu falei: “Repete que você tem 23 anos, repete!” Ou seja, eu posso ter mais de 70, mas se meu parceiro tiver 20... O tempo modifica tudo, mas nossa imaginação pode agir. O meu tesão pelo Brad Pitt é pelo personagem do filme Thelma & Louise, não pelo de agora. Meu James Bond sempre será o Sean Connery de 007 Contra o satânico Dr. No. O meu tesão tem a ver com o simbolismo, ou seja, a imaginação, e os personagens me falam mais sexualmente. Se antes bastava o lado físico, a beleza, o pau grande e coisa e tal, meu sex appeal agora é mais na cabeça. Acabou o trepar por trepar na minha vida. Meu momento sexual atual preza bem mais as fantasias. Quanto à teoria de que o sexo seria um mero mecanismo para amenizar a solidão, Rogéria nega isso de forma categórica e falaque não se arrepende de nunca ter construído uma relação mais sólida ou permanente. Não se deve confundir ânsia por sexo com necessidade de companhia. Não quero isso. Após o orgasmo, minha primeira vontade é que a pessoa que está comigo suma. Isso é uma coisa bem masculina minha. Não quero carinho, não preciso de abraço. Se possível, meu sonho atual de sexo é um homem que me despreze, entre calado, com a cara feia e o pau duro, para, depois do sexo bem-feito, ir embora. Não uso o sexo para não ficar só. Eu adoro a solidão, ficar na minha. Na solidão é quando menos me sinto só. Não me arrependo de nunca ter me casado ou me juntado com ninguém. Amo o meu estado civil, de solteiro. O geminiano precisa ficar solitário de vez em quando, caso contrário, vai entrar em ebulição. Passei a maior parte da minha vida cheia de gente à minha volta. MUDANÇA DE SEXO “O travesti que recorre à cirurgia para mudar de sexo jamais será mulher.” A cantora Shirley Bassey esteve no Rio de Janeiro em férias no começo de 2014, acompanhada dos amigos Manel Dalgó e Thomas Schmieder, e aproveitou para comemorar seu aniversário de 77 anos no Hotel Copacabana Palace, recebendo um número restrito de amigos e conhecidos, entre eles os travestis Rogéria, Yeda Brown, Claudia Celeste e Suzy Parker. Considerada uma das musas do mundo gay, ao lado de Liza Minnelli, Cher, Barbra Streisand e Madonna, a cantora, famosa por seus sucessos com as trilhas sonoras dos filmes da série de James Bond, já havia estado na cidade em 1968, durante o Festival Internacional da Canção. Desde bem novinha eu já era fã de Shirley Bassey, com aquela sua voz aguda e potente. Dizem que estudou canto operístico. Antes de eu sair para o exterior, assisti a ela no Festival Internacional, no Maracanãzinho. Em 2013, na festa do Oscar, ela arrasou, cantando Goldfinger. Todo gay que eu conheço gosta dela. Quando ela esteve aqui, em 2014, Manel Dalgó, que é meu amigo, falou de mim pra ela e da minha admiração por seu trabalho. Marcamos então um encontro no Copacabana Palace, mas, alegando uma forte dor de garganta, ela adiou, mandando desculpas. Fiquei triste. Tinha me arrumado toda. No dia seguinte, deitada na minha cama, recebo o telefonema de um amigo dizendo que Dame Bassey comemorava seu aniversário e fazia questão da minha presença. Foi uma correria: cabeleireiro, manicure, me preparei toda de novo para conhecê-la. Quando cheguei ao hotel e ela me viu, me deu logo uma piscada de olho. Fomos apresentadas, ela não falava nem francês, nem espanhol, nem português. Só inglês. Ela adorou meu cabelo e comentou que era uma seda: “It’s a silk.” Perguntou se poderia tocá- lo. Ela é louca por viado, só anda com eles. Conversamos e eu senti, quando nossos olhos se cruzaram, uma espécie de conexão com ela. Como se tivéssemos nos conhecido há muito mais tempo. No final do ano, Rogéria ainda faria com Divina Valéria um espetáculo no Cineteatro SESC Casa do Comércio. No encontro das duas divas transformistas, irreverência e música num passeio por boleros, releituras de sucessos da MPB e clássicos da música internacional, em especial a francesa. Entre uma canção e outra, muitas histórias e curiosidades reveladas sobre a carreira de ambas. Um detalhe que sempre chamou a atenção na trajetória de Rogéria foi total disposição, ânimo e às vezes abnegação para aceitar desafios em nome da ribalta. Não havia contratempo ou senões, fosse qual fosse o formato das apresentações. Tudo pela arte e a vontade de se apresentar. No início, muitas atuações em churrascarias (cantou em diversas no Santíssimo e na Ilha do Governador, no Rio); festas de aniversário e festas-surpresa; almoços, jantares e bufês dançantes; bailes em vários clubes; bingos; shows em saunas e termas (os da termas Fermata eram concorridos); e em concursos gays de miss, rainhas, etc. Quando ainda nem era muito conhecida, apresentou-se nas boates do cais do Porto de Santos. O cachê era pago na hora, e havia a real oportunidade de ser vista e fazer amizades. Assim, esteve presente em inferninhos de todos os tipos. Alguns mais glamourosos, fazendo parte até de um modismo, como no Beco das Garrafas carioca (Little Club, Bottle’s), ou na Boca do Luxo paulistana (La Licorne, Kilt, Club de Paris, La Vie em Rose), e até mesmo em bordéis finos, como o da Casa da Marion, em Porto Alegre. Rogéria viveu muitas histórias curiosas nessas apresentações. Certa vez, uma empresária a convidou para um show num ginásio de um colégio, num subúrbio carioca. Quando chegou lá, a plateia era formada por pré- adolescentes, quase crianças. Um show completamente sem nexo. Mas Rogéria não se apertou e ainda assim se apresentou. Claro que com bastante parcimônia e forjado recato. Outra vez, acertou um show (sem receber cachê) para o chá anual beneficente da Sociedade Pestalozzi, em Petrópolis. Estaria presente a nata da sociedade local, formada em sua maioria por senhoras conservadoras. No final, o show acabou agradando e, na verdade, era o que menos importava, já que o principal objetivo foi alcançado: ajudar os alunos da Pestalozzi. O mais exótico show de Rogéria, no entanto, aconteceria nos anos 1970, na Central do Brasil. Fizeram uma pesquisa com os trabalhadores da Central sobre qual artista eles queriam ver no Natal. Eu fui a escolhida. Não poderia recusar. O show era ao meio-dia. Saí da boate onde me apresentava, de madrugada, e fui direto. Nem dormi para não perder a hora. Foi um dos shows de que me lembro com maior carinho. Quando entro para fazer um espetáculo, não fico pensando que estou no Golden Room do Copacabana Palace, só preciso de um microfone bom e um retorno com mínima qualidade, nem preciso de luz. Isso, modéstia à parte, eu trago comigo. Também foram inúmeros shows beneficentes, ao menos um ou dois por ano. Rogéria faz questão. Como o espetáculo em que se apresentou, cantando em francês, na Boate A-10, em Niterói, com renda revertida para a ONG Grupo pela VIDDA, de atendimento jurídico e psicológico de pacientes com aids. Ou, em São Paulo, para as crianças da Casa Jacira, de auxílio à infância. Ou ainda no show Brilho das estrelas, em prol do Retiro dos Artistas, homenageando as atrizes Lady Francisco e Ruth de Souza. No final de 2014, aos 71 anos, Rogéria recebeu o convite para trabalhar na nova novela da Globo, Babilônia, escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga. Fiquei muito feliz com mais essa oportunidade e honrada com a possibilidade de retornar à televisão e atuar ao lado de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, atrizes que maquiei no início da minha carreira. Para um país em que a homofobia volta e meia deixa suas marcas, ainda que hoje em dia com menos ênfase, causava ainda certo impacto um homossexual, ícone do transformismo, atuar num folhetim no horário nobre. O fato é que Rogéria, quanto mais o tempo passa, mais identificada fica com o público. Aonde quer que ela vá, recebe carinho e reconhecimento das pessoas. Na trama da novela, ela era Úrsula Andressa, uma estrela veterana do showbiz que adotou esse nome por se achar parecida com a atriz suíça Ursula Andress, famosa como uma das primeiras bond girls do cinema, nos anos 1960. Originalmente, Rogéria entraria a partir do capítulo 40. No entanto, a novela sofreu algumas modificações em busca de melhores níveis de audiência, e sua entrada só aconteceu no capítulo 98, com uma cena bem chamativa: toda produzida, com sandália plataforma e um esplendor gigante na cabeça, presa e agachada num elevador. O ator carioca Marcos Veras, que fazia na novela o chef Norberto, explica um pouco do temperamento animado da colega, que já conhecia do tempo em que morara no Leme: “Rogéria é uma figura extraordinária, um estouro de carisma. Onde ela chega causa um alvoroço. Em tempos de intolerância, preconceito, a Rogéria passa batida por tudo isso porque ela está acima. Ela agrada a homens, mulheres, gays e crianças. Tive a sorte de contracenar com ela em Babilônia, quando chegou arrasando com seus números musicais no prédioonde aconteciam os maiores absurdos. Nos bastidores nos contou histórias de Paris, de perfume, de amores. Sempre se declarava minha fã e conhecia com detalhes o meu trabalho. Uma vez, sabendo que eu era do signo de Touro, me disse algo engraçado e que nunca vou esquecer: ‘Nunca ficarás pobre.’ Tomara Rogéria, tomara.” Rogéria acredita nos astros e tem o maior orgulho de ser do signo de Gêmeos. Outra amiga, a atriz, cantora e astróloga Leiloca, fez seu mapa astral e garante que Astolfo só podia ser geminiano: “Gêmeos com ascendente em Leão, uma combinação fadada ao sucesso. A Lua em Aquário está bem representada na ousadia e originalidade. Com quatro planetas na Casa 10, a casa da fama, Rogéria jamais seria anônima. Desde criança deve ter sido superconhecida, seja na escola, na vizinhança, etc. É divertido sair com a amiga Rogéria, é um luxo ver como trata bem os fãs: conversa, faz fotos, horas a fio. Coisa de geminiana. Se alguém a encarar, ela pode até incorporar o Astolfo. Mas para nós sempre será essa Mulher, com M maiúsculo. M de mulher, de misteriosa, moderna e maravilhosa.” Na teoria, todos os seres humanos são iguais, independentemente de sua orientação sexual e da sua identidade de gênero. A Lei Municipal número 2475, de 1996, proíbe expressamente tal discriminação. Desde que João Francisco dos Santos, o Madame Satã, em 1928, conseguiu seu primeiro emprego como travesti sambista no Teatro Casa do Sapê, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, muita coisa mudou. Para melhor. Ainda impressiona, no entanto, o número de travestis e transexuais se prostituindo no Brasil. Mesmo que almejem um emprego com rotina, horário de trabalho e carteira assinada, o preconceito torna-se evidente quando se candidatam a uma vaga. A transfobia e a dificuldade de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho são evidências. O problema começa com a perda do vínculo familiar e consequente evasão escolar. Daí para a prostituição é um pulo. Rogéria teve apoio familiar e destacou-se inicialmente como maquiadora, depois como artista. Ainda assim viu-se forçada a romper tabus e lidar com inúmeros obstáculos. Sua arma mais efetiva foi a fantasia, uma forma de encarar a vida com arrojo e certa dose de otimismo, mantendo a consciência dos desafios que representavam sua escolha. Não à toa, sempre repetia que era preciso ser muito macho para se vestir de mulher e subir no palco. A linha tênue que separava o belo e curioso do ridículo e decrépito não deixava margem para vaciladas. E isso ela sabia bem, desde Niterói e Cinelândia. Sua lição era criar um viver fantástico, e sua melhor invenção, como Astolfo, sempre foi Rogéria. Harry Benjamin, pesquisador e médico alemão, definia os travestis como os que não desejavam a cirurgia de redesignação sexual por sentir prazer com o pênis. Já os transexuais sentiam desconforto e profunda infelicidade em relação ao pênis, afirmando que sempre se identificaram com mulheres. E, como tal, precisavam dessas cirurgias. Muitos homossexuais, num momento ou outro da vida, já sentiram a tentação ou se perguntaram se gostariam de se travestir. Mas se transformar em uma mulher em termos físicos por meio da vaginoplastia, mais conhecida como operação de mudança de sexo, é uma questão muito mais séria. O travesti peruano Ly Ribachea, que trabalhou no cabaré Casanova, na Lapa, e morreu em meados dos anos 1970, fazia a apologia da mudança de sexo: “Agora eu sou divina, tenho cu e vagina.” O mais curioso foi que, no fim da vida, descobriram que ela não era operada. Tudo não passara de uma tentativa de autopropaganda. Por outro lado, há quem diga que os homens assediam os travestis justamente pela existência do pênis. Se quisessem uma mulher total não procurariam homossexuais, e sim mulheres de verdade. O desejo de se tornar fêmea e obter prazer com uma vagina também pesavam, embora tal efeito não fosse garantido. Essa discussão povoava a cabeça tanto dos homossexuais quanto de seus parceiros. A mudança de sexo era um procedimento complexo e que exigia cautela, sendo necessária uma preparação que envolvia tratamento psicológico e hormonal, além de se tratar de decisão para a vida inteira. Rogéria, desde bem nova, tinha uma certeza: não se mutilaria de jeito nenhum. Havia o medo (nunca um ditado chulo, “quem tem cu tem medo”, fora tão literal e apropriado) das consequências da cirurgia, que não eram somente físicas, mas também psicológicas. Algumas histórias a haviam impressionado negativamente. Minha amiga Wanda tinha um corpo lindo, o mais bonito de todas nós, e resolveu se operar. Acho que as coisas não ficaram bem, principalmente com a cuca, mas não posso afirmar. Ela sempre teve a mania de tentar suicídio, talvez até para chamar a atenção. Já era conhecida por isso. Recebi a notícia de sua morte, ocorrida na Alemanha, e a causa alegada foi suicídio, embora ninguém pudesse garantir a verdadeira intenção dela. Nunca saberemos... Em entrevista ao jornal Lampião, em janeiro de 1981, Rogéria já deixava bem clara sua opinião. Operar realmente nunca fez a minha cabeça, de repente eu viraria eunuco! Sabe por que eu não faço esse tipo de operação? Porque ninguém vira mulher mesmo, a cabeça é sempre homossexual... Eu sei que tenho o sexo masculino, mas em certas horas sou uma mulher fantástica. Tudo depende da vontade do freguês. Ah, quer um homem? Então é de frente. Agora, de costas sou uma mulher perfeita, uma mulher surrealista... Também havia as transexuais bem-resolvidas. Roberta Close, diferentemente de Rogéria, optou pela cirurgia de redesignação sexual, realizada na Inglaterra, em 1989, mudando também o nome (Roberta Gambini Moreira) e o gênero, tudo legalmente. Nos anos 1980, fez sucesso, posando de mulher para a revista Playboy, com direito à capa e matéria central. A mídia escandalosa publicava: “A mulher mais bonita do Brasil é homem!” Isso antes da operação, obviamente. Hoje, casada, avessa a badalações, mora na Suíça. Sua cirurgia é cercada de mistérios, uma vez que há rumores de ela ser hermafrodita. Já a filha do jogador de futebol Toninho Cerezo, a modelo transexual brasileira Lea T, operou-se na Tailândia, em 2012. Não aconselha a cirurgia para todo mundo (sofreu bastante no pós-operatório), mas garante estar feliz. Não se considera cem por cento mulher e não sente a menor falta do pênis. Quanto ao prazer – a grande dúvida dos candidatos à redesignação –, diz que tudo melhorou. Só os velhos preconceitos permaneceram: “Na hora do sexo, os homens veem você como uma mulher, mas em relação a ter uma história com você, aí você é uma transexual. Será sempre um homem.” Com os avanços da medicina, em Paris ou na Tailândia, não é difícil fazer a operação de mudança de sexo. O custo gira em torno de 15 mil euros. Primeiramente é realizado um corte longitudinal esvaziando o pênis e o saco escrotal, cujas peles que sobram serão moldadas para dar origem à vagina. A cantora transexual portuguesa Patrícia Ribeiro (nascida Nuno Miguel Nogueira Ribeiro, no distrito de Cova da Piedade, Almada) fez a cirurgia e teve de passar por uma série de humilhações em seu país a fim de conseguir mudar o nome perante a lei, sendo obrigada a despir-se, mostrar a vagina operada e ter seus lábios vaginais e clitóris medidos. Vitoriosa depois de tudo, Patrícia, que na juventude foi forçada à prostituição para sobreviver, hoje está realizada como mulher, física e legalmente, e considera fundamental o acompanhamento psicológico, já que diversos casos não são de transexualidade, mas de vaidade ou busca por novidade, quando os pacientes muitas vezes não se sentem mulheres. Com o passar dos anos, Rogéria começaria a pensar um pouco diferente sobre aqueles que optavam pela intervenção cirúrgica para mudar de sexo. Hoje vejo com outros olhos a cirurgia de mudança de sexo. Acho que pode fazer bem a muita gente. Veja que a minha amiga Marcella Melão (José Luiz Junqueira Franco) agora é outra pessoa. Transexuais que se operam podem e devem ser felizes também. Poxa, sofrem tanto com a operação, passam portudo aquilo, deixa eles realizarem o sonho de ser mulher, essa é a felicidade deles. Nada de polêmicas, cada um deve viver como quer. O importante é que, com ou sem pinto, devemos desenvolver o lado intelectual. Não vou afirmar que sou um poço de conhecimentos, uma pessoa cultíssima, mas aprendi com a própria vida, com os homens, com os livros. Medíocre, tenho certeza de que não sou. Quanto mais cultura, mais força você ganha para enfrentar gente ignorante. Acho engraçado que hoje em dia tem umas bichinhas todas bombadas, mas que não enfrentam nada. Sempre enfrentei tudo na minha época, não deixava ninguém tirar onda com a minha cara. Já ajudei até a socorrer mulheres que estavam em perigo na rua. Sou assim e adoro ser o homem que sou. Em 2008, num shopping de Florianópolis, a transexual Ama Santos Fialho foi retirada à força pelos seguranças, quando entrava no banheiro feminino. Ama entrou na Justiça para ser indenizada, alegando constrangimento, e venceu. A defesa do shopping recorreu e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou como “mero dissabor”, derrubando a necessidade de indenização. Ama entrou com recurso no Supremo, e essa decisão direcionará o julgamento de causas semelhantes, cujos processos ainda aguardam pronunciamento. O mérito a ser julgado definirá qual banheiro eles deverão usar. Rogéria, há bastante tempo, optara pelo feminino, a fim de que não pensassem estar usando o masculino com segundas intenções. Nunca sofreu qualquer impedimento ou viu-se constrangida com o fato. Se a tampa da privada estiver abaixada, sento para fazer pipi. Se não, faço em pé com a maior naturalidade. O único incômodo é a fila, sempre maior nos banheiros públicos femininos. ATRIZES NÃO TÊM IDADE “Não é só bicha que envelhece, mulher também. E o homossexual tem sempre uma maneira de driblar as más circunstâncias.” Perto de completar 40 anos, Rogéria, de forma quase premonitória, na reportagem “Rogéria: mais charme que muita mulher”, da revista Close, respondia à pergunta sobre o que faria quando ficasse velha. Katherine Hepburn ganhou um Oscar com 80 anos. Artisticamente eu sempre estarei amparada, porque nunca fui um blefe. Quando eu envelhecer, farei o papel de velhas maravilhosas e terei tanta coisa para contar que minha vida jamais será vazia. E não é só bicha que envelhece, mulher também. E o homossexual tem sempre uma maneira de driblar as más circunstâncias. Tudo o que quero é ter um patrimônio legal e um dinheiro razoável. Com dinheiro, você não envelhece. Interessante Rogéria ressaltar o envelhecimento da mulher (em geral) e o fato de os homossexuais (iguais a ela) saberem driblar as más circunstâncias. Com o avançar da idade, Rogéria ficava cada vez mais parecida com uma senhora. E agora, septuagenária, sem plásticas ou cirurgias de rejuvenescimento, encontra-se, comparativamente, mais bem conservada que muitas mulheres nessa mesma faixa etária. Com a passagem dos anos, as pessoas costumam trocar o risco pelo conforto, e aí começam a envelhecer. Eu tentarei ser uma eterna inconformada, mesmo que quebre a cara. Já tive experiência com isso, de quebrar a cara, no desastre de carro. Quase morri nesse acidente. É incrível! Às vezes me pergunto como é que eu ainda estou viva. Já trabalhei como artista na ditadura, encarei os problemas longe do meu país... Já passei por tanta coisa... Olho no espelho e me pergunto: e as cicatrizes? Tirei da alma! Posso não ser uma mulher, mas tenho uma, aqui dentro de mim, ainda com muita juventude e vontade de viver. Logo, vou continuar a me arriscar. Para bem ou para o mal. Rogéria nunca escondeu sua idade. Festejava seus aniversários com os amigos e fazia questão de celebrar os anos bem vividos. Questionada sobre isso, costumava responder citando a personagem da atriz Gloria Swanson no filme Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder, de 1950. Sou do tempo em que havia glamour, Ava Gardner, Marilyn, Lana Turner, Liz Taylor. Hoje isso não existe mais, Hollywood já era. Nunca esquecerei Gloria Swanson na pele de Norma Desmond, decadente atriz de Hollywood, no filme Crepúsculo dos deuses. Ela era uma estrela fracassada, tremenda megalomaníaca, que enlouquecia com a possibilidade de não voltar aos dias de fama e prestígio. No fim do filme, tem um surto psicótico e acredita que as câmeras dos jornalistas são do célebre Cecil B. DeMille: “All right, Mr. DeMille, I’m ready for my close-up” (Certo, Sr. DeMille, estou pronta para o meu close). Um arraso. Norma é apaixonante e melancólica. Sempre lembro da sua famosa frase: “Stars are ageless, aren’t they?” (Estrelas não têm idade.) Eu creio nisso, as atrizes não devem mesmo ter idade. Outra pergunta frequente feita a Rogéria, nessa sua fase de vida, é sobre o uso de estimulantes sexuais. Foi uma decepção. Me deu um sono, caí desmaiada. Foi ridículo. Cada vez tenho mais certeza de que, no sexo, você tem de desejar. O tesão não é lá no babado, é na cabeça. Só se você tiver um problema físico real, impotência grave. No meu caso, ou eu não estava desejando o bofe ou os comprimidos eram falsos. Não penso em tomar outra vez. “Mesmo que seja um velório, para mim, tudo é cenário.” Quando Rogéria tinha uns 10 anos, ainda Tofinho, uma amiguinha sua, Gilda, morreu. No velório, Tofinho viu a amiga no caixão. Ela parecia mais inchada, e ele sentia um cheiro horrível misturado ao odor forte das flores e a um perfume que a mãe dela borrifava sobre o corpo da menina. Uma cena que ele nunca esqueceria. Quero que meu caixão seja bem lacrado, para na hora em que eu começar a apodrecer não incomode ninguém com o cheiro. Nada mais importa, o espírito já saiu. Ali é só carne. Rogéria imagina o seu velório com um mínimo de lamúrias. Prefere um astral mais para cima e um enterro charmoso. Adepta da fantasia, convive muito bem com suas quimeras. Nunca penso de maneira negativa. Ajo um pouco como a personagem Clara, da peça de teatro A visita da velha senhora: “O mundo fez de mim uma puta, então faço do mundo o meu bordel. ”Nada de muita realidade. A morte já é a realidade total. Se eu pudesse, gostaria que a morte me avisasse umas três horas antes. E que não viesse na forma de caveira, com foice, mas como o fantasminha Pluft. Eu me arrumaria toda. Com um capuz vermelho, toda maquiada, num caixão lindo, de vidro, como Kirsten Dunst, aquela vampirinha linda, presa para sempre num corpo infantil, no filme Entrevista com o vampiro. Só dispensaria aquelas presas, claro. Antes que a pele do rosto endurecesse, as bichas me esticariam, num lifting urgente. Meu irmão Flávio Barrozo escolheria a maquiagem. Na lápide, por favor, a inscrição: “Aqui jaz a maior estrela do transformismo nacional.” Outra hipótese seria morrer, não contar a ninguém e fazer somente uma missa de sétimo dia. Chiquérrimo. A HISTÓRIA SEM FIM “Homens são sacanas forever.” Não importa que seja tão difícil ser ela mesma (Rogéria afirma que só é ela mesma quando ninguém está olhando). Nada é fácil quando há valor intrínseco. E a verdade que Rogéria vive é a fantasia de Astolfo, e sua vida- ficção rende uma biografia de puro encantamento dúbio e porrada comendo solta. Não há meio-termo, ainda que Astolfo e Rogéria insistam em manterem-se protegidos sobre muros imaginários, na cômoda falácia de não chacoalharem tanto e virem a ser abençoados pelas famílias brasileiras. Como se pudesse ser inventado um travesti bendito, um fora da lei comportado e exemplar. Nada é de graça, tudo é conquistado, suor, sangue e paetês derramados. E sabemos a que preço. A verdadeira Rogéria não frequenta lares no horário das novelas ou senta à mesa de jantar nem passeia com seu lindo cãozinho em lindas manhãs de domingo. A Rogéria de verdade é voraz, escandalosa, ela incomoda, tem desejos inconfessáveis, padece de angústias noturnas, sofre horrores e é vulnerável demais. Mas desfrutou a vida, soube entregar-se ao prazer, criou seus altares e se protegeu do que viu e não viu. Não seria respeitada por ninguém se ela não fosse uma grande realidade. Nisso, reside seu maiormérito: o incrível e doce paradoxo de uma verdade edificada sobre os pilotis de uma notória mentira. Uma mentira que jamais se constituiu em farsa, tornando possível e autêntico um sonho que conseguiu dobrar a realidade. Como o capitão Vasco Moscoso de Aragão, personagem de Jorge Amado em Os velhos marinheiros, Astolfo conseguiu construir um sonho com mais veracidade do que muita história de vida verdadeira. Enquanto quebro a cabeça para encontrar um jeito bacana para terminar esta biografia, ligo para Rogéria a fim de tirar algumas dúvidas. Ela me diz que acabou de assistir ao último filme da série do agente James Bond, 007 Contra Spectre. Não achou nada demais. Daniel Craig é bom, mas não se pode comparar a Sean Connery, claro. Já não se fazem satânicos “Doutores No” como antigamente, me garante. Quer que eu dê uma passada rápida em sua casa, para mostrar uma foto que conseguiu achar no meio de seus guardados: anos 1960, nos camarins da Boate Stop, arrumando-se para entrar em cena. Deixa-se ficar um tanto nostálgica, mas por pouco tempo. Está se preparando para ir a São Paulo gravar um programa matutino na Rede TV! e depois um especial com a Luciana Gimenez. Na volta, começará a ensaiar sua participação no programa Amor & Sexo, com Fernanda Lima. Sua vida segue agitada. Pergunta se eu já chequei a entrevista de Fernanda Montenegro ao Pasquim, da época em que ela, Rogéria, retornava ao Brasil. Também relembra o beijo cinematográfico (e outras pegações) que ela e um grande compositor e astro do samba trocaram dentro de um táxi e reitera que não posso colocar o nome dele no livro. Tudo bem, é nosso trato. Somos interrompidos por uma ligação telefônica. É do seu último affair. Depois de seguidas negativas e respostas breves em falas monossilábicas, Rogéria vai perdendo a paciência. A seguir, desliga, irritada. Esse rapaz insiste em me ligar. Já disse que não quero mais nada, e ele continua teimando. Sou assim, não vou mentir, não consigo me fixar em ninguém. Nessas horas sou bem sacana mesmo, tenho alma de homem. AGRADECIMENTOS Ronald Monteiro (in memoriam), pelo apoio incansável e acesso aos filmes, vídeos e acervo. Alcione Mazzeo, Ana Brandão, André Barcinski, Betch Cleinman, Bibi Ferreira, Brigitte de Búzios, Caio Rocha, Camille K, Caulos, Cyr Assis Barroso, Cláudia Celeste, Flávio Barrozo, Fujika de Halliday, Haroldo Costa, Jaguar, Jane Di Castro, Leiloca, Marcio Trigo, Marcos Pereira, Marcos Veras, Maria Pompeu, Miúcha, Pascoal Soto, Patrícia Mellodi, Rita Cadillac, Simon Khoury, Suzy Parker, Thereza Eugênia, Virginie Leite e Yeda Brown, pela atenção e depoimentos. Penha, pelo amor e parceria; Luciana Villas-Boas, pelo incentivo e cuidado; Cezar Sepúlveda, pela preciosa assessoria técnica, fotos e pesquisa; e Astolfo Barroso Pinto, pela coragem e confiança. BIBLIOGRAFIA LIVROS Beauvoir, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. Bento, Berenice. A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. Jaguar; Augusto, Sérgio. O Pasquim – Antologia – Volume III. Rio de Janeiro: Desiderata, 2009. Kulick, Don. 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Caderno B – “Em cena o profissionalismo”, Deborah Dumar, Rio de Janeiro, fevereiro de 1981; Teatro – “Gay Fantasy – uma tendência mercadológica”, Macksen Luiz, Rio de Janeiro, fevereiro de 1981; Caderno B – “Estreias selvagens”, Yan Michalski, Rio de Janeiro, fevereiro de 1981; coluna do Zózimo Barrozo do Amaral, Rio de Janeiro, janeiro de 1981; Crítica – “Umas e Outras”, Maria Helena Dutra, Rio de Janeiro, janeiro de 1983; Cidade – “Quem não tem Xuxa sai de Roxéria”, Soraya Dutra, Rio de Janeiro, janeiro de 1988; Causa Secreta, crítica – “Uma morbidez coletiva que assola o Brasil”, Carlos Alberto Mattos, Rio de Janeiro, abril de 1994; Caderno B – “O mistério de Rogéria que não quis ser mulher”, Eduardo Graça, Rio de Janeiro, maio de 1998. Jornal Innovação.“Rogéria sem censura”, Brasília, fevereiro de 1987. Jornal Vale dos Sinos. “Bate-papo especial com Rogéria”, São Leopoldo, junho de 1983. 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Coluna do Ibrahim – Ibrahim Sued, Rio de Janeiro, novembro de 1973; Segundo Caderno – “Os cavaleiros do inusitado”, Artur da Távola, Rio de Janeiro, janeiro de 1979; Coluna do Ibrahim – “Gay Dólar”, Ibrahim Sued, Rio de Janeiro, janeiro de 1981; “Rio Gay – musical brasileiro com travestis”, Flávio Marinho, Rio de Janeiro, fevereiro de 1983; O Globo Copacabana – “Galeria Alaska, um espetáculo”, Rio de Janeiro, abril de 1983; O Globo Copacabana – “Galeria Alaska”, Vera Sastre, Rio de Janeiro, abril de 1983; Revista da TV – “100 apresentações de Rio Gay – Rogéria no apogeu”, Hildegard Angel, Rio de Janeiro, maio de 1983; Teatro – Flávio Marinho, Rio de Janeiro, agosto de 1983; Crítica “Umas e Outras: No outro lado do espelho”, Ana Maria Bahiana, Rio de Janeiro, fevereiro de 1989; Televisão – “Rogéria vai sacudir Tieta”, Macedo Rodrigues, Rio de Janeiro, dezembro de 1989; “Guilherme de Pádua – Polêmica sobre participação em show” – Caso Daniella Perez, Luiz Carlos Lourenço, Rio de Janeiro, janeiro de 1993; Controle Remoto – Patrícia Kogut, Rio de Janeiro, outubro de 1999; Segundo Caderno – “7 – o musical”, Barbara Heliodora, Rio de Janeiro, setembro de 2007; Teatro – “7 – o musical”, Macksen Luiz, Rio de Janeiro, setembro de 2007; Ancelmo Gois, Rio de Janeiro, dezembro de 2007. 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É escritor, redator e autor com maisde dez livros publicados. Trabalhou para a Fundação Getúlio Vargas no Cederj (Centro de Ensino Universitário a Distância) e foi colaborador do Jornal do Brasil nas áreas de música e literatura. Publicou os romances Sofá branco – menção honrosa Graciliano Ramos- UBE e pré-seleção do Prêmio Nestlé de Literatura –, Odara e Os atalhos de Samanta, além dos ensaios de humor Cada louco com sua mania, com ilustrações de Jaguar, e o Horóscopo sexual para praticantes (todos pela Record). Escreveu também A morte tem final feliz (InVerso), o livro de crônicas A maconha está bêbada (Mirabolante) e o infantil O livro maluco e a caneta sem tinta, em parceria com Tereza Malcher (Zit). É autor da biografia sobre o compositor maranhense João do Vale (Lumiar). Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o Brasil. Queremos revisitar e revisar a história, discutir ideias, revelar as nossas belezas e denunciar as nossas misérias. Os livros da Estação Brasil misturam-se com o corpo e a alma de nosso país, e apontam para o futuro. E o nosso futuro será tanto melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso passado e a nós mesmos. Sumário Créditos Astolfo, homem-mulher A estreia As reinações de Tofinho Adolescência O padrasto TV Rio O grande amor Enfim, Rogéria Primeira paixão Vedete do Carlos Machado Teatro Rival Segunda paixão África portuguesa Barcelona Carrousel de Paris A transformação Fotos Drogas e prostituição Madame Arthur e Elle et Lui Itália: La brasiliana Sexo com uma mulher Irã e Egito O retorno ao Brasil Estados Unidos, Porto Rico e Venezuela Cinema e teatro Sexo sem amor Prêmio Mambembe Portugal: Artista de travesti O acidente A estrela proibida Sala Funarte: O outro lado do espelho Freud X Rogéria Rogéria e a religião Fotos Carnaval O travesti do Brasil Jean Genet e os leopardos Paternidade As entrevistas polêmicas Sarita Montiel e vodca Na cama com Rogéria Rogéria abafa na televisão Divinas divas Nu frontal em Brasília A morte da mãe Homenagem à trois (e outras homenagens) Sexo depois dos 70 Mudança de sexo Atrizes não têm idade A história sem fim Agradecimentos Bibliografia Sobre o autor Sobre a Estação Brasil Créditos Astolfo, homem-mulher A estreia As reinações de Tofinho Adolescência O padrasto TV Rio O grande amor Enfim, Rogéria Primeira paixão Vedete do Carlos Machado Teatro Rival Segunda paixão África portuguesa Barcelona Carrousel de Paris A transformação Fotos Drogas e prostituição Madame Arthur e Elle et Lui Itália: La brasiliana Sexo com uma mulher Irã e Egito O retorno ao Brasil Estados Unidos, Porto Rico e Venezuela Cinema e teatro Sexo sem amor Prêmio Mambembe Portugal: Artista de travesti O acidente A estrela proibida Sala Funarte: O outro lado do espelho Freud X Rogéria Rogéria e a religião Fotos Carnaval O travesti do Brasil Jean Genet e os leopardos Paternidade As entrevistas polêmicas Sarita Montiel e vodca Na cama com Rogéria Rogéria abafa na televisão Divinas divas Nu frontal em Brasília A morte da mãe Homenagem à trois (e outras homenagens) Sexo depois dos 70 Mudança de sexo Atrizes não têm idade A história sem fim Agradecimentos Bibliografia Sobre o autor Sobre a Estação Brasil