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Ficha Técnica Título: HISTÓRIA DE UMA FRAUDE Título original: GENUINE FRAUD Autor: E. Lockart Tradução: Ana Saldanha Revisão: Carolina Matias Capa: Maria Manuel Lacerda Imagem da capa: Jonathan Knowles/Stone/Getty Images ISBN: 9789892353135 Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201 © 2017, E. Lockhart © 2022, Edições ASA II, S.A. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.asa.leya.com www.leya.pt Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990. http://www.asa.leya.com http://www.leya.pt Índice Capa Ficha Técnica 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 19 NOTA DA AUTORA AGRADECIMENTOS E. Lockhart HISTÓRIA DE UMA FRAUDE Para qualquer pessoa a quem tenha sido ensinado que «bom» significa «pequeno e silencioso», aqui está o meu coração com todos os seus feios emaranhados e a sua esplêndida fúria. E 18 Começar aqui: TERCEIRA SEMANA DE JUNHO, 2017 CABO SAN LUCAS, MÉXICO ra um hotel fabuloso como o caraças. No minibar do quarto de Jule havia batatas fritas e quatro tipos diferentes de tabletes de chocolate. A banheira era de hidromassagem. Havia um abastecimento infindável de toalhas fofas e gel de banho com perfume de gardénia. No átrio, um cavalheiro idoso tocava Gershwin num piano de cauda às quatro horas todas as tardes. Podiam fazer-se tratamentos de pele com argila quente, se não se objetasse ao toque de estranhos. A pele de Jule cheirava a cloro o dia inteiro. O resort Playa Grande em Baja tinha cortinas brancas, azulejos brancos, alcatifas brancas e explosões de luxuriantes flores brancas. Os funcionários pareciam enfermeiros, com as suas fardas de algodão branco. Jule encontrava- se sozinha no hotel há quase quatro semanas. Tinha dezoito anos. Esta manhã, estava a correr no ginásio do Playa Grande. Calçava ténis verde- mar feitos à medida, com atacadores em azul-marinho. Corria sem música. Estava a fazer intervalos há quase uma hora quando uma mulher subiu para a passadeira ao seu lado. Esta mulher tinha menos de trinta anos. O seu cabelo preto estava preso num rabo de cavalo apertado, acamado com laca. Tinha braços grandes e um tronco sólido, pele de um moreno claro e uma camada de blush em pó nas faces. Os seus ténis estavam cambados e salpicados com lama seca. Não se encontrava mais ninguém no ginásio. Jule abrandou o passo, a calcular que se iria embora daí a um minuto. Agradava-lhe ter privacidade, e, de qualquer maneira, já estava quase a acabar. – Está a treinar? – perguntou a mulher. Apontou para o registo digital de Jule. – Tipo, para uma maratona ou coisa do género? – A pronúncia era mexicano- americana. Provavelmente, era uma nova-iorquina criada num bairro de língua espanhola. – Corria em pista na secundária. É tudo. – A maneira de falar de Jule era clara e seca, aquilo a que os britânicos chamam inglês da BBC. A mulher lançou-lhe um olhar penetrante. – Gosto da sua pronúncia – disse. – De onde é? – De Londres. De St. John’s Wood. – Eu sou de Nova Iorque. – A mulher apontou para si própria. Jule desceu da passadeira para fazer alongamentos dos quadríceps. – Estou aqui sozinha – confidenciou a mulher ao fim de um momento. – Cheguei ontem à noite. Reservei este hotel à última hora. Está cá há muito tempo? – Nunca é tempo suficiente – disse Jule – num sítio como este. – Então, o que recomenda? No Playa Grande? Jule não falava frequentemente com outros hóspedes do hotel, mas não viu mal em responder. – Vá fazer a excursão de mergulho – disse. –Vi uma moreia grande como o caraças. – Não me diga. Uma enguia? – O guia tentou-a com tripas de peixe que trazia numa garrafa de leite de plástico. A enguia nadou para fora das rochas. Devia ter dois metros e quarenta de comprimento. E era de um verde-vivo. A mulher estremeceu. – Não gosto de enguias. – Pode não ir. Se se assusta com facilidade. A mulher riu-se. – Como é a comida? Ainda não comi. – Peça o bolo de chocolate. – Para o pequeno-almoço? – Oh, sim. Trazem-lho especialmente, se pedir. – É bom saber isso. Está de férias sozinha? – Ouça, vou andando – disse Jule, sentindo que a conversa se tornara pessoal. – Adeusinho. – Dirigiu-se para a porta. – O meu pai está muito doente – disse a mulher, falando para as costas de Jule. – Já estou a tomar conta dele há imenso tempo. Uma pontada de compaixão. Jule parou e virou-se. – Todas as manhãs e todas as noites depois do trabalho, estou com ele – prosseguiu a mulher. – Agora, encontra-se finalmente estável, e eu queria tanto afastar-me daquilo tudo que nem pensei no preço. Estou a estourar uma data de massa que não devia. – O que tem o seu pai? – E. M. – respondeu a mulher. – Esclerose múltipla? E demência. Era o chefe da nossa família. Muito machista. Com opiniões fortes em tudo. Agora é um corpo contorcido numa cama. Metade do tempo, nem sequer sabe onde está. Põe-se, tipo, a perguntar-me se sou a empregada de mesa. – Que diabo. – Tenho medo de o perder e detesto estar com ele, as duas coisas ao mesmo tempo. E quando ele morrer e eu ficar órfã, sei que vou arrepender-me de ter feito esta viagem para longe dele, sabe? – A mulher parou de correr e pôs um pé de cada lado da passadeira. Limpou os olhos com as costas da mão. – Desculpe. Demasiada informação. – Não tem mal. – Vá lá. Vá tomar um duche ou o que for. Talvez a veja por aí mais tarde. A mulher arregaçou as mangas compridas da sua T-shirt e virou-se para o registo digital da passadeira. Serpenteava-lhe uma cicatriz pelo antebraço direito, como se resultante de uma facada, não regular como a de uma operação. Havia ali uma história. – Ouça, gosta de concursos tipo Trivial Pursuit? – perguntou Jule, sabendo que não devia fazê-lo. Um sorriso. Dentes brancos, mas tortos. – Sou excelente em trivialidades, de facto. – Organizam um de duas em duas noites no salão lá em baixo – disse Jule. – É uma treta. Quer ir? – Que tipo de treta? – Treta da boa. Um bocado tonto e barulhento. – OK. Sim, está bem. – Ótimo – disse Jule. – Vamos arrasar. Vai ficar contente por ter tirado férias. Eu sou uma barra em super-heróis, filmes de espiões, YouTubers, fitness, dinheiro, maquilhagem e escritores vitorianos. E você? – Escritores vitorianos? Tipo, Dickens? – Sim, isso. – Jule sentiu que corava. De repente, parecia uma série estranha de coisas por que se interessar. – Adoro Dickens. – Não me diga. – É verdade. – A mulher sorriu de novo. – Sou boa em Dickens, culinária, notícias da atualidade, política... vejamos, oh, e em gatos. – Está bem, então – disse Jule. – Começa às oito, naquele salão que dá para o átrio principal. O bar com sofás. – Às oito. Combinado. – A mulher aproximou-se e estendeu a mão. – Relembre-me, como se chama? Eu sou a Noa. Jule apertou-lhe a mão. – Não lhe tinha dito o meu nome – respondeu. – Mas é Imogen. Jule West Williams tinha um aspeto razoavelmente agradável. Quase nunca lhe chamavam feia, e também não era habitualmente considerada sexy. Era baixa, media só um metro e cinquenta, e tinha o queixo espetado. Usava o cabelo num corte atraente, à rapazinho, com madeixas louras aplicadas num cabeleireiro e atualmente a mostrar as raízes escuras. Olhos verdes, pele branca, sardas claras. Com a maior parte das suas roupas, não poderia ver-se a força da sua estrutura corporal. Jule tinha músculos que sobressaíam dos ossos em arcos potentes – como se tivesse sido desenhada por um artista de banda desenhada, especialmente nas pernas. Havia um painel duro de músculo abdominal sob uma camada de gordura na zona do umbigo. Gostava de carne e sal e chocolate e gorduras. Jule acreditava que quanto mais se transpirar nos treinos, menos se sangrará na batalha. Acreditavaque a melhor maneira de evitar que nos partam o coração é fingir que não temos coração. Acreditava que a maneira como se fala é frequentemente mais importante do que qualquer coisa que se tenha a dizer. Também acreditava em filmes de ação, no treino com pesos, no poder da maquilhagem, na memorização, na igualdade de direitos e na ideia de que os vídeos do YouTube podem ensinar um milhão de coisas que não se aprenderiam na escola. Se confiasse na pessoa com quem estava a falar, Jule diria que andou um ano em Stanford com uma bolsa de atletismo. «Fui recrutada» explicava às pessoas de quem gostava. «Stanford é a Primeira Divisão. A universidade deu-me dinheiro para as propinas, os livros, isso tudo.» O que aconteceu? Jule poderia encolher os ombros. «Queria estudar Literatura Vitoriana e Sociologia, mas o treinador principal era um pervertido» diria. «Tocava nas raparigas todas. Quando chegou a minha vez, preguei-lhe um pontapé no certo sítio e contei a toda a gente que me quis ouvir. A professores, alunos, ao Stanford Daily. Berrei-o ao topo da estúpida torre de marfim, mas sabes o que acontece aos atletas que denunciam os seus treinadores.» Torcia os dedos entrelaçados e baixava os olhos. «As outras raparigas da equipa negaram» acrescentava. «Disseram que eu estava a mentir e que o pervertido nunca tinha tocado em ninguém. Não queriam que os pais soubessem e tinham medo de perder a bolsa de estudos. Foi assim que acabou a história. O treinador manteve-se no seu lugar. Eu abandonei a equipa. Isso significou que deixei de ter apoio financeiro. E é assim que se transforma uma excelente aluna num caso de abandono dos estudos.» * Depois do ginásio, Jule nadou mil e seiscentos metros na piscina do Playa Grande e passou o resto da manhã, como era frequente, sentada na sala de conferências a ver vídeos de língua espanhola. Ainda estava de fato de banho, mas com uns ténis verde-mar. Usava batom cor-de-rosa vivo e eyeliner prateado. O fato de banho era de uma só peça, cor de chumbo, com um aro no peito e um decote acentuado. Dava-lhe um ar muito Universo Marvel. A sala de conferências tinha ar condicionado. Nunca estava lá mais ninguém. Jule punha os pés em cima de uma mesa e usava fones e bebia Cola-Cola de dieta. Depois de duas horas de língua espanhola, almoçou um Snickers e pôs-se a ver vídeos de música. Dançou por ali com a energia da cafeína, cantando para a fila de cadeiras giratórias na sala vazia. Hoje, a vida estava a ser fabulosa como o caraças. Gostava daquela triste mulher fugida ao pai doente, da mulher com a cicatriz interessante e o gosto surpreendente em livros. Iam arrasar no concurso. Jule bebeu mais uma Cola-Cola de dieta. Verificou a maquilhagem e pontapeou o seu reflexo no vidro da janela da sala. A seguir, riu-se alto, porque parecia ao mesmo tempo tonta e incrível. Durante todo esse tempo, o ritmo da música pulsava nos seus ouvidos. O empregado do bar da piscina, Donovan, era um tipo da zona. Tinha ossos grandes, mas um aspeto molengão. E cabelo penteado para trás. Era dado a piscar o olho à clientela. Falava inglês com o sotaque típico de Baja e sabia o que Jule bebia: uma Coca-Cola de dieta com um shot de xarope de baunilha. Nalgumas tardes, Donovan fazia perguntas a Jule sobre como fora crescer em Londres. Jule praticava espanhol. Viam filmes no ecrã por cima do balcão enquanto conversavam. Hoje, às três da tarde, Jule empoleirou-se no banco no canto do balcão, ainda de fato de banho. Donovan vestia um blazer branco do Playa Grande e uma T- shirt. Estavam a crescer-lhe uns pelos da barba no pescoço. – Qual é o filme? – perguntou-lhe ela, olhando para cima para a televisão. – O Hulk. – Qual deles? – Não sei. – Foste tu quem pôs o DVD. Como podes não saber? – Nem sequer sabia que havia dois Hulks. – Há três Hulks. Espera, retiro o que disse. Há vários Hulks. Se contarmos com os da televisão, da banda desenhada, isso tudo. – Não sei que Hulk é, Miss Williams. O filme continuava no ecrã. Donovan passou uns copos por água e limpou o balcão. Preparou um uísque escocês com água com gás para uma cliente, o que o levou para o outro extremo da zona da piscina. – É o segundo melhor Hulk – disse Jule, quando voltou a ter a atenção de Donovan. – Como se diz uísque escocês em espanhol? – Escocés. – Escocés. Qual é uma marca boa para se beber? – A menina nunca bebe. – Mas se bebesse. – O Macallan – disse Donovan, encolhendo os ombros. – Quer que lhos dê a provar? Deitou em cinco copos de shot diferentes marcas de uísque escocês da melhor qualidade. Explicou as diferenças entre scotches e whiskeys, e porque se mandaria vir um e não o outro. Jule provou cada um deles, mas não bebeu muito. – Este cheira a sovaco – disse-lhe ela. – A menina é louca. – E este cheira a gasolina de isqueiro. Ele debruçou-se sobre o copo para o cheirar. – Talvez. Ela apontou para o terceiro. – Mijo de cão, tipo, de um cão mesmo furioso. Donovan riu-se. – A que cheiram os outros? – perguntou. – A sangue seco – disse Jule. – E àquele pó que se usa para limpar casas de banho. Aquele pó de limpeza. – Qual prefere? – O do sangue seco – disse ela, enfiando o dedo no copo e provando-o novamente. – Diz-me como se chama. – É o Macallan. – Donovan retirou os copos. – Oh, e esqueci-me de lhe dizer: esteve aqui uma senhora a perguntar por si. Ou talvez não por si. Talvez ela se tivesse confundido. – Que senhora? – Uma senhora mexicana. A falar espanhol. Perguntou-me por uma rapariga americana branca com cabelo louro curto, que viaja sozinha – disse Donovan. – Referiu-se a sardas. – Tocou no seu próprio rosto. – No nariz. – O que é que lhe disseste? – Disse que é um resort grande. Muitos americanos. Não sei quem está cá sozinho e quem não está. – Não sou americana – disse Jule. – Eu sei. Portanto, disse-lhe que não tinha visto ninguém assim. – Foi o que disseste? – Foi. – Mas não deixaste de pensar em mim. Donovan olhou para Jule por um longo minuto. – Pensei de facto em si – disse por fim. – Não sou estúpido, Miss Williams. Noa sabia que ela era americana. Isso significava que Noa era da polícia. Ou coisa do género. Tinha de ser. Tentara iludir Jule com aquela conversa toda. O pai doente, Dickens, ficar órfã. Noa soubera exatamente o que dizer. Lançara aquele isco – «o meu pai está muito doente» – e Jule mordera-o logo, faminta. Ficou com o rosto quente. Era a solidão e a fraqueza e uma estupidez do caraças que a tinham feito cair na esparrela de Noa. Era tudo uma artimanha para que Jule a visse como uma confidente, não uma adversária. Jule voltou para o seu quarto com um ar tão relaxado quanto conseguia aparentar. Uma vez dentro do quarto, tirou os seus pertences valiosos do cofre. Vestiu umas calças de ganga e uma T-shirt, calçou umas botas e meteu na sua pequena mala tanta roupa quanta cabia nela. O resto deixou ficar. Pousou em cima da cama uma gorjeta de cem dólares para Gloria, a criada com quem falava por vezes. A seguir, empurrou a mala de rodinhas pelo corredor e arrumou-a ao lado da máquina do gelo. De volta ao bar da piscina, Jule disse a Donovan onde se encontrava a mala. Passou uma nota de vinte dólares americanos sobre o balcão. Pediu um favor. Passou mais uma nota de vinte e deu instruções. No parque de estacionamento do pessoal, Jule olhou à sua volta e deu com o pequeno automóvel azul do empregado do bar, com a porta destrancada. Entrou e deitou-se no chão na parte de trás. Estava cheio de sacos e copos de plástico vazios. Teria de esperar uma hora até Donovan terminar o seu turno no bar. Com sorte, Noa só se aperceberia de que se passava alguma coisa quando Jule já estivesse muito atrasada para o concurso dessa noite, talvez por volta das oito e meia. A seguir,investigaria o shuttle do aeroporto e os registos da empresa de táxis antes de pensar no parque de estacionamento do pessoal. Estava abafado e quente dentro do carro. Jule pôs-se à escuta de passos. Teve uma cãibra no ombro. Sentia sede. Donovan ajudá-la-ia, correto? Correto. Já tinha mentido a encobri-la. Dissera a Noa que não conhecia ninguém que correspondesse à descrição dela. Avisara Jule e prometera ir buscar a sua mala e dar-lhe boleia. Ela pagara-lhe, também. Além disso, Donovan e Jule eram amigos. Jule estendeu as pernas, uma de cada vez, e a seguir voltou a dobrar-se no espaço por trás dos assentos. Pensou no que trazia e a seguir tirou os brincos e o anel de jade, enfiando-os no bolso das suas calças de ganga. Forçou-se a acalmar a respiração. Finalmente, ouviu-se o som de uma mala com rodinhas. O baque da mala do carro a ser fechada. Donovan sentou-se ao volante, ligou o motor e saiu do parque de estacionamento. Jule manteve-se no chão do carro. Havia poucos candeeiros na estrada. Na rádio passava música pop mexicana. – Para onde quer ir? – perguntou Donovan por fim. – Para qualquer parte da cidade. – Vou para casa, então. – De repente, a sua voz soava predadora. Com um raio. Teria feito mal em meter-se no carro dele? Seria Donovan um daqueles tipos que julgam que uma rapariga que queira um favor tem de dar umas voltas com ele? – Deixa-me ficar a caminho da tua casa – disse-lhe num tom ríspido. – Eu trato de mim. – Não tem de o dizer dessa maneira – disse ele. – Estou a arriscar-me por si neste momento. Imagine-se isto: uma casa acolhedora nos arredores de uma cidade no Alabama. Uma noite, Jule, com oito anos, acorda no escuro. Terá ouvido um ruído? Não tem a certeza. A casa está em silêncio. Vai ao andar de baixo na sua camisa de noite fina cor-de-rosa. No rés do chão, trespassa-a um frio gélido. A sala de estar está virada de pernas para o ar, livros e papéis por todo o lado. O escritório está ainda pior. Os armários de arquivo foram derrubados. Os computadores foram-se. – Mamã? Papá? – A Pequena Jule volta a correr para o andar de cima para espreitar para o quarto dos pais. As camas deles estão vazias. Agora sente-se verdadeiramente assustada. Abre a porta da casa de banho. Eles não estão lá. Corre para o exterior. O jardim é cercado por árvores altas. A Pequena Jule vai a meio do caminho quando se apercebe do que está a ver ali, no círculo de luz criado por um candeeiro. A mamã e o papá estão deitados no relvado, de cara para baixo. Os seus corpos estão enroscados e moles. O sangue forma uma poça negra por baixo deles. A mamã foi atingida no cérebro por um tiro. Deve ter morrido instantaneamente. O papá está claramente morto, mas os únicos ferimentos que Jule consegue ver são nos seus braços. Deve ter sangrado até à morte. Está enroscado à volta da mamã, como se só tivesse pensado nela nos seus últimos momentos de vida. Jule volta a correr para dentro de casa para telefonar à polícia. A linha telefónica está cortada. Regressa ao jardim, a querer dizer uma oração, a pensar em dizer adeus, pelo menos – mas os corpos dos seus pais desapareceram. O seu assassino levou-os. Não se permite chorar. Fica sentada durante o resto da noite naquele círculo de luz do candeeiro, a deixar empapar a camisa de noite com o sangue espesso. Nas duas semanas seguinte, a Pequena Jule fica sozinha naquela casa saqueada. Mantém-se forte. Cozinha para se alimentar e organiza os papéis deixados, à procura de pistas. Enquanto lê os documentos, vai encaixando as peças de vidas de heroísmo, poder e identidades secretas. Uma tarde, está no sótão a ver fotografias antigas quando aparece nessa divisão uma mulher de preto. A mulher avança um passo, mas a Pequena Jule é rápida. Arremessa um abre-cartas, com força e rápida, mas a mulher apanha-o na mão esquerda. A Pequena Jule trepa por uma pilha de caixotes, agarra-se a uma trave do teto do sótão e iça-se. Corre ao longo da trave e enfia-se por um postigo no telhado. O pânico martela-lhe o peito. A mulher corre atrás dela. Jule salta do telhado para os ramos de uma árvore vizinha e quebra um galho aguçado para usar como arma. Segura-o na boca enquanto desce da árvore. Está a correr para o matagal quando a mulher a atinge com um tiro no tornozelo. A dor é intensa. A Pequena Jule tem a certeza de que a assassina dos seus pais voltou para acabar com ela – mas a mulher de preto ajuda-a a levantar-se e ocupa-se da ferida. Remove a bala e trata a ferida com um antissético. Enquanto a mulher lhe liga o tornozelo, explica que é uma recrutadora. Tem estado a observar Jule nas duas últimas semanas. Jule não só é filha de duas pessoas excecionalmente capazes, mas também possui um intelecto notável com um instinto de sobrevivência feroz. A mulher quer treinar Jule e ajudá-la a procurar vingança. Já que é uma espécie de tia há muito julgada perdida. Está a par dos segredos que aqueles pais guardaram da sua adorada filha única. Ali começa uma educação muito fora do comum. Jule vai para uma academia especializada, instalada numa mansão renovada numa rua normal da cidade de Nova Iorque. Aprende técnicas de vigilância e a fazer saltos mortais para trás, e torna-se mestre na remoção de algemas e coletes de forças. Usa calças de pele e enche os bolsos com engenhocas. Há aulas de línguas estrangeiras, costumes sociais, literatura, artes marciais, uso de armas de fogo, disfarces, sotaques variados, métodos de falsificação e questões específicas da lei. Os seus estudos levam dez anos. Quando acabam, Jule tornou-se o tipo de mulher que seria um grande erro subestimar. Esta era a história da origem de Jule West Williams. Na altura em que estava a viver no Playa Grande, Jule preferia-a a qualquer outra história que poderia contar sobre si mesma. Donovan parou e abriu a porta do lado do condutor. A luz acendeu-se dentro do carro. – Onde estamos? – perguntou Jule. Estava escuro lá fora. – Em San José del Cabo. – É onde vives? – Não muito perto. Jule sentiu-se aliviada, mas parecia muito escuro lá fora. Não deveria haver candeeiros e lojas, iluminadas para os turistas? – Está alguém por perto? – perguntou. – Estacionei num beco para que não fosse vista a sair do meu carro. Jule rastejou para fora do carro. Sentia os músculos rígidos e a sensação de ter uma camada de gordura no rosto. O beco estava ladeado por contentores do lixo. A única luz vinha de um par de janelas num segundo andar. – Obrigada pela boleia. Abres a mala do carro, por favor? – Disse cem dólares americanos quando a trouxesse para a cidade. – É claro. – Jule tirou a carteira do bolso de trás e pagou. – Mas agora é mais – acrescentou Donovan. – O quê? – Mais trezentos. – Pensei que éramos amigos. Ele deu um passo na direção dela. – Preparo-lhe bebidas porque é o meu trabalho. Finjo que gosto de conversar consigo porque também faz parte do meu trabalho. Pensa que não vejo como me olha de alto? O segundo melhor Hulk. Que tipo de uísque escocês. Nós não somos amigos, Miss Williams. Mente-me metade do tempo e eu minto-lhe o tempo todo. – Jule sentia o cheiro a álcool derramado na camisa de Donovan. O seu hálito quente no rosto dela. Jule acreditara sinceramente que Donovan simpatizava com ela. Tinham contado piadas um ao outro e ele dava-lhe batatas fritas de graça. – Uau – disse ela baixinho. – Mais trezentos – disse ele. Seria um pequeno patife a raptar uma rapariga que trazia na sua pessoa muitos dólares americanos? Ou um ordinário que julgava que ela preferiria esfregar-se nele do que dar-lhe os trezentos dólares extra? Noa tê-lo-ia subornado? Jule voltou a meter a carteira do dinheiro no bolso. Mudou a posição da alça do seu saco para o pôr a tiracolo.– Donovan? – Deu um passo em frente, a aproximar-se. Fitou-o com os olhos muito abertos. E então ergueu o braço direito com força, atirou-lhe a cabeça para trás e assentou-lhe um murro no baixo-ventre. Ele dobrou-se pela cintura. Jule agarrou-o pelo cabelo liso e puxou-lhe a cabeça para trás. Fê-lo rodopiar, forçando-o a desequilibrar-se. Ele acotovelou-a no peito. Doeu-lhe, mas a segunda cotovelada falhou, com ela a desviar-se, a agarrar o cotovelo de Donovan e a dobrá-lo por trás das costas dele. O seu braço era mole, repulsivo. Segurou-o com força e com a mão livre arrancou o dinheiro aos seus dedos gananciosos. Enfiou o dinheiro no bolso das suas calças de ganga e puxou com força o cotovelo de Donovan enquanto palpava os seus bolsos da frente, à procura do telemóvel. Não o encontrou. No bolso de trás, então. Encontrou-o e enfiou-o no seu soutien, à falta de outro lugar. Agora, ele não poderia telefonar a Noa a indicar a localização de Jule, mas continuava a ter as chaves do carro na mão esquerda. Donovan esperneou, atingindo-a na canela. Jule deu-lhe um muro no lado do pescoço e ele cambaleou para a frente. Um empurrão forte e tombou por terra. Começou a tentar levantar-se, mas Jule pegou numa tampa de metal de um dos caixotes do lixo ali perto e bateu-lhe na cabeça duas vezes, e ele desabou sobre um monte de sacos do lixo, a sangrar da testa e de um olho. Jule recuou até ficar fora do seu alcance. Ainda tinha a tampa na mão. – Larga as chaves do carro. A gemer, Donovan estendeu a mão esquerda e atirou-as, de modo que aterraram a uns cinco centímetros do seu corpo. Jule pegou nas chaves e abriu a mala do carro. A seguir, tirou a sua mala de viagem e desatou a correr pela rua abaixo antes de Donovan conseguir pôr-se de pé. Abrandou o passo mal chegou à rua principal em San José del Cabo e verificou o estado da sua camisa. Parecia razoavelmente limpa. Passou a mão pelo rosto de um modo lento e calmo, para o caso de haver alguma coisa nele – sujidade, saliva ou sangue. Tirou um espelhinho do saco e viu-se a ele enquanto continuava a andar, usando o espelho para olhar por cima do ombro. Não havia ninguém por trás dela. Aplicou batom mate, fechou o espelhinho e abrandou o passo ainda mais. Não podia dar a impressão de que estava a fugir de alguma coisa. O ar estava quente e saía música dos bares. Os turistas andavam por ali, a passear em frente a muitos dos bares – brancos, negros e mexicanos, todos bêbedos e ruidosos. Turistas de férias baratas. Jule atirou as chaves e o telemóvel de Donovan para um caixote do lixo. Olhou à volta à procura de um táxi ou de um autocarro supercabos, mas não viu nem um, nem outro. OK, então. Precisava de se esconder e mudar de roupa, para o caso de Donovan vir atrás dela. Persegui-la-ia, se trabalhava para Noa. Ou se queria vingança. Imagina-te agora, num filme. Passam sombras pela tua pele lisa enquanto continuas a andar. Começam a formar-se equimoses por baixo das roupas, mas o teu cabelo está com um aspeto excelente. Estás armada com todo o tipo de equipamento, placas finas de metal que desempenham feitos assombrosos de tecnologia e assalto. Trazes contigo venenos e antídotos. És o centro da história. Tu e mais ninguém. Tens aquela interessante história da tua origem, aquela educação pouco comum. Agora és implacável, és brilhante, és praticamente destemida. Há um número de corpos no teu rasto, porque fazes o que for necessário para te manteres viva – mas são ossos do ofício, é tudo. Tens um aspeto soberbo à luz das montras dos bares mexicanos. Depois de uma luta, ficas com as faces coradas. E, oh, as tuas roupas ficam-te mesmo a matar. Sim, é verdade que és criminosamente violenta. Brutal até. Mas é o teu trabalho e tens qualificações únicas para ele, portanto isso é sexy. Jule já tinha visto uma carrada de filmes. Sabia que as mulheres raramente eram o centro de tais histórias. Eram antes um prazer para os olhos, um troféu a levar pelo braço, vítimas ou objetos de atração. Na maior parte dos casos, existiam para ajudar o grande herói branco e heterossexual na porra da sua viagem épica. Quando existia uma heroína, pesava muito pouco, usava pouquíssima roupa e tinha arranjado os dentes. Jule sabia que não se parecia com essas mulheres. Nunca se pareceria com essas mulheres. Mas era tudo o que aqueles heróis eram e, em certos aspetos, ainda mais. Também sabia isso. Chegou ao terceiro bar do Cabo e entrou. Estava mobilado com mesas de piquenique e decorado com peixes empalhados nas paredes. Os clientes eram na sua maioria americanos, a embebedarem-se depois de um dia de pesca desportiva. Jule dirigiu-se rapidamente para as traseiras, lançou um olhar por cima do ombro e entrou na casa de banho dos homens. Estava vazia. Enfiou-se num dos cubículos. Donovan nunca viria à sua procura aqui. O assento da sanita estava molhado e amarelo. Jule procurou na mala até encontrar uma peruca preta – um corte à pagem com franja. Pô-la, limpou o batom dos lábios, aplicou um brilho escuro e pó de arroz. Abotoou um casaco de malha de algodão preto por cima da sua T-shirt branca. Entrou um tipo e usou o urinol. Jule manteve-se imóvel, contente por estar de calças de ganga e botas pretas pesadas. Só os seus pés e a parte inferior da sua mala seriam visíveis na parte de baixo da abertura do cubículo. Entrou um segundo tipo, que se meteu no cubículo ao lado do seu. Jule olhou para os sapatos dele. Era Donovan. Aqueles eram os Crocs brancos e sujos dele. Aquelas eram as suas calças do Playa Grande, à enfermeiro. Jule sentia o sangue latejar-lhe nos ouvidos. Pegou silenciosamente na mala e segurou-a para que ele não pudesse vê-la. Manteve-se imóvel. Donovan puxou o autoclismo e Jule ouviu-o arrastar os pés até ao lavatório. Ele abriu a torneira. Entrou outro tipo. – Pode emprestar-me o telemóvel? – perguntou Donovan em inglês. – É só para fazer uma chamada rápida. – Alguém lhe deu uma coça, meu? – O outro tipo tinha sotaque americano, da Califórnia. – Está com um ar de quem passou das boas. – Estou bem – disse Donovan. – Só preciso de um telefone. – Não tenho chamadas aqui, só mensagens – disse o tipo. – Tenho de voltar para junto dos meus amigos. – Eu não vou roubá-lo – disse Donovan. – Só preciso de... – Eu já disse que não, OK ? Mas tudo de bom, pá. – O outro tipo saiu sem usar a casa de banho. Donovan queria um telefone porque não tinha as chaves do carro e precisava de uma boleia? Ou porque queria telefonar a Noa? Respirava pesadamente, como se estivesse com dores. Não voltou a abrir a torneira. Por fim, saiu da casa de banho. Jule pousou a mala de viagem. Sacudiu as mãos para ativar a circulação e estendeu os braços por trás das costas. Ainda no cubículo, contou o seu dinheiro, tanto os pesos como os dólares. Verificou a peruca no seu espelhinho. Quando teve a certeza de que Donovan tinha partido, saiu confiante e sem alardes da casa de banho dos homens e dirigiu-se para a rua. Lá fora, abriu caminho por entre as multidões de pessoas a divertir-se até uma esquina e teve sorte. Apareceu um táxi. Ela apressou-se a entrar e mandou seguir para o Grand Solmar, o resort ao lado do Playa Grande. No Grand Solmar, arranjou facilmente um segundo táxi. Pediu ao novo motorista que a levasse a uma pensão barata e de proprietários locais na cidade. Ele levou-a à Cabo Inn. Era uma espelunca. Paredes finas, tinta suja, mobília de plástico, flores de plástico em cima do balcão. Jule fez o check-in sob um nome falso e pagou ao rececionista em pesos. Ele não lhe pediu um documento de identificação. No quarto, Jule usou a pequena máquina do café para fazer uma chávena de descafeinado. Sentou-se na beira da cama. Tinhade fugir? Não. Sim. Não. Ninguém sabia onde ela estava. Ninguém à face da Terra. Esse facto deveria fazê-la feliz. Quisera desaparecer, ao fim e ao cabo. Mas sentia medo. Queria Paolo. Queria Imogen. Queria poder anular tudo o que tinha acontecido. Se ao menos pudesse recuar no tempo, sentiu Jule, seria uma pessoa melhor. Ou uma pessoa diferente. Seria mais ela própria. Ou talvez menos ela própria. Não sabia qual das opções, porque já não sabia em que estado estava o seu eu ou se na realidade não havia nenhuma Jule, mas apenas uma série de eus que apresentava em diferentes contextos. Seriam todas as pessoas assim, sem um verdadeiro eu? Ou seria só Jule? Não sabia se era capaz de amar o seu próprio estranho coração estraçalhado. Queria que outra pessoa o fizesse por ela, que o visse bater por trás das costelas e dissesse: Consigo ver o teu verdadeiro eu. Está aí e é raro e valioso. Amo-te. Que sombrio e estúpido era ser estraçalhada e estranha, não ter uma forma específica, não ter um eu quando a vida se estendia perante ela. Jule possuía muitos talentos raros. Trabalhava no duro e realmente tinha muito para oferecer, com um raio. Sabia tudo isso. Então, porque se sentia ao mesmo tempo sem valor? Queria telefonar a Imogen. Desejava poder ouvir o riso baixo de Immie e as suas frases sem pausas a revelarem segredos. Desejava poder dizer a Imogen: Estou com medo. E Immie diria: Mas tu és corajosa, Jule. És a pessoa mais corajosa que conheço. Desejava que Paolo viesse e pusesse os braços à sua volta, dizendo-lhe como dissera uma vez que ela era uma pessoa de primeira, excelente. Desejava que houvesse alguém que a amasse incondicionalmente, alguém que lhe perdoasse fosse o que fosse. Ou melhor ainda, alguém que soubesse tudo e a amasse por isso. Nem Paolo nem Immie seriam capazes de tal. Mesmo assim, Jule recordava-se da sensação dos lábios de Paolo nos seus e do cheiro a jasmim do perfume de Immie. De peruca preta, Jule desceu ao escritório da pensão Cabo Inn. Tinha delineado a sua estratégia. O escritório estava fechado a esta hora da noite, mas ela deu uma gorjeta ao rececionista da noite para que lho abrisse. No computador, reservou um voo de San José del Cabo para Los Angeles para a manhã do dia seguinte. Usou o seu próprio nome e o seu cartão de crédito habitual, o mesmo que usara no La Playa Grande. A seguir, perguntou ao rececionista onde poderia comprar um carro a dinheiro. Ele disse que havia um sujeito que fazia negócio nas traseiras da sua casa e que poderia vender-lhe qualquer coisa na manhã seguinte com dólares americanos. Escreveu uma morada, na Ortiz junto à Ejido, disse. Noa andava a vigiar as transações com cartões de crédito. Devia andar a fazê-lo, ou nunca teria encontrado Jule. Agora, a detetive veria a nova despesa e iria para Los Angeles. Jule compraria um carro a dinheiro e conduziria na direção de Cancùn. De Cancùn, acabaria por ir até à ilha de Culebra, em Porto Rico, onde havia carradas de americanos que nunca mostravam o passaporte a ninguém. Agradeceu ao rececionista a informação sobre o vendedor de automóveis. – Não vai lembrar-se da nossa conversa, pois não? – disse, empurrando outra nota de vinte por cima do balcão. – Sou capaz – disse ele. – Não, não vai. – Acrescentou uma nota de cinquenta. – Nunca a vi – disse ele. Dormiu mal. Ainda pior do que o costume. Sonhos de afogamento em águas quentes azuis-turquesa; sonhos de gatos abandonados a andarem em cima do corpo dela enquanto dormia; sonhos de estrangulamento por serpente. Jule acordou a gritar. Bebeu água. Tomou um duche frio. Adormeceu e acordou a gritar de novo. Às cinco da manhã, cambaleou até à casa de banho, lavou o rosto e pintou os olhos. Porque não? Gostava de maquilhagem. Tinha tempo. Aplicou concealer e pó, acrescentou uma sombra esfumada, depois rímel e um batom quase preto com um brilho por cima. Pôs gel no cabelo e vestiu-se. Calças de ganga preta, botas mais uma vez e uma T-shirt escura. Uma indumentária demasiado quente para o calor mexicano, mas prática. Fez a mala, bebeu uma garrafa de água e deu uns passos para fora do quarto. * Noa estava sentada no corredor, com as costas contra a parede, a segurar uma chávena de café fumegante entre as mãos. À espera. S 17 FINAIS DE ABRIL, 2017 LONDRES ete semanas antes, no final de abril, Jule acordou num albergue da juventude nos arredores de Londres. Havia oito camas de beliche em cada quarto: colchões finos, cobertos com os lençóis brancos da praxe. Em cima, estavam pousados sacos-cama. Mochilas encostadas às paredes. Havia um fedor ténue a odor corporal e patchuli. Dormira com a roupa do ginásio vestida. Levantou-se, apertou os atacadores dos ténis e foi correr treze quilómetros pelo subúrbio, passando por pubs e talhos ainda fechados na primeira luz da manhã. Ao regressar, fez prancha, alongamentos, flexões e agachamentos na sala de estar do albergue. Jule já estava no chuveiro antes de as suas colegas de quarto acordarem e começou a usar a água quente. A seguir, voltou a trepar para a sua cama de beliche e desembrulhou uma barra proteica de chocolate. O dormitório ainda se encontrava às escuras. Jule abriu O Amigo Comum e pôs-se a ler à luz do telemóvel. Era um romance vitoriano grosso sobre um órfão. Tinha sido escrito por Charles Dickens. A sua amiga Imogen tinha-lho oferecido. Imogen Sokoloff era a melhor amiga que Jule alguma vez tivera. Os seus livros favoritos eram sempre sobre órfãos. A própria Immie era órfã, nascida no Minnesota de uma mãe adolescente que morrera quando Immie tinha dois anos. Depois, foi adotada por um casal que vivia num luxuoso apartamento num último andar no Upper East Side de Nova Iorque. Patti e Gil Sokoloff andavam pelos trinta e muitos anos na altura. Não podiam ter filhos, e o trabalho de Gil na área do Direito incluía há muito tempo, em regime de voluntariado, a defesa de crianças no sistema de acolhimento. Ele acreditava na adoção. Portanto, após vários anos em listas de espera por um bebé recém-nascido, os Sokoloff declararam-se dispostos a aceitar uma criança mais velha. Apaixonaram-se pelos braços gorduchos e o nariz cheio de sardas daquela menina de dois anos. Acolheram-na, deram-lhe o nome Imogen e deixaram o seu antigo nome num armário de arquivo. Fotografavam-na e faziam-lhe cócegas. Patti cozinhava-lhe macarrão com manteiga e queijo. Quando a pequena Immie tinha cinco anos, os Sokoloff matricularam-na no Colégio Greenbriar, um estabelecimento de ensino particular em Manhattan. Aí, usava um uniforme verde e branco e aprendeu a falar francês. Aos fins de semana, a pequena Immie brincava com Legos, fazia bolachas e ia ao Museu Americano de História Natural, onde preferia os esqueletos de répteis. Comemorava todos os feriados da fé judaica e, quando cresceu, teve uma cerimónia não-ortodoxa do bat mitzvah nos bosques no norte do estado de Nova Iorque. A questão do bat mitzvah foi algo complicada. A mãe de Patti e os pais de Gil não consideravam Imogen judia, porque a sua mãe biológica não o fora. Todos insistiam num processo de conversão formal que adiaria a cerimónia por um ano, mas em vez disso Patti abandonou a sinagoga da família e aderiu a uma comunidade secular judaica que realizava cerimónias num retiro na montanha. Foi assim que, aos treze anos, Imogen Sokoloff se tornou mais consciente do seu estatuto de órfã do que alguma vez estivera e começou a ler as histórias que se tornariam a pedra basilar da sua vida interior. Inicialmente, voltou aos livros sobre órfãos que tinha sido obrigada a ler na escola. Havia uma grande quantidade desses. «Gostava das roupas e das sobremesas edas carruagens puxadas a cavalos» contou Immie a Jule. Em junho passado, as duas tinham estado a viver numa casa que Immie arrendara na ilha de Martha’s Vineyard. Nesse dia, foram de carro a uma quinta onde se podia colher flores. – Gostava da Heidi e Deus sabe de que outras tretas – disse Immie a Jule. Estava debruçada sobre um arbusto de dálias com uma tesoura na mão. – No entanto, mais tarde, todos esses livros me davam vontade de vomitar. As heroínas andavam sempre animadas como o caraças. Eram modelos de feminilidade abnegada. Tipo, «Estou a morrer à fome! Aqui tens, come o único pãozinho que me resta!» «Não consigo andar, estou paralisada, mas mesmo assim sou capaz ver o lado bom da vida, feliz feliz!» Aqueles livros, tipo, Uma Princesinha e Poliana, deixa que te diga, estão a vender-te uma data de mentiras horrendas. Quando me apercebi disso, deixei de gostar deles. Tendo acabado de compor o seu ramo, Immie içou-se e empoleirou-se na vedação de madeira. Jule ainda continuava a colher flores. – Na secundária, li Jane Eyre, A Feira das Vaidades, Grandes Esperanças, etc. – continuou Immie. – São, tipo, os órfãos mais arrojados. – Os livros que me deste – disse Jule, tomando consciência desse facto. – Sim. Tipo, em A Feira das Vaidades, a Becky Sharp é uma máquina de ambição. Nada a faz parar. A Jane Eyre faz birras, atira-se para o chão. O Pip, em Grandes Esperanças, está iludido e quer imenso ter dinheiro. Todos desejam uma vida melhor e tentam consegui-la, e todos são moralmente duvidosos. Isso torna-os interessantes. – Já gosto deles – disse Jule. * Imogen tinha entrado para a universidade, Vassar College, em grande medida por causa do ensaio que escrevera sobre essas personagens. Não sentia grande predileção pelos estudos para além disso, admitia. Não gostava que as pessoas lhe dissessem o que fazer. Quando os professores a mandaram ler os autores gregos da Antiguidade, não o fez. Quando a sua amiga Brooke lhe disse que lesse Suzanne Collins, também não o fez. E quando a sua mãe lhe disse que se esforçasse mais nos estudos, Immie desistiu de estudar. É claro que a pressão não fora a única razão para Immie deixar Vassar. A situação era desesperadamente complicada. Mas a natureza controladora de Patti Sokoloff foi decididamente um dos fatores. – A minha mãe acredita no sonho americano – disse Imogen. – E quer que eu também acredite nele. Os pais dela nasceram na Bielorrússia. Compraram o pacote todo sem hesitações. Sabes, aquela ideia de que aqui nos US of A qualquer pessoa pode chegar ao topo. Não importa de onde partes, um dia podes governar o país, ficar rico, ter uma mansão. Correto? Esta conversa aconteceu um pouco mais tarde durante o verão em Martha’s Vineyard. Jule e Immie estavam em Moshup Beach, na praia. Tinham uma grande manta de algodão estendida por baixo delas. – É um sonho bonito – disse Jule, metendo uma batata frita na boca. – A família do meu pai também foi nele – prosseguiu Imogen. – Os avós dele vieram da Polónia e viviam num apartamento modesto. Depois, o pai dele saiu- se bem na vida e era proprietário de uma charcutaria. Era suposto que o meu pai subisse ainda mais na vida, fosse o primeiro na família a andar na universidade, portanto foi exatamente o que ele fez. Tornou-se, tipo, um advogado importante. Os pais dele ficaram muito orgulhosos. Parecia-lhes simples: deixar o velho país para trás e reinventar a tua vida. E se tu não conseguisses concretizar totalmente o sonho americano, os teus filhos fá-lo-iam por ti. Jule adorava ouvir Immie falar. Nunca conhecera ninguém que falasse tão livremente. Divagava bastante, mas falava sempre com curiosidade e de um modo refletido. Não parecia censurar-se ou ensaiar as suas frases. Simplesmente falava, num fluxo que a fazia parecer alternadamente questionadora e desesperada por ser ouvida. – Terra de oportunidades – disse Jule agora, só para ver em que direção iria Immie. – É no que eles acreditam, mas não penso que seja realmente verdade – respondeu Immie. – Tipo, podes concluir, ao fim de meia hora a ver as notícias, que há mais oportunidades para pessoas brancas. E para pessoas que falam inglês. – E para pessoas com o teu tipo de pronúncia. – Da Costa Leste? – disse Immie. – Sim, suponho que sim. E para pessoas sem incapacidades. Oh, e para os homens. Homens, homens, homens! Os homens continuam a comportar-se como se os US of A fossem uma grande pastelaria e os bolos todos fossem para eles. Não achas? – Não vou deixar que fiquem com o meu bolo – disse Jule. – A porra do bolo é meu e vou comê-lo. – Sim. Defende o teu bolo – disse Immie. – E arranja bolo de chocolate com cobertura de chocolate e, tipo, cinco camadas. Mas, para mim, a questão é... podes chamar-me estúpida, mas não quero bolo. Talvez nem sequer tenha fome. Só estou a tentar ser. Existir e desfrutar do que está mesmo à minha frente. Sei que é um luxo e que talvez seja uma parvalhona por me poder sequer dar a esse luxo, mas também penso que estou a tentar apreciá-lo, minha gente! Deixem-me só sentir-me grata por me encontrar aqui nesta praia e não sentir que devia estar a esforçar-me todo o tempo. – Penso que estás enganada quanto ao sonho americano – disse Jule. – Não, não estou. Porquê? – O sonho americano é ser um herói de ação. – A sério? – Os americanos gostam de travar guerras – disse Jule. – Queremos mudar leis ou quebrá-las. Gostamos de justiceiros. Somos loucos por eles, correto? Os super-heróis e os filmes da série Taken e coisas do género. Temos tudo a ver com a corrida ao Oeste para nos apoderarmos de terras que pertenciam a outro povo. Chacinar os alegados mauzões e combater o sistema. Esse é que é o sonho americano. – Diz isso à minha mãe – disse Immie. – Diz-lhe: Olá! Quando for grande, a Immie quer ser uma justiceira em vez de capitã da indústria. A ver como corre. – Eu tenho uma conversa com ela. – Ótimo. Isso vai resolver tudo. – Immie soltou uma risadinha e virou-se na manta da praia. Tirou os óculos de sol. – Ela tem ideias sobre mim que não encaixam. Tipo, quando eu era pequena, teria sido muito importante para mim ter um par de amigos que também tivessem sido adotados, para não me sentir só ou diferente ou o que fosse, mas nessa altura ela só dizia: A Immie está bem, não precisa disso, nós somos tal e qual como outras famílias! Depois, daí a quinhentos anos, quando eu andava no décimo ano, leu um artigo numa revista sobre crianças adotadas e decidiu que eu tinha de fazer amizade com uma rapariga, a Jolie, que tinha acabado de entrar para o Greenbriar. Jule lembrava-se. A rapariga da festa de aniversário e do American Ballet Theatre. – A minha mãe tinha a fantasia de nós as duas criarmos laços, e eu tentei, mas aquela rapariga não gostava mesmo nada de mim – prosseguiu Immie. – Tinha cabelo azul. Tipo, «sou muito mais fixe do que tu». Gozava-me por causa daquela minha coisa dos gatos vadios e por ler a Heidi, e fazia pouco da música de que eu gostava. Mas a minha mãe andava sempre a telefonar à mãe dela e a mãe dela andava sempre a telefonar à minha, a fazerem planos para nós as duas. Imaginavam toda uma ligação de filhas adotivas entre nós que nunca existiu . – Imogen suspirou. – Era simplesmente triste. Mas depois ela mudou-se para Chicago e a minha mãe desistiu. – Agora tens-me a mim – disse Jule. Immie estendeu o braço para tocar na nuca de Jule. – Agora tenho-te a ti, o que me torna significativamente menos desequilibrada mental. – Menos desequilibrada mental é bom. Immie abriu a mala térmica e encontrou duas garrafas de chá gelado caseiro. Metia sempre na mala bebidaspara a praia. Jule não gostava das rodelas de limão que flutuavam no chá, mas bebeu um pouco, de qualquer maneira. – Ficas bonita com o cabelo curto – disse Immie, tocando de novo no pescoço de Jule. * Nas férias de inverno no primeiro ano em Vassar, Imogen tinha vasculhado o armário de arquivo de Gil Sokoloff à procura dos seus papéis de adoção. Não foram difíceis de encontrar. – Suponho que pensei que ler o registo me daria alguma revelação sobre a minha identidade – disse. – Como se ficar a saber nomes pudesse explicar porque me sentia tão infeliz na faculdade ou fazer-me sentir enraizada de alguma maneira como nunca me sentira. Mas não. Nesse dia, Immie e Jule tinham ido de carro a Menemsha, uma vila piscatória não muito distante da casa de Immie em Vineyard. Percorreram um molhe de pedra que avançava pelo mar dentro. Andavam gaivotas à volta lá em cima. As ondas vinham rebentar aos pés delas. Immie e Jule eram da mesma altura, e, sentadas nos rochedos, as suas pernas esticadas estavam morenas, brilhantes com o protetor solar. – É, foi uma perda total de tempo – disse Imogen. – Não aparecia o nome do pai. – Que nome te deram à nascença? Immie corou e puxou o capuz a tapar o rosto por um momento. Tinha covinhas fundas nas faces e dentes muito certos. O seu cabelo louro com um corte à rapazinho deixava ver umas orelhas minúsculas, numa das quais tinha três piercings. As suas sobrancelhas estavam depiladas numa linha fina. – Não quero dizer – disse a Jule por trás do tecido. – Estou a esconder-me no meu capuz agora. – Vá lá. Tu é que começaste a contar a história. – Não te podes rir se eu te disser. – Immie ergueu o capuz e olhou para Jule. – O Forrest riu-se e eu fiquei furiosa. Não lhe perdoei durante dois dias, até ele me trazer chocolates com recheio de creme de limão. – Forrest era o namorado de Immie. Vivia com elas na casa em Martha’s Vineyard. – O Forrest podia aprender a ter maneiras – disse Jule. – Não pensou. A gargalhada saiu-lhe sem querer. A seguir, ficou superarrependido. – Immie defendia sempre Forrest depois de o criticar. – Por favor diz-me o nome que te deram à nascença – pediu Jule. – Não me rio. – Prometes? – Prometo. Immie segredou ao ouvido de Jule: – Melody, e o apelido Bacon. Melody Bacon. – Deram-te um segundo nome próprio? – perguntou Jule. – Não. Jule não se riu, nem sequer sorriu. Pôs os braços à volta do corpo de Immie. Olharam para o mar. – Sentes-te como uma Melody? – Não. – Immie estava pensativa. – Mas também não me sinto como uma Imogen. Olharam para um par de gaivotas que tinha acabado de aterrar num rochedo perto delas. – De que morreu a tua mãe? – perguntou Jule por fim. – Essa informação constava do registo? – Adivinhei o quadro geral antes de ler, mas sim. Morreu de uma overdose de metanfetaminas. Jule apreendeu aquela informação. Imaginou a sua amiga como bebé, de fralda molhada, a gatinhar sobre roupas de cama sujas, com a sua mãe deitada por baixo delas, drogada e negligente. Ou morta. – Tenho duas marcas na parte de cima do braço direito – disse Immie. – Tinha-as quando vim viver para Nova Iorque. Tanto quanto sabia, sempre as tinha tido. Nunca me ocorreu perguntar, mas a enfermeira em Vassar disse-me que eram queimaduras. Tipo, de um cigarro. Jule não sabia o que dizer. Queria resolver as coisas à bebé Immie, mas Patti e Gil Sokoloff já o tinham feito, há muito tempo. – Os meus pais também já morreram – disse por fim. Era a primeira vez que o dizia em voz alta, embora Immie já soubesse que ela tinha sido criada pela tia. – Foi o que supus – disse Immie. – Mas também supus que não querias falar sobre isso. – Não quero – disse Jule. – Ainda não, de qualquer maneira. – Inclinou-se para a frente, a separar-se de Imogen. – Ainda não sei que história contar sobre isso. Não... – Faltavam-lhe as palavras. Não conseguia divagar como Immie, analisar-se. – A história recusa-se a tomar forma. Era verdade. Nessa altura, Jule só começara ainda a construir a história da sua origem em que mais tarde se apoiaria, e não podia, não podia dizer mais nada. – Tudo bem – disse Imogen. Meteu a mão na mochila e tirou uma tablete grossa de chocolate de leite. Desembrulhou-a até meio e quebrou um pedaço para Jule e um pedaço para si mesma. Jule recostou-se contra o rochedo e deixou o chocolate derreter na sua boca e o sol aquecer-lhe o rosto. Immie enxotou as gaivotas pedinchonas, ralhando-lhes. Jule sentia que conhecia completamente Imogen. Tudo estava compreendido entre elas, e sempre estaria. Agora, no albergue da juventude, Jule pousou O Amigo Comum. Havia um corpo no Tamisa, perto do início da história. Não lhe agradava ler aquilo – a descrição de um corpo morto saturado de água. Os dias de Jule eram longos agora, desde que fora divulgada a notícia de que Imogen Sokoloff se matara nesse mesmo rio, metendo pedras nos bolsos e saltando da ponte de Westminster, deixando uma mensagem de suicídio na sua caixa do pão. Jule pensava em Immie todos os dias. A todas as horas. Recordava a maneira como Immie tapava o rosto com as mãos ou com o capuz quando se sentia vulnerável. O som agudo da sua voz. Imogen rodava os anéis nos dedos. Tinha aquelas duas queimaduras de cigarro na parte superior do braço e uma cicatriz numa das mãos, de um tabuleiro quente de brownies de queijo-creme. Cortava cebolas depressa e com força com uma faca pesada e demasiado grande, algo que aprendera a fazer num vídeo de culinária. Cheirava a jasmim e por vezes a café com leite e açúcar. Havia um spray com cheiro a limão que punha no cabelo. Imogen Sokoloff era o tipo de rapariga que os professores achavam que nunca explorava o seu pleno potencial. O tipo de rapariga que desistia de estudar e, no entanto, enchia os seus livros favoritos com Post-its. Immie recusava-se a visar a grandeza ou a esforçar-se no sentido de corresponder à definição de sucesso de outras pessoas. Debatia-se para se soltar de homens que queriam dominá-la e de mulheres que queriam a sua atenção exclusiva. Recusava-se, uma e outra vez, a dar a sua devoção a uma única pessoa, preferindo criar um lar para si mesma, que definia segundo os seus próprios termos e do qual era senhora e dona. Aceitara o dinheiro dos pais, mas não o controlo da sua identidade por eles, e aproveitara a sua sorte para se reinventar, para encontrar uma maneira diferente de viver. Era uma espécie particular de coragem, uma coragem que frequentemente era confundida com egoísmo ou preguiça. Era o tipo de rapariga que, poderia pensar-se, não era nada mais do que uma loura de colégio particular, mas seria um grande engano não ir mais fundo do que isso. * Hoje, quando o albergue de juventude acordou e os hóspedes começavam a cambalear até à casa de banho, Jule saiu. Passou o dia como era frequente, em atividades de autoaperfeiçoamento. Percorreu as salas do Museu Britânico durante um par de horas, aprendendo os títulos de quadros e bebendo uma série de Coca-Colas de dieta em pequenas garrafas. Esteve uma hora numa livraria e decorou um mapa do México, a seguir aprendeu de cor um capítulo de um livro chamado Gestão da Riqueza: Oito Princípios Básicos. Queria telefonar a Paolo, mas não podia. Não atenderia nenhum telefonema a não ser aquele de que estava à espera. O telemóvel tocou quando Jule estava a sair do metro perto do albergue. Era Patti Sokoloff. Jule viu o número e usou a sua pronúncia americana genérica. Patti encontrava-se em Londres, ficou a saber. Jule não estava à espera disso. Jule poderia encontrar-se com ela para almoçar no restaurante The Ivy no dia seguinte? É claro que sim. Jule disse que se sentia muito surpreendida com o contacto de Patti. Tinham conversado uma série devezes logo a seguir à morte de Immie, quando Jule falara com agentes da polícia e enviara vários objetos itens do apartamento de Immie em Londres enquanto Patti cuidava de Gill em Nova Iorque, mas todas aquelas conversas difíceis tinham terminado havia algumas semanas. Normalmente, Patti tinha uns modos despachados e tagarelas, mas hoje soava em baixo e a sua voz não aparentava a animação usual. – Tenho de te informar – disse – que perdi o Gil. Aquilo foi um choque. Jule pensou no rosto inchado e macilento de Gil Sokoloff e nos cãezinhos engraçados que ele adorava. Gostava muito dele. Não sabia que tinha morrido. Patti explicou que Gil morrera duas semanas antes, de um ataque de coração. Todos aqueles anos de diálise, e fora o coração a matá-lo. Ou talvez, disse Patti, por causa do suicídio de Immie, não quisera continuar a viver. Falaram sobre a doença de Gil por mais algum tempo e sobre como ele fora uma pessoa maravilhosa e sobre Immie. Patti disse que Jule tinha sido uma grande ajuda a tratar das coisas em Londres quando os Sokoloff não podiam ausentar-se de Nova Iorque. – Sei que parece estranho eu estar a viajar – disse Patti –, mas depois destes anos todos a olhar pelo Gil, não consigo suportar o apartamento sozinha. Está cheio das coisas dele, das coisas da Immie. Eu ia... – Interrompeu-se, e quando recomeçou a falar foi num tom de voz com uma animação forçada. – Seja como for, a minha amiga Rebecca vive em Hampshire e ofereceu-me a casinha para os convidados que tem na propriedade para eu descansar e recuperar. Disse-me que tinha de vir. Alguns amigos são mesmo assim. Já não falava com a Rebecca há séculos, mas, mal me telefonou, depois de ouvir a notícia da Immie e do Gil, retomámos a amizade imediatamente. Nada de conversas de circunstância. Só franqueza e sinceridade. Andámos juntas no Greenbriar. As amigas dos tempos da escola têm recordações, histórias partilhadas que as ligam, penso. Olha para ti e a Immie. Retomaram tão maravilhosamente a vossa amizade depois de estarem longe uma da outra. – Lamento muito, muito sobre o Gil – disse Jule. Estava a ser completamente sincera. – Ele já estava doente há uma eternidade. Tantos comprimidos. – Patti fez uma pausa e quando voltou a falar soava sufocada. – Penso que, depois do que aconteceu à Immie, já não lhe restavam forças no corpo para lutar. Ele e a Immie eram as minhas batatinhas doces. – A seguir, forçou de novo a voz a assumir uma vivacidade despachada. – Ora bem, voltando à razão para te ter telefonado. Vens almoçar comigo, certo? – Já disse que ia. Claro. – No The Ivy, amanhã, à uma hora. Quero agradecer-te por tudo o que fizeste por mim, e pelo Gil, depois de a Immie morrer. E até tenho uma surpresa para ti – disse Patti. – Algo que talvez possa até animar-nos às duas. Portanto, não chegues tarde. Depois de a conversa terminar, Jule manteve o telemóvel encostado ao peito durante algum tempo. O restaurante The Ivy ocupava na perfeição o seu canto estreito de Londres. Parecia feito à medida para o terreno em que se encontrava implantado. Dentro, as paredes estavam forradas com retratos e vitrais. Cheirava a dinheiro: borrego assado e flores de estufa. Jule trazia um vestido justo e sabrinas. Acrescentara batom vermelho à sua maquilhagem de jovem universitária. Foi dar com Patti à sua espera a uma mesa, a beber água por um copo para o vinho. Na última vez que Jule a vira, onze meses antes, a mãe de Immie era uma senhora cheia de brilho. Era dermatologista, andava pelos cinquenta e tal e era magra, embora tivesse uma barriguinha. A sua pele na altura aparentava um brilho húmido rosado e usava o cabelo comprido, pintado de um castanho- escuro e penteado em caracóis soltos. Agora, tinha as raízes brancas e estava cortado à pagem. Vestia, à moda das senhoras do Upper East Side, calças pretas justas e um casaco de malha de caxemira comprido – mas, em vez de saltos altos, trazia um par de ténis de um azul vivo. Jule quase não a reconheceu. Patti levantou-se e sorriu quando viu Jule atravessar a sala. – Estou com um aspeto diferente, eu sei. – Não, não está – mentiu Jule. Beijou Patti na face. – Já não consigo fazer aquilo tudo – disse Patti. – Aquele tempo todo em frente ao espelho de manhã, os sapatos desconfortáveis. Maquilhar-me. Jule sentou-se. – Costumava maquilhar-me para o Gil – prosseguiu Patti. – E para a Immie, quando ela era pequena. Ela dizia-me: «Mamã, faz caracóis! Vai pôr brilhos na cara!» Agora não há razão para isso. Deixei de trabalhar por uns tempos. Um dia, pensei: Não tenho de me incomodar com isso tudo. Saí porta fora sem fazer nada e foi um tal alívio, nem consigo explicar. Mas sei que perturba as pessoas. Os meus amigos preocupam-se. Mas eu penso... eh... Perdi a Imogen. Perdi o Gil. Esta sou eu agora. Jule estava ansiosa por dizer a coisa certa, mas não sabia se o requerido era compreensão ou distração. – Li um livro sobre isso na faculdade – disse. – Sobre o quê? – A apresentação do eu na vida do dia a dia. Um tal Goffman teve a ideia de que, em situações diferentes, a pessoa tem um desempenho diferente do seu eu. A nossa personalidade não é estática. É uma adaptação. – Parei de desempenhar o meu eu, queres dizer? – Ou está a fazer isso de outra maneira agora. Há diferentes versões do eu. Patti pegou na ementa e depois estendeu o braço e tocou na mão de Jule. – Tens de voltar para a faculdade, batatinha doce. És tão esperta. – Obrigada. Patti olhou Jule nos olhos. – Sou muito intuitiva em relação às pessoas, sabes? – disse. – E tu tens tanto potencial. És ambiciosa e aventureira. Espero que saibas que podes ser o que quiseres no mundo. O empregado aproximou-se da mesa e tomou nota dos pedidos de bebidas. Outra pessoa pousou um cesto com pão. – Trouxe-lhe os anéis da Imogen – disse Jule quando a azáfama parou. – Devia ter-lhos enviado pelo correio, mas... – Eu compreendo – disse Patti. – Foi difícil largá-los. Jule assentiu com a cabeça. Entregou-lhe uma embrulho de papel de seda. Patti descolou a fita-cola. Dentro encontravam-se oito anéis antigos, todos com entalhes ou em forma de animais. Immie colecionara-os. Eram divertidos e pouco comuns, cuidadosamente produzidos, todos em estilos diferentes. Jule ainda usava o nono anel. Immie oferecera-lho. Era uma serpente de jade, que usava no anelar da mão direita. Patti começou a chorar silenciosamente, com o guardanapo encostado ao rosto. Jule olhou para a coleção. Cada um daqueles círculos estivera nos dedos frágeis de Immie a dada altura. Immie estivera, bronzeada, naquela joalharia em Vineyard. «Quero ver o anel mais fora do comum que tem à venda» dissera ao lojista. E mais tarde: «Este é para ti.» Dera a Jule o anel da serpente, e Jule usava-o sempre agora, embora já não o merecesse e talvez nunca o tivesse merecido. Jule engasgou-se, uma sensação que estava a vir-lhe do fundo do estômago e subiu em ondas pela sua garganta. – Com licença. – Levantou-se e cambaleou na direção da casa de banho das senhoras. O restaurante estava a andar à roda. Avolumou-se um negrume dos lados dos seus olhos. Agarrou-se às costas de uma cadeira vazia para se segurar. Ia vomitar. Ou desmaiar. Ou ambas as coisas. Aqui no restaurante The Ivy, rodeada por estas pessoas imaculadas, onde não merecia estar, embaraçando a pobre, pobre mãe de uma amiga de quem não gostara o suficiente ou de quem gostara demasiado. Jule chegou à casa de banho e debruçou-se sobre o lavatório. A sensação de engasgamento não parava. A sua garganta contraía-se repetidamente. Fechou-se num cubículo, apoiando-se à parede. Os seus ombros sacudiam-se. Tinha arrancos de vómito, mas não saía nada. Deixou-se ficar ali dentro até a sensação de engasgamento se atenuar, a tremer e a tentarrecuperar o fôlego. De novo no lavatório, limpou o rosto húmido com uma toalha de papel. Pressionou os olhos inchados com as pontas dos dedos molhadas em água fria. Trazia o batom vermelho no bolso do vestido. Aplicou-o de novo como uma armadura e voltou para junto de Patti. * Quando Jule regressou à mesa, Patti já se tinha recomposto e estava a falar com o empregado. – Vou querer a entrada de beterraba – disse ao empregado quando Jule se sentou. – E depois o espadarte, penso. O espadarte é bom? Sim, OK. Jule mandou vir um hambúrguer e uma salada verde. Quando o empregado de mesa se afastou, Patti pediu desculpa. – Lamento. Lamento muito. Estás bem? – Claro que sim. – Aviso-te, sou capaz de voltar a chorar. Possivelmente na rua! Nunca se sabe, nos dias que correm. Sou capaz de começar a soluçar a qualquer momento. – Os anéis e o papel de embrulho já não estavam em cima da mesa. – Ouve, Jule – disse Patti. – Disseste-me uma vez que os teus pais te falharam. Lembras-te? Jule não se lembrava. Nunca pensava nos pais, a não ser através da lente da origem digna de um herói que criara para si mesma. Nunca, jamais pensava na sua tia. Agora, a história da sua origem veio-lhe à mente. Os seus pais no jardim da frente de uma casinha bonita ao fundo de uma rua sem saída naquela minúscula cidade do Alabama. Estavam deitados de rosto para baixo em poças de sangue negro que se infiltrava na relva, iluminados por um só candeeiro. A sua mãe alvejada com um tiro no cérebro. O seu pai a sangrar até à morte de buracos de balas nos braços. Achava aquela história reconfortante. Era linda. Os pais tinham sido corajosos. Ao crescer, a menina viria a tornar-se uma pessoa com estudos e extremamente poderosa. Contudo, sabia que não era uma história para partilhar com Patti. Em vez disso, perguntou num tom ameno: – Eu disse isso? – Sim, e quando o disseste pensei que talvez eu própria também tivesse falhado à Imogen. Eu e o Gil quase nunca falávamos sobre o facto de ela ter sido adotada em pequena. Nem em frente a ela nem em privado. Eu queria pensar na Immie como a minha bebé, sabes? Não de mais ninguém, mas minha e do Gil. E era difícil falar do assunto, porque a mãe biológica dela tornou-se toxicodependente e não havia outros parentes dispostos a ficarem com a bebé. Disse a mim mesma que estava a protegê-la de sofrimento. Não fazia ideia de como estava a falhar-lhe redondamente até ela... – Patti parou de falar. – A Imogen adorava-a – disse Jule. – Estava desesperada em relação a alguma coisa. E não veio ter comigo. – Também não veio ter comigo. – Devia tê-la criado de modo a que conseguisse abrir-se com as pessoas, pedir auxílio se estivesse com problemas. – A Immie contava-me tudo – disse Jule. – Os seus segredos, as suas inseguranças, como queria viver a sua vida. Disse-me o nome que lhe deram à nascença. Usávamos a roupa uma da outra e líamos os livros uma da outra. Sinceramente, eu era muito íntima da Immie quando ela morreu, e penso que ela tinha uma sorte louca por a ter a si, Patti. Os olhos de Patti encheram-se de lágrimas e ela tocou na mão de Jule. – Também tinha sorte por te ter a ti. Pensei-o quando começou a conviver contigo no décimo ano em Greenbriar. Sei que te adorava mais do que a qualquer outra pessoa na sua vida, Jule, porque... Bem. Era por isto que queria encontrar-me contigo. O advogado da nossa família disse-me que a Immie te deixou o seu dinheiro. Jule sentiu-se estonteada. Pousou o garfo. O dinheiro de Immie. Milhões. Era segurança e poder. Era bilhetes de avião e chaves de carros, mas, mais importante ainda, era dinheiro para propinas, comida na despensa, seguro de saúde. Significava que ninguém poderia dizer-lhe que não. Ninguém poderia nunca mais detê-la e ninguém poderia magoá-la. Jule não necessitaria da ajuda de ninguém, nunca mais. – Não compreendo as questões de finanças – prosseguiu Patti. – Devia, sei que sim. Mas confiava no Gil e sentia-me aliviada por ele se ocupar disso tudo. Aborrece-me de morte. Mas a Immie compreendia esses assuntos, e deixou um testamento. Enviou-o ao advogado antes de morrer. Passou a ter muito dinheiro, do pai e de mim, depois de fazer dezoito anos. O dinheiro esteve num fundo até essa altura, e, depois de ela fazer anos, o Gil tratou da papelada para o passar para o nome dela. – Ela recebeu o dinheiro quando ainda andava na secundária? – No mês de maio, antes de começar a faculdade. Talvez tenha sido um erro. De qualquer maneira, está feito – prosseguiu Patti. – Ela era boa em questões de finanças. Vivia dos juros e nunca tocou no capital a não ser para comprar o apartamento em Londres. Era por isso que não tinha de trabalhar. E no testamento deixou-te tudo. Fez pequenos donativos à National Kidney Foundation, por causa da doença dos rins do Gil, e à North Shore Animal League, mas fez um testamento e deixou-te a ti o grosso do seu dinheiro. Enviou um e-mail ao advogado em que dizia especificamente que queria ajudar-te a voltar a estudar. Jule ficou comovida. Não fazia sentido, mas ficou. Patti sorriu. – Deixou este mundo mandando-te de volta aos estudos. É o lado positivo que estou a tentar ver. – Quando é que ela redigiu o testamento? – Alguns meses antes de morrer. Fê-lo reconhecer num notário em São Francisco. Só falta assinar algumas coisas. – Patti empurrou um envelope sobre a mesa. – Transferem o dinheiro diretamente para a tua conta e em setembro já serás aluna do segundo ano em Stanford. * Quando o dinheiro chegou ao seu banco, Jule levantou-o todo e abriu uma nova conta num outro banco. Aderiu a vários outros cartões de crédito e deu instruções para que as suas contas fossem pagas automaticamente todos os meses. Depois foi às compras. Comprou pestanas postiças, base de maquilhagem, lápis para os olhos, blush, pó de arroz, pincéis, três batons diferentes, duas sombras para os olhos e uma caixa de maquilhagem pequena, mas cara. Uma peruca ruiva, um vestido preto e um par de sapatos de saltos altos. Teria sido agradável comprar mais, mas necessitava de viajar com pouca bagagem. Usou o seu computador para comprar um bilhete de avião para Los Angeles, reservou um quarto num hotel nessa cidade e pesquisou stands de automóveis usados na zona de Las Vegas. De Londres para Los Angeles, depois de autocarro de Los Angeles para Las Vegas. De Las Vegas de carro até ao México. Esse era o plano. Jule passou em revista os documentos no seu portátil. Assegurou-se de que sabia de cor todos os números bancários e números de atendimento ao cliente, todas as palavras-passe, todos os números dos cartões de crédito e códigos. Memorizou o número do passaporte e o da carta de condução. Depois, uma noite, atirou o portátil e o seu telemóvel ao Tamisa. * De regresso ao albergue da juventude, escreveu uma carta de agradecimento sincero a Patti Sokoloff num papel antiquado de correio aéreo e enviou-a. Esvaziou o armário e fez a mala. Os seus documentos de identificação e outra papelada estavam devidamente organizados. Assegurou-se de que transferia todas as suas loções e produtos para o cabelo para frascos de tamanho de viagem em sacos de plástico com fecho hermético. Jule nunca estivera em Las Vegas. Mudou de roupa na casa de banho da estação de autocarros. Na zona dos lavatórios, encontrava-se uma mulher branca dos seus cinquenta e tal anos com um trólei das compras. Estava sentada na bancada, a comer um sanduíche embrulhada em papel branco lustroso. Usava umas leggings pretas sujas e tinha coxas finas. Tufara o cabelo, que era grisalho e louro. E estava todo cheio de riças e sujo. Os seus sapatos encontravam-se no chão– uns sapatos de tacão alto e muito fino, de plástico cor-de-rosa claro. Os seus pés nus, com pensos rápidos nos calcanhares, balouçavam no ar. Jule entrou no cubículo maior e remexeu na sua mala. Pôs as argolas nas orelhas pela primeira vez em quase um ano. Enfiou-se no vestido que tinha comprado – curto e preto, combinado com uns sapatos de cunha em pele. Tirou da mala a peruca ruiva. Tinha um brilho pouco natural, mas a cor ficava bem com as suas sardas. Jule pegou no estojo de maquilhagem, fechou o saco e foi até ao lavatório. A mulher que estava sentada em cima da bancada não comentou a mudança de cor de cabelo. Amassou o papel do sanduíche e acendeu um cigarro. O jeito para se maquilhar de Jule vinha-lhe de ver tutoriais na Internet. Na maior parte do ano passado usara aquilo em que pensava como maquilhagem de jovem universitária: pele natural, blush, brilho nos lábios, rímel. Agora, tirou do estojo umas pestanas postiças, uma sombra verde para os olhos, um eyeliner preto, pincéis para contornar o rosto, um lápis para as sobrancelhas, batom cor-de-rosa coral. Não era realmente necessário. Não necessitava dos cosméticos, do vestido ou dos sapatos. Provavelmente, a peruca seria suficiente. De qualquer modo, a transformação era uma boa prática – era assim que a encarava. E agradava-lhe tornar-se outra pessoa. A mulher falou quando Jule estava a acabar de maquilhar os olhos. – És uma rapariga da vida? Jule respondeu, só por piada, com uma pronúncia escocesa. – Não. – Quero dizer, andas a vender o corpo? – Não. – Não te vendas. É tão triste, vocês raparigas. – Não me vendo. – É uma pena, é tudo o que quero dizer. Jule ficou em silêncio. Aplicou iluminador nas maçãs do rosto. – Eu andei nessa vida – prosseguiu a mulher. Desceu da bancada e enfiou os seus pés todos estragados nos sapatos. – Já sem família e sem dinheiro: foi assim que comecei, e não é diferente agora. Mas não dá para subir na vida, mesmo com tipos da alta. Devias saber isso. Jule vestiu um casaco de malha verde e pegou na sua mala de viagem. – Não se preocupe comigo. Estou ótima, sinceramente. – Arrastando a mala, encaminhou-se para a porta, mas tropeçou ligeiramente com aqueles sapatos estranhos. – Estás bem? – perguntou a mulher. – Oh, sim. – É difícil ser mulher por vezes. – Pois é, é uma seca, exceto a maquilhagem – disse Jule. Empurrou a porta e saiu sem olhar para trás. Com a mala guardada num cacifo na estação de autocarros, Jule pôs ao ombro um saco de viagem e apanhou um táxi para a zona dos casinos de Las Vegas. Sentia-se cansada – não conseguira dormir na viagem de autocarro – e ainda estava a funcionar pela hora de Londres. O casino estava iluminado com néon, lustres e o brilho das máquinas de jogo. Jule passou por homens com camisolas desportivas, pensionistas, raparigas a divertirem-se e um grupo grande de bibliotecários com crachás de uma conferência ao peito. Demorou duas horas a ir de lugar em lugar, mas por fim encontrou o que procurava. Havia um grupo de mulheres à volta de uma série de máquinas de jogo Batman que pareciam estar a divertir-se imenso. Tinham bebidas geladas, roxas e espessas. Algumas americano-asiáticas, algumas brancas. Tratava-se de uma festa de despedida de solteira, e a noiva era perfeita, exatamente do que Jule precisava. Era pálida e pequena, com ombros com um ar forte e sardas delicadas – e não devia ter mais de vinte e três anos. O seu cabelo castanho- claro estava preso num rabo de cavalo e ela usava um minivestido de um rosa forte e uma faixa branca com pedrinhas coloridas: FUTURA NOIVA. Pendia-lhe do ombro esquerdo uma pequena carteira azul-turquesa com múltiplos fechos de correr. Estava debruçada para as amigas a jogarem nas máquinas, a animá-las, à vontade com a adoração de toda a gente à sua volta. Jule aproximou-se do grupo e adotou um sotaque das terras baixas do Sul, como o do Alabama. – Desculpem, alguma de vocês... bem, o meu telemóvel está sem carga e tenho de enviar uma mensagem à minha amiga. Na última vez que a vi ela estava ao pé do balcão do sushi, mas depois comecei a jogar e agora, oh não! Passaram três horas e ela está desaparecida em combate. As raparigas da despedida de solteira viraram-se. Jule sorriu. – Oh, são uma despedida de solteira? – Ela vai casar-se no sábado! – gritou uma das raparigas, agarrando a noiva. – Hurra! – disse Jule. – Como te chamas? – Shanna – disse a noiva. Eram da mesma altura, mas Shanna estava de sapatos de salto raso, portanto Jule parecia um pouco mais alta. – Shanna Dixie, que em breve vai ser Shanna McFetridge – gritou uma das amigas. – Com um diacho – disse Jule. – Tens vestido? – É claro que tenho – respondeu Shanna. – Não é um casamento de Las Vegas – disse uma das amigas. – Vai ser na igreja. – De onde é que vocês todas são? – perguntou Jule. – De Tacoma. Fica em Washington. Conheces? Só estamos em Las Vegas para... – Elas planearam o fim de semana todo para mim – disse Shanna. – Viemos de avião hoje de manhã e fomos ao spa e arranjar as unhas. Estás a ver? Pus unhas de gel. Depois viemos até ao casino, e amanhã vamos ver os tigres brancos. – E como é o teu vestido? Para o casamento, quero dizer. Shanna agarrou o braço de Jule. – É lindo de morrer. Sinto-me como uma princesa, é perfeito. – Posso vê-lo? No teu telemóvel? Deves ter uma fotografia. – Jule tapou a boca com a mão e baixou um pouco a cabeça. – Tenho um fraquinho por vestidos de casamento, sabes? Desde que era pequenininha. – Com os diabos, claro que tenho uma fotografia – disse Shanna. Abriu o fecho da sua carteira e tirou um telemóvel com uma capa dourada. O forro da bolsa era cor-de-rosa. Dentro estava uma carteira em pele castanha-escura, dois tampões no seu invólucro de plástico, uma embalagem de pastilhas elásticas e um batom. – Deixa ver – disse Jule. Aproximou-se para olhar para o telemóvel de Shanna. Shanna percorreu as fotografias. Um cão. O lado de baixo enferrujado de um lava-louça. Um bebé. O mesmo bebé outra vez. – É o meu filho, o Declan. Tem dezoito meses. – Umas árvores junto a um lago. – Aí está ele. O vestido era cai-cai e comprido, com pregas de tecido à volta das ancas. Na fotografia, Shanna envergava-o numa loja de vestidos de noiva cheia de outros vestidos brancos. Jule soltou ós e ás. – Posso ver o teu noivo? – Com os diabos, se podes. Ele, tipo, arrasou no pedido de casamento – disse Shanna. – Meteu o anel num dónute. Anda em Direito. Não vou ter de trabalhar a não ser que queira. – Continuou. A falar, a falar. Empunhou o telemóvel para mostrar o felizardo a sorrir na encosta de uma montanha. – É giro como tudo – disse Jule. Enfiou a mão na carteira de Shanna. Tirou a carteira do dinheiro e meteu-a no seu saco. – O meu namorado, o Paolo, anda de mochila às costas a dar a volta ao mundo – prosseguiu. – Está nas Filipinas neste momento. Dá para crer? Então, estou em Las Vegas com a minha amiga. Devia arranjar um tipo que queira assentar, não dar a volta ao mundo de mochila às costas, certo? Se quero casar. – Se é o que queres – disse Shanna – podes decididamente tê-lo. Podes ter o que quiseres se te focares nisso. Rezas e, tipo, visualizas. – Visualização – disse uma das damas-de-honor. – Fomos a um workshop. Resulta mesmo. – Ouçam – disse Jule –, a razão por que vim falar com vocês foi para ver se podiam emprestar-me um telemóvel. O meu está sem bateria. Importavam-se muito? Shanna passou-lhe o seu telemóvel para as mãos e Jule enviou uma mensagem para um número ao acaso. «Encontramo-nos às 10:15 no Cheesecake Factory». Devolveu o telemóvel a Shanna. – Obrigada. Vais ser a noiva mais linda. – Tu também, minha doçura – disse Shanna. – Um dia em breve. As raparigas da despedida de solteira acenaram-lhe.
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