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Historia de Uma Fraude - E Lockhart

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Prévia do material em texto

Ficha	Técnica
Título:	HISTÓRIA	DE	UMA	FRAUDE
Título	original:	GENUINE	FRAUD
Autor:	E.	Lockart
Tradução:	Ana	Saldanha
Revisão:	Carolina	Matias
Capa:	Maria	Manuel	Lacerda
Imagem	da	capa:	Jonathan	Knowles/Stone/Getty	Images
ISBN:	9789892353135
	
Edições	ASA	II,	S.A.
uma	editora	do	Grupo	LeYa
R.	Cidade	de	Córdova,	n.º	2
2160-038	Alfragide	–	Portugal
Tel.:	(+351)	214	272	200
Fax:	(+351)	214	272	201
	
©	2017,	E.	Lockhart
©	2022,	Edições	ASA	II,	S.A.
Todos	os	direitos	reservados	de	acordo	com	a	legislação	em	vigor
www.asa.leya.com
www.leya.pt
	
	
Este	livro	segue	o	Novo	Acordo	Ortográfico	de	1990.
http://www.asa.leya.com
http://www.leya.pt
Índice
Capa
Ficha	Técnica
18
17
16
15
14
13
12
11
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
19
NOTA	DA	AUTORA
AGRADECIMENTOS
E.	Lockhart
HISTÓRIA	DE	UMA	FRAUDE
Para	qualquer	pessoa	a	quem	tenha	sido	ensinado	que	«bom»	significa
«pequeno	e	silencioso»,	aqui	está	o	meu	coração	com	todos	os	seus
feios	emaranhados	e	a	sua	esplêndida	fúria.
E
18
Começar	aqui:
TERCEIRA	SEMANA	DE	JUNHO,	2017
CABO	SAN	LUCAS,	MÉXICO
ra	um	hotel	fabuloso	como	o	caraças.
No	 minibar	 do	 quarto	 de	 Jule	 havia	 batatas	 fritas	 e	 quatro	 tipos
diferentes	 de	 tabletes	 de	 chocolate.	A	banheira	 era	 de	hidromassagem.	Havia
um	abastecimento	infindável	de	toalhas	fofas	e	gel	de	banho	com	perfume	de
gardénia.	No	átrio,	um	cavalheiro	idoso	tocava	Gershwin	num	piano	de	cauda
às	quatro	horas	todas	as	tardes.	Podiam	fazer-se	tratamentos	de	pele	com	argila
quente,	 se	 não	 se	 objetasse	 ao	 toque	 de	 estranhos.	A	 pele	 de	 Jule	 cheirava	 a
cloro	o	dia	inteiro.
O	 resort	 Playa	 Grande	 em	 Baja	 tinha	 cortinas	 brancas,	 azulejos	 brancos,
alcatifas	 brancas	 e	 explosões	 de	 luxuriantes	 flores	 brancas.	 Os	 funcionários
pareciam	enfermeiros,	com	as	suas	fardas	de	algodão	branco.	Jule	encontrava-
se	sozinha	no	hotel	há	quase	quatro	semanas.	Tinha	dezoito	anos.
Esta	manhã,	estava	a	correr	no	ginásio	do	Playa	Grande.	Calçava	ténis	verde-
mar	 feitos	 à	 medida,	 com	 atacadores	 em	 azul-marinho.	 Corria	 sem	 música.
Estava	a	fazer	intervalos	há	quase	uma	hora	quando	uma	mulher	subiu	para	a
passadeira	ao	seu	lado.
Esta	mulher	tinha	menos	de	trinta	anos.	O	seu	cabelo	preto	estava	preso	num
rabo	de	cavalo	apertado,	acamado	com	laca.	Tinha	braços	grandes	e	um	tronco
sólido,	pele	de	um	moreno	claro	e	uma	camada	de	blush	em	pó	nas	faces.	Os
seus	ténis	estavam	cambados	e	salpicados	com	lama	seca.
Não	se	encontrava	mais	ninguém	no	ginásio.
Jule	 abrandou	 o	 passo,	 a	 calcular	 que	 se	 iria	 embora	 daí	 a	 um	 minuto.
Agradava-lhe	ter	privacidade,	e,	de	qualquer	maneira,	já	estava	quase	a	acabar.
–	Está	a	treinar?	–	perguntou	a	mulher.	Apontou	para	o	registo	digital	de	Jule.
–	Tipo,	para	uma	maratona	ou	coisa	do	género?	–	A	pronúncia	era	mexicano-
americana.	Provavelmente,	era	uma	nova-iorquina	criada	num	bairro	de	língua
espanhola.
–	Corria	 em	pista	 na	 secundária.	 É	 tudo.	 –	A	maneira	 de	 falar	 de	 Jule	 era
clara	e	seca,	aquilo	a	que	os	britânicos	chamam	inglês	da	BBC.
A	mulher	lançou-lhe	um	olhar	penetrante.	–	Gosto	da	sua	pronúncia	–	disse.
–	De	onde	é?
–	De	Londres.	De	St.	John’s	Wood.
–	Eu	sou	de	Nova	Iorque.	–	A	mulher	apontou	para	si	própria.
Jule	desceu	da	passadeira	para	fazer	alongamentos	dos	quadríceps.
–	 Estou	 aqui	 sozinha	 –	 confidenciou	 a	mulher	 ao	 fim	 de	 um	momento.	 –
Cheguei	 ontem	 à	 noite.	 Reservei	 este	 hotel	 à	 última	 hora.	 Está	 cá	 há	muito
tempo?
–	Nunca	é	tempo	suficiente	–	disse	Jule	–	num	sítio	como	este.
–	Então,	o	que	recomenda?	No	Playa	Grande?
Jule	não	falava	frequentemente	com	outros	hóspedes	do	hotel,	mas	não	viu
mal	em	responder.	–	Vá	fazer	a	excursão	de	mergulho	–	disse.	–Vi	uma	moreia
grande	como	o	caraças.
–	Não	me	diga.	Uma	enguia?
–	O	 guia	 tentou-a	 com	 tripas	 de	 peixe	 que	 trazia	 numa	 garrafa	 de	 leite	 de
plástico.	A	enguia	nadou	para	fora	das	rochas.	Devia	ter	dois	metros	e	quarenta
de	comprimento.	E	era	de	um	verde-vivo.
A	mulher	estremeceu.	–	Não	gosto	de	enguias.
–	Pode	não	ir.	Se	se	assusta	com	facilidade.
A	mulher	riu-se.	–	Como	é	a	comida?	Ainda	não	comi.
–	Peça	o	bolo	de	chocolate.
–	Para	o	pequeno-almoço?
–	Oh,	sim.	Trazem-lho	especialmente,	se	pedir.
–	É	bom	saber	isso.	Está	de	férias	sozinha?
–	Ouça,	vou	andando	–	disse	Jule,	sentindo	que	a	conversa	se	tornara	pessoal.
–	Adeusinho.	–	Dirigiu-se	para	a	porta.
–	O	meu	pai	está	muito	doente	–	disse	a	mulher,	 falando	para	as	costas	de
Jule.	–	Já	estou	a	tomar	conta	dele	há	imenso	tempo.
Uma	pontada	de	compaixão.	Jule	parou	e	virou-se.
–	 Todas	 as	 manhãs	 e	 todas	 as	 noites	 depois	 do	 trabalho,	 estou	 com	 ele	 –
prosseguiu	a	mulher.	–	Agora,	encontra-se	finalmente	estável,	e	eu	queria	tanto
afastar-me	daquilo	tudo	que	nem	pensei	no	preço.	Estou	a	estourar	uma	data	de
massa	que	não	devia.
–	O	que	tem	o	seu	pai?
–	E.	M.	–	respondeu	a	mulher.	–	Esclerose	múltipla?	E	demência.	Era	o	chefe
da	nossa	 família.	Muito	machista.	Com	opiniões	 fortes	em	 tudo.	Agora	é	um
corpo	 contorcido	numa	 cama.	Metade	do	 tempo,	 nem	 sequer	 sabe	 onde	 está.
Põe-se,	tipo,	a	perguntar-me	se	sou	a	empregada	de	mesa.
–	Que	diabo.
–	Tenho	medo	de	o	perder	e	detesto	estar	com	ele,	as	duas	coisas	ao	mesmo
tempo.	E	quando	ele	morrer	e	eu	ficar	órfã,	sei	que	vou	arrepender-me	de	ter
feito	esta	viagem	para	longe	dele,	sabe?	–	A	mulher	parou	de	correr	e	pôs	um
pé	 de	 cada	 lado	 da	 passadeira.	 Limpou	 os	 olhos	 com	 as	 costas	 da	 mão.	 –
Desculpe.	Demasiada	informação.
–	Não	tem	mal.
–	Vá	lá.	Vá	tomar	um	duche	ou	o	que	for.	Talvez	a	veja	por	aí	mais	tarde.
A	mulher	 arregaçou	 as	mangas	 compridas	 da	 sua	T-shirt	 e	 virou-se	 para	 o
registo	 digital	 da	 passadeira.	 Serpenteava-lhe	 uma	 cicatriz	 pelo	 antebraço
direito,	 como	 se	 resultante	 de	 uma	 facada,	 não	 regular	 como	 a	 de	 uma
operação.	Havia	ali	uma	história.
–	Ouça,	gosta	de	concursos	 tipo	Trivial	Pursuit?	–	perguntou	Jule,	 sabendo
que	não	devia	fazê-lo.
Um	sorriso.	Dentes	brancos,	mas	tortos.	–	Sou	excelente	em	trivialidades,	de
facto.
–	Organizam	um	de	duas	em	duas	noites	no	salão	lá	em	baixo	–	disse	Jule.	–
É	uma	treta.	Quer	ir?
–	Que	tipo	de	treta?
–	Treta	da	boa.	Um	bocado	tonto	e	barulhento.
–	OK.	Sim,	está	bem.
–	Ótimo	–	disse	Jule.	–	Vamos	arrasar.	Vai	ficar	contente	por	ter	tirado	férias.
Eu	 sou	 uma	 barra	 em	 super-heróis,	 filmes	 de	 espiões,	 YouTubers,	 fitness,
dinheiro,	maquilhagem	e	escritores	vitorianos.	E	você?
–	Escritores	vitorianos?	Tipo,	Dickens?
–	Sim,	isso.	–	Jule	sentiu	que	corava.	De	repente,	parecia	uma	série	estranha
de	coisas	por	que	se	interessar.
–	Adoro	Dickens.
–	Não	me	diga.
–	É	verdade.	–	A	mulher	 sorriu	de	novo.	–	Sou	boa	em	Dickens,	culinária,
notícias	da	atualidade,	política...	vejamos,	oh,	e	em	gatos.
–	Está	bem,	então	–	disse	Jule.	–	Começa	às	oito,	naquele	salão	que	dá	para	o
átrio	principal.	O	bar	com	sofás.
–	 Às	 oito.	 Combinado.	 –	 A	 mulher	 aproximou-se	 e	 estendeu	 a	 mão.	 –
Relembre-me,	como	se	chama?	Eu	sou	a	Noa.
Jule	apertou-lhe	a	mão.	–	Não	lhe	tinha	dito	o	meu	nome	–	respondeu.	–	Mas
é	Imogen.
Jule	West	Williams	 tinha	um	aspeto	razoavelmente	agradável.	Quase	nunca
lhe	 chamavam	 feia,	 e	 também	 não	 era	 habitualmente	 considerada	 sexy.	 Era
baixa,	 media	 só	 um	metro	 e	 cinquenta,	 e	 tinha	 o	 queixo	 espetado.	 Usava	 o
cabelo	 num	 corte	 atraente,	 à	 rapazinho,	 com	madeixas	 louras	 aplicadas	 num
cabeleireiro	 e	 atualmente	 a	 mostrar	 as	 raízes	 escuras.	 Olhos	 verdes,	 pele
branca,	sardas	claras.	Com	a	maior	parte	das	suas	roupas,	não	poderia	ver-se	a
força	da	sua	estrutura	corporal.	Jule	tinha	músculos	que	sobressaíam	dos	ossos
em	arcos	potentes	–	como	se	 tivesse	 sido	desenhada	por	um	artista	de	banda
desenhada,	 especialmente	 nas	 pernas.	 Havia	 um	 painel	 duro	 de	 músculo
abdominal	sob	uma	camada	de	gordura	na	zona	do	umbigo.	Gostava	de	carne	e
sal	e	chocolate	e	gorduras.
Jule	acreditava	que	quanto	mais	se	transpirar	nos	treinos,	menos	se	sangrará
na	batalha.
Acreditavaque	a	melhor	maneira	de	evitar	que	nos	partam	o	coração	é	fingir
que	não	temos	coração.
Acreditava	que	a	maneira	como	se	fala	é	frequentemente	mais	importante	do
que	qualquer	coisa	que	se	tenha	a	dizer.
Também	 acreditava	 em	 filmes	 de	 ação,	 no	 treino	 com	 pesos,	 no	 poder	 da
maquilhagem,	na	memorização,	na	 igualdade	de	direitos	e	na	 ideia	de	que	os
vídeos	 do	 YouTube	 podem	 ensinar	 um	 milhão	 de	 coisas	 que	 não	 se
aprenderiam	na	escola.
Se	confiasse	na	pessoa	com	quem	estava	a	falar,	Jule	diria	que	andou	um	ano
em	Stanford	com	uma	bolsa	de	atletismo.	«Fui	recrutada»	explicava	às	pessoas
de	 quem	 gostava.	 «Stanford	 é	 a	 Primeira	 Divisão.	 A	 universidade	 deu-me
dinheiro	para	as	propinas,	os	livros,	isso	tudo.»
O	que	aconteceu?
Jule	 poderia	 encolher	 os	 ombros.	 «Queria	 estudar	 Literatura	 Vitoriana	 e
Sociologia,	 mas	 o	 treinador	 principal	 era	 um	 pervertido»	 diria.	 «Tocava	 nas
raparigas	todas.	Quando	chegou	a	minha	vez,	preguei-lhe	um	pontapé	no	certo
sítio	 e	 contei	 a	 toda	 a	 gente	 que	 me	 quis	 ouvir.	 A	 professores,	 alunos,	 ao
Stanford	Daily.	Berrei-o	ao	topo	da	estúpida	torre	de	marfim,	mas	sabes	o	que
acontece	aos	atletas	que	denunciam	os	seus	treinadores.»
Torcia	 os	 dedos	 entrelaçados	 e	 baixava	 os	 olhos.	 «As	 outras	 raparigas	 da
equipa	 negaram»	 acrescentava.	 «Disseram	 que	 eu	 estava	 a	 mentir	 e	 que	 o
pervertido	 nunca	 tinha	 tocado	 em	 ninguém.	 Não	 queriam	 que	 os	 pais
soubessem	e	tinham	medo	de	perder	a	bolsa	de	estudos.	Foi	assim	que	acabou	a
história.	 O	 treinador	 manteve-se	 no	 seu	 lugar.	 Eu	 abandonei	 a	 equipa.	 Isso
significou	que	deixei	de	ter	apoio	financeiro.	E	é	assim	que	se	transforma	uma
excelente	aluna	num	caso	de	abandono	dos	estudos.»
*
Depois	do	ginásio,	 Jule	nadou	mil	 e	 seiscentos	metros	na	piscina	do	Playa
Grande	 e	 passou	 o	 resto	 da	 manhã,	 como	 era	 frequente,	 sentada	 na	 sala	 de
conferências	a	ver	vídeos	de	língua	espanhola.	Ainda	estava	de	fato	de	banho,
mas	 com	 uns	 ténis	 verde-mar.	 Usava	 batom	 cor-de-rosa	 vivo	 e	 eyeliner
prateado.	O	fato	de	banho	era	de	uma	só	peça,	cor	de	chumbo,	com	um	aro	no
peito	e	um	decote	acentuado.	Dava-lhe	um	ar	muito	Universo	Marvel.
A	sala	de	conferências	tinha	ar	condicionado.	Nunca	estava	lá	mais	ninguém.
Jule	punha	os	pés	em	cima	de	uma	mesa	e	usava	fones	e	bebia	Cola-Cola	de
dieta.
Depois	de	duas	horas	de	língua	espanhola,	almoçou	um	Snickers	e	pôs-se	a
ver	vídeos	de	música.	Dançou	por	ali	com	a	energia	da	cafeína,	cantando	para	a
fila	de	cadeiras	giratórias	na	sala	vazia.	Hoje,	a	vida	estava	a	ser	fabulosa	como
o	caraças.	Gostava	daquela	triste	mulher	fugida	ao	pai	doente,	da	mulher	com	a
cicatriz	interessante	e	o	gosto	surpreendente	em	livros.
Iam	arrasar	no	concurso.
Jule	 bebeu	 mais	 uma	 Cola-Cola	 de	 dieta.	 Verificou	 a	 maquilhagem	 e
pontapeou	o	seu	reflexo	no	vidro	da	janela	da	sala.	A	seguir,	riu-se	alto,	porque
parecia	ao	mesmo	tempo	tonta	e	incrível.	Durante	todo	esse	tempo,	o	ritmo	da
música	pulsava	nos	seus	ouvidos.
O	empregado	do	bar	da	piscina,	Donovan,	era	um	tipo	da	zona.	Tinha	ossos
grandes,	mas	 um	 aspeto	molengão.	 E	 cabelo	 penteado	 para	 trás.	 Era	 dado	 a
piscar	o	olho	à	clientela.	Falava	inglês	com	o	sotaque	típico	de	Baja	e	sabia	o
que	Jule	bebia:	uma	Coca-Cola	de	dieta	com	um	shot	de	xarope	de	baunilha.
Nalgumas	tardes,	Donovan	fazia	perguntas	a	Jule	sobre	como	fora	crescer	em
Londres.	 Jule	 praticava	 espanhol.	 Viam	 filmes	 no	 ecrã	 por	 cima	 do	 balcão
enquanto	conversavam.
Hoje,	às	três	da	tarde,	Jule	empoleirou-se	no	banco	no	canto	do	balcão,	ainda
de	fato	de	banho.	Donovan	vestia	um	blazer	branco	do	Playa	Grande	e	uma	T-
shirt.	Estavam	a	crescer-lhe	uns	pelos	da	barba	no	pescoço.
–	Qual	é	o	filme?	–	perguntou-lhe	ela,	olhando	para	cima	para	a	televisão.
–	O	Hulk.
–	Qual	deles?
–	Não	sei.
–	Foste	tu	quem	pôs	o	DVD.	Como	podes	não	saber?
–	Nem	sequer	sabia	que	havia	dois	Hulks.
–	Há	 três	Hulks.	Espera,	 retiro	o	que	disse.	Há	vários	Hulks.	Se	contarmos
com	os	da	televisão,	da	banda	desenhada,	isso	tudo.
–	Não	sei	que	Hulk	é,	Miss	Williams.
O	filme	continuava	no	ecrã.	Donovan	passou	uns	copos	por	água	e	limpou	o
balcão.	Preparou	um	uísque	escocês	com	água	com	gás	para	uma	cliente,	o	que
o	levou	para	o	outro	extremo	da	zona	da	piscina.
–	É	o	 segundo	melhor	Hulk	 –	disse	 Jule,	 quando	voltou	a	 ter	 a	 atenção	de
Donovan.	–	Como	se	diz	uísque	escocês	em	espanhol?
–	Escocés.
–	Escocés.	Qual	é	uma	marca	boa	para	se	beber?
–	A	menina	nunca	bebe.
–	Mas	se	bebesse.
–	O	Macallan	–	disse	Donovan,	encolhendo	os	ombros.	–	Quer	que	lhos	dê	a
provar?
Deitou	 em	 cinco	 copos	 de	 shot	 diferentes	 marcas	 de	 uísque	 escocês	 da
melhor	qualidade.	Explicou	as	diferenças	entre	scotches	e	whiskeys,	e	porque
se	mandaria	vir	um	e	não	o	outro.	Jule	provou	cada	um	deles,	mas	não	bebeu
muito.
–	Este	cheira	a	sovaco	–	disse-lhe	ela.
–	A	menina	é	louca.
–	E	este	cheira	a	gasolina	de	isqueiro.
Ele	debruçou-se	sobre	o	copo	para	o	cheirar.	–	Talvez.
Ela	apontou	para	o	terceiro.	–	Mijo	de	cão,	tipo,	de	um	cão	mesmo	furioso.
Donovan	riu-se.	–	A	que	cheiram	os	outros?	–	perguntou.
–	A	sangue	seco	–	disse	Jule.	–	E	àquele	pó	que	se	usa	para	limpar	casas	de
banho.	Aquele	pó	de	limpeza.
–	Qual	prefere?
–	 O	 do	 sangue	 seco	 –	 disse	 ela,	 enfiando	 o	 dedo	 no	 copo	 e	 provando-o
novamente.	–	Diz-me	como	se	chama.
–	 É	 o	Macallan.	 –	 Donovan	 retirou	 os	 copos.	 –	 Oh,	 e	 esqueci-me	 de	 lhe
dizer:	esteve	aqui	uma	senhora	a	perguntar	por	si.	Ou	talvez	não	por	si.	Talvez
ela	se	tivesse	confundido.
–	Que	senhora?
–	Uma	senhora	mexicana.	A	falar	espanhol.	Perguntou-me	por	uma	rapariga
americana	branca	com	cabelo	louro	curto,	que	viaja	sozinha	–	disse	Donovan.	–
Referiu-se	a	sardas.	–	Tocou	no	seu	próprio	rosto.	–	No	nariz.
–	O	que	é	que	lhe	disseste?
–	Disse	que	é	um	resort	 grande.	Muitos	 americanos.	Não	 sei	quem	está	 cá
sozinho	e	quem	não	está.
–	Não	sou	americana	–	disse	Jule.
–	Eu	sei.	Portanto,	disse-lhe	que	não	tinha	visto	ninguém	assim.
–	Foi	o	que	disseste?
–	Foi.
–	Mas	não	deixaste	de	pensar	em	mim.
Donovan	 olhou	 para	 Jule	 por	 um	 longo	minuto.	 –	Pensei	 de	 facto	 em	 si	 –
disse	por	fim.	–	Não	sou	estúpido,	Miss	Williams.
Noa	sabia	que	ela	era	americana.
Isso	significava	que	Noa	era	da	polícia.	Ou	coisa	do	género.	Tinha	de	ser.
Tentara	 iludir	 Jule	 com	 aquela	 conversa	 toda.	O	pai	 doente,	Dickens,	 ficar
órfã.	Noa	soubera	exatamente	o	que	dizer.	Lançara	aquele	 isco	–	«o	meu	pai
está	muito	doente»	–	e	Jule	mordera-o	logo,	faminta.
Ficou	 com	 o	 rosto	 quente.	 Era	 a	 solidão	 e	 a	 fraqueza	 e	 uma	 estupidez	 do
caraças	que	a	 tinham	feito	cair	na	esparrela	de	Noa.	Era	 tudo	uma	artimanha
para	que	Jule	a	visse	como	uma	confidente,	não	uma	adversária.
Jule	 voltou	 para	 o	 seu	 quarto	 com	 um	 ar	 tão	 relaxado	 quanto	 conseguia
aparentar.	Uma	vez	dentro	do	quarto,	tirou	os	seus	pertences	valiosos	do	cofre.
Vestiu	umas	calças	de	ganga	e	uma	T-shirt,	calçou	umas	botas	e	meteu	na	sua
pequena	mala	tanta	roupa	quanta	cabia	nela.	O	resto	deixou	ficar.	Pousou	em
cima	 da	 cama	 uma	 gorjeta	 de	 cem	 dólares	 para	 Gloria,	 a	 criada	 com	 quem
falava	 por	 vezes.	 A	 seguir,	 empurrou	 a	 mala	 de	 rodinhas	 pelo	 corredor	 e
arrumou-a	ao	lado	da	máquina	do	gelo.
De	volta	ao	bar	da	piscina,	Jule	disse	a	Donovan	onde	se	encontrava	a	mala.
Passou	uma	nota	de	vinte	dólares	americanos	sobre	o	balcão.
Pediu	um	favor.
Passou	mais	uma	nota	de	vinte	e	deu	instruções.
No	parque	de	estacionamento	do	pessoal,	Jule	olhou	à	sua	volta	e	deu	com	o
pequeno	automóvel	azul	do	empregado	do	bar,	com	a	porta	destrancada.	Entrou
e	deitou-se	no	chão	na	parte	de	trás.	Estava	cheio	de	sacos	e	copos	de	plástico
vazios.
Teria	 de	 esperar	 uma	 hora	 até	Donovan	 terminar	 o	 seu	 turno	 no	 bar.	 Com
sorte,	Noa	 só	 se	 aperceberia	 de	 que	 se	 passava	 alguma	 coisa	 quando	 Jule	 já
estivesse	muito	atrasada	para	o	concurso	dessa	noite,	talvez	por	volta	das	oito	e
meia.	A	seguir,investigaria	o	shuttle	do	aeroporto	e	os	registos	da	empresa	de
táxis	antes	de	pensar	no	parque	de	estacionamento	do	pessoal.
Estava	abafado	e	quente	dentro	do	carro.	Jule	pôs-se	à	escuta	de	passos.
Teve	uma	cãibra	no	ombro.	Sentia	sede.
Donovan	ajudá-la-ia,	correto?
Correto.	 Já	 tinha	 mentido	 a	 encobri-la.	 Dissera	 a	 Noa	 que	 não	 conhecia
ninguém	 que	 correspondesse	 à	 descrição	 dela.	 Avisara	 Jule	 e	 prometera	 ir
buscar	a	sua	mala	e	dar-lhe	boleia.	Ela	pagara-lhe,	também.
Além	disso,	Donovan	e	Jule	eram	amigos.
Jule	estendeu	as	pernas,	uma	de	cada	vez,	e	a	 seguir	voltou	a	dobrar-se	no
espaço	por	trás	dos	assentos.
Pensou	no	que	trazia	e	a	seguir	tirou	os	brincos	e	o	anel	de	jade,	enfiando-os
no	bolso	das	suas	calças	de	ganga.	Forçou-se	a	acalmar	a	respiração.
Finalmente,	ouviu-se	o	som	de	uma	mala	com	rodinhas.	O	baque	da	mala	do
carro	 a	 ser	 fechada.	 Donovan	 sentou-se	 ao	 volante,	 ligou	 o	motor	 e	 saiu	 do
parque	 de	 estacionamento.	 Jule	manteve-se	 no	 chão	 do	 carro.	 Havia	 poucos
candeeiros	na	estrada.	Na	rádio	passava	música	pop	mexicana.
–	Para	onde	quer	ir?	–	perguntou	Donovan	por	fim.
–	Para	qualquer	parte	da	cidade.
–	Vou	para	casa,	então.	–	De	repente,	a	sua	voz	soava	predadora.
Com	um	raio.	Teria	feito	mal	em	meter-se	no	carro	dele?	Seria	Donovan	um
daqueles	 tipos	que	 julgam	que	uma	 rapariga	que	queira	um	 favor	 tem	de	dar
umas	voltas	com	ele?
–	Deixa-me	ficar	a	caminho	da	 tua	casa	–	disse-lhe	num	tom	ríspido.	–	Eu
trato	de	mim.
–	Não	tem	de	o	dizer	dessa	maneira	–	disse	ele.	–	Estou	a	arriscar-me	por	si
neste	momento.
Imagine-se	 isto:	 uma	 casa	 acolhedora	 nos	 arredores	 de	 uma	 cidade	 no
Alabama.	Uma	noite,	 Jule,	com	oito	anos,	acorda	no	escuro.	Terá	ouvido	um
ruído?
Não	tem	a	certeza.	A	casa	está	em	silêncio.
Vai	ao	andar	de	baixo	na	sua	camisa	de	noite	fina	cor-de-rosa.
No	 rés	 do	 chão,	 trespassa-a	 um	 frio	 gélido.	A	 sala	 de	 estar	 está	 virada	 de
pernas	para	o	ar,	livros	e	papéis	por	todo	o	lado.	O	escritório	está	ainda	pior.	Os
armários	de	arquivo	foram	derrubados.	Os	computadores	foram-se.
–	Mamã?	Papá?	–	A	Pequena	Jule	volta	a	correr	para	o	andar	de	cima	para
espreitar	para	o	quarto	dos	pais.
As	camas	deles	estão	vazias.
Agora	 sente-se	 verdadeiramente	 assustada.	Abre	 a	 porta	 da	 casa	 de	 banho.
Eles	não	estão	lá.	Corre	para	o	exterior.
O	jardim	é	cercado	por	árvores	altas.	A	Pequena	Jule	vai	a	meio	do	caminho
quando	 se	 apercebe	 do	 que	 está	 a	 ver	 ali,	 no	 círculo	 de	 luz	 criado	 por	 um
candeeiro.
A	mamã	 e	 o	 papá	 estão	 deitados	 no	 relvado,	 de	 cara	 para	 baixo.	 Os	 seus
corpos	estão	enroscados	e	moles.	O	sangue	 forma	uma	poça	negra	por	baixo
deles.	 A	 mamã	 foi	 atingida	 no	 cérebro	 por	 um	 tiro.	 Deve	 ter	 morrido
instantaneamente.	O	papá	está	claramente	morto,	mas	os	únicos	ferimentos	que
Jule	 consegue	 ver	 são	 nos	 seus	 braços.	 Deve	 ter	 sangrado	 até	 à	morte.	 Está
enroscado	à	volta	da	mamã,	como	se	só	tivesse	pensado	nela	nos	seus	últimos
momentos	de	vida.
Jule	 volta	 a	 correr	 para	 dentro	 de	 casa	 para	 telefonar	 à	 polícia.	 A	 linha
telefónica	está	cortada.
Regressa	ao	jardim,	a	querer	dizer	uma	oração,	a	pensar	em	dizer	adeus,	pelo
menos	–	mas	os	corpos	dos	seus	pais	desapareceram.	O	seu	assassino	levou-os.
Não	se	permite	chorar.	Fica	sentada	durante	o	resto	da	noite	naquele	círculo
de	luz	do	candeeiro,	a	deixar	empapar	a	camisa	de	noite	com	o	sangue	espesso.
Nas	 duas	 semanas	 seguinte,	 a	 Pequena	 Jule	 fica	 sozinha	 naquela	 casa
saqueada.	 Mantém-se	 forte.	 Cozinha	 para	 se	 alimentar	 e	 organiza	 os	 papéis
deixados,	 à	procura	de	pistas.	Enquanto	 lê	os	documentos,	vai	 encaixando	as
peças	de	vidas	de	heroísmo,	poder	e	identidades	secretas.
Uma	 tarde,	 está	 no	 sótão	 a	 ver	 fotografias	 antigas	 quando	 aparece	 nessa
divisão	uma	mulher	de	preto.
A	 mulher	 avança	 um	 passo,	 mas	 a	 Pequena	 Jule	 é	 rápida.	 Arremessa	 um
abre-cartas,	 com	 força	 e	 rápida,	mas	 a	mulher	 apanha-o	 na	mão	 esquerda.	A
Pequena	Jule	trepa	por	uma	pilha	de	caixotes,	agarra-se	a	uma	trave	do	teto	do
sótão	e	iça-se.	Corre	ao	longo	da	trave	e	enfia-se	por	um	postigo	no	telhado.	O
pânico	martela-lhe	o	peito.
A	mulher	corre	atrás	dela.	Jule	salta	do	telhado	para	os	ramos	de	uma	árvore
vizinha	 e	 quebra	 um	galho	 aguçado	 para	 usar	 como	 arma.	 Segura-o	 na	 boca
enquanto	 desce	 da	 árvore.	 Está	 a	 correr	 para	 o	 matagal	 quando	 a	 mulher	 a
atinge	com	um	tiro	no	tornozelo.
A	dor	é	 intensa.	A	Pequena	 Jule	 tem	a	certeza	de	que	a	assassina	dos	 seus
pais	voltou	para	acabar	com	ela	–	mas	a	mulher	de	preto	ajuda-a	a	levantar-se	e
ocupa-se	da	ferida.	Remove	a	bala	e	trata	a	ferida	com	um	antissético.
Enquanto	a	mulher	lhe	liga	o	tornozelo,	explica	que	é	uma	recrutadora.	Tem
estado	a	observar	 Jule	nas	duas	últimas	 semanas.	 Jule	não	 só	é	 filha	de	duas
pessoas	 excecionalmente	 capazes,	 mas	 também	 possui	 um	 intelecto	 notável
com	um	instinto	de	sobrevivência	feroz.	A	mulher	quer	treinar	Jule	e	ajudá-la	a
procurar	vingança.	Já	que	é	uma	espécie	de	tia	há	muito	julgada	perdida.	Está	a
par	dos	segredos	que	aqueles	pais	guardaram	da	sua	adorada	filha	única.
Ali	começa	uma	educação	muito	fora	do	comum.	Jule	vai	para	uma	academia
especializada,	instalada	numa	mansão	renovada	numa	rua	normal	da	cidade	de
Nova	Iorque.	Aprende	técnicas	de	vigilância	e	a	fazer	saltos	mortais	para	trás,	e
torna-se	mestre	na	remoção	de	algemas	e	coletes	de	forças.	Usa	calças	de	pele	e
enche	os	bolsos	com	engenhocas.	Há	aulas	de	 línguas	estrangeiras,	 costumes
sociais,	 literatura,	 artes	 marciais,	 uso	 de	 armas	 de	 fogo,	 disfarces,	 sotaques
variados,	métodos	de	falsificação	e	questões	específicas	da	lei.	Os	seus	estudos
levam	dez	anos.	Quando	acabam,	Jule	tornou-se	o	tipo	de	mulher	que	seria	um
grande	erro	subestimar.
Esta	era	a	história	da	origem	de	Jule	West	Williams.	Na	altura	em	que	estava
a	viver	no	Playa	Grande,	Jule	preferia-a	a	qualquer	outra	história	que	poderia
contar	sobre	si	mesma.
Donovan	parou	e	abriu	a	porta	do	lado	do	condutor.	A	luz	acendeu-se	dentro
do	carro.
–	Onde	estamos?	–	perguntou	Jule.	Estava	escuro	lá	fora.
–	Em	San	José	del	Cabo.
–	É	onde	vives?
–	Não	muito	perto.
Jule	sentiu-se	aliviada,	mas	parecia	muito	escuro	lá	fora.	Não	deveria	haver
candeeiros	 e	 lojas,	 iluminadas	 para	 os	 turistas?	 –	 Está	 alguém	 por	 perto?	 –
perguntou.
–	Estacionei	num	beco	para	que	não	fosse	vista	a	sair	do	meu	carro.
Jule	rastejou	para	fora	do	carro.	Sentia	os	músculos	rígidos	e	a	sensação	de
ter	uma	camada	de	gordura	no	rosto.	O	beco	estava	ladeado	por	contentores	do
lixo.	A	única	 luz	vinha	de	um	par	de	 janelas	num	segundo	andar.	–	Obrigada
pela	boleia.	Abres	a	mala	do	carro,	por	favor?
–	Disse	cem	dólares	americanos	quando	a	trouxesse	para	a	cidade.
–	É	claro.	–	Jule	tirou	a	carteira	do	bolso	de	trás	e	pagou.
–	Mas	agora	é	mais	–	acrescentou	Donovan.
–	O	quê?
–	Mais	trezentos.
–	Pensei	que	éramos	amigos.
Ele	 deu	 um	 passo	 na	 direção	 dela.	 –	 Preparo-lhe	 bebidas	 porque	 é	 o	meu
trabalho.	 Finjo	 que	 gosto	 de	 conversar	 consigo	 porque	 também	 faz	 parte	 do
meu	 trabalho.	Pensa	que	não	vejo	como	me	olha	de	alto?	O	segundo	melhor
Hulk.	 Que	 tipo	 de	 uísque	 escocês.	 Nós	 não	 somos	 amigos,	 Miss	 Williams.
Mente-me	metade	do	tempo	e	eu	minto-lhe	o	tempo	todo.	–	Jule	sentia	o	cheiro
a	álcool	derramado	na	camisa	de	Donovan.	O	seu	hálito	quente	no	rosto	dela.
Jule	 acreditara	 sinceramente	 que	 Donovan	 simpatizava	 com	 ela.	 Tinham
contado	piadas	um	ao	outro	e	ele	dava-lhe	batatas	fritas	de	graça.	–	Uau	–	disse
ela	baixinho.
–	Mais	trezentos	–	disse	ele.
Seria	 um	 pequeno	 patife	 a	 raptar	 uma	 rapariga	 que	 trazia	 na	 sua	 pessoa
muitos	 dólares	 americanos?	 Ou	 um	 ordinário	 que	 julgava	 que	 ela	 preferiria
esfregar-se	 nele	 do	 que	 dar-lhe	 os	 trezentos	 dólares	 extra?	 Noa	 tê-lo-ia
subornado?
Jule	voltou	a	meter	a	carteira	do	dinheiro	no	bolso.	Mudou	a	posição	da	alça
do	 seu	 saco	para	o	pôr	 a	 tiracolo.–	Donovan?	–	Deu	um	passo	 em	 frente,	 a
aproximar-se.	Fitou-o	com	os	olhos	muito	abertos.
E	 então	 ergueu	 o	 braço	 direito	 com	 força,	 atirou-lhe	 a	 cabeça	 para	 trás	 e
assentou-lhe	 um	 murro	 no	 baixo-ventre.	 Ele	 dobrou-se	 pela	 cintura.	 Jule
agarrou-o	 pelo	 cabelo	 liso	 e	 puxou-lhe	 a	 cabeça	 para	 trás.	 Fê-lo	 rodopiar,
forçando-o	a	desequilibrar-se.
Ele	acotovelou-a	no	peito.	Doeu-lhe,	mas	a	segunda	cotovelada	falhou,	com
ela	 a	 desviar-se,	 a	 agarrar	 o	 cotovelo	 de	 Donovan	 e	 a	 dobrá-lo	 por	 trás	 das
costas	dele.	O	seu	braço	era	mole,	repulsivo.	Segurou-o	com	força	e	com	a	mão
livre	arrancou	o	dinheiro	aos	seus	dedos	gananciosos.
Enfiou	o	dinheiro	no	bolso	das	 suas	 calças	 de	ganga	 e	 puxou	 com	 força	o
cotovelo	de	Donovan	enquanto	palpava	os	seus	bolsos	da	frente,	à	procura	do
telemóvel.
Não	o	encontrou.	No	bolso	de	trás,	então.
Encontrou-o	e	enfiou-o	no	seu	soutien,	à	falta	de	outro	lugar.	Agora,	ele	não
poderia	telefonar	a	Noa	a	indicar	a	localização	de	Jule,	mas	continuava	a	ter	as
chaves	do	carro	na	mão	esquerda.
Donovan	esperneou,	atingindo-a	na	canela.	Jule	deu-lhe	um	muro	no	lado	do
pescoço	e	ele	cambaleou	para	a	frente.	Um	empurrão	forte	e	tombou	por	terra.
Começou	a	tentar	levantar-se,	mas	Jule	pegou	numa	tampa	de	metal	de	um	dos
caixotes	do	lixo	ali	perto	e	bateu-lhe	na	cabeça	duas	vezes,	e	ele	desabou	sobre
um	monte	de	sacos	do	lixo,	a	sangrar	da	testa	e	de	um	olho.
Jule	 recuou	 até	 ficar	 fora	 do	 seu	 alcance.	 Ainda	 tinha	 a	 tampa	 na	mão.	 –
Larga	as	chaves	do	carro.
A	 gemer,	 Donovan	 estendeu	 a	 mão	 esquerda	 e	 atirou-as,	 de	 modo	 que
aterraram	a	uns	cinco	centímetros	do	seu	corpo.
Jule	pegou	nas	chaves	e	abriu	a	mala	do	carro.	A	seguir,	tirou	a	sua	mala	de
viagem	e	desatou	a	correr	pela	rua	abaixo	antes	de	Donovan	conseguir	pôr-se
de	pé.
Abrandou	 o	 passo	 mal	 chegou	 à	 rua	 principal	 em	 San	 José	 del	 Cabo	 e
verificou	o	estado	da	sua	camisa.	Parecia	razoavelmente	limpa.	Passou	a	mão
pelo	rosto	de	um	modo	lento	e	calmo,	para	o	caso	de	haver	alguma	coisa	nele	–
sujidade,	 saliva	 ou	 sangue.	 Tirou	 um	 espelhinho	 do	 saco	 e	 viu-se	 a	 ele
enquanto	continuava	a	andar,	usando	o	espelho	para	olhar	por	cima	do	ombro.
Não	havia	ninguém	por	trás	dela.
Aplicou	batom	mate,	fechou	o	espelhinho	e	abrandou	o	passo	ainda	mais.
Não	podia	dar	a	impressão	de	que	estava	a	fugir	de	alguma	coisa.
O	ar	 estava	quente	 e	 saía	música	dos	bares.	Os	 turistas	 andavam	por	 ali,	 a
passear	 em	 frente	 a	 muitos	 dos	 bares	 –	 brancos,	 negros	 e	 mexicanos,	 todos
bêbedos	 e	 ruidosos.	 Turistas	 de	 férias	 baratas.	 Jule	 atirou	 as	 chaves	 e	 o
telemóvel	de	Donovan	para	um	caixote	do	lixo.	Olhou	à	volta	à	procura	de	um
táxi	ou	de	um	autocarro	supercabos,	mas	não	viu	nem	um,	nem	outro.
OK,	então.
Precisava	de	se	esconder	e	mudar	de	roupa,	para	o	caso	de	Donovan	vir	atrás
dela.	Persegui-la-ia,	se	trabalhava	para	Noa.	Ou	se	queria	vingança.
Imagina-te	 agora,	 num	 filme.	 Passam	 sombras	 pela	 tua	 pele	 lisa	 enquanto
continuas	a	andar.	Começam	a	formar-se	equimoses	por	baixo	das	roupas,	mas
o	 teu	cabelo	está	com	um	aspeto	excelente.	Estás	armada	com	todo	o	 tipo	de
equipamento,	 placas	 finas	 de	metal	 que	 desempenham	 feitos	 assombrosos	 de
tecnologia	e	assalto.	Trazes	contigo	venenos	e	antídotos.
És	o	centro	da	história.	Tu	e	mais	ninguém.	Tens	aquela	interessante	história
da	 tua	 origem,	 aquela	 educação	 pouco	 comum.	 Agora	 és	 implacável,	 és
brilhante,	 és	 praticamente	 destemida.	Há	 um	número	 de	 corpos	 no	 teu	 rasto,
porque	 fazes	 o	 que	 for	 necessário	 para	 te	manteres	 viva	 –	mas	 são	 ossos	 do
ofício,	é	tudo.
Tens	um	aspeto	soberbo	à	 luz	das	montras	dos	bares	mexicanos.	Depois	de
uma	luta,	ficas	com	as	faces	coradas.	E,	oh,	as	 tuas	roupas	ficam-te	mesmo	a
matar.
Sim,	 é	 verdade	 que	 és	 criminosamente	 violenta.	 Brutal	 até.	 Mas	 é	 o	 teu
trabalho	e	tens	qualificações	únicas	para	ele,	portanto	isso	é	sexy.
Jule	 já	 tinha	visto	uma	carrada	de	 filmes.	Sabia	que	as	mulheres	 raramente
eram	o	centro	de	tais	histórias.	Eram	antes	um	prazer	para	os	olhos,	um	troféu	a
levar	 pelo	 braço,	 vítimas	 ou	 objetos	 de	 atração.	 Na	 maior	 parte	 dos	 casos,
existiam	 para	 ajudar	 o	 grande	 herói	 branco	 e	 heterossexual	 na	 porra	 da	 sua
viagem	 épica.	 Quando	 existia	 uma	 heroína,	 pesava	 muito	 pouco,	 usava
pouquíssima	roupa	e	tinha	arranjado	os	dentes.
Jule	sabia	que	não	se	parecia	com	essas	mulheres.	Nunca	se	pareceria	com
essas	mulheres.	Mas	era	tudo	o	que	aqueles	heróis	eram	e,	em	certos	aspetos,
ainda	mais.
Também	sabia	isso.
Chegou	 ao	 terceiro	 bar	 do	Cabo	 e	 entrou.	 Estava	mobilado	 com	mesas	 de
piquenique	e	decorado	com	peixes	empalhados	nas	paredes.	Os	clientes	eram
na	 sua	 maioria	 americanos,	 a	 embebedarem-se	 depois	 de	 um	 dia	 de	 pesca
desportiva.	 Jule	dirigiu-se	 rapidamente	para	as	 traseiras,	 lançou	um	olhar	por
cima	do	ombro	e	entrou	na	casa	de	banho	dos	homens.
Estava	 vazia.	 Enfiou-se	 num	 dos	 cubículos.	 Donovan	 nunca	 viria	 à	 sua
procura	aqui.
O	 assento	 da	 sanita	 estava	molhado	 e	 amarelo.	 Jule	 procurou	 na	mala	 até
encontrar	 uma	peruca	preta	 –	um	corte	 à	 pagem	com	 franja.	Pô-la,	 limpou	o
batom	dos	lábios,	aplicou	um	brilho	escuro	e	pó	de	arroz.	Abotoou	um	casaco
de	malha	de	algodão	preto	por	cima	da	sua	T-shirt	branca.
Entrou	um	tipo	e	usou	o	urinol.	Jule	manteve-se	imóvel,	contente	por	estar	de
calças	de	ganga	e	botas	pretas	pesadas.	Só	os	seus	pés	e	a	parte	inferior	da	sua
mala	seriam	visíveis	na	parte	de	baixo	da	abertura	do	cubículo.
Entrou	um	segundo	tipo,	que	se	meteu	no	cubículo	ao	lado	do	seu.	Jule	olhou
para	os	sapatos	dele.
Era	Donovan.
Aqueles	eram	os	Crocs	brancos	e	sujos	dele.	Aquelas	eram	as	suas	calças	do
Playa	Grande,	à	enfermeiro.	Jule	sentia	o	sangue	latejar-lhe	nos	ouvidos.
Pegou	silenciosamente	na	mala	e	segurou-a	para	que	ele	não	pudesse	vê-la.
Manteve-se	imóvel.
Donovan	puxou	o	autoclismo	e	Jule	ouviu-o	arrastar	os	pés	até	ao	lavatório.
Ele	abriu	a	torneira.
Entrou	outro	tipo.	–	Pode	emprestar-me	o	telemóvel?	–	perguntou	Donovan
em	inglês.	–	É	só	para	fazer	uma	chamada	rápida.
–	Alguém	lhe	deu	uma	coça,	meu?	–	O	outro	tipo	tinha	sotaque	americano,
da	Califórnia.	–	Está	com	um	ar	de	quem	passou	das	boas.
–	Estou	bem	–	disse	Donovan.	–	Só	preciso	de	um	telefone.
–	Não	tenho	chamadas	aqui,	só	mensagens	–	disse	o	tipo.	–	Tenho	de	voltar
para	junto	dos	meus	amigos.
–	Eu	não	vou	roubá-lo	–	disse	Donovan.	–	Só	preciso	de...
–	Eu	já	disse	que	não,	OK	?	Mas	tudo	de	bom,	pá.	–	O	outro	tipo	saiu	sem
usar	a	casa	de	banho.
Donovan	queria	um	telefone	porque	não	tinha	as	chaves	do	carro	e	precisava
de	uma	boleia?	Ou	porque	queria	telefonar	a	Noa?
Respirava	pesadamente,	como	se	estivesse	com	dores.	Não	voltou	a	abrir	a
torneira.
Por	fim,	saiu	da	casa	de	banho.
Jule	pousou	 a	mala	de	viagem.	Sacudiu	 as	mãos	para	 ativar	 a	 circulação	 e
estendeu	 os	 braços	 por	 trás	 das	 costas.	 Ainda	 no	 cubículo,	 contou	 o	 seu
dinheiro,	tanto	os	pesos	como	os	dólares.	Verificou	a	peruca	no	seu	espelhinho.
Quando	 teve	a	 certeza	de	que	Donovan	 tinha	partido,	 saiu	confiante	 e	 sem
alardes	 da	 casa	 de	 banho	 dos	 homens	 e	 dirigiu-se	 para	 a	 rua.	 Lá	 fora,	 abriu
caminho	por	entre	as	multidões	de	pessoas	a	divertir-se	até	uma	esquina	e	teve
sorte.	Apareceu	um	táxi.	Ela	apressou-se	a	entrar	e	mandou	seguir	para	o	Grand
Solmar,	o	resort	ao	lado	do	Playa	Grande.
No	 Grand	 Solmar,	 arranjou	 facilmente	 um	 segundo	 táxi.	 Pediu	 ao	 novo
motorista	que	a	levasse	a	uma	pensão	barata	e	de	proprietários	locais	na	cidade.
Ele	levou-a	à	Cabo	Inn.
Era	 uma	 espelunca.	 Paredes	 finas,	 tinta	 suja,	mobília	 de	 plástico,	 flores	 de
plástico	em	cima	do	balcão.	Jule	fez	o	check-in	sob	um	nome	falso	e	pagou	ao
rececionista	em	pesos.	Ele	não	lhe	pediu	um	documento	de	identificação.
No	quarto,	Jule	usou	a	pequena	máquina	do	café	para	fazer	uma	chávena	de
descafeinado.	Sentou-se	na	beira	da	cama.
Tinhade	fugir?
Não.
Sim.
Não.
Ninguém	sabia	onde	ela	estava.	Ninguém	à	face	da	Terra.	Esse	facto	deveria
fazê-la	feliz.	Quisera	desaparecer,	ao	fim	e	ao	cabo.
Mas	sentia	medo.
Queria	Paolo.	Queria	Imogen.
Queria	poder	anular	tudo	o	que	tinha	acontecido.
Se	ao	menos	pudesse	recuar	no	tempo,	sentiu	Jule,	seria	uma	pessoa	melhor.
Ou	uma	pessoa	diferente.	Seria	mais	ela	própria.	Ou	talvez	menos	ela	própria.
Não	sabia	qual	das	opções,	porque	já	não	sabia	em	que	estado	estava	o	seu	eu
ou	se	na	realidade	não	havia	nenhuma	Jule,	mas	apenas	uma	série	de	eus	que
apresentava	em	diferentes	contextos.
Seriam	todas	as	pessoas	assim,	sem	um	verdadeiro	eu?
Ou	seria	só	Jule?
Não	sabia	se	era	capaz	de	amar	o	seu	próprio	estranho	coração	estraçalhado.
Queria	que	outra	pessoa	o	fizesse	por	ela,	que	o	visse	bater	por	trás	das	costelas
e	dissesse:	Consigo	ver	o	teu	verdadeiro	eu.	Está	aí	e	é	raro	e	valioso.	Amo-te.
Que	sombrio	e	estúpido	era	 ser	estraçalhada	e	estranha,	não	 ter	uma	 forma
específica,	não	 ter	um	eu	quando	a	vida	 se	estendia	perante	ela.	 Jule	possuía
muitos	 talentos	 raros.	 Trabalhava	 no	 duro	 e	 realmente	 tinha	 muito	 para
oferecer,	com	um	raio.	Sabia	tudo	isso.
Então,	porque	se	sentia	ao	mesmo	tempo	sem	valor?
Queria	telefonar	a	Imogen.	Desejava	poder	ouvir	o	riso	baixo	de	Immie	e	as
suas	frases	sem	pausas	a	revelarem	segredos.	Desejava	poder	dizer	a	Imogen:
Estou	com	medo.	E	 Immie	diria:	Mas	 tu	 és	 corajosa,	 Jule.	És	a	pessoa	mais
corajosa	que	conheço.
Desejava	que	Paolo	viesse	e	pusesse	os	braços	à	sua	volta,	dizendo-lhe	como
dissera	uma	vez	que	ela	era	uma	pessoa	de	primeira,	excelente.
Desejava	 que	 houvesse	 alguém	 que	 a	 amasse	 incondicionalmente,	 alguém
que	 lhe	 perdoasse	 fosse	 o	 que	 fosse.	Ou	melhor	 ainda,	 alguém	que	 soubesse
tudo	e	a	amasse	por	isso.
Nem	Paolo	nem	Immie	seriam	capazes	de	tal.
Mesmo	assim,	Jule	recordava-se	da	sensação	dos	lábios	de	Paolo	nos	seus	e
do	cheiro	a	jasmim	do	perfume	de	Immie.
De	 peruca	 preta,	 Jule	 desceu	 ao	 escritório	 da	 pensão	 Cabo	 Inn.	 Tinha
delineado	a	sua	estratégia.	O	escritório	estava	fechado	a	esta	hora	da	noite,	mas
ela	 deu	 uma	 gorjeta	 ao	 rececionista	 da	 noite	 para	 que	 lho	 abrisse.	 No
computador,	 reservou	um	voo	de	San	José	del	Cabo	para	Los	Angeles	para	a
manhã	 do	 dia	 seguinte.	 Usou	 o	 seu	 próprio	 nome	 e	 o	 seu	 cartão	 de	 crédito
habitual,	o	mesmo	que	usara	no	La	Playa	Grande.
A	 seguir,	 perguntou	 ao	 rececionista	 onde	 poderia	 comprar	 um	 carro	 a
dinheiro.	Ele	disse	que	havia	um	sujeito	que	fazia	negócio	nas	traseiras	da	sua
casa	e	que	poderia	vender-lhe	qualquer	coisa	na	manhã	seguinte	com	dólares
americanos.	Escreveu	uma	morada,	na	Ortiz	junto	à	Ejido,	disse.
Noa	 andava	 a	 vigiar	 as	 transações	 com	 cartões	 de	 crédito.	 Devia	 andar	 a
fazê-lo,	ou	nunca	teria	encontrado	Jule.	Agora,	a	detetive	veria	a	nova	despesa
e	 iria	 para	Los	Angeles.	 Jule	 compraria	 um	 carro	 a	 dinheiro	 e	 conduziria	 na
direção	de	Cancùn.	De	Cancùn,	acabaria	por	ir	até	à	ilha	de	Culebra,	em	Porto
Rico,	onde	havia	carradas	de	americanos	que	nunca	mostravam	o	passaporte	a
ninguém.
Agradeceu	ao	rececionista	a	informação	sobre	o	vendedor	de	automóveis.	–
Não	 vai	 lembrar-se	 da	 nossa	 conversa,	 pois	 não?	 –	 disse,	 empurrando	 outra
nota	de	vinte	por	cima	do	balcão.
–	Sou	capaz	–	disse	ele.
–	Não,	não	vai.	–	Acrescentou	uma	nota	de	cinquenta.
–	Nunca	a	vi	–	disse	ele.
Dormiu	mal.	Ainda	pior	do	que	o	costume.	Sonhos	de	afogamento	em	águas
quentes	azuis-turquesa;	 sonhos	de	gatos	abandonados	a	andarem	em	cima	do
corpo	 dela	 enquanto	 dormia;	 sonhos	 de	 estrangulamento	 por	 serpente.	 Jule
acordou	a	gritar.
Bebeu	água.	Tomou	um	duche	frio.
Adormeceu	e	acordou	a	gritar	de	novo.
Às	cinco	da	manhã,	cambaleou	até	à	casa	de	banho,	lavou	o	rosto	e	pintou	os
olhos.	Porque	não?	Gostava	de	maquilhagem.	Tinha	tempo.	Aplicou	concealer
e	pó,	acrescentou	uma	sombra	esfumada,	depois	rímel	e	um	batom	quase	preto
com	um	brilho	por	cima.
Pôs	gel	no	cabelo	e	vestiu-se.	Calças	de	ganga	preta,	botas	mais	uma	vez	e
uma	 T-shirt	 escura.	 Uma	 indumentária	 demasiado	 quente	 para	 o	 calor
mexicano,	 mas	 prática.	 Fez	 a	 mala,	 bebeu	 uma	 garrafa	 de	 água	 e	 deu	 uns
passos	para	fora	do	quarto.
*
Noa	estava	sentada	no	corredor,	com	as	costas	contra	a	parede,	a	segurar	uma
chávena	de	café	fumegante	entre	as	mãos.
À	espera.
S
17
FINAIS	DE	ABRIL,	2017
LONDRES
ete	 semanas	 antes,	 no	 final	 de	 abril,	 Jule	 acordou	 num	 albergue	 da
juventude	nos	arredores	de	Londres.	Havia	oito	camas	de	beliche	em	cada
quarto:	 colchões	 finos,	 cobertos	 com	 os	 lençóis	 brancos	 da	 praxe.	 Em	 cima,
estavam	 pousados	 sacos-cama.	 Mochilas	 encostadas	 às	 paredes.	 Havia	 um
fedor	ténue	a	odor	corporal	e	patchuli.
Dormira	com	a	roupa	do	ginásio	vestida.	Levantou-se,	apertou	os	atacadores
dos	 ténis	 e	 foi	 correr	 treze	 quilómetros	 pelo	 subúrbio,	 passando	 por	 pubs	 e
talhos	 ainda	 fechados	 na	 primeira	 luz	 da	 manhã.	 Ao	 regressar,	 fez	 prancha,
alongamentos,	flexões	e	agachamentos	na	sala	de	estar	do	albergue.
Jule	 já	 estava	 no	 chuveiro	 antes	 de	 as	 suas	 colegas	 de	 quarto	 acordarem	 e
começou	 a	 usar	 a	 água	 quente.	A	 seguir,	 voltou	 a	 trepar	 para	 a	 sua	 cama	de
beliche	e	desembrulhou	uma	barra	proteica	de	chocolate.
O	dormitório	ainda	se	encontrava	às	escuras.	Jule	abriu	O	Amigo	Comum	e
pôs-se	 a	 ler	 à	 luz	 do	 telemóvel.	 Era	 um	 romance	 vitoriano	 grosso	 sobre	 um
órfão.	Tinha	sido	escrito	por	Charles	Dickens.	A	sua	amiga	Imogen	 tinha-lho
oferecido.
Imogen	 Sokoloff	 era	 a	melhor	 amiga	 que	 Jule	 alguma	 vez	 tivera.	Os	 seus
livros	favoritos	eram	sempre	sobre	órfãos.	A	própria	Immie	era	órfã,	nascida	no
Minnesota	de	uma	mãe	adolescente	que	morrera	quando	Immie	tinha	dois	anos.
Depois,	 foi	 adotada	 por	 um	 casal	 que	 vivia	 num	 luxuoso	 apartamento	 num
último	andar	no	Upper	East	Side	de	Nova	Iorque.
Patti	 e	 Gil	 Sokoloff	 andavam	 pelos	 trinta	 e	 muitos	 anos	 na	 altura.	 Não
podiam	 ter	 filhos,	 e	 o	 trabalho	 de	 Gil	 na	 área	 do	 Direito	 incluía	 há	 muito
tempo,	 em	 regime	 de	 voluntariado,	 a	 defesa	 de	 crianças	 no	 sistema	 de
acolhimento.	Ele	acreditava	na	adoção.	Portanto,	após	vários	anos	em	listas	de
espera	 por	 um	 bebé	 recém-nascido,	 os	 Sokoloff	 declararam-se	 dispostos	 a
aceitar	uma	criança	mais	velha.
Apaixonaram-se	 pelos	 braços	 gorduchos	 e	 o	 nariz	 cheio	 de	 sardas	 daquela
menina	de	dois	anos.	Acolheram-na,	deram-lhe	o	nome	Imogen	e	deixaram	o
seu	 antigo	 nome	 num	 armário	 de	 arquivo.	 Fotografavam-na	 e	 faziam-lhe
cócegas.	 Patti	 cozinhava-lhe	 macarrão	 com	 manteiga	 e	 queijo.	 Quando	 a
pequena	 Immie	 tinha	 cinco	 anos,	 os	 Sokoloff	 matricularam-na	 no	 Colégio
Greenbriar,	um	estabelecimento	de	ensino	particular	em	Manhattan.	Aí,	usava
um	uniforme	verde	e	branco	e	aprendeu	a	falar	francês.	Aos	fins	de	semana,	a
pequena	Immie	brincava	com	Legos,	fazia	bolachas	e	ia	ao	Museu	Americano
de	História	Natural,	onde	preferia	os	esqueletos	de	répteis.	Comemorava	todos
os	feriados	da	fé	judaica	e,	quando	cresceu,	teve	uma	cerimónia	não-ortodoxa
do	bat	mitzvah	nos	bosques	no	norte	do	estado	de	Nova	Iorque.
A	questão	do	bat	mitzvah	 foi	algo	complicada.	A	mãe	de	Patti	e	os	pais	de
Gil	 não	 consideravam	 Imogen	 judia,	 porque	 a	 sua	mãe	 biológica	 não	 o	 fora.
Todos	insistiam	num	processo	de	conversão	formal	que	adiaria	a	cerimónia	por
um	ano,	mas	 em	vez	disso	Patti	 abandonou	 a	 sinagoga	da	 família	 e	 aderiu	 a
uma	 comunidade	 secular	 judaica	 que	 realizava	 cerimónias	 num	 retiro	 na
montanha.
Foi	assim	que,	aos	treze	anos,	Imogen	Sokoloff	se	tornou	mais	consciente	do
seu	estatuto	de	órfã	do	que	alguma	vez	estivera	e	começou	a	ler	as	histórias	que
se	tornariam	a	pedra	basilar	da	sua	vida	interior.	Inicialmente,	voltou	aos	livros
sobre	 órfãos	 que	 tinha	 sido	 obrigada	 a	 ler	 na	 escola.	 Havia	 uma	 grande
quantidade	 desses.	 «Gostava	 das	 roupas	 e	 das	 sobremesas	 edas	 carruagens
puxadas	a	cavalos»	contou	Immie	a	Jule.
Em	 junho	 passado,	 as	 duas	 tinham	 estado	 a	 viver	 numa	 casa	 que	 Immie
arrendara	na	ilha	de	Martha’s	Vineyard.	Nesse	dia,	foram	de	carro	a	uma	quinta
onde	se	podia	colher	flores.
–	Gostava	da	Heidi	 e	Deus	 sabe	de	que	outras	 tretas	–	disse	 Immie	a	 Jule.
Estava	debruçada	sobre	um	arbusto	de	dálias	com	uma	tesoura	na	mão.	–	No
entanto,	 mais	 tarde,	 todos	 esses	 livros	 me	 davam	 vontade	 de	 vomitar.	 As
heroínas	 andavam	 sempre	 animadas	 como	 o	 caraças.	 Eram	 modelos	 de
feminilidade	abnegada.	Tipo,	«Estou	a	morrer	à	fome!	Aqui	tens,	come	o	único
pãozinho	 que	 me	 resta!»	 «Não	 consigo	 andar,	 estou	 paralisada,	 mas	 mesmo
assim	sou	capaz	ver	o	lado	bom	da	vida,	feliz	feliz!»	Aqueles	livros,	tipo,	Uma
Princesinha	 e	 Poliana,	 deixa	 que	 te	 diga,	 estão	 a	 vender-te	 uma	 data	 de
mentiras	horrendas.	Quando	me	apercebi	disso,	deixei	de	gostar	deles.
Tendo	 acabado	 de	 compor	 o	 seu	 ramo,	 Immie	 içou-se	 e	 empoleirou-se	 na
vedação	de	madeira.	Jule	ainda	continuava	a	colher	flores.
–	Na	secundária,	 li	Jane	Eyre,	A	Feira	das	Vaidades,	Grandes	Esperanças,
etc.	–	continuou	Immie.	–	São,	tipo,	os	órfãos	mais	arrojados.
–	Os	livros	que	me	deste	–	disse	Jule,	tomando	consciência	desse	facto.
–	 Sim.	Tipo,	 em	A	Feira	 das	Vaidades,	 a	Becky	Sharp	 é	 uma	máquina	 de
ambição.	Nada	a	faz	parar.	A	Jane	Eyre	faz	birras,	atira-se	para	o	chão.	O	Pip,
em	 Grandes	 Esperanças,	 está	 iludido	 e	 quer	 imenso	 ter	 dinheiro.	 Todos
desejam	 uma	 vida	 melhor	 e	 tentam	 consegui-la,	 e	 todos	 são	 moralmente
duvidosos.	Isso	torna-os	interessantes.
–	Já	gosto	deles	–	disse	Jule.
*
Imogen	tinha	entrado	para	a	universidade,	Vassar	College,	em	grande	medida
por	causa	do	ensaio	que	escrevera	sobre	essas	personagens.	Não	sentia	grande
predileção	pelos	estudos	para	além	disso,	admitia.	Não	gostava	que	as	pessoas
lhe	dissessem	o	que	 fazer.	Quando	os	professores	 a	mandaram	 ler	os	 autores
gregos	da	Antiguidade,	não	o	 fez.	Quando	a	 sua	amiga	Brooke	 lhe	disse	que
lesse	Suzanne	Collins,	também	não	o	fez.	E	quando	a	sua	mãe	lhe	disse	que	se
esforçasse	mais	nos	estudos,	Immie	desistiu	de	estudar.
É	 claro	 que	 a	 pressão	 não	 fora	 a	 única	 razão	 para	 Immie	 deixar	Vassar.	A
situação	 era	 desesperadamente	 complicada.	 Mas	 a	 natureza	 controladora	 de
Patti	Sokoloff	foi	decididamente	um	dos	fatores.
–	A	minha	mãe	acredita	no	sonho	americano	–	disse	Imogen.	–	E	quer	que	eu
também	 acredite	 nele.	 Os	 pais	 dela	 nasceram	 na	 Bielorrússia.	 Compraram	 o
pacote	 todo	 sem	 hesitações.	 Sabes,	 aquela	 ideia	 de	 que	 aqui	 nos	 US	 of	 A
qualquer	 pessoa	 pode	 chegar	 ao	 topo.	 Não	 importa	 de	 onde	 partes,	 um	 dia
podes	governar	o	país,	ficar	rico,	ter	uma	mansão.	Correto?
Esta	conversa	aconteceu	um	pouco	mais	tarde	durante	o	verão	em	Martha’s
Vineyard.	 Jule	 e	 Immie	 estavam	 em	Moshup	 Beach,	 na	 praia.	 Tinham	 uma
grande	manta	de	algodão	estendida	por	baixo	delas.
–	É	um	sonho	bonito	–	disse	Jule,	metendo	uma	batata	frita	na	boca.
–	A	família	do	meu	pai	também	foi	nele	–	prosseguiu	Imogen.	–	Os	avós	dele
vieram	da	Polónia	e	viviam	num	apartamento	modesto.	Depois,	o	pai	dele	saiu-
se	bem	na	vida	e	era	proprietário	de	uma	charcutaria.	Era	suposto	que	o	meu
pai	 subisse	 ainda	 mais	 na	 vida,	 fosse	 o	 primeiro	 na	 família	 a	 andar	 na
universidade,	 portanto	 foi	 exatamente	 o	 que	 ele	 fez.	 Tornou-se,	 tipo,	 um
advogado	 importante.	 Os	 pais	 dele	 ficaram	 muito	 orgulhosos.	 Parecia-lhes
simples:	 deixar	 o	 velho	 país	 para	 trás	 e	 reinventar	 a	 tua	 vida.	 E	 se	 tu	 não
conseguisses	concretizar	totalmente	o	sonho	americano,	os	teus	filhos	fá-lo-iam
por	ti.
Jule	 adorava	 ouvir	 Immie	 falar.	Nunca	 conhecera	 ninguém	 que	 falasse	 tão
livremente.	 Divagava	 bastante,	mas	 falava	 sempre	 com	 curiosidade	 e	 de	 um
modo	 refletido.	 Não	 parecia	 censurar-se	 ou	 ensaiar	 as	 suas	 frases.
Simplesmente	 falava,	 num	 fluxo	 que	 a	 fazia	 parecer	 alternadamente
questionadora	e	desesperada	por	ser	ouvida.
–	Terra	de	oportunidades	–	disse	Jule	agora,	só	para	ver	em	que	direção	iria
Immie.
–	 É	 no	 que	 eles	 acreditam,	 mas	 não	 penso	 que	 seja	 realmente	 verdade	 –
respondeu	Immie.	–	Tipo,	podes	concluir,	ao	fim	de	meia	hora	a	ver	as	notícias,
que	 há	 mais	 oportunidades	 para	 pessoas	 brancas.	 E	 para	 pessoas	 que	 falam
inglês.
–	E	para	pessoas	com	o	teu	tipo	de	pronúncia.
–	Da	Costa	Leste?	–	disse	Immie.	–	Sim,	suponho	que	sim.	E	para	pessoas
sem	 incapacidades.	 Oh,	 e	 para	 os	 homens.	 Homens,	 homens,	 homens!	 Os
homens	 continuam	 a	 comportar-se	 como	 se	 os	US	 of	 A	 fossem	 uma	 grande
pastelaria	e	os	bolos	todos	fossem	para	eles.	Não	achas?
–	Não	vou	deixar	que	fiquem	com	o	meu	bolo	–	disse	Jule.	–	A	porra	do	bolo
é	meu	e	vou	comê-lo.
–	Sim.	Defende	o	teu	bolo	–	disse	Immie.	–	E	arranja	bolo	de	chocolate	com
cobertura	 de	 chocolate	 e,	 tipo,	 cinco	 camadas.	Mas,	 para	mim,	 a	 questão	 é...
podes	 chamar-me	 estúpida,	 mas	 não	 quero	 bolo.	 Talvez	 nem	 sequer	 tenha
fome.	 Só	 estou	 a	 tentar	 ser.	 Existir	 e	 desfrutar	 do	 que	 está	mesmo	 à	minha
frente.	 Sei	 que	 é	 um	 luxo	 e	 que	 talvez	 seja	 uma	 parvalhona	 por	 me	 poder
sequer	dar	a	esse	luxo,	mas	também	penso	que	estou	a	tentar	apreciá-lo,	minha
gente!	Deixem-me	só	sentir-me	grata	por	me	encontrar	aqui	nesta	praia	e	não
sentir	que	devia	estar	a	esforçar-me	todo	o	tempo.
–	Penso	que	estás	enganada	quanto	ao	sonho	americano	–	disse	Jule.
–	Não,	não	estou.	Porquê?
–	O	sonho	americano	é	ser	um	herói	de	ação.
–	A	sério?
–	Os	americanos	gostam	de	 travar	guerras	–	disse	Jule.	–	Queremos	mudar
leis	ou	quebrá-las.	Gostamos	de	justiceiros.	Somos	loucos	por	eles,	correto?	Os
super-heróis	e	os	 filmes	da	série	Taken	 e	coisas	do	género.	Temos	 tudo	a	ver
com	a	corrida	ao	Oeste	para	nos	apoderarmos	de	terras	que	pertenciam	a	outro
povo.	 Chacinar	 os	 alegados	 mauzões	 e	 combater	 o	 sistema.	 Esse	 é	 que	 é	 o
sonho	americano.
–	Diz	isso	à	minha	mãe	–	disse	Immie.	–	Diz-lhe:	Olá!	Quando	for	grande,	a
Immie	quer	ser	uma	justiceira	em	vez	de	capitã	da	indústria.	A	ver	como	corre.
–	Eu	tenho	uma	conversa	com	ela.
–	Ótimo.	Isso	vai	resolver	tudo.	–	Immie	soltou	uma	risadinha	e	virou-se	na
manta	 da	 praia.	Tirou	os	 óculos	 de	 sol.	 –	Ela	 tem	 ideias	 sobre	mim	que	não
encaixam.	Tipo,	quando	eu	era	pequena,	teria	sido	muito	importante	para	mim
ter	um	par	de	amigos	que	também	tivessem	sido	adotados,	para	não	me	sentir
só	ou	diferente	ou	o	que	fosse,	mas	nessa	altura	ela	só	dizia:	A	Immie	está	bem,
não	precisa	 disso,	 nós	 somos	 tal	 e	 qual	 como	outras	 famílias!	 Depois,	 daí	 a
quinhentos	anos,	quando	eu	andava	no	décimo	ano,	leu	um	artigo	numa	revista
sobre	 crianças	 adotadas	 e	 decidiu	 que	 eu	 tinha	 de	 fazer	 amizade	 com	 uma
rapariga,	a	Jolie,	que	tinha	acabado	de	entrar	para	o	Greenbriar.
Jule	 lembrava-se.	A	 rapariga	 da	 festa	 de	 aniversário	 e	 do	American	Ballet
Theatre.
–	A	minha	mãe	 tinha	a	 fantasia	de	nós	 as	duas	criarmos	 laços,	 e	 eu	 tentei,
mas	aquela	rapariga	não	gostava	mesmo	nada	de	mim	–	prosseguiu	Immie.	–
Tinha	 cabelo	 azul.	 Tipo,	 «sou	 muito	 mais	 fixe	 do	 que	 tu».	 Gozava-me	 por
causa	daquela	minha	coisa	dos	gatos	vadios	e	por	ler	a	Heidi,	e	fazia	pouco	da
música	de	que	eu	gostava.	Mas	a	minha	mãe	andava	sempre	a	telefonar	à	mãe
dela	 e	a	mãe	dela	andava	sempre	a	 telefonar	à	minha,	a	 fazerem	planos	para
nós	 as	 duas.	 Imaginavam	 toda	 uma	 ligação	 de	 filhas	 adotivas	 entre	 nós	 que
nunca	existiu	 .	–	 Imogen	suspirou.	–	Era	simplesmente	 triste.	Mas	depois	ela
mudou-se	para	Chicago	e	a	minha	mãe	desistiu.
–	Agora	tens-me	a	mim	–	disse	Jule.
Immie	estendeu	o	braço	para	tocar	na	nuca	de	Jule.	–	Agora	tenho-te	a	ti,	o
que	me	torna	significativamente	menos	desequilibrada	mental.
–	Menos	desequilibrada	mental	é	bom.
Immie	abriu	a	mala	térmica	e	encontrou	duas	garrafas	de	chá	gelado	caseiro.
Metia	 sempre	 na	mala	 bebidaspara	 a	 praia.	 Jule	 não	 gostava	 das	 rodelas	 de
limão	que	flutuavam	no	chá,	mas	bebeu	um	pouco,	de	qualquer	maneira.
–	 Ficas	 bonita	 com	 o	 cabelo	 curto	 –	 disse	 Immie,	 tocando	 de	 novo	 no
pescoço	de	Jule.
*
Nas	férias	de	inverno	no	primeiro	ano	em	Vassar,	Imogen	tinha	vasculhado	o
armário	de	arquivo	de	Gil	Sokoloff	à	procura	dos	seus	papéis	de	adoção.	Não
foram	difíceis	de	encontrar.
–	Suponho	que	pensei	que	 ler	o	 registo	me	daria	alguma	revelação	sobre	a
minha	 identidade	 –	 disse.	 –	 Como	 se	 ficar	 a	 saber	 nomes	 pudesse	 explicar
porque	 me	 sentia	 tão	 infeliz	 na	 faculdade	 ou	 fazer-me	 sentir	 enraizada	 de
alguma	maneira	como	nunca	me	sentira.	Mas	não.
Nesse	dia,	Immie	e	Jule	tinham	ido	de	carro	a	Menemsha,	uma	vila	piscatória
não	muito	distante	da	casa	de	Immie	em	Vineyard.	Percorreram	um	molhe	de
pedra	que	avançava	pelo	mar	dentro.	Andavam	gaivotas	à	volta	lá	em	cima.	As
ondas	vinham	rebentar	aos	pés	delas.	 Immie	e	 Jule	eram	da	mesma	altura,	e,
sentadas	 nos	 rochedos,	 as	 suas	 pernas	 esticadas	 estavam	morenas,	 brilhantes
com	o	protetor	solar.
–	É,	foi	uma	perda	total	de	tempo	–	disse	Imogen.	–	Não	aparecia	o	nome	do
pai.
–	Que	nome	te	deram	à	nascença?
Immie	 corou	 e	 puxou	 o	 capuz	 a	 tapar	 o	 rosto	 por	 um	 momento.	 Tinha
covinhas	fundas	nas	 faces	e	dentes	muito	certos.	O	seu	cabelo	 louro	com	um
corte	à	rapazinho	deixava	ver	umas	orelhas	minúsculas,	numa	das	quais	tinha
três	piercings.	As	suas	sobrancelhas	estavam	depiladas	numa	linha	fina.
–	Não	quero	dizer	–	disse	a	Jule	por	trás	do	tecido.	–	Estou	a	esconder-me	no
meu	capuz	agora.
–	Vá	lá.	Tu	é	que	começaste	a	contar	a	história.
–	Não	te	podes	rir	se	eu	te	disser.	–	Immie	ergueu	o	capuz	e	olhou	para	Jule.
–	O	Forrest	riu-se	e	eu	fiquei	furiosa.	Não	lhe	perdoei	durante	dois	dias,	até	ele
me	trazer	chocolates	com	recheio	de	creme	de	limão.	–	Forrest	era	o	namorado
de	Immie.	Vivia	com	elas	na	casa	em	Martha’s	Vineyard.
–	O	Forrest	podia	aprender	a	ter	maneiras	–	disse	Jule.
–	 Não	 pensou.	 A	 gargalhada	 saiu-lhe	 sem	 querer.	 A	 seguir,	 ficou
superarrependido.	–	Immie	defendia	sempre	Forrest	depois	de	o	criticar.
–	Por	favor	diz-me	o	nome	que	te	deram	à	nascença	–	pediu	Jule.	–	Não	me
rio.
–	Prometes?
–	Prometo.
Immie	 segredou	 ao	 ouvido	 de	 Jule:	 –	Melody,	 e	 o	 apelido	Bacon.	Melody
Bacon.
–	Deram-te	um	segundo	nome	próprio?	–	perguntou	Jule.
–	Não.
Jule	não	se	riu,	nem	sequer	sorriu.	Pôs	os	braços	à	volta	do	corpo	de	Immie.
Olharam	para	o	mar.
–	Sentes-te	como	uma	Melody?
–	Não.	 –	 Immie	 estava	 pensativa.	 –	Mas	 também	não	me	 sinto	 como	uma
Imogen.
Olharam	para	um	par	de	gaivotas	que	tinha	acabado	de	aterrar	num	rochedo
perto	delas.
–	De	que	morreu	 a	 tua	mãe?	–	perguntou	 Jule	 por	 fim.	 –	Essa	 informação
constava	do	registo?
–	Adivinhei	o	quadro	geral	antes	de	ler,	mas	sim.	Morreu	de	uma	overdose	de
metanfetaminas.
Jule	 apreendeu	 aquela	 informação.	 Imaginou	 a	 sua	 amiga	 como	 bebé,	 de
fralda	molhada,	a	gatinhar	sobre	roupas	de	cama	sujas,	com	a	sua	mãe	deitada
por	baixo	delas,	drogada	e	negligente.	Ou	morta.
–	 Tenho	 duas	 marcas	 na	 parte	 de	 cima	 do	 braço	 direito	 –	 disse	 Immie.	 –
Tinha-as	quando	vim	viver	para	Nova	 Iorque.	Tanto	quanto	 sabia,	 sempre	 as
tinha	tido.	Nunca	me	ocorreu	perguntar,	mas	a	enfermeira	em	Vassar	disse-me
que	eram	queimaduras.	Tipo,	de	um	cigarro.
Jule	não	sabia	o	que	dizer.	Queria	resolver	as	coisas	à	bebé	Immie,	mas	Patti
e	Gil	Sokoloff	já	o	tinham	feito,	há	muito	tempo.
–	Os	meus	pais	também	já	morreram	–	disse	por	fim.	Era	a	primeira	vez	que
o	dizia	em	voz	alta,	embora	Immie	já	soubesse	que	ela	 tinha	sido	criada	pela
tia.
–	Foi	o	que	supus	–	disse	Immie.	–	Mas	também	supus	que	não	querias	falar
sobre	isso.
–	Não	quero	–	disse	 Jule.	–	Ainda	não,	de	qualquer	maneira.	–	 Inclinou-se
para	a	frente,	a	separar-se	de	Imogen.	–	Ainda	não	sei	que	história	contar	sobre
isso.	Não...	 –	Faltavam-lhe	 as	 palavras.	Não	 conseguia	 divagar	 como	 Immie,
analisar-se.	–	A	história	recusa-se	a	tomar	forma.
Era	verdade.	Nessa	 altura,	 Jule	 só	 começara	 ainda	 a	 construir	 a	história	da
sua	origem	em	que	mais	 tarde	se	apoiaria,	e	não	podia,	não	podia	dizer	mais
nada.
–	Tudo	bem	–	disse	Imogen.
Meteu	 a	mão	 na	mochila	 e	 tirou	 uma	 tablete	 grossa	 de	 chocolate	 de	 leite.
Desembrulhou-a	até	meio	e	quebrou	um	pedaço	para	Jule	e	um	pedaço	para	si
mesma.	Jule	recostou-se	contra	o	rochedo	e	deixou	o	chocolate	derreter	na	sua
boca	 e	 o	 sol	 aquecer-lhe	 o	 rosto.	 Immie	 enxotou	 as	 gaivotas	 pedinchonas,
ralhando-lhes.
Jule	sentia	que	conhecia	completamente	Imogen.	Tudo	estava	compreendido
entre	elas,	e	sempre	estaria.
Agora,	no	albergue	da	 juventude,	Jule	pousou	O	Amigo	Comum.	Havia	um
corpo	no	Tamisa,	perto	do	 início	da	história.	Não	 lhe	agradava	 ler	aquilo	–	a
descrição	de	um	corpo	morto	 saturado	de	 água.	Os	dias	de	 Jule	 eram	 longos
agora,	 desde	que	 fora	 divulgada	 a	 notícia	 de	que	 Imogen	Sokoloff	 se	matara
nesse	 mesmo	 rio,	 metendo	 pedras	 nos	 bolsos	 e	 saltando	 da	 ponte	 de
Westminster,	deixando	uma	mensagem	de	suicídio	na	sua	caixa	do	pão.
Jule	pensava	em	Immie	todos	os	dias.	A	todas	as	horas.	Recordava	a	maneira
como	 Immie	 tapava	 o	 rosto	 com	 as	mãos	 ou	 com	 o	 capuz	 quando	 se	 sentia
vulnerável.	O	som	agudo	da	sua	voz.	Imogen	rodava	os	anéis	nos	dedos.	Tinha
aquelas	duas	queimaduras	de	cigarro	na	parte	superior	do	braço	e	uma	cicatriz
numa	das	mãos,	de	um	tabuleiro	quente	de	brownies	de	queijo-creme.	Cortava
cebolas	depressa	e	com	força	com	uma	faca	pesada	e	demasiado	grande,	algo
que	aprendera	a	fazer	num	vídeo	de	culinária.	Cheirava	a	jasmim	e	por	vezes	a
café	 com	 leite	 e	 açúcar.	 Havia	 um	 spray	 com	 cheiro	 a	 limão	 que	 punha	 no
cabelo.
Imogen	 Sokoloff	 era	 o	 tipo	 de	 rapariga	 que	 os	 professores	 achavam	 que
nunca	 explorava	 o	 seu	 pleno	 potencial.	 O	 tipo	 de	 rapariga	 que	 desistia	 de
estudar	 e,	 no	 entanto,	 enchia	 os	 seus	 livros	 favoritos	 com	 Post-its.	 Immie
recusava-se	 a	visar	 a	grandeza	ou	 a	 esforçar-se	no	 sentido	de	 corresponder	 à
definição	 de	 sucesso	 de	 outras	 pessoas.	Debatia-se	 para	 se	 soltar	 de	 homens
que	 queriam	 dominá-la	 e	 de	mulheres	 que	 queriam	 a	 sua	 atenção	 exclusiva.
Recusava-se,	 uma	 e	 outra	 vez,	 a	 dar	 a	 sua	 devoção	 a	 uma	 única	 pessoa,
preferindo	 criar	 um	 lar	 para	 si	mesma,	 que	 definia	 segundo	 os	 seus	 próprios
termos	e	do	qual	era	senhora	e	dona.	Aceitara	o	dinheiro	dos	pais,	mas	não	o
controlo	da	sua	identidade	por	eles,	e	aproveitara	a	sua	sorte	para	se	reinventar,
para	encontrar	uma	maneira	diferente	de	viver.	Era	uma	espécie	particular	de
coragem,	 uma	 coragem	 que	 frequentemente	 era	 confundida	 com	 egoísmo	 ou
preguiça.	Era	o	tipo	de	rapariga	que,	poderia	pensar-se,	não	era	nada	mais	do
que	uma	loura	de	colégio	particular,	mas	seria	um	grande	engano	não	ir	mais
fundo	do	que	isso.
*
Hoje,	quando	o	albergue	de	juventude	acordou	e	os	hóspedes	começavam	a
cambalear	até	à	casa	de	banho,	Jule	saiu.	Passou	o	dia	como	era	frequente,	em
atividades	 de	 autoaperfeiçoamento.	 Percorreu	 as	 salas	 do	 Museu	 Britânico
durante	um	par	de	horas,	aprendendo	os	títulos	de	quadros	e	bebendo	uma	série
de	Coca-Colas	de	dieta	em	pequenas	garrafas.	Esteve	uma	hora	numa	livraria	e
decorou	um	mapa	do	México,	a	seguir	aprendeu	de	cor	um	capítulo	de	um	livro
chamado	Gestão	da	Riqueza:	Oito	Princípios	Básicos.
Queria	telefonar	a	Paolo,	mas	não	podia.
Não	atenderia	nenhum	telefonema	a	não	ser	aquele	de	que	estava	à	espera.
O	telemóvel	tocou	quando	Jule	estava	a	sair	do	metro	perto	do	albergue.	Era
Patti	Sokoloff.	Jule	viu	o	número	e	usou	a	sua	pronúncia	americana	genérica.
Patti	encontrava-se	em	Londres,	ficou	a	saber.
Jule	não	estava	à	espera	disso.
Jule	poderia	encontrar-se	com	ela	para	almoçar	no	restaurante	The	Ivy	no	dia
seguinte?
É	claro	que	sim.	Jule	disse	que	se	sentia	muito	surpreendida	com	o	contacto
de	 Patti.	 Tinham	 conversado	 uma	 série	 devezes	 logo	 a	 seguir	 à	 morte	 de
Immie,	quando	Jule	falara	com	agentes	da	polícia	e	enviara	vários	objetos	itens
do	apartamento	de	Immie	em	Londres	enquanto	Patti	cuidava	de	Gill	em	Nova
Iorque,	mas	 todas	aquelas	conversas	difíceis	 tinham	terminado	havia	algumas
semanas.
Normalmente,	Patti	tinha	uns	modos	despachados	e	tagarelas,	mas	hoje	soava
em	baixo	e	a	sua	voz	não	aparentava	a	animação	usual.	–	Tenho	de	te	informar
–	disse	–	que	perdi	o	Gil.
Aquilo	 foi	 um	 choque.	 Jule	 pensou	 no	 rosto	 inchado	 e	 macilento	 de	 Gil
Sokoloff	e	nos	cãezinhos	engraçados	que	ele	adorava.	Gostava	muito	dele.	Não
sabia	que	tinha	morrido.
Patti	explicou	que	Gil	morrera	duas	semanas	antes,	de	um	ataque	de	coração.
Todos	 aqueles	 anos	 de	 diálise,	 e	 fora	 o	 coração	 a	 matá-lo.	 Ou	 talvez,	 disse
Patti,	por	causa	do	suicídio	de	Immie,	não	quisera	continuar	a	viver.
Falaram	sobre	a	doença	de	Gil	por	mais	algum	tempo	e	sobre	como	ele	fora
uma	 pessoa	maravilhosa	 e	 sobre	 Immie.	 Patti	 disse	 que	 Jule	 tinha	 sido	 uma
grande	ajuda	a	 tratar	das	 coisas	 em	Londres	quando	os	Sokoloff	não	podiam
ausentar-se	de	Nova	Iorque.
–	Sei	que	parece	estranho	eu	estar	a	viajar	–	disse	Patti	–,	mas	depois	destes
anos	todos	a	olhar	pelo	Gil,	não	consigo	suportar	o	apartamento	sozinha.	Está
cheio	das	coisas	dele,	das	coisas	da	Immie.	Eu	ia...	–	Interrompeu-se,	e	quando
recomeçou	 a	 falar	 foi	 num	 tom	 de	 voz	 com	 uma	 animação	 forçada.	 –	 Seja
como	for,	a	minha	amiga	Rebecca	vive	em	Hampshire	e	ofereceu-me	a	casinha
para	 os	 convidados	 que	 tem	 na	 propriedade	 para	 eu	 descansar	 e	 recuperar.
Disse-me	que	tinha	de	vir.	Alguns	amigos	são	mesmo	assim.	Já	não	falava	com
a	 Rebecca	 há	 séculos,	 mas,	 mal	 me	 telefonou,	 depois	 de	 ouvir	 a	 notícia	 da
Immie	e	do	Gil,	 retomámos	a	amizade	 imediatamente.	Nada	de	conversas	de
circunstância.	Só	 franqueza	e	 sinceridade.	Andámos	 juntas	no	Greenbriar.	As
amigas	 dos	 tempos	 da	 escola	 têm	 recordações,	 histórias	 partilhadas	 que	 as
ligam,	 penso.	 Olha	 para	 ti	 e	 a	 Immie.	 Retomaram	 tão	 maravilhosamente	 a
vossa	amizade	depois	de	estarem	longe	uma	da	outra.
–	Lamento	muito,	muito	sobre	o	Gil	–	disse	Jule.	Estava	a	ser	completamente
sincera.
–	Ele	 já	 estava	doente	 há	uma	 eternidade.	Tantos	 comprimidos.	 –	Patti	 fez
uma	pausa	e	quando	voltou	a	falar	soava	sufocada.	–	Penso	que,	depois	do	que
aconteceu	 à	 Immie,	 já	 não	 lhe	 restavam	 forças	 no	 corpo	 para	 lutar.	 Ele	 e	 a
Immie	 eram	as	minhas	batatinhas	doces.	 –	A	 seguir,	 forçou	de	novo	 a	 voz	 a
assumir	uma	vivacidade	despachada.	–	Ora	bem,	voltando	à	 razão	para	 te	 ter
telefonado.	Vens	almoçar	comigo,	certo?
–	Já	disse	que	ia.	Claro.
–	No	The	Ivy,	amanhã,	à	uma	hora.	Quero	agradecer-te	por	tudo	o	que	fizeste
por	mim,	e	pelo	Gil,	depois	de	a	Immie	morrer.	E	até	tenho	uma	surpresa	para
ti	–	disse	Patti.	–	Algo	que	talvez	possa	até	animar-nos	às	duas.	Portanto,	não
chegues	tarde.
Depois	de	a	conversa	terminar,	Jule	manteve	o	telemóvel	encostado	ao	peito
durante	algum	tempo.
O	restaurante	The	Ivy	ocupava	na	perfeição	o	seu	canto	estreito	de	Londres.
Parecia	feito	à	medida	para	o	terreno	em	que	se	encontrava	implantado.	Dentro,
as	paredes	estavam	forradas	com	retratos	e	vitrais.	Cheirava	a	dinheiro:	borrego
assado	e	flores	de	estufa.	Jule	trazia	um	vestido	justo	e	sabrinas.	Acrescentara
batom	vermelho	à	sua	maquilhagem	de	jovem	universitária.
Foi	dar	com	Patti	à	sua	espera	a	uma	mesa,	a	beber	água	por	um	copo	para	o
vinho.	Na	última	vez	que	Jule	a	vira,	onze	meses	antes,	a	mãe	de	 Immie	era
uma	senhora	cheia	de	brilho.	Era	dermatologista,	andava	pelos	cinquenta	e	tal	e
era	magra,	embora	tivesse	uma	barriguinha.	A	sua	pele	na	altura	aparentava	um
brilho	 húmido	 rosado	 e	 usava	 o	 cabelo	 comprido,	 pintado	 de	 um	 castanho-
escuro	e	penteado	em	caracóis	soltos.	Agora,	 tinha	as	 raízes	brancas	e	estava
cortado	à	pagem.	Vestia,	à	moda	das	senhoras	do	Upper	East	Side,	calças	pretas
justas	 e	um	casaco	de	malha	de	 caxemira	 comprido	–	mas,	 em	vez	de	 saltos
altos,	trazia	um	par	de	ténis	de	um	azul	vivo.	Jule	quase	não	a	reconheceu.	Patti
levantou-se	e	sorriu	quando	viu	Jule	atravessar	a	sala.
–	Estou	com	um	aspeto	diferente,	eu	sei.
–	Não,	não	está	–	mentiu	Jule.	Beijou	Patti	na	face.
–	 Já	 não	 consigo	 fazer	 aquilo	 tudo	 –	 disse	 Patti.	 –	Aquele	 tempo	 todo	 em
frente	ao	espelho	de	manhã,	os	sapatos	desconfortáveis.	Maquilhar-me.
Jule	sentou-se.
–	Costumava	maquilhar-me	para	o	Gil	–	prosseguiu	Patti.	–	E	para	a	Immie,
quando	ela	era	pequena.	Ela	dizia-me:	«Mamã,	faz	caracóis!	Vai	pôr	brilhos	na
cara!»	Agora	não	há	razão	para	isso.	Deixei	de	trabalhar	por	uns	tempos.	Um
dia,	 pensei:	Não	 tenho	 de	 me	 incomodar	 com	 isso	 tudo.	 Saí	 porta	 fora	 sem
fazer	nada	e	 foi	um	tal	alívio,	nem	consigo	explicar.	Mas	sei	que	perturba	as
pessoas.	Os	meus	amigos	preocupam-se.	Mas	eu	penso...	eh...	Perdi	a	Imogen.
Perdi	o	Gil.	Esta	sou	eu	agora.
Jule	estava	ansiosa	por	dizer	a	coisa	certa,	mas	não	sabia	se	o	requerido	era
compreensão	ou	distração.	–	Li	um	livro	sobre	isso	na	faculdade	–	disse.
–	Sobre	o	quê?
–	A	apresentação	do	eu	na	vida	do	dia	a	dia.	Um	tal	Goffman	teve	a	ideia	de
que,	em	situações	diferentes,	a	pessoa	tem	um	desempenho	diferente	do	seu	eu.
A	nossa	personalidade	não	é	estática.	É	uma	adaptação.
–	Parei	de	desempenhar	o	meu	eu,	queres	dizer?
–	Ou	está	a	fazer	isso	de	outra	maneira	agora.	Há	diferentes	versões	do	eu.
Patti	pegou	na	ementa	e	depois	estendeu	o	braço	e	tocou	na	mão	de	Jule.	–
Tens	de	voltar	para	a	faculdade,	batatinha	doce.	És	tão	esperta.
–	Obrigada.
Patti	 olhou	 Jule	 nos	 olhos.	 –	 Sou	 muito	 intuitiva	 em	 relação	 às	 pessoas,
sabes?	–	disse.	–	E	tu	tens	tanto	potencial.	És	ambiciosa	e	aventureira.	Espero
que	saibas	que	podes	ser	o	que	quiseres	no	mundo.
O	empregado	aproximou-se	da	mesa	e	 tomou	nota	dos	pedidos	de	bebidas.
Outra	pessoa	pousou	um	cesto	com	pão.
–	 Trouxe-lhe	 os	 anéis	 da	 Imogen	 –	 disse	 Jule	 quando	 a	 azáfama	 parou.	 –
Devia	ter-lhos	enviado	pelo	correio,	mas...
–	Eu	compreendo	–	disse	Patti.	–	Foi	difícil	largá-los.
Jule	 assentiu	 com	 a	 cabeça.	Entregou-lhe	 uma	 embrulho	 de	 papel	 de	 seda.
Patti	descolou	a	fita-cola.	Dentro	encontravam-se	oito	anéis	antigos,	todos	com
entalhes	 ou	 em	 forma	 de	 animais.	 Immie	 colecionara-os.	 Eram	 divertidos	 e
pouco	 comuns,	 cuidadosamente	 produzidos,	 todos	 em	 estilos	 diferentes.	 Jule
ainda	usava	o	nono	anel.	Immie	oferecera-lho.	Era	uma	serpente	de	jade,	que
usava	no	anelar	da	mão	direita.
Patti	 começou	 a	 chorar	 silenciosamente,	 com	 o	 guardanapo	 encostado	 ao
rosto.
Jule	 olhou	 para	 a	 coleção.	 Cada	 um	 daqueles	 círculos	 estivera	 nos	 dedos
frágeis	 de	 Immie	 a	 dada	 altura.	 Immie	 estivera,	 bronzeada,	 naquela	 joalharia
em	Vineyard.	«Quero	ver	o	anel	mais	fora	do	comum	que	tem	à	venda»	dissera
ao	lojista.	E	mais	tarde:	«Este	é	para	ti.»	Dera	a	Jule	o	anel	da	serpente,	e	Jule
usava-o	 sempre	 agora,	 embora	 já	 não	 o	 merecesse	 e	 talvez	 nunca	 o	 tivesse
merecido.
Jule	engasgou-se,	uma	sensação	que	estava	a	vir-lhe	do	fundo	do	estômago	e
subiu	em	ondas	pela	sua	garganta.	–	Com	licença.	–	Levantou-se	e	cambaleou
na	direção	da	casa	de	banho	das	senhoras.	O	restaurante	estava	a	andar	à	roda.
Avolumou-se	um	negrume	dos	 lados	dos	 seus	olhos.	Agarrou-se	às	costas	de
uma	cadeira	vazia	para	se	segurar.
Ia	vomitar.	Ou	desmaiar.	Ou	ambas	as	coisas.	Aqui	no	restaurante	The	Ivy,
rodeada	por	estas	pessoas	imaculadas,	onde	não	merecia	estar,	embaraçando	a
pobre,	pobre	mãe	de	uma	amiga	de	quem	não	gostara	o	suficiente	ou	de	quem
gostara	demasiado.
Jule	chegou	à	casa	de	banho	e	debruçou-se	sobre	o	lavatório.
A	 sensação	 de	 engasgamento	 não	 parava.	 A	 sua	 garganta	 contraía-se
repetidamente.
Fechou-se	num	cubículo,	apoiando-se	à	parede.	Os	seus	ombros	sacudiam-se.
Tinha	arrancos	de	vómito,	mas	não	saía	nada.
Deixou-se	 ficar	 ali	 dentro	 até	 a	 sensação	 de	 engasgamento	 se	 atenuar,	 a
tremer	e	a	tentarrecuperar	o	fôlego.
De	 novo	 no	 lavatório,	 limpou	 o	 rosto	 húmido	 com	 uma	 toalha	 de	 papel.
Pressionou	os	olhos	inchados	com	as	pontas	dos	dedos	molhadas	em	água	fria.
Trazia	o	batom	vermelho	no	bolso	do	vestido.	Aplicou-o	de	novo	como	uma
armadura	e	voltou	para	junto	de	Patti.
*
Quando	Jule	regressou	à	mesa,	Patti	 já	se	tinha	recomposto	e	estava	a	falar
com	o	empregado.	–	Vou	querer	a	entrada	de	beterraba	–	disse	ao	empregado
quando	Jule	se	sentou.	–	E	depois	o	espadarte,	penso.	O	espadarte	é	bom?	Sim,
OK.
Jule	mandou	vir	um	hambúrguer	e	uma	salada	verde.
Quando	o	empregado	de	mesa	se	afastou,	Patti	pediu	desculpa.	–	Lamento.
Lamento	muito.	Estás	bem?
–	Claro	que	sim.
–	 Aviso-te,	 sou	 capaz	 de	 voltar	 a	 chorar.	 Possivelmente	 na	 rua!	 Nunca	 se
sabe,	 nos	 dias	 que	 correm.	 Sou	 capaz	 de	 começar	 a	 soluçar	 a	 qualquer
momento.	–	Os	anéis	e	o	papel	de	embrulho	já	não	estavam	em	cima	da	mesa.
–	Ouve,	Jule	–	disse	Patti.	–	Disseste-me	uma	vez	que	os	teus	pais	te	falharam.
Lembras-te?
Jule	não	se	lembrava.	Nunca	pensava	nos	pais,	a	não	ser	através	da	lente	da
origem	digna	de	um	herói	que	criara	para	si	mesma.	Nunca,	jamais	pensava	na
sua	tia.
Agora,	a	história	da	sua	origem	veio-lhe	à	mente.	Os	seus	pais	no	jardim	da
frente	de	uma	casinha	bonita	ao	fundo	de	uma	rua	sem	saída	naquela	minúscula
cidade	do	Alabama.	Estavam	deitados	de	rosto	para	baixo	em	poças	de	sangue
negro	que	 se	 infiltrava	na	 relva,	 iluminados	por	um	só	candeeiro.	A	 sua	mãe
alvejada	com	um	tiro	no	cérebro.	O	seu	pai	a	sangrar	até	à	morte	de	buracos	de
balas	nos	braços.
Achava	 aquela	 história	 reconfortante.	 Era	 linda.	 Os	 pais	 tinham	 sido
corajosos.	 Ao	 crescer,	 a	menina	 viria	 a	 tornar-se	 uma	 pessoa	 com	 estudos	 e
extremamente	poderosa.
Contudo,	 sabia	 que	 não	 era	 uma	 história	 para	 partilhar	 com	Patti.	 Em	 vez
disso,	perguntou	num	tom	ameno:	–	Eu	disse	isso?
–	 Sim,	 e	 quando	 o	 disseste	 pensei	 que	 talvez	 eu	 própria	 também	 tivesse
falhado	à	Imogen.	Eu	e	o	Gil	quase	nunca	falávamos	sobre	o	facto	de	ela	 ter
sido	 adotada	 em	 pequena.	 Nem	 em	 frente	 a	 ela	 nem	 em	 privado.	 Eu	 queria
pensar	na	Immie	como	a	minha	bebé,	sabes?	Não	de	mais	ninguém,	mas	minha
e	do	Gil.	E	era	difícil	falar	do	assunto,	porque	a	mãe	biológica	dela	tornou-se
toxicodependente	e	não	havia	outros	parentes	dispostos	a	ficarem	com	a	bebé.
Disse	a	mim	mesma	que	estava	a	protegê-la	de	sofrimento.	Não	fazia	ideia	de
como	estava	a	falhar-lhe	redondamente	até	ela...	–	Patti	parou	de	falar.
–	A	Imogen	adorava-a	–	disse	Jule.
–	Estava	desesperada	em	relação	a	alguma	coisa.	E	não	veio	ter	comigo.
–	Também	não	veio	ter	comigo.
–	 Devia	 tê-la	 criado	 de	 modo	 a	 que	 conseguisse	 abrir-se	 com	 as	 pessoas,
pedir	auxílio	se	estivesse	com	problemas.
–	 A	 Immie	 contava-me	 tudo	 –	 disse	 Jule.	 –	 Os	 seus	 segredos,	 as	 suas
inseguranças,	como	queria	viver	a	sua	vida.	Disse-me	o	nome	que	lhe	deram	à
nascença.	Usávamos	 a	 roupa	 uma	 da	 outra	 e	 líamos	 os	 livros	 uma	 da	 outra.
Sinceramente,	eu	era	muito	íntima	da	Immie	quando	ela	morreu,	e	penso	que
ela	tinha	uma	sorte	louca	por	a	ter	a	si,	Patti.
Os	 olhos	 de	 Patti	 encheram-se	 de	 lágrimas	 e	 ela	 tocou	 na	mão	 de	 Jule.	 –
Também	 tinha	 sorte	 por	 te	 ter	 a	 ti.	 Pensei-o	 quando	 começou	 a	 conviver
contigo	 no	 décimo	 ano	 em	 Greenbriar.	 Sei	 que	 te	 adorava	 mais	 do	 que	 a
qualquer	outra	pessoa	na	sua	vida,	Jule,	porque...	Bem.	Era	por	isto	que	queria
encontrar-me	contigo.	O	advogado	da	nossa	 família	disse-me	que	a	 Immie	 te
deixou	o	seu	dinheiro.
Jule	sentiu-se	estonteada.	Pousou	o	garfo.
O	dinheiro	de	Immie.	Milhões.
Era	segurança	e	poder.	Era	bilhetes	de	avião	e	chaves	de	carros,	mas,	mais
importante	 ainda,	 era	 dinheiro	 para	 propinas,	 comida	 na	 despensa,	 seguro	 de
saúde.	 Significava	 que	 ninguém	poderia	 dizer-lhe	 que	 não.	Ninguém	poderia
nunca	mais	detê-la	e	ninguém	poderia	magoá-la.	Jule	não	necessitaria	da	ajuda
de	ninguém,	nunca	mais.
–	Não	compreendo	as	questões	de	finanças	–	prosseguiu	Patti.	–	Devia,	sei
que	sim.	Mas	confiava	no	Gil	e	sentia-me	aliviada	por	ele	se	ocupar	disso	tudo.
Aborrece-me	de	morte.	Mas	a	Immie	compreendia	esses	assuntos,	e	deixou	um
testamento.	 Enviou-o	 ao	 advogado	 antes	 de	 morrer.	 Passou	 a	 ter	 muito
dinheiro,	do	pai	e	de	mim,	depois	de	fazer	dezoito	anos.	O	dinheiro	esteve	num
fundo	até	essa	altura,	e,	depois	de	ela	fazer	anos,	o	Gil	tratou	da	papelada	para
o	passar	para	o	nome	dela.
–	Ela	recebeu	o	dinheiro	quando	ainda	andava	na	secundária?
–	No	mês	de	maio,	antes	de	começar	a	faculdade.	Talvez	tenha	sido	um	erro.
De	qualquer	maneira,	está	feito	–	prosseguiu	Patti.	–	Ela	era	boa	em	questões
de	finanças.	Vivia	dos	juros	e	nunca	tocou	no	capital	a	não	ser	para	comprar	o
apartamento	 em	 Londres.	 Era	 por	 isso	 que	 não	 tinha	 de	 trabalhar.	 E	 no
testamento	 deixou-te	 tudo.	 Fez	 pequenos	 donativos	 à	 National	 Kidney
Foundation,	 por	 causa	 da	 doença	 dos	 rins	 do	 Gil,	 e	 à	 North	 Shore	 Animal
League,	 mas	 fez	 um	 testamento	 e	 deixou-te	 a	 ti	 o	 grosso	 do	 seu	 dinheiro.
Enviou	 um	 e-mail	 ao	 advogado	 em	 que	 dizia	 especificamente	 que	 queria
ajudar-te	a	voltar	a	estudar.
Jule	ficou	comovida.	Não	fazia	sentido,	mas	ficou.
Patti	sorriu.	–	Deixou	este	mundo	mandando-te	de	volta	aos	estudos.	É	o	lado
positivo	que	estou	a	tentar	ver.
–	Quando	é	que	ela	redigiu	o	testamento?
–	 Alguns	 meses	 antes	 de	 morrer.	 Fê-lo	 reconhecer	 num	 notário	 em	 São
Francisco.	Só	falta	assinar	algumas	coisas.	–	Patti	empurrou	um	envelope	sobre
a	mesa.	–	Transferem	o	dinheiro	diretamente	para	a	tua	conta	e	em	setembro	já
serás	aluna	do	segundo	ano	em	Stanford.
*
Quando	o	dinheiro	chegou	ao	 seu	banco,	 Jule	 levantou-o	 todo	e	abriu	uma
nova	conta	num	outro	banco.	Aderiu	a	vários	outros	cartões	de	crédito	e	deu
instruções	 para	 que	 as	 suas	 contas	 fossem	 pagas	 automaticamente	 todos	 os
meses.
Depois	 foi	 às	 compras.	 Comprou	 pestanas	 postiças,	 base	 de	maquilhagem,
lápis	 para	 os	 olhos,	 blush,	 pó	 de	 arroz,	 pincéis,	 três	 batons	 diferentes,	 duas
sombras	para	os	olhos	e	uma	caixa	de	maquilhagem	pequena,	mas	cara.	Uma
peruca	ruiva,	um	vestido	preto	e	um	par	de	sapatos	de	saltos	altos.	Teria	sido
agradável	comprar	mais,	mas	necessitava	de	viajar	com	pouca	bagagem.
Usou	o	seu	computador	para	comprar	um	bilhete	de	avião	para	Los	Angeles,
reservou	um	quarto	num	hotel	nessa	cidade	e	pesquisou	stands	de	automóveis
usados	 na	 zona	 de	 Las	 Vegas.	 De	 Londres	 para	 Los	 Angeles,	 depois	 de
autocarro	 de	 Los	 Angeles	 para	 Las	 Vegas.	 De	 Las	 Vegas	 de	 carro	 até	 ao
México.	Esse	era	o	plano.
Jule	passou	em	revista	os	documentos	no	seu	portátil.	Assegurou-se	de	que
sabia	de	cor	todos	os	números	bancários	e	números	de	atendimento	ao	cliente,
todas	 as	 palavras-passe,	 todos	 os	 números	 dos	 cartões	 de	 crédito	 e	 códigos.
Memorizou	 o	 número	 do	 passaporte	 e	 o	 da	 carta	 de	 condução.	Depois,	 uma
noite,	atirou	o	portátil	e	o	seu	telemóvel	ao	Tamisa.
*
De	regresso	ao	albergue	da	juventude,	escreveu	uma	carta	de	agradecimento
sincero	 a	 Patti	 Sokoloff	 num	 papel	 antiquado	 de	 correio	 aéreo	 e	 enviou-a.
Esvaziou	o	armário	e	fez	a	mala.	Os	seus	documentos	de	identificação	e	outra
papelada	 estavam	 devidamente	 organizados.	 Assegurou-se	 de	 que	 transferia
todas	 as	 suas	 loções	 e	 produtos	 para	 o	 cabelo	 para	 frascos	 de	 tamanho	 de
viagem	em	sacos	de	plástico	com	fecho	hermético.
Jule	 nunca	 estivera	 em	 Las	 Vegas.	Mudou	 de	 roupa	 na	 casa	 de	 banho	 da
estação	 de	 autocarros.	 Na	 zona	 dos	 lavatórios,	 encontrava-se	 uma	 mulher
branca	 dos	 seus	 cinquenta	 e	 tal	 anos	 com	 um	 trólei	 das	 compras.	 Estava
sentada	 na	 bancada,	 a	 comer	 um	 sanduíche	 embrulhada	 em	 papel	 branco
lustroso.	Usava	umas	leggings	pretas	sujas	e	tinha	coxas	finas.	Tufara	o	cabelo,
que	era	grisalho	e	 louro.	E	estava	todo	cheio	de	riças	e	sujo.	Os	seus	sapatos
encontravam-se	no	chão–	uns	sapatos	de	 tacão	alto	e	muito	 fino,	de	plástico
cor-de-rosa	 claro.	 Os	 seus	 pés	 nus,	 com	 pensos	 rápidos	 nos	 calcanhares,
balouçavam	no	ar.
Jule	 entrou	 no	 cubículo	maior	 e	 remexeu	 na	 sua	mala.	 Pôs	 as	 argolas	 nas
orelhas	 pela	 primeira	 vez	 em	 quase	 um	 ano.	 Enfiou-se	 no	 vestido	 que	 tinha
comprado	–	curto	e	preto,	combinado	com	uns	sapatos	de	cunha	em	pele.	Tirou
da	mala	a	peruca	ruiva.	Tinha	um	brilho	pouco	natural,	mas	a	cor	ficava	bem
com	as	suas	sardas.	Jule	pegou	no	estojo	de	maquilhagem,	fechou	o	saco	e	foi
até	ao	lavatório.
A	mulher	que	estava	sentada	em	cima	da	bancada	não	comentou	a	mudança
de	cor	de	cabelo.	Amassou	o	papel	do	sanduíche	e	acendeu	um	cigarro.
O	 jeito	para	se	maquilhar	de	Jule	vinha-lhe	de	ver	 tutoriais	na	 Internet.	Na
maior	parte	do	ano	passado	usara	aquilo	em	que	pensava	como	maquilhagem
de	 jovem	 universitária:	 pele	 natural,	 blush,	 brilho	 nos	 lábios,	 rímel.	 Agora,
tirou	do	 estojo	umas	pestanas	postiças,	 uma	 sombra	verde	para	os	olhos,	 um
eyeliner	 preto,	 pincéis	 para	 contornar	o	 rosto,	 um	 lápis	 para	 as	 sobrancelhas,
batom	cor-de-rosa	coral.
Não	era	realmente	necessário.	Não	necessitava	dos	cosméticos,	do	vestido	ou
dos	 sapatos.	 Provavelmente,	 a	 peruca	 seria	 suficiente.	 De	 qualquer	 modo,	 a
transformação	era	uma	boa	prática	–	era	assim	que	a	encarava.	E	agradava-lhe
tornar-se	outra	pessoa.
A	mulher	falou	quando	Jule	estava	a	acabar	de	maquilhar	os	olhos.	–	És	uma
rapariga	da	vida?
Jule	respondeu,	só	por	piada,	com	uma	pronúncia	escocesa.	–	Não.
–	Quero	dizer,	andas	a	vender	o	corpo?
–	Não.
–	Não	te	vendas.	É	tão	triste,	vocês	raparigas.
–	Não	me	vendo.
–	É	uma	pena,	é	tudo	o	que	quero	dizer.
Jule	ficou	em	silêncio.	Aplicou	iluminador	nas	maçãs	do	rosto.
–	Eu	andei	nessa	vida	–	prosseguiu	a	mulher.	Desceu	da	bancada	e	enfiou	os
seus	 pés	 todos	 estragados	 nos	 sapatos.	 –	 Já	 sem	 família	 e	 sem	 dinheiro:	 foi
assim	 que	 comecei,	 e	 não	 é	 diferente	 agora.	Mas	 não	 dá	 para	 subir	 na	 vida,
mesmo	com	tipos	da	alta.	Devias	saber	isso.
Jule	vestiu	um	casaco	de	malha	verde	e	pegou	na	sua	mala	de	viagem.	–	Não
se	 preocupe	 comigo.	 Estou	 ótima,	 sinceramente.	 –	 Arrastando	 a	 mala,
encaminhou-se	 para	 a	 porta,	mas	 tropeçou	 ligeiramente	 com	 aqueles	 sapatos
estranhos.
–	Estás	bem?	–	perguntou	a	mulher.
–	Oh,	sim.
–	É	difícil	ser	mulher	por	vezes.
–	Pois	é,	é	uma	seca,	exceto	a	maquilhagem	–	disse	Jule.	Empurrou	a	porta	e
saiu	sem	olhar	para	trás.
Com	 a	 mala	 guardada	 num	 cacifo	 na	 estação	 de	 autocarros,	 Jule	 pôs	 ao
ombro	um	saco	de	viagem	e	apanhou	um	táxi	para	a	zona	dos	casinos	de	Las
Vegas.	Sentia-se	cansada	–	não	conseguira	dormir	na	viagem	de	autocarro	–	e
ainda	estava	a	funcionar	pela	hora	de	Londres.
O	 casino	 estava	 iluminado	 com	 néon,	 lustres	 e	 o	 brilho	 das	 máquinas	 de
jogo.	 Jule	 passou	 por	 homens	 com	 camisolas	 desportivas,	 pensionistas,
raparigas	a	divertirem-se	e	um	grupo	grande	de	bibliotecários	com	crachás	de
uma	conferência	ao	peito.	Demorou	duas	horas	a	ir	de	lugar	em	lugar,	mas	por
fim	encontrou	o	que	procurava.
Havia	 um	 grupo	 de	 mulheres	 à	 volta	 de	 uma	 série	 de	 máquinas	 de	 jogo
Batman	que	pareciam	estar	a	divertir-se	imenso.	Tinham	bebidas	geladas,	roxas
e	espessas.	Algumas	americano-asiáticas,	algumas	brancas.	Tratava-se	de	uma
festa	de	despedida	de	 solteira,	 e	a	noiva	era	perfeita,	 exatamente	do	que	 Jule
precisava.	 Era	 pálida	 e	 pequena,	 com	 ombros	 com	 um	 ar	 forte	 e	 sardas
delicadas	–	e	não	devia	 ter	mais	de	vinte	e	 três	anos.	O	seu	cabelo	castanho-
claro	estava	preso	num	rabo	de	cavalo	e	ela	usava	um	minivestido	de	um	rosa
forte	e	uma	faixa	branca	com	pedrinhas	coloridas:	FUTURA	NOIVA.	Pendia-lhe	do
ombro	esquerdo	uma	pequena	carteira	azul-turquesa	com	múltiplos	 fechos	de
correr.	Estava	debruçada	para	as	amigas	a	jogarem	nas	máquinas,	a	animá-las,	à
vontade	com	a	adoração	de	toda	a	gente	à	sua	volta.
Jule	 aproximou-se	do	grupo	e	 adotou	um	sotaque	das	 terras	baixas	do	Sul,
como	o	do	Alabama.	–	Desculpem,	alguma	de	vocês...	bem,	o	meu	telemóvel
está	sem	carga	e	tenho	de	enviar	uma	mensagem	à	minha	amiga.	Na	última	vez
que	 a	 vi	 ela	 estava	 ao	 pé	 do	 balcão	 do	 sushi,	mas	 depois	 comecei	 a	 jogar	 e
agora,	oh	não!	Passaram	três	horas	e	ela	está	desaparecida	em	combate.
As	raparigas	da	despedida	de	solteira	viraram-se.
Jule	sorriu.	–	Oh,	são	uma	despedida	de	solteira?
–	Ela	vai	casar-se	no	sábado!	–	gritou	uma	das	raparigas,	agarrando	a	noiva.
–	Hurra!	–	disse	Jule.	–	Como	te	chamas?
–	 Shanna	 –	 disse	 a	 noiva.	 Eram	 da	 mesma	 altura,	 mas	 Shanna	 estava	 de
sapatos	de	salto	raso,	portanto	Jule	parecia	um	pouco	mais	alta.
–	Shanna	Dixie,	que	em	breve	vai	ser	Shanna	McFetridge	–	gritou	uma	das
amigas.
–	Com	um	diacho	–	disse	Jule.	–	Tens	vestido?
–	É	claro	que	tenho	–	respondeu	Shanna.
–	Não	é	um	casamento	de	Las	Vegas	–	disse	uma	das	amigas.	–	Vai	ser	na
igreja.
–	De	onde	é	que	vocês	todas	são?	–	perguntou	Jule.
–	De	Tacoma.	 Fica	 em	Washington.	 Conheces?	 Só	 estamos	 em	Las	Vegas
para...
–	Elas	planearam	o	fim	de	semana	todo	para	mim	–	disse	Shanna.	–	Viemos
de	avião	hoje	de	manhã	e	fomos	ao	spa	e	arranjar	as	unhas.	Estás	a	ver?	Pus
unhas	 de	 gel.	 Depois	 viemos	 até	 ao	 casino,	 e	 amanhã	 vamos	 ver	 os	 tigres
brancos.
–	E	como	é	o	teu	vestido?	Para	o	casamento,	quero	dizer.
Shanna	 agarrou	o	 braço	de	 Jule.	 –	É	 lindo	de	morrer.	 Sinto-me	 como	uma
princesa,	é	perfeito.
–	Posso	vê-lo?	No	 teu	 telemóvel?	Deves	 ter	uma	 fotografia.	–	 Jule	 tapou	a
boca	 com	 a	 mão	 e	 baixou	 um	 pouco	 a	 cabeça.	 –	 Tenho	 um	 fraquinho	 por
vestidos	de	casamento,	sabes?	Desde	que	era	pequenininha.
–	Com	os	 diabos,	 claro	 que	 tenho	 uma	 fotografia	 –	 disse	 Shanna.	Abriu	 o
fecho	da	sua	carteira	e	tirou	um	telemóvel	com	uma	capa	dourada.	O	forro	da
bolsa	era	cor-de-rosa.	Dentro	estava	uma	carteira	em	pele	castanha-escura,	dois
tampões	no	seu	invólucro	de	plástico,	uma	embalagem	de	pastilhas	elásticas	e
um	batom.
–	 Deixa	 ver	 –	 disse	 Jule.	 Aproximou-se	 para	 olhar	 para	 o	 telemóvel	 de
Shanna.
Shanna	percorreu	as	fotografias.	Um	cão.	O	lado	de	baixo	enferrujado	de	um
lava-louça.	Um	bebé.	O	mesmo	bebé	outra	vez.	–	É	o	meu	filho,	o	Declan.	Tem
dezoito	meses.	–	Umas	árvores	junto	a	um	lago.	–	Aí	está	ele.
O	vestido	era	cai-cai	e	comprido,	com	pregas	de	tecido	à	volta	das	ancas.	Na
fotografia,	Shanna	envergava-o	numa	loja	de	vestidos	de	noiva	cheia	de	outros
vestidos	brancos.
Jule	soltou	ós	e	ás.	–	Posso	ver	o	teu	noivo?
–	Com	os	diabos,	se	podes.	Ele,	tipo,	arrasou	no	pedido	de	casamento	–	disse
Shanna.	–	Meteu	o	anel	num	dónute.	Anda	em	Direito.	Não	vou	ter	de	trabalhar
a	não	ser	que	queira.	–	Continuou.	A	falar,	a	falar.	Empunhou	o	telemóvel	para
mostrar	o	felizardo	a	sorrir	na	encosta	de	uma	montanha.
–	É	giro	como	tudo	–	disse	Jule.	Enfiou	a	mão	na	carteira	de	Shanna.	Tirou	a
carteira	do	dinheiro	e	meteu-a	no	seu	saco.	–	O	meu	namorado,	o	Paolo,	anda
de	mochila	às	costas	a	dar	a	volta	ao	mundo	–	prosseguiu.	–	Está	nas	Filipinas
neste	momento.	Dá	para	crer?	Então,	estou	em	Las	Vegas	com	a	minha	amiga.
Devia	 arranjar	 um	 tipo	 que	 queira	 assentar,	 não	 dar	 a	 volta	 ao	 mundo	 de
mochila	às	costas,	certo?	Se	quero	casar.
–	Se	é	o	que	queres	–	disse	Shanna	–	podes	decididamente	tê-lo.	Podes	ter	o
que	quiseres	se	te	focares	nisso.	Rezas	e,	tipo,	visualizas.
–	Visualização	–	disse	uma	das	damas-de-honor.	 –	Fomos	 a	um	workshop.
Resulta	mesmo.
–	Ouçam	–	disse	Jule	–,	a	razão	por	que	vim	falar	com	vocês	foi	para	ver	se
podiam	emprestar-me	um	 telemóvel.	O	meu	está	 sem	bateria.	 Importavam-se
muito?
Shanna	 passou-lhe	 o	 seu	 telemóvel	 para	 as	 mãos	 e	 Jule	 enviou	 uma
mensagem	 para	 um	 número	 ao	 acaso.	 «Encontramo-nos	 às	 10:15	 no
Cheesecake	Factory».	Devolveu	o	telemóvel	a	Shanna.	–	Obrigada.	Vais	ser	a
noiva	mais	linda.
–	Tu	também,	minha	doçura	–	disse	Shanna.	–	Um	dia	em	breve.
As	raparigas	da	despedida	de	solteira	acenaram-lhe.

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