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bookstorelivros We Set The Dark On Fire

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SINOPSE 
AVISOS DE CONTEUDO 
DEDICATORIA 
PROLOGO 
CAPITULO 1 
CAPITULO 2 
CAPITULO 3 
CAPITULO 4 
CAPITULO 5 
CAPITULO 6 
CAPITULO 7 
CAPITULO 8 
CAPITULO 9 
CAPITULO 10 
CAPITULO 11 
CAPITULO 12 
CAPITULO 13 
CAPITULO 14 
CAPITULO 15 
CAPITULO 16 
CAPITULO 17 
CAPITULO 18 
CAPITULO 19 
 
 
 
 
 
CAPITULO 20 
CAPITULO 21 
CAPITULO 22 
CAPITULO 23 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
 
 
 
 
Na Escola Medio para Garotas, jovens distintas são treinadas para um 
dos dois papéis em sua sociedade polarizada. Dependendo de sua 
especialização, uma graduanda um dia irá administrar a casa de um marido 
ou criar seus filhos, mas ambas são prometidas uma vida de conforto e luxo, 
longe dos frequentes levantes políticos da classe mais baixa. 
Daniela Vargas é a melhor estudante da escola, mas seu futuro promissor 
depende de ninguém descobrir seu segredo mais obscuro — que sua linhagem 
é uma mentira. Seus pais sacrificaram tudo para conseguir documentos de 
identificação forjados para Dani poder se erguer acima de sua posição social. 
Agora que seu casamento com o filho de um importante político está se 
aproximando rapidamente, ela deve manter a verdade escondida ou ser 
enviada de volta para as margens da sociedade, onde fome e pobreza reinam 
como supremas. 
Em sua noite de formatura, Dani parece estar em segurança, apesar das 
surpresas que se desenrolam. Mas nada a prepara para todas escolhas difíceis 
que ela deve fazer, especialmente quando é pedida para espionar por um 
grupo de resistência desesperadamente lutando para trazer igualdade para 
Medio. Dani vai se ater ao privilégio que seus pais lutaram para ganhar para 
ela, ou desistir de tudo pelo que se empenhou em busca de um Medio livre — 
e uma chance de um amor proibido? 
 
 
 
 
 
 
● Casamento arranjado; 
● Bullying; 
● Misoginia; 
● Violência; 
● Violência doméstica; 
● Violência psicológica; 
● Crises de ansiedade; 
● Classicismo; 
● Xenofobia; 
● Discurso anti-imigração; 
● Violência policial; 
● Sangue; 
● Morte; 
● Incêndio; 
● Acidente de carro; 
● Homofobia; 
● Masturbação; 
● Protestos (violentos e pacíficos). 
 
 
 
 
 
 
 
Para A, que já move montanhas. 
Isso é para você. Tudo é por você. 
 
 
 
 
 
 
“Até sermos todos livres, nenhum de nós é livre.” 
 
— Emma Lazarus 
 
 
 
 
 
 
 
No início, havia dois deuses-irmãos: o Deus do Sal e o Deus do Sol. 
Na ilha interior, o Deus do Sol aquecia o solo, iluminava a folhagem abundante, 
e bronzeava a pele de suas crianças escolhidas. Na ilha exterior, o Deus do Sal mantinha 
a água cheia de peixe, as ondas calmas, e as praias seguras. Por milhares de anos, Medio 
existiu em harmonia e prosperidade. 
Mas então o Deus do Sol se apaixonou. 
Constancia era a filha do rei de Medio. Ela era forte, corajosa, e sua mente 
brilhante competia com a do próprio deus. Toda manhã ele brilhava mais e mais em sua 
janela, até que um dia ele entrou através dela na forma de um homem, se apoiou em um 
joelho, e pediu para ser dela para sempre. 
Então Constancia se tornou uma deusa assim como uma rainha, e por um tempo, 
os divinos andaram pela ilha na forma de humanos. Deus e governantes igualmente. 
Mas dentro do quarto que o Deus do Sol compartilhava com sua esposa, a Deusa da 
Lua brilhava noite após noite, e logo ela, também, se apaixonou. 
Uma noite de verão, quando o Deus do Sol andava sozinho por seu jardim 
iluminado pela lua, a Deusa da Lua desceu na forma de uma linda mulher. Seu cabelo 
estava sendo atirado pela escuridão, os olhos brilhavam com estrelas, e seu amor ardente 
pelo deus-rei o persuadiu. Constancia era sua igual. Sua parceira e esposa. Mas na 
Deusa da Lua ele encontrou seu oposto, e estava intoxicado por ela. Durante seis dias 
e seis noites ele se sentou imóvel como uma estátua no jardim, tentando escolher entre 
elas enquanto a ilha esperava na escuridão. 
 
 
 
 
 
Enquanto isso, o Deus do Sal sentiu a indecisão de seu irmão, e fervilhou. Pela 
eternidade, as marés de seu mar não obedeceram ninguém além da Deusa da Lua, mas 
toda vez que ele vislumbrava seu rosto ela se viraria lentamente contra ele, encolhendo 
em seus olhos até ela não lhe mostrar nada. 
Quando o Deus do Sol finalmente tomou sua decisão, seu irmão raivoso ascendeu 
do mar como um homem para ouvir sua proclamação. 
Com Constancia em um braço e a Deusa da Lua no outro, o Deus do Sol 
anunciou que daquele momento em diante, os três governariam como um só. 
Constancia, sua igual, e a deusa, sua oposta. O reino, ele prometeu, prosperaria além 
de qualquer coisa que haviam imaginado, e para cada um dos seis dias de sua isolação, 
haveria um dia de celebração para acompanhá-lo. 
O Deus do Sal silenciosamente desapareceu, mas alguns dias depois da revelação 
do Deus do Sol, uma tempestade fustigou a ilha. Casas foram destruídas, e os 
camponeses se reuniram em terror enquanto as praias e planícies eram destruídas. Essa 
era a vingança do Deus do Sal contra um irmão que ele pensava ter roubado algo que 
pertencia a ele. Depois de dias de chuva e ondas punitivas, ele apareceu na casa de seu 
irmão e emitiu seu ultimato: 
Ele se casaria com a Deusa da Lua, ou destruiria a ilha que seu irmão amava, e 
todas as pessoas que residiam lá. 
O Deus do Sol encontrou o desafio em sua forma divina, trocando sua pele 
humana para batalhar com seu irmão. A luta assolou por um dia e uma noite. Fogo e 
ondas. Destruição atrás de destruição. Mas no fim, o Deus do Sol foi vitorioso, e o Deus 
do Sal banido da ilha para sempre. 
Sabendo que ele foi derrotado, o Deus do Sal concordou em ser exilado, mas 
enquanto partia, colocou uma maldição na ilha exterior que ele havia governado. Todo 
lugar onde as ondas alcançavam. Os peixes apareceriam inchados e mortos nas praias. 
O chão estava empanturrado de sal; nada podia crescer. 
 
 
 
 
 
De coração quebrado pela traição do irmão, o Deus do Sol foi para a casa que 
compartilhava com suas esposas, e por semanas chuva caiu como suas lágrimas no solo 
devastado de Medio. Logo, se tornou claro que não poderia mais permanecer no lugar 
de tudo que havia acontecido com ele. Com um coração pesado, o Deus do Sol 
abandonou sua forma humana permanentemente e voltou ao corpo celestial que 
carregava seu nome. 
Mas antes que o fizesse, o deus-rei reuniu seu povo, aquele vivendo dentro da 
ilha. Ele os chamou de escolhidos, e exigiu que como último ato de lealdade, 
construíssem um muro para conter a maldição de seu irmão e proteger os puros. Em 
troca dessa devoção, daria um presente às suas crianças escolhidas. 
Daquele dia em diante, para cada um dos servos fiéis do Deus do Sol, haveria 
duas esposas para servi-lo como as esposas do Deus do Sol serviam a ele. No parto, as 
mulheres da ilha seriam destinadas: Uma tocada em sua testa por Constancia por conta 
de sua natureza sábia e sagazes, seu raciocínio rápido e lealdade. A outra receberia um 
beijo em sua testa pela Deusa da Lua por conta de sua beleza e coragem, seu calor 
cativante e a paixão que se esgueirava por baixo. 
Elas seriam chamadas de Primera, para sua primeira esposa, e Segunda, para sua 
segunda. 
E assim foi… 
— Guia da Escola Medio para Garotas, Introdução1 
 
1 N/T: palavras em espanhol, exceto pelas que aparecem com muita frequência, foram deixadas em 
itálico para não serem confundidas com o português, dado que muitas são semelhantes. 
 
 
 
 
 
 
A chave para a força de uma Primera2 é sua contenção e imunidade ao escândalo. Ela 
não deve apenas se comportar como alguém sem nada a esconder - ela não deve ter nada 
a esconder. 
— Guia da Escola Medio para Garotas, 14ª edição 
 
Daniela Vargas acordou com o som de passos subindo a estrada. 
No momento em que o som de vidro quebrando no pátio alertou o 
campus da presença de intrusos, ela estava vestida e pronta. Para quê? Ela não 
tinha certeza. Depois de uma infância de policiais militaresde pés pesados 
perseguindo-a de perto, ela sabia que não devia confundir o luxo dos seus 
arredores com proteção. 
Ela estava apenas tão segura quanto vigilante. 
A gritaria ficou mais alta. Houveram rumores de motins na fronteira por 
meses, na capital por semanas, mas Dani não pensou que eles iriam chegar tão 
longe quanto o santuário fechado da Escola Medio para Garotas. O campus era 
privado e isolado: pedra branca, vegetação luxuriante. Um lugar onde as 
jovens mais brilhantes e promissoras do país pudessem treinar para se 
tornarem as esposas que os futuros maridos de Medio mereciam. 
Dani estava ali há cinco anos. Tempo suficiente para chegar ao topo de 
sua classe, para garantir a colocação como Primera para o jovem político mais 
promissor da capital. Faltavam apenas dois dias para a formatura e então ela 
 
2 Os homens têm direito a duas esposas, e eles se referem a elas como: Primera e Segunda. 
 
 
 
 
 
começaria a vida pela qual seus pais haviam sacrificado a família, o lar e muito 
mais para dar a ela. 
Supondo que o que estava acontecendo lá fora não a fizesse ser presa ou 
morta primeiro. 
Outra garrafa estilhaçou, desta vez mais perto, o cheiro de gasolina 
entrando pela janela aberta. Dani fechou os olhos e murmurou uma oração 
meio esquecida ao deus no ar, à deusa nas chamas. Mantenham a calma, ela 
implorou a eles. 
Ninguém ao seu redor entenderia. Os deuses de seus pais não estavam 
tão na moda no interior da ilha — apenas o rosto barbudo do Deus do Sol, que 
governava as ambições masculinas e a prosperidade financeira. 
Por um breve e inesperado momento, Dani desejou que sua mãe 
estivesse aqui. Não demorou muito para descartá-lo como ridículo. Ela tinha 
dezessete anos, uma mulher adulta, faltando dois dias para ser esposa. As 
Primeras não precisam de conforto. 
— Acordem! — veio uma voz do pátio. Bêbada de bebida ou de rebelião. 
Perigosa. — Vocês não veem que tudo isso é uma mentira? Vocês não veem que as 
pessoas estão morrendo? Vocês não conseguem ver? 
Pela primeira vez na vida, Dani esperava a chegada da Polícia Militar 
com algo diferente do terror. Ela queria que eles viessem. Para dispersar o 
protesto para que ela pudesse voltar a fazer o que todos eles faziam de melhor 
- fingir que Medio estava prosperando e em paz. Fingindo que não havia nada 
além de solo infértil e oceano além do muro fronteiriço que mantinha sua 
nação-ilha dividida ao meio. 
 
 
 
 
 
Uma vez que eles fossem embora, Dani poderia voltar a fingir também. 
Que ela pertencia. Que ela queria estar aqui tanto quanto seus pais queriam 
que ela estivesse. 
Passos passaram muito perto da janela, e Dani se abaixou sob o peitoril, 
encostada na parede, ouvindo os sons suplicantes de uma casa da qual ela não 
se lembrava de ter fugido. Subindo e descendo o corredor, as outras garotas do 
quinto ano provavelmente ainda estavam dormindo. Com a certeza de que não 
tinham segredos para descobrir. Dani as invejava. 
Os desordeiros não tentavam entrar. Eles gritavam os nomes dos 
parentes que haviam perdido em vozes carregadas de tristeza, entoando, 
implorando para que as pessoas que se escondiam lá dentro acordassem antes 
que fosse tarde demais. 
Dani quase sentiu falta do ronco de sua colega de quarto, Jasmín, que se 
formara no ano anterior. Com um número ímpar de alunas Primera, Dani teve 
a opção de um quarto individual em seu último ano e, com tudo o que tinha 
em jogo, aproveitou a chance. Mas pelo menos com Jasmín aqui, Dani teria 
alguém para quem fingir. Alguma razão para reprimir o medo que se enrolou 
em seu estômago. Ela baniu o pensamento. Jasmín estava a quilômetros de 
distância agora, em uma mansão dentro do condomínio fechado mais 
exclusivo de Medio. 
Ela teve sucesso. E Dani também teria. Ela apenas tinha que aguentar esta 
noite. 
Quando a polícia chegou - toda composta de botas autoritárias, cabeças 
com capacetes e canos de rifle - a escola estava fechada. Os manifestantes se 
espalharam em uma centena de direções, os gritos aumentando de volume 
enquanto os oficiais perseguiam através do emaranhado de árvores. 
 
 
 
 
 
Embora estivesse feliz com a paz, Dani não teve coragem de agradecer à 
deusa da lei pela presença dos oficiais esta noite. A maioria dos manifestantes 
tinha escapado, pelo que parecia, mas alguns estavam sendo capturados e 
contidos, e Dani estremeceu ao pensar para onde estavam indo. 
As celas na única prisão de Medio eram todas úmidas e sem esperança, 
mas havia rumores que as reservadas para rebeldes e simpatizantes também 
não tinham janelas. Escuras como a seiva escorrendo pelas árvores cítricas, dia 
e noite. 
Pessoas que entravam nelas raramente saíam. 
Uma batida na porta interrompeu o silêncio, e Dani encontrou alívio na 
forma como deixou cair suas orações, seu medo de ser descoberta, tudo que 
estava fora de lugar neste quarto. No momento em que atendeu a porta, ela era 
quem eles esperavam que fosse. Nem um fio de cabelo, ou um pensamento, 
fora do lugar. 
— Todo mundo está bem aqui? — perguntou a residente, ladeada de 
ambos os lados pela polícia. Sua voz tremeu, e Dani se perguntou do que ela 
deveria ter medo. 
— Sou só eu — disse Dani. — E eu estou bem. 
A residente - Ami, Dani lembrou - apenas assentiu. Claro que Dani estava 
bem. Afinal, ela era uma Primera e as Primeras não permitiam que suas emoções 
tomassem o controle. Nem mesmo quando tudo o que elas mais amavam 
estivesse em jogo. 
Especialmente não nesse momento. 
— Precisamos que todas as alunas se apresentem no oratório — disse 
Ami. — Estamos aqui para acompanhá-la. — Ela estava com medo, mas certa, 
 
 
 
 
 
Dani pensou. A imagem de uma jovem que nunca teve nada a perder. Que 
nunca tinha achado que algo realmente ruim pudesse acontecer. 
— Está tudo bem? — Dani perguntou com uma voz cuidadosa. 
— Alguém desativou o alarme do portão por dentro — disse ela. — Os 
oficiais precisam falar com todas as alunas e funcionários. 
Dani assentiu, sem confiar em sua voz. Ela não tinha feito nada de errado, 
disse a si mesma. Ao contrário das pessoas sendo presas do lado de fora. 
Ela repetiu em sua cabeça para manter a calma: eu não sou uma criminosa. 
Eu não sou como eles. 
— E, por favor — disse Ami enquanto Dani ajeitava o vestido na altura 
dos ombros, o movimento familiar a acalmando —, traga seus documentos de 
identificação. 
Os olhos de Dani imploraram para se arregalar, seus dedos para tremer, 
seu coração para martelar em suas costelas. Ela recusou todos eles, seu rosto 
esculpido em pedra como ela havia sido treinada para segurá-lo. Sem emoção. 
Sem fraqueza. 
Ela manteve sua postura tão cuidadosamente contida quanto seu rosto, 
se aproximando de sua mesa, tirando uma pasta surrada que cruzou uma 
nação inteira com ela. Seu conteúdo custou a seus pais cada centavo que eles 
ganharam quando ela tinha quatro anos. 
Esses papéis, haviam aguentado por treze anos. Ela só podia rezar para 
os deuses do destino e chance de que eles a ajudassem por mais uma noite. 
No corredor, a polícia assumiu a liderança, sem expressão. O pátio estava 
deserto, mas os oficiais sacaram suas armas enquanto procuravam por 
intrusos, com os ombros tensos. Ami colocou as mãos na frente do rosto, como 
 
 
 
 
 
se os manifestantes fossem maliciosos e tóxicos. Como se eles tivessem algo 
que ela pudesse pegar. 
Dani sabia melhor. Eles estavam apenas quebrados. 
As portas do oratório estavam abertas, a luz se espalhando na escuridão. 
As divindades de Dani não viviam neste cômodo. Não mais. Nem as deusas 
nas estrelas, nem os deuses piscantes nos troncos das árvores. Aqui, o Deus do 
Sol dominava, com o peito nu, musculoso e orgulhoso. Até mesmo suas 
esposas estavam faltando nas pinturas maiores. Ele era principalmente 
ornamental agora, este feroz rei-deus no centro de muitos dos mitos de Medio. 
Os poderosos o usaram como prova de que foram escolhidos, mas as únicascoisas que as pessoas adoravam na ilha interna eram dinheiro e poder. 
Mesmo assim, o oratório parecia esperançoso por dentro - centenas de 
pequenas chamas de velas, erguendo-se contra a noite. Neste canto do mundo, 
se em nenhum outro lugar, a luz estava vencendo. 
Dani foi conduzida para dentro por Ami, que a deixou para se sentar em 
um banco despercebida. Enquanto a polícia e as maestras3 tentavam criar 
ordem entre centenas de meninas exaustas e assustadas, ela agarrou os papéis 
nas mãos, recusando-se a permitir que as palmas das mãos transpirassem. 
As alunas Primera sentaram-se quase imóveis, o autocontrole tanto parte 
delas quanto seus nomes. O quinto ano estaria supervisionando famílias no 
final da semana, contratando funcionários para casas enormes, gerenciando 
calendários sociais. Apoiando os maridos que elas passaram a vida inteira 
treinando para merecer. 
 
3 Maestra significa professora em espanhol. 
 
 
 
 
 
Do outro lado da sala, as Segundas4 estavam completamente fora de si. 
Em vários estados de nudez, elas davam as mãos e encostavam-se umas nas 
outras, expressando seu medo e exaustão sem reservas a quem quisesse ouvir. 
Perto da frente do oratório, uma estava realmente soluçando. 
Dani não conseguia nem se lembrar da última vez que se deixou chorar 
sozinha. 
Ela podia revirar os olhos o quanto quisesse com as Segundas altivas e 
esvoaçantes, mas as coisas eram como deveriam ser. Como sempre foram. 
Opostos se unindo para formar um todo perfeito. E quando Dani finalmente 
se levantasse e fizesse seus votos, ela finalmente faria parte disso, exatamente 
como seus pais queriam. 
Só mais dois dias, ela disse a si mesma. 
Havia cento e noventa e seis meninas na turma de formandas deste ano 
e noventa e oito rapazes de famílias importantes esperando por elas quando 
concluíssem os estudos. 
Dentro dessas paredes, treinavam esposas perfeitas. Primera e Segunda. 
A maneira testada e comprovada de administrar uma casa em pleno 
funcionamento no calibre exigido pela elite do país. Os habitantes da ilha 
interior floresceram dessa maneira por milhares de anos, muito depois de a fé 
ter parado de impulsionar a equação. Ninguém estava prestes a mudar o 
método agora. 
Olhando ao redor do oratório ostentoso, interpretações artísticas da 
história de origem de Medio retratada em suas paredes, Dani tentou se lembrar 
da última vez que ela ouviu os deuses serem mencionados. Eles estavam em 
 
4 Os homens têm direito a duas esposas, e eles se referem a elas como: Primeira e Segunda. 
 
 
 
 
 
toda parte da casa, mas que necessidade os habitantes da ilha interior tinham 
de deuses? A fé, tantas vezes parecia, era para os que tinham algo faltando. 
Suas reflexões quase fizeram seu coração voltar ao normal quando duas 
maestras começaram a sussurrar, afundando em um banco atrás dela. Dani 
ouviu com atenção. Ela foi treinada para ser consciente, engenhosa, para 
encontrar conhecimento onde precisava e para usá-lo. 
— Você acha que foi uma das nossas? — perguntou uma voz nervosa. 
— Espero que não, mas saberemos em breve de qualquer maneira — 
disse a segunda. 
— O que você quer dizer? 
— Eles pediram que trouxessem os documentos de identificação. Ouvi 
dizer que existe um novo método de verificação. Se houver alguma falsificação 
na escola, eles vão descobrir hoje à noite. 
A conversa continuou, mas o sangue pulsando nos ouvidos de Dani 
abafou o que quer que viesse a seguir. O envelope surrado enrugou-se sob seus 
dedos agarrados. Na linha do cabelo, o suor começou a formar gotas. 
Se eles realmente tinham um novo sistema de verificação... 
Dani levantou-se tão furtivamente quanto pôde, avançando lentamente 
em direção à parede. Com aquelas poucas palavras sussurradas, tudo mudou. 
Se ela pudesse apenas se encostar na parede por um momento, talvez ela 
pudesse fazer seu caminho em direção à porta sem ninguém ver. 
Mas e depois? perguntou uma voz prática em sua cabeça. 
Descer a colina para a capital? Misturar-se até que ela pudesse voltar 
para seus pais? Mas voltar só os tornaria alvos também. A Escola Medio para 
Garotas dificilmente poderia deixar de notar o desaparecimento de sua aluna 
estrela dois dias antes da formatura. 
 
 
 
 
 
E mesmo que o fizessem, certamente sentiriam falta da pequena fortuna 
que a família Garcia planejava pagar por ela. A escola ficaria com a maior parte 
do dinheiro, é claro, mas as famílias mais ricas pagavam as somas mais 
generosas, e a porção de Dani era destinada a seus pais. Para comprar para eles 
um pequeno pedaço da vida que ganharam para ela quando fugiram do único 
lar que já conheceram. Quando eles deixaram para trás família e amigos e cada 
grama de certeza. Eles viveram com medo de serem descobertos por anos para 
que Dani pudesse ter a chance de brilhar, mas filhas na prisão não valiam um 
centavo, e as mortas eram ainda piores. 
Por um momento, emoldurada pela porta do oratório, Dani odiou os 
manifestantes. Por que esta noite? Quando ela estava tão perto de conseguir 
tudo pelo que havia trabalhado, de dar a seus pais o que lhes era devido... 
— Daniela Vargas? — Veio uma voz rouca. 
Seu coração afundou. Ela estava sem tempo e nem perto de decidir o que 
fazer. 
Quando ela não se apresentou imediatamente, várias das cabeças de suas 
colegas giraram em sua direção. Quando foi que Daniela Vargas deixou de 
responder a uma ordem? 
Ela deu um único passo em direção ao oficial, que tinha o dobro de sua 
largura e a metade de altura. 
O oratório estava muito claro, todos os sons muito altos. A cela sem 
janelas que assombrava seus pesadelos de infância ganhava vida por trás de 
suas pálpebras sempre que ela piscava. Uma vez que seus papéis fossem 
provados falsos, eles presumiriam que ela havia deixado os manifestantes 
entrarem. Eles pensariam que ela estava aqui para espionar, para ajudar os 
 
 
 
 
 
rebeldes, quando tudo o que ela queria era manter a cabeça baixa. Ser uma boa 
Primera. Deixar seus pais orgulhosos. 
Se ela pudesse, teria sussurrado para a deusa do dever, para pedir-lhe 
para mostrar o caminho, mas não havia tempo, e muitos olhos estavam sobre 
ela agora. 
As lágrimas começaram a ameaçar. Ela não podia deixá-las cair. 
Ela se moveu ligeiramente para frente. 
— Señorita5 ? — O policial disse, uma rispidez em sua voz que não estava 
lá da primeira vez. — Por aqui, por favor. 
Havia barulho no oratório, é claro que havia - outros nomes estavam 
sendo chamados, outras garotas entrevistadas. Segundas estavam reclamando 
da hora tardia, e as olheiras que teriam sob seus olhos pela manhã. Mas Dani 
se sentia como se ela fosse a única se movendo, a única que alguém podia ver. 
Seu batimento cardíaco era audível para todos, não era? Não era? 
O oficial deu um passo à frente, segurando seu cotovelo, conduzindo-a 
em direção às salas de aula nos fundos. Mas ele parou quando os joelhos dela 
travaram. Ela não conseguia se mover. Ela não conseguia respirar. 
— Señorita? — Veio outra voz, uma voz mais gentil. — Você está se 
sentindo bem? 
Dani se voltou para ele, sentindo-se como um peixe apanhado na praia. 
Ele estava de uniforme, como os outros, mas era mais magro, mais jovem, seus 
olhos brilhantes e curiosos. 
— Quem é você? — Rosnou o aspirante a captor de Dani. 
 
5 Traduzido do Espanhol: Senhorita 
 
 
 
 
 
— Médico — disse o homem mais jovem, gesticulando para a faixa em 
sua manga esquerda. Branca com uma cruz vermelha. A respiração de Dani 
ficou mais fácil por um momento, embora ela não pudesse dizer por quê. 
— Eu preciso dela lá trás para interrogatório — disse o oficial, puxando 
o braço indiferente de Dani. — Ainda temos metade da lista para ler, e as 
garotas da frente estão me dando dor de cabeça. 
Em circunstâncias normais, Dani teria sorrido. 
— Eu entendo, senhor — disse o médico. — Mas minhas ordens são para 
cuidar de qualquer aluna que esteja em choque após o motim. Essanão é uma 
multidão comum, você sabe. Seus pais escrevem cartas furiosas quando suas 
preciosas filhas desmaiam. 
Um concurso de olhares se seguiu, e Dani balançou novamente para 
causar efeito. Se a levassem para se recuperar do choque, talvez ela tivesse uma 
segunda chance de fugir. 
— Eu não me sinto tão bem — disse na menor voz que ela conseguia 
fingir. As Primeras usavam todos os recursos de que dispunham. 
Uma mão voou para seu estômago, a outra para sua boca. 
O enorme oficial se afastou enojado. 
— Leve-a — disse ele, empurrando Dani em direção ao médico. — Mas 
é melhor ela voltar a esta sala em dez minutos. 
— Sim, senhor — disse o menino, conseguindo uma saudação 
desajeitada enquanto colocava o peso de Dani no ombro. 
Ele cheirava a canela e terra quente. Um cheiro familiar. Um 
reconfortante. 
— Por aqui — ele disse com um sorriso, e Dani o seguiu, uma pequena 
chama de esperança viva em seu peito. Talvez não fosse tarde demais. 
 
 
 
 
 
— Vamos encontrar um lugar onde você possa relaxar — disse o médico, 
principalmente para si mesmo, tentando várias maçanetas antes de se decidir 
por uma. 
— Isto é um… — Dani começou, mas ele a silenciou com um olhar, 
conduzindo-a a um armário de suprimentos cheio de copos de velas vazias e 
vassouras. Arrepios ondularam para cima e para baixo na espinha de Dani. 
— Bela atuação lá atrás — disse o menino, fechando a porta atrás de si. 
— Até eu quase acreditei em você. — Seu rosto se transformou na escuridão 
do armário. De estóico e militar, ele de repente parecia uma raposa, todos os 
ângulos agudos e travessos. 
— Eu não sei o que você… — Dani começou. 
— Pare — disse ele. — Não temos muito tempo. 
E com isso, ele pegou os papéis de Dani, a chave duramente conquistada 
para toda a sua vida, e os rasgou perfeitamente ao meio. 
 
 
 
 
 
 
 
Análise e lógica são as maiores ferramentas de um Primera, e a irracionalidade é seu 
maior inimigo. Não há espaço para emoção em sua tomada de decisão. 
— Guia da Escola Medio para Garotas, 14ª edição 
 
 
 O médico-que-não-era-médico ficou parado, avaliando a reação de 
Dani. 
Por fora, ela estava congelada, mas por dentro, cidades inteiras estavam 
sendo arrasadas. Explosões sacudiam as paredes de seu estômago. Pessoas 
gritavam em sua garganta. 
— Deixe-me explicar — ele disse, parecendo quase envergonhado. 
— Você... — Dani balbuciou. — Eu... 
— Não é o que você pensa. 
— É melhor não ser — Dani respondeu, finalmente encontrando sua voz. 
O que ela aprendeu todos os dias neste lugar, se não como se comportar em 
qualquer circunstância? Dani empurrou cada pena de pânico profundamente 
em si mesma e convocou toda a autoridade que tinha. — Porque você 
claramente não é militar — ela disse. — Agora, você tem cerca de dez segundos 
antes de eu começar a gritar que há um intruso aqui me segurando contra a 
minha vontade. 
Ela esperava uma reação instantânea e ficou desapontada. O sorriso do 
menino só ficou mais pronunciado. 
 
 
 
 
 
— Oh? — ele perguntou. — E o que você vai fazer quando eles vierem? 
— Ele bateu no queixo fingindo pensar. — Claro, eles não ficarão 
entusiasmados comigo, mas tenho certeza de que vão pelo menos investigar 
minhas alegações antes de me mandar embora. 
Dani sentiu sua expressão endurecer. Ela deixou. Ela não gritou. 
— Sabe, as alegações sobre a aluna estrela Primera com documentos 
falsos? — Ele brandiu as coisas gastas para ela, o rasgo no centro piorando as 
coisas. — A que está prestes a ser colocada com uma família governamental 
seriamente condecorada? — Ele balançou a cabeça tristemente. — Eu não 
imagino que eles ficarão muito felizes com você. 
— Quem é você? — Dani perguntou com os dentes cerrados. — E por 
que você está tentando arruinar minha vida? 
— Relaxe — o menino disse, revirando os olhos. — Essas coisas são 
inúteis no momento em que você entrou pelas portas do oratório. O novo 
sistema de verificação teria provado que eles eram falsos em cerca de um 
segundo. — Ele fez uma pausa, como se estivesse esperando que ela 
perguntasse. — É uma caneta — ele continuou quando ela não o fez. — No 
papel timbrado especial com que o governo emite documentos de identidade, 
fica azul. Nas coisas de camponês, vermelho. Muito genial, de verdade. Tão 
simples. Ela reage a uma fibra usada no processo de impressão que… 
— Quem é você? — Dani rosnou novamente, interrompendo. Ela não se 
importava com as particularidades da fibra de papel quando estava a um passo 
de algemas e de um transporte para a prisão. 
— Certo, é claro. — O menino colocou os papéis rasgados dentro do 
casaco, estendendo a mão. 
 
 
 
 
 
Dani olhou para ela como se fosse uma cobra venenosa até que ele a 
retirou. 
— Você pode me chamar de Sota, — ele disse. — Eu sou um membro do 
La Voz e estou aqui para te entregar isso. — Do mesmo bolso onde ele enfiou 
os documentos falsificados de Dani veio um conjunto de novos, o papel 
brilhando branco-azulado mesmo no armário escuro. Ela teve um vislumbre 
de seu nome, impresso perfeitamente abaixo do selo oficial da Medio. 
— Esqueça — ela disse, cruzando os braços. As palmas das mãos suavam 
nas mangas do vestido. Ela podia sentir sua pulsação acelerada ao longo de 
cada centímetro de sua pele. — Não vou pegar nada de você. 
La Voz era um nome que você sussurrava. Inimigo público número um 
do lado direito do muro da fronteira. Eles eram responsáveis pelos distúrbios 
de que Dani ouvia falar desde que conseguia se lembrar. Os incêndios. Os 
oficiais mortos. A violência. Ser pega conversando com um membro conhecido 
era uma sentença de prisão, mesmo que tudo o que você fizesse fosse 
perguntar sobre o tempo. 
A maioria das pessoas sabia temer o nome e de todos os que o 
reivindicavam, mas mesmo o resto sabia que não devia aceitar favores deles. 
— Achei que você poderia dizer isso — Sota disse após uma longa pausa. 
— Mas eu pergunto de novo: o que acontece quando você sair desse armário? 
Claro, você pode se perder na confusão esta noite, mas por acaso sei que há um 
posto de controle sendo montado na entrada do complexo do governo neste 
momento. — Ele parou de falar, avaliando as nuvens de tempestade que 
rolavam na expressão de Dani. — Se não me engano, é onde seu futuro marido 
mora? 
Dani deu um olhar cortante para ele, mas ela não disse nada. 
 
 
 
 
 
— E — Sota continuou, como se estivessem conversando sobre cestas de 
frutas no mercado e não discutindo sua morte inevitável —, se você, digamos, 
deixar de apresentar seus documentos de identificação? Isso certamente não 
seria bom, não é? Eles usam uma palavra especial para pessoas que tentam 
enganar o governo, Dani; começa com L e rima com... 
— Eu sei o que é — Dani cuspiu. — Onde você quer chegar? 
— Só que a escolha entre confiar em mim e seguir sozinha não é 
exatamente uma escolha. Uma delas envolve pegar esses papéis e seguir seu 
caminho alegre. A outra envolve uma cela de prisão muito pequena e o 
conhecimento de que todos que você conhece e ama estão em perigo de se 
juntar a você lá. 
Treinada por suas instrutoras Primeras para analisar e ver a lógica 
mesmo nas situações mais impossíveis, Dani recorreu a todas habilidades com 
as quais ela nasceu, bem como àquelas que aprendeu neste campus. Tinha que 
haver outra saída. Uma que não envolvesse morrer exposta na selva ao fugir 
da polícia ou aceitar um favor do grupo de assassinos menos confiável de 
Medio. 
Os segundos estavam passando. 
Não havia outra opção. 
— E o que você vai ganhar com isso? — ela perguntou. 
— Ora, Daniela, estou ofendido. 
— Vamos — ela disse, impaciente. — Eu sei quem é La Voz. Você é um 
criminoso e não está aqui para ser meu salvador, então o que você quer em 
troca disso? 
Sota estendeu os papéis e, para desgosto de Dani, ela os pegou. 
 
 
 
 
 
— Ao contrário de suas amigas lá fora, que estão tão ansiosas para se 
juntar às fileiras das boas bonecasde classe alta — ele disse, apontando para a 
porta fechada do armário —, nosso negócio é ajudar as pessoas. Libertando-as. 
Pergunte a si mesma quem está prendendo essas mesmas pessoas. Torturando-
as. Mandando seus filhos morrerem de fome do outro lado do muro. É tão fácil 
se juntar, tão fácil esquecer o mal que está sendo feito todos os dias. Mesmo 
quando você viu em primeira mão. 
Dani sentiu o início de um rubor subindo por seu peito e ficou feliz com 
a gola alta de seu vestido de Primera. Não era sua culpa que as pessoas 
estivessem famintas e morrendo. Ela não precisava se sentir culpada só porque 
saiu. Ela estava prestes a dizer isso quando Sota continuou. 
— Pense nos crimes que seu precioso governo tolera, não apenas nos que 
ele pune. Então você pode falar comigo sobre quem são os verdadeiros 
criminosos. Se não somos todos livres, nenhum de nós é livre. Lembre-se disso. 
Havia fogo em seus olhos quando ele falou, uma canção em sua garganta, 
quase tornando suas palavras hipnóticas. Havia uma pequena parte de Dani 
que queria acreditar em sua lógica. Mas as Primeras pensavam com suas 
cabeças, não com seus corações. Era isso que esses “revolucionários” faziam. 
Eles tornavam tudo emocional. Se apoiavam em palavras bonitas até que a 
violência soasse como liberdade. Até que o extremo parecia justificado. 
— Pare — ela finalmente disse, embora sua voz estivesse mais áspera do 
que ela gostaria. — Eu só preciso sair daqui. Estou fazendo o que tenho que 
fazer para sobreviver. Não estou me inscrevendo para colocar fogo nas coisas. 
— Como quiser. — Sota sorriu, já se virando para a porta. — Mas você já 
está vendo as coisas de forma diferente. Seu rosto pode esconder seus 
sentimentos, mas você não pode esconder quem você é. Não para sempre. 
 
 
 
 
 
Dani abriu a boca para protestar, mas ele não lhe deu chance. 
— Eu marquei você como entrevistada no manifesto do aluno — ele 
disse. — Você está segura esta noite. Apresente-os ao oficial no posto de 
controle de amanhã e você não terá nenhum problema. 
A porta se abriu e os sons do mundo de Dani voltaram enquanto ele 
desaparecia na multidão. 
Ninguém pareceu notá-la saindo do armário de suprimentos, e Dani 
colocou a persona que a tinha feito durar por cinco anos neste lugar ao seu 
redor como um xale. Ela estava calma, composta, em controle. Sua contenção 
era sua força. 
As alunas não tinham permissão para sair até que todas tivessem sido 
questionadas, e Dani sentou-se sozinha no final de um banco na parte de trás 
até que fossem dispensadas, assim que a lua começou sua lenta descida no céu. 
De volta ao quarto, ela deveria ter caído na cama e dormido como uma 
morta, mas em vez disso ficou acordada, olhando para seus novos documentos 
sob a luz fraca de uma vela. 
Eles eram lindos. Um trabalho como este custaria milhares de notas a 
alguém em lugares viciosos frequentados por habitantes da ilha exterior 
desesperados com tudo a perder. E isso se eles pudessem encontrar alguém 
bom o suficiente para fazê-los sem uma lista de espera com duração de um 
ano. 
Os pais de Dani economizaram cada centavo até ela ter quatro anos para 
obter a identificação dos três. Os motins estavam piorando, a política 
contemporânea reforçando a mitologia de Medio até que formou um ódio 
impenetrável entre os dois lados da ilha. 
 
 
 
 
 
Ela mal se lembrava da travessia. Sua mama a envolvendo em um longo 
pano tecido em suas costas, embora ela fosse muito velha para ser carregada. 
Seu pai os silenciando quando os feixes das luzes dos guardas passavam muito 
perto. E então a escalada. A escuridão. A maneira como os pés de sua mama 
escorregaram contra a pedra e sua respiração assobiou por entre os dentes. 
Isso foi tudo. 
Eles haviam deixado tudo para trás. Uma família, uma história e um lar 
de que Dani mal se lembrava. Ela viu os fantasmas daquela vida nos rostos de 
seus pais às vezes, passando como sombras, e se sentiu culpada porque eles 
desistiram de tudo por ela. 
Dani fungou enquanto traçava as linhas claras de seu nome no papel. A 
cidade em que se estabeleceu quando ela era criança foi preenchida como seu 
local de nascimento. Polvo. Ela amava aquela pequena cidade. Foi a primeira 
casa que ela realmente se lembrava. Ela amava as crianças, o barulho e sua 
escola decadente. Amava as viagens com a mãe para a pequena cidade vizinha, 
onde os ambulantes vendiam milho torrado em palitos e frutas congeladas com 
pimenta em pó em copos de papel. 
Mas quando seus pais tiveram a ideia de inscrevê-la na seleção de 
Primera no ano em que ela fizesse 12 anos, o que Dani poderia realmente dizer? 
Eles queriam o melhor para ela, eles mesmo disseram. Queriam que ela subisse 
tão alto que o lugar onde ela nasceu nunca pudesse ser um perigo para ela 
novamente. Diante de tudo isso, o que importava que Dani tivesse amado 
Polvo? Amava sua melhor amiga, Marisol, e os meninos do outro lado da rua, 
que sempre traziam um ou dois cachorrinhos desgrenhados. Adorava a ideia 
de crescer para tornar melhor o lugar que chamavam de lar, em vez de fugir 
para sempre e deixá-lo acumular poeira. 
 
 
 
 
 
Em Polvo, ninguém ficava confuso sobre a quem pertencia sua lealdade. 
Os pais trabalhavam longas horas em condições desesperadoras; eles 
garantiam que você tivesse o suficiente para comer, mesmo quando isso 
significava ficar sem; eles raspavam e vasculhavam todos os dias para dar a 
você algo mais do que lhes era permitido, e o dever era tudo o que pediam em 
troca. 
E quais eram os luxos de Dani comparados a isso? Uma barriga cheia de 
comida quando os outros ficavam com fome ou coisa pior. Abrigo, ambos seus 
pais vivos e a chance de ser considerada para a maior honra que uma jovem 
mulher em Medio poderia sonhar. 
O que ela poderia dar a eles além do seu melhor? 
Não importava que Dani tivesse sonhado com uma casinha, algumas 
galinhas e a chance de aprender as receitas de sua mãe. De cuidar de seus pais 
enquanto eles ficavam mais velhos. Não importava que ela quisesse Polvo e a 
vida para a qual nasceu. Porque em Medio, segurança exigia poder, e para 
obter poder você tinha que se aproximar do sol. 
Ela tinha se saído bem, pensou, olhando ao redor do quarto ricamente 
decorado, suas pedras brancas, os ladrilhos pintados à mão que revestiam as 
paredes. Seu armário cheio de vestidos modestos, cada um valendo mais do 
que seu pai ganhava em uma semana em casa. A Escola Medio para Garotas 
havia fornecido tudo, confiante de que Dani mais do que compensaria quando 
sua nova família pagasse a taxa de casamento. 
Talvez as meninas com quem ela ia para escola não soubessem o que 
significava sentir aquela lealdade feroz por suas famílias. Esse dever. Mas ela 
sabia, e virar as costas significaria deixar de lado o último pedacinho de Polvo 
que ela tinha permissão para manter. 
 
 
 
 
 
Portanto, esta noite, Dani se permitiu se consolar em seus novos 
documentos, apesar da fonte. Se consolar sabendo que ela estava muito mais 
perto do que seus pais queriam para ela. Talvez Sota estivesse dizendo a 
verdade. Talvez La Voz a tivesse ajudado porque pensaram que ela era um 
deles. Talvez tenha sido uma intervenção da deusa da sorte em seu pior 
momento. 
Fosse o que fosse, Dani não pretendia perder essa chance. 
 
 
 
 
 
 
 
A cerimônia de graduação é o culminar do treinamento de uma Primera; um primeiro 
vislumbre do futuro que ela conquistou e das alturas que alcançará. 
— Guia da Escola Medio para Garotas, 14ª edição 
 
Na manhã da graduação, o sol levantou-se cedo apenas para brilhar nas 
janelas das mulheres mais celebradas de Medio em seu dia especial. 
Dani se levantou mais cedo, sentada em sua escrivaninha, lendo uma 
carta cujos vincos haviam se suavizado com o tempo e o manuseio. A data era 
cinco anos antes - a caligrafia, de sua mãe. 
Querida Daniela, começava. Escrevo esta carta com toda a esperança que uma 
mãe podesentir, no primeiro dia da vida que você merece. Vai parecer estranho, depois 
da maneira como vivemos, mas eu conheço você, m’ija6. Você tem um grande coração, 
uma mente forte e encontrará uma maneira de construir uma vida que ame. Não 
importa o quão diferente seja daquela que você deixou. 
A mãe dela não pôde dizer tudo, é claro. Não por escrito. Para os alunos 
da Escola Medio para Garotas, Dani era apenas uma garota de algum lugar 
abaixo da capital. Mesmo aqueles que sabiam que ela era de classe baixa nunca 
poderiam saber que a cidade natal de Dani - vergonhosa o suficiente por sua 
proximidade com o muro de fronteira - não era de fato o lugar onde ela nasceu. 
Seu vestido para a cerimônia foi passado e estendido sobre a cama, a 
porta aberta ao som das meninas se preparando para a chegada de suas 
 
6 Traduzido do Espanhol: Minha filha 
 
 
 
 
 
famílias. Normalmente, Dani as ignorava; ela não estava aqui para fazer 
amigas. Ainda assim, neste último dia de sua carreira escolar, ela as observou 
com um pouco mais de atenção. Ela estava com inveja, percebeu. Da animação. 
Do brilho em suas bochechas. 
Dani sentia satisfação, sim. A sensação sólida e calorosa de um dever 
bem cumprido. Mas não havia alegria neste dia para ela. Nenhuma família dela 
estaria aqui. Sem celebrações. 
Em uma de suas cartas raras para casa, Dani tinha enviado dois convites 
de formatura para seus próprios pais, mas tinha sido uma formalidade. Algo 
para a mãe mostrar no poço. Dani tinha, é claro, sido examinada pela família 
Garcia. Eles sabiam o que seus papéis diziam - que ela nascera em Polvo e 
estava muito acima do que esperavam dela aqui. Nem todo mundo nesse nível 
tinha um legado de classe alta, mas certamente não te levava a lugar nenhum 
exibir sua pobreza indecorosa. Especialmente na frente das pessoas que 
acabaram de pagar uma pequena fortuna para casar você com o filho deles. 
Superar obstáculos era bom. Mostrar a maldição do sal em seu sangue 
não era. 
Quando a carta de retorno chegou de seus pais, ela dizia isso, desejando-
lhe sorte, dizendo-lhe como eles estavam orgulhosos. Dani não os via 
pessoalmente desde que havia entrado no ônibus para a capital aos doze anos. 
Eles não falaram sobre isso, mas ela provavelmente os veria apenas uma ou 
duas vezes mais na vida. 
A ilha era uma montanha, e quanto mais alto você subia, mais sucesso 
você tinha. 
Para a Primera de um político, uma viagem ao nível do mar, ao lugar 
onde o muro separava Medio da ilha externa sem lei, era nada menos que 
 
 
 
 
 
impróprio. À medida que as tensões aumentavam na fronteira e a frequência 
dos tumultos aumentou, um sussurro de “rebelde” ou “simpatizante” - 
embora falso - se espalhou como o cheiro de fumaça. Gastar muito tempo 
abaixo do capital era arriscar que sua lealdade fosse questionada. 
As tensões haviam ultrapassado muito a mitologia. Muito além de 
deuses-irmãos e maldições tão antigas quanto a própria ilha. Era político agora. 
Direitos e motins e os prósperos contra os destituídos. De um lado, havia o 
poder de uma nação. Por outro lado, desespero. Cada confronto era violento, 
cada vitória sangrenta e vazia com perda. 
Não havia como voltar atrás. 
Mas ainda assim, seu coração apertou desconfortavelmente em seu peito 
com a ideia de sua mãe. Ela pareceria mais velha agora, Dani percebeu, e por 
um momento ela estava de volta a Polvo, minúsculos dedos marrons cavando 
por doces no bolso do avental, os pés descalços na terra. Por um momento, 
uma palavra amável ou um beijo foi o suficiente para tornar tudo melhor. 
A promessa de família e a mão orientadora do passado eram partes tão 
inatas da vida em Polvo que às vezes Dani sentia como se todo o treinamento 
do Primera no mundo não fosse suficiente para bani-los totalmente de seus 
ossos. 
Isso é inapropriado, disse a voz irritante de uma maestra no fundo da mente 
de Dani. Primeras não se apegam à nostalgia; elas estão acima dessa fraqueza. Uma 
verdadeira Primera mantém os olhos no futuro. 
Quando o salão se esvaziou, Dani seguiu a multidão. Ela pode não ter 
pais para mostrar, mas ela tinha algumas despedidas para fazer antes da 
partida de amanhã. Seu pai a advertiu para não se aproximar muito de 
 
 
 
 
 
nenhuma das garotas, lembrando-a de que a proximidade leva à confiança, e a 
confiança pode ser quebrada. 
Mas a melhor árvore de escalada do campus não poderia contar seus 
segredos, nem a vista da varanda da biblioteca do último andar. As tortilhas 
leves como o ar na cafeteria nem sonhariam em traí-la. E aquele mosaico de 
ladrilhos do pátio sul, por onde todos passavam sem olhar? Sempre manteve 
a boca fechada. 
Dani visitou todos eles, os lugares onde ela encontrou refúgio de sua 
saudade precoce, os lugares que ela negligenciou enquanto subia na hierarquia 
e começava a usar seus vestidos de Primera como mais do que uma fantasia. 
Esta escola tinha sido sua casa, muito mais do que o lugar distante de onde ela 
tinha vindo. Ela não sabia se sentiria falta, mas pelo menos merecia um adeus. 
Sentindo-se em paz e satisfeita depois de comer sua última refeição 
escolar - carne de porco nadando em molho de tomate com alho, arroz 
vermelho perfeitamente temperado que manchou seus dedos de vermelho 
oleoso e uma pequena torre daquelas incríveis tortilhas - Dani teceu seu 
caminho entre as famílias visitantes e de volta ao dormitório. Era hora de se 
preparar para a noite mais importante de sua vida. 
Mas antes que ela pudesse atravessar o pátio leste, um nó sussurrante de 
Segundas balançou em seu caminho. Dani orou silenciosamente ao deus da 
pressa para que ela escapasse de sua atenção. Infelizmente, ele não estava do 
lado dela hoje. 
— Eu acho que você tem um pouco de... isso é óleo, na sua bochecha? Não 
sei como comem de onde você vem, mas nesta altitude tentamos usar um 
pouco de decoro. 
 
 
 
 
 
A voz fria e vibrante só podia pertencer a uma pessoa, e Dani se preparou 
antes de parar para encará-la. 
Carmen Santos elevou-se sobre as meninas sorrindo afetadamente ao 
lado dela, vestida com uma seda turquesa que realçava sua pele marrom-
dourada. Seus cachos eram tão negros que brilhavam ao sol do fim da tarde 
como o metal escuro de uma pistola carregada. 
Em comparação, Dani se sentia fraca como um junco ao vento, seu 
vestido preto pendurado em quadris estreitos e curvas insignificantes. Suas 
bochechas de criança. As ondas curtas de seu cabelo rebelde. A pele de um 
oliva frio onde Carmen brilhava como o sol poente. 
Primeras não eram vaidosas, Dani se lembrou. Seu valor vinha de poços 
mais profundos do que da beleza física. 
— Vou levar isso em consideração — disse ela, a raiva sacudindo as 
barras de sua contenção, embora seu rosto não mostrasse nada. — Aproveite 
sua tarde. 
— Acho que eles também não te ensinam a se defender — disse Carmen. 
— Só serve para demonstrar, você pode tirar a garota do sal, mas não pode 
tirar o sal da garota. 
A raiva estava mais forte agora, e Dani parou, permanecendo 
perfeitamente imóvel enquanto ela pesava suas opções e as outras meninas 
sorriam e riam entre si. Talvez fosse a finalidade de tudo o que a fez parar. Ela 
tinha tolerado as cutucadas nada sutis de Carmen desde que se conheceram no 
ônibus vinda da capital, cinco longos anos atrás. Foi a primeira e única vez que 
Dani - sozinha e assustada, a quilômetros de casa - confidenciou a alguém 
sobre sua educação modesta. 
 
 
 
 
 
Carmen, de 12 anos, não era menos bonita, mas seus olhos arregalados 
eram amigáveis na época, e Dani confiava nela contra o conselho de seu pai. 
Como uma garota com um rosto bonito e um sorriso fácil poderia traí-la? 
Ela descobriu muito rápido, quando Carmen se estabeleceu com as 
garotas de sua própria classe, e a frágil amizade que elas construíram ao longo 
dos quilômetros tornou-se um dano colateral. 
— Ei, Carmen — Dani disse finalmente, deixando apenas uma dica deseus verdadeiros sentimentos passar. Só desta vez. Carmen se virou com a mão 
no quadril e esperou. — Você pode estar certa sobre o sal, mas acho que crescer 
em seda e prata não garante classe. Obrigada pela lição. 
Quando os olhos de Carmen brilharam, Dani sabia que ela havia 
acertado seu alvo. 
— Escute aqui, sua pirralha. Você não reconheceria a classe se ela 
atingisse aquela sua aldeia e destruísse o casebre de sua família. 
— Talvez não — Dani disse. — Mas eu conheço o desespero melhor do 
que a maioria, e você fede a ele. 
Carmen gesticulou uma vez, bruscamente, e as outras joias fugiram da 
coroa, deixando as duas sozinhas. 
— Eu trabalharia nesse seu temperamento, Primera — ela disse, sua voz 
mais baixa agora. Quase perigosa. — Não que você saiba, mas os homens bem-
educados gostam que suas mulheres tenham um pouco de charme. 
Dani respirou fundo, rezando ao deus da voz para que pudesse manter 
a dela firme. 
— Essa é uma das vantagens de ter valor real — disse ela. — Você não 
precisa depender de coisas frívolas como charme. 
 
 
 
 
 
Carmen riu, e Dani carregou o som zombeteiro de volta para seu quarto, 
onde usou movimentos lentos e controlados para abrir e fechar as gavetas, 
colocando seu vestido de formatura emitido pela Primera com uma precisão 
exagerada que mascarou sua frustração. 
Havia algo sobre Carmen que irritava Dani. Parcialmente, era raiva de 
seu eu de 12 anos por agir por instinto em vez de lógica, mas não era só isso. 
Era assim que as pessoas tratavam Carmen também. Idolatravam ela. Agiam 
como se ela fosse tão especial porque ela era rica e bonita e tudo acontecia 
facilmente. 
Tinha sido um ajuste difícil, vindo de uma casa com chão de terra, mas 
Dani tinha conseguido. Ela se acostumou com a forma como as outras garotas 
agiam, como se esperassem o mundo em uma bandeja de prata e não 
planejassem se decepcionar. 
Mas em Carmen, esse direito foi ampliado de alguma forma. Ela era o 
rosto de tudo que Dani nunca teria, nunca seria, e ela a odiava por isso. Pela 
maneira como seu mundo se desdobrava como uma flor, enquanto Dani 
tentava abrir caminho. 
— A cerimônia de formatura começará em uma hora! — veio a voz da 
residente do corredor, chamando-as à ordem pela última vez. — Por favor, 
terminem seus preparativos e vão para o oratório. 
Dani fez o possível para enfiar os pensamentos de Carmen na pequena 
caixa onde mantinha as coisas proibidas. Medos. Irritações. Saudades. 
Arrependimentos. 
Foi uma das primeiras lições do treinamento de uma Primera - aprender 
a bloquear os sentimentos que poderiam interferir em sua contenção. No 
 
 
 
 
 
momento em que Dani saiu das portas do dormitório, ela estava suave e 
brilhante como madeira laqueada. 
Era hora de ser a garota perfeita em que esta instituição havia investido 
tanto. Hora de ganhar as notas que manteriam seus pais alimentados e vestidos 
por anos, remendaria seu telhado e compraria para seu pai novas botas de 
trabalho com sola sólida. 
Era hora, ela pensou com tristeza, de colocar aquele outro futuro para 
descansar. Aquele que ela viu florescer em um olhar entre seus pais. O que ela 
poderia ter se tivesse ficado em casa, onde se juntar a alguém era mais do que 
apenas um acordo de negócios. A classe alta sempre desprezou a classe inferior 
pela maneira como se casavam. Com pena deles pela falta da bênção do sol, 
até que a pena se transformou em preconceito. Um parceiro, para o bem ou 
para o mal - eles achavam que não era civilizado. Uma relíquia de um passado 
amaldiçoado. Mas durante a maior parte de sua vida, foi tudo que Dani 
conheceu. 
O treinamento de Primera reduziu a memória a um sussurro silencioso 
em seus ossos, mas esta noite seria silenciado para sempre. 
No caminho para o oratório, ela abriu a caixa por apenas um momento e 
deixou que suas memórias de Polvo inundassem. A parede iminente que 
escondia o lugar onde ela realmente havia nascido. O solo duro de sal onde 
nada cresceria. O riso das crianças e os pés dançantes dos adultos cansados de 
mais um dia de sobrevivência para sentir alegria. Os fogos em barris e o vinho 
doce que ela bebia com seus amigos sob um milhão de estrelas. Sua casa. 
Polvo estava perdido para ela. E era hora de crescer. 
O oratório resplandecia mais uma vez contra a noite. Por mais que 
gostasse da ideia de se comprometer com um estranho esta noite, Dani pensou, 
 
 
 
 
 
pelo menos ela podia se sentir bem sobre suas razões para fazê-lo. Nunca seria 
felicidade, mas talvez, como sua mãe disse, pudesse ser o suficiente. 
— Alunas Primeras à esquerda, por favor! Segundas à direita! — As 
residentes perambulavam pelos corredores, silenciando, pastoreando, 
restaurando a ordem. 
Dani encontrou seu lugar sozinha, instalando-se, oferecendo acenos 
indiferentes para as meninas que a rodeavam. As colegas que ela nunca se 
permitiu conhecer ou fazer amizade. Como ela poderia? Quando a única vez 
que ela tentou... Bem, a cena com Carmen hoje tinha sido prova suficiente desse 
resultado. 
Do outro lado do corredor, as Segundas eram uma profusão de cores e 
sons, limpando manchas nos lábios e afofando os cabelos umas das outras, 
apertando as pontas das tranças, trocando pulseiras de tecido por amizade e 
sorte. A diferença entre o corredor era gritante. Mas era assim que deveria ser. 
A emoção turvava seu julgamento e a lógica atrapalhava sua capacidade de 
sentir. O Deus do Sol tinha sido sábio, e milhares de anos de prósperos medos 
eram a prova do valor de sua bênção. 
Mesmo Dani, com seus documentos falsos e memórias empoeiradas, os 
pequenos deuses que se voltaram contra ela em momentos-chave para mostrar 
a língua, não podiam discutir os resultados. 
Ela fechou os olhos contra o alvoroço de energia e barulho e, baixinho, 
recitou a promessa que estaria oferecendo a Mateo Garcia. Era tradição, a 
primeira impressão que um marido tinha de sua nova Primera, e ela queria que 
fosse perfeito. 
Em torno dela, uma centena de outras Primeras se preparavam de suas 
próprias maneiras. Cem casamentos aconteceriam aqui esta noite. Cem 
 
 
 
 
 
promessas esperançosas dos escolhidos de Constância, escondendo o tremor 
de suas mãos. Cem promessas das filhas da Deusa da Lua, que nunca 
pareceram mais bonitas do que esta noite sob a luz de velas. Cem panos de 
família, tecidos pelas mães, enrolados nos ombros dos três, enquanto eles 
juravam aceitar a bênção. Juravam ser parceiros. Juravam ser um. 
Deveria ter sido como voar, e para algumas das garotas provavelmente 
era. Mas a parte da casa que Dani pensou ter exalado fora do oratório estava 
de volta com força total. Ela não queria estar aqui, ela percebeu com uma 
sensação de horror embotada. Ela queria ir para casa. 
Você encontrará uma maneira de construir uma vida que ama, disse a voz de 
sua mãe em seu coração. Não importa o quão diferente seja daquela que você deixou. 
Como deveriam fazer todos aqueles anos atrás, quando Dani embarcou 
no ônibus para a capital, as palavras de sua mãe a mantiveram no lugar agora, 
seu rosto impassível enquanto seu coração ameaçava quebrar em pedaços. 
— Senhoras e senhores de Medio — disse a Diretora Huerta. — Sejam 
bem vindos. 
Sua voz sempre teve um efeito subjugador na multidão. Até mesmo as 
penas das Segundas se acomodaram quando todos os olhos se voltaram para 
a frente. Dani manteve as palavras de sua mãe por perto, repetindo-as como 
um mantra quando sua inquietação ameaçou tirar o melhor dela. 
Você encontrará uma maneira de construir uma vida que ama. 
— Esta cerimônia é o momento culminante do nosso ano letivo. As jovens 
à sua frente trabalharam incansavelmente para chegar a este momento, e não 
poderíamos estar mais orgulhosos de apresentá-las a vocês esta noite. 
 
 
 
 
 
Enquanto os aplausos enchiam o salão, um entorpecimento zumbido 
começou na base da coluna de Dani e se espalhou. Apesar de seu mantra 
calmante, o salão assumiuuma qualidade estranha e cintilante. 
Era este o corpo dela, sentado com as costas retas e seguro neste banco? 
— Mas não preciso dizer como essas garotas são excelentes — continuou 
a Diretora Huerta. — Vocês viram por si mesmos durante suas entrevistas com 
elas. Quando vocês pesaram suas realizações, suas virtudes e as escolher 
ampara se tornarem membros de sua família. 
Mais aplausos. A trava no canto proibido da mente de Dani sacudiu 
perigosamente. Tudo dentro dela gritava para ser solto. Noites com os pais, a 
comida simples, mas saudável, entre eles, o riso pintando a noite. Dias com 
suas amigas, pessoas que a conheciam desde a infância, pessoas que protegiam 
seu segredo e até mesmo o compartilhavam. Pessoas em quem ela podia 
confiar. 
E algum dia, talvez, um amor que surgisse por conta própria. Um 
casamento que não era forçado. Bênção ou não, ela estava errada em querer 
isso? Seu treinamento de Primera rebelou-se contra os pensamentos, mas Dani 
descobriu pela primeira vez que detê-los não era o suficiente. 
— Temos muitos compromissos a fazer aqui esta noite — disse a diretora, 
trazendo Dani de volta ao presente. — Então, vamos direto ao assunto. — Ela 
gesticulou além da porta dos fundos para uma sala de aula, onde cem jovens 
maridos esperavam pelas esposas que seus pais os compraram. — Sem mais 
delongas... — Sua voz transbordou de satisfação quando ela removeu a lista de 
um compartimento abaixo do pódio. Dani quase podia ver as moedas de ouro 
transbordando em sua mente. 
 
 
 
 
 
Algumas meninas valiam mais do que outras, algumas famílias estavam 
dispostas a pagar mais pelo melhor. Mas o verdadeiro vencedor aqui era a 
Escola Medio para Garotas, que enviou um dote para a família de cada menina 
e ficou com uma parte para si. 
Afinal, toda essa pedra branca e azulejos intrincados não eram baratos. 
— Juan Felipe Tejada Alvarez, por favor, venha para a frente? 
A porta atrás da diretora se abriu e um menino avançou com muita 
confiança. A atmosfera entre os graduados ficou elétrica assim que os nervos 
de Dani ameaçaram corroer seu controle de ferro. Era isso. 
Juan ficou à esquerda do pódio, examinando a multidão ansiosamente. 
Tradicionalmente, as colocações eram mantidas em segredo, para trazer um 
pouco de drama aos eventos da noite, mas Dani sabia que havia poucas garotas 
nessas fileiras - do lado da Primera, pelo menos - sem uma boa ideia de onde 
elas iriam parar. 
Elas não eram as jovens mais engenhosas e inteligentes do país à toa. 
— A família Alvarez escolheu... — disse a diretora, fazendo uma pausa 
para o efeito. — Primera Maria Luna Vega Sanchez! 
Dani bateu palmas, aliviada por sentir a sensação voltando a seus 
membros. Maria se levantou, sorrindo e acenando para os pais atrás dela antes 
de caminhar pelo corredor em direção ao seu novo marido, que de repente 
ficou tímido. 
— ...E a Segunda Sofia Rios Gomez! 
Previsivelmente, várias Segundas chorosas agarraram a bainha do 
vestido de Sofia quando ela passou, gritando parabéns para ela em vozes 
agudas que causaram dor de cabeça em Dani. 
Uma delas provavelmente era Carmen. 
 
 
 
 
 
Não que Dani estivesse pensando nela. 
Maria e seu novo marido estavam se olhando, ligeiramente pasmos, mas 
quando Sofia subiu ao palco ao lado deles, a dinâmica mudou. Eles pareciam 
se estabelecer em seus papéis de uma forma que os transformou em adultos 
diante dos olhos do público. 
— Primera, por favor, recite sua promessa. 
O salão ficou em silêncio enquanto Maria prometia ser o apoio de Juan 
Alvarez. Sua perspectiva. Seu amigo e seu parceiro em todas as coisas. 
Seu sorriso era rígido, mas parecia genuíno, e ele acenou com a cabeça 
solenemente quando ela terminou, selando a promessa com um aperto de mão, 
como ditava o costume. 
Sofia foi a seguir, com a voz baixa e confiante enquanto prometia ser a 
música que sua vida estava perdendo e que cuidaria dele até o fim de seus dias. 
— E agora, o pano — Diretora Huerta disse enquanto Juan se virava para 
Sofia, desdobrando um pano nas cores da família Alvarez: marrom, vermelho 
e dourado. Ele o enrolou em seus próprios ombros antes de estendê-lo, 
trazendo Primera e Segunda sob sua capa simbólica. Por um momento, eles 
ficaram quase testa com testa antes de se separarem. 
Quando Dani pensou que Juan não poderia parecer mais infantil e 
amedrontado, ele falou claramente de seu compromisso de sustentá-las, 
protegê-las, ser constante e leal até o dia de sua morte. 
Em seguida, a diretora produziu seu acordo de casamento, que eles 
assinaram em turnos antes de fazer uma reverência e desaparecer por uma 
terceira porta, levando para o pátio. Esta noite, os maridos voltariam para casa 
sozinhos. Amanhã de manhã, suas novas esposas se juntariam a eles. 
 
 
 
 
 
Depois da novidade do primeiro compromisso, Dani deixou os nomes e 
compromissos ligeiramente variados deslizarem por sua mente sem causar 
grande impressão. Por dentro, ela ainda era uma nação em guerra consigo 
mesma. De um lado, a vida com que ela sonhou e a incerteza da vida diante 
dela. Por outro lado, a esperança de sua família e tudo o que eles deixaram 
para trás. 
Uma Primera menor o teria mostrado, teria tremido ou ofegado ou ficado 
sem querer. Mas Dani não era uma Primera menor. Sua máscara era tudo que 
ela tinha. 
Usando-a bem, ela esperou pelo nome que encerraria a guerra e, depois 
de uma hora ou mais, finalmente ouviu. Cair de acordo com o destino do 
alfabeto - que forma tão arbitrária de escolher mudar a vida de alguém 
completamente, não é? 
— Alberto Mateo Luis Gonzalez Garcia, por favor, dê um passo à frente? 
A coluna de Dani ficou reta como uma muda de planta, e a sensação de 
formigamento voltou quando o salão explodiu em sussurros. Os Garcia eram 
de longe a família mais rica e condecorada presente esta noite. Todas as garotas 
da classe de Dani cobiçaram esta colocação. Mas apenas duas garotas neste 
salão iriam embora com o garoto agora subindo ao pódio, parecendo mais um 
homem do que qualquer um que veio antes dele. 
Ele era bonito. De ombros largos e cintura estreita, ele se aproximou 
parecendo seguro de si, não entediado ou nervoso. Como se ele estivesse 
confortável na frente de uma multidão. 
A diretora esperou que o chiado morresse, e Dani pensou no velho Señor7 
Garcia, pai de Mateo. Ele era o estrategista militar chefe do presidente, e havia 
 
7 Traduzido do Espanhol: Senhor. 
 
 
 
 
 
rumores não tão secretos de que ele estava preparando seu filho para a 
presidência. 
Mateo era tudo o que seus pais desejavam para ela. 
Próspero. Respeitado. Com ele, ela estaria irrepreensível. 
A canção de sal de Polvo lamentou em seu sangue; um contrapeso, um 
grito de luto. 
— A família Garcia escolheu... 
Dani respirou fundo, certificando-se de não se levantar antes que fosse 
oficial. 
— Primera Daniela Noa Vargas. 
Suas pernas se mantiveram firmes. As histórias de seu pai e as risadas 
provocantes de seus amigos de infância e a vaga memória de uma noite 
passada contra o corpo de sua mãe, seguindo o feixe de uma lamparina para 
um novo mundo. Era para onde tudo a estava levando? 
Do lado de fora, a melhor Primera da escola ocupou seu lugar 
recatadamente ao lado do solteiro mais promissor do ano. Por dentro, Dani era 
uma tempestade sem olhos. Ela olhou para ele, tentando obter uma leitura 
sobre o menino além de seu pedigree. Ela, entre todas as pessoas, sabia que de 
onde você era e para onde estava indo nem sempre era o suficiente para contar 
a história completa de uma pessoa. 
Mas ele não olhou para trás. Uma espécie de tédio frio emanava do único 
filho de Garcia, como se ele se casasse todos os dias. Como se não fosse nada. 
Dani sentiu seu pavor se intensificar. Ela precisava de um sinal. Um sussurro 
dos deuses nas chamas das velas ou das diosas iluminadas pelas estrelas do 
lado de fora para dizer que ela não precisava correr. Que essa eraa coisa certa 
a fazer. 
 
 
 
 
 
Eles ficaram juntos, Mateo olhando sem ver o contrato diante deles, Dani 
com ferro derretido em sua espinha, procurando por algo em que se agarrar. 
— ...E Segunda — disse a diretora, consultando o papel à sua frente. Dani 
não se permitiu fechar os olhos. 
— Carmen Reina Lara Santos! 
 
 
 
 
 
 
 
A relação entre Primera e Segunda não é de competição, mas de harmonia. Suas 
habilidades complementares formam um todo perfeito. 
— Guia da Escola Médio Para Garotas, 14º edição 
 
O torpor que dani sentiu antes não era nada comparado ao choque 
quando Carmen foi chamada. 
Enquanto o nome de Dani atraiu sussurros, palmas educadas demais e 
olhos como adagas, o nome de Carmen causou histeria. As garotas que a 
cercavam entraram correndo, abraçando-a, gritando e até soluçando. As que 
não tiveram sorte de sentar tão perto assobiaram, aplaudindo até o som ecoar 
das paredes e a diretora ser forçada a demandar ordem. 
Carmen se ergueu de suas admiradoras como um pássaro voando. Seu 
sorriso era radiante, seu vestido um ostentoso ouro brilhante. 
Ao invés de causar pânico, a presença de Carmen acalmou Dani. Este era 
o sinal que ela estava procurando. Na noite de sua maior incerteza, a Deusa da 
Lua deu a ela Carmen Santos. 
Ela tinha confiado em seus instintos uma vez antes, Dani pensou, no dia 
em que disse a Carmen quem ela era. Foi a pior decisão de sua jovem vida, e 
se Carmen estava aqui, era como um lembrete de que Dani fez o que ela 
mandou. Quando ela não o fez, o desastre aconteceu. 
Não havia nenhuma razão agora para pensar no futuro se moldando 
diante dela, ou para planejar sua fuga. Carmen estava ocupando seu lugar do 
 
 
 
 
 
outro lado de Mateo, completando a trifeta que os levaria pelo resto de suas 
vidas juntos. Ela era deslumbrante. Perfeita. Tudo que foi criado pela classe 
alta e uma vida inteira de riqueza e amor a comprou. 
— Primera, por favor recite sua promessa. 
Carmen pareceu se lembrar da existência de Dani naquele momento, e 
ela voltou seu olhar para o pódio com um sorriso que provavelmente parecia 
caloroso e acolhedor para o público. Amigável, até. 
Mas Dani sabia a verdade. Que cada momento de sua vida agora seria 
uma luta. Uma competição. Uma batalha pelo domínio. Que Carmen nunca 
pararia de procurar uma maneira de intimidá-la e miná-la. 
E se ela prestasse atenção o suficiente, se ela descobrisse o segredo que 
Dani estava escondendo com aqueles documentos falsos na gaveta de sua 
escrivaninha, Carmen finalmente seria capaz de arruiná-la. Do jeito que ela 
inexplicavelmente queria desde seu primeiro dia na Escola Medio Para 
Garotas. 
— Primera? — a diretora disse, uma ruga de preocupação entre suas 
sobrancelhas. 
— Claro — Dani disse, empurrando suas preocupações de lado. — 
Minhas desculpas, senhor. 
Seu pedido de desculpas foi direcionado a Mateo, que o reconheceu com 
um aceno impaciente. 
— Señor Garcia — ela começou. — Como sua Primera, eu prometo ser 
um farol de luz quando a escuridão estiver se fechando. Um barco resistente 
em mares revoltos. Serei sua parceira, seu chão sólido. Lhe honrarei e 
respeitarei enquanto nós dois vivermos. 
 
 
 
 
 
Curto e direto, Dani pensou quando estava escrevendo. De qualquer 
forma, era apenas uma formalidade; todos sabiam o que era esperado de uma 
Primera sem linguagem floreada para insistir no ponto. 
Mateo estendeu sua mão, e ela pressionou sua palma na dele, esperando 
transmitir com esse gesto o que esperava ser sua vida juntos: que eles podiam 
fazer uma vida que amavam, mesmo se fosse diferente daquela que ela deixou. 
Ela foi recompensada com um momento de contato visual, as linhas rígidas ao 
redor de seus olhos se suavizando brevemente. 
— Segunda? — A diretora disse. 
Mateo deixou a mão de Dani cair em um segundo, virando com uma 
avidez quase inapropriada para sua nova e brilhante Segunda, varrendo os 
olhos por seu corpo de um jeito guloso que fez Dani querer desviar os olhos. 
Segundas eram, é claro, quem geravam as crianças da família, mas Mateo não 
iria compartilhar uma cama com sua Segunda até que ela atingisse a idade de 
gestação. Normalmente por volta dos vinte anos, mas dependia de um exame 
do médico da família. 
Carmen respondeu com um sorriso, reconhecendo sua apreciação, mas 
Dani notou algo tenso por trás dos olhos da Segunda. Quase fez com que ela 
sentisse pena de Carmen. 
Quase. 
— Señor — ela disse, em uma voz como a seda pendurada em suas 
curvas. — Em um mundo que exigirá muito de você, prometo ser um alívio, 
uma alegria. Para cuidar e satisfazer você…. — Várias Segundas deram 
gritinhos, e Carmen piscou para elas. 
Mateo se permitiu um sorriso. 
Dani conteve a vontade de vomitar. 
 
 
 
 
 
— … Para preencher sua casa com beleza e amor enquanto nós vivermos. 
Quando Mateo murmurou um obrigado para ela, Dani se sentiu menor 
do que já tinha sentido. 
Em seguida, ele tirou o tecido, trançado com as cores da família Garcia: 
azul, preto e prata. Cores poderosas e frias. O tecido que sua mama trançou era 
uma maravilha, muito mais complexa e sofisticada do que as outras que Dani 
viu naquela noite. 
Dani pensava que entendia o simbolismo como considerava o metal real 
e cintilante trançado entre as linhas pratas. Apesar dos olhos de Mateo serem 
de um marrom escuro, era como se você pudesse ver todas as cores impiedosas 
de sua família rodopiando atrás deles. 
Ele colocou o tecido sobre seus ombros antes de estender a mão. Carmen 
e Dani se aproximaram, a eletricidade estranha de corpos em proximidade 
cintilando entre eles. Os ombros de Dani tocaram os de Mateo primeiro, depois 
os de Carmen, antes do tecido estar ao redor deles. 
Ela tentou se perder nas cores. A claridade e objetividade do azul, os 
segredos sombrios do preto. Pontuando tudo, a borda prata dura e inflexível. 
Está quase acabando, Dani pensou, uma onda de pânico correndo por 
suas veias. Ela esperou sentir um pouco de camaradagem com seu novo 
marido antes de descerem do palco. Alguma indicação que sua mama esteve 
certa sobre sua habilidade de construir uma vida que amava. 
Mas Mateo mal olhou para ela. Carmen Santos, entre todas as pessoas, 
estava de pé ao lado deles. Isso não era nem de perto o que ela estava 
esperando. 
— Senhoritas, muito obrigado às duas — Mateo disse, em uma voz que 
soava ensaiada. — Em troca, prometo ser um marido fiel e dedicado a vocês. 
 
 
 
 
 
Prometo nos sustentar. É meu prazer formalmente receber vocês à família 
Garcia. Que possamos prosperar. 
O lema da família Garcia. 
— Que possamos prosperar — Dani e Carmen responderam juntas. 
E depois havia uma caneta na mão de Dani, dourada e pesada demais. 
Havia mais solteiros elegíveis esperando por sua vez, e Dani procurou pelas 
palavras de sua mama. Procurou por qualquer coisa que faria com que esse 
momento parecesse menos como a morte de algo. 
Mas nada veio. Havia apenas Dani, e essa família estranha e fria que não 
era nada como a sua, e a promessa que ela fez de pegar essa vida melhor e 
nunca olhar para trás. 
Mateo assinou, sua caligrafia composta de linhas afiadas e angulares que 
afundaram no papel. Carmen era a próxima, com um floreio ostentador que 
dizia absolutamente tudo sobre ela. Os dois olharam para Dani, que se moveu 
precisamente. Cuidadosamente. Como um instrumento caro se abrindo. 
E ela não era? 
O papel desapareceu sob suas mãos no momento em que seu nome foi 
assinado. A diretora estava se preparando para chamar o próximo nome. 
Mateo já estava abrindo a porta, Carmen não muito atrás. 
Um sentimento perigoso estava crescendo dentro de Dani, como se seu 
dever e desejo estivessem brigando e o vencedor ainda não tinha sido decidido. 
O ar frio em seu rosto sussurrou que ainda não era tarde demais. Que ela podia 
fugir para as árvores e nunca olhar para trás. A escuridão nas bordas do pátio 
pareciam cheias de sussurros sinistros.Seu peito parecia pesado, seus 
movimentos lentos demais. 
 
 
 
 
 
O que diriam em Polvo se você retornasse de mãos vazias? Uma pequena voz 
maliciosa perguntou enquanto ela estava posicionada nas bordas da escuridão. 
Dani, perfeita e brilhante, partindo para salvar sua família e fazer coisas que o 
resto deles apenas sonhavam em fazer. 
Seu batimento desacelerou. A necessidade de fugir se dissipou, deixando 
um peso triste atrás de si. Ninguém em Polvo jamais entenderia se ela 
retornasse. Não seria o mesmo que era antes. Aquela versão dela estava morta. 
Esse era o único caminho para frente. 
E ali estavam Carmen e Mateo, inclinando na direção um do outro sob 
uma luminária brilhante. Havia essa intimidade instantânea e uma centelha 
entre eles que Dani quase invejava. Carmen estava fazendo uma vida que 
amava, ou uma vida que amava ela, pelo menos. Se essa era a vida de Dani - 
se realmente não tinha como voltar - ela tinha que fazer o mesmo. 
— Ah, lá vamos nós — Carmen disse baixo enquanto Dani se 
aproximava. — Mateo estava prestes a ir embora. 
— Sim, é claro — Dani disse, mais para Mateo do que para Carmen. — 
Bem, señor, te vemos… amanhã, então. 
Mas Mateo estava entediado de novo. Dani era desajeitada e formal onde 
Carmen era sedutora, sua postura lisonjeando ele mesmo sem palavras. 
— Mhm — ele disse. — Suponho que sim. 
O sorriso de Carmen era venenoso. 
— Minha madre8 vai estar aqui de manhã para pegar vocês — Mateo 
disse, assentindo para Dani e beijando Carmen na bochecha. — Até lá. 
Uma vez que ele partiu, Dani sentiu como se tivesse acabado de vender 
sua possessão mais valiosa por um punhado de feijões secos. Ela queria ir atrás 
 
8 madre significa mãe em espanhol 
 
 
 
 
 
dele, forçá-lo a reconhecer o trabalho duro que ela fez para atingir esse 
momento, a vida que ela nunca conheceu porque havia escolhido isso. 
Mas é claro, isso não era um comportamento adequado a uma Primera, 
então ela apenas viu ele ir embora, envergonhada pela sensação que queimava, 
começando atrás de seus olhos e descendo por sua garganta, deixando uma 
brasa vermelha e quente no centro de seu peito. 
— Sério? — Carmen perguntou. — Não chorar não é, tipo, a única coisa 
no livro inteiro do manual de uma Primera? 
Sua risada era zombeteira e sem graça como sempre, mas naquela noite 
Dani estava sem armadura. Passou direto por ela, naquele lugar vazio onde 
sua súbita esperança de fugir para casa estava, antes de ela perceber que não 
tinha uma casa para a qual fugir. 
— Se recomponha — Carmen disse, um cintilar de ouro se afastando da 
borda da visão borrada de Dani. — Seu profissionalismo, ou falta dele, reflete 
em todos nós agora. 
Uma vez que estava sozinha, Dani se sentiu desligada. Quando foi a 
última vez em que ela realmente sentiu como se tivesse um propósito além de 
alcançar esse momento? Deixar seus pais e Polvo orgulhosos? 
Sem alerta, sua memória conjurou Sota e o armário de vassouras do 
oratório. Ele era um inimigo, um membro do grupo de resistência impiedoso 
determinado a trazer à tona exatamente o que Dani sempre lutou para manter 
no escuro. Mas quando ele olhou para ela, havia algo em seus olhos. Algo que 
a fez se sentir estranha e, sim, com um propósito. Assustada, e um pouco 
orgulhosa. 
 
 
 
 
 
Ela passou a caminhada inteira de volta ao seu dormitório enterrando 
aquele pensamento perigoso. Se ela fosse sortuda, pensou enquanto 
adormecia, nunca veria Sota de novo. 
Mas quando ela já foi sortuda? 
A visão de Dani de seu futuro não foi melhorada pela luz antes do 
amanhecer. Seus pertences pessoais couberam em uma pequena caixa, que ela 
carregou pela entrada da escola sem cerimônia enquanto o sol nascia. As 
meninas foram espalhadas durante a manhã, para evitar aglomerações na 
entrada circular, então quando chegou, ficou sozinha. 
Mais de uma vez, ela acariciou os papéis azuis e brancos no bolso exterior 
de sua bolsa de couro, apenas para se certificar de que ainda estavam lá, apesar 
de ter os checado repetidamente mil vezes antes de sair no corredor. 
Sota disse que havia um ponto de checagem no caminho para o complexo 
governamental de Medio. Ela não tinha escolha a não ser confiar nele, apesar 
desse pensamento fazer seu peito parecer apertado. 
Bem nesse momento, é claro, Carmen chegou. Três de suas servas 
empurravam um carrinho com rodas de vestidos atrás dela, e ela acenou uma 
mão para direcioná-las, nunca erguendo um dedo. 
Típico, Dani pensou, sem se importar em esconder seu revirar de olhos. 
Ela estava na ponta da entrada, e esperava que Carmen tivesse o bom senso de 
ficar na outra. Mas é claro, Carmen sinalizou para sua comitiva para mais 
perto, estacionando junto de seu armário de rodas logo atrás de Dani. 
— Bom dia, Primera — ela disse sem olhar para Dani. 
— Bom dia, Carmen. 
 
 
 
 
 
— Você não vai chorar de novo, vai? — ela perguntou, estilhaçando 
qualquer esperança que Dani tinha de civilidade. — Fiquei fora até tarde, e 
minha cabeça está me matando. 
A festa pós formatura de Segundas era lendária, mesmo entre as 
Primeras. A colega de quarto de Dani, Jasmín, foi convidada ano passado, e ela 
voltou ao amanhecer rindo. Vergonhoso, para dizer o mínimo. 
— Você está quieta hoje, hein? — Carmen perguntou, banindo suas 
bajuladoras com um mover do pulso. — Provavelmente é uma estratégia 
melhor do que seja lá o que você tentou ontem a noite. Foi difícil de assistir, 
para ser sincera. 
— Vejo que você está se mantendo ao que funciona — Dani disse sem 
olhar para cima. 
— O que é isso? 
— Me rebaixando para não se sentir tão insegura. 
— Há! Eu? Insegura? — ela perguntou. — Desculpa, você já me viu? — 
Mas Dani viu seus ombros ficarem rígidos sob os cruzamentos das fitas de seda 
laranja. 
— Sabe, já ouvi falar que você pode ser bonita e ainda ser uma pessoa 
cruel e de mente fechada com poucas qualidades para fazer os outros gostarem 
de você. Mas isso pode ter sido só um rumor. 
Os olhos de Carmen se estreitaram de raiva, mas uma limusine preta 
quase silenciosa subir pela entrada bem na hora, prevenindo Dani de precisar 
ouvir seja lá o que viria em seguida. Ela pegou sua caixa e se aproximou da 
porta, deixando Carmen lutar com seu armário sozinha em sua roupa pouco 
prática. 
 
 
 
 
 
Era uma pequena vitória, dizer a última palavra, mas quando se tratava 
de Carmen, Dani tomaria o que pudesse. 
— Bom dia, senhoritas — Señora Garcia disse, saindo do carro usando 
um vestido preto quadrado de viagem. Foi ela quem conduziu a entrevista de 
colocação de Dani, e seu cumprimento era tão caloroso quanto podia se esperar 
de uma das Primeras mais poderosas do país. 
Mama Garcia não estava muito longe, e Dani conseguiu ver 
imediatamente por que a Segunda foi levada com Carmen. Elas eram 
praticamente cópias uma da outra. Ambas vestidas da cabeça aos pés em seda, 
com cachos longos e em cascata, expressões que diziam que o mundo lhes 
devia um favor perpétuo. Elas deram beijos nas bochechas sem realmente tocá-
las, seus sorrisos largos, como se já fossem próximas. 
Outra para ficar de olho, então, Dani pensou enquanto o motorista 
carregava seus pertences escassos no carro e aliviava Carmen de sua bagagem 
pesada. As quatro mulheres se acomodaram na parte traseira do carro, e Dani 
tentou não ficar de boca aberta. Depois de cinco anos na escola, ela estava 
acostumada a viver com um certo nível de luxo, mas esse carro era do tamanho 
da sala de estar dos pais de Dani. 
— Mateo queria poder receber vocês, é claro — disse a señora com um 
tom brusco e de negócios. 
O carro começou a manobrar pela entrada íngreme, e Carmen olhou para 
trás enquanto a Escola Medio para Garotas desaparecia nas árvores atrás deles. 
Dani não olhou. 
— Ele tem um negócio urgente com seu pai e o presidente, mas estará de 
volta essa noite — explicou Mama Garcia. — Até lá, Señora Garcia e eu vamos 
 
 
 
 
 
apresentar a casa

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