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Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias by Flannery OConnor (z-lib org)

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O18h
18-48995
Copyright	©	1953,	1955	by	Flannery	O’Connor;
Copyright	renewed	©	1981,	1983	by	Regina	Cline	O’Connor.	All	rights	reserved.
Título	original:	A	Good	Man	Is	Hard	to	Find	and	Other	Stories
Direitos	 de	 edição	 da	 obra	 em	 língua	 portuguesa	 no	Brasil	 adquiridos	 pela	 EDITORA	NOVA	 FRONTEIRA
PARTICIPAÇÕES	S.A.	Todos	os	direitos	reservados.	Nenhuma	parte	desta	obra	pode	ser	apropriada	e	estocada
em	sistema	de	banco	de	dados	ou	processo	similar,	em	qualquer	forma	ou	meio,	seja	eletrônico,	de	fotocópia,
gravação	etc.,	sem	a	permissão	do	detentor	do	copirraite.
EDITORA	NOVA	FRONTEIRA	PARTICIPAÇÕES	S.A.
Rua	Candelária,	60	—	7º	andar	—	Centro	—	20091-020
Rio	de	Janeiro	—	RJ	—	Brasil
Tel.:	(21)	3882-8200	—	Fax:	(21)	3882-8212/8313
Imagem	de	capa:	inkret	—	Getty	Images
CIP-Brasil.	Catalogação	na	fonte
Sindicato	Nacional	dos	Editores	de	Livros,	RJ
O’Connor,	Flannery,	1925-1964
Um	homem	bom	é	difícil	de	encontrar	e	outras	histórias	/	Flannery	O’Connor;	tradução	e
prefácio	Leonardo	Fróes.	-	1.	ed.	-	Rio	de	Janeiro:	Nova	Fronteira,	2018.
224	p.;	23	cm.	(Clássicos	de	ouro)
Tradução	de:	A	Good	Man	is	Hard	to	Find	and	Other	Stories
ISBN	9788520943397
1.	Conto	americano.	I.	Fróes,	Leonardo.	II.Título.	III.	Série.
CDD:	813
CDU:	821.111(73)-3
SUMÁRIO
A	lua	gorda	e	o	sol,	hóstia	de	sangue,	por	Leonardo	Fróes
Um	homem	bom	é	difícil	de	encontrar
O	rio
A	vida	que	você	salva	pode	ser	a	sua
Um	golpe	de	sorte
Um	templo	do	Espírito	Santo
O	negro	artificial
Um	círculo	no	fogo
Um	último	encontro	com	o	inimigo
Gente	boa	da	roça
O	Refugiado	de	Guerra
Sobre	a	autora
A	LUA	GORDA	E	O	SOL,	HÓSTIA	DE	SANGUE
Se	 lidos	 só	 pelo	 enredo,	 os	 contos	 de	 Flannery	 O’Connor	 podem	 causar	 a
impressão	 de	 que	 fazem	 a	 apologia	 da	 desgraça.	 Em	 suas	 criações	 tão	 bizarras,
porque	 tão	 diferentes	 dos	 padrões	 costumeiros,	 nada	 em	 geral	 termina	 bem,	 e
banhos	lancinantes	de	sangue	ou	o	fragor	das	desilusões	e	derrotas	são	das	normas
mais	 constantes	 na	 maquinação	 dos	 desfechos.	 Ao	 término	 de	 cada	 conto,	 o
mundo	 das	 pessoas	 se	 mostra	 como	 construção	 desumana,	 impiedosa	 e
insustentável	 que	 em	 vão	 procura	 algum	 amparo	 sobre	 os	 piores	 instintos.	Ora
esse	 mundo	 é	 uma	 clausura	 sufocante,	 que	 decorre	 das	 próprias	 e	 obscuras
limitações	 do	 ego,	 ora	 é	 um	 conjunto	 vago	 e	 totalmente	 incontornável	 de
barreiras	que	parecem	erguidas	por	projeções	demoníacas.
Lidos	 no	 entanto	 como	 invenções	 literárias,	 com	 seus	 muitos	 valores
sobrepostos	 à	 mera	 evolução	 linear	 do	 enredo,	 os	 contos	 de	 Flannery	 são
afirmações	modelares	de	um	espírito	invulgar	e	de	um	olhar	como	poucos.	Seus
textos	 contêm	 uma	 corrosiva	 essência	 satírica	 que,	 no	 desenrolar	 das	 tragédias,
aponta	para	nossas	fraquezas	e	o	que	às	vezes	se	revela	como	ridículo	ou	grotesco
nos	desempenhos	da	espécie.
Um	 dos	 primeiros	 contos	 deste	 livro,	 “Um	 golpe	 de	 sorte”,	 põe	 a	 sanha
caricatural	da	autora	em	acentuado	relevo.	A	personagem	à	qual	ele	se	restringe,
“mulher	baixa	e,	por	sua	conformação,	quase	igual	a	uma	urna	funerária”,	foi	às
compras	 e	 anda	 esbaforida	 sob	o	peso	dos	 embrulhos	que	 traz.	Quando	batalha
para	subir	a	escada	que	a	levará	finalmente	para	casa,	a	descrição	concisa	que	ela
inspira	 mais	 parece	 retirada	 de	 um	 camafeu	 zombeteiro.	 A	 mulher-urna,	 nas
palavras	de	Flannery,	“tinha	o	cabelo	cor	de	amora	amontoado	em	rolinhos,	que
nem	salsichas	ao	redor	da	cabeça,	mas	com	o	calor	e	a	longa	caminhada	desde	a
mercearia	alguns	já	estavam	desfeitos	e	furiosamente	apontavam	nas	direções	mais
diversas”.
Aplicada	 para	 obter	 efeitos	 cômicos,	 a	 visão	 deformadora	 não	 se	 confina	 à
descrição	de	seres	humanos.	Objetos	banais	do	dia	a	dia,	detalhes	arquitetônicos,
veículos,	animais	e	até	a	própria	natureza	frequentemente	também	são	submetidos
a	um	tratamento	que	exagera	contornos,	adultera	formas	e	embaralha	as	cores	das
cenas	para	pintar	quadros	verbais	que	contenham	alto	teor	de	expressividade.
“Uma	 lua	 gorda	 e	 amarela	 surgiu	 nos	 galhos	 da	 figueira	 como	 se	 fosse	 se
empoleirar	ali	com	as	galinhas”,	lê-se,	nessa	linha	de	figurações	com	chacota,	no
conto	“A	vida	que	você	salva	pode	ser	a	sua”.	Em	“O	rio”,	é	“como	uma	penca
de	verrugas	na	encosta	da	montanha”	que	um	menino	avista	ao	longe	a	cidade.	E
o	que	 ele	 vê	 em	 seguida?	Que	“os	 passarinhos,	 baixando,	 foram	pousar	 de	 asas
dobradas,	como	se	sustentassem	o	céu,	no	topo	do	pinheiro	mais	alto”.	Já	o	conto
“Um	 templo	 do	 Espírito	 Santo”	 termina	 com	 este	 detalhe	 de	 paisagem	 que
subverte	 por	 completo	 as	 convenções	 de	 espaço	 em	 vigor:	 “O	 sol	 era	 uma
enorme	bola	vermelha,	como	uma	hóstia	empapada	de	sangue,	e,	quando	sumiu
de	 vista,	 deixou	 uma	 listra	 fina	 no	 céu,	 como	 uma	 estradinha	 de	 terra	 a	 pairar
sobre	as	árvores”.
Exemplos	assim,	que	aqui	e	ali	podem	ser	pinçados	ao	longo	de	todo	o	livro,
são	indícios	reveladores	de	que	a	literatura	de	Flannery	mantém	estreita	afinidade
de	 espírito	 com	um	dos	movimentos	mais	 importantes	 na	 evolução	 artística	 do
século	20,	o	expressionismo	nórdico	da	Europa,	cujas	premissas	e	posturas	ainda
tinham	 consequências	 tardias	 em	 seu	 tempo	 de	 vida.	 De	 propósito	 falei	 de
quadros,	formas,	cores,	contornos,	tratamento,	visão	deformadora,	usando	termos
do	vocabulário	das	artes	plásticas	para	situar	seus	trabalhos	na	mesma	linha	de	ânsia
de	expressão	e	procura	de	recursos	ainda	inexplorados.
Muitas	das	imagens	de	nossa	jovem	autora,	que	tinha	apenas	30	anos	quando
em	 1955	 publicou	Um	 homem	 bom	 é	 difícil	 de	 encontrar,	 logo	me	 faziam	 pensar,
enquanto	eu	traduzia	seus	contos,	nas	grandes	criações	dos	mestres	expressionistas.
A	obra	de	Flannery,	como	essas,	está	cheia	de	um	secreto	amargor	e	de	sofridas
indagações	 espirituais	 que	 comumente	 se	 entrelaçam	 com	 uma	 discordante
inclinação	ao	escárnio.
Há	 um	 curioso	 paralelismo	 temático	 entre	 dois	 dos	 contos	 que	 aqui	 se
enfeixam	—	“A	vida	que	você	salva	pode	ser	a	sua”	e	“Gente	boa	da	roça”.	Em
ambos,	 as	 principais	 personagens	 são	 mulheres	 mais	 velhas	 que	 vivem	 como
fazendeiras	reclusas,	sem	maridos,	em	companhia	de	filhas	únicas,	feias,	disformes
e	 sempre	 sem	 namorados.	 Em	 ambos,	 forasteiros	 que	 vêm	 a	 pé	 pela	 estrada	 se
aproximam	 das	 casas	 mergulhadas	 num	 isolamento	 completo.	 Os	 dois	 tipos
masculinos,	 jovens	 espertalhões	 que	 andam	 à	 cata	 de	 boas	 oportunidades,	 são
semelhantes	em	seus	traços	gerais,	igualando-se	principalmente	por	serem	grandes
canalhas	com	total	falta	de	escrúpulos.
Peripécias	à	parte,	o	que	mais	importa	nos	dois	contos	é	que	ambos	terminam
com	as	meninonas	sem	homens	das	fazendas	(na	realidade,	mulheres	virgens	por
volta	 dos	 30	 anos)	 envolvidas	 com	 os	 espertalhões	 forasteiros,	 que	 não	 pensam
senão	 em	obter	 vantagens	 e	 acabarão	 por	 abandoná-las.	O	 desfecho	 de	 “Gente
boa	 da	 roça”	 é	 uma	 das	 cenas	 mais	 cruéis	 que	 a	 literatura	 já	 pôde	 conceber.
Depois	 de	 fazer	 sexo	 com	 a	 filha	 aleijada	 da	 fazendeira,	 o	 jovem	 arrivista,
supostamente	um	vendedor	de	Bíblias,	foge	carregando	consigo,	por	maldade	nua
e	crua,	a	perna	de	pau	que	a	moça	usava.
O	 tema	 repetido	 é	 curioso	 porque	 inevitavelmente	 remete	 à	 situação
existencial	da	própria	autora.	Filha	única	de	um	casal	que	dispunha	de	dinheiro,	a
americana	 Flannery	 O’Connor	 nasceu	 em	 1925,	 em	 Savannah,	 na	 Georgia,	 e
morreu	 em	 1964,	 com	 39	 anos,	 num	 hospital	 do	 mesmo	 estado.	 Em	 1941,
quando	a	 família	 já	era	proprietária	da	Fazenda	Andalusia,	em	Milledgeville,	 seu
pai	morreu	de	lúpus	eritematoso,	doença	hereditária	e	até	então	incurável	que	em
1952	 foi	 diagnosticada	 também	na	 filha.	 Sabendo-se	 condenada,	 Flannery	 ainda
viveu	mais	doze	anos	em	reclusão	na	fazenda,	amparada	por	sua	mãe	viúva	e	em
condições	 comparáveis	 às	 das	 ficções	 que	 ela	 criou	 em	 “A	 vida	 que	 você	 salva
pode	ser	a	sua”	e	“Gente	boa	da	roça”.
Àespera	 da	morte	 certa,	 Flannery	O’Connor	 não	 só	 publicou	 seu	 primeiro
livro,	 o	 romance	Sangue	 sábio,	 editado	 no	mesmo	 ano	 em	 que	 o	 lúpus	 nela	 se
manifestou,	 como	 também	 escreveu	 ou	 finalizou	 a	 maioria	 dos	 contos	 que
compõem	sua	obra.	Sua	vida	na	 fazenda	difere	basicamente	da	 relatada	nos	dois
textos	 sobre	moças	 reclusas	 por	 não	 ter	 sido	 tão	 rústica	 e	 desprovida	 de	meios
quanto	a	dos	ambientes	fictícios.
Na	Andalusia	de	Milledgeville,	bela	e	grande	propriedade	que	hoje	abriga	um
museu	 dedicado	 à	 sua	 memória,	 administrado	 pela	 Universidade	 Estadual	 da
Georgia,	Flannery	O’Connor	viveu	com	todo	o	conforto	e	pôde	se	envolver	com
a	criação	de	aves	exóticas	—	entre	as	quais	seus	adorados	pavões,	a	cujas	deleitosas
plumagens,	 iridescentes	 e	 expressionistas	 pela	 explosão	 de	 cores,	 as	 páginas
angustiantes	deste	livro	fazem	alusões	bem	frequentes.
Leonardo	Fróes
UM	HOMEM	BOM	É	DIFÍCIL	DE	ENCONTRAR
A	 avó	 não	 queria	 ir	 para	 a	 Flórida.	 Queria	 visitar	 uns	 parentes	 no	 leste	 do
Tennessee	 e	 aproveitava	 todas	 as	 oportunidades	 para	 induzir	Bailey	 a	mudar	 de
ideia.	Bailey,	o	filho	com	o	qual	ela	morava,	 seu	único	filho	homem,	sentado	à
mesa	na	beira	da	cadeira,	dobrava-se	sobre	o	alaranjado	da	página	de	esportes	do
Journal.	“Olhe	só	isso	aqui,	Bailey,	olhe	só,	leia	isso	aqui”,	disse	ela	em	pé	a	seu
lado,	 com	uma	das	mãos	no	quadril	magro	e	 a	outra	 esfregando	outra	 folha	de
jornal	 na	 careca	 do	 filho.	 “Esse	 tal	 cara	 que	 fugiu	 da	 penitenciária	 federal,	 o
Desajustado,	 como	 ele	 mesmo	 se	 chama,	 e	 que	 foi	 justamente	 em	 direção	 à
Flórida…	Leia	só	o	que	diz	aqui,	veja	o	que	ele	fez	com	as	pessoas.	Vale	a	pena
você	ler.	Eu	é	que	não	levaria	os	meus	filhos,	 fosse	 lá	para	onde	fosse,	com	um
bandido	 desses	 assim	 à	 solta	 na	 área.	 Não	 ficaria	 em	 paz	 com	 a	 minha
consciência.”
Bailey	não	olhou	para	cima,	não	parou	de	ler	o	que	lia,	e	ela	então	deu	uma
volta.	 Foi	 ficar	 cara	 a	 cara	 com	 a	 mãe	 das	 crianças,	 mulher	 nova,	 numa	 calça
folgada,	cujo	rosto	era	tão	largo	e	inocente	quanto	um	repolho,	estando	envolto
num	lenço	verde	de	cabeça	amarrado	com	duas	pontas	no	alto,	como	as	orelhas
de	 um	 coelho.	 Ela,	 sentada	 no	 sofá	 para	 alimentar	 o	 bebê,	 dava-lhe	 geleia	 de
damasco	 que	 tirava	 do	 vidro.	 “À	 Flórida	 as	 crianças	 já	 foram”,	 disse	 a	 velha
senhora.	 “Deveriam	 levá-las	 a	 algum	 outro	 lugar,	 para	 variar,	 para	 que	 vejam
diferentes	 partes	 do	mundo	 e	 possam	 ter	 perspectivas	mais	 amplas.	Ao	 leste	 do
Tennessee	elas	nunca	foram.”
A	mãe	 das	 crianças	 nem	 pareceu	 escutar,	 mas	 o	 garoto	 de	 oito	 anos,	 John
Wesley,	parrudinho	e	de	óculos,	disse:	“Se	a	senhora	não	quer	ir	para	a	Flórida,
por	 que	 é	 que	 não	 fica	 em	 casa?”	 Ele	 e	 a	 menina,	 June	 Star,	 estavam	 lendo
histórias	em	quadrinhos	no	chão.
“Em	 casa?	 Duvido.	 Por	 nada	 desse	 mundo	 ela	 fica”,	 disse	 June	 Star	 sem
levantar	a	cabeça.
“Ah,	 é?	 E	 o	 que	 fariam	 vocês,	 se	 esse	 camarada,	 o	 Desajustado,	 pegasse
vocês?”
“Eu	quebrava	a	cara	dele”,	John	Wesley	disse.
“Nem	por	um	milhão	de	dólares	ela	 ficava	em	casa”,	 June	Star	disse.	“Tem
medo	de	estar	perdendo	coisas.	Tem	de	ir	pra	toda	parte	com	a	gente.”
“Está	 bem,	 mocinha”,	 disse	 a	 avó.	 “Da	 próxima	 vez	 que	 me	 pedir	 para
cachear	seu	cabelo,	você	vai	ver	uma	coisa.”
June	Star	disse	que	seu	cabelo	já	era	naturalmente	cacheado.
Na	manhã	seguinte	a	avó	foi	a	primeira	a	entrar	no	carro,	pronta	para	partir.
Tinha	 posto	 num	 canto	 sua	 enorme	malinha	 preta,	 que	 parecia	 uma	 cabeça	 de
hipopótamo,	por	baixo	da	qual	ela	escondia	numa	cesta	o	gato,	Pitty	Sing.	Não
quis	deixar	o	gato	em	casa	sozinho,	por	três	dias,	porque	ele	sentiria	muito	a	sua
falta	e	ela	tinha	medo	de	que	acidentalmente	se	asfixiasse	ao	se	esfregar	num	bico
de	gás.	Mas	o	filho	dela,	Bailey,	não	gostava	de	chegar	a	um	motel	com	um	gato.
A	avó	ia	no	banco	de	trás,	no	meio,	com	um	neto	de	cada	lado,	John	Wesley
e	June	Star.	Bailey	e	a	mãe	das	crianças	com	o	bebê	iam	na	frente	e	eles	saíram	às
oito	 e	quarenta	 e	 cinco	de	Atlanta	 com	o	painel	 indicando	89.944	quilômetros
rodados.	A	avó	anotou	o	número	por	achar	que	seria	 interessante	 saber	quantos
quilômetros	eles	teriam	feito,	quando	voltassem	para	casa.	Levaram	vinte	minutos
para	atingir	a	periferia	da	cidade.
A	velha	 senhora	 se	 instalou	à	vontade,	 tirando	as	 luvas	brancas	de	algodão	e
pondo-as	 junto	 com	 a	 bolsa	 no	 espaço	 por	 trás	 do	 banco.	 A	mãe	 das	 crianças
continuava	com	a	mesma	calça	folgada,	e	com	o	mesmo	lenço	verde	amarrado	na
cabeça,	 mas	 a	 avó	 estava	 usando	 um	 chapéu	 de	 palha	 azul-marinho,	 com	 um
buquê	de	violetas	brancas	na	aba,	e	um	vestido	também	azul-marinho	de	bolinhas
brancas.	A	gola	e	os	punhos	eram	de	organdi	branco,	com	debruns	de	 renda,	e
um	ramalhete	roxo	de	violetas	de	pano,	que	era	um	sachê,	estava	pendurado	em
seu	peito.	Qualquer	um	que	a	visse	morta	na	estrada,	em	caso	de	acidente,	logo
saberia	tratar-se	de	uma	senhora	distinta.
Disse	que	o	dia,	a	seu	ver,	era	bom	para	viajar,	nem	muito	quente	nem	muito
frio	 demais,	 e	 lembrou	 a	 Bailey	 que	 o	 limite	 de	 velocidade	 era	 de	 noventa
quilômetros	por	hora,	e	que	os	guardas	rodoviários,	escondidos	atrás	de	anúncios
e	de	amontoados	de	árvores,	logo	saíam	em	disparada	atrás,	sem	nem	dar	chance
de	 reduzir.	E	 apontou	 interessantes	detalhes	dos	panoramas:	Stone	Mountain;	o
granito	 azulado	 que	 nalguns	 trechos	 aflorava	 de	 ambos	 os	 lados	 da	 rodovia;	 os
barrancos	brilhantes,	de	barro	vermelho	rajado	ligeiramente	de	roxo;	e	as	diversas
plantações	 enfileiradas	 como	 rendilhados	 verdes	 na	 terra.	 As	 árvores	 estavam
cheias	de	uma	 luz	 solar	prateada,	e	até	mesmo	as	mais	 insignificantes	brilhavam.
As	 crianças	 iam	 lendo	 suas	 histórias	 em	 quadrinhos	 e	 a	 mãe	 tinha	 voltado	 a
dormir.
“Vamos	passar	pela	Geórgia	bem	rápido	para	não	 ter	de	olhar	muita	 coisa”,
John	Wesley	disse.
“Eu,	se	eu	fosse	um	menino”,	disse	a	avó,	“eu	não	falaria	assim	desse	jeito	do
meu	estado	natal.	O	Tennessee	tem	montanhas,	a	Geórgia	tem	suas	colinas…”
“O	Tennessee	não	passa	 de	um	 lixão,	 é	 uma	 terra	 de	 arigós”,	 John	Wesley
disse,	“e	a	Geórgia	também	é	uma	porcaria	de	estado.”
“É	isso	mesmo”,	disse	June	Star.
“No	meu	tempo”,	a	avó	disse,	cruzando	os	dedos	de	veias	finas,	“as	crianças
tinham	mais	 respeito	pela	 terra	natal,	 pelos	 pais	 e	 por	 tudo	o	mais.	Procedia-se
bem,	naquela	época.	Oh,	mas	vejam	só	o	pretinho,	que	graça!”,	disse	e	apontou
para	um	menino	negro,	em	pé	na	porta	de	um	barraco.	“Não	daria	um	quadro?”,
perguntou,	e	 todos	 se	viraram,	olhando	o	menino	negro	pelo	vidro	de	 trás.	Ele
deu	adeus.
“Ele	estava	sem	calça”,	disse	June	Star.
“Talvez	 nem	 tenha”,	 a	 avó	 explicou.	 “Os	 negrinhos	 da	 roça	 não	 são	 assim
como	nós,	não	têm	coisas.”	E	acrescentou:	“Ah,	se	eu	soubesse	pintar,	bem	que
faria	esse	quadro!”
As	crianças	trocaram	de	revista.
A	avó	se	ofereceu	para	segurar	o	bebê,	que	a	mãe	das	crianças	lhe	passou	por
cima	do	banco.	Tendo-o	posto	nos	 joelhos,	ela	agora	o	puxava	para	cima	e	 lhe
falava	das	coisas	pelas	quais	estavam	passando.	Revirava	os	olhos,	fazia	bico	com	a
boca,	colava	a	cara	magra	e	dura	no	rosto,	lisinho	e	fofo,	da	criança,	que	de	vez
em	quando	 lhe	dava	algum	sorriso	distante.	Passaram	por	uma	grande	plantação
de	 algodão	 com	 um	 cercado	 com	 cinco	 ou	 seis	 túmulos	 no	meio,	 como	 uma
ilhota.
“Olhem	lá	o	cemitério!”,	disse	a	avó,	apontando.	“O	antigo	campo-santo	da
família.	Pertencia	à	fazenda.”
“E	onde	está	a	fazenda?”,	John	Wesley	perguntou.
“E	o	vento	levou…”,	disse	a	avó.	“Ha,	ha.”
As	 crianças,	 quando	 acabaram	 todas	 as	 revistas	 levadas,	 abriram	 e	 comeram
seus	lanches.	A	avó	comeu	um	sanduíche	de	pasta	de	amendoim	e	uma	azeitona	e
não	 deixou	 as	 crianças	 jogarem	 pela	 janela	 os	 guardanapos	 e	 sacos	 de	 papel.
Quando	não	tinham	mais	o	que	fazer,	brincaram	de	escolher	uma	nuvem	para	os
outrosadivinharem	a	 forma	que	ela	 sugeria.	 John	Wesley	escolheu	uma	nuvem
que	tinha	forma	de	vaca,	June	Star	falou	vaca	e	ele	disse	que	não,	que	era	carro,	e
June	Star	disse	que	John	Wesley	estava	jogando	sujo	e	logo	estavam	os	dois,	por
cima	da	avó,	aos	tapas.
A	avó	disse	que	contaria	uma	história	se	eles	ficassem	quietos.	E	ela,	quando
contava	uma	história,	 revirava	os	olhos	e	 agitava	 a	 cabeça	e	era	 toda	dramática.
Contou	então	que	nos	seus	tempos	de	moça	tinha	sido	cortejada	por	um	rapaz	de
Jasper,	 na	 Geórgia,	 chamado	 Charles	 Otoline	 Miles	 Erlanger	 Robertson.	 Um
rapaz	muito	 atraente,	 um	 cavalheiro,	 segundo	 a	 avó,	 que	 todo	 sábado	 à	 tarde,
quando	a	visitava,	levava-lhe	uma	melancia	com	suas	iniciais	gravadas:	C.O.M.E.R.
Num	desses	 sábados,	 como	 ela	 disse,	Robertson	 chegou	 com	 a	melancia	 e	 não
havia	ninguém	em	casa	e	ele	a	deixou	na	varanda	e	voltou	para	Jasper	na	charrete,
mas	essa	melancia	ela	nunca	viu,	porque	um	negrinho	a	devorou,	como	ela	disse,
quando	 leu	as	 iniciais	C.O.M.E.R.	A	historinha	agradou	em	cheio	a	 John	Wesley,
que	estourou	numa	gargalhada	e	se	retorcia	de	rir,	mas	June	Star	não	achou	graça
nenhuma.	Disse	que	jamais	se	casaria	com	um	homem	que	se	limitasse	a	levar-lhe
uma	melancia	no	sábado.	Já	a	avó	disse	que	para	ela	teria	sido	uma	beleza	se	casar
com	Robertson,	porque	ele	era	um	homem	muito	distinto	e	comprou	ações	da
Coca-Cola	 logo	 que	 foram	 lançadas	 e	 só	 tinha	 morrido	 há	 poucos	 anos,
riquíssimo.
Pararam	 para	 comer	 uns	 sanduíches	 grelhados	 num	 lugar	 chamado	 The
Tower.	Era	um	misto	de	 salão	de	 festas	 e	posto	de	gasolina,	 parte	 em	madeira,
parte	em	estuque,	instalado	numa	clareira	nos	arredores	de	Timothy.	O	dono	era
um	gordo,	Red	Sammy	Butts,	e	havia	placas	penduradas	ali	por	toda	parte,	e	por
quilômetros	 na	 rodovia,	 dizendo:	 EXPERIMENTE	 O	 AFAMADO	 GRELHADO	 DE	 RED
SAMMY.	NENHUM	SE	COMPARA	AO	DELE!	RED	SAM,	O	GORDINHO	DA	RISADA	FELIZ!
UM	VETERANO!	RED	SAMMY,	O	HOMEM	CERTO!
Deitado	 no	 chão,	 do	 lado	 de	 fora	 do	 The	 Tower,	 estava	 o	 próprio	 Red
Sammy.	Tinha	 a	 cabeça	 enfiada	 embaixo	de	um	caminhão,	 enquanto	um	mico
cinzento	de	seus	trinta	centímetros,	amarrado	pela	corrente	a	um	pé	de	saboeiro,
fazia	papagueatas	por	perto.	Bastou	ver	as	crianças	saltarem	do	carro	e	correrem	na
sua	direção	para	o	mico	pular	de	volta	na	árvore	e	subir	ao	galho	mais	alto.
Por	dentro,	The	Tower	era	um	salão	comprido	e	escuro,	com	um	balcão	de
um	lado,	mesas	do	outro,	e	um	espaço	para	dançar	no	meio.	Sentaram-se	a	uma
mesa	 de	 tábuas,	 ao	 lado	 da	 vitrola	 automática,	 e	 a	 mulher	 de	 Red	 Sam,	 alta,
queimada,	de	cabelo	e	olhos	mais	claros	do	que	sua	pele	morena,	veio	atendê-los.
A	 mãe	 das	 crianças	 pôs	 uma	 moeda	 na	 máquina	 e	 escolheu	 “A	 valsa	 do
Tennessee”.	A	avó	disse	que	sempre	sentia	vontade	de	dançar	com	essa	música	e
perguntou	a	Bailey	se	ele	dançaria	com	ela,	mas	ele	apenas	a	olhou	de	banda.	Não
tinha	a	disposição	dela,	assim	toda	animada,	e	as	viagens	o	deixavam	nervoso.	Os
olhos	da	avó,	olhos	castanhos,	brilhavam	muito.	Sentada,	ela	 fazia	de	conta	que
dançava,	 jogando	 a	 cabeça,	 na	 cadeira,	 para	 os	 dois	 lados.	 June	 Star	 pediu	 para
tocar	uma	música	que	desse	para	sapatear	e	assim	a	mãe	das	crianças	pôs	uma	outra
moedinha	e	escolheu	algo	mais	 rápido.	 June	Star	pulou	na	pista	e,	como	era	de
seu	hábito,	sapateou.
“Que	 gracinha!”,	 disse	 a	mulher	 de	Red	Sam,	 debruçada	 no	balcão.	 “Você
quer	vir	morar	comigo?	Quer	ser	a	minha	filhinha?”
“Nem	 por	 sombra”,	 June	 Star	 disse,	 “nem	 por	 um	 milhão	 de	 dólares	 eu
moraria	num	lugar	tão	caído	assim!”,	e	voltou	correndo	para	a	mesa.
“Mas	não	é	mesmo	uma	gracinha?”,	repetia	a	mulher,	esticando	polidamente
os	beiços.
A	avó	ralhou:	“Não	tem	vergonha	não?”
Red	Sam	entrou	e	disse	à	esposa	para	correr	com	o	pedido	dos	fregueses,	em
vez	de	ficar	ali	no	balcão	fazendo	hora.	Sua	calça	cáqui	vinha	arriada	até	quase	as
coxas,	sob	o	peso	da	barriga	que	despencava	como	um	saco	de	farinha	trepidando
por	 baixo	 da	 camisa.	 Aproximou-se,	 sentou-se	 perto	 e	 deixou	 escapar	 algo
impreciso,	 combinação	de	 suspiro	e	cantoria.	“Não	dá	pra	 levar”,	dizia.	“Assim
não	 dá	 pra	 levar!”,	 e	 com	 um	 lenço	 acinzentado	 enxugava	 o	 suor	 do	 rosto
vermelho.	“Hoje	em	dia	não	se	pode	confiar	em	ninguém”,	disse	depois.	“Não	é
verdade?”
“As	pessoas	certamente	não	são	mais	tão	gentis	como	já	foram”,	disse	a	avó.
“Semana	 passada”,	 disse	 Red	 Sammy,	 “vieram	 aqui	 dois	 camaradas,	 num
Chrysler.	Um	 carro	 velho,	muito	 rodado,	mas	 bom,	 e	 os	 rapazes	me	 pareciam
gente	 direita.	 Disseram	 que	 trabalhavam	 no	 moinho,	 e	 não	 é	 que	 eu	 vendi
gasolina	fiado	para	eles?	Por	que	fui	fazer	isso?”
“Porque	o	senhor	é	um	homem	bom”,	a	avó	disse.
“É,	 dona,	 acho	 que	 sim”,	 disse	 Red	 Sam,	 como	 se	 ficasse,	 ele	 mesmo,
espantado	com	a	resposta.
Sua	mulher	chegou	com	os	pedidos,	carregando	os	cinco	pratos,	sem	bandeja,
de	uma	só	vez:	dois	em	cada	mão	e	mais	um	equilibrado	no	braço.	“Não	há	alma
que	seja	neste	mundo	de	Deus”,	disse	ela,	“em	quem	se	possa	confiar.	E	eu	não
excluo	ninguém,	ninguém	mesmo”,	repetiu,	olhando	para	Red	Sammy.
“Vocês	leram	alguma	coisa	sobre	aquele	bandido,	o	Desajustado,	que	fugiu	da
cadeia?”,	a	avó	perguntou.
“Eu	não	ficaria	nem	um	pouco	surpresa	se	agora	mesmo	ele	atacasse	esse	lugar
aqui”,	disse	a	mulher.	“Se	ele	souber	que	nós	estamos	aqui,	e	se	me	aparecer	pela
frente,	não	 ficarei	nada	 surpresa.	Se	 souber	que	na	caixa	registradora	 tem	algum
dinheiro,	não	ficarei	nada	surpresa	se	ele…”
“Chega!”,	Red	Sam	disse.	“Traz	logo	as	Cocas	dos	fregueses”,	e	a	mulher	lá
se	foi	a	completar	o	pedido.
“Um	 homem	 bom	 é	 difícil	 de	 encontrar”,	 disse	 Red	 Sammy.	 “Tudo	 está
ficando	 um	horror.	 Lembro	 do	 tempo	 em	que	 se	 podia	 sair	 tranquilamente	 de
casa	e	deixar	a	porta	aberta.	Agora	não	mais.”
Ele	e	a	avó	se	distraíram	conversando	sobre	tempos	melhores.	A	culpada	era	a
Europa,	 na	 opinião	 da	 velha	 senhora,	 se	 as	 coisas	 andavam	 assim	 agora.	 Pela
atitude	 da	 Europa,	 segundo	 ela,	 até	 se	 poderia	 pensar	 que	 os	 americanos	 eram
feitos	 de	 dinheiro,	 e	 Red	 Sam	 disse	 que	 nem	 adiantava	 falar	 daquilo,	 que	 ela
estava	coberta	de	razão.	As	crianças	correram	para	fora,	para	a	claridade	do	sol,	e
foram	ver	o	macaquinho	no	saboeiro	rendado.	O	mico	estava	entretido,	catando
pulgas	que	comia,	como	guloseimas,	com	um	demorado	estalar	de	dentes.
Depois,	pela	tarde	quente,	a	família	prosseguiu	em	viagem.	A	avó	dava	umas
cochiladas	e	de	quando	em	quando	era	despertada	pelos	seus	próprios	roncos.	Nos
arredores	de	Toombsboro,	ao	acordar	de	vez,	 lembrou-se	de	uma	velha	fazenda
que	ela	havia	visitado	por	ali,	na	região,	quando	moça.	Disse	que	a	casa	tinha	seis
colunas	brancas	na	 frente,	uma	 fileira	de	 carvalhos	 conduzindo	 à	 entrada	 e	dois
pequenos	 caramanchões	 de	madeira,	 bem	 na	 frente,	 um	 de	 cada	 lado,	 onde	 as
moças	 sentavam-se	com	os	pretendentes,	depois	de	algumas	voltas	no	 jardim.	A
estrada	que	era	preciso	pegar	para	chegar	até	lá	veio-lhe	com	precisão	à	memória.
Ela	 sabia	 que	Bailey	não	 concordaria	 em	perder	 tempo	 só	para	 ir	 ver	uma	 casa
velha,	mas	quanto	mais	falava	nisso,	mais	ela	queria	revê-la,	querendo	saber	se	os
caramanchões	geminados	 ainda	 estavam	de	pé.	 “Havia	nessa	 casa	uma	passagem
secreta”,	 disse	 pois	 com	 astúcia,	 sem	 contar	 uma	 verdade,	 mas	 desejando	 que
assim	 fosse,	 “e	 diziam	 que	 a	 prataria	 da	 família	 foi	 toda	 escondida	 lá,	 quando
Sherman	passou	por	aqui,	e	nunca	pôde	ser	encontrada…”
“Oba,	então	vamos	lá!”,	John	Wesley	disse.	“Vamos	descobrir	essa	prata!	É	só
abrir	o	madeirame,	 é	 só	 ir	 tirando	as	 tábuas,	que	 a	gente	 acha.	Quem	mora	 lá?
Onde	é	que	se	pega	o	caminho?	Ei,	pai,	não	dá	para	dobrar	por	ali?”
“Nunca	vimos	uma	casa	com	passagem	secreta”,	berrou	June	Star.	“Vamos	ver
a	 casa	 com	passagem	 secreta!	Oba!	Papai,	 temos	de	 ir	 ver	 a	 casa	 com	passagem
secreta!”
“Eu	 sei	 que	 não	 ficalonge	 daqui”,	 disse	 a	 avó.	 “Nem	 bem	 uns	 vinte
minutos.”
Bailey	olhava	reto	em	frente,	com	o	queixo	tão	rígido	quanto	uma	ferradura.
“Não”,	ele	disse.
A	 gritaria	 das	 crianças,	 querendo	 ver	 a	 casa	 com	 passagem	 secreta,	 não	 fez
senão	aumentar.	John	Wesley	chutava	as	costas	do	banco	dianteiro,	e	June	Star	se
pendurou	no	ombro	da	mãe,	em	cujo	ouvido	choramingou	desesperada	que	era
sempre	assim	mesmo,	que	nem	nas	férias	eles	se	divertiam,	que	eles	nunca	podiam
fazer	o	que	ELES	MESMOS	queriam.	O	bebê	já	estava	berrando.	E	os	chutes	de	John
Wesley	no	assento	se	tornavam	tão	fortes	que	o	pai	já	sentia	os	golpes	nos	rins.
“Tá	legal!”,	o	pai	gritou,	e	parou	o	carro	no	acostamento.	“Mas	vocês	querem
calar	a	boca?	Querem	calar	a	boca	um	minuto?	Se	não	se	calarem,	não	vamos	a
lugar	nenhum!”
“Mas	seria	muito	instrutivo	para	eles”,	murmurou	a	avó.
“Está	bem”,	Bailey	disse,	“mas	anotem:	é	a	única	vez	em	que	nós	vamos	parar
por	uma	coisa	dessas.	É	a	primeira	e	última	vez.”
“A	 estrada	 de	 terra	 que	 você	 tem	 de	 pegar	 já	 ficou	 lá	 para	 trás,	 a	 uns	 dois
quilômetros”,	a	avó	orientou.	“Eu	a	notei	quando	passamos.”
“Estrada	de	terra…”,	resmungou	Bailey.
Quando	já	iam,	depois	de	terem	feito	um	retorno,	em	direção	à	tal	estrada,	a
avó	rememorou	outros	detalhes	da	casa,	como	o	belo	vitral	 sobre	a	entrada	e	o
candelabro	 do	 salão.	 John	 Wesley	 disse	 que	 a	 passagem	 secreta	 provavelmente
ficava	na	lareira.
“Não	se	pode	entrar	na	casa”,	Bailey	disse.	“Nem	sabemos	quem	mora	lá.”
“Posso	 ir	 por	 trás,	 enquanto	 vocês	 conversam	 com	 as	 pessoas	 na	 frente,	 e
entrar	por	uma	janela	“,	John	Wesley	sugeriu.
“Não”,	disse	a	mãe,	“vamos	ficar	todos	no	carro.”
O	carro,	sacolejando	muito,	entrou	pela	estradinha	de	barro	num	turbilhão	de
poeira	 cor-de-rosa.	 A	 avó	 se	 lembrou	 dos	 tempos	 em	 que	 não	 havia	 estradas
asfaltadas	 e	 se	 levava	 um	 dia	 inteiro	 para	 andar	 cinquenta	 quilômetros.	 A
estradinha	era	acidentada	e	íngreme,	com	inesperadas	crateras	de	atoleiros	e	curvas
muito	 fechadas	 em	 perigosos	 barrancos.	 Ora	 eles	 estavam	 bem	 no	 alto	 de	 um
morro,	 vendo	 as	 copas	 azuladas	 das	 árvores	 que	 se	 estendiam	 lá	 embaixo,	 por
quilômetros	 em	 torno,	 ora,	 logo	 a	 seguir,	 já	 estavam	 numa	 depressão	 de	 terra
vermelha,	com	árvores	empoeiradas	por	cima.
“É	 melhor	 esse	 lugar	 aparecer	 logo”,	 Bailey	 disse,	 “porque	 senão	 eu	 vou
voltar.”
Dava	a	impressão	de	que	ninguém,	há	meses,	passava	naquela	estrada.
“Não	está	muito	longe”,	disse	a	avó,	e	justamente	quando	o	disse	ela	teve	um
pensamento	 horroroso.	 Um	 pensamento	 tão	 embaraçoso	 que	 seu	 rosto	 corou,
seus	 olhos	 se	 dilataram	 e	 os	 pés	 se	 mexeram	 muito	 no	 chão,	 atingindo	 e
deslocando	a	maletinha	no	canto.	No	mesmo	instante	em	que	a	valise	se	moveu,	a
folha	de	jornal	que	ela	usava	como	tampa	da	cesta	que	estava	embaixo	se	levantou
com	um	miado	e	voou	no	ombro	de	Bailey.
As	crianças	foram	jogadas	no	chão.	A	mãe,	agarrada	ao	bebê,	foi	jogada	porta
afora,	na	estrada.	A	velha	senhora	jogada	para	o	banco	da	frente.	O	carro	deu	uma
capotada	 e	 voltou	 à	 posição	 normal,	 mas	 fora	 da	 estrada,	 e	 numa	 vala.	 Bailey
permanecia	no	 lugar	do	motorista	 com	o	gato	—	 listrado	de	 cinza,	 cara	branca
achatada	e	focinho	cor	de	laranja	—	agarrado	como	lagarta	em	seu	pescoço.
As	 crianças,	 assim	 que	 conseguiram	 mexer	 braços	 e	 pernas,	 saíram	 se
espremendo	do	carro,	e	gritavam:	“Tivemos	um	ACIDENTE!”	Já	a	avó	se	encolheu
sob	 o	 painel,	 com	 a	 esperança	 de	 estar	 ferida	 para	 que	 a	 ira	 de	 Bailey	 não	 se
abatesse	 implacável	 sobre	 ela.	 O	 pensamento	 horroroso	 que	 havia	 tido,	 pouco
antes	do	acidente,	 foi	que	a	casa	da	qual	ela	 se	 lembrava	 tão	bem	não	 ficava	na
Geórgia,	mas	sim	no	Tennessee.
Bailey	tirou	o	gato	do	pescoço,	com	ambas	as	mãos,	e	o	arremessou	contra	o
tronco	de	um	pinheiro,	pela	janela.	Depois,	saindo	do	carro,	foi	procurar	a	mãe
das	crianças.	Essa,	que	estava	ao	lado	da	valeta	estripada,	e	ali	sentada	segurava	o
bebê	aos	berros,	tinha	ela	mesma	apenas	uma	fratura	no	ombro	e	um	corte	feio	no
rosto.	“Tivemos	um	ACIDENTE!”,	gritavam	as	crianças	numa	alegria	frenética.
“Mas	 não	 morreu	 ninguém”,	 disse,	 desapontada,	 June	 Star,	 quando	 a	 avó
desceu	mancando	do	carro	com	o	chapéu	ainda	preso	na	cabeça,	malgrado	a	aba
desabada	na	frente,	que	ela	tentava	recolocar	numa	posição	elegante,	e	o	buquê	de
violetas	 caído	 ao	 lado.	 Sentaram-se	 todos	 na	 valeta,	 menos	 as	 crianças,	 todos
tremendo	muito,	para	se	refazerem	do	susto.
“Talvez	 venha	 um	 carro	 por	 aí”,	 disse	 a	 mãe	 das	 crianças	 com	 a	 voz
embargada.
“Acho	que	 algum	órgão	meu	 foi	 afetado”,	disse	 a	 avó,	 apalpando-se	de	um
lado	do	corpo,	mas	ninguém	ligou	para	ela.	Os	dentes	de	Bailey	batiam	sem	parar.
Vestido	 numa	 camisa	 esporte	 amarela,	 na	 qual	 brilhavam,	 estampadas,	 umas
araras-azuis,	ele	estava	com	o	rosto	da	mesma	cor	da	camisa.	A	avó	achou	melhor
não	dizer	que	a	tal	da	casa	era	no	Tennessee.
A	estrada	se	encontrava	cerca	de	três	metros	acima,	e	eles	podiam	ver	apenas,
do	outro	 lado,	o	 topo	das	 árvores.	Por	 trás	da	vala	na	qual	 estavam	 sentados	 se
estendia	 a	mata	 cerrada,	 escura	 e	 alta.	 Em	poucos	minutos	 avistaram	um	 carro,
não	muito	 longe,	no	cocuruto	de	um	morro,	que	vinha	bem	devagar,	como	se
seus	ocupantes	os	observassem.	A	avó,	para	lhes	chamar	a	atenção,	levantou-se	em
espalhafatosos	 acenos,	 agitando	 os	 dois	 braços.	 O	 carro,	 que	 continuava	 a	 se
aproximar	 lentamente,	 desapareceu	 numa	 curva	 e	 ressurgiu	 adiante	 ainda	 mais
devagar,	 já	 no	 cume	 do	 morro	 por	 que	 eles	 tinham	 passado.	 Era	 um	 grande
automóvel	preto	e	velho,	em	péssimo	estado,	que	mais	parecia	um	carro	fúnebre.
Levava	três	homens	dentro.
Parou	bem	por	cima	deles	e,	por	alguns	minutos,	o	motorista	 ficou	olhando
para	baixo,	lá	para	onde	eles	estavam,	de	um	modo	fixo,	porém	sem	expressão,	e
não	 disse	 nada.	 Depois,	 virando	 a	 cabeça,	 sussurrou	 algo	 aos	 outros	 dois,	 que
desceram.	 Um,	 o	 gordo,	 de	 calça	 preta,	 que	 usava	 uma	 camiseta	 vermelha
adornada	no	peito	por	um	garanhão	prateado,	passou	por	eles	e	 foi	plantar-se	à
direita,	do	outro	lado,	de	onde	concentradamente	os	olhava,	com	uma	espécie	de
riso	frouxo	na	boca	aberta	pelo	meio.	O	outro,	de	calça	cáqui	e	paletó	listrado	de
azul,	com	um	chapéu	cinza	tão	enterrado	na	testa	que	lhe	ocultava	a	maior	parte
do	rosto,	lentamente	se	aproximou	pela	esquerda.	Nenhum	dos	dois	falava	nada.
O	motorista	saltou,	mas	continuou	ao	lado	do	carro,	de	pé,	olhando	para	eles
lá	embaixo.	Era	mais	velho	do	que	os	outros	dois	homens.	Seu	cabelo	 já	estava
meio	grisalho,	e	os	óculos	de	aros	prateados	davam-lhe	um	ar	estudioso.	Tinha	o
rosto	enrugado	e	o	peito	nu,	sem	camisa	nem	camiseta.	Sua	calça	blue	jeans	estava
muito	 apertada	 e	 ele	 empunhava	um	 revólver,	 tendo	na	outra	mão	 seu	 chapéu
preto.	Os	dois	rapazes	também	estavam	armados.
“Sofremos	um	ACIDENTE”,	as	crianças	gritavam.
A	avó	 teve	a	nítida	 impressão	de	que	 já	conhecia	 aquele	homem	de	óculos.
Seu	rosto	lhe	era	bem	familiar,	como	se	o	tivesse	conhecido	a	vida	toda,	e	ela	no
entanto	não	conseguia	se	lembrar	quem	era.	Ele	se	afastou	do	carro	e	começou	a
descer	pelo	barranco,	 firmando	os	pés	 com	atenção,	para	não	escorregar.	Usava
sapatos	de	duas	cores,	marrom	e	branco,	sem	meias,	e	linha	os	tornozelos	muito
vermelhos	e	finos.	“Boa	tarde”,	ele	disse.	“Tiveram	um	probleminha,	né?”
“Capotamos	duas	vezes!”,	disse	a	avó.
“Uma”,	ele	corrigiu.	“Nós	vimos	quando	aconteceu.	Ligue	 lá	o	carro	deles,
Hiram,	pra	ver	se	pega”,	disse	calmamente	para	o	rapaz	de	chapéu	cinza.
“Pra	 que	 essa	 arma?”,	 perguntou	 John	 Wesley.	 “Vai	 fazer	 o	 que	 com	 essa
arma,	hem?”
“Minha	 senhora”,	 disse	 o	 homem	 para	 a	 mãe	 das	 crianças,	 “mande	 essas
crianças	sentarem-se	aí	ao	seu	lado,	sim?	Crianças	me	põem	nervoso.	Quero	todos
vocês	sentados	juntos	aí,	aí	mesmo	onde	estão.”
“Por	que	é	que	você	está	dando	ordens	pra	gente?”,June	Star	perguntou.
A	mata	se	abria,	por	trás	deles,	como	uma	boca	escura.	“Venham	pra	cá”,	disse
a	mãe.
“Olha	aqui”,	disse	Bailey	bruscamente,	“nós	estamos	numa	enrascada!	Estamos
nu…”
A	avó	deu	um	grito.	Ficou	em	pé,	encarou	o	homem	e	disse:	“O	senhor	é	o
Desajustado!	Eu	logo	vi!”
“É,	 dona,	 sou	 sim”,	 disse	 o	 homem,	 com	 um	 ligeiro	 sorriso,	 como	 que
satisfeito	de	sua	fama,	apesar	dos	pesares,	“mas	seria	muito	melhor	para	todos	se	a
senhora	não	tivesse	me	reconhecido.”
Bailey	se	virou	abruptamente	e	disse	para	a	sua	mãe	qualquer	coisa	que	deixou
até	 mesmo	 as	 crianças	 chocadas.	 A	 velha	 senhora	 começou	 a	 chorar,	 e	 o
Desajustado	corou.
“Minha	senhora”,	ele	disse,	“não	fique	triste.	Às	vezes	um	homem	diz	coisas
sem	querer.	A	intenção	dele,	penso	eu,	não	era	falar	assim	com	a	senhora.”
“O	senhor	não	atiraria	em	mulher,	não	é?”,	disse	a	avó,	tirando	do	punho	do
vestido	um	lencinho	limpo	para	enxugar	os	olhos.
O	Desajustado	enfiou	o	bico	de	seu	sapato	na	terra	e	fez	um	buraquinho	que
depois	tampou.	“Eu	detestaria	ter	de	fazer	isso”,	disse.
“Escute	aqui”,	disse	a	avó	quase	gritando,	“eu	sei	que	o	senhor	é	um	homem
bom.	Não	aparenta	nem	um	pouco	ser	pessoa	comum.	Sei	que	deve	ser	de	boa
família!”
“Ah,	isso	sim”,	disse	ele,	“da	melhor	do	mundo.”	Deixava	à	mostra,	quando
ria,	seus	dentes	brancos	e	fortes.	“Deus	nunca	fez	mulher	mais	perfeita	do	que	a
minha	 mãe,	 e	 o	 coração	 do	 meu	 pai	 era	 ouro	 puro”,	 ele	 disse.	 O	 rapaz	 de
camiseta	vermelha	deu	a	volta	e,	com	sua	arma	apoiada	na	cintura,	 ficou	em	pé
por	 trás	 deles.	 O	Desajustado	 se	 agachou.	 “Olho	 nessas	 crianças,	 Bobby	 Lee”,
disse	ele.	“Você	sabe	que	elas	me	deixam	nervoso.”	Olhava	para	o	grupo	dos	seis
amontoados	ali	na	sua	frente	e	parecia	confuso,	como	se	não	achasse	o	que	dizer.
“Nem	uma	nuvem	no	céu,	não	é?”,	observou,	olhando	para	as	alturas.	“Não	se
vê	o	sol,	mas	também	não	se	vê	nuvem.”
“Pois	é,	está	um	dia	lindo!”,	disse	a	avó.	“Mas	ouça”,	acrescentou,	“o	senhor
não	deveria	se	chamar	de	Desajustado,	porque	eu	sei	que	é	um	homem	de	bom
coração.	Basta	olhar	a	sua	pessoa,	que	eu	logo	vejo.”
“Silêncio!”,	gritou	Bailey.	“Boca	calada	todo	mundo!	Deixem	comigo	que	eu
resolvo	a	parada.”	Ele	estava	a	postos,	na	posição	de	um	corredor	na	largada,	mas
não	se	moveu.
“Obrigado	 por	 suas	 boas	 palavras,	 minha	 senhora”,	 disse	 o	 Desajustado,
traçando	com	o	cabo	da	arma	uma	rodinha	no	chão.
“Levaria	uma	meia	hora	para	 ajeitar	 esse	 carro”,	 gritou	Hiram,	olhando	por
cima	do	capô	aberto.
“Tudo	bem,	mas	primeiro	você	e	o	Bobby	Lee	 levem	o	cara	e	o	garotinho
para	dar	uma	andada”,	disse	o	Desajustado,	apontando	Bailey	e	John	Wesley.	“Os
rapazes	 querem	 te	 perguntar	 uma	 coisa”,	 disse	 ele	 para	 Bailey.	 “Pode	 dar	 uma
chegadinha	ali	na	mata	com	eles?”
“Escute	 aqui”,	 começou	Bailey,	 “nós	 estamos	 numa	 enrascada	 terrível!	 Será
que	 ninguém	percebe?”,	mas	 sua	 voz	 sumiu,	 e	 ele	 permaneceu	 completamente
parado,	com	os	olhos	de	um	azul	tão	intenso	quanto	as	araras	da	camisa	que	usava.
A	avó	se	esticou	para	ajeitar	a	beirada	do	chapéu,	como	se	tivesse	de	ir	para	a
mata	também,	mas	o	chapéu	acabou	caindo	na	sua	mão.	Ela	o	olhou	por	algum
tempo	e	depois	o	deixou	cair	no	chão.	Hiram	puxou	Bailey	pelo	braço,	como	se
estivesse	ajudando	a	um	velho.	John	Wesley	se	agarrou	na	mão	do	pai,	e	Bobby
Lee	os	 seguiu.	Foram	 lá	para	 a	mata,	 e	quando	estavam	chegando	à	orla	 escura
Bailey	 se	virou	e,	 apoiado	no	 tronco	nu	e	 acinzentado	de	um	pinheiro,	gritou:
“Eu	volto	logo,	mamãe,	me	espere	aí!”
“Volte	 já!	Agora	mesmo!”,	gritou	a	mãe,	mas	 todos	 tinham	desaparecido	na
mata.
“Bailey,	meu	 filho!”,	 chamou	a	 avó	numa	voz	 trágica,	mas	deu-se	 conta	de
que	 tinha	pela	 frente,	 agachado	no	chão,	o	Desajustado,	para	o	qual	 aliás	estava
olhando.	“Sei	que	o	senhor	é	um	homem	bom”,	disse,	desesperada.	“Não	é	uma
pessoa	qualquer!”
“Não,	 dona,	 não	 sou	 bom	 não”,	 o	 Desajustado	 disse	 um	 segundo	 depois,
como	se	houvesse	refletido	sobre	o	que	ela	 tinha	dito,	“mas	 também	não	sou	o
pior	 do	 mundo.	 Meu	 pai	 dizia	 que	 eu	 era	 de	 outra	 raça,	 diferente	 dos	 meus
irmãos	e	irmãs.	Dizia	que	há	pessoas	capazes	de	passar	a	vida	toda	sem	perguntar
por	quê,	mas	que	outras	têm	de	saber	o	porquê	das	coisas,	e	que	eu	era	desse	tipo
e	 ia	me	meter	 em	 tudo.”	 Pôs	 o	 chapéu	 preto,	 olhou	 bruscamente	 para	 cima	 e
logo	 desviou	 o	 olhar	 lá	 para	 a	 mata,	 como	 se	 estivesse	 novamente	 sem	 jeito.
“Desculpem	 eu	 estar	 sem	 camisa	 assim	 diante	 das	 senhoras”,	 disse,	 encolhendo
ligeiramente	os	ombros.	“Nós	enterramos	nossas	roupas	depois	da	fuga,	e	temos
nos	safado	com	essas	até	achar	coisa	melhor.	Essas	nós	pegamos	com	um	pessoal
que	encontramos”,	explicou.
“Mas	então	está	tudo	bem”,	disse	a	avó.	“Bailey	deve	ter	uma	camisa	extra	na
mala.”
“Ah,	eu	vou	dar	uma	olhada”,	disse	o	Desajustado.
“Para	onde	estão	levando	eles?”,	berrou	a	mãe	das	crianças.
“O	 meu	 velho	 era	 um	 colosso.	 Ninguém	 passava	 a	 perna	 nele.	 Nunca	 se
meteu	numa	encrenca,	sabia	como	lidar	com	autoridades.”
“O	senhor	também,	se	quisesse	 tentar,	poderia	 ser	honesto”,	disse	a	avó.	“Já
pensou	que	maravilha	seria	fixar-se	numa	vida	tranquila,	sem	ter	de	pensar	se	há
alguém	a	persegui-lo	o	tempo	todo?”
O	Desajustado	pareceu	refletir.	Continuava	rabiscando	no	chão,	com	o	cabo
da	arma,	e	disse:	“Tem	sempre	alguém	atrás	da	gente.”
A	avó	pôde	notar	que	os	ombros	dele	eram	estreitos	demais,	 logo	abaixo	do
chapéu,	porque,	estando	em	pé,	ela	o	via	de	cima.	“Costuma	rezar?”,	perguntou.
Ele	meneou	a	cabeça.	Ela	só	viu	o	chapéu	preto	balançando	em	seus	ombros.
E	ele	disse:	“Não.”
A	 um	 tiro	 de	 pistola	 na	mata	 seguiu-se	 logo	mais	 um.	 Depois,	 silêncio.	 A
cabeça	da	avó	rodopiou.	Ela	ouviu	o	vento	passando	pelo	alto	das	árvores	como
uma	tomada	de	ar	longa	e	satisfatória.	“Bailey,	meu	filho!”,	gritou.
“Por	uns	tempos,	fui	cantor	gospel”,	disse	o	Desajustado.	“Já	fiz	um	pouco	de
tudo.	Fiz	meu	 serviço	militar,	em	terra	e	no	mar,	no	país	e	 lá	 fora,	 já	me	casei
duas	vezes,	já	fui	agente	funerário,	já	fui	ferroviário	e	já	lavrei	a	mãe	terra,	estive
em	um	tornado,	certa	vez	vi	um	homem	queimado	vivo…”	e	olhou	para	a	mãe
das	crianças	e	a	garota,	que	estavam	sentadas	bem	juntinhas,	com	o	rosto	pálido	e
os	olhares	vidrados.	“Vi	até	uma	mulher	ser	chicoteada”,	acrescentou.
“Reze”,	interveio	a	avó.	“Reze…”
“Não	me	 lembro	 de	 ter	 sido	 um	mau	menino”,	 o	Desajustado	 disse,	 numa
voz	como	que	em	devaneio,	“mas	o	fato	é	que	lá	pelas	tantas	fiz	alguma	coisa	de
errado	e	fui	para	a	cadeia.	Enterrado	vivo,	na	penitenciária”,	e	olhou	para	cima,
prendendo-lhe	a	atenção	com	um	olhar	persistente.
“Era	então	que	devia	ter	começado	a	rezar”,	ela	disse.	“O	que	foi	que	fez	para
ser	mandado	para	a	penitenciária	dessa	primeira	vez?”
“Do	lado	direito	uma	parede”,	disse	o	Desajustado,	“do	lado	esquerdo	outra.
Se	eu	me	virasse	para	cima,	via	o	teto;	para	baixo,	o	chão.	Esqueci	o	que	eu	fiz,
minha	 senhora.	 Sentava	 lá	 e	 ficava	 tentando	 lembrar	o	que	 eu	 tinha	 feito	 e	 até
hoje	não	 lembro.	De	vez	em	quando	parecia	que	 ia	vir,	que	eu	 ia	me	 lembrar,
mas	não	vinha.”
“Talvez	o	tenham	prendido	por	engano”,	disse	vagamente	a	velha	senhora.
“Não”,	ele	disse.	“Não	houve	erro.	Sabiam	tudo	a	meu	respeito.”
“Teria	roubado	alguma	coisa,	por	acaso?”,	ela	disse.
O	 Desajustado,	 zombando	 um	 pouco,	 riu.	 “Ninguém	 tinha	 nada	 que	 eu
quisesse”,	 disse.	 “Um	médico	 lá	 da	 penitenciária,	 um	médico	 de	 cabeça,	 sabe,
cismou	que	 eu	mesmo	 tinha	matado	meu	pai.	 Invenção	dele,	 é	 claro.	Meu	pai
morreu	 na	 epidemia	 de	 gripe	 de	 1919,	 e	 eu	 nunca	 tive	 nada	 com	 isso.	 Foi
enterrado	no	cemitério	da	igreja	batista	de	Mount	Hopewell.	Se	quiser,	pode	ir	lá
ver.”
“Jesus	lhe	ajudaria”,	disse	a	velha	senhora,	“se	o	senhor	rezasse.”
“Isso	é	verdade”,	disse	o	Desajustado.
“Mas	 então	 por	 que	 não	 reza?”,	 perguntou	 ela,	 trêmula,	 num	 repentino
deleite.
“Não	quero	ajuda”,	disse	ele.	Tenho	me	dado	bem	sozinho.”Bobby	Lee	e	Hiram	voltaram	da	mata	a	passos	lentos.	O	primeiro	arrastando
uma	camisa	amarela	com	araras-azuis	muito	brilhantes.
“Jogue	 essa	 camisa	 pra	mim”,	disse	o	Desajustado.	E	 a	 camisa	 veio	voando,
pousou	em	seu	ombro	e	ele	a	vestiu.	A	avó	não	conseguia	 saber	o	que	é	que	a
camisa	 lhe	 trazia	 à	 lembrança.	 “Não,	 dona”,	 disse	 o	 Desajustado,	 enquanto	 a
abotoava,	“eu	descobri	que	o	crime	não	importa.	Você	pode	fazer	isso	ou	aquilo,
matar	um	homem	ou	roubar	um	pneu	do	carro	dele,	porque	mais	cedo	ou	mais
tarde	você	se	esquecerá	do	que	fez	e	será	punido	justamente	por	isso.”
A	mãe	das	crianças	começou	a	dar	uns	gemidos,	como	se	não	pudesse	respirar
muito	bem.	“Dona”,	ele	pediu,	“pode	dar	uma	chegada	com	Bobby	Lee	e	Hiram
até	ali,	com	a	garotinha,	para	juntar-se	ao	seu	marido?”
“Sim,	 obrigada”,	 disse,	 enfraquecida,	 a	 mulher.	 Seu	 braço	 esquerdo	 pendia
bambo,	e	com	o	outro	ela	amparava	o	bebê,	que	agora	estava	dormindo.	“Ajude	a
moça,	Hiram”,	disse	o	Desajustado,	quando	ela	já	se	esforçava	para	sair	da	valeta,
“enquanto	o	Bobby	Lee	pega	a	garota	pela	mão.”
“Não	quero	que	ele	me	pegue	pela	mão”,	disse	June	Star.	“Parece	um	porco.”
O	gordo	corou	e	riu	e	a	pegou	pelo	braço	e	foi	levando	para	a	mata	atrás	de
Hiram	e	da	mãe.
Sozinha	 com	 o	Desajustado,	 a	 avó	 constatou	 ter	 perdido	 a	 voz.	Não	 havia
uma	só	nuvem,	nem	sol,	no	céu.	Nada	em	torno	dela,	a	não	ser	a	mata.	Ela	queria
dizer	que	ele	devia	 rezar.	Abriu	e	 fechou	diversas	vezes	a	boca,	mas	a	 frase	não
saía.	Finalmente	deu	consigo	dizendo:	“Jesus,	Jesus”,	querendo	dizer	Jesus	vai	lhe
ajudar,	embora	mais	parecesse	estar	xingando,	pelo	modo	como	falou.
“É,	dona”,	disse	o	Desajustado,	como	se	concordasse.	“Jesus	desequilibrou	as
coisas.	O	mesmo	caso,	o	dele	e	o	meu,	só	que	ele	não	praticou	nenhum	crime,	e
o	 meu	 eles	 puderam	 provar,	 porque	 tinham	 tudo	 anotado	 na	 minha	 ficha.	 É
claro”,	disse	ele,	“que	nunca	me	mostraram	a	ficha.	Por	isso	agora	assino	tudo.	Há
muito	que	eu	digo,	o	negócio	é	caprichar	na	assinatura,	assinar	tudo	que	fizer	e
guardar	cópia.	Você	assim	poderá	saber	o	que	fez,	podendo	comparar	o	crime	ao
castigo,	para	ver	se	correspondem,	e	por	fim	terá	alguma	coisa	para	provar,	se	não
for	tratado	direito.	Se	eu	me	chamo	Desajustado”,	disse	ele,	“é	porque	não	faço
esse	 ajuste,	 não	 consigo	 encaixar	 as	 coisas	 para	 que	 tudo	 que	 eu	 fiz	 de	 errado
corresponda	a	tudo	que	sofri	de	castigo.”
Veio	da	mata	um	grito	 lancinante,	 logo	 seguido	por	um	 tiro	de	pistola.	 “A
senhora	 acha	 justo	 que	 um	 receba	 punição	 rigorosa	 e	 outro	 nem	 sequer	 seja
punido?”
“Jesus!”,	gritou	a	velha.	“O	senhor	 tem	sangue	bom.	Tenho	certeza	de	que
não	 atiraria	 numa	 mulher.	 Sei	 que	 vem	 de	 boa	 família…	 Jesus,	 reze!	 Numa
senhora	o	senhor	não	deve	atirar.	Eu	lhe	dou	todo	o	dinheiro	que	eu	tenho!”
“Minha	 senhora”,	disse	o	Desajustado,	olhando	bem	além	dela,	para	a	mata,
“cadáver	não	dá	gorjeta	para	quem	faz	o	serviço.”
Houve	mais	dois	 tiros	de	pistola	 e	 a	 avó	ergueu	 a	 cabeça,	 como	uma	perua
sedenta	pedindo	água	para	se	refrescar,	e	gritou:	“Bailey,	meu	filho!	Bailey,	meu
filho!”,	como	se	o	seu	coração	fosse	explodir.
“Jesus	 foi	o	único	a	 ressuscitar	os	mortos”,	prosseguiu	o	Desajustado,	“e	ele
não	devia	ter	 feito	 isso.	Desequilibrou	tudo.	Se	ele	 fazia	o	que	dizia,	não	temos
outra	coisa	a	fazer	a	não	ser	renunciar	a	tudo	e	segui-lo.	Mas,	se	não	fazia,	então	o
que	nos	cabe	é	desfrutar	dos	poucos	minutos	que	nos	restam	da	melhor	maneira
possível	 —	 matando	 alguém	 ou	 queimando	 a	 casa	 de	 alguém	 ou	 lhe	 fazendo
alguma	outra	maldade.	Sem	maldade	não	há	prazer”,	disse	ele,	e	sua	voz	era	quase
um	rosnado.
“Vai	ver	que	ele	não	 ressuscitou	os	mortos”,	murmurou	a	velha	 senhora,	 já
sem	saber	o	que	dizia	e	 se	 sentindo	 tão	 tonta	que	arriou	na	vala,	 à	medida	que
suas	pernas	foram	se	retorcendo.
“Se	fez	ou	não	fez,	não	sei,	porque	eu	não	estava	lá”,	disse	o	Desajustado.	“E
bem	que	eu	gostaria	de	ter	estado”,	acrescentou,	dando	um	soco	no	chão.	“Não	é
justo	 ser	 assim,	 porque,	 se	 eu	 tivesse	 estado	 lá,	 eu	 saberia.	 Sabe	 de	 uma	 coisa,
madame”,	disse	em	voz	alta:	“Se	eu	tivesse	estado	lá,	eu	saberia,	e	não	seria	como
sou	agora.”	Sua	voz	parecia	a	ponto	de	rachar,	e	a	cabeça	da	avó	clareou	por	um
instante.	Ela	viu	o	rosto	do	homem	contorcendo-se	próximo	ao	dela,	como	se	ele
fosse	 chorar,	 e	balbuciou:	 “Mas	você	 é	uma	das	minhas	 crianças,	um	dos	meus
filhinhos!”,	 esticando	 o	 braço	 para	 tocá-lo	 no	 ombro.	 O	 Desajustado	 deu	 um
pulo	para	 trás,	 como	 se	 uma	 cobra	o	 picasse,	 e	 atirou	 três	 vezes	 nela,	 todas	 no
peito.	Depois	botou	a	arma	no	chão,	tirou	os	óculos	e	começou	a	limpá-los.
Hiram	e	Bobby	Lee	voltaram	da	mata	e	pararam	na	beirada	da	vala,	de	onde
olhavam	para	a	avó	lá	embaixo,	meio	sentada,	meio	deitada	numa	poça	de	sangue,
com	as	pernas	cruzadas	sob	o	corpo,	como	pernas	de	criança,	e	o	rosto	rindo	para
o	alto,	para	o	céu	sem	nuvens.
Os	olhos	do	Desajustado,	sem	os	óculos,	eram	lívidos,	orlados	de	vermelho	e
indefesos.	 “Levem	 ela	 daqui	 e	 joguem	 lá	 onde	 jogaram	 os	 outros”,	 disse	 ele,
apanhando	o	gato,	que	se	esfregava	em	sua	perna.
“Ela	falava	demais,	né?”,	disse	em	voz	cantante	Bobby	Lee,	ao	escorregar	vala
adentro.
“Seria	 até	boa	mulher”,	o	Desajustado	disse,	 “se	 a	 cada	 instante	de	 sua	vida
houvesse	alguém	nas	cercanias	para	lhe	dar	um	tiro.”
“Teria	sido	gozado!”,	disse	Bobby	Lee.
“Cala	essa	boca,	Bobby	Lee!”,	disse	o	Desajustado.	“É,	na	vida	não	há	prazer
verdadeiro.”
O	RIO
O	menino	ali	ficou,	todo	mole	e	emburrado,	no	meio	da	sala	escura,	enquanto	o
pai	o	 enfiava	num	paletó	xadrez.	Seu	braço	direito	 estava	preso	na	manga,	mas
mesmo	 assim	 o	 pai	 o	 abotoou	 e	 empurrou	 para	 a	 frente,	 em	 direção	 à	 mão
sardenta	e	pálida	que	surgia	na	porta	entreaberta.
“Ele	não	está	bem-arrumado”,	ouviu-se	uma	voz	alta	que	vinha	do	corredor.
“Ora	essa,	meu	Deus,	então	arrume	ele	melhor”,	resmungou	o	pai.	“São	seis
horas	da	manhã.”	Ele	estava	de	 roupão	e	descalço.	Quando	 trouxe	o	menino	e
quis	fechar	a	porta,	deu	com	ela,	que	já	ali	assomava,	um	esqueleto	recoberto	de
manchas	envergando	um	casacão	verde-ervilha	e	um	capacete	de	feltro.
“E	a	passagem	dele	e	a	minha”,	ela	disse.	“Nós	vamos	e	voltamos	de	bonde.”
Ele	foi	até	o	quarto	para	apanhar	o	dinheiro	e,	quando	voltou,	os	dois,	ela	e	o
menino,	 estavam	plantados	bem	no	meio	da	 sala.	Ela,	 examinando	o	 ambiente:
“Eu	não	aguentaria	o	cheiro	dessas	guimbas	de	cigarro,	se	tivesse	de	vir	ficar	com
você”,	disse,	enquanto	o	endireitava	no	paletó.
“Aqui	 está	 o	 das	 passagens”,	 disse	 o	 pai,	 que	 andou	 até	 a	 porta	 e,
escancarando-a,	ficou	à	espera.
Ela,	 depois	 de	 conferir	 o	 dinheiro,	 enfiou-o	 nalgum	 canto	 por	 dentro	 do
casacão	e	 foi	ver	de	perto	uma	aquarela	pendurada	ao	 lado	do	 toca-discos.	“Sei
que	 horas	 são”,	 disse,	 observando	 com	 atenção	 as	 linhas	 pretas	 que	 cruzavam
planos	quebrados	de	uma	cor	muito	forte.	“Como	eu	não	iria	saber?	Meu	turno
começa	 às	 dez	 da	 noite	 e	 só	 termina	 às	 cinco,	 e	 eu	 levo	 uma	 hora,	 vindo	 no
bonde	da	Vine	Street,	para	chegar	até	aqui.”
“Ah,	sim”,	disse	ele.	“Mas	o	menino	então	volta	à	noite,	não	é,	lá	pelas	oito
ou	nove?”
“Talvez	um	pouco	mais	tarde”,	ela	disse.	“Nós	vamos	a	uma	sessão	de	cura	no
rio.	 É	 muito	 raro	 esse	 pregador	 de	 hoje	 aparecer	 por	 aqui.	 Mas,	 quer	 saber”,
acrescentou,	apontando	o	quadro,	“eu,	por	isso,	não	pagava	era	nada,	eu	mesma
desenharia.”
“Está	bem,	Mrs.	Connin,	então	está	combinado,	nós	nos	vemos	mais	tarde”,
disse	ele,	tamborilando	na	porta.
Uma	voz	atonal	pediu	do	quarto:	“Me	traz	uma	compressa	de	gelo.”
“Que	lástima	que	a	mãe	dele	esteja	doente”,	Mrs.	Connin	disse.	“O	quê	que
ela	tem?”
“A	gente	não	sabe”,	ele	murmurou.
“Vamos	pedir	ao	pregador	para	rezar	por	ela.	É	o	reverendo	Bevel	Summers,
que	já	curou	muita	gente.	Quem	sabe	ela	ia	estar	com	ele	um	dia?”
“É,	 talvez”,	 ele	 disse.	 “Então	 até	 logo	mais	 à	 noite”,	 e	 entrou	 noquarto	 e
sumiu,	deixando	que	os	dois	se	fossem.
Em	silêncio,	de	olhos	e	nariz	escorrendo,	o	garotinho	olhou	para	 a	mulher.
Tinha	 quatro	 ou	 cinco	 anos.	 Tinha	 um	 rosto	 comprido,	 o	 queixo	 grande,	 os
olhos	puxados	e	muito	afastados	um	do	outro.	Parecia	tão	mudo	e	paciente	como
um	carneiro	velho	à	espera	de	ser	solto.
“Você	vai	gostar	do	pastor”,	ela	disse.	“O	reverendo	Bevel	Summers	é	uma
coisa.	Só	ouvindo	ele	cantar!”
A	porta	 do	 quarto	 se	 abriu	 de	 repente,	 o	 pai	 espichou	 a	 cabeça	 para	 fora	 e
disse:	“Tchau,	companheiro.	Divirta-se!”
“Tchau”,	o	menino	disse,	pulando	como	se	tivesse	levado	um	tiro.
Mrs.	 Connin	 deu	 mais	 uma	 olhada	 na	 aquarela.	 E	 depois	 eles	 saíram	 para
chamar	o	elevador	no	corredor.	“Não,	eu	não	teria	desenhado	aquilo”,	ela	disse.
Na	 rua,	 os	 prédios	 vazios	 e	 apagados	 bloqueavam	 dos	 dois	 lados	 a	 manhã
cinzenta.	“Mais	tarde	o	tempo	deve	melhorar”	disse	ela,	“e	essa	é	a	última	vez	do
ano	em	que	teremos	o	culto	lá	na	beira	do	rio.	Limpa	o	nariz,	menino!”
Ele	 já	 estava	 a	 ponto	 de	 fazê-lo	 na	 manga	 do	 paletó,	 quando	 ela	 o
interrompeu:	“Assim	não,	é	feio”,	disse.	“Onde	está	o	seu	lencinho?”
Ele	 fingiu	 que	 procurava	 nos	 bolsos,	 enquanto	 ela	 ficava	 esperando.	 “Tem
gente	que	nem	liga,	deixa	a	criança	sair	de	qualquer	modo”,	murmurou	para	seu
próprio	reflexo	na	vitrine	da	lanchonete.	“Mas	dá-se	um	jeito.”	Com	um	lenço
florido,	vermelho	e	azul,	que	tirou	do	casacão,	ela	se	abaixou	e	limpou	o	nariz	do
garotinho:	 “Agora	 assoa”,	 ela	 disse,	 e	 ele	 assoou.	 “Pode	 guardar,	 que	 eu	 te
empresto.	Guarda.”
Cuidadosamente	 ele	 dobrou	 e	 guardou	 o	 lenço	 no	 bolso,	 e	 eles	 foram
andando	até	 a	 esquina	 e	 se	 encostaram	na	parede	de	uma	drogaria	 fechada	para
esperar	 o	 bonde.	 Mrs.	 Connin	 levantou	 a	 gola	 do	 casaco,	 para	 deixá-la	 bem
fechada,	 por	 trás,	 junto	 com	 seu	 chapéu.	 Suas	 pálpebras	 estavam	pesando,	 e	 ela
ameaçava	cair	no	sono	ali	mesmo.	O	menino	lhe	deu	uma	apertada	na	mão.
Ela,	com	voz	de	quem	dormia	em	pé,	perguntou:	“Como	é	o	seu	nome?	Só
sei	o	seu	sobrenome.	Como	foi	que	não	me	lembrei	de	perguntar	o	seu	nome?”
O	 nome	 dele	 era	 Harry	 Ashfileld,	 nome	 que	 ele,	 até	 então,	 jamais	 tinha
pensado	em	mudar.	Mas	disse:	“Bevel.”
Mrs.	Connin	se	desencostou	da	parede.	“Nossa,	que	coincidência!	Eu	não	te
disse	que	é	o	nome	do	pastor?”
“Bevel”,	o	menino	repetiu.
Ela	agora	o	olhava	como	se	ele	tivesse	se	tornado	um	prodígio.	“Vou	ver	se
consigo	te	apresentar	a	ele	hoje.	Ele	não	é	um	pastor	qualquer,	sabe?	Ele	cura	as
pessoas,	embora	não	tenha	podido	fazer	nada	por	Mr.	Connin.	Mr.	Connin	não
tinha	fé,	mas	estava	disposto	a	tentar	de	tudo.	Foi	nó	nas	tripas	que	deu	nele.”
O	bonde	apareceu	como	uma	mancha	amarela	no	fim	da	rua	deserta.
“Agora	ele	está	num	hospital	do	governo,	onde	já	lhe	tiraram	mais	da	metade
da	barriga.	Digo-lhe	que	agradeça	a	Deus	pelo	que	ainda	resta,	mas	ele	diz	que
não	é	de	agradecer.	Mas	e	essa	então,	hein,	quem	diria”,	ela	murmurou,	“Bevel!”
Foram	para	perto	dos	trilhos	esperar.	Bevel	perguntou:	“Ele	vai	me	curar?”
“O	quê	que	você	tem?”
“Tô	com	fome”,	ele	enfim	decidiu.
“Não	tomou	café?”
“Não	tinha	dado	tempo	de	eu	já	ter	fome.”
“Quando	 a	 gente	 chegar	 lá	 em	 casa,	 vamos	 comer	 alguma	 coisa”,	 ela	 disse.
“Também	estou	com	vontade.”
Pegaram	 o	 bonde,	 sentando-se	 alguns	 bancos	 atrás	 do	 motorneiro.	 E	 Mrs.
Connin	pegou	Bevel	no	 colo.	 “Agora	 sossega	um	pouco,	que	 eu	vou	dar	uma
cochilada”,	ela	disse.	“Não	sai	daqui	do	meu	colo,	ouviu?”	Ela	deixou	a	cabeça	ir
para	trás	e,	enquanto	ele	a	observava,	pouco	a	pouco	seus	olhos	se	fecharam	e	a
boca	 se	abriu	para	mostrar	os	grandes	dentes	dispersos	que	 lhe	 restavam,	uns	de
ouro,	outros	escuros	como	seu	rosto,	que	começou	a	soprar	e	assoviar	como	um
esqueleto	 musical.	 Eram	 os	 únicos	 no	 bonde,	 eles	 dois	 e	 o	 motorneiro.	 O
menino,	quando	viu	que	ela	já	estava	dormindo,	tirou	do	bolso	o	lenço	florido,
que	 desdobrou	 e	 examinou	 com	 atenção.	 Depois	 dobrou-o	 de	 novo,	 abriu	 o
zíper	de	um	bolsinho	no	forro	do	paletó,	escondeu-o	ali	e	 logo	pegou	no	sono
também.
A	casa	dela	 ficava	 a	quase	um	quilômetro	do	 final	 da	 linha	do	bonde	 e	um
pouco	recuada	da	rua.	De	madeira,	 tinha	uma	varanda	na	 frente	e	o	 telhado	de
zinco.	Na	 varanda	 estavam	 três	meninos	 de	 diferentes	 tamanhos,	mas	 idênticos
por	 seus	 rostos	 sardentos,	 e	 uma	 menina	 alta,	 que	 usava	 tantos	 rolinhos	 de
alumínio	que	seu	cabelo	faiscava	como	o	telhado	da	casa.	Colando-se	em	Bevel
para	entrar,	os	três	meninos	os	seguiram.	Olhavam-no	em	silêncio,	sem	sorrir.
Mrs.	Connin,	tirando	seu	casacão,	disse:	“Este	é	Bevel.	Por	coincidência,	tem
o	mesmo	nome	do	pastor.	Estes	aqui	são	J.C.,	Spivey	e	Sinclair,	e	a	menina	que
está	lá	na	varanda	é	Sarah	Mildred.	Tire	o	paletó.	Bevel,	e	pendure	ali	na	guarda
da	cama.”
Os	três	meninos	não	paravam	de	espiá-lo,	enquanto	ele	desabotoava	e	tirava	o
paletó.	Observaram-no	 a	 seguir,	 quando	 ele	 o	 pôs	 na	 guarda	 da	 cama,	 e	 desde
então	olharam	para	o	paletó	com	interesse.	De	repente	saíram	juntos,	porta	afora,
para	se	reunir	na	varanda.
Lá	dentro,	Bevel	olhava	em	torno.	De	um	lado	estava	a	cozinha,	do	outro	o
quarto	de	dormir.	A	isso	se	resumia	a	casa,	dois	cômodos	e	duas	varandas.	Perto
de	seu	pé,	o	rabo	de	um	cachorro	de	pelo	claro	se	mexia,	para	cima	e	para	baixo,
numa	fresta	entre	duas	tábuas	do	assoalho,	enquanto	embaixo	da	casa	ele	coçava	as
costas.	Bevel	tentou	pisar	em	cima,	mas	o	cachorro	era	esperto	e	recolheu	o	rabo
antes	de	ser	atingido.
As	 paredes	 estavam	 cheias	 de	 calendários	 e	 imagens.	 Havia	 duas	 fotografias
redondas,	de	um	velhote	e	da	esposa,	ambos	de	boca	murcha,	e	uma	outra,	de	um
homem	 cujas	 sobrancelhas	 brotavam	 de	 duas	 moitas	 de	 pelos	 para	 estender-se,
amontoando-se,	até	por	cima	do	nariz;	já	o	que	sobrava	de	seu	rosto	era	nu	como
um	 penhasco	 do	 qual	 se	 pode	 cair.	 “Este	 é	Mr.	 Connin”,	 disse	Mrs.	 Connin,
afastando-se	do	 fogão	um	instante,	para	 junto	com	o	menino	admirar	o	retrato,
“mas	a	foto	não	o	favorece	em	nada.”	Bevel,	tendo	visto	Mr.	Connin,	passou	a
olhar	 para	 uma	 foto	 colorida	 em	 cima	 da	 cama,	 de	 um	homem	 enrolado	 num
lençol	branco.	Com	o	cabelo	comprido	e	um	círculo	dourado	ao	redor	da	cabeça,
ele	estava	em	destaque,	sobre	um	pranchão,	e	era	observado	por	algumas	crianças.
Bevel	já	ia	perguntar	quem	era	quando	os	três	meninos	voltaram,	mandando,	por
sinais	que	lhe	fizeram,	que	ele	os	seguisse.	Teve	vontade	de	se	enfiar	embaixo	da
cama	 e	 se	 agarrar	 a	 um	 dos	 pés,	mas	 os	 três	 sardentos	 se	mantiveram	 à	 espera,
sempre	calados,	e	ele	acabou	cedendo:	acompanhou-os	a	pequena	distância,	pela
varanda	e	para	longe	de	casa.	Passaram	por	um	terreno	com	um	mato	amarelado
para	chegar	ao	chiqueiro,	um	quadrado	de	madeira	de	um	metro	e	meio,	repleto
de	leitões,	onde	planejavam	jogá-lo.	Lá	chegando,	viraram-se,	encostaram-se	nas
tábuas	e,	em	silêncio,	esperaram	por	ele.
Ele	vinha	bem	devagar,	batendo	com	um	pé	no	outro,	como	se	tivesse	algum
problema	no	andar.	Uma	vez	tinha	apanhado	de	uns	moleques	na	praça	quando	a
babá	o	esqueceu,	mas	na	época	nem	desconfiou,	e	só	depois	do	ocorrido	se	deu
conta	do	que	estava	por	vir.	Começou	a	 sentir	um	cheiro	 forte	de	 repolho	e	 a
ouvir	 barulhos	 de	 animal.	 Pálido,	 acuado,	 parou	 a	 uns	 passos	 do	 chiqueiro,
aguardando.
Os	três	meninos	não	se	mexiam.	Parecia	ter	acontecido	alguma	coisa	com	eles.
Apenas	 suas	 orelhas	 tremiam	 ligeiramente.	 Suas	 sardas	 estavam	 descoradas.	 Seus
olhos,	vidrados,	olhavam	por	cima	dele,	como	se	vissem	alguém	vindo	por	 trás,
mas	ele	mesmo	tinha	medo	de	se	virar	e	olhar	também.	Nada	porém	aconteceu.
Por	fim,	o	menino	do	meio	disse:	“Ela	matava	a	gente”	e,	virando-se,	frustrado	e
sem	jeito,	subiu	no	cercado	e	pendurou-se	para	espiar	os	porcos	lá	dentro.
Bevel	sentou-se	no	chão,	aturdido	de	alívio,	e	sorriu	para	eles.
O	que	 estava	 na	 cerca	 do	 chiqueiro	 olhou-o	 de	 cara	 feia,	mas	 depois	 disse:“Ei,	se	você	não	consegue	subir	para	ver	os	porcos,	puxe	aquela	tábua	de	baixo,
que	 por	 ali	 também	 dá	 para	 olhar.”	 Dava,	 com	 tal	 oferta,	 a	 impressão	 de	 ser
gentil.
Bevel	nunca	tinha	visto	um	porco	de	verdade,	mas	os	conhecia	de	um	livro	e
sabia	 que	 eram	 bichos	 gordos,	 rosados,	 de	 cara	 redonda	 e	 sorridente,	 rabo
enrolado	e	gravata-borboleta.	Abaixou-se,	pois,	cheio	de	expectativa,	e	puxou	a
tábua.
“Mais	força”,	disse	o	menino	menor.	“Isso	daí	tá	tudo	podre.	Puxa	o	prego,
que	sai.”
Da	madeira	fofa,	de	fato,	ele	tirou	um	pregão	enferrujado.
“Agora	 é	 só	 suspender	 a	 tábua	 e	 enfiar	 a	 cara	 no…”,	 começou	 uma	 voz
tranquila.
Sendo	o	que	ele	havia	feito,	uma	outra	cara,	cinzenta,	molhada	e	brava,	já	se
contrapunha	à	sua	e	acabou	por	derrubá-lo	de	costas	ao	escapar	pelo	buraco	afora.
Veio	grunhindo	 sobre	 ele,	 tomou	distância	 e	 voltou	 a	 atacar:	 rolava-o	para	um
lado,	 depois	 para	 outro,	 para	 a	 frente	 e	 para	 trás,	 e	 o	 fazia	 berrar	 pelo	 terreno,
enquanto	a	perseguição	prosseguia.
Os	 três	 Connins	 assistiam	 a	 tudo	 de	 onde	 estavam.	 O	 da	 cerca,	 usando	 o
próprio	 pé	 pendurado,	 logo	 fixou	 no	 lugar	 a	 tábua	 solta.	 Seus	 rostos	 sisudos,	 a
rigor,	 não	 se	 animaram,	 mas	 pareciam	 menos	 tensos,	 como	 se	 uma	 grande
necessidade	 tivesse	 sido	 atendida	 em	 parte.	 “A	 mãe	 não	 vai	 gostar	 de	 ele	 ter
soltado	o	leitão”,	disse	o	menor	de	todos.
Mrs.	 Connin	 estava	 na	 varandinha	 dos	 fundos	 e	 acudiu	 Bevel	 quando	 ele
chegava	aos	degraus.	O	porco	correu	para	debaixo	da	casa	e	sossegou,	ofegante,
mas	 o	 menino	 continuou	 se	 esgoelando	 por	 mais	 cinco	 minutos.	 Quando
finalmente	ela	conseguiu	acalmá-lo,	trouxe-lhe	o	café	da	manhã,	deixando	que	o
tomasse	 em	 seu	 colo.	 Já	 o	 porco,	 tendo	 subido	 ao	 topo	 dos	 dois	 degraus	 da
varandinha,	agora	olhava	para	eles	pela	portinhola	de	tela,	cabisbaixo,	trombudo.
Tinha	 as	 pernas	 compridas,	 era	 corcunda	 e	 perdera	 parte	 de	 uma	 orelha	 numa
mordida.
“Sai	já	daí!”,	Mrs.	Connin	gritou.	“Esse	é	o	favorito	de	Mr.	Paradise,	o	dono
do	posto”,	ela	disse.	“Lá	no	culto	você	vai	ver	quem	é.	Teve	câncer	na	orelha	e
vem	sempre	mostrar	que	ele	não	foi	curado.”
O	 leitão	 continuou	 ali	 mais	 um	 pouco,	 espiando-os	 com	 os	 olhos
entreabertos,	e	depois	saiu	lentamente.	“Não	quero	ver	esse	bicho!”,	disse	Bevel.
Foram	 andando	 para	 o	 rio.	 Mrs.	 Connin	 na	 frente,	 com	 ele	 e	 os	 três
enfileirados	 atrás,	 e	 Sarah	 Mildred,	 a	 menina	 alta,	 de	 cerra-fila,	 para	 avisar	 se
alguém	se	desviasse	da	linha.	Eram	como	a	armação	de	um	barco	antigo,	com	as
duas	extremidades	pontudas,	que	vagasse	lentamente	à	margem	da	rodovia.	O	sol
branco	 de	 domingo,	 que	 os	 seguia	 a	 curta	 distância,	 passou	 ligeiro	 por	 uma
nuvem	cinza,	como	se	quisesse	ultrapassá-los.	Bevel,	o	que	estava	mais	na	beira,
dava	 a	mão	 a	Mrs.	Connin	 e	 ia	 olhando	 a	 valeta	 cor	 de	 laranja	 e	 roxa	 que	 se
estendia	ao	seu	lado.
Julgava	 ter	 dado	 sorte	 dessa	 vez,	 por	 terem	 chamado	 Mrs.	 Connin,	 que	 o
levava	para	passar	o	dia	fora,	e	não	uma	babá	comum,	que	no	máximo	iria	até	a
praça	 ou	 ficaria	 com	ele	 em	 casa.	 Saindo	 de	 casa	 é	 que	 a	 gente	 descobria	mais
coisas.	Naquela	manhã,	 já	descobrira	 ter	 sido	 feito	por	um	carpinteiro	chamado
Jesus	Cristo,	função	que	antes	atribuía	ao	chamado	Sladewall,	um	médico	gordo,
de	 bigode	 amarelo,	 que	 lhe	 aplicava	 injeções	 e	 achava	 que	 o	 nome	 dele	 era
Herbert,	o	que	aliás	devia	ser	brincadeira.	Piadas	e	brincadeiras,	na	sua	terra,	eram
muito	comuns.	Se	houvesse	pensado	nisso	antes,	 talvez	tomasse	Jesus	Cristo	por
uma	palavra,	assim	como	“oh”	ou	“merda”	ou	“Deus”,	ou	por	alguém	que,	de
certa	feita,	os	tivesse	logrado	em	qualquer	coisa.	Quando	ele	perguntou	quem	era
aquele	homem	com	o	lençol	na	imagem	sobre	a	cama,	Mrs.	Connin,	boquiaberta,
fitou-o	por	algum	tempo.	E	continuou	a	olhar	firme	para	ele,	mesmo	depois	de
dizer:	“É	Jesus.”
Afinal	ela	se	levantou	e	foi	até	o	outro	cômodo	pegar	uma	coisa.	“Este	livro”,
disse,	 abrindo-o	 para	mostrar,	 “pertenceu	 à	minha	 bisavó.	Não	me	 separo	 dele
por	nada.”	Numa	página	manchada,	correu	o	dedo	pelo	que	estava	escrito,	escrito
e	gasto,	e	 leu:	“Emma	Stevens	Oakley,	1832.”	Depois	disse:	“É	mesmo	para	 se
guardar	 com	 cuidado,	 não	 é?	 E	 cada	 palavra	 aqui	 é	 a	 verdade	 do	 evangelho.
Passou	à	página	seguinte,	leu	para	ele	o	título,	A	vida	de	Jesus	Cristo	para	menores	de
doze	anos,	e	acabou	lendo	o	livro	inteiro.
Era	um	livrinho	de	capa	marrom-clara,	com	os	cantos	dourados	e	um	cheiro
de	 estuque	 velho.	 Entre	 as	 muitas	 figuras	 que	 o	 ilustravam	 havia	 a	 de	 um
carpinteiro	 enxotando,	 de	dentro	de	um	homem,	um	bando	de	porcos.	Porcos
mesmo,	porcos	de	verdade,	cinzentos,	de	cara	enfezada,	e	Mrs.	Connin	disse	que
Jesus	tinha	expulsado	o	bando	todo	de	dentro	daquele	homem.	Quando	acabou
de	ler,	deixou	que	ele	se	sentasse	no	chão	para	olhar	de	novo	as	figuras.
Pouco	antes	de	saírem	para	o	culto,	e	sem	que	ela	o	notasse,	ele	dera	um	jeito
de	enfiar	o	livro	por	dentro	do	forro	de	seu	paletó,	que	agora	caía	mais	para	um
lado,	por	efeito	do	peso.	Sua	mente	se	mantinha	serena	e	sonhadora	ao	andarem
e,	 quando	 dobraram	 da	 rodovia	 asfaltada	 para	 uma	 longa	 estrada	 de	 terra	 que
serpenteava	entre	moitas	de	madressilva,	ele	começou	a	dar	pulos	de	alegria	e	a
arrastá-la	 pela	mão,	 como	 se	 quisesse	 ir	 correndo	 para	 agarrar	 o	 sol,	 que	 a	 essa
altura	se	afastava	à	frente	deles.
Depois	de	andarem	algum	tempo	pelo	chão	de	barro	vermelho,	atravessaram
um	campo	pontilhado	de	plantinhas	roxas	e	entraram	nas	sombras	de	um	extenso
arvoredo,	 cujo	 solo	 se	 cobria	de	pinhas.	Ele,	 que	nunca	pusera	os	pés	na	mata,
pisava	com	atenção	e	olhava	para	todos	os	lados,	como	se	estivesse	ingressando	em
terra	 estranha.	 Passaram	 por	 uma	 trilha	 apertada	 que	 se	 retorcia	 morro	 abaixo,
entre	 folhas	 vermelhas	 que	 estalavam,	 e	 ele	 de	 súbito,	 ao	 se	 agarrar	 num	galho
para	não	cair,	viu-se	em	face	do	ouro	verde	de	dois	olhos	gelados,	incrustados	na
escuridão	de	um	oco	de	pau.	No	pé	do	morro,	a	mata	se	abria,	e	de	repente	era
um	 pasto,	 salpicado	 de	 vacas	 de	 pelo	 preto	 e	 branco	 dispersas,	 que	 continuava
descendo	pouco	a	pouco	até	um	rio	largo	e	alaranjado,	onde	o	reflexo	do	sol	era
um	diamante	engastado.
Havia	 um	 grupo	 de	 pessoas	 cantando,	 em	 pé,	 perto	 da	margem.	Ao	 redor,
umas	mesas	 compridas	 instaladas	 e	 uns	 poucos	 carros	 e	 caminhões	 estacionados
numa	estradinha	que	seguia	o	rio.	Ao	atravessarem	o	pasto,	eles	 foram	na	maior
correria,	porque	Mrs.	Connin,	de	longe,	protegendo	os	olhos	com	a	mão,	pôde
ver	que	o	pastor	já	estava	lá	dentro	d’água.	Pondo	numa	das	mesas	sua	cesta,	à	sua
frente	 ela	 pôs	os	 três	moleques	 e	 empurrou-os	 para	o	 ajuntamento,	 livrando-os
assim	da	tentação	do	farnel.	Bevel,	ela	levava	pela	mão,	e	abriu	caminho,	resoluta,
para	o	ponto	central.
O	pastor	se	achava	em	pé	dentro	do	rio,	a	uns	três	metros	da	margem,	onde	a
água	 quase	 lhe	 chegava	 aos	 joelhos.	 Era	 um	 rapaz	 alto,	 de	 calça	 cáqui,	 que	 ele
tinha	 enrolado	 para	 não	 molhar.	 Estava	 com	 uma	 camisa	 azul	 e	 um	 cachecol
vermelho	no	pescoço,	mas	sem	chapéu.	Tinha	o	cabelo	muito	claro	e	costeletas
curvas	 que	 avançavam	 pelas	 bochechas.	 Seu	 rosto	 era	 puro	 osso	 e	 a	 luz	 rubra
refletida	 do	 rio.	 Aparentava	 ter	 uns	 dezenove	 anos.	 Estava	 cantando	 com	 voz
fanhosa	e	alta,	mais	alta	do	que	a	cantoria	na	margem,	com	a	cabeça	inclinada	para
trás	e	as	mãos	cruzadas	nas	costas.
Terminou	seu	hino	com	um	agudo	e	se	manteve	em	silêncio,	olhando	para	a
água	onde	seus	pés	se	mexiam.	Depois	olhou	para	as	pessoas	à	espera	na	margem,
cujos	 rostos	 solenes,	 cheios	 de	 expectativa,	 bem	 juntos,	 estavam	 todos	 de	 olho
nele,	que	mexeu	com	os	pés	novamente.
“Posso	saber	ou	não	saber”,	disse	com	sua	voz	fanhosa,	“por	que	vocês	vieram
aqui.	Se	não	vieram	por	 Jesus,	não	vieram	por	mim.	Se	alguém	aí	 só	veio	aqui
paraver	 se	conseguiria	 se	 livrar	de	uma	dor	entrando	n’água,	esse	não	veio	por
Jesus.	Não	se	pode	largar	sua	dor	dentro	do	rio.	Eu	nunca	disse	isso	a	ninguém.”
Parou,	baixou	a	vista	e	olhou	para	seus	próprios	joelhos.
“Já	vi	uma	mulher	ser	curada	por	seus	poderes!”,	gritou	alguém	da	multidão
bruscamente.	 “Uma	 que	 puxava	 da	 perna	 quando	 chegou,	 mas	 que	 depois	 se
levantou	e	saiu	andando	normalmente.”
O	pastor	ergueu	um	pé	e	logo	o	outro.	Parecia	quase,	mas	não	ainda,	a	ponto
de	sorrir.	“Pode	ir	voltando	para	casa,	se	é	por	isso	que	veio”,	disse.
Depois,	erguendo	cabeça	e	braços,	bradou:	“Ouçam	o	que	eu	tenho	a	dizer,
minha	gente!	Existe	apenas	um	rio,	que	é	o	Rio	da	Vida,	e	ele	é	feito	do	Sangue
de	Jesus.	É	nesse	rio	que	vocês	têm	de	largar	seus	sofrimentos,	o	Rio	da	Fé,	o	Rio
da	Vida,	o	Rio	do	Amor,	o	rio	do	Sangue	de	Jesus,	vermelho	e	bom!”
Sua	voz	 se	 tornou,	 a	 essa	 altura,	 suave	 e	musical.	 “Todos	os	 rios	 vêm	desse
Rio	 e	 correm	para	 ele	 de	 volta,	 como	 se	 fosse	o	mar	oceano,	 e	os	 que	 têm	 fé
podem	largar	aí	sua	dor,	se	libertando	dos	seus	padecimentos,	porque	esse	é	o	Rio
que	 foi	 feito	para	 carregar	os	pecados.	Ele	mesmo	é	um	Rio	cheio	de	dor	que
corre	para	o	Reino	de	Cristo,	aonde	chega	devagar,	bem	devagar,	minha	gente,
como	a	água	barrenta	deste	rio	velho	em	meus	pés.”
Ele	cantava:	“Em	Marcos,	ouçam	bem,	eu	 li	a	história	de	um	leproso,	 li	em
Lucas	 a	 respeito	de	um	cego,	e	em	 João	 li	 sobre	um	morto!	Pois	 fiquem	vocês
sabendo	que	o	mesmo	sangue	que	 faz	vermelho	este	Rio	curou	aquele	 leproso,
como	fez	o	cego	ver	e	o	morto	andar!	Vocês	que	estão	com	problemas”,	gritou,
“larguem	seus	sofrimentos	neste	Rio	de	Sangue,	neste	Rio	de	Dor,	e	vejam	como
ele	corre	para	o	Reino	de	Cristo!”
Os	 olhos	 fatigados	 de	 Bevel,	 enquanto	 a	 pregação	 progredia,	 seguiam	 os
círculos	vagarosos	que	dois	passarinhos	em	silêncio	traçavam	alto	no	ar.	Do	outro
lado	do	 rio,	 um	bosque	de	 açafrão	 vermelho	 e	 dourado	 e	 baixo,	 tinha	 por	 trás
umas	 colinas	 com	 o	 azul-escuro	 das	 árvores	 e	 o	 recorte	 eventual	 de	 algum
pinheiro	 a	 se	 destacar	 no	 horizonte.	 Depois,	 ao	 longe,	 como	 uma	 penca	 de
verrugas	 na	 encosta	 da	 montanha,	 a	 cidade.	 Os	 passarinhos,	 baixando,	 foram
pousar	de	asas	dobradas,	como	se	sustentassem	o	céu,	no	topo	do	pinheiro	mais
alto.
“Se	 é	 no	Rio	 da	 Vida	 que	 vocês	 querem	 largar	 seus	 sofrimentos”,	 dizia	 o
pastor,	“então	venham,	é	aqui	que	devem	deixá-los.	Mas	não	pensem	vocês	que
isso	é	o	 fim,	porque	este	velho	rio	vermelho	não	acaba	aqui.	Velho,	barrento	e
sofredor,	o	mesmo	rio	continua	a	fluir,	indo	lentamente	para	o	Reino	de	Cristo.
Serve	para	o	Batismo,	o	rio	velho,	e	é	bom	para	receber	sua	fé	e	os	sofrimentos
que	nele	 são	 largados,	mas	não	 será	esta	água	 lamacenta	que	há	de	 salvar	vocês.
Estive	por	aí,	ao	longo	do	rio,	para	cima	e	para	baixo,	no	decorrer	da	semana”,
ele	disse.	“Na	terça-feira	em	Fortune	Lake,	no	dia	seguinte	em	Ideal;	na	sexta	eu
e	 minha	 esposa	 fomos	 a	 Lulawillow	 de	 carro	 para	 estar	 com	 um	 doente.	 E
ninguém,	aonde	eu	fui,	viu	cura	alguma.”	Seu	rosto,	por	um	instante,	se	inflamou
ainda	mais.	“Eu	nunca	disse	que	iam	ver.”
Uma	figura	tremulante,	enquanto	ele	falava,	tinha	começado	a	se	chegar	para	a
frente	numa	espécie	de	andar	de	borboleta	—	uma	velhota	impelida	por	seu	bater
de	 braços,	 cuja	 cabeça	 balançava	muito,	 como	 que	 a	 risco	 de	 cair	 de	 repente.
Mesmo	assim	ela	avançou	até	a	beira	do	rio,	onde	se	abaixou	jogando	os	braços
na	água.	Inclinou-se	então	ainda	mais,	para	deixar	 todo	o	rosto	em	imersão	um
instante,	e	quando	se	reergueu	afinal	 já	estava	bem	encharcada.	Sempre	batendo
os	braços,	olhava	aqui	e	acolá,	sem	encontrar	saída,	até	que	alguém	lhe	deu	a	mão
e	a	puxou	novamente	para	o	grupo.
“Faz	 treze	 anos	 que	 ela	 tem	 essa	 tremedeira”,	 gritou	 algum	 grosseirão.
“Passem	o	chapéu	para	juntar	o	dinheiro	do	rapaz.	Foi	por	isso	que	ele	veio.”	A
ordem,	 dada	 para	 alcançar	 o	 rapaz	 dentro	 do	 rio,	 partiu	 de	 um	 velho	 gordo
arriado,	 como	uma	pedra	 com	um	calombo	no	para-choque	 de	um	 automóvel
antigo,	comprido	e	cinza.	Cinza	também	era	o	chapéu	do	gordo,	que	caía	de	um
lado,	 escondendo	 uma	 orelha,	 e	 se	 levantava	 de	 outro,	 deixando	 à	 vista,	 no
extremo	esquerdo	da	testa,	um	inchaço	roxo.	Curvado	bem	para	a	frente,	com	as
mãos	 pendendo	 entre	 os	 joelhos,	 ele	 abria	 apenas	 um	 pouco	 seus	 olhos	muito
miúdos.
Bevel	 chegou	 a	 dar-lhe	 uma	 olhada,	 mas	 depois	 se	 escondeu	 por	 entre	 as
dobras	do	casacão	de	Mrs.	Connin.
De	dentro	d’água,	o	rapaz	encarou	rapidamente	o	velho	e	ergueu-lhe	o	punho
fechado.	 “Acredite	 em	 Jesus,	 ou	 no	Diabo!”,	 gritou.	 “Testemunhe	 a	 um	 ou	 a
outro!”
“Por	 minha	 própria	 experiência”,	 bradou	 no	 meio	 do	 ajuntamento	 uma
misteriosa	 voz	 de	 mulher,	 “sei	 que	 esse	 pastor	 pode	 curar.	 Meus	 olhos	 foram
abertos!	Eu	testemunho	a	Jesus!”
Sem	perder	tempo,	de	braços	para	o	alto,	o	pregador	começou	a	repetir	tudo
o	 que	 havia	 dito	 antes	 sobre	 o	Rio	 e	 o	Reino	 de	Cristo.	O	velho	 sentado	no
para-choque	olhava	para	ele	de	esguelha,	sendo	observado	de	longe,	por	sua	vez,
do	entorno	de	Mrs.	Connin,	pelos	olhos	de	Bevel.
Um	homem	de	macacão,	com	um	paletó	marrom	por	cima,	dobrou-se	sobre
o	rio,	mergulhando	e	agitando	a	mão	na	água,	para	logo	se	endireitar	outra	vez,	e
uma	mulher	foi	com	um	bebê	para	a	beira,	onde	lhe	molhava	os	pezinhos.	Um
outro,	depois	de	se	afastar	um	pouco	para	sentar-se	à	margem	e	tirar	os	sapatos,
saiu	andando	água	adentro;	ficou	alguns	minutos	por	lá,	com	o	rosto	todo	virado
para	o	alto,	e	ao	voltar	 foi	 se	calçar	novamente.	O	pastor	cantava,	durante	todo
esse	tempo,	e	nem	sequer	parecia	estar	notando	o	que	se	passava	ao	redor.
Assim	que	ele	parou	de	cantar,	Mrs.	Connin	 suspendeu	Bevel	no	ar	e	disse:
“Esse	menino	é	da	cidade,	pastor,	e	hoje	ficou	por	minha	conta.	A	mãe	dele	está
doente.	Pede	para	o	 senhor	 rezar	por	ela,	 e	ele,	veja	 só	que	coincidência	—	se
chama	Bevel!	O	mesmo	nome”,	dizia,	virando-se	para	as	pessoas	que	estavam	por
trás.	“Bevel!	Não	é	uma	coincidência	notável?”
Houve	 alguns	 murmúrios	 e	 Bevel,	 se	 virando	 também,	 abriu-se	 num	 riso
largo,	por	cima	do	ombro	dela,	para	os	rostos	que	o	 fitavam.	“Bevel”,	disse	em
voz	alta	e	triunfante.
“Aliás,	Bevel”,	perguntou	Mrs.	Connin,	“você	já	foi	batizado?”
Ele	se	limitou	a	sorrir.
Mrs.	Connin,	franzindo	o	cenho,	disse	para	o	pastor:	“Acho	que	não.”
“Me	dá	ele	aqui”,	disse	o	pastor	que,	a	passos	largos,	foi	pegar	o	menino.
Reclinando-o	num	dos	braços,	olhou	seu	rosto	 sorridente.	Bevel	 revirava	os
olhos	de	um	modo	cômico	e	chegou	o	rosto	bem	para	a	frente,	quase	o	colando
no	do	pastor.	“Meu	nome	é	Beveeel”,	disse	em	voz	profunda	e	alta,	com	a	ponta
da	língua	a	deslizar	pela	boca.
O	pastor	não	achou	graça.	Seu	 rosto	ossudo	 se	mantinha	 rígido,	 e	os	olhos,
cinzentos	e	estreitos,	refletiam	o	céu	quase	sem	cor.	Mas	o	velho	sentado	no	para-
choque	do	carro	deu	uma	gargalhada,	e	Bevel,	agarrando-se	na	gola	do	pregador
por	 trás,	 ali	 grudou.	 Com	 o	 sorriso	 sumido	 de	 sua	 face,	 teve	 o	 súbito
pressentimento	 de	 que	 aquilo	 não	 era	 brincadeira.	Tudo,	 onde	 ele	morava,	 era
levado	em	geral	na	brincadeira.	Mas	pela	cara	do	homem,	ele	soube	de	imediato
que	nada	do	que	o	pastor	dizia	ou	fazia	era	piada.	“É	o	nome	que	a	mãe	me	deu”,
disse	rápido.
“Você	já	foi	batizado?”,	o	pastor	perguntou.
“Fui	o	quê?”
“Se	eu	te	batizar”,	disse	o	pastor,	“você	vai	poder	entrar	no	Reino	de	Cristo.
Será	lavado	no	rio	dos	sofrimentos,	meu	filho,	e	irá	pelo	rio	fundo	da	vida.	Você
quer?
“Quero”,	o	menino	disse	e	pensou:	oba,	então	eu	vou	por	baixo	d’água,	não
vou	ter	de	voltar	pro	apartamento!
“Você	 já	não	será	mais	o	mesmo”,	disse	o	pastor.	“Você	agora	está	entre	os
que	 contam.”	E	voltou	 a	pregar,	 virado	para	os	presentes,	 enquanto	Bevel,	 por
cima	de	seu	ombro,	via	os	pedaços	de	sol	branco	espalhados	no	rio.	Lá	pelas	tantas
o	pastor	avisou:	“Bem,	agora	eu	vou	te	batizar”	e,	semmais	dizer,	agarrou-o	com
força,	 para	 o	 virar	 de	 cabeça	 para	 baixo	 e	 assim	 afundar	 no	 rio.	 Mantendo-o
embaixo	d’água	enquanto	fazia	sua	oração	de	batismo,	só	depois	ele	o	puxou	de
volta	e	olhou	sério	para	a	criança	engasgada,	que	tinha	os	olhos	dilatados	e	turvos.
“Você	agora	é	uma	pessoa”,	disse	o	pastor.	“Você,	que	antes	nem	contava.”
Bevel,	 de	 tão	 apavorado,	 nem	 chorava.	 Cuspiu	 a	 água	 lamacenta	 e	 passou
pelos	olhos,	depois	por	todo	o	rosto,	sua	manga	encharcada.
“Não	 se	 esqueça	da	mãe	dele”,	disse	Mrs.	Connin.	“Ele	quer	que	o	 senhor
reze	por	ela,	que	está	doente.”
“Senhor”,	disse	o	pastor,	“rezamos	por	alguém	em	aflição,	que	não	está	aqui
para	 testemunhar.	 Sua	 mãe	 está	 doente,	 no	 hospital?”,	 ele	 perguntou.	 “Está
sentindo	muita	dor?”
O	menino	olhou	para	ele.	“Ela	ainda	nem	saiu	da	cama”,	disse	aturdido	em
voz	alta.	“Tá	de	ressaca.”	O	ar	estava	tão	sereno	que	ele	até	podia	ouvir	os	cacos
do	sol	quebrado	batendo	n’água.
O	pastor	fez	uma	cara	feia	de	espanto.	O	sangue	desapareceu	de	seu	rosto,	e	o
céu	deu	a	impressão	de	escurecer	em	seus	olhos.	Mas	da	margem	veio	uma	boa
risada,	e	Mr.	Paradise	gritou,	batendo	com	uma	das	mãos	no	joelho:	“Quero	ver
você	curar	essa	aí,	que	está	sofrendo	de	ressaca!”
“Ele	 teve	 um	 dia	 cheio”,	 disse	Mrs.	Connin,	 em	 pé	 ao	 lado	 do	menino,	 à
porta	 do	 apartamento,	 e	 olhando	 bem	 para	 a	 sala	 onde	 ia	 longe	 a	 festinha.	 “Já
deve	ser	mais	do	que	hora	de	ele	ir	para	a	cama,	não	é?”	Bevel	tinha	um	dos	olhos
fechado,	o	outro	mal	se	mexia;	respirava	só	pela	boca,	por	isso	a	mantinha	aberta,
e	vinha	de	nariz	escorrendo.	Um	lado	do	seu	paletozinho	xadrez	todo	ensopado
caía	mais	para	baixo.
Deve	ser	aquela	ali,	deduziu	Mrs.	Connin,	a	de	calça	preta	—	calça	preta	de
cetim,	 sandálias	 de	 pés	 de	 fora	 e	 unhas	 vermelhas.	Deitada	 em	metade	 do	 sofá,
pernas	cruzadas	para	cima	e	a	cabeça	apoiada	num	braço,	ela	nem	se	levantou.
“Oi,	Harry”,	limitou-se	a	dizer.	“Foi	um	dia	cheio,	então?”	Tinha	um	rosto
comprido,	 pálido,	 apático,	 inexpressivo;	 e	 o	 cabelo	 liso,	 cor	 de	 batata-doce,
puxado	para	trás.
O	 pai	 foi	 apanhar	 o	 dinheiro.	 Havia	 outros	 dois	 casais	 na	 sala.	 Um	 dos
homens,	um	louro	de	olhinhos	de	um	azul-violeta,	inclinou-se	da	cadeira	em	que
estava	e	disse:	“E	aí,	Harry,	meu	chapa,	dia	cheio,	né?”
“O	nome	dele	não	é	Harry”,	disse	Mrs.	Connin.	“É	Bevel.”
“O	nome	dele	 é	Harry	 sim”,	 disse	 ela	 do	 sofá.	 “Quem	 já	 soube	 de	 alguém
chamado	Bevel?”
O	 garotinho	 parecia	 estar	 dormindo	 em	 pé;	 cabeceava	 sem	 parar,	 mas	 de
repente	conseguiu	se	conter	e	abriu	um	olho;	o	outro	estava	colado.
“Ué,	mas	 hoje	 cedo	 ele	me	 disse	 que	 se	 chamava	 Bevel”,	 disse,	 espantada,
Mrs.	 Connin.	 “O	mesmo	 nome	 do	 nosso	 pastor.	 Passamos	 o	 dia	 num	 culto	 à
beira	do	rio,	com	sessões	de	cura.	E	ele	disse	que	se	chamava	Bevel,	que	tinha	o
nome	do	pastor.	Foi	o	que	ele	me	disse.”
“Bevel!”,	disse	a	mãe	do	menino.	“Meu	Deus,	que	nome!”
“Pois	 é	 o	 nome	do	pastor,	Bevel,	 e	 pregador	melhor	 do	 que	 ele,	 aqui	 pela
região,	não	se	encontra”,	disse	Mrs.	Connin.	“E	tem	mais”,	acrescentou	em	tom
desafiador,	“hoje	de	manhã	ele	batizou	o	menino.”
A	mãe	se	endireitou,	resmungando:	“Que	atrevimento!”
“Além	disso”,	Mrs.	Connin	disse,	“o	pastor	Bevel	rezou	para	que	a	senhora	se
cure,	e	ele	tem	feito	muitas	curas.”
“Me	cure!”,	disse	a	mãe,	quase	num	berro.	“Mas	me	cure	de	quê,	pelo	amor
de	Deus?”
“Do	seu	problema”,	disse	secamente	Mrs.	Connin.
O	pai	tinha	voltado	com	o	dinheiro	e,	em	pé	ao	lado	de	Mrs.	Connin,	com	os
olhos	 riscados	de	vermelho,	esperava	para	 lhe	pagar.	“Se	ainda	 tem	mais”,	disse
ele,	 “vamos,	 fale.	 Quero	 saber	 mais	 coisas	 sobre	 o	 problema	 dela.	 A	 exata
natureza	desse	problema	me	escapa…”,	e	exibiu	a	nota	que	trazia.	Sua	voz	porém
falhou.	“Curar	rezando	nunca	sai	muito	caro”,	murmurou.
Mrs.	Connin,	olhando	um	instante	pela	sala,	mais	parecia,	de	tão	pasma,	um
esqueleto	 capaz	 de	 tudo	 ver.	 Logo	 depois,	 sem	 pegar	 o	 dinheiro,	 virou-se	 e
fechou	a	porta	atrás	de	si.	O	pai,	sorrindo	meio	sem	graça,	fez	meia-volta	e	deu
de	ombros.	Os	restantes	olhavam	para	Harry.	O	menino	se	encaminhava	para	o
quarto,	mas	ia	arrastando	os	pés.
“Chegue	 aqui,	 Harry”,	 disse-lhe	 a	 mãe.	 Automaticamente	 ele	 mudou	 de
direção	e	foi	para	perto	dela,	sem	conseguir	porém	abrir	os	olhos	de	vez.	Com	ele
já	a	seu	alcance,	ela	disse:	“Me	conte	o	que	aconteceu	hoje”	e	começou	a	livrá-lo
do	paletó.
“Não	sei”,	ele	balbuciou.
“Sabe	 sim”,	ela	disse,	 sentindo	que	o	paletó	estava	mais	pesado	de	um	 lado.
Abriu	o	bolso	do	forro	e,	assim	que	apareceram,	pegou	o	livro	e	o	lenço	usado.
“De	onde	você	tirou	isso?”
“Não	sei”,	disse	ele,	tentando	apossar-se	deles.	“São	meus.	Ela	me	deu.”
A	mãe	 jogou	o	 lenço	no	 chão	 e	 levantou	o	 livro	 bem	 alto,	 para	 ele	 não	o
alcançar,	 e	 começou	 a	 ler	 um	 trecho,	 assumindo	 seu	 rosto,	 logo	 a	 seguir,	 uma
exagerada	expressão	cômica.	Os	outros	a	rodearam,	olhando	o	livro	por	cima	de
seu	ombro.	“Meu	Deus!”,	alguém	disse.
Um	dos	homens,	por	trás	de	óculos	grossos,	examinou-o	com	atenção.	“Isso
vale	dinheiro”,	disse.	“É	coisa	de	colecionador.”	Tomou	o	livro	dos	outros	e	foi
sentar-se	à	parte	com	ele.
“Se	vacilarem,	o	George	leva	pra	casa”,	disse	sua	namorada.
“Eu	não	falei	que	é	valioso?”,	George	disse.	“1832.”
Bevel,	mudando	de	direção	outra	vez,	para	voltar	ao	rumo	original,	tinha	ido
para	o	quarto	no	qual	dormia.	Fechou	a	porta	assim	que	entrou	e	foi	bem	devagar
pelo	escuro	para	a	cama	e	sentou-se	para	tirar	os	sapatos	e	se	enfiou	nas	cobertas.
Uma	nesga	de	luz,	no	momento	seguinte,	trouxe-lhe	a	silhueta	esguia	de	sua	mãe,
que	atravessou	o	quarto	na	pontinha	dos	pés,	para	sentar-se	na	beirada	da	cama.
“O	 que	 foi	 que	 o	 tal	 pastor	 bobalhão	 falou	 de	 mim?”,	 ela	 perguntou	 num
sussurro.	“E	que	mentiras	você	andou	contando,	hein,	meu	anjinho?”
Ele,	de	olhos	fechados,	ouviu-lhe	a	voz	como	que	vinda	de	longe,	de	muito
longe,	 como	 se	 ele	 estivesse	no	 fundo	 e	 ela	 na	 superfície	 do	 rio.	Ela	o	 sacudiu
pelos	ombros.	Debruçou-se,	pôs	a	boca	em	seu	ouvido	e	disse:	“Harry,	me	diz	o
que	ele	falou.”	Forçou-o	a	ficar	sentado,	puxando-o	como	podia,	e	ele	se	sentiu
como	se	o	puxassem	da	água.	“Me	diz”,	sussurrou,	e	seu	bafo	muito	forte	cobriu-
lhe	o	rosto.
Ele	viu,	colado	a	ele	no	escuro,	assim	tão	perto,	aquele	pálido	oval.	“Disse	que
eu	não	sou	mais	o	mesmo”,	murmurou.	“Que	agora	eu	conto.”
Largando	a	camisa	pela	qual	o	sustinha,	ela	o	largou	no	travesseiro.	Parada	um
instante	 sobre	ele,	pousou	os	 lábios	de	 leve	em	sua	 testa.	Depois	 se	ergueu	e	 se
foi,	dando	ligeiras	reboladas	pela	nesga	de	luz.
Já	 não	 era	 tão	 cedo	 quando	 ele	 acordou,	 mas	 o	 apartamento	 ainda	 estava
fechado	e	escuro.	Ora	mexendo	no	nariz,	ora	nos	olhos,	permaneceu	por	algum
tempo	 deitado.	 Sentou-se	 depois	 na	 cama	 e	 olhou	 pela	 janela.	 O	 sol	 entrava
esbatido,	com	manchas	cinza	da	vidraça.	Do	outro	lado	da	rua,	no	Empire	Hotel,
uma	faxineira	negra	olhava	para	baixo	de	uma	janela	no	alto,	com	o	rosto	posto
nos	 seus	 braços	 dobrados.	 Ele	 se	 levantou,	 calçou	 os	 sapatos,	 foi	 ao	 banheiro	 e
chegou	à	sala.	Comeu	os	dois	biscoitos	com	pasta	de	anchova	que	encontrou	na
mesinha,	bebeu	a	sobra	de	refrigerante	de	uma	garrafa	e	procurou	por	seu	livro,
que	ali	porém	não	se	via.
Só	o	 leve	zumbir	da	geladeira	quebrava	o	silêncio	do	apartamento.	Ele	 foi	à
cozinha,	 achou	 duas	 fatias	 de	 pão	 com	 passas,	 pôs	 meio	 vidro	 de	 pasta	 de
amendoim	 entre	 elas,	 escalou	 o	 banquinho	 altão	 da	 cozinha	 e	 sentou-se	 para
comer	 devagar	 seu	 sanduíche,	 limpando,	 de	 quando	 em	 quando,	 o	 nariz	 no
ombro.	 Ao	 acabar,	 achou	 também	 e	 bebeu	 um	 leite	 achocolatado.	 Viu	 uma
garrafa	de	refrigerante,	que	teria	preferido,	mas	os	abridores	de	garrafa	eles	tinham
posto	 no	 alto,	 fora	 de	 seu	 alcance.	 Pesquisou,	 por	 um	 tempo,	 o	 que	 havia	 de
sobra	 na	 geladeira	 —	 verduras	 murchas	 das	 quais	 ela	 nem	 mais	 se

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