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O18h 18-48995 Copyright © 1953, 1955 by Flannery O’Connor; Copyright renewed © 1981, 1983 by Regina Cline O’Connor. All rights reserved. Título original: A Good Man Is Hard to Find and Other Stories Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Rua Candelária, 60 — 7º andar — Centro — 20091-020 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/8313 Imagem de capa: inkret — Getty Images CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ O’Connor, Flannery, 1925-1964 Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias / Flannery O’Connor; tradução e prefácio Leonardo Fróes. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 224 p.; 23 cm. (Clássicos de ouro) Tradução de: A Good Man is Hard to Find and Other Stories ISBN 9788520943397 1. Conto americano. I. Fróes, Leonardo. II.Título. III. Série. CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3 SUMÁRIO A lua gorda e o sol, hóstia de sangue, por Leonardo Fróes Um homem bom é difícil de encontrar O rio A vida que você salva pode ser a sua Um golpe de sorte Um templo do Espírito Santo O negro artificial Um círculo no fogo Um último encontro com o inimigo Gente boa da roça O Refugiado de Guerra Sobre a autora A LUA GORDA E O SOL, HÓSTIA DE SANGUE Se lidos só pelo enredo, os contos de Flannery O’Connor podem causar a impressão de que fazem a apologia da desgraça. Em suas criações tão bizarras, porque tão diferentes dos padrões costumeiros, nada em geral termina bem, e banhos lancinantes de sangue ou o fragor das desilusões e derrotas são das normas mais constantes na maquinação dos desfechos. Ao término de cada conto, o mundo das pessoas se mostra como construção desumana, impiedosa e insustentável que em vão procura algum amparo sobre os piores instintos. Ora esse mundo é uma clausura sufocante, que decorre das próprias e obscuras limitações do ego, ora é um conjunto vago e totalmente incontornável de barreiras que parecem erguidas por projeções demoníacas. Lidos no entanto como invenções literárias, com seus muitos valores sobrepostos à mera evolução linear do enredo, os contos de Flannery são afirmações modelares de um espírito invulgar e de um olhar como poucos. Seus textos contêm uma corrosiva essência satírica que, no desenrolar das tragédias, aponta para nossas fraquezas e o que às vezes se revela como ridículo ou grotesco nos desempenhos da espécie. Um dos primeiros contos deste livro, “Um golpe de sorte”, põe a sanha caricatural da autora em acentuado relevo. A personagem à qual ele se restringe, “mulher baixa e, por sua conformação, quase igual a uma urna funerária”, foi às compras e anda esbaforida sob o peso dos embrulhos que traz. Quando batalha para subir a escada que a levará finalmente para casa, a descrição concisa que ela inspira mais parece retirada de um camafeu zombeteiro. A mulher-urna, nas palavras de Flannery, “tinha o cabelo cor de amora amontoado em rolinhos, que nem salsichas ao redor da cabeça, mas com o calor e a longa caminhada desde a mercearia alguns já estavam desfeitos e furiosamente apontavam nas direções mais diversas”. Aplicada para obter efeitos cômicos, a visão deformadora não se confina à descrição de seres humanos. Objetos banais do dia a dia, detalhes arquitetônicos, veículos, animais e até a própria natureza frequentemente também são submetidos a um tratamento que exagera contornos, adultera formas e embaralha as cores das cenas para pintar quadros verbais que contenham alto teor de expressividade. “Uma lua gorda e amarela surgiu nos galhos da figueira como se fosse se empoleirar ali com as galinhas”, lê-se, nessa linha de figurações com chacota, no conto “A vida que você salva pode ser a sua”. Em “O rio”, é “como uma penca de verrugas na encosta da montanha” que um menino avista ao longe a cidade. E o que ele vê em seguida? Que “os passarinhos, baixando, foram pousar de asas dobradas, como se sustentassem o céu, no topo do pinheiro mais alto”. Já o conto “Um templo do Espírito Santo” termina com este detalhe de paisagem que subverte por completo as convenções de espaço em vigor: “O sol era uma enorme bola vermelha, como uma hóstia empapada de sangue, e, quando sumiu de vista, deixou uma listra fina no céu, como uma estradinha de terra a pairar sobre as árvores”. Exemplos assim, que aqui e ali podem ser pinçados ao longo de todo o livro, são indícios reveladores de que a literatura de Flannery mantém estreita afinidade de espírito com um dos movimentos mais importantes na evolução artística do século 20, o expressionismo nórdico da Europa, cujas premissas e posturas ainda tinham consequências tardias em seu tempo de vida. De propósito falei de quadros, formas, cores, contornos, tratamento, visão deformadora, usando termos do vocabulário das artes plásticas para situar seus trabalhos na mesma linha de ânsia de expressão e procura de recursos ainda inexplorados. Muitas das imagens de nossa jovem autora, que tinha apenas 30 anos quando em 1955 publicou Um homem bom é difícil de encontrar, logo me faziam pensar, enquanto eu traduzia seus contos, nas grandes criações dos mestres expressionistas. A obra de Flannery, como essas, está cheia de um secreto amargor e de sofridas indagações espirituais que comumente se entrelaçam com uma discordante inclinação ao escárnio. Há um curioso paralelismo temático entre dois dos contos que aqui se enfeixam — “A vida que você salva pode ser a sua” e “Gente boa da roça”. Em ambos, as principais personagens são mulheres mais velhas que vivem como fazendeiras reclusas, sem maridos, em companhia de filhas únicas, feias, disformes e sempre sem namorados. Em ambos, forasteiros que vêm a pé pela estrada se aproximam das casas mergulhadas num isolamento completo. Os dois tipos masculinos, jovens espertalhões que andam à cata de boas oportunidades, são semelhantes em seus traços gerais, igualando-se principalmente por serem grandes canalhas com total falta de escrúpulos. Peripécias à parte, o que mais importa nos dois contos é que ambos terminam com as meninonas sem homens das fazendas (na realidade, mulheres virgens por volta dos 30 anos) envolvidas com os espertalhões forasteiros, que não pensam senão em obter vantagens e acabarão por abandoná-las. O desfecho de “Gente boa da roça” é uma das cenas mais cruéis que a literatura já pôde conceber. Depois de fazer sexo com a filha aleijada da fazendeira, o jovem arrivista, supostamente um vendedor de Bíblias, foge carregando consigo, por maldade nua e crua, a perna de pau que a moça usava. O tema repetido é curioso porque inevitavelmente remete à situação existencial da própria autora. Filha única de um casal que dispunha de dinheiro, a americana Flannery O’Connor nasceu em 1925, em Savannah, na Georgia, e morreu em 1964, com 39 anos, num hospital do mesmo estado. Em 1941, quando a família já era proprietária da Fazenda Andalusia, em Milledgeville, seu pai morreu de lúpus eritematoso, doença hereditária e até então incurável que em 1952 foi diagnosticada também na filha. Sabendo-se condenada, Flannery ainda viveu mais doze anos em reclusão na fazenda, amparada por sua mãe viúva e em condições comparáveis às das ficções que ela criou em “A vida que você salva pode ser a sua” e “Gente boa da roça”. Àespera da morte certa, Flannery O’Connor não só publicou seu primeiro livro, o romance Sangue sábio, editado no mesmo ano em que o lúpus nela se manifestou, como também escreveu ou finalizou a maioria dos contos que compõem sua obra. Sua vida na fazenda difere basicamente da relatada nos dois textos sobre moças reclusas por não ter sido tão rústica e desprovida de meios quanto a dos ambientes fictícios. Na Andalusia de Milledgeville, bela e grande propriedade que hoje abriga um museu dedicado à sua memória, administrado pela Universidade Estadual da Georgia, Flannery O’Connor viveu com todo o conforto e pôde se envolver com a criação de aves exóticas — entre as quais seus adorados pavões, a cujas deleitosas plumagens, iridescentes e expressionistas pela explosão de cores, as páginas angustiantes deste livro fazem alusões bem frequentes. Leonardo Fróes UM HOMEM BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR A avó não queria ir para a Flórida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado à mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da página de esportes do Journal. “Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui”, disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. “Esse tal cara que fugiu da penitenciária federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção à Flórida… Leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim à solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência.” Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. “À Flórida as crianças já foram”, disse a velha senhora. “Deveriam levá-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram.” A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: “Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que é que não fica em casa?” Ele e a menina, June Star, estavam lendo histórias em quadrinhos no chão. “Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica”, disse June Star sem levantar a cabeça. “Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?” “Eu quebrava a cara dele”, John Wesley disse. “Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa”, June Star disse. “Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente.” “Está bem, mocinha”, disse a avó. “Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa.” June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado. Na manhã seguinte a avó foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato. A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram às oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o número por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade. A velha senhora se instalou à vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buquê de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta. Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saíam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas histórias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir. “Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa”, John Wesley disse. “Eu, se eu fosse um menino”, disse a avó, “eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas…” “O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós”, John Wesley disse, “e a Geórgia também é uma porcaria de estado.” “É isso mesmo”, disse June Star. “No meu tempo”, a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, “as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!”, disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. “Não daria um quadro?”, perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus. “Ele estava sem calça”, disse June Star. “Talvez nem tenha”, a avó explicou. “Os negrinhos da roça não são assim como nós, não têm coisas.” E acrescentou: “Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!” As crianças trocaram de revista. A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota. “Olhem lá o cemitério!”, disse a avó, apontando. “O antigo campo-santo da família. Pertencia à fazenda.” “E onde está a fazenda?”, John Wesley perguntou. “E o vento levou…”, disse a avó. “Ha, ha.” As crianças, quando acabaram todas as revistas levadas, abriram e comeram seus lanches. A avó comeu um sanduíche de pasta de amendoim e uma azeitona e não deixou as crianças jogarem pela janela os guardanapos e sacos de papel. Quando não tinham mais o que fazer, brincaram de escolher uma nuvem para os outrosadivinharem a forma que ela sugeria. John Wesley escolheu uma nuvem que tinha forma de vaca, June Star falou vaca e ele disse que não, que era carro, e June Star disse que John Wesley estava jogando sujo e logo estavam os dois, por cima da avó, aos tapas. A avó disse que contaria uma história se eles ficassem quietos. E ela, quando contava uma história, revirava os olhos e agitava a cabeça e era toda dramática. Contou então que nos seus tempos de moça tinha sido cortejada por um rapaz de Jasper, na Geórgia, chamado Charles Otoline Miles Erlanger Robertson. Um rapaz muito atraente, um cavalheiro, segundo a avó, que todo sábado à tarde, quando a visitava, levava-lhe uma melancia com suas iniciais gravadas: C.O.M.E.R. Num desses sábados, como ela disse, Robertson chegou com a melancia e não havia ninguém em casa e ele a deixou na varanda e voltou para Jasper na charrete, mas essa melancia ela nunca viu, porque um negrinho a devorou, como ela disse, quando leu as iniciais C.O.M.E.R. A historinha agradou em cheio a John Wesley, que estourou numa gargalhada e se retorcia de rir, mas June Star não achou graça nenhuma. Disse que jamais se casaria com um homem que se limitasse a levar-lhe uma melancia no sábado. Já a avó disse que para ela teria sido uma beleza se casar com Robertson, porque ele era um homem muito distinto e comprou ações da Coca-Cola logo que foram lançadas e só tinha morrido há poucos anos, riquíssimo. Pararam para comer uns sanduíches grelhados num lugar chamado The Tower. Era um misto de salão de festas e posto de gasolina, parte em madeira, parte em estuque, instalado numa clareira nos arredores de Timothy. O dono era um gordo, Red Sammy Butts, e havia placas penduradas ali por toda parte, e por quilômetros na rodovia, dizendo: EXPERIMENTE O AFAMADO GRELHADO DE RED SAMMY. NENHUM SE COMPARA AO DELE! RED SAM, O GORDINHO DA RISADA FELIZ! UM VETERANO! RED SAMMY, O HOMEM CERTO! Deitado no chão, do lado de fora do The Tower, estava o próprio Red Sammy. Tinha a cabeça enfiada embaixo de um caminhão, enquanto um mico cinzento de seus trinta centímetros, amarrado pela corrente a um pé de saboeiro, fazia papagueatas por perto. Bastou ver as crianças saltarem do carro e correrem na sua direção para o mico pular de volta na árvore e subir ao galho mais alto. Por dentro, The Tower era um salão comprido e escuro, com um balcão de um lado, mesas do outro, e um espaço para dançar no meio. Sentaram-se a uma mesa de tábuas, ao lado da vitrola automática, e a mulher de Red Sam, alta, queimada, de cabelo e olhos mais claros do que sua pele morena, veio atendê-los. A mãe das crianças pôs uma moeda na máquina e escolheu “A valsa do Tennessee”. A avó disse que sempre sentia vontade de dançar com essa música e perguntou a Bailey se ele dançaria com ela, mas ele apenas a olhou de banda. Não tinha a disposição dela, assim toda animada, e as viagens o deixavam nervoso. Os olhos da avó, olhos castanhos, brilhavam muito. Sentada, ela fazia de conta que dançava, jogando a cabeça, na cadeira, para os dois lados. June Star pediu para tocar uma música que desse para sapatear e assim a mãe das crianças pôs uma outra moedinha e escolheu algo mais rápido. June Star pulou na pista e, como era de seu hábito, sapateou. “Que gracinha!”, disse a mulher de Red Sam, debruçada no balcão. “Você quer vir morar comigo? Quer ser a minha filhinha?” “Nem por sombra”, June Star disse, “nem por um milhão de dólares eu moraria num lugar tão caído assim!”, e voltou correndo para a mesa. “Mas não é mesmo uma gracinha?”, repetia a mulher, esticando polidamente os beiços. A avó ralhou: “Não tem vergonha não?” Red Sam entrou e disse à esposa para correr com o pedido dos fregueses, em vez de ficar ali no balcão fazendo hora. Sua calça cáqui vinha arriada até quase as coxas, sob o peso da barriga que despencava como um saco de farinha trepidando por baixo da camisa. Aproximou-se, sentou-se perto e deixou escapar algo impreciso, combinação de suspiro e cantoria. “Não dá pra levar”, dizia. “Assim não dá pra levar!”, e com um lenço acinzentado enxugava o suor do rosto vermelho. “Hoje em dia não se pode confiar em ninguém”, disse depois. “Não é verdade?” “As pessoas certamente não são mais tão gentis como já foram”, disse a avó. “Semana passada”, disse Red Sammy, “vieram aqui dois camaradas, num Chrysler. Um carro velho, muito rodado, mas bom, e os rapazes me pareciam gente direita. Disseram que trabalhavam no moinho, e não é que eu vendi gasolina fiado para eles? Por que fui fazer isso?” “Porque o senhor é um homem bom”, a avó disse. “É, dona, acho que sim”, disse Red Sam, como se ficasse, ele mesmo, espantado com a resposta. Sua mulher chegou com os pedidos, carregando os cinco pratos, sem bandeja, de uma só vez: dois em cada mão e mais um equilibrado no braço. “Não há alma que seja neste mundo de Deus”, disse ela, “em quem se possa confiar. E eu não excluo ninguém, ninguém mesmo”, repetiu, olhando para Red Sammy. “Vocês leram alguma coisa sobre aquele bandido, o Desajustado, que fugiu da cadeia?”, a avó perguntou. “Eu não ficaria nem um pouco surpresa se agora mesmo ele atacasse esse lugar aqui”, disse a mulher. “Se ele souber que nós estamos aqui, e se me aparecer pela frente, não ficarei nada surpresa. Se souber que na caixa registradora tem algum dinheiro, não ficarei nada surpresa se ele…” “Chega!”, Red Sam disse. “Traz logo as Cocas dos fregueses”, e a mulher lá se foi a completar o pedido. “Um homem bom é difícil de encontrar”, disse Red Sammy. “Tudo está ficando um horror. Lembro do tempo em que se podia sair tranquilamente de casa e deixar a porta aberta. Agora não mais.” Ele e a avó se distraíram conversando sobre tempos melhores. A culpada era a Europa, na opinião da velha senhora, se as coisas andavam assim agora. Pela atitude da Europa, segundo ela, até se poderia pensar que os americanos eram feitos de dinheiro, e Red Sam disse que nem adiantava falar daquilo, que ela estava coberta de razão. As crianças correram para fora, para a claridade do sol, e foram ver o macaquinho no saboeiro rendado. O mico estava entretido, catando pulgas que comia, como guloseimas, com um demorado estalar de dentes. Depois, pela tarde quente, a família prosseguiu em viagem. A avó dava umas cochiladas e de quando em quando era despertada pelos seus próprios roncos. Nos arredores de Toombsboro, ao acordar de vez, lembrou-se de uma velha fazenda que ela havia visitado por ali, na região, quando moça. Disse que a casa tinha seis colunas brancas na frente, uma fileira de carvalhos conduzindo à entrada e dois pequenos caramanchões de madeira, bem na frente, um de cada lado, onde as moças sentavam-se com os pretendentes, depois de algumas voltas no jardim. A estrada que era preciso pegar para chegar até lá veio-lhe com precisão à memória. Ela sabia que Bailey não concordaria em perder tempo só para ir ver uma casa velha, mas quanto mais falava nisso, mais ela queria revê-la, querendo saber se os caramanchões geminados ainda estavam de pé. “Havia nessa casa uma passagem secreta”, disse pois com astúcia, sem contar uma verdade, mas desejando que assim fosse, “e diziam que a prataria da família foi toda escondida lá, quando Sherman passou por aqui, e nunca pôde ser encontrada…” “Oba, então vamos lá!”, John Wesley disse. “Vamos descobrir essa prata! É só abrir o madeirame, é só ir tirando as tábuas, que a gente acha. Quem mora lá? Onde é que se pega o caminho? Ei, pai, não dá para dobrar por ali?” “Nunca vimos uma casa com passagem secreta”, berrou June Star. “Vamos ver a casa com passagem secreta! Oba! Papai, temos de ir ver a casa com passagem secreta!” “Eu sei que não ficalonge daqui”, disse a avó. “Nem bem uns vinte minutos.” Bailey olhava reto em frente, com o queixo tão rígido quanto uma ferradura. “Não”, ele disse. A gritaria das crianças, querendo ver a casa com passagem secreta, não fez senão aumentar. John Wesley chutava as costas do banco dianteiro, e June Star se pendurou no ombro da mãe, em cujo ouvido choramingou desesperada que era sempre assim mesmo, que nem nas férias eles se divertiam, que eles nunca podiam fazer o que ELES MESMOS queriam. O bebê já estava berrando. E os chutes de John Wesley no assento se tornavam tão fortes que o pai já sentia os golpes nos rins. “Tá legal!”, o pai gritou, e parou o carro no acostamento. “Mas vocês querem calar a boca? Querem calar a boca um minuto? Se não se calarem, não vamos a lugar nenhum!” “Mas seria muito instrutivo para eles”, murmurou a avó. “Está bem”, Bailey disse, “mas anotem: é a única vez em que nós vamos parar por uma coisa dessas. É a primeira e última vez.” “A estrada de terra que você tem de pegar já ficou lá para trás, a uns dois quilômetros”, a avó orientou. “Eu a notei quando passamos.” “Estrada de terra…”, resmungou Bailey. Quando já iam, depois de terem feito um retorno, em direção à tal estrada, a avó rememorou outros detalhes da casa, como o belo vitral sobre a entrada e o candelabro do salão. John Wesley disse que a passagem secreta provavelmente ficava na lareira. “Não se pode entrar na casa”, Bailey disse. “Nem sabemos quem mora lá.” “Posso ir por trás, enquanto vocês conversam com as pessoas na frente, e entrar por uma janela “, John Wesley sugeriu. “Não”, disse a mãe, “vamos ficar todos no carro.” O carro, sacolejando muito, entrou pela estradinha de barro num turbilhão de poeira cor-de-rosa. A avó se lembrou dos tempos em que não havia estradas asfaltadas e se levava um dia inteiro para andar cinquenta quilômetros. A estradinha era acidentada e íngreme, com inesperadas crateras de atoleiros e curvas muito fechadas em perigosos barrancos. Ora eles estavam bem no alto de um morro, vendo as copas azuladas das árvores que se estendiam lá embaixo, por quilômetros em torno, ora, logo a seguir, já estavam numa depressão de terra vermelha, com árvores empoeiradas por cima. “É melhor esse lugar aparecer logo”, Bailey disse, “porque senão eu vou voltar.” Dava a impressão de que ninguém, há meses, passava naquela estrada. “Não está muito longe”, disse a avó, e justamente quando o disse ela teve um pensamento horroroso. Um pensamento tão embaraçoso que seu rosto corou, seus olhos se dilataram e os pés se mexeram muito no chão, atingindo e deslocando a maletinha no canto. No mesmo instante em que a valise se moveu, a folha de jornal que ela usava como tampa da cesta que estava embaixo se levantou com um miado e voou no ombro de Bailey. As crianças foram jogadas no chão. A mãe, agarrada ao bebê, foi jogada porta afora, na estrada. A velha senhora jogada para o banco da frente. O carro deu uma capotada e voltou à posição normal, mas fora da estrada, e numa vala. Bailey permanecia no lugar do motorista com o gato — listrado de cinza, cara branca achatada e focinho cor de laranja — agarrado como lagarta em seu pescoço. As crianças, assim que conseguiram mexer braços e pernas, saíram se espremendo do carro, e gritavam: “Tivemos um ACIDENTE!” Já a avó se encolheu sob o painel, com a esperança de estar ferida para que a ira de Bailey não se abatesse implacável sobre ela. O pensamento horroroso que havia tido, pouco antes do acidente, foi que a casa da qual ela se lembrava tão bem não ficava na Geórgia, mas sim no Tennessee. Bailey tirou o gato do pescoço, com ambas as mãos, e o arremessou contra o tronco de um pinheiro, pela janela. Depois, saindo do carro, foi procurar a mãe das crianças. Essa, que estava ao lado da valeta estripada, e ali sentada segurava o bebê aos berros, tinha ela mesma apenas uma fratura no ombro e um corte feio no rosto. “Tivemos um ACIDENTE!”, gritavam as crianças numa alegria frenética. “Mas não morreu ninguém”, disse, desapontada, June Star, quando a avó desceu mancando do carro com o chapéu ainda preso na cabeça, malgrado a aba desabada na frente, que ela tentava recolocar numa posição elegante, e o buquê de violetas caído ao lado. Sentaram-se todos na valeta, menos as crianças, todos tremendo muito, para se refazerem do susto. “Talvez venha um carro por aí”, disse a mãe das crianças com a voz embargada. “Acho que algum órgão meu foi afetado”, disse a avó, apalpando-se de um lado do corpo, mas ninguém ligou para ela. Os dentes de Bailey batiam sem parar. Vestido numa camisa esporte amarela, na qual brilhavam, estampadas, umas araras-azuis, ele estava com o rosto da mesma cor da camisa. A avó achou melhor não dizer que a tal da casa era no Tennessee. A estrada se encontrava cerca de três metros acima, e eles podiam ver apenas, do outro lado, o topo das árvores. Por trás da vala na qual estavam sentados se estendia a mata cerrada, escura e alta. Em poucos minutos avistaram um carro, não muito longe, no cocuruto de um morro, que vinha bem devagar, como se seus ocupantes os observassem. A avó, para lhes chamar a atenção, levantou-se em espalhafatosos acenos, agitando os dois braços. O carro, que continuava a se aproximar lentamente, desapareceu numa curva e ressurgiu adiante ainda mais devagar, já no cume do morro por que eles tinham passado. Era um grande automóvel preto e velho, em péssimo estado, que mais parecia um carro fúnebre. Levava três homens dentro. Parou bem por cima deles e, por alguns minutos, o motorista ficou olhando para baixo, lá para onde eles estavam, de um modo fixo, porém sem expressão, e não disse nada. Depois, virando a cabeça, sussurrou algo aos outros dois, que desceram. Um, o gordo, de calça preta, que usava uma camiseta vermelha adornada no peito por um garanhão prateado, passou por eles e foi plantar-se à direita, do outro lado, de onde concentradamente os olhava, com uma espécie de riso frouxo na boca aberta pelo meio. O outro, de calça cáqui e paletó listrado de azul, com um chapéu cinza tão enterrado na testa que lhe ocultava a maior parte do rosto, lentamente se aproximou pela esquerda. Nenhum dos dois falava nada. O motorista saltou, mas continuou ao lado do carro, de pé, olhando para eles lá embaixo. Era mais velho do que os outros dois homens. Seu cabelo já estava meio grisalho, e os óculos de aros prateados davam-lhe um ar estudioso. Tinha o rosto enrugado e o peito nu, sem camisa nem camiseta. Sua calça blue jeans estava muito apertada e ele empunhava um revólver, tendo na outra mão seu chapéu preto. Os dois rapazes também estavam armados. “Sofremos um ACIDENTE”, as crianças gritavam. A avó teve a nítida impressão de que já conhecia aquele homem de óculos. Seu rosto lhe era bem familiar, como se o tivesse conhecido a vida toda, e ela no entanto não conseguia se lembrar quem era. Ele se afastou do carro e começou a descer pelo barranco, firmando os pés com atenção, para não escorregar. Usava sapatos de duas cores, marrom e branco, sem meias, e linha os tornozelos muito vermelhos e finos. “Boa tarde”, ele disse. “Tiveram um probleminha, né?” “Capotamos duas vezes!”, disse a avó. “Uma”, ele corrigiu. “Nós vimos quando aconteceu. Ligue lá o carro deles, Hiram, pra ver se pega”, disse calmamente para o rapaz de chapéu cinza. “Pra que essa arma?”, perguntou John Wesley. “Vai fazer o que com essa arma, hem?” “Minha senhora”, disse o homem para a mãe das crianças, “mande essas crianças sentarem-se aí ao seu lado, sim? Crianças me põem nervoso. Quero todos vocês sentados juntos aí, aí mesmo onde estão.” “Por que é que você está dando ordens pra gente?”,June Star perguntou. A mata se abria, por trás deles, como uma boca escura. “Venham pra cá”, disse a mãe. “Olha aqui”, disse Bailey bruscamente, “nós estamos numa enrascada! Estamos nu…” A avó deu um grito. Ficou em pé, encarou o homem e disse: “O senhor é o Desajustado! Eu logo vi!” “É, dona, sou sim”, disse o homem, com um ligeiro sorriso, como que satisfeito de sua fama, apesar dos pesares, “mas seria muito melhor para todos se a senhora não tivesse me reconhecido.” Bailey se virou abruptamente e disse para a sua mãe qualquer coisa que deixou até mesmo as crianças chocadas. A velha senhora começou a chorar, e o Desajustado corou. “Minha senhora”, ele disse, “não fique triste. Às vezes um homem diz coisas sem querer. A intenção dele, penso eu, não era falar assim com a senhora.” “O senhor não atiraria em mulher, não é?”, disse a avó, tirando do punho do vestido um lencinho limpo para enxugar os olhos. O Desajustado enfiou o bico de seu sapato na terra e fez um buraquinho que depois tampou. “Eu detestaria ter de fazer isso”, disse. “Escute aqui”, disse a avó quase gritando, “eu sei que o senhor é um homem bom. Não aparenta nem um pouco ser pessoa comum. Sei que deve ser de boa família!” “Ah, isso sim”, disse ele, “da melhor do mundo.” Deixava à mostra, quando ria, seus dentes brancos e fortes. “Deus nunca fez mulher mais perfeita do que a minha mãe, e o coração do meu pai era ouro puro”, ele disse. O rapaz de camiseta vermelha deu a volta e, com sua arma apoiada na cintura, ficou em pé por trás deles. O Desajustado se agachou. “Olho nessas crianças, Bobby Lee”, disse ele. “Você sabe que elas me deixam nervoso.” Olhava para o grupo dos seis amontoados ali na sua frente e parecia confuso, como se não achasse o que dizer. “Nem uma nuvem no céu, não é?”, observou, olhando para as alturas. “Não se vê o sol, mas também não se vê nuvem.” “Pois é, está um dia lindo!”, disse a avó. “Mas ouça”, acrescentou, “o senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo.” “Silêncio!”, gritou Bailey. “Boca calada todo mundo! Deixem comigo que eu resolvo a parada.” Ele estava a postos, na posição de um corredor na largada, mas não se moveu. “Obrigado por suas boas palavras, minha senhora”, disse o Desajustado, traçando com o cabo da arma uma rodinha no chão. “Levaria uma meia hora para ajeitar esse carro”, gritou Hiram, olhando por cima do capô aberto. “Tudo bem, mas primeiro você e o Bobby Lee levem o cara e o garotinho para dar uma andada”, disse o Desajustado, apontando Bailey e John Wesley. “Os rapazes querem te perguntar uma coisa”, disse ele para Bailey. “Pode dar uma chegadinha ali na mata com eles?” “Escute aqui”, começou Bailey, “nós estamos numa enrascada terrível! Será que ninguém percebe?”, mas sua voz sumiu, e ele permaneceu completamente parado, com os olhos de um azul tão intenso quanto as araras da camisa que usava. A avó se esticou para ajeitar a beirada do chapéu, como se tivesse de ir para a mata também, mas o chapéu acabou caindo na sua mão. Ela o olhou por algum tempo e depois o deixou cair no chão. Hiram puxou Bailey pelo braço, como se estivesse ajudando a um velho. John Wesley se agarrou na mão do pai, e Bobby Lee os seguiu. Foram lá para a mata, e quando estavam chegando à orla escura Bailey se virou e, apoiado no tronco nu e acinzentado de um pinheiro, gritou: “Eu volto logo, mamãe, me espere aí!” “Volte já! Agora mesmo!”, gritou a mãe, mas todos tinham desaparecido na mata. “Bailey, meu filho!”, chamou a avó numa voz trágica, mas deu-se conta de que tinha pela frente, agachado no chão, o Desajustado, para o qual aliás estava olhando. “Sei que o senhor é um homem bom”, disse, desesperada. “Não é uma pessoa qualquer!” “Não, dona, não sou bom não”, o Desajustado disse um segundo depois, como se houvesse refletido sobre o que ela tinha dito, “mas também não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente dos meus irmãos e irmãs. Dizia que há pessoas capazes de passar a vida toda sem perguntar por quê, mas que outras têm de saber o porquê das coisas, e que eu era desse tipo e ia me meter em tudo.” Pôs o chapéu preto, olhou bruscamente para cima e logo desviou o olhar lá para a mata, como se estivesse novamente sem jeito. “Desculpem eu estar sem camisa assim diante das senhoras”, disse, encolhendo ligeiramente os ombros. “Nós enterramos nossas roupas depois da fuga, e temos nos safado com essas até achar coisa melhor. Essas nós pegamos com um pessoal que encontramos”, explicou. “Mas então está tudo bem”, disse a avó. “Bailey deve ter uma camisa extra na mala.” “Ah, eu vou dar uma olhada”, disse o Desajustado. “Para onde estão levando eles?”, berrou a mãe das crianças. “O meu velho era um colosso. Ninguém passava a perna nele. Nunca se meteu numa encrenca, sabia como lidar com autoridades.” “O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto”, disse a avó. “Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo?” O Desajustado pareceu refletir. Continuava rabiscando no chão, com o cabo da arma, e disse: “Tem sempre alguém atrás da gente.” A avó pôde notar que os ombros dele eram estreitos demais, logo abaixo do chapéu, porque, estando em pé, ela o via de cima. “Costuma rezar?”, perguntou. Ele meneou a cabeça. Ela só viu o chapéu preto balançando em seus ombros. E ele disse: “Não.” A um tiro de pistola na mata seguiu-se logo mais um. Depois, silêncio. A cabeça da avó rodopiou. Ela ouviu o vento passando pelo alto das árvores como uma tomada de ar longa e satisfatória. “Bailey, meu filho!”, gritou. “Por uns tempos, fui cantor gospel”, disse o Desajustado. “Já fiz um pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e lá fora, já me casei duas vezes, já fui agente funerário, já fui ferroviário e já lavrei a mãe terra, estive em um tornado, certa vez vi um homem queimado vivo…” e olhou para a mãe das crianças e a garota, que estavam sentadas bem juntinhas, com o rosto pálido e os olhares vidrados. “Vi até uma mulher ser chicoteada”, acrescentou. “Reze”, interveio a avó. “Reze…” “Não me lembro de ter sido um mau menino”, o Desajustado disse, numa voz como que em devaneio, “mas o fato é que lá pelas tantas fiz alguma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária”, e olhou para cima, prendendo-lhe a atenção com um olhar persistente. “Era então que devia ter começado a rezar”, ela disse. “O que foi que fez para ser mandado para a penitenciária dessa primeira vez?” “Do lado direito uma parede”, disse o Desajustado, “do lado esquerdo outra. Se eu me virasse para cima, via o teto; para baixo, o chão. Esqueci o que eu fiz, minha senhora. Sentava lá e ficava tentando lembrar o que eu tinha feito e até hoje não lembro. De vez em quando parecia que ia vir, que eu ia me lembrar, mas não vinha.” “Talvez o tenham prendido por engano”, disse vagamente a velha senhora. “Não”, ele disse. “Não houve erro. Sabiam tudo a meu respeito.” “Teria roubado alguma coisa, por acaso?”, ela disse. O Desajustado, zombando um pouco, riu. “Ninguém tinha nada que eu quisesse”, disse. “Um médico lá da penitenciária, um médico de cabeça, sabe, cismou que eu mesmo tinha matado meu pai. Invenção dele, é claro. Meu pai morreu na epidemia de gripe de 1919, e eu nunca tive nada com isso. Foi enterrado no cemitério da igreja batista de Mount Hopewell. Se quiser, pode ir lá ver.” “Jesus lhe ajudaria”, disse a velha senhora, “se o senhor rezasse.” “Isso é verdade”, disse o Desajustado. “Mas então por que não reza?”, perguntou ela, trêmula, num repentino deleite. “Não quero ajuda”, disse ele. Tenho me dado bem sozinho.”Bobby Lee e Hiram voltaram da mata a passos lentos. O primeiro arrastando uma camisa amarela com araras-azuis muito brilhantes. “Jogue essa camisa pra mim”, disse o Desajustado. E a camisa veio voando, pousou em seu ombro e ele a vestiu. A avó não conseguia saber o que é que a camisa lhe trazia à lembrança. “Não, dona”, disse o Desajustado, enquanto a abotoava, “eu descobri que o crime não importa. Você pode fazer isso ou aquilo, matar um homem ou roubar um pneu do carro dele, porque mais cedo ou mais tarde você se esquecerá do que fez e será punido justamente por isso.” A mãe das crianças começou a dar uns gemidos, como se não pudesse respirar muito bem. “Dona”, ele pediu, “pode dar uma chegada com Bobby Lee e Hiram até ali, com a garotinha, para juntar-se ao seu marido?” “Sim, obrigada”, disse, enfraquecida, a mulher. Seu braço esquerdo pendia bambo, e com o outro ela amparava o bebê, que agora estava dormindo. “Ajude a moça, Hiram”, disse o Desajustado, quando ela já se esforçava para sair da valeta, “enquanto o Bobby Lee pega a garota pela mão.” “Não quero que ele me pegue pela mão”, disse June Star. “Parece um porco.” O gordo corou e riu e a pegou pelo braço e foi levando para a mata atrás de Hiram e da mãe. Sozinha com o Desajustado, a avó constatou ter perdido a voz. Não havia uma só nuvem, nem sol, no céu. Nada em torno dela, a não ser a mata. Ela queria dizer que ele devia rezar. Abriu e fechou diversas vezes a boca, mas a frase não saía. Finalmente deu consigo dizendo: “Jesus, Jesus”, querendo dizer Jesus vai lhe ajudar, embora mais parecesse estar xingando, pelo modo como falou. “É, dona”, disse o Desajustado, como se concordasse. “Jesus desequilibrou as coisas. O mesmo caso, o dele e o meu, só que ele não praticou nenhum crime, e o meu eles puderam provar, porque tinham tudo anotado na minha ficha. É claro”, disse ele, “que nunca me mostraram a ficha. Por isso agora assino tudo. Há muito que eu digo, o negócio é caprichar na assinatura, assinar tudo que fizer e guardar cópia. Você assim poderá saber o que fez, podendo comparar o crime ao castigo, para ver se correspondem, e por fim terá alguma coisa para provar, se não for tratado direito. Se eu me chamo Desajustado”, disse ele, “é porque não faço esse ajuste, não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo.” Veio da mata um grito lancinante, logo seguido por um tiro de pistola. “A senhora acha justo que um receba punição rigorosa e outro nem sequer seja punido?” “Jesus!”, gritou a velha. “O senhor tem sangue bom. Tenho certeza de que não atiraria numa mulher. Sei que vem de boa família… Jesus, reze! Numa senhora o senhor não deve atirar. Eu lhe dou todo o dinheiro que eu tenho!” “Minha senhora”, disse o Desajustado, olhando bem além dela, para a mata, “cadáver não dá gorjeta para quem faz o serviço.” Houve mais dois tiros de pistola e a avó ergueu a cabeça, como uma perua sedenta pedindo água para se refrescar, e gritou: “Bailey, meu filho! Bailey, meu filho!”, como se o seu coração fosse explodir. “Jesus foi o único a ressuscitar os mortos”, prosseguiu o Desajustado, “e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. Mas, se não fazia, então o que nos cabe é desfrutar dos poucos minutos que nos restam da melhor maneira possível — matando alguém ou queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. Sem maldade não há prazer”, disse ele, e sua voz era quase um rosnado. “Vai ver que ele não ressuscitou os mortos”, murmurou a velha senhora, já sem saber o que dizia e se sentindo tão tonta que arriou na vala, à medida que suas pernas foram se retorcendo. “Se fez ou não fez, não sei, porque eu não estava lá”, disse o Desajustado. “E bem que eu gostaria de ter estado”, acrescentou, dando um soco no chão. “Não é justo ser assim, porque, se eu tivesse estado lá, eu saberia. Sabe de uma coisa, madame”, disse em voz alta: “Se eu tivesse estado lá, eu saberia, e não seria como sou agora.” Sua voz parecia a ponto de rachar, e a cabeça da avó clareou por um instante. Ela viu o rosto do homem contorcendo-se próximo ao dela, como se ele fosse chorar, e balbuciou: “Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos!”, esticando o braço para tocá-lo no ombro. O Desajustado deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e começou a limpá-los. Hiram e Bobby Lee voltaram da mata e pararam na beirada da vala, de onde olhavam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens. Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de vermelho e indefesos. “Levem ela daqui e joguem lá onde jogaram os outros”, disse ele, apanhando o gato, que se esfregava em sua perna. “Ela falava demais, né?”, disse em voz cantante Bobby Lee, ao escorregar vala adentro. “Seria até boa mulher”, o Desajustado disse, “se a cada instante de sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe dar um tiro.” “Teria sido gozado!”, disse Bobby Lee. “Cala essa boca, Bobby Lee!”, disse o Desajustado. “É, na vida não há prazer verdadeiro.” O RIO O menino ali ficou, todo mole e emburrado, no meio da sala escura, enquanto o pai o enfiava num paletó xadrez. Seu braço direito estava preso na manga, mas mesmo assim o pai o abotoou e empurrou para a frente, em direção à mão sardenta e pálida que surgia na porta entreaberta. “Ele não está bem-arrumado”, ouviu-se uma voz alta que vinha do corredor. “Ora essa, meu Deus, então arrume ele melhor”, resmungou o pai. “São seis horas da manhã.” Ele estava de roupão e descalço. Quando trouxe o menino e quis fechar a porta, deu com ela, que já ali assomava, um esqueleto recoberto de manchas envergando um casacão verde-ervilha e um capacete de feltro. “E a passagem dele e a minha”, ela disse. “Nós vamos e voltamos de bonde.” Ele foi até o quarto para apanhar o dinheiro e, quando voltou, os dois, ela e o menino, estavam plantados bem no meio da sala. Ela, examinando o ambiente: “Eu não aguentaria o cheiro dessas guimbas de cigarro, se tivesse de vir ficar com você”, disse, enquanto o endireitava no paletó. “Aqui está o das passagens”, disse o pai, que andou até a porta e, escancarando-a, ficou à espera. Ela, depois de conferir o dinheiro, enfiou-o nalgum canto por dentro do casacão e foi ver de perto uma aquarela pendurada ao lado do toca-discos. “Sei que horas são”, disse, observando com atenção as linhas pretas que cruzavam planos quebrados de uma cor muito forte. “Como eu não iria saber? Meu turno começa às dez da noite e só termina às cinco, e eu levo uma hora, vindo no bonde da Vine Street, para chegar até aqui.” “Ah, sim”, disse ele. “Mas o menino então volta à noite, não é, lá pelas oito ou nove?” “Talvez um pouco mais tarde”, ela disse. “Nós vamos a uma sessão de cura no rio. É muito raro esse pregador de hoje aparecer por aqui. Mas, quer saber”, acrescentou, apontando o quadro, “eu, por isso, não pagava era nada, eu mesma desenharia.” “Está bem, Mrs. Connin, então está combinado, nós nos vemos mais tarde”, disse ele, tamborilando na porta. Uma voz atonal pediu do quarto: “Me traz uma compressa de gelo.” “Que lástima que a mãe dele esteja doente”, Mrs. Connin disse. “O quê que ela tem?” “A gente não sabe”, ele murmurou. “Vamos pedir ao pregador para rezar por ela. É o reverendo Bevel Summers, que já curou muita gente. Quem sabe ela ia estar com ele um dia?” “É, talvez”, ele disse. “Então até logo mais à noite”, e entrou noquarto e sumiu, deixando que os dois se fossem. Em silêncio, de olhos e nariz escorrendo, o garotinho olhou para a mulher. Tinha quatro ou cinco anos. Tinha um rosto comprido, o queixo grande, os olhos puxados e muito afastados um do outro. Parecia tão mudo e paciente como um carneiro velho à espera de ser solto. “Você vai gostar do pastor”, ela disse. “O reverendo Bevel Summers é uma coisa. Só ouvindo ele cantar!” A porta do quarto se abriu de repente, o pai espichou a cabeça para fora e disse: “Tchau, companheiro. Divirta-se!” “Tchau”, o menino disse, pulando como se tivesse levado um tiro. Mrs. Connin deu mais uma olhada na aquarela. E depois eles saíram para chamar o elevador no corredor. “Não, eu não teria desenhado aquilo”, ela disse. Na rua, os prédios vazios e apagados bloqueavam dos dois lados a manhã cinzenta. “Mais tarde o tempo deve melhorar” disse ela, “e essa é a última vez do ano em que teremos o culto lá na beira do rio. Limpa o nariz, menino!” Ele já estava a ponto de fazê-lo na manga do paletó, quando ela o interrompeu: “Assim não, é feio”, disse. “Onde está o seu lencinho?” Ele fingiu que procurava nos bolsos, enquanto ela ficava esperando. “Tem gente que nem liga, deixa a criança sair de qualquer modo”, murmurou para seu próprio reflexo na vitrine da lanchonete. “Mas dá-se um jeito.” Com um lenço florido, vermelho e azul, que tirou do casacão, ela se abaixou e limpou o nariz do garotinho: “Agora assoa”, ela disse, e ele assoou. “Pode guardar, que eu te empresto. Guarda.” Cuidadosamente ele dobrou e guardou o lenço no bolso, e eles foram andando até a esquina e se encostaram na parede de uma drogaria fechada para esperar o bonde. Mrs. Connin levantou a gola do casaco, para deixá-la bem fechada, por trás, junto com seu chapéu. Suas pálpebras estavam pesando, e ela ameaçava cair no sono ali mesmo. O menino lhe deu uma apertada na mão. Ela, com voz de quem dormia em pé, perguntou: “Como é o seu nome? Só sei o seu sobrenome. Como foi que não me lembrei de perguntar o seu nome?” O nome dele era Harry Ashfileld, nome que ele, até então, jamais tinha pensado em mudar. Mas disse: “Bevel.” Mrs. Connin se desencostou da parede. “Nossa, que coincidência! Eu não te disse que é o nome do pastor?” “Bevel”, o menino repetiu. Ela agora o olhava como se ele tivesse se tornado um prodígio. “Vou ver se consigo te apresentar a ele hoje. Ele não é um pastor qualquer, sabe? Ele cura as pessoas, embora não tenha podido fazer nada por Mr. Connin. Mr. Connin não tinha fé, mas estava disposto a tentar de tudo. Foi nó nas tripas que deu nele.” O bonde apareceu como uma mancha amarela no fim da rua deserta. “Agora ele está num hospital do governo, onde já lhe tiraram mais da metade da barriga. Digo-lhe que agradeça a Deus pelo que ainda resta, mas ele diz que não é de agradecer. Mas e essa então, hein, quem diria”, ela murmurou, “Bevel!” Foram para perto dos trilhos esperar. Bevel perguntou: “Ele vai me curar?” “O quê que você tem?” “Tô com fome”, ele enfim decidiu. “Não tomou café?” “Não tinha dado tempo de eu já ter fome.” “Quando a gente chegar lá em casa, vamos comer alguma coisa”, ela disse. “Também estou com vontade.” Pegaram o bonde, sentando-se alguns bancos atrás do motorneiro. E Mrs. Connin pegou Bevel no colo. “Agora sossega um pouco, que eu vou dar uma cochilada”, ela disse. “Não sai daqui do meu colo, ouviu?” Ela deixou a cabeça ir para trás e, enquanto ele a observava, pouco a pouco seus olhos se fecharam e a boca se abriu para mostrar os grandes dentes dispersos que lhe restavam, uns de ouro, outros escuros como seu rosto, que começou a soprar e assoviar como um esqueleto musical. Eram os únicos no bonde, eles dois e o motorneiro. O menino, quando viu que ela já estava dormindo, tirou do bolso o lenço florido, que desdobrou e examinou com atenção. Depois dobrou-o de novo, abriu o zíper de um bolsinho no forro do paletó, escondeu-o ali e logo pegou no sono também. A casa dela ficava a quase um quilômetro do final da linha do bonde e um pouco recuada da rua. De madeira, tinha uma varanda na frente e o telhado de zinco. Na varanda estavam três meninos de diferentes tamanhos, mas idênticos por seus rostos sardentos, e uma menina alta, que usava tantos rolinhos de alumínio que seu cabelo faiscava como o telhado da casa. Colando-se em Bevel para entrar, os três meninos os seguiram. Olhavam-no em silêncio, sem sorrir. Mrs. Connin, tirando seu casacão, disse: “Este é Bevel. Por coincidência, tem o mesmo nome do pastor. Estes aqui são J.C., Spivey e Sinclair, e a menina que está lá na varanda é Sarah Mildred. Tire o paletó. Bevel, e pendure ali na guarda da cama.” Os três meninos não paravam de espiá-lo, enquanto ele desabotoava e tirava o paletó. Observaram-no a seguir, quando ele o pôs na guarda da cama, e desde então olharam para o paletó com interesse. De repente saíram juntos, porta afora, para se reunir na varanda. Lá dentro, Bevel olhava em torno. De um lado estava a cozinha, do outro o quarto de dormir. A isso se resumia a casa, dois cômodos e duas varandas. Perto de seu pé, o rabo de um cachorro de pelo claro se mexia, para cima e para baixo, numa fresta entre duas tábuas do assoalho, enquanto embaixo da casa ele coçava as costas. Bevel tentou pisar em cima, mas o cachorro era esperto e recolheu o rabo antes de ser atingido. As paredes estavam cheias de calendários e imagens. Havia duas fotografias redondas, de um velhote e da esposa, ambos de boca murcha, e uma outra, de um homem cujas sobrancelhas brotavam de duas moitas de pelos para estender-se, amontoando-se, até por cima do nariz; já o que sobrava de seu rosto era nu como um penhasco do qual se pode cair. “Este é Mr. Connin”, disse Mrs. Connin, afastando-se do fogão um instante, para junto com o menino admirar o retrato, “mas a foto não o favorece em nada.” Bevel, tendo visto Mr. Connin, passou a olhar para uma foto colorida em cima da cama, de um homem enrolado num lençol branco. Com o cabelo comprido e um círculo dourado ao redor da cabeça, ele estava em destaque, sobre um pranchão, e era observado por algumas crianças. Bevel já ia perguntar quem era quando os três meninos voltaram, mandando, por sinais que lhe fizeram, que ele os seguisse. Teve vontade de se enfiar embaixo da cama e se agarrar a um dos pés, mas os três sardentos se mantiveram à espera, sempre calados, e ele acabou cedendo: acompanhou-os a pequena distância, pela varanda e para longe de casa. Passaram por um terreno com um mato amarelado para chegar ao chiqueiro, um quadrado de madeira de um metro e meio, repleto de leitões, onde planejavam jogá-lo. Lá chegando, viraram-se, encostaram-se nas tábuas e, em silêncio, esperaram por ele. Ele vinha bem devagar, batendo com um pé no outro, como se tivesse algum problema no andar. Uma vez tinha apanhado de uns moleques na praça quando a babá o esqueceu, mas na época nem desconfiou, e só depois do ocorrido se deu conta do que estava por vir. Começou a sentir um cheiro forte de repolho e a ouvir barulhos de animal. Pálido, acuado, parou a uns passos do chiqueiro, aguardando. Os três meninos não se mexiam. Parecia ter acontecido alguma coisa com eles. Apenas suas orelhas tremiam ligeiramente. Suas sardas estavam descoradas. Seus olhos, vidrados, olhavam por cima dele, como se vissem alguém vindo por trás, mas ele mesmo tinha medo de se virar e olhar também. Nada porém aconteceu. Por fim, o menino do meio disse: “Ela matava a gente” e, virando-se, frustrado e sem jeito, subiu no cercado e pendurou-se para espiar os porcos lá dentro. Bevel sentou-se no chão, aturdido de alívio, e sorriu para eles. O que estava na cerca do chiqueiro olhou-o de cara feia, mas depois disse:“Ei, se você não consegue subir para ver os porcos, puxe aquela tábua de baixo, que por ali também dá para olhar.” Dava, com tal oferta, a impressão de ser gentil. Bevel nunca tinha visto um porco de verdade, mas os conhecia de um livro e sabia que eram bichos gordos, rosados, de cara redonda e sorridente, rabo enrolado e gravata-borboleta. Abaixou-se, pois, cheio de expectativa, e puxou a tábua. “Mais força”, disse o menino menor. “Isso daí tá tudo podre. Puxa o prego, que sai.” Da madeira fofa, de fato, ele tirou um pregão enferrujado. “Agora é só suspender a tábua e enfiar a cara no…”, começou uma voz tranquila. Sendo o que ele havia feito, uma outra cara, cinzenta, molhada e brava, já se contrapunha à sua e acabou por derrubá-lo de costas ao escapar pelo buraco afora. Veio grunhindo sobre ele, tomou distância e voltou a atacar: rolava-o para um lado, depois para outro, para a frente e para trás, e o fazia berrar pelo terreno, enquanto a perseguição prosseguia. Os três Connins assistiam a tudo de onde estavam. O da cerca, usando o próprio pé pendurado, logo fixou no lugar a tábua solta. Seus rostos sisudos, a rigor, não se animaram, mas pareciam menos tensos, como se uma grande necessidade tivesse sido atendida em parte. “A mãe não vai gostar de ele ter soltado o leitão”, disse o menor de todos. Mrs. Connin estava na varandinha dos fundos e acudiu Bevel quando ele chegava aos degraus. O porco correu para debaixo da casa e sossegou, ofegante, mas o menino continuou se esgoelando por mais cinco minutos. Quando finalmente ela conseguiu acalmá-lo, trouxe-lhe o café da manhã, deixando que o tomasse em seu colo. Já o porco, tendo subido ao topo dos dois degraus da varandinha, agora olhava para eles pela portinhola de tela, cabisbaixo, trombudo. Tinha as pernas compridas, era corcunda e perdera parte de uma orelha numa mordida. “Sai já daí!”, Mrs. Connin gritou. “Esse é o favorito de Mr. Paradise, o dono do posto”, ela disse. “Lá no culto você vai ver quem é. Teve câncer na orelha e vem sempre mostrar que ele não foi curado.” O leitão continuou ali mais um pouco, espiando-os com os olhos entreabertos, e depois saiu lentamente. “Não quero ver esse bicho!”, disse Bevel. Foram andando para o rio. Mrs. Connin na frente, com ele e os três enfileirados atrás, e Sarah Mildred, a menina alta, de cerra-fila, para avisar se alguém se desviasse da linha. Eram como a armação de um barco antigo, com as duas extremidades pontudas, que vagasse lentamente à margem da rodovia. O sol branco de domingo, que os seguia a curta distância, passou ligeiro por uma nuvem cinza, como se quisesse ultrapassá-los. Bevel, o que estava mais na beira, dava a mão a Mrs. Connin e ia olhando a valeta cor de laranja e roxa que se estendia ao seu lado. Julgava ter dado sorte dessa vez, por terem chamado Mrs. Connin, que o levava para passar o dia fora, e não uma babá comum, que no máximo iria até a praça ou ficaria com ele em casa. Saindo de casa é que a gente descobria mais coisas. Naquela manhã, já descobrira ter sido feito por um carpinteiro chamado Jesus Cristo, função que antes atribuía ao chamado Sladewall, um médico gordo, de bigode amarelo, que lhe aplicava injeções e achava que o nome dele era Herbert, o que aliás devia ser brincadeira. Piadas e brincadeiras, na sua terra, eram muito comuns. Se houvesse pensado nisso antes, talvez tomasse Jesus Cristo por uma palavra, assim como “oh” ou “merda” ou “Deus”, ou por alguém que, de certa feita, os tivesse logrado em qualquer coisa. Quando ele perguntou quem era aquele homem com o lençol na imagem sobre a cama, Mrs. Connin, boquiaberta, fitou-o por algum tempo. E continuou a olhar firme para ele, mesmo depois de dizer: “É Jesus.” Afinal ela se levantou e foi até o outro cômodo pegar uma coisa. “Este livro”, disse, abrindo-o para mostrar, “pertenceu à minha bisavó. Não me separo dele por nada.” Numa página manchada, correu o dedo pelo que estava escrito, escrito e gasto, e leu: “Emma Stevens Oakley, 1832.” Depois disse: “É mesmo para se guardar com cuidado, não é? E cada palavra aqui é a verdade do evangelho. Passou à página seguinte, leu para ele o título, A vida de Jesus Cristo para menores de doze anos, e acabou lendo o livro inteiro. Era um livrinho de capa marrom-clara, com os cantos dourados e um cheiro de estuque velho. Entre as muitas figuras que o ilustravam havia a de um carpinteiro enxotando, de dentro de um homem, um bando de porcos. Porcos mesmo, porcos de verdade, cinzentos, de cara enfezada, e Mrs. Connin disse que Jesus tinha expulsado o bando todo de dentro daquele homem. Quando acabou de ler, deixou que ele se sentasse no chão para olhar de novo as figuras. Pouco antes de saírem para o culto, e sem que ela o notasse, ele dera um jeito de enfiar o livro por dentro do forro de seu paletó, que agora caía mais para um lado, por efeito do peso. Sua mente se mantinha serena e sonhadora ao andarem e, quando dobraram da rodovia asfaltada para uma longa estrada de terra que serpenteava entre moitas de madressilva, ele começou a dar pulos de alegria e a arrastá-la pela mão, como se quisesse ir correndo para agarrar o sol, que a essa altura se afastava à frente deles. Depois de andarem algum tempo pelo chão de barro vermelho, atravessaram um campo pontilhado de plantinhas roxas e entraram nas sombras de um extenso arvoredo, cujo solo se cobria de pinhas. Ele, que nunca pusera os pés na mata, pisava com atenção e olhava para todos os lados, como se estivesse ingressando em terra estranha. Passaram por uma trilha apertada que se retorcia morro abaixo, entre folhas vermelhas que estalavam, e ele de súbito, ao se agarrar num galho para não cair, viu-se em face do ouro verde de dois olhos gelados, incrustados na escuridão de um oco de pau. No pé do morro, a mata se abria, e de repente era um pasto, salpicado de vacas de pelo preto e branco dispersas, que continuava descendo pouco a pouco até um rio largo e alaranjado, onde o reflexo do sol era um diamante engastado. Havia um grupo de pessoas cantando, em pé, perto da margem. Ao redor, umas mesas compridas instaladas e uns poucos carros e caminhões estacionados numa estradinha que seguia o rio. Ao atravessarem o pasto, eles foram na maior correria, porque Mrs. Connin, de longe, protegendo os olhos com a mão, pôde ver que o pastor já estava lá dentro d’água. Pondo numa das mesas sua cesta, à sua frente ela pôs os três moleques e empurrou-os para o ajuntamento, livrando-os assim da tentação do farnel. Bevel, ela levava pela mão, e abriu caminho, resoluta, para o ponto central. O pastor se achava em pé dentro do rio, a uns três metros da margem, onde a água quase lhe chegava aos joelhos. Era um rapaz alto, de calça cáqui, que ele tinha enrolado para não molhar. Estava com uma camisa azul e um cachecol vermelho no pescoço, mas sem chapéu. Tinha o cabelo muito claro e costeletas curvas que avançavam pelas bochechas. Seu rosto era puro osso e a luz rubra refletida do rio. Aparentava ter uns dezenove anos. Estava cantando com voz fanhosa e alta, mais alta do que a cantoria na margem, com a cabeça inclinada para trás e as mãos cruzadas nas costas. Terminou seu hino com um agudo e se manteve em silêncio, olhando para a água onde seus pés se mexiam. Depois olhou para as pessoas à espera na margem, cujos rostos solenes, cheios de expectativa, bem juntos, estavam todos de olho nele, que mexeu com os pés novamente. “Posso saber ou não saber”, disse com sua voz fanhosa, “por que vocês vieram aqui. Se não vieram por Jesus, não vieram por mim. Se alguém aí só veio aqui paraver se conseguiria se livrar de uma dor entrando n’água, esse não veio por Jesus. Não se pode largar sua dor dentro do rio. Eu nunca disse isso a ninguém.” Parou, baixou a vista e olhou para seus próprios joelhos. “Já vi uma mulher ser curada por seus poderes!”, gritou alguém da multidão bruscamente. “Uma que puxava da perna quando chegou, mas que depois se levantou e saiu andando normalmente.” O pastor ergueu um pé e logo o outro. Parecia quase, mas não ainda, a ponto de sorrir. “Pode ir voltando para casa, se é por isso que veio”, disse. Depois, erguendo cabeça e braços, bradou: “Ouçam o que eu tenho a dizer, minha gente! Existe apenas um rio, que é o Rio da Vida, e ele é feito do Sangue de Jesus. É nesse rio que vocês têm de largar seus sofrimentos, o Rio da Fé, o Rio da Vida, o Rio do Amor, o rio do Sangue de Jesus, vermelho e bom!” Sua voz se tornou, a essa altura, suave e musical. “Todos os rios vêm desse Rio e correm para ele de volta, como se fosse o mar oceano, e os que têm fé podem largar aí sua dor, se libertando dos seus padecimentos, porque esse é o Rio que foi feito para carregar os pecados. Ele mesmo é um Rio cheio de dor que corre para o Reino de Cristo, aonde chega devagar, bem devagar, minha gente, como a água barrenta deste rio velho em meus pés.” Ele cantava: “Em Marcos, ouçam bem, eu li a história de um leproso, li em Lucas a respeito de um cego, e em João li sobre um morto! Pois fiquem vocês sabendo que o mesmo sangue que faz vermelho este Rio curou aquele leproso, como fez o cego ver e o morto andar! Vocês que estão com problemas”, gritou, “larguem seus sofrimentos neste Rio de Sangue, neste Rio de Dor, e vejam como ele corre para o Reino de Cristo!” Os olhos fatigados de Bevel, enquanto a pregação progredia, seguiam os círculos vagarosos que dois passarinhos em silêncio traçavam alto no ar. Do outro lado do rio, um bosque de açafrão vermelho e dourado e baixo, tinha por trás umas colinas com o azul-escuro das árvores e o recorte eventual de algum pinheiro a se destacar no horizonte. Depois, ao longe, como uma penca de verrugas na encosta da montanha, a cidade. Os passarinhos, baixando, foram pousar de asas dobradas, como se sustentassem o céu, no topo do pinheiro mais alto. “Se é no Rio da Vida que vocês querem largar seus sofrimentos”, dizia o pastor, “então venham, é aqui que devem deixá-los. Mas não pensem vocês que isso é o fim, porque este velho rio vermelho não acaba aqui. Velho, barrento e sofredor, o mesmo rio continua a fluir, indo lentamente para o Reino de Cristo. Serve para o Batismo, o rio velho, e é bom para receber sua fé e os sofrimentos que nele são largados, mas não será esta água lamacenta que há de salvar vocês. Estive por aí, ao longo do rio, para cima e para baixo, no decorrer da semana”, ele disse. “Na terça-feira em Fortune Lake, no dia seguinte em Ideal; na sexta eu e minha esposa fomos a Lulawillow de carro para estar com um doente. E ninguém, aonde eu fui, viu cura alguma.” Seu rosto, por um instante, se inflamou ainda mais. “Eu nunca disse que iam ver.” Uma figura tremulante, enquanto ele falava, tinha começado a se chegar para a frente numa espécie de andar de borboleta — uma velhota impelida por seu bater de braços, cuja cabeça balançava muito, como que a risco de cair de repente. Mesmo assim ela avançou até a beira do rio, onde se abaixou jogando os braços na água. Inclinou-se então ainda mais, para deixar todo o rosto em imersão um instante, e quando se reergueu afinal já estava bem encharcada. Sempre batendo os braços, olhava aqui e acolá, sem encontrar saída, até que alguém lhe deu a mão e a puxou novamente para o grupo. “Faz treze anos que ela tem essa tremedeira”, gritou algum grosseirão. “Passem o chapéu para juntar o dinheiro do rapaz. Foi por isso que ele veio.” A ordem, dada para alcançar o rapaz dentro do rio, partiu de um velho gordo arriado, como uma pedra com um calombo no para-choque de um automóvel antigo, comprido e cinza. Cinza também era o chapéu do gordo, que caía de um lado, escondendo uma orelha, e se levantava de outro, deixando à vista, no extremo esquerdo da testa, um inchaço roxo. Curvado bem para a frente, com as mãos pendendo entre os joelhos, ele abria apenas um pouco seus olhos muito miúdos. Bevel chegou a dar-lhe uma olhada, mas depois se escondeu por entre as dobras do casacão de Mrs. Connin. De dentro d’água, o rapaz encarou rapidamente o velho e ergueu-lhe o punho fechado. “Acredite em Jesus, ou no Diabo!”, gritou. “Testemunhe a um ou a outro!” “Por minha própria experiência”, bradou no meio do ajuntamento uma misteriosa voz de mulher, “sei que esse pastor pode curar. Meus olhos foram abertos! Eu testemunho a Jesus!” Sem perder tempo, de braços para o alto, o pregador começou a repetir tudo o que havia dito antes sobre o Rio e o Reino de Cristo. O velho sentado no para-choque olhava para ele de esguelha, sendo observado de longe, por sua vez, do entorno de Mrs. Connin, pelos olhos de Bevel. Um homem de macacão, com um paletó marrom por cima, dobrou-se sobre o rio, mergulhando e agitando a mão na água, para logo se endireitar outra vez, e uma mulher foi com um bebê para a beira, onde lhe molhava os pezinhos. Um outro, depois de se afastar um pouco para sentar-se à margem e tirar os sapatos, saiu andando água adentro; ficou alguns minutos por lá, com o rosto todo virado para o alto, e ao voltar foi se calçar novamente. O pastor cantava, durante todo esse tempo, e nem sequer parecia estar notando o que se passava ao redor. Assim que ele parou de cantar, Mrs. Connin suspendeu Bevel no ar e disse: “Esse menino é da cidade, pastor, e hoje ficou por minha conta. A mãe dele está doente. Pede para o senhor rezar por ela, e ele, veja só que coincidência — se chama Bevel! O mesmo nome”, dizia, virando-se para as pessoas que estavam por trás. “Bevel! Não é uma coincidência notável?” Houve alguns murmúrios e Bevel, se virando também, abriu-se num riso largo, por cima do ombro dela, para os rostos que o fitavam. “Bevel”, disse em voz alta e triunfante. “Aliás, Bevel”, perguntou Mrs. Connin, “você já foi batizado?” Ele se limitou a sorrir. Mrs. Connin, franzindo o cenho, disse para o pastor: “Acho que não.” “Me dá ele aqui”, disse o pastor que, a passos largos, foi pegar o menino. Reclinando-o num dos braços, olhou seu rosto sorridente. Bevel revirava os olhos de um modo cômico e chegou o rosto bem para a frente, quase o colando no do pastor. “Meu nome é Beveeel”, disse em voz profunda e alta, com a ponta da língua a deslizar pela boca. O pastor não achou graça. Seu rosto ossudo se mantinha rígido, e os olhos, cinzentos e estreitos, refletiam o céu quase sem cor. Mas o velho sentado no para- choque do carro deu uma gargalhada, e Bevel, agarrando-se na gola do pregador por trás, ali grudou. Com o sorriso sumido de sua face, teve o súbito pressentimento de que aquilo não era brincadeira. Tudo, onde ele morava, era levado em geral na brincadeira. Mas pela cara do homem, ele soube de imediato que nada do que o pastor dizia ou fazia era piada. “É o nome que a mãe me deu”, disse rápido. “Você já foi batizado?”, o pastor perguntou. “Fui o quê?” “Se eu te batizar”, disse o pastor, “você vai poder entrar no Reino de Cristo. Será lavado no rio dos sofrimentos, meu filho, e irá pelo rio fundo da vida. Você quer? “Quero”, o menino disse e pensou: oba, então eu vou por baixo d’água, não vou ter de voltar pro apartamento! “Você já não será mais o mesmo”, disse o pastor. “Você agora está entre os que contam.” E voltou a pregar, virado para os presentes, enquanto Bevel, por cima de seu ombro, via os pedaços de sol branco espalhados no rio. Lá pelas tantas o pastor avisou: “Bem, agora eu vou te batizar” e, semmais dizer, agarrou-o com força, para o virar de cabeça para baixo e assim afundar no rio. Mantendo-o embaixo d’água enquanto fazia sua oração de batismo, só depois ele o puxou de volta e olhou sério para a criança engasgada, que tinha os olhos dilatados e turvos. “Você agora é uma pessoa”, disse o pastor. “Você, que antes nem contava.” Bevel, de tão apavorado, nem chorava. Cuspiu a água lamacenta e passou pelos olhos, depois por todo o rosto, sua manga encharcada. “Não se esqueça da mãe dele”, disse Mrs. Connin. “Ele quer que o senhor reze por ela, que está doente.” “Senhor”, disse o pastor, “rezamos por alguém em aflição, que não está aqui para testemunhar. Sua mãe está doente, no hospital?”, ele perguntou. “Está sentindo muita dor?” O menino olhou para ele. “Ela ainda nem saiu da cama”, disse aturdido em voz alta. “Tá de ressaca.” O ar estava tão sereno que ele até podia ouvir os cacos do sol quebrado batendo n’água. O pastor fez uma cara feia de espanto. O sangue desapareceu de seu rosto, e o céu deu a impressão de escurecer em seus olhos. Mas da margem veio uma boa risada, e Mr. Paradise gritou, batendo com uma das mãos no joelho: “Quero ver você curar essa aí, que está sofrendo de ressaca!” “Ele teve um dia cheio”, disse Mrs. Connin, em pé ao lado do menino, à porta do apartamento, e olhando bem para a sala onde ia longe a festinha. “Já deve ser mais do que hora de ele ir para a cama, não é?” Bevel tinha um dos olhos fechado, o outro mal se mexia; respirava só pela boca, por isso a mantinha aberta, e vinha de nariz escorrendo. Um lado do seu paletozinho xadrez todo ensopado caía mais para baixo. Deve ser aquela ali, deduziu Mrs. Connin, a de calça preta — calça preta de cetim, sandálias de pés de fora e unhas vermelhas. Deitada em metade do sofá, pernas cruzadas para cima e a cabeça apoiada num braço, ela nem se levantou. “Oi, Harry”, limitou-se a dizer. “Foi um dia cheio, então?” Tinha um rosto comprido, pálido, apático, inexpressivo; e o cabelo liso, cor de batata-doce, puxado para trás. O pai foi apanhar o dinheiro. Havia outros dois casais na sala. Um dos homens, um louro de olhinhos de um azul-violeta, inclinou-se da cadeira em que estava e disse: “E aí, Harry, meu chapa, dia cheio, né?” “O nome dele não é Harry”, disse Mrs. Connin. “É Bevel.” “O nome dele é Harry sim”, disse ela do sofá. “Quem já soube de alguém chamado Bevel?” O garotinho parecia estar dormindo em pé; cabeceava sem parar, mas de repente conseguiu se conter e abriu um olho; o outro estava colado. “Ué, mas hoje cedo ele me disse que se chamava Bevel”, disse, espantada, Mrs. Connin. “O mesmo nome do nosso pastor. Passamos o dia num culto à beira do rio, com sessões de cura. E ele disse que se chamava Bevel, que tinha o nome do pastor. Foi o que ele me disse.” “Bevel!”, disse a mãe do menino. “Meu Deus, que nome!” “Pois é o nome do pastor, Bevel, e pregador melhor do que ele, aqui pela região, não se encontra”, disse Mrs. Connin. “E tem mais”, acrescentou em tom desafiador, “hoje de manhã ele batizou o menino.” A mãe se endireitou, resmungando: “Que atrevimento!” “Além disso”, Mrs. Connin disse, “o pastor Bevel rezou para que a senhora se cure, e ele tem feito muitas curas.” “Me cure!”, disse a mãe, quase num berro. “Mas me cure de quê, pelo amor de Deus?” “Do seu problema”, disse secamente Mrs. Connin. O pai tinha voltado com o dinheiro e, em pé ao lado de Mrs. Connin, com os olhos riscados de vermelho, esperava para lhe pagar. “Se ainda tem mais”, disse ele, “vamos, fale. Quero saber mais coisas sobre o problema dela. A exata natureza desse problema me escapa…”, e exibiu a nota que trazia. Sua voz porém falhou. “Curar rezando nunca sai muito caro”, murmurou. Mrs. Connin, olhando um instante pela sala, mais parecia, de tão pasma, um esqueleto capaz de tudo ver. Logo depois, sem pegar o dinheiro, virou-se e fechou a porta atrás de si. O pai, sorrindo meio sem graça, fez meia-volta e deu de ombros. Os restantes olhavam para Harry. O menino se encaminhava para o quarto, mas ia arrastando os pés. “Chegue aqui, Harry”, disse-lhe a mãe. Automaticamente ele mudou de direção e foi para perto dela, sem conseguir porém abrir os olhos de vez. Com ele já a seu alcance, ela disse: “Me conte o que aconteceu hoje” e começou a livrá-lo do paletó. “Não sei”, ele balbuciou. “Sabe sim”, ela disse, sentindo que o paletó estava mais pesado de um lado. Abriu o bolso do forro e, assim que apareceram, pegou o livro e o lenço usado. “De onde você tirou isso?” “Não sei”, disse ele, tentando apossar-se deles. “São meus. Ela me deu.” A mãe jogou o lenço no chão e levantou o livro bem alto, para ele não o alcançar, e começou a ler um trecho, assumindo seu rosto, logo a seguir, uma exagerada expressão cômica. Os outros a rodearam, olhando o livro por cima de seu ombro. “Meu Deus!”, alguém disse. Um dos homens, por trás de óculos grossos, examinou-o com atenção. “Isso vale dinheiro”, disse. “É coisa de colecionador.” Tomou o livro dos outros e foi sentar-se à parte com ele. “Se vacilarem, o George leva pra casa”, disse sua namorada. “Eu não falei que é valioso?”, George disse. “1832.” Bevel, mudando de direção outra vez, para voltar ao rumo original, tinha ido para o quarto no qual dormia. Fechou a porta assim que entrou e foi bem devagar pelo escuro para a cama e sentou-se para tirar os sapatos e se enfiou nas cobertas. Uma nesga de luz, no momento seguinte, trouxe-lhe a silhueta esguia de sua mãe, que atravessou o quarto na pontinha dos pés, para sentar-se na beirada da cama. “O que foi que o tal pastor bobalhão falou de mim?”, ela perguntou num sussurro. “E que mentiras você andou contando, hein, meu anjinho?” Ele, de olhos fechados, ouviu-lhe a voz como que vinda de longe, de muito longe, como se ele estivesse no fundo e ela na superfície do rio. Ela o sacudiu pelos ombros. Debruçou-se, pôs a boca em seu ouvido e disse: “Harry, me diz o que ele falou.” Forçou-o a ficar sentado, puxando-o como podia, e ele se sentiu como se o puxassem da água. “Me diz”, sussurrou, e seu bafo muito forte cobriu- lhe o rosto. Ele viu, colado a ele no escuro, assim tão perto, aquele pálido oval. “Disse que eu não sou mais o mesmo”, murmurou. “Que agora eu conto.” Largando a camisa pela qual o sustinha, ela o largou no travesseiro. Parada um instante sobre ele, pousou os lábios de leve em sua testa. Depois se ergueu e se foi, dando ligeiras reboladas pela nesga de luz. Já não era tão cedo quando ele acordou, mas o apartamento ainda estava fechado e escuro. Ora mexendo no nariz, ora nos olhos, permaneceu por algum tempo deitado. Sentou-se depois na cama e olhou pela janela. O sol entrava esbatido, com manchas cinza da vidraça. Do outro lado da rua, no Empire Hotel, uma faxineira negra olhava para baixo de uma janela no alto, com o rosto posto nos seus braços dobrados. Ele se levantou, calçou os sapatos, foi ao banheiro e chegou à sala. Comeu os dois biscoitos com pasta de anchova que encontrou na mesinha, bebeu a sobra de refrigerante de uma garrafa e procurou por seu livro, que ali porém não se via. Só o leve zumbir da geladeira quebrava o silêncio do apartamento. Ele foi à cozinha, achou duas fatias de pão com passas, pôs meio vidro de pasta de amendoim entre elas, escalou o banquinho altão da cozinha e sentou-se para comer devagar seu sanduíche, limpando, de quando em quando, o nariz no ombro. Ao acabar, achou também e bebeu um leite achocolatado. Viu uma garrafa de refrigerante, que teria preferido, mas os abridores de garrafa eles tinham posto no alto, fora de seu alcance. Pesquisou, por um tempo, o que havia de sobra na geladeira — verduras murchas das quais ela nem mais se
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