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Diacronia interna e externa da Língua Portuguesa MARCUS VINÍCIUS KNUPP BARRETTO 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Marcus Vinícius Knupp Barretto Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático........................................................................................................................................4 Capítulo 1 Conceitos Iniciais ...........................................................................................................................................................7 Capítulo 2 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................................................... 20 Capítulo 3 Do Latim ao Galego-Português ............................................................................................................................. 33 Capítulo 4 O Galego-Português .................................................................................................................................................. 42 Capítulo 5 O Português Moderno ............................................................................................................................................... 53 Capítulo 6 O português do Brasil ............................................................................................................................................... 67 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORGANIzAçãO DO LIvRO DIDáTICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 7 Apresentação Neste capítulo apresentamos o que se precisa saber antes de estudar a diacronia interna e externa da Língua Portuguesa. Para tal, estudaremos a divisão clássica da língua em três partes: Fonologia, Morfologia e Sintaxe, além dos conceitos de Diacronia e Sincronia. Além disso, veremos a história do estudo comparado das línguas, a descoberta de que as línguas são derivadas de outras anteriores e aparentadas entre si. Destacamos que as línguas têm uma história de vida e de evolução, como os seres vivos. A Língua Portuguesa, por exemplo, tem mais de dois mil anos de história, se o Latim como levado como ponto de partida. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Diferenciar Fonologia, Morfologia e Sintaxe. » Diferenciar estudo Sincrônico e Diacrônico. » Relatar a história sobre a origem das línguas. » Compreender a evolução das línguas e suas divisões em troncos e famílias. » Reconhecer a importância do estudo de outras línguas para entender o funcionamento da própria língua materna. Conceitos iniciais Na disciplina Diacronia interna e externa da Língua Portuguesa você será apresentado a novos conceitos e viajará por mais de dois mil anos de história e verá como o Latim falado por conquistadores romanos, tão diferente da nossa língua, se transformou ao longo dos séculos na Língua Portuguesa que você usa diariamente. 1CAPÍTULOCONCEITOS INICIAIS 8 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS Para isso, vejamos o que você precisa saber antes de estudar a diacronia interna e externa da nossa língua. Partes da língua Veremos mais adiante que, apesar de indianos escreverem as primeiras gramáticas, foram os gregos que desenvolveram os primeiros estudos da língua no modelo de divisão que é seguida até hoje. Tradicionalmente, a língua é dividida em três partes: Fonologia, Morfologia e Sintaxe. Fonologia Todas as línguas possuem palavras, estas podem ser divididas em sílabas, morfemas, ou em suas menores unidades: os fonemas. O estudante de Letras jamais deve confundir grafemas (letras) com fonemas. Em nossa língua, há casos em que uma letra representa um fonema (casa - /k/a/z/a/), e casos em que duas letras representam um fonema (chuva - /ʃ/u/v/a/), em que o ch é um dígrafo, e há casos em que uma letra representa dois fonemas (fixo - /f/i/k/s/o/). As línguas variam em suas representações de letras e fonemas. O <ch> tem um som característico em português, mas representa outros fonemas em inglês, espanhol, entre outros. Por isso, linguistas do mundo inteiro se reuniram para criar um alfabeto universal que representasse todos os sons de todas as línguas do mundo: o Alfabeto Fonético Internacional. Será útil aprendê-lo, não apenas para a leitura de descrições fonéticas e fonológicas nos capítulos deste livro didático, mas futuramente, na sua carreira de estudioso das línguas. Observe o quadro que representa todos os fonemas de todas as línguas do mundo. Tente responder para si mesmo, quais desses símbolos são iguais às letras do alfabeto que usamos, e quais são símbolos totalmente diferentes? 9 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 10 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS Agora observe os fonemas do português atual, faça as mesmas perguntas. Tabela 1: Inventário dos fonemas do português padrão (consoantes). Bilabial Labio- dental Dental/ alveolar pós- alveolar Palatal Velar Uvular labial plano Nasal m n П ɲ Plosiva p b t П d П k g Fricativa f v s z ʃ 3 ʁ Aproximante j w Apr. lateral l ʎ Tepe ɾ Nem sempre foi assim. Você vai aprender que os fonemas foram mudando ao longo da história da língua. Assim, muitas palavras usadas antigamente, hoje são irreconhecíveis. Veja por exemplo: abelha e sua palavra-mãe em latim: apicula. “Apicula” por ser proparoxítona, aos poucos teve seu “u” apagado na pronúncia, assim como o povo hoje em dia faz com o “o” da palavra “aboborinha”, reduzida em “abobrinha”. Desta forma, “apícula” virou “apic’la”. Outras transformações ocorreram como o fonema bilabial surdo /p/ que se sonorizou e virou um bilabial sonoro /b/. Posteriormente, o <cl> virou <lh>. A vogal <i>, por sua vez, virou um <e>. Assim temos: apicula > apicla > abelha Você será apresentado aos símbolos do alfabeto fonético internacional assim que eles forem aparecendo nos próximos capítulos. OrtografiaOrtografia não é uma das três divisões clássicas da língua, mas é importante falar sobre ela, já que trabalharemos com textos escritos, e nem sempre a escolha das letras representava, em outras épocas, os mesmos fonemas que representam hoje. Com base nos fonemas, os povos que criaram a escrita usaram muitos sistemas diferentes para representar os fonemas, alguns desses sistemas desapareceram, outros são usados até hoje. Os hebreus, sumérios, hititas, representavam apenas as consoantes, o mesmo ocorre hoje em árabe. Japoneses e coreanos criaram silabários. Os chineses criaram um sistema de escrita diferente de tudo o que já existiu. Com seus pictogramas, ideogramas e caracteres diversos, escrevem mais preocupados com a ideia do que com o fonema. Na América, maias e astecas criaram seus sistemas de escrita. No território onde hoje é o Líbano, há milhares de anos, os fenícios criaram o alfabeto como conhecemos, com representação de todos os fonemas: consoantes e vogais. Deste alfabeto descende o que usamos hoje. 11 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 Temos a sorte de usar o alfabeto mais difundido do mundo, o alfabeto latino que herdamos dos romanos. Com apenas 26 letras, hoje todos os falantes de inglês, francês, português, alemão, turco, vietnamita, guarani, esperanto e muitas outras línguas, escrevem muitos fonemas. Da mesma forma que a fonologia mudou ao longo dos séculos, você verá que o mesmo aconteceu com a ortografia. Morfologia A segunda etapa de divisão da língua é a Morfologia. Esta parte estuda os morfemas: elementos da língua que não têm significado sozinhos, mas que combinados a outros criam novas palavras. Os principais morfemas em português são os radicais, os prefixos, os sufixos e as desinências. Nas palavras globo, global, globalizar, globalização, temos o radical “glob-“ que vai recebendo sufixo após sufixo, formando assim novas palavras. Cada língua tem seu sistema morfológico. Algumas línguas, como as indígenas brasileiras e as chinesas, como o mandarim, são chamadas de línguas aglutinantes, porque quase não têm morfemas, e as palavras é que se juntam para fazer outras. Já a língua portuguesa é chamada de língua flexional, pois conta com centenas de morfemas. Nossos morfemas são herdados do latim. Muitos deles, tanto prefixos, sufixos quanto radicais são de origem grega, mas não entraram diretamente na língua. Aliás, não existe qualquer palavra em português que seja diretamente de origem grega. Todas elas entraram primeiro no Latim e daí passaram para o Português. Você aprenderá que em Latim se formava o plural por troca de desinências: rosa, rosae (rosa, rosas) ou lupus, lupi (lobo, lobos) quando eram sujeito da frase, ou rosam, rosas (rosa, rosas) ou lupum, lupos (lobo, lobos), quando eram objeto direto. Obviamente, herdamos do latim a desinência do plural do objeto direto, já que fazemos plural com acréscimo de um –s. Veremos aos poucos como a morfologia latina foi se modificando até chegar ao sistema português atual. Sintaxe A terceira parte da divisão clássica da língua trata da relação das palavras entre si. Você deve se lembrar das aulas de análise sintática na escola. A Sintaxe trata dessas relações, das coordenações e subordinações entre palavras e orações. 12 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS Cada língua tem a sua Sintaxe. Se não fosse assim, para falar outra língua bastaria que decorássemos listas de palavras e traduzíssemos uma por uma. Na escola aprendemos que em inglês, por exemplo, os adjetivos vêm antes dos substantivos e quando fazemos uma pergunta, começamos pelo verbo auxiliar. Temos que aprender a sintaxe das outras línguas para falar corretamente. A Sintaxe do Latim era muito diferente. Veremos nos próximos capítulos que nessa língua a ordem das palavras é livre. Sujeitos, objetos e complementos são marcados por diferentes desinências. A morfologia era mais rica, nesse aspecto. Ao longo dos séculos, a Sintaxe da Língua Portuguesa foi construída pelos falantes. Na língua oral, pelas conversas, discursos, julgamentos, interrogatórios. Na língua escrita, nas poesias, correspondências, leis, documentos, dentre outros. Sincronia e diacronia Toda língua pode ser estudada de duas formas: analisando-a da forma como é num dado momento de sua história ou analisando-a ao longo de sua história e evolução. A primeira forma de se estudar a língua se chama Sincronia, a segunda, Diacronia. Ao longo da história, as línguas foram estudadas, seja pela perspectiva sincrônica, como na primeira gramática do mundo, a gramática do Sânscrito de Panini (séc. V a.C.), no Oriente, seja pela perspectiva diacrônica, como nos diversos estudos filológicos, mais cultuados no Ocidente. Foi Ferdinand de Saussurre (1857-1913), quem melhor definiu esses termos, segundo o linguista: “é sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência; é diacrônico tudo que diz respeito às evoluções.” (SAUSSURRE, 2006). Nossa disciplina se chama Diacronia Interna e Externa da Língua Portuguesa. A diacronia ou história interna é o estudo dos elementos linguísticos que foram se alterando ao longo dos anos. A diacronia externa é o estudo das relações políticas, sociais e culturais que acompanharam essa língua. Devemos sempre nos lembrar de que o estudo da história de uma determinada língua está intimamente ligado ao estudo da história do povo que fala tal idioma. Se a Língua Portuguesa conta hoje com milhares de palavras de origem árabe ou tupi, isso se deve à história dos antepassados dos portugueses que ficaram sob domínio dos mouros por cinco séculos, e, séculos depois, dominaram os indígenas brasileiros que habitavam diversas regiões do país, trocando com eles conhecimentos e vocabulário. 13 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 Origem e evolução das línguas Você já parou para se perguntar de onde vêm todas as línguas que a humanidade fala? Usando um paralelo com os seres vivos, podemos dizer que as línguas também nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Além de uma história própria de vida, as línguas também têm uma história de ancestralidade, já que descendem de outras línguas1. No caso particular da Língua Portuguesa, essa descende diretamente de outra língua chamada Latim Vulgar, que derivou ao longo dos séculos, além da nossa língua, no espanhol, no francês, no italiano, no romeno, no catalão, no galego, no romanche, dentre outras línguas vivas e mortas. Esse processo foi lento, gradual, e podemos dizer até mesmo que a Língua Portuguesa hoje é o Latim Vulgar falado há mais de dois mil anos, tendo sido bastante alterado desde então. Esse Latim Vulgar, ou Latim Imperial, permaneceu até o final do Império Romano, no século V, quando bastante modificado, já se diferenciava tanto do Latim que podemos chamá-lo de romanço-lusitânico (falado do século V ao IX), essa mesma língua, de tão alterada, pode ser chamada de protoportuguês (do séc. X ao XI), e posteriormente galego-português (do séc. XII ao XIV), em seguida português pré-clássico (séc. XIV ao XVI), até o português moderno (do séc. XVI em diante). O galego-português e o português pré-clássico podem ser reunidos numa única grande fase, a do português arcaico. O Latim, por sua vez, descende do itálico, que descende de uma língua anterior, o protoindo-europeu, falado há 5000 anos pelos arianos, povo que habitou a região que hoje é a Rússia, e que se subdividiu em diversos povos de línguas diversas como itálico (do qual descende o Latim), o germânico (do qual descendem o inglês e o alemão), o eslavo (do qual descendem o russo, búlgaro etc.), o céltico (do qual descendem as línguas faladas pelos povos em Portugal antes da romanização: o lusitano, o galaico, o celtibérico), além do indo-iraniano, albanês, armênio, dentre muitas outras línguas. O parentesco da Língua Portuguesa com as demais línguas neolatinas é próximo, podemos, numa analogia com a família, dizer que são línguas “irmãs”, enquanto outras línguas indo- europeias comoinglês, russo, sânscrito ou persa, são línguas “primas” do português. Línguas sem parentesco com a nossa não descendem do protoindo-europeu, alguns exemplos são árabe, japonês, mandarim, todas as línguas indígenas da África, América e Oceania. O parentesco entre línguas também nos faz pressupor que, quanto mais próximas, maior a probabilidade de que sejam inteligíveis entre si. Como a divisão entre português e galego se deu há pouco tempo, um texto escrito em galego moderno, por exemplo, pode ser lido por um falante de português razoavelmente culto sem maiores problemas.2 1 As exceções são as línguas crioulas, que nascem abruptamente, sem descenderem diretamente de qualquer língua preexistente, e as línguas artificiais, como o esperanto e o klingon, que nascem artificialmente pela criação de alguém. 2 Exemplo de texto em galego moderno (falado atualmente na Galícia, região espanhola ao norte de Portugal): “Toda persoa ten os dereitos e liberdades proclamados nesta Declaración, sen distinción ningunha de raza, cor, sexo, idioma, relixión, opinión política ou de calquera outra índole, orixe nacional ou social, posición económica, nacemento ou calquera outra condición” (Artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos) 14 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS Figura 1: a imagem mostra, em detalhe, dois galhos do tronco indo-europeu. Autoria da imagem: Minna Sundberg Fonte: <http://es.gizmodo.com> História do estudo das línguas Os primeiros estudos linguísticos no oriente feitos por Panini no século IV a.C. permaneceram desconhecidos no ocidente por mais de dois mil anos. Panini redigiu uma gramática normativa do sânscrito, língua sagrada da Índia, cujas raízes são usadas até hoje na ioga. Do sânscrito derivam muitas línguas vivas e atualmente faladas na Índia, como o híndi, ou em Bangladesh, como o bengali, e era escrito em alfabeto devanagari, o mesmo usado hoje em muitas línguas da Índia. Figura 2: nome do idioma “sânscrito” escrito em alfabeto devanagari. Como o estudo das línguas não era muito difundido no Ocidente, já que os gregos e romanos menosprezavam a língua dos bárbaros, e na Idade Média a humanidade caiu no obscurantismo, o Ocidente não chegou a conhecer a obra de Panini por dois mil anos. Apenas no século XVI vieram à publicação os primeiros estudos que percebiam a semelhança entre o sânscrito e as línguas europeias como o Latim e o grego. Seu primeiro difusor foi o italiano Sassetti, que viveu em Goa, Índia, entre 1583 e 1588 e percebeu a curiosa semelhança entre o sânscrito e o italiano, apenas observando os numerais e algumas poucas palavras. 15 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 Tabela 2: quadro comparativo de três línguas. Português Sânscrito Italiano seis sás sei sete saptá sette oito astaú otto nova náva nova deus devá dio serpente sarpá serpe Sassetti lançou não apenas uma nova fase dos estudos das línguas como também lançou as bases para o método comparativo, um dos principais métodos usados na filologia. As cartas em que apresenta essas semelhanças permaneceram inéditas até 1855. Pouco antes disso, em 1767, um jesuíta francês estabelecido no sudeste da Índia, Gaston-Laurent Coeurdoux, enviou uma nota à Academia das Inscrições, demonstrando as semelhanças entre o sânscrito, o grego e o Latim, (port. presente, Latim donum, sânsc. dana. port. viúva, lat. vidua, sânsc. vidháva), pressupondo que Latim e sânscrito tinham um ancestral comum. Mas foi considerado louco e sua carta ignorada. Em 1786, William Jones, um magistrado inglês em Bengala (atual Bangladesh), fez as mesmas observações que seus antecessores, e acrescentou que o Gótico (língua germânica extinta falada pelos bárbaros) e o Céltico (língua mãe de línguas da Grã-Bretanha como o irlandês, o gaélico escocês e o bretão) eram línguas irmãs do Sânscrito, do Grego e do Latim, e tinham um ancestral comum. Em 1795 veio à publicação a primeira gramática comparada, escrita por Schlegel, que colocava lado a lado não só as línguas já mencionadas anteriormente, como línguas do Irã. Embora essas semelhanças tenham sido observadas por Sassetti no século XVI, William Jones no século XVIII, Coeurdoux e Ramus Rask no século XIX, as obras desses autores permaneceram desconhecidas ou não encontraram muitas pessoas que as levassem a sério. Apenas com Franz Bopp, Jacob Grimm e August Schleicher o estudo comparativo das línguas começou a ser difundido. Franz Bopp foi um filólogo do período romântico, mas que não compartilhava com seus contemporâneos a ideia de que as línguas degeneravam de um ancestral perfeito. Autor de um estudo de gramática comparativa, embora criasse teorias fantasiosas e não apresentasse metodologia científica, lançou as bases da reconstrução linguística (FOX, 1995). Ramus Rask foi quem observou pela primeira vez a regra da mudança das consoantes do germânico, em relação às demais Línguas Indo-Europeias, mas foi Jacob Grimm quem conseguir descrever a série de correspondências existentes entre os fonemas consonantais de cognatos do grego, do gótico e do alto-alemão arcaico, lançando as bases do que hoje se conhece como Lei de Grimm, embora ele nunca a tivesse chamado de lei (LEROY, 1982: 34). Além de notável filólogo, Jacob Grimm era folclorista e escritor. Junto com seu irmão, recolheu diversos contos folclóricos e os publicou, criando o gênero “Contos de Fadas”. São dos irmãos 16 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS Grimm as versões originais de Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, João e Maria, Rapunzel, A Bela Adormecida e outros contos que ganharam eternidade e difusão na Literatura Universal. Tabela 3: quadro comparativo de Grimm. Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo Português phero fero biru bharami bera “eu levo” phrater frater brodhar bhratar bratu “irmão” pous, podós pés, pedis fotus Pád- peshi “pé” Fonte: Weedwood (2002). Grimm observou que havia uma correspondência entre as consoantes iniciais nas cinco línguas, que não se alterava, com raras exceções. Dessa forma, pôde estabelecer as correspondências. Tabela 4: oclusivas labiais e dentais nas línguas indo-europeias Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo p p f p p b B p b b ph f/b b bh b t t q t t d d t d d th f/d d dh d Fonte: Weedwood (2002) Outro filólogo que veio depois, August Schleicher, foi o responsável por introduzir a metodologia científica à linguística histórica e traçar paralelos entre a evolução linguística e a biológica. A Origem das Espécies de Charles Darwin havia sido publicada dois anos antes de sua gramática comparativa. Ele, provavelmente, leu a obra de Darwin e ficou bastante impressionado. Para Schleicher, as línguas eram organismos vivos, que nascem, crescem, se desenvolvem, envelhecem e morrem, independentemente da vontade humana. Schleicher tentou definir leis com o rigor das leis físicas e químicas que explicassem a evolução das línguas. Foi ele que lançou a classificação das línguas por critérios morfológicos em três grupos: isolantes, aglutinantes e flexivas, mas também supunha que as línguas poderiam ser classificadas geneticamente. Schleicher permanece como referência em conceitos como evolução e divisão das línguas e pode-se dizer que lançou as bases para a reconstrução linguística por meio do método comparativo. Tal método, usado há mais de dois séculos tem se mostrado bastante seguro e eficiente. Após a reconstrução do Latim Vulgar por Hall (1950), foram encontrados documentos que comprovaram que as palavras reconstruídas realmente existiram; o mesmo aconteceu com o hitita reconstruído pelo método interno, sendo encontrados em documentos vocábulos reais que coincidiam com os vocábulos reconstruídos (FOX, 1995). O método comparativo já foi usado não apenas para 17 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 reconstrução de Línguas Indo-Europeias como o Protoindo- Europeu, o Proto-Romance ou Latim Vulgar, mas também de diversos outros troncos como o Prototupi-Guarani, o protobanto dentre muitas outras protolínguas. O método comparativopermite reconstruir línguas extintas, partindo-se do pressuposto de que são objetos determinados historicamente e estágios da evolução numa família de línguas aparentadas. As línguas são frutos de processos sistemáticos, jamais arbitrários, isso é o que fornece a segurança necessária para a reconstrução. Já que a relação significante-significado é arbitrária, as mudanças nas línguas ocorrem por processos linguísticos, não por processos sociais os princípios gerais para as mudanças das línguas são os mesmos para quaisquer línguas em qualquer tempo e qualquer lugar (FOX, 1995: 6-7). Isso nos leva a prever as alterações que ocorrerão numa dada língua e reconstruir a forma original (língua-mãe) de um dado número de línguas aparentadas. Lidando com textos Nesta disciplina você terá contato com alguns textos escritos em estágios diferentes da língua, isso pode trazer alguns estranhamentos iniciais. Você, contudo, não deve estranhar textos em estágios anteriores da Língua Portuguesa, nem em outras línguas latinas. As Línguas Românicas são semelhantes entre si devido ao ancestral comum: o Latim Vulgar. Isso faz com que aprender Línguas Latinas como espanhol e francês seja mais fácil do que aprender inglês ou alemão, por exemplo. As Línguas Latinas têm, em maior número, palavras transparentes, isto é, palavras muito parecidas, de modo que, pelo contexto, deduzimos o que significam. Leia atentamente o texto a seguir. Ele está escrito numa língua que você não conhece, o romanche, uma das quatro línguas oficiais da Suíça. O texto, com certeza, você conhece, é a oração do Pai Nosso: Bab noss, ti che es en tschiel! Sanctifitgà vegnia tes num! Tes reginavel vegnia tar nus! Tia veglia daventi sin terra sco en tschiel! Noss pun da mintgadi dà a nus oz! Ed ans perduna noss debits, sco era nus perdunain a noss debiturs! 18 CAPÍTULO 1 • CONCEITOS INICIAIS E n’as maina betg en empruvament ma spendra nus dal mal! Pertge tes èn il reginavel, la pussanza e la gloria en etern. Amen3. Passado o estranhamento inicial de ter que ler um texto em língua estrangeira nunca vista antes, você deve ter notado que pelo menos duas palavras “terra” e “gloria” são iguais às usadas em português. Outras, podemos deduzir, devido à semelhança: “noss” nosso, “nus” nós, “en etern” em eterno (para sempre). Outras palavras parecem muito diferentes, mas guardam semelhanças entre as vogais ou entre as consontes: “Bab” pai, “tschiel” céu, “perduna” perdoa, “debits” débitos, dívidas, “debiturs” devedores. Algumas palavras são semelhantes a outras portuguesas do mesmo campo semântico, como “reginavel” que significa reino, e nos remete às palavras: régio, regência, Regina (nome próprio que significa rainha em Latim). Outras palavras são tão diferentes que fica difícil deduzir o que significam: “mintgadi”, “maina”, “betg”. É claro que, se tivéssemos apresentado um texto desconhecido do leitor, em vez da conhecida oração do Pai Nosso, a dedução de palavras seria mais difícil. Para ler um texto, mesmo em outras línguas, usamos diversos conhecimentos acumulados. Cada uma dessas línguas tem a sua história, sua diacronia interna e externa. Os estágios de evolução da língua Dentro desse processo de evolução linguística e transformação do modo de falar dos povos, podemos estabelecer fronteiras simbólicas (já que as línguas não dão saltos na evolução), e dizer mais ou menos, quando a língua deixou de ser protoindo-europeu para ser Latim, quando deixou de ser Latim para ser português. Em que ponto uma língua se dividiu em duas e assim por diante. Assim como nenhuma criança se torna adolescente de um dia para outro (é um processo lento e gradual), o Latim não se transformou em português de uma hora para outra, mas podemos estabelecer simbolicamente o ano de 1196 como o do nascimento da Língua Portuguesa. É desta data o, que é considerado por alguns filólogos, primeiro texto literário em Língua Portuguesa: “Ora faz ost’o senhor de Navarra” de João Soares de Paiva. Nesse texto estudado pelos filólogos, são apresentadas muitas características dessa nova língua que se diferencia e muito do Latim. Podemos demarcar, dessa forma, três grandes fases de estudo da história da nossa língua: a proto-história da Língua Portuguesa, que vai do século III a.C. ao século XII d.C., o português 3 Pai Nosso em 1817 línguas e dialetos: <http://www.christusrex.org/www1/pater/> 19 CONCEITOS INICIAIS • CAPÍTULO 1 arcaico, que vai do século XII a meados do século XVI, e o português moderno, que vai de meados do século XVI até nossos dias. Bibliografia BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história externa das línguas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. FOX, Anthony. Linguistic reconstrucion. Na Introduction to Theory and Method. Oxford: Oxford University Press, 1995. SCHLEICHER, August. Les langues de l’Europe moderne. Paris: Lachange/ Garnier, 1852. (Trad. do alemão por Hermann Ewerbeck do orig. alemão (1850) Die Sprachen Europas in systematischer Uebersicht. Bonn: H. B. König.) WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. 20 Figura 3: Povos pré-romanização. Europa em 300 A. C. Fonte: <http://historyatlas.wikia.com/wiki/File:Europe-300bc.jpg> Por volta do século III a.C. a região que hoje pertence a Portugal era habitada por muitos povos autóctones. Os iberos eram provavelmente descendentes diretos de homens que viviam em cavernas ainda no neolítico e falavam uma língua não aparentada com o protoindo-europeu, de provável ligação genética com o basco. Habitavam a região da Península Ibérica. Outros povos eram de ligação genética e linguística com os indo-europeus, como os celtas. Esse povo vinha originalmente do centro da Europa, mas desde o século VIII a.C. já dominava quase toda a Europa Ocidental. Alguns empréstimos lexicais das línguas celtas que ficaram depositados na Língua Portuguesa são manteiga e tona. Os topônimos (nomes de lugar) com origem de elementos morfológicos celtas são comuns em Portugal. É celta o elemento –briga (fortaleza), em nomes como Conimbriga, Arcóbriga (atualmente Arcos de Valdez), Lacóbriga (atualmente Lagos), Brigantia (atualmente Bragança). 2 CAPÍTULO PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA 21 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 As palavras carro, caminho, bétula, bragas, camisa, cerveja e gordo também são celtas, mas entraram por via latina. Os iberos também contribuíram com algumas palavras, como: baía, balsa, barro, bezerro, cama, esquerdo, garra, manto, sapo. Podemos dizer que são as palavras de origem mais remota da Língua Portuguesa. O império romano na península ibérica No século III a.C. os romanos já haviam estabelecido um Império que rivalizava com a cidade fenícia de Cartago, cujas ruínas podem ser visitadas hoje na Tunísia, Norte da África. Os cartagineses invadiram o território dos celtiberos, hoje Portugal, e em socorro esses povos pediram ajuda aos romanos que invadiram e dominaram todo o território. Embora as guerras tenham acontecido no século III a.C., a anexação do território hoje português só foi efetivada pelo Império Romano em 197 a.C. Entre os povos pré-romanos que habitavam a região estavam os lusitanos, povo de origem celta que tentou resistir ao Império Romano. Derrotados por Decius Junius Brutus, os sobreviventes dessa região adotaram a língua e os costumes romanos. Deu-se início à romanização do território, do povo, da cultura, e a substituição das línguas anteriores por essa nova língua, o Latim Vulgar ou Latim Imperial, que veio a se tornar a Língua Portuguesa. Os romanos organizaram o comércio, criaram um sistema de correios, implantaram o sistema de serviço militar e construíram escolas que ainda não existiam. 22 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Figura 4: mapa da distribuição das línguas faladas antes da chegada do Latim e localização de inscrições nessas línguas. Fonte:wikipedia O latim clássico e o latim vulgar durante o império romano (séc. III a.C. – v d.C.) Já vimos que os romanos falavam Latim e que essa língua possuía duas formas. Como língua escrita e de cultura, o Latim Clássico permaneceu como língua de estudo por toda a história da humanidade, e, apesar de atualmente não ser mais língua materna de ninguém (língua morta), é estudada nas faculdades de Letras e usada como língua de uso corrente no Vaticano, que conta ainda hoje com um caixa eletrônico com instruções em Latim. Alguns latinistas afirmam que o Latim não é língua morta, mas uma língua imortal. É nessa língua que foram escritas as grandes obras literárias e não literárias dos romanos e de outros povos que foram dominados por eles. É a língua de Cícero, César, Horácio, Virgílio, Ovídio, dentre outros. 23 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 Outra forma da Língua Latina, menos formal, como vimos era o Latim Vulgar. Era falado e compreendido por todos, inclusive pelos letrados que escreviam em Latim Clássico. O Latim Vulgar era usado para que se falasse com os amigos, família, escravos. Os romanos já tinham consciência dessa variação linguística, chamando o Latim Clássico de sermo nobilis e o Latim Vulgar de sermo vulgaris ou sermo usualis. Não se trata de duas línguas diferentes, mas de duas formas de falar a mesma língua. Numa analogia mais atual, poderíamos contrapor o português falado nas favelas, de concordância verbal e nominal mais livre, com variantes de pronúncia como a do rotacismo em “Framengo”, “pobrema”, com gírias e entonação peculiar de falar; e o português formal usado para redigir artigos científicos em universidades, de rigor gramatical à norma culta, à regência e à concordância tradicionais, com vocabulário mais específico do campo da ciência que se estuda, e na sua forma falada com a pronúncia, a ortoepia e a prosódia mais próximas do que os falantes esperam no ambiente e situação comunicativa. Não se trata de duas línguas diferentes, mas de duas formas diferentes de usar a Língua Portuguesa. Agora imagine que a diferença entre o Latim Clássico e o Vulgar eram muito maiores que a do português da favela e a do português da universidade, tanto na fonologia quanto na morfologia, sintaxe e léxico. Tanto o Latim Clássico quanto o Latim Vulgar ou Imperial podiam ser falados ou escritos. Quase tudo que se sabe hoje sobre o Latim vulgar se deve aos documentos deixados nessa variedade de língua. Quanto mais “ignorante” fosse o autor do texto, ou seja, quanto mais distante da escola, mais fiel era o texto em relação às características desse Latim Vulgar. Pessoas com estudo costumavam “corrigir” formas populares, na escrita, influenciados pelos estudos de Latim Clássico, que tomavam como modelo, assim como tomamos o português padrão como modelo quando escrevemos. O Latim Clássico era cultivado em toda a sua correção gramatical, forma e estilo. Sua gramática era complexa, o latim consistia em 5 declinações, 6 casos, 4 conjugações verbais e 3 gêneros (masculino, feminino e neutro). Na fonologia a distinção entre vogal longa e breve era presente. O sistema de casos e declinações se mostra na desinência da palavra, segundo sua função sintática. Uma palavra como puella (menina), por exemplo, se transforma em puellam, se for objeto direto (caso acusativo), ao contrário do português atual, em que as palavras não mudam de forma. Assim, em Latim, a frase “A menina vê o pirata” fica “puella videt piratam”, e “o pirata vê a menina” fica “pirata videt puellam”. Essa desinência –m, que indicava que a palavra tinha a função sintática de objeto direto na frase, e todas as outras desinências de outras funções, permitia que a ordem das palavras fosse alterada à vontade, sem que se houvesse confusão “puella piratam videt” ou “piratam puella videt”, são a mesma coisa. Em português, a simples inversão da ordem das palavras “menina” e “pirata” na frase, já altera o sentido, pois nossa forma de estruturar a sintaxe é SVO (sujeito, verbo, objeto). 24 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Em Latim Vulgar os “erros gramaticais” eram constantes e os casos e as declinações foram se confundindo e se fundindo. O surgimento das preposições ajudaram e enterrar esse sistema. Em alguns séculos os casos nominativo e vocativo se fundiram em um único, o caso reto, e os demais se fundiram no caso oblíquo. Atualmente apenas o romeno conta com o sistema de declinações. Em português há apenas resquícios, ou fósseis gramaticais, como os pronomes pessoais retos e oblíquos, usados em situações sintáticas específicas de sujeito ou objeto. Há ainda o nosso sistema morfológico de formação de plural com acréscimo de –s, herdado do acusativo latino. Em português temos: lobo / lobos (do acusativo latino lupum / lupos) e rosa / rosas (do acusativo latino rosam / rosas). Em outras línguas, como italiano, o plural se forma com alteração da vogal temática, isso porque eles herdaram o seu léxico do nominativo. Em italiano temos: Lupo / lupi (do nominativo latino lupus / lupi) e rosa / rose (do nominativo latino rosa / rosae). Diversas outras alterações fonológicas, sintáticas e lexicais foram ocorrendo no Latim Vulgar ao longo dos séculos, como veremos a seguir. Características do latim vulgar, em relação ao latim clássico e o português Algumas características do Latim Vulgar que o diferenciava do Latim Clássico eram: 1. a preferência pelas palavras compostas, derivadas ou perifrásicas: Latim clássico Latim vulgar Português4 Iste > *accu’iste > isto, este Post > depost > depois Ovis > ovicula > ovelha Spes > *sperantia > esperança Nunquam jam magis > jamais Nunc ac hora > agora 4 Em história da língua, o asterisco (*) marca palavras hipotéticas, ou seja, essas palavras nunca foram encontradas registradas em documentos escritos, mas, devido aos conhecimentos linguísticos dos filólogos essas palavras puderam ser reconstruídas. Deduzimos, então, que elas existiram. O símbolo matemático de maior (>) indica que a forma à direita deriva da forma à esquerda: persicum > pêssego. Quando o símbolo é de menor (<), significa que a palavra da esquerda deriva da palavra da direita: pêssego < persicum. 25 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 2. pelo uso de palavras que representavam ideias diferentes das palavras do Latim literário: Latim clássico Latim vulgar Português Discere aprendere > aprender Equus caballus > cavalo Ludus jocus > jogo Os bucca > boca Ignis focus > fogo Domus casa > casa Magnus grandis > grande Ager campus > campo Pulcher bellus > belo Potare bibere > beber Note que, das palavras do Latim Clássico apresentadas, derivam as palavras portuguesas: discente, equino / equitação / égua, ludo, oral, ígneo / ignição, doméstico / domicílio, magnânimo, agricultura, pulcritude, potável. No campo da fonética, observamos as seguintes alterações: 1. redução dos ditongos e hiatos a simples vogais, fenômeno chamado de monotongação: Latim clássico Latim vulgar Português aurum > orum > ouro praeda > preda > preia parietes > paretes > parede quietus > quetus > quieto duodecim > dodecim > doze battualia > battalia > batalha februarius > febrarius > fevereiro 26 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA 2. transformação ou queda de alguns fonemas: Iustitia > justicia > justiça Coquere > cocere > cozer Riuus > rius > rio 3. queda dos sons finais (fenômeno chamado apócope) est > es > é decem > dece > dez 4. perda da aspiração representada no Latim Clássico por h5: homo > omo > homem habere > abere > haver, ter hodie > odie > hoje Fonte: Coutinho (1976). Além de muitas outras alterações de diversas categorias. Na morfologia, além da redução das cinco declinações do Latim Clássico para três, e da redução de casos, como visto anteriormente, o uso das preposições passou a ser essencial e elas se proliferaramna língua. Houve ainda a confusão dos três gêneros gramaticais (masculino, feminino e neutro), tornando-se as palavras neutras em masculinas, quando no singular, e femininas, quando no plural. Isso foi o gérmen para a redução de gêneros para apenas masculino e feminino, como ocorre em português. Houve ainda o aumento de uso dos demonstrativos ille, illa, e do numeral unus, una, e seus usos como artigos definidos e indefinidos, respectivamente. Em Latim não existiam artigos, palavras de outras classes gramaticais passaram a ocupar essa função. A forma comum ille e illa, deram em português o e a, em espanhol el e la, em francês le e la. A dificuldade em se diferenciar o artigo indefinido um do numeral um, em português, se deve à origem comum das duas palavras no mesmo numeral latino. Morfologicamente, houve ainda diversas outras alterações nas conjugações dos verbos, nos tempos e nos modos. 5 Não devemos jamais confundir aqui grafemas (letras) com fonemas (sons). Nossa ortografia sempre foi muito confusa ao longo da história da língua, não havia uniformidade, ortografia oficial, sequer dicionários e gramáticas existiam antes do século XVI. Uma palavra com h mudo poderia ser escrita com h por uns e sem h por outros. No caso da letra <h>, esta se manteve na grafia da Língua Portuguesa mesmo passando por diversas reformas ortográficas. Se alterassem palavras de uso corrente como “homem”, “hoje” haveria muito estranhamento. Na última reforma ortográfica, em 2009, em Portugal caíram os “h” de “herva” e “húmida”, que já haviam sido cortados no Brasil em reformas anteriores. 27 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 Na sintaxe, podemos dizer que a principal alteração do Latim foi a generalização da ordem direta. Em Latim, como vimos anteriormente, as palavras mudavam de desinência de acordo com a função sintática, a ordem das palavras era livre, pois sempre se poderia identificar o sujeito e o objeto, fosse qual a posição das palavras na frase. Com o fim do sistema de declinação no Latim Vulgar, a ordem SVO (sujeito-verbo-objeto) passou a ser a principal, como é em português hoje. Outras alterações foram o gradativo emprego mais frequente das preposições em vez dos casos: liber de Pedro (livro de Pedro) em vez de Petri liber, além da mudança de regência de vários verbos e pelas construções analíticas. A queda do império romano e as invasões bárbaras Em 476 d.C. Roma foi invadida pelos hérulos, povo germânico originário do sul da Escandinávia. Esse é o marco, na História da Humanidade, que estabelece o fim da Idade Antiga e o início da Idade Média. Usando esse paralelo, podemos marcar aí o fim do Latim Imperial e o início dos romances, línguas derivadas desse Latim Vulgar, dentre elas a nossa língua. Pouco antes da queda do Império Romano, em 409 d.C., a região da Península Ibérica foi invadida por diversos povos bárbaros: vândalos, suevos e alanos, e mais tarde os visigodos. Os vândalos (do alemão antigo “wandeln” – vagar) eram uma tribo germânica que chegou a criar um estado no Norte da África, em Cartago. Em 455 invadiram Roma, saqueando a cidade, espalhando terror e destruindo várias obras de arte que se perderam para sempre. Daí o nome “vândalo” ser usado atualmente como sinônimo de destruidor de bens públicos. Os alanos eram um povo de origem iraniana que, tendo suas cidades destruídas pelos hunos, vagaram em direção ao oeste da Europa entrando em confronto direto com os romanos. Os suevos eram originários do território que hoje pertence à Alemanha, e chegaram, no século V, a fundar sua capital onde hoje é a cidade de Braga (Portugal). As influências linguísticas desses povos são poucas. Acredita-se que a diferenciação entre o espanhol e o galego-português se deu por influência dos suevos. Os povos bárbaros assimilaram rapidamente a língua e a cultura romanas, como Rodrigo, o último rei godo, já cristão e falante de romance, que lutou contra a invasão árabe até 711, mas, com a queda do Império Romano e o fechamento das escolas, o Latim Clássico passou a ser menos cultivado que o Latim Vulgar, isso acelerou a dialetação e a divisão das línguas românicas. Algumas contribuições das línguas bárbaras no léxico português são: guerra (wuerra), elmo (helms), espora (spaura), loja (laubja), trégua (triggwa), fresco (frisk), branco (blank). Além dos nomes próprios Rodrigo, Afonso, Álvaro, Fernando, Gonçalo, Henrique. 28 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Na morfologia, a contribuição é mínima, como os sufixos -engo (monstrengo, solarengo) e provavelmente -arra (bocarra). O domínio árabe (711-1492) Em 711, muçulmanos originários do Maghreb (região que cobre todo o norte da África com exceção do Egito), invadiram a Península Ibérica. Falando árabe e berbere, línguas não aparentadas com o protoindo-europeu, de religião islâmica, de pele escura ou negra, eram chamados pelos europeus de “mouros”. Em 711, sob comando do general Tárique, tropas árabes invadiram a Península Ibérica, derrotando o cristão Rodrigo, o último rei dos Visigodos. Os mouros dizimaram os alanos rapidamente e expulsaram os outros bárbaros. Os vândalos foram para a África do Norte. Os suevos resistiram por um bom tempo. O reino suevo que era extenso, em 570, reduziu-se à Gallaecia. Os árabes dominaram a região por mais de oito séculos, quando foram lentamente expandindo sua língua, religião e costumes nessa nova terra designada por eles Al-Andalus. Figura 5: a Batalha de Guadalete, no sul da Espanha, aconteceu em 31 de julho de 711. Os mouros muçulmanos venceram os visigodos, dando início ao período de domínio árabe na Península Ibérica. Muitos godos sobreviventes, sob domínio árabe e seduzido por eles, adotaram o Islã e a Língua Árabe, esquecendo a Latim Vulgar que falavam, passaram a se chamar moçárabes. Os árabes tinham uma cultura muito superior à existente na Península Ibérica. A Ciência, as Artes e as Letras estavam muito à frente, como a Medicina, a Filosofia, a Matemática, a História. Os cientistas árabes Avicena e Averroés foram os responsáveis por difundir a Filosofia de Aristóteles na Europa. Os califas, em seus palácios, organizaram grandes bibliotecas. 29 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 A agricultura, o comércio e a indústria floresceram nesse período. Os árabes trouxeram plantas desconhecidas na Europa, além de tapeçarias e objetos luxuosos. Figura 6: a expansão árabe. O idioma árabe foi adotado com língua oficial, mas o romance (Latim Vulgar) continuou a ser falado e modificado pelas classes baixas do povo subjugado. Um pequeno grupo cristão e falante de romance, não querendo se submeter aos árabes, se refugiaram nas montanhas das Astúrias. Lá começou a se formar grupos de rebeldes que lutaram contra os muçulmanos durante a Reconquista. Em 1492, os militares dos reis católicos Fernando e Isabel apoderaram-se de Granada, último reduto mouro, encerrando a era árabe na Espanha. A Língua Árabe, apesar de se manter em posição política ao Latim Vulgar, não o influenciou na fonologia, morfologia ou sintaxe, pelo menos segundo se sabe até hoje. Contudo, no léxico a influência foi muito grande. Segundo Vargens (2007), há atualmente mais de 3 mil palavras de origem árabe em português. Numa contagem feita no dicionário eletrônico Houaiss, o número pode chegar a 7 mil. Seguem algumas dessas palavras de uso corrente, e a época em que entraram na língua: Substantivos 1. no campo semântico da administração pública: Alcaide, açoite, almoxarife, aduana, alforria, algoz, alvará, assassino, califa, masmorra, sultão, xeque, xerife (entre os séc. XI e XV); aval, emir, leilão, tarifa (após a Reconquista). 30 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA 2. no campo semântico da guerra: Alferes, almogavre, alarde, aljava, almirante, alvoroço, adarga, algema, arsenal, refém, zaga (entre os séc. X e XV); calibre, tarimba, bodoque, taifa (após a Reconquista). 3. no campo semântico das relações sociais:Alcaguete, alcorão, alvaraz, alvíssaras, atabaque, alaúde, alcunha, alforra, algazarra, almanaque, azar, fulano, máscara, múmia, xadrez, xarope (entre os séculos XI e XV); avaria, enxaqueca, faquir, mate, muçulmano, elixir, magazine, cacife e a expressão idiomática “fazer sala” (após a Reconquista). 4. no campo semântico da vida privada: Almofada, argola, enxoval, jarra, taça, alfinete, capuz, cuscuz (até o séc. XV); acém, aletria, alicate, algibeira, almôndega, cabide, ceroulas, escabeche, fatia, garrafa, maromba, jarro, nuca, sofá, xale (após a Reconquista). 5. na nomenclatura rural e urbana, na astronomia e fenômenos da natureza: Arrabalde, alcova, aldeia, alcântara, alicerce, andaime, arrecife, bairro, chafariz, rincão, tufão (até o século XV); azulejo, caravana, zênite (após a Reconquista). 6. na flora e agricultura: Açafrão, algodão, alface, açude, azeite, açúcar, alfafa, azeitona, almeirão, arroz, alcaçuz, aroeira, berinjela6, cenoura, damasco, gergelim, haxixe, laranja, limão, safra, tâmara, tamarindo (até o século XV); acelga, açucena, alcachofra, alecrim, alfazema, café, espinafre, jasmim, lima (após a Reconquista). 7. na química: Anil, alcatrão, âmbar, azinhavre, cânfora, marfim (até o séc. XV); almíscar, alquimia, álcool, elixir, giz, soda, talco, zarcão (após a reconquista). 8. Na fauna, pesca e pecuária: Anta, alazão, atum, cherne, gazela, girafa lacrau, papagaio, rês (até o séc. XV); alcateia, alcatra, cáfila, javali (após a Reconquista). 9. na matemática, pesos e medidas: Alqueire, arroba, cifra, quintal, resma (até o séc. XV); algarismo, álgebra, quilate, zero (após a Reconquista). 6 Segundo regras da ortografia da Língua Portuguesa, as palavras de origem árabe devem ser grafadas com J, não G. Contudo, dicionários como Houaiss registram a forma “beringela”, a mais usada em Portugal. 31 PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA • CAPÍTULO 2 10. no comércio e indústria: Açougue, alfaiate, alfândega, armazém, cetim (até o séc. XV); alambique, alicate, rebite, sucata (após a Reconquista). Além dos substantivos, entraram na Língua Portuguesa: 1. as cores (adjetivos): azul (séc. XIII), turqui (séc. XIV), lilás (séc.XIX). Outros adjetivos são baldio e mesquinho. Alguns adjetivos estão atualmente em desuso, como saloio, chué, zaino. 2. os verbos: acelar, atarracar, embelecar, safar (séc. XV e XVI). 3. outros elementos gramaticais como a preposição até (séc. XII), o advérbio debalde (séc. XVI), que significa em vão, inutilmente; as interjeições arre e oxalá (séc. XVI). Como pôde ser visto, a imensa maioria das palavras árabes em nossa língua são substantivos iniciados por “al” ou “a”. Isso se deve ao fato de que as palavras vieram coladas com o artigo inicial árabe “al” que se alterava foneticamente diante de algumas palavras como “az-zeitona”. Em outras línguas, como inglês ou francês, as palavras árabes entraram sem o artigo, como: algodão (<al-kutan), em inglês cotton, em francês coton. Açúcar (<as-sukar), em inglês sugar, em francês sucre. Arroz (<ar-roz), em inglês rice, em francês riz. Isso não quer dizer que outras palavras tenham entrado nessas línguas sem artigo. Outras, sequer entraram, como azeitona, em inglês e francês é olive, confronte a forma portuguesa oliveira. Bibliografia ANDRADE, A. C. S. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Castelo Branco. 2008. Disponível em: <http://ucbweb.castelobranco.br/webcaf/arquivos/letras/literatura/5_ periodo/Historia_da_Lingua_Portuguesa.pdf> Acesso em: junho de 2014. ASSIS, M. C. História da língua portuguesa. Disponível em: <http://portal.virtual.ufpb.br/ biblioteca-virtual/files/histaria_da_langua_portuguesa_1360184313.pdf> Acesso em junho de 2014. CAMARA JR., J.M. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975. CARVALHO, C. História interna da língua portuguesa. UFRJ. Disponível em: < http://www. filologia.org.br/abf/volume2/numero2/05.htm> Acesso em junho de 2014. CASTRO, Ivo. Curso de história da língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta. 1991. 32 CAPÍTULO 2 • PROTO-HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1976. SAUSSURRE, F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006. SILVA, Rosa V. M. O português arcaico: fonologia. São Paulo: Contexto, 1991. TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2004. VARGENS, J. B. M. Léxico Português de origem árabe. Rio Bonito: Almádena, 2007. 33 Apresentação Neste capítulo destacamos uma fase da história da Língua Portuguesa que compreende do século VIII (com o início das guerras da Reconquista) e o final do século XII (com o surgimento do Reino de Portugal e dos primeiros textos em galego-português). Nesse período a Península Ibérica passou por muitas guerras de Reconquista, em que territórios antes ocupados pelos mouros eram tomados pelos cristãos. Destacamos a ortografia medieval, a fonética e a fonologia. Destaca-se, também o surgimento de novos encontros consonantais com surgimento de novos fonemas e dígrafos. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Introduzir o panorama histórico e as transformações linguísticas antes e durante a reconquista dos séculos VII ao XII. » Apresentar o surgimento do Reino de Portugal e o galego-português. » Identificar a ortografia medieval, fonética e fonologia. » Conhecer a morfologia, a sintaxe e o léxico no contexto da separação do galego e do português. » Compreender o português pré-clássico. O português arcaico A segunda fase da história da Língua Portuguesa vai do século XII (com o surgimento dos primeiros textos em galego-português) até meados do século XVI (com a já definitiva divisão 3CAPÍTULODO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS 34 CAPÍTULO 3 • DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS do galego português em duas línguas). Esse período de quatro séculos pode ser dividido em dois: o galego-português, português trovadoresco ou português antigo (de aprox. 1200 até aprox. 1350) e o português pré-clássico, português comum ou português médio (de aprox. 1350 a aprox. 1550). Esse grande período de quatro séculos, aproximadamente, se inicia ainda durante o domínio árabe, efetivamente terminado em 1492 na Espanha, mas bem antes em Portugal, já que os mouros foram sendo expulsos do norte para o sul gradualmente ao longo dos anos e de inúmeras batalhas vencidas e perdidas, com avanços e recuos, e ocupações de territórios anteriormente ocupados ou desocupados. Ainda no século XII, é formado o Estado Português e são escritos os primeiros textos em uma língua que já podia ser considerada galego-português. Já no século XVI essa língua se mostra dividida em duas (o português moderno e o galego moderno). Temos como primeiros marcos do português moderno a publicação da primeira gramática da Língua Portuguesa (1540), de João de Barros e a publicação do poema épico Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões, considerado por muitos a maior obra-prima da Língua Portuguesa, que já estava consolidada nessa época e chamamos de “português moderno”, que em sua fase inicial, pode ser chamado de “português clássico”. Para compreender a formação da língua nesse período, voltaremos alguns anos até o fim do Império Romano (séc. V) e a Invasão Árabe (séc. VIII), para observar as alterações linguísticas desse período. Em seguida, veremos a Luta pela Reconquista e a expulsão gradativa dos árabes para o sul. Nesse período se falava o romance no norte, o árabe no sul, além do moçárabe, um contínuo de dialetos de origem latina. Transformações linguísticas antes da reconquista Voltando um pouco no tempo, durante o Império Romano, como vimos no capítulo 1, falava-se o Latim em duas formas, o sermo urbanus (Latim Clássico) e sermo vulgaris ou sermo plebeius (também chamado de Latim Vulgar ou Latim Imperial). Essas variantes populares eram diferentes de país para país. No século V a VII, como fim do Império Romano, o Latim falado é designado como “Latim tardio”. Entre os séculos VIII e IX, no início da Invasão Árabe, essas línguas ou dialetos já estavam tão diferentes do Latim tardio, que eram línguas de transição entre este e as línguas romances da Idade Média, podendo ser chamadas de protorromances. Nos séculos XII e XIII, essas línguas derivadas do Latim já eram designadas com os nomes das regiões onde eram faladas: aragonês (em Aragão), castelhano (em Castela), catalão (na Catalunha), francês (na França). Isso se deve principalmente a questões políticas, o início dos reinos e o desejo de criar identidades nacionais. 35 DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 3 Tabela 5: o Latim e algumas línguas românicas modernas. Latim Português Galego Leonês Castelhano Catalão Francês Italiano Vêneto facere fazer Facer facere Hacer fer faire Fare fare filius filho Fillo fiyu Hijo fill fils Figlio fiolo fames fome Fame fame Hambre fam faim Fame fame sus porco porco, gochu cerdo, porc cochon maiale porselo Cocho Puerco porc vetus velho vello vieyu viejo vell vieux vecchio vecio pluere chover chover chovere Llover ploure pleuvoir piovere piòvare Não há muitos documentos escritos nessas primeiras fases de evolução da Língua Portuguesa. Contudo, por observações nas línguas irmãs, podem-se fazer muitas deduções. Em Latim Imperial havia um sistema vocálico com vogais longas e breves que já havia se reduzido, nessa época, ao sistema vocálico de sete vogais, como temos hoje em português: a vogal baixa [a], as vogais altas [i] e [u] e as quatro médias, e fechado [e], e aberto [ε]7, o fechado [o] e o aberto [ɔ]8. Entre as consoantes, houve muitas alterações fonéticas, e é desse período (séc. V ao VIII) que, com a transformação gradual do Latim Imperial ao protorromance, há uma divisão genética nas línguas. De um lado, o protorromance do qual descende o galego-português, no oeste da Península. Do outro lado, surgem desse ancestral comum línguas como o leonês e o castelhano, no centro da Península. É dessa época que os grupos consonantais do Latim <cl> e <ct> se transformam. Latim clássico Latim vulgar galego-português castelhano oculum > oc’lu > olho ojo auricula > orec’la > orelha oreja vetulum9 > vec’lu > velho viejo 7 Este é um símbolo do alfabeto fonético internacional que representa o som do <e> aberto, como em café, bela, mel, ao contrário do [e] fechado de cera, dedo, você. 8 Este é um símbolo do alfabeto fonético internacional que representa o som do <o> aberto, como em Copa, bola, cipó, ao contrário do [o] que representa o <o> fechado de bolo, avô. 9 Em outra tabela demos “vetus” e nesta “vetulum”, no primeiro caso, temos o nominativo, no segundo, o acusativo, a forma real da qual descendem a maior parte das palavras em português. 36 CAPÍTULO 3 • DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS Com a queda das vogais entre consoantes, devido à pronúncia desleixada, o que é natural, foram-se formando no Latim Vulgar os grupos consonantais <cl>, que se transformaram, foneticamente, em palatais em português e em africadas em castelhano [d3]10 escrito <j>. Outra alteração comum foi a do grupo <ct> transformado inicialmente em <jt>. Em espanhol, a evolução continuou, criando-se a palatal <tʃ>. Latim clássico Latim vulgar galego-português castelhano nocte > *nojte > noite noche lectu > *lejto > leito lecho lacte > *lajte > leite leche factu > *fajto > feito hecho É desse mesmo período que ocorre outra importante transformação que diferencia o português do espanhol, a ditongação que passou a acontecer na segunda língua e foi ignorada em galego-português. Latim clássico Latim vulgar galego-português castelhano pedem > pede > pé pié decem > dece > dez diez novem > nove > nove nueve fortem > forte > forte fuerte A luta pela reconquista (séc. vIII a Xv) Durante a invasão árabe, cristãos falantes de Latim Vulgar se refugiaram ao norte, numa região montanhosa que deu origem à maior fortaleza de resistência aos mouros. Este local era sagrado para os cristãos, já que em Santiago de Compostela, na Galiza, está sepultado São Tiago, um dos doze apóstolos de Jesus. Logo após a vitória dos mouros sobre os cristãos na Batalha de Guadalete, que vimos no capítulo anterior, foi formado ao norte da Península Ibérica o Reino das Astúrias, que durou de 718 a 925. 10 Este símbolo [Ʒ], do alfabeto fonético internacional, chama-se “gê” e representa o som do <j> em palavras como janta, hoje, ou <g> em gente, gelo. Este fonema é chamado de fricativa alveolar vozeada ou fricativa palatal sonora e se contrapõe à sua parte surda, o fonema [ʃ], pronuncia-se “xê”, e representa o som do nosso ch em cheiro, ou sh inglês em shopping. Já a combinação [dƷ] está presente hoje em português apenas na variação dialetal carioca e de outros estados como em “dia” em contraposição à pronúncia dos nordestinos. Também existe em inglês, como o J em Jackson, Joe etc. A combinação [tʃ] está presente em palavras como tchau, tcheco, e na pronúncia carioca em tia. 37 DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 3 Figura 7: evolução dos territórios árabes (Al-Andalus) e cristãos (reinos diversos) ao longo da Reconquista. Os cristãos foram ocupando todo o norte da Península Ibérica. Como a Reconquista foi alargando muito o território desse reino, os três filhos do rei Afonso III, o Grande, decidiram dividir o território em três reinos irmãos: Galiza, Astúrias e o Reino de Leão. Esses reinos foram expandindo territórios, com a gradual expulsão dos árabes para o sul. Estiveram unidos e depois novamente separados, dando origem aos reinos de Navarra, Aragão e Castela, que derivou em reino de Leão e Castela e o Condado Portucalense, que por sua vez derivou no reino de Portugal. Aqueles que lutavam nessas batalhas, do lado cristão, eram motivados pelo desejo que reconquistar o território que lhe fora tomado pelos muçulmanos. Embora as batalhas estivessem envoltas em rituais, como o toque das trombetas e o estandarte desfraldado, a motivação religiosa do cristianismo só veio com as Cruzadas (1096), que trouxe a ideia da guerra santa de cristãos contra muçulmanos. Coimbra, em 1064, foi uma das cidades reconquistadas por Fernando, rei de Leão e Castela. Em 1085, os reinos ibéricos já haviam reconquistado mais da metade da Península Ibérica. Ao norte de Portugal, às margens do rio Douro, já existia desde os tempos do Império Romano uma cidade chamada Portus Cale11, que viria a designar depois todo o território ao redor, é dessa palavra que deriva o nome Portugal. 11 A etimologia é confusa e há várias hipóteses. Uma das mais aceitas é a de que a palavra signifique “porto belo” do Latim “portus” e do grego” kállis”. 38 CAPÍTULO 3 • DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS Transformações linguísticas durante a reconquista Entre os séculos VIII e XII, que vai da invasão árabe até o surgimento dos primeiros textos do galego-português, muitas foram as transformações ocorridas no romance do qual descende nossa língua. Pode-se dizer que foi nesse período que o galego-português foi formado, e só após a expulsão dos árabes e consolidação do Estado de Portugal é que foram registrados os primeiros textos em galego-português. São poucos os registros que temos do período anterior à formação do galego-português. Muitos textos redigidos nessa época trazem “erros” que já deviam transparecer as futuras formas do português. Eram textos com tantos erros gramaticais, que esse romance também é chamado de “Latim bárbaro”. Alguns exemplos são “abelia” (abelha), derivada de “apicula” em vez da forma romana “apis”, e “conelium” (coelho), derivado do Latim cuniculum. Outra grande transformação foi a mudança dos grupos consonantais iniciais do Latim <cl>, <pl> e <fl> na africada [t∫] grafado <ch>. Em espanhol e leonês ocorreu outro fenômeno, a consoante inicial caiu, permanecendo o <l> que se palatalizou em [l]12 grafado <ll>. Latim galego-português castelhanoplenu che-o lleno planu chão llano plicare chegar llegar clamare chamar llamar flagare cheirar (não atestado) Em outros casos, esses grupos iniciais permaneceram em castelhano, mas sofreram, em galego-português, um processo chamado “rotacismo”, a transformação de [l] em [r]. Latim galego-português castelhano placere prazer placer clavu cravo clavel flacu fraco flaco 12 Este símbolo do alfabeto fonético [λ] se chama “lhe” e representa o som do “lh” português ou do “ll” espanhol. 39 DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 3 Assim como na palavra de origem germânica “blank” que deu “branco” em português e “blanco” em castelhano. Esse fenômeno permanece até hoje. Quando um falante de português fala “pranta”, “framengo”, “pobrema” está dando continuidade a um fenômeno fonético que acompanha a língua desde a formação do galego-português. Houve casos, contudo, em que esses grupos consonantais permaneceram: pleno, clima, flauta, bloco. Uma explicação para esse fenômeno, é que palavras de uso mais erudito e menos popular estão menos sujeitas às transformações, justamente porque não passam pela boca do povo. Durante o período da reconquista, aceleram-se todas as transformações morfológicas e sintáticas já mostradas no capítulo anterior, com a simplificação do sistema de desinências latino. No vocabulário, houve grande aporte de palavras árabes, como também foi visto no último capítulo. Com a reconquista dos territórios do norte e a formação do Estado Português, a língua que se havia formado nesse período, o galego-português, passa a ser cultivada com muito mais documentos escritos, o que nos ajudou a compreender melhor essa fase. O condado portucalense (868-1139) Durante a reconquista, várias monarquias se formaram ao norte da Península Ibérica, que foram ora se unindo, pelo interesse comum em expulsar os muçulmanos, ora brigando entre si, por questões politicas e dinásticas. Desde 868 já existia uma pequena região denominada Condado Portucalense que era governada por condes, e, embora gozasse de autonomia administrativa, era vassalo dos reinos vizinhos. Depois de desentendimentos, uniões e divisões com o reino da Galiza, reemergiu em 1093, um novo Condado Portucalense, governado por Henrique de Borgonha, como oferta do rei Afonso VI de Leão, pelo auxílio com a Reconquista. Este condado era bem maior e incluía o antigo condado de Coimbra. Em 1139, Afonso Henrique, filho de Dom Henrique de Borgonha foi declarado rei internamente. Nascia aí o Reino de Portugal, reconhecido apenas em 1143 pelo reino de Leão em Castela, e em 1179 pelo Papado, a autoridade máxima na época para conflitos internacionais. 40 CAPÍTULO 3 • DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS Figura 8: o Condado Portucalense, os reinos ibéricos e o condado da Catalunha (cristãos) e Al-Andalus (muçulmano) em 1085. Surgimento do reino de portugal (1139) Após a vitória na batalha de São Mamede (1128), Afonso Henrique se declarou independente de seu primo, o rei de Leão e Castela, dando início à Independência e formação do Estado Português. Portugal foi a primeira monarquia a se estabelecer, devido, sobretudo, às vitórias das guerras da Reconquista. Nesse novo Estado, agora com poder centralizado e território delimitado por fronteiras políticas, passou a ser cultivada a nova língua oficial, o Português, ou mais precisamente, o Galego-Português. Como visto anteriormente, muitos consideram o primeiro texto escrito em Português Arcaico “Ora faz ost’o senhor de Navarra” de João Soares de Paiva (1196) e o primeiro texto não literário em português “Testamento de D. Afonso II” (1214). Essa forma mais antiga de Português Arcaico, o Galego-Português, é cultivada pelo novo país criado, o Reino de Portugal, e passa a ser usado em leis, testamentos, poesia, cartas etc. Por volta dessa época, as fronteiras entre Portugal e Galiza já estavam definidas, e os portugueses passaram a conquistar o sul do território, expandindo sua língua para essa parte. Em 1249, os 41 DO LATIM AO GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 3 portugueses conquistaram Faro, ao Sul, e as fronteiras de Portugal já eram mais ou menos como hoje. Guimarães, no extremo norte, deixa de ser a capital do país, transferida para Lisboa em 1255. É importante sempre lembrar que a Língua Portuguesa nasceu no norte e foi gradativamente levada para o sul, onde se falavam dialetos moçárabes. 42 Neste capítulo destacamos uma fase da história da Língua Portuguesa que vai do século XII (com a formação do Reino de Portugal e dos primeiros textos em Galego-Português) até o século XV (quando termina o Português Clássico e começa o Português Moderno). Destacamos a ortografia medieval, a fonética e a fonologia. Destaca-se também o surgimento de novos encontros vocálicos. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Apresentar o Galego-Português e sua literatura. » Identificar a ortografia, fonética e fonologia Galego-Portuguesa. » Compreender a ortografia atual com base na evolução fonológica. » Compreender o fenômeno de nasalização e a formação do plural.Conhecer a contribuição das línguas asiáticas e ameríndias para o léxico português. O galego-português Quase tudo que sabemos hoje sobre o Galego-Português medieval se deve aos textos que foram deixados por seus primeiros cultores. Com a formação do Estado Português houve grande florescimento da literatura, nascida inicialmente como poesia, tendo a prosa surgido apenas no século XIV. A poesia lírica medieval dos trovadores era cultivada em três tipos principais de poema: as cantigas d’amigo, as cantigas d’amor, as cantigas de escarnho (escárnio) ou maldizer. Nas cantigas d’amigo a voz que fala (eu-lírico) é de uma mulher, embora a autoria seja masculina, tratavam de amor e do sofrimento da mulher pelo seu amigo (namorado). A palavra amigo tinha também o sentido de namorado, veja que a raiz de ambas as palavras é am-, de amor. Os traços linguísticos desses poemas são populares. 4CAPÍTULOO GALEGO-PORTUGUÊS 43 O GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 4 Nas cantigas d›amor, a voz que fala é de um homem e se dirige à sua mulher amada. A inspiração poética é provençal, a linguagem mais erudita. As cantigas d’escarnho ou maldizer eram poemas satíricos, que escarneciam das pessoas e usavam termos e linguagem muitas vezes grosseiros, incluindo palavrões. Além dessas cantigas, foram deixados muitos textos não literários em galego-português, como testamentos, títulos de venda, foros, correspondências privadas etc. D. Dinis (1261-1325), sexto rei de Portugal e poeta que produziu muitas cantigas d’amigo e d’amor, foi o responsável pela difusão e consolidação do Galego-Português medieval, tornando-a língua obrigatória para redação de todos os textos oficiais do governo. No final do período do Galego-Português e início do Português Pré-Clássico começaram a ser produzidas as obras literárias em prosa nesta língua. Ortografia medieval Com a produção literária, veio o início da normatização da ortografia, até então confusa e sem paradigmas, cada um escrevia como desejava. Nessa época, já se usava o dígrafo <ch> para o fonema <tʃ>, representado hoje por <tch> em tchau, tcheco. Esse é o mesmo fonema existente em espanhol, com em mucho [mutòo], noche [notòe]. Assim, chuva se pronunciava “tchuva” em Galego-Português e Português Pré-Clássico. Esse [t] inicial foi perdido apenas nos séculos seguintes. O fonema [∫] que é representado hoje pelo dígrafo <ch> de chuva, era representado nessa época apenas pela letra x. Daí, essa confusão existente hoje em nossa ortografia entre <ch> e <x> com o mesmo som, isso se deve às alterações fonéticas ocorridas na língua, com permanência das grafias originais. Após 1250, os dígrafos <nh> e <lh> passam a ser usados para representar os mesmos sons que representam hoje. As palavras que hoje terminam em <ão> tinham outras terminações, dependendo de sua origem latina. Havia, nesse ponto, grandevariação de grafia. Razão, por exemplo, pronunciada na época raz[õ], podia ser grafada: razon, razom, razõ. O til <~>, símbolo derivado de um pequeno <n>, indicava que ali havia nasalização, ou seja, originalmente havia uma consoante nasal que havia caído. Palavras que eram grafadas com -n final, como cantan, venderan, foram gradativamente sendo escritas com -m final, mantendo-se essa grafia até hoje. 44 CAPÍTULO 4 • O GALEGO-PORTUGUÊS Fonética e fonologia Em Galego-Português já existia um sistema vocálico idêntico ao nosso, com sete vogais orais. Não havia ainda, contudo, a redução de <o> para <u> em final de palavras, com o em “campo” que pronunciamos [kãpu]. Já a redução de <e> para <i> era presente, mas instável. O sistema de consoantes também já era quase idêntico ao nosso. As exceções estão em fonemas, hoje inexistentes, representados por letras diferentes. Hoje, palavras como “coser” e “cozer”, “tacha” e “taxa” são homófonas, têm a mesma pronúncia, mas no Galego-Português essa confusão não acontecia. As palavras “cem” e “sem”, naquela época “cen” e “sen”, se pronunciavam de formas diferentes, a primeira com [ts], a segunda com [s], não se confundindo os grafemas <c> e <s>. As palavras “cozer” e “coser” se pronunciavam, respectivamente, co[dz]er e co[z]er. Sendo o grafema <z> representante de um fonema <dz> atualmente inexistente. Foi a queda desse <d> inicial que fez com que <z> e <s> intervocálico tivessem o mesmo som em português moderno. O <g> antes de <e> e <i> e o <j> também não tinham os mesmos sons que hoje, aproximando-se mais da atual pronúncia em inglês em “Jackson”, representamos esse fonema como [dƷ]. Esse [d] inicial também se perdeu ao longo dos séculos, ficando as palavras com a pronúncia atual. Esse fonema depois ensurdeceu no galego, ficando [ʃ], atualmente, em galego esse fonema é grafado com <x>: xente, relixión. A queda do -n- intervocálico Por volta do século XI começou a acontecer um fenômeno importantíssimo, que ajudou a diferenciar mais o Galego-Português do português moderno, a queda do -n- intervocálico. Palavras com -n- entre vogais, como vinu, manu, luna, foram perdendo o -n- na pronúncia, que por sua vez nasalizava a vogal anterior. Aos poucos, essa nova pronúncia ia sendo registrada numa nova ortografia, mas com um til sobre a vogal anterior ao -n-, mostrando assim que havia, na época, uma nasalização. Latim Galego-português Português Vinu vĩo vinho manu mão mão luna lũa lua 45 O GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 4 Pela metrificação dos versos nos poemas medievais, percebemos que nessas palavras havia hiatos. “Mão”, por exemplo, tinha duas sílabas: “mã-o”. Note que em vinho, a nasalização do i gerou uma palatalização, e a entrada do <nh>. Em lua, a nasalização desapareceu, tendo-se mantido o hiato e as duas sílabas, como em Latim. Já em mão, o hiato se desfez ao longo do tempo, tendo a palavra se tornado um monossílabo. Surgimento de novos encontros vocálicos A queda de fonemas e a reorganização dos fonemas nas palavras fez com que novos encontros vocálicos surgissem. Muitos hiatos, nascidos da queda de consoantes que separavam essas vogais, vieram posteriormente a desaparecer. Latim galego-português português magister > maestre > mestre legere > leer > ler credere > creer > crer malu > mao > mau colore > coor > cor *colobra > coobra > cobra Morfologia, sintaxe e léxico Do Latim ao Galego-Português, além das alterações na morfologia e sintaxe, já mostradas anteriormente, houve a reestruturação do sistema verbal, com o fim do futuro simples (amabo) e a criação do futuro composto com o verbo haver (amare habeo). Essa forma composta no romance deu em Galego-Português (amar hei), ortograficamente registrado hoje (amarei). O futuro composto se tornou simples com o tempo. Hoje, temos a forma composta do futuro (vou amar) no Português informal. Se daqui a alguns séculos, os falantes perderem a consciência da presença do verbo auxiliar, e houver a aglutinação fonética das duas palavras numa única, voltaremos a ter uma forma simples. O movimento de alteração das línguas é algumas vezes pendular. Uma importante característica morfológica do Galego-Português que já o diferenciava do castelhano e o diferencia do português moderno, é o sistema de formação de plural das palavras terminadas em –l ou –ão. 46 CAPÍTULO 4 • O GALEGO-PORTUGUÊS Galego-português português moderno castelhano singular/plural singular/plural singular/plural sinal / sinaes sinal / sinais sinal /sinales cruel / cruees cruel / cruéis cruel / crueles Sendo que, inicialmente, havia hiato (sina-es, crue-es), que se ditongou como o tempo. Quanto ao final –ão em Português, como em mão, cão, leão, temos diferentes origens do Latim e, por isso, diferentes formações de plural. Os três exemplos dados vieram de palavras com terminações diferentes em Latim, respectivamente “manu-“, “cane-“, “leone-”. Houve, inicialmente, uma queda no –n- intervocálico, que nasalizou a vogal anterior. Daí, as diferentes formas de formar o plural em –ão: ãos, -ães, -ões, como em mãos, cães, leões, dos plurais “manos”, “canes”, “leones”. Além do aporte lexical do Latim Clássico, do Latim Vulgar, do árabe, como já visto, nessa época o galego-português recebeu vocabulário do provençal (assaz, alegre, manjar, rouxinol, estrofe, trovador) e do francês (dama, sage, maison). Separação do galego e do português Com a divisão política, veio a divisão do Galego-Português em duas línguas irmãs. Essa divisão começou ainda no século XI, e gradualmente as línguas foram se distanciando na fonologia, morfologia, sintaxe, léxico e ortografia. Enquanto em português as terminações –on, -an se transformaram em –ão, permaneceram em galego. Houve ainda em galego o ensurdecimento das fricativas sonoras –z-, -s-, -j-. Enquanto o português sofria mais influências lexicais árabes, o galego era fortemente influenciado pelo castelhano e leonês. Algumas diferenças entre o Galego-Português, o galego moderno e o português moderno podem ser observadas pelo exemplo a seguir. Galego-português Pois ante vós estou aqui Senhor deste meu coraçom, Por Deus, teede por razom, Por quanto mal por vós sofri, De vos querer de mim doer Ou de me leixardes morrer. 47 O GALEGO-PORTUGUÊS • CAPÍTULO 4 Português moderno Pois ante vós estou aqui Senhor deste meu coração, Por Deus, tende por razão, Por quanto mal por vós sofri, De vos querer de mim doer Ou de me deixardes morrer. Galego moderno Pois ante vós estou aquí Señor deste meu corazón, Por Deus, tene por razón, Por canto mal por vós sufrín, De vos querer de min doer Ou de me deixardes morrer. O português pré-clássico (1350 a 1550) A última fase do Português Arcaico vai do final da Idade Média ao início da Idade Moderna. Nesse período, Portugal já estava consolidado como país e a Língua Portuguesa já estava separada do galego, com as duas línguas passando a evoluir separadamente. A capital Lisboa era o centro de difusão do padrão linguístico. A Universidade de Coimbra, fundada em Lisboa em 1288 e transferida para Coimbra, novamente para Lisboa e definitivamente para Coimbra em 1537, também funcionava como centro de referência. O eixo Lisboa-Coimbra serviu para difundir e reorganizar esse novo padrão. No século XIV, Portugal se tornou uma nação expansionista, lançando-se ao mar. Para alguns historiadores, esta seria uma continuação da Reconquista. No século XV os portugueses descobrem Açores, descem pela África e, em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, no Sul da África, que muitos temiam passar. Em 1498, Vasco da Gama chega à Índia, contornando a África pela primeira vez na história. Em 1500, os portugueses chegam ao Brasil. Nos anos seguintes passam a conquistar parte da África, Ásia e Oceania. 48 CAPÍTULO 4 • O GALEGO-PORTUGUÊS No século XVI, começam a ser publicadas as primeiras gramáticas da Língua Portuguesa: Grammatica da Lingoagem Portuguesa
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