Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A FUNÇÃO DA LEI DE RECUPERAÇÃO E DE FALÊNCIA NO SISTEMA DE DIREITO PRIVADO BRASILEIRO The function of bankruptcy statute in the Brazilian private law system Revista de Direito Recuperacional e Empresa | vol. 4/2017 | Abr - Jun / 2017 DTR\2017\1687 Guilherme Bier Barcelos Mestrando em Direito Empresarial pela UFRGS. LLM (Master of Laws) em Direito dos Negócios na UNISINOS. Bacharel em Direito pela UFRGS. Advogado. guilherme@bierbarcelos.adv.br Área do Direito: Civil; Comercial/Empresarial Resumo: Este ensaio examina a função da Lei de Recuperação e de Falência no direito privado brasileiro. Para tanto, trabalha-se com duas hipóteses alternativas. A primeira delas considera que a função da referida lei deveria ser a de proteção dos interesses dos credores. Já a segunda defende que a sua função deveria ser a de preservação da empresa em crise. No momento do exame dessas possíveis funções, serão inicialmente indicados os dispositivos que serviriam de indicadores da preferência, pelo legislador, de uma delas em detrimento da outra. Após, realizar-se-á um apanhado das principais razões para a defesa da primeira hipótese e da segunda hipótese, apresentando-se, em sequência, alguns problemas concretos delas decorrentes. Ao final, sustenta-se a prevalência da função de preservar a empresa, sem que disso decorra um predomínio absoluto (uma preponderância radical) sobre a outra função. Palavras-chave: Falência - Recuperação judicial - Função - Preservação da empresa - Tutela dos credores. Abstract: This paper aims at investigating the function of the Bankruptcy Statute in the Brazilian Private Law system. For such purpose, two alternative hypotheses will be explored. The first one considers that the Bankruptcy function should be the protection of creditors’ rights. On the other hand, the second one considers that the function should be the preservation of the company, despite its crisis. In order to examine these functions the bankruptcy procedure rules will be related with them. The goal is to establish a prevalence of one in relation to the other. Finally, it is suggested that, in spite of the impossibility of complete prevalence of one over the other, the function of company preservation should ordinarily prevail in the context of Bankruptcy procedure. Keywords: Bankruptcy - Insolvency - Function - Company preservation - Creditors’ rights protection. Sumário: 1 Introdução - 2 Relação entre direito obrigacional e direito falimentar - 3 Primeira hipótese: a função da Lei de Recuperação e Falências é a otimização dos interesses dos credores - 4 Segunda hipótese: a função da Lei de Falências como preservação da empresa - 5 Conclusões - 6 Referências Bibliográficas 1 Introdução Em fevereiro de 2015, a Lei de Recuperação e Falências1 completou dez anos em vigor. Nesse período, doutrina e jurisprudência vêm tendo um relevante papel para sua consolidação, pois as rupturas por ela realizadas, quando comparada com o diploma anterior (leia-se Decreto-Lei 7.661/1945) foram significativas. Não seria equivocado afirmar que as modificações introduzidas pelo novo diploma exigiram uma verdadeira reconstrução da teoria do direito falimentar brasileiro. Isso não conduz, de modo algum, a um desprezo relativamente à produção doutrinária e jurisprudencial realizada até a entrada em vigor da Lei 11.101/2005. Intenta-se, tão somente, reforçar que o paradigma sobre o tema foi profundamente alterado. A lei submetida à análise neste ensaio possui grande relevância para o exercício da atividade econômica. Natural, portanto, que uma reforma tão significativa quanto aquela efetivada tenha ensejado inúmeras interrogações não só aos operadores do direito, mas, em especial, aos empresários, que consistem nos principais destinatários da Lei de Recuperação e de Falências. Dentre os inúmeros questionamentos advindos, podemos elencar: a) o prazo do stay de 180 dias a que se refere o art. 6º, § 4º, é realmente improrrogável, não admitindo qualquer exceção? b) se a A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 1 maioria dos credores rejeitar o plano de recuperação judicial, mesmo sendo a empresa viável, está o juiz adstrito à vontade dos respectivos ou o princípio da preservação da empresa poderá prevalecer no caso concreto? Tais indagações são meramente exemplificativas, sendo que outras poderiam ser agregadas. Antes de respondê-las, contudo, é preciso que se identifique uma premissa por elas compartilhada, qual seja: a definição da função da Lei de Recuperação e Falências no sistema de direito privado brasileiro. Afinal, dependendo da função que se atribua à norma, as respostas às perguntas acima poderão variar. De forma bastante resumida, esse é o objeto do artigo. Antes de seguirmos adiante, necessário que façamos uma advertência que permeará o raciocínio desenvolvido nesta pesquisa, qual seja: é preciso que se distinga texto e norma, pois esses conceitos não se equivalem. O primeiro, como regra, consiste em prerrogativa do legislador, sendo que tal competência deriva da Constituição Federal. Cabe ao Poder Legislativo eleger os fins que serão atingidos e os meios utilizados para alcançá-los. Noutras palavras, pode-se afirmar que incumbe ao legislativo, através do processo previsto pela Carta Magna, ponderar os diversos valores e interesses imbricados, sendo o texto (leia-se, a lei) o resultado dessa ponderação. Já a norma implica reconstruir o sentido do texto, tarefa essa que cabe ao intérprete. O exato contorno do comando elaborado pelo legislador somente pode ser conhecido após o processo interpretativo que culmina na reconstrução da norma2. Texto e norma estão umbilicalmente ligados, porém não se confundem. A norma tem como ponto de partida o texto e está fortemente limitada pelos sentidos possíveis dos vocábulos que o compõem. Todavia, a atividade interpretativa, ou seja, a recriação da norma pode, em certos casos, desprender-se do texto, rompendo com seu conteúdo semântico máximo. Nesta hipótese, poder-se-ia falar não mais em interpretação judicial, mas em criação judicial do Direito. De forma bastante reduzida pois esse não é o objeto central do artigo , pode-se concluir que a norma consiste na atribuição de sentido a um determinado texto, processo cujo limite reside no conteúdo semântico das palavras que formam a lei (ex.: trinta não é quarenta, casa não é carro etc.). Tendo em vista que a construção da norma se dá através de um processo interpretativo, adquire especial relevância a contribuição da doutrina, conforme adverte Judith Martins-Costa, “a doutrina desempenha o seu papel social quando não apenas explica o sistema, mas, por igual, ao antecipar possibilidades de sentido e soluções práticas que venham a atender as necessidades sociais, e – principalmente – ao formular e permitir a sobrevivência – de modelos orientadores, provendo a comunidade jurídica com representações, indicações e proposição de comportamentos.3” Nesse contexto, pode-se precisar que este artigo pretende justamente identificar qual a função normativa da Lei 11.101/2005. A tal problema, têm-se por ora duas hipóteses provisórias e alternativas, as quais orientarão o seu desenrolar. A primeira hipótese pode ser assim formulada: “a função é de preservação da empresa”. A segunda hipótese, por sua vez, pode ser assim expressa: “a função é de proteção dos interesses dos credores”. Antes de adentrar no problema de investigação, são necessárias duas ressalvas de natureza metodológica. A primeira é que função e finalidade vinculam-se de forma estreita, mas, à semelhança de texto e norma, não se confundem. Nesse sentido, concordamos com Gerson Branco, para quem a função possui um caráter instrumental, ao passo que a finalidade está relacionada aos fins que serão perseguidos pelo instrumento.4 A segunda é que este estudo parte do seguinte pressuposto: a Lei de Falências e Recuperação deve ser entendida como um procedimento que, dentre outros fins, visa à criação de mecanismos extraordináriospara extinção das obrigações. Sob a nossa ótica, o diploma tem assento apenas quando as formas ordinárias de extinção das obrigações previstas pelo Código Civil (LGL\2002\400) se mostrarem infrutíferas. Essa premissa será fundamental para a adequada compreensão deste escrito. Nesse quadro, a exposição seguirá a seguinte ordem: primeiramente, será analisado o conceito de obrigação e sobre suas formas ordinárias de extinção. A seguir, será estudada a primeira hipótese sobre a função da Lei de Recuperação e de Falência (proteção dos interesses do credor) e, logo após, a segunda hipótese (preservação da empresa). Ao final, será realizado um balanço dos méritos e das deficiências das duas possíveis funções. 2 Relação entre direito obrigacional e direito falimentar A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 2 O conceito de obrigação é “modelado pela história”5. Sua origem remonta às Institutas de Justiniano. A noção romana de obrigação estava calcada numa estrutura estática, pois era entendida como um “vínculo jurídico que constringe uma parte a fazer algo em favor de outra” 6. Segundo Judith Martins-Costa, estava-se diante de “vínculo jurídico, tal como advinha do Direito Romano, no qual se centrava, no núcleo duro do conceito, o termo obligatio, palavra composta da preposição acusativa ob e do verbo transitivo ligare (ligar, atar, vincular), daí derivando a ideia de sujeição ou vínculo. Desta conjugação de ideias – a saber, a redução da relação à obrigação principal nela contida e a preeminência da noção de vínculo sobre a de relação – surge a concepção da obrigação como vínculo eminentemente bipolar, que liga uma parte credora, titular do direito subjetivo (crédito), a outra, parte devedora, titular do dever jurídico dívida.” Com o passar do tempo, todavia, muitos autores começaram a entender que a ideia de vínculo obrigacional, baseada numa “concepção atomística do mundo” 7, apesar de correta, mostrava-se insuficiente. A partir de então, surge o conceito de relação obrigacional complexa, elaborada pela pandectística oitocentista, e positivada originariamente pelo BGB (Bürgerliches Gesetzbuch) alemão. Contributo importante dessa teoria residiu na compreensão da obrigação não mais como mero vínculo, mas propriamente como uma relação jurídica. Essa renovada concepção foi fundamental para a mudança de rumos doutrinários. Depois disso, foram construídas diversas teorias acerca da complexidade da relação obrigacional. Em face do recorte proposto para esse artigo, não será possível traçar um panorama histórico das diversas concepções doutrinárias que tiveram papel decisivo para o seu aperfeiçoamento. Passaremos diretamente à concepção da relação obrigacional como relação de cooperação, desenvolvida por Emílio Betti, graças a sua importância e aceitação. Nesse sentido, pontua-se, desde logo, que o citado autor realizou uma diferenciação entre relação obrigacional e relação de direito real. Para tanto, Betti, segundo explica Judith Martins-Costa, contrapôs as noções de “relação de atribuição” e de “relação de cooperação”.8 Discípulo de Betti, Clóvis do Couto e Silva sustentava que a obrigação deveria ser compreendida como um conceito dinâmico, no qual se incluem outros deveres além do principal9. Para o autor, a obrigação consiste num processo, sendo que “o adimplemento atrai e polariza a obrigação. É o seu fim. O tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade”.10 Além de polarizar a obrigação, o adimplemento, segundo Couto e Silva, deve ser entendido como a satisfação do interesse do credor, não se limitando ao cumprimento da prestação pelo devedor (ou por um terceiro interessado). Em suas palavras, “a obrigação, vista como processo, compõe-se, em sentido largo, do conjunto de atividades necessárias à satisfação do interesse do credor, sendo precisamente a unidade teleológica de adimplemento que determina a obrigação como processo” 11. Por fim, Jorge Cesa Ferreira da Silva entende que a satisfação do interesse do credor consiste num verdadeiro “ telos obrigacional” 12, possuindo natureza objetiva. Em seu entender, a satisfação perseguida é a dos interesses objetivos do credor.13 Como se verifica, o conceito de obrigação foi sendo (re)escrito ao longo do tempo. Da concepção originária de vínculo jurídico, chegou-se, posteriormente, à noção de relação obrigacional. Ainda neste percurso evolutivo, pode-se pontuar que a ideia de relação obrigacional ganhou ainda maior precisão, sendo concebida por Betti como uma relação de cooperação estabelecida entre as partes. Por derradeiro, no âmbito do Direito brasileiro, verifica-se a contribuição de Clóvis do Couto e Silva, para quem a relação obrigacional existe para ser extinta, sendo o adimplemento (satisfação do interesse do credor) uma das suas etapas fundamentais. Já hodiernamente, segundo Mario Júlio de Almeida Costa, a obrigação é o “vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação” que “deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção”.14 Nesse sentido, objetivando esclarecer o conteúdo da relação obrigacional, pode-se pontuar que os direitos que a compõem, como regra, são direitos subjetivos, isto é, direitos a uma prestação. Logo, as relações que envolvem crédito e débito, quase que na totalidade, são relações obrigacionais. Reside aí a origem da assertiva cunhada por Mário Júlio de Almeida Costa para quem os direitos de crédito “servem de instrumento jurídico à movimentação dos bens”.15 Reconstruindo-se a ideia, pode-se afirmar que as relações obrigacionais, em sua maioria, servem à movimentação de bens16. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 3 No que importa a esse artigo, tal afirmação ganha especial relevância. Ela permite estabelecer um vínculo fundante entre relação (direito) obrigacional e direito falimentar. Isso porque o direito falimentar destina-se justamente aos empresários e às sociedades empresárias, isto é, aos principais responsáveis pela circulação de bens e serviços na sociedade contemporânea, na exata dicção do art. 966 do Código Civil de 2002. Em se tratando da atividade empresarial, o ciclo nascimento/extinção das obrigações é bastante intenso, podendo ser repetido milhares de vezes ao dia. Num mundo globalizado e conectado, tal qual vivenciamos, as trocas ganham ainda mais relevância, pois as barreiras geográficas restaram superadas. Logo, o que importa às empresas é o fluxo contínuo da atividade, não sendo por acaso que alguns juristas conceituam-na como um verdadeiro feixe de contratos. Nesse contexto, é preciso ter claro que a obrigação tem um caráter provisório17, sendo que o adimplemento polariza a obrigação. Ruy Rosado de Aguiar Junior, por sua vez, entende que “a obrigação nasce para ser extinta”18, assertiva de extrema relevância para o objeto deste artigo. É à luz desse panorama que a função da Lei de Recuperação e Falências começa a ganhar contornos, porque o referido diploma só tem lugar a partir do momento em que as obrigações não são extintas através dos meios ordinários positivados pelo Código Civil de 2002. Em se tratando das formas de extinção das obrigações, há diversas modalidades19. O adimplemento (incluindo-se aí suas diversas modalidades, dação, sub-rogação, consignação) consiste na mais comum delas. Entretanto, há também outros mecanismos, v.g: i) novação, ii) compensação, iii) confusão e, por fim, iv) remissão das dívidas. Para casos em que não ocorra o adimplemento voluntário, tampouco a extinção das obrigações pelos outros modos acima indicados, o credor poderá se socorrer do direito processual. Afinal, de acordo com o art. 189 do Código Civil de 2002, “violado o direito nasce para o titular a pretensão, que se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206”. Nesse caso, o titular de direito terá de se valer das ferramentas disponibilizadas pelo processo civil parafazer valer a sua pretensão de direito material, na medida em que a Jurisdição é monopólio do Estado20. Em se tratando da ação executiva direta, por exemplo, que prescinde da colaboração do devedor, o estado está autorizado a utilizar o seu poder de império para expropriar bens que compõem o seu acervo patrimonial e/ou daquele que se obrigou conjunta ou subsidiariamente pelo adimplemento (v.g. fiador, avalista, interveniente garantidor e assim por diante).21 Há casos, todavia, em que o direito das obrigações e até mesmo o direito processual civil simplesmente não mais conseguem viabilizar a extinção da obrigação. Nessas situações, como regra, o devedor não dispõe de patrimônio capaz de suportar os débitos contraídos. Diante disso, indaga-se: havendo um número maior de débitos do que o devedor é capaz de adimplir, como proceder? Quem, quanto e como cada um dos credores receberá o valor a que faz jus? Justamente para enfrentar situações como essas, o legislador criou uma Lei de Recuperação e Falências. Com ela, disciplinou como se dará o processo de liquidação das obrigações, quais os créditos terão preferência no recebimento de valores, quem será o juiz responsável pela condução desse processo, quais e quando os bens do devedor poderão ser expropriados etc. Desde já, podemos notar que a Lei de Recuperação e Falências excepciona o direito das obrigações. Afinal, se a obrigação nasce para ser extinta com o adimplemento (isto é, o seu integral cumprimento), ao menos no que concerne à Lei 11.101/2005, é possível verificarmos a extinção de obrigações sem o adimplemento integral. Uma resposta provisória a tal questão é a seguinte: a Lei de Recuperação e Falências rompe a lógica tradicional do direito obrigacional. Logo, um dos seus principais objetivos consiste na extinção das obrigações que não puderam ser extintas através das formas ordinárias previstas no Código Civil (LGL\2002\400), tampouco com o auxílio da tutela estatal advinda das técnicas processuais contidas no Código de Processo Civil. Dada a anormalidade que a caracteriza, a Lei 11.101/2005, por opção legislativa, aplica-se unicamente às sociedades empresárias. Logo, pessoas físicas, sociedades simples, cooperativas, por expressa dicção legal, não se submetem ao diploma suprarreferido. Desde já, pode-se referir que a lei em exame possui um caráter publicístico, pois interfere diretamente nas obrigações contraídas exclusivamente sob a ótica do direito privado. Fato é que, uma vez decretada a falência ou a recuperação, o administrador da empresa não pode mais A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 4 “escolher” quais as obrigações serão satisfeitas e quais serão inadimplidas, na medida em que sua autonomia resta notoriamente diminuída. Além disso, um dos principais objetivos da Lei 11.101/2005 consistiu na criação de mecanismos para preservação da empresa, conceito esse bastante controvertido pela doutrina. A própria recuperação (judicial ou extrajudicial) é um bom exemplo disso, pois tal possibilidade não existia no Decreto-Lei revogado. De qualquer modo, a lei em exame prevê expressamente que a decisão sobre a aprovação ou não do plano de recuperação tocará aos credores, em assembleia convocada para esse preciso fim. Noutras palavras, o texto legal prevê que caberá aos credores decidir acerca da preservação da empresa. Somente eles são competentes para decidir se aprovam o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, ou se convertem o pedido de recuperação judicial em falência. Todavia, sabe-se que o “Law in books”22 nem sempre é congruente com o “Law in action”. Teoria e prática estão em constante tensão. Portanto, não é surpreendente o fato de que muitos juízes estejam relegando a um segundo plano a decisão dos credores e homologando o plano de recuperação à sua revelia. Como justificativa, valem-se do princípio da preservação da empresa, o qual, de fato, consta do texto legal. Outro exemplo que bem demonstra a tensão acima narrada reside no problema das certidões fiscais. Isso porque o art. 57 da Lei 11.101/2005 determina expressamente que só empresas possuidoras de certidões negativas fiscais ou certidões positivas com efeitos de negativa terão o pedido de recuperação judicial deferido. Na prática forense, todavia, tal exigência vem sendo afastada, porque se constatou que o requisito estabelecido é de difícil alcance. Noutras palavras, se cumprido à risca o texto legal, poder-se-ia cogitar, sem exageros, um real esvaziamento do instituto da recuperação judicial. Em resumo, não raras vezes, decisões judiciais, inclusive emanadas pelo Superior Tribunal de Justiça, têm construído normas que violam a barreira da moldura semântica do texto.23 Tem, de fato, criado regras sem textos que as sustentem. Os exemplos antes referidos bem ilustram o problema. Afinal, as certidões, segundo a lei, são imprescindíveis. Ela não criou qualquer exceção expressa ao cumprimento de tal requisito. Como justificar, nesse quadro, a decisão do Superior Tribunal de Justiça? O presente estudo objetiva justamente investigar a função normativa que orienta a Lei 11.101/2005, de modo a verificar se decisões como a acima referida podem ser admitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em caso positivo, serão apresentadas razões que sustentam tal excepcional autorização. Para tal objetivo, far-se-á uma análise dos dois principais entendimentos acerca da Lei de Falências e Recuperação, quais sejam: (i) o pagamento dos credores ou (ii) a preservação da empresa. Além disso, iremos nos valer do direito norte-americano, a partir das lições de dois relevantes doutrinadores: Elizabeth Warren e Douglas Baird. A escolha de ambos não é fruto de arbítrio, justificando-se no fato de sustentarem posições antagônicas, cuja assunção conduzirá a respostas muito diversas em relação ao problema deste estudo. Além disso, far-se-á revisão bibliográfica da literatura nacional. Ressalva-se, desde já, porém, a baixa quantidade de obras específicas sobre o assunto à luz do recorte aqui realizado. Portanto, muito mais do que apresentar conclusões definitivas, este ensaio tem por objetivo principal fomentar o debate acadêmico a respeito de questão de imensa relevância prática e teórica, mas até então pouco estudada. 3 Primeira hipótese: a função da Lei de Recuperação e Falências é a otimização dos interesses dos credores 3.1 Identificação de dispositivos da Lei 11.101/2005 que sustentem a hipótese Como argumentado no capítulo anterior, a Lei 11.101/2005, dentre outros fins, visa à extinção das obrigações que não puderam ser encerradas através das formas ordinárias previstas pelo Código Civil (LGL\2002\400). Trata-se, portanto, de mecanismo excepcional. Por isso, não é qualquer tipo de inadimplemento que dá ensejo à aplicação da Lei de Recuperação e Falências.24. Segundo a dogmática do direito civil, adimplir consiste em satisfazer os interesses objetivos do credor e não apenas no cumprimento a prestação pactuada25. No direito falimentar (incluindo-se aí o processo de A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 5 recuperação judicial das empresas), todavia, a noção de adimplemento não é equivalente à ideia de satisfação dos interesses do credor. Alguns artigos da Lei 11.105/2005 assim o demonstram. Iniciando-se pelo art. 158, o qual dispõe que, se o falido, depois de realizado todo o ativo da empresa , efetivar o pagamento de 50% dos créditos quirografários, as obrigações remanescentes serão extintas. Isso significa que o pagamento de metade dos créditos quirografários26 traz como consequência a extinção de todas as obrigações do falido. Como se nota, essa espécie extraordinária de adimplemento, positivada pelo diploma em exame, também acarreta a extinção das obrigações. Contudo, nesse preciso caso, não há que se falar, em satisfação do interesse do credor, pois o pagamento terá sido parcial (equivalente à metade do valor do crédito). Muito ilustrativo é tambémo artigo 59, referente à novação. De acordo com a Lei 11.101/2005, a aprovação do plano de recuperação pelos credores acarreta a novação das obrigações da empresa devedora. Como decorrência disso, a decisão homologatória do plano, emanada pelo juiz, consiste em título executivo judicial, segundo dispõe o art. 59 do diploma em exame. Pela lógica do direito obrigacional, a novação, como regra, gera a extinção da obrigação anterior. Além disso, o art. 360, I do CCB/2002, por exemplo, afirma que a novação ocorre quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior. Já o art. 364 do CCB/2002 preceitua que a novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Justamente nesse ponto há um tensionamento entre o direito obrigacional e o direito falimentar. Ocorre que, mesmo havendo novação da obrigação que decorre da aprovação do plano de recuperação, as garantias e os acessórios da dívida anterior não serão extintos. A razão é simples: a novação será eficaz apenas em relação à empresa que teve o plano de recuperação judicial homologado. Como decorrência dessa novação sui generis27, eventual ação executiva intentada contra empresa cujo crédito esteja abarcado pelo plano será extinta exclusivamente no que concerne à empresa em recuperação. Porém, a execução deverá prosseguir em desfavor de eventual(is) coobrigado(s), caso existentes, pelo valor originário, uma vez que a eficácia da novação atinge apenas a empresa abarcada pela recuperação e não os coobrigados. Em resumo, aprovado o plano, a obrigação que era una se subdividirá em duas com polos passivos, as quais corresponderão a valores distintos, pois a extinção da obrigação originária deu-se apenas no tocante à empresa em recuperação, não em relação aos coobrigados. Apesar disso, é claro que o adimplemento de uma deverá produzir consequências na outra, pois o credor não pode receber mais do que receberia se a obrigação fosse una. Desse modo, mesmo que a empresa em recuperação adimpla integralmente a obrigação consubstanciada no plano homologado pelo juízo, os coobrigados permanecerão adstritos ao cumprimento da obrigação originária. Explica-se, assim, o porquê do adjetivo sui generis atribuído ao substantivo novação. Como se percebe, o direito das obrigações e o direito falimentar atribuem significados distintos ao adimplemento e à novação, o que se justifica porque o alcance normativo dos conceitos varia em função do subsistema jurídico em que estão inseridos. Como visto, adimplir não é necessariamente satisfazer o interesse do credor, realizar novação não é necessariamente extinguir a obrigação anterior. Dessa constatação decorre a primeira conclusão deste estudo, qual seja, a de que o direito das obrigações e o direito falimentar se prestam a finalidades distintas. Nesse contexto, a questão que passará a ser enfrentada a partir de agora é: qual seria, afinal, a função da Lei de Recuperação e Falências brasileira? Por certo ela não é igual à função do sistema obrigacional, como acima examinado, mas ainda não se sabe, com exatidão, qual é a finalidade à qual ela visa. Importante referir que a sua criação foi fortemente influenciada pelas diretrizes traçadas pelo Banco Mundial.28 Todavia, o texto legal aprovado pelo legislador brasileiro acabou dando ensejo às mais variadas interpretações, algumas inclusive contrárias a tais diretrizes, situação que se explica pela vagueza de muitos de seus dispositivos. Considerando-se exposto, tomar-se-á como premissa, neste capítulo, que a função preponderante da Lei 11.101/2005 consiste na maximização dos ativos da empresa com vistas ao pagamento dos credores (primeira hipótese deste estudo). Tal entendimento, apesar das críticas que lhe são dirigidas – e que serão examinadas a seguir – é defensável, pois eles são fortemente afetados pela crise da empresa29. É bem verdade que o diploma atual atribuiu especial relevância ao princípio da preservação da empresa, o que poderia infirmar, desde logo, a hipótese de tutela do credor. Tanto é A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 6 assim que a concordata, prevista pelo Decreto 7.661/1945, deu lugar ao instituto da recuperação. Todavia, a Lei 11.101/2005, ao criar o instituto da recuperação, atribuiu justamente aos credores (e somente a eles) a competência para aprovar ou rejeitar o plano proposto pelo devedor (art. 45). Noutras palavras, valendo-se de uma interpretação literal, pode-se afirmar que a lei de falências positivou a seguinte regra: cabe aos credores decidir se o plano de recuperação será aceito ou, alternativamente, se o pedido será convolado em falência. Logo, preservar ou não a empresa estaria, à primeira vista, à mercê da vontade dos credores que não precisam justificar a decisão tomada. Quando se afirma que a função da Lei de Recuperação e Falências é a proteção dos interesses dos credores, o distanciamento entre direito obrigacional e direito falimentar é reduzido. Isso porque se confere aos credores a prerrogativa de indicar o modo como seus interesses serão mais satisfeitos, ainda que nunca plenamente satisfeitos. Daí a razão de caber a eles deliberar acerca do plano. Se satisfeitos, aceitam-no. Se insatisfeitos, rejeitam-no, o que acarretará na convolação do pedido de recuperação em falência. Portanto, pode-se concluir que o art. 45, se interpretado literalmente, dá conta de que a função da lei ora estudada é a de tutela dos credores30. Logo, afigura-se natural que o ordenamento jurídico lhes atribua o direito de decidirem a respeito do adimplemento dos seus créditos. Do exposto até aqui, podem ser formuladas as seguintes assertivas: (i) se as obrigações não puderam ser extintas através das formas ordinárias previstas pelo Código Civil (LGL\2002\400), poderá incidir à espécie as disposições constantes na Lei de Recuperação e Falências31, já que as obrigações nascem para ser extintas, não podendo perdurar indefinidamente; (ii) em face da necessidade de extinção das obrigações, caberá exclusivamente aos credores do devedor eleger a melhor forma para tanto, pois o direito tutelado nesse tipo de procedimento é preponderantemente patrimonial e de titularidade dos próprios credores, não sendo por acaso a escolha realizada pelo legislador. 3.2 Razões para a assunção da hipótese: alguns problemas concretos Muitos doutrinadores32, todavia, entendem que o princípio da preservação da empresa, também positivado pela lei em vigor, exige que se examine o assunto sob outra perspectiva, na medida em que não se pode pensar a lei apenas sob o interesse dos credores. Por força do exposto até então se indaga: qual seria o fundamento normativo capaz de justificar o fato de um determinado credor, no bojo de uma recuperação judicial, ter de suportar um deságio – muitas das vezes superior a 50% do crédito a que faz jus – para permitir a continuidade da atividade pela empresa? Como resposta, poderia aduzir-se que a sua preservação evitaria a interrupção dos negócios. Desse modo, a perda inicialmente experimentada pelos credores poderia ser revertida com o passar do tempo. Entretanto, cabe a quem essa decisão? Ao juiz, ao devedor, aos credores? Ora, o texto da lei é claro no sentido de que as partes envolvidas, especialmente credores e devedor, de forma conjunta, em assembleia convocada para esse fim, deverão discutir a respeito. E, ao final, os credores terão de votar dizendo se aprovam ou rejeitam o plano proposto pelo devedor. A opção pela realização de assembleia33 consistiu em uma escolha legislativa para estimular o diálogo entre as partes. Salvo exceções pontuais, os direitos abrangidos pela Lei 11.101/2005 são disponíveis. Logo, os credores podem dispor acerca dos respectivos como bem quiserem. Entretanto, da mesma forma que é permitido ao credor aceitar eventual redução do seu crédito, não teria ele o direito de perseguir a plena satisfação do seu interesse, conforme a sistemática prevista pelo direito das obrigaçõese pelo direito processual civil? Noutras palavras, a realização dessa ponderação incumbe exclusivamente ao credor ou se está diante de uma hipótese na qual há uma limitação legal e obrigatória da autonomia privada? Ora, a questão não é singela. Tanto é assim que vem sendo debatida já há algum tempo pela doutrina americana. A utilização do direito comparado nesse caso é importante, sobretudo o estadunidense, porquanto a Lei 11.101/2005 sofreu forte influência do Bankruptcy Code lá vigente. Nesse sentido, uma das discussões mais conhecidas sobre o assunto em solo americano foi a travada entre Elizabeth Warren e Douglas Baird. Segundo Baird, não há argumentos que justifiquem um tratamento diferenciado ao devedor quando se está diante da falência. Em sua opinião, o tema central a ser enfrentado não é como as perdas devem ser distribuídas, mas examinar se essa A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 7 distribuição deve ser regulada pelas regras gerais do direito, conforme sustenta, ou através de um direito especial34, como preconiza Warren35. Se transposta para o direito brasileiro, a questão poderia ser colocada nos seguintes termos: qual o arcabouço normativo que conforma a recuperação e até mesmo a falência? Aquele previsto pelo Código Civil (LGL\2002\400) para as obrigações ou um sistema jurídico especial? Com o intuito de bem refletir sobre a questão lançada, examinaremos, em primeiro lugar, a posição defendida por Baird, para quem não é recomendável que se elabore um sistema especial de distribuição de créditos para casos de falência (e recuperação). O motivo? Tal excepcionalidade acarretaria diversas consequências às demais empresas que não estão sujeitas ao Bankruptcy Code . Noutros termos, a criação de regras especiais para casos de falências provoca consequências diretas e graves no mercado, chamadas pelo autor de “efeitos distributivos”. Logo, não se pode examinar o fenômeno da falência (e também da recuperação) sob o prisma da empresa em dificuldade, devendo-se considerar as demais empresas que compõem o mercado. Para o autor, portanto, é fundamental a manutenção da coerência interna do sistema, assegurando um patamar razoável de igualdade concorrencial. Nesse sentido, ressalta-se que Baird é professor da Universidade de Chicago, centro de referência mundial em Law and Economics. Natural, portanto, que tenha desenvolvido seu raciocínio atribuindo especial atenção às consequências geradas pelos processos de falência e de recuperação nos demais agentes econômicos. Para o autor, não faz sentido a criação de regras distintas de distribuição das perdas dentro e fora da falência, pois isso provocaria uma ruptura no sistema em razão da ausência de coerência entre as regras do próprio ordenamento jurídico36. E complementa: a diferenciação criada pelo legislador pode acarretar, inclusive, a criação de incentivos perversos aos devedores37. Às ideias defendidas por Warren, centradas na preservação da empresa, Baird fez duas objeções principais. A primeira delas pode ser assim sintetizada: a possível deturpação da lei, que serviria como uma espécie de forum shopping. Noutras palavras, mesmo que as regras do Bankruptcy Code sejam tecnicamente adequadas, haverá muitos casos em que empresas dela se valerão sem que efetivamente necessitem. Isso provoca, de plano, um desequilíbrio, na medida em que outras estão, desde o início, excluídas desse tipo de procedimento, não podendo dele se valer sob a lógica de forum shopping. Diz-se forum shopping porque alguns empresários, conscientes da proteção legal em benefício do devedor instituída pelo Bankruptcy Code, poderiam agir de forma deliberada, visando justamente se valer do benefício instituído pela legislação. Nesse preciso caso, ganha concretude o argumento de Baird, no sentido de que a excepcionalidade do sistema da falência potencializa a produção de desigualdades concorrenciais muito significativas. No âmbito nacional, não se ignora que, uma vez decretada a falência, haverá a propositura de uma ação de responsabilidade contra os administradores da companhia38. Todavia, essa responsabilização nem sempre é fácil de ser comprovada, de modo que o raciocínio desenvolvido por Baird merece atenção e detida reflexão. A segunda objeção (e mais importante) consiste no papel atribuído aos credores. Enquanto Warren defende que é possível se cogitar no sacrifício do direito deles em benefício da preservação da empresa, Baird sustenta que há uma relação entre os créditos (espécie de patrimônio) e a forma como os eles serão utilizados (isto é, investidos). Esta relação é difícil de mostrar e de justificar. Entretanto, os pesquisadores vêm mostrando que as decisões financeiras de uma empresa estão intimamente ligadas às decisões sobre investimentos. Se isso é correto, então não há como realizar o procedimento de recuperação e falência sem a participação dos credores39. Se trasladada a perspectiva encampada pelo autor para o âmbito do direito falimentar brasileiro, então seria forçoso concluir que deve caber aos credores, de forma exclusiva, deliberar acerca do pedido de recuperação. Ao Poder Judiciário, por sua vez, não competiria intervir. Apressamo-nos em esclarecer, todavia, que tanto a Lei 11.101/2005, por meio do seu art. 58, §§ 1º e 2º, quanto o Bankruptcy Code preveem a possibilidade de realização de cram down, isto é, a faculdade conferida ao juiz de decretar a recuperação judicial, mesmo que a aprovação do respectivo não tenha ocorrido na forma do art. 45. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 8 Para tanto, contudo, a lei prevê uma série de requisitos, quais sejam40: (i) o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes; (ii) a aprovação de duas das classes de credores nos termos do art. 45 da lei ou, caso haja somente duas classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos uma delas e, por fim, (iii) na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de um terço dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45. Por fim, previu o legislador expressamente que o cram down só poderá ocorrer “se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado”. Tal possibilidade, a nosso ver, não implica em restrição ao direito dos credores. Sua criação justifica-se preponderantemente para evitar abusos de determinados credores, os quais poderiam vir a comprometer a aprovação do plano em troca de vantagens especiais. Em realidade, o cram down, destina-se mais a evitar a manipulação da vontade dos próprios credores e, portanto, a protegê-los, do que a proteger o devedor. Em suma, ao que se percebeu deste capítulo, (i) há variados dispositivos da Lei de Recuperação e Falência que indicam, à primeira vista, uma preocupação proeminente com a tutela do interesse do credor em detrimento da ideia de preservação da empresa; (ii) há razões relevantes para sustentar que a função da lei em questão deve ser a de tutela do credor e não a de preservação da empresa, na medida em que o contrário poderia gerar um desequilíbrio concorrencial; (iii) a proteção do credor, por sua vez, também deve ser feita com parcimônia, de modo a evitar a sua manipulação em troca de vantagens. Apresentadas as razões e os problemas decorrentes da ideia de que a função da Lei de Recuperação e de Falência é a de satisfação dos credores, procede-se, agora, ao exame da segunda hipótese. 4 Segunda hipótese: a função da Lei de Falências como preservação da empresa 4.1 Identificação de dispositivo da Lei 11.101/2005 que sustente a hipótese No capítulo anterior, analisamos a hipótese de que a função preponderante da Lei de Recuperação e Falências seria a satisfação dos interesses dos credores. Neste capítulo, faremos o exame da segunda hipótese, qual seja, a de que tal lei deve ter por função primordial preservar a empresa. A ideiaencontra imediata acolhida à luz de uma das inovações mais importantes trazidas pela Lei 11.101/2005, mais precisamente em seu art. 47. Diferentemente do Decreto-Lei 7.661/1945, o diploma vigente positivou “a necessidade de manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, sua função social”. O texto legal é reconhecidamente complexo, na medida em que ali constam muitos fins a serem fomentados e obtidos concretamente. Nesse sentido, percebe-se se tratar de norma que não indica a conduta devida, mas sim um estado de coisas a ser construído. Noutras palavras, não se trata de uma norma “sobre o que fazer” (de comportamento), mas de uma norma “sobre o que deve ser” (finalística ou teleológica)41. Não se está diante de uma regra, mas propriamente de um princípio jurídico: o princípio da preservação da empresa. Fato é que a preservação da empresa permeia toda a Lei 11.101/2005, abrangendo tanto a recuperação42 quanto à falência. Todavia, ressaltamos desde já que a sua concretização é mais fácil de ser alcançada com o emprego da recuperação. Afinal, a falência é causa de dissolução da sociedade sendo, portanto, uma das manifestações concretas daquilo que o princípio visa justamente a evitar. De qualquer sorte, mesmo em caso de falência43, poderá ocorrer a manutenção da fonte produtora. E isso se dá, por exemplo, com a transferência de ativos a terceiros. Veja-se, nesse sentido, que o diploma previu expressamente a possibilidade de alienação de ativos da empresa durante os processos de falência e recuperação,44 sem que o adquirente venha a se tornar responsável pelos débitos da alienante. Além disso, é importante perceber que a preservação da empresa não se confunde com a permanência do controlador e/ou de seus administradores. De acordo com o art. 47, o que a lei busca é manter a fonte produtora, isto é, o perfil funcional45. Para tanto, existem inúmeros mecanismos, sendo a alienação de ativos apenas um deles. Ressalta-se ainda que a preservação da empresa não implica, como regra, a ausência de satisfação A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 9 dos interesses dos credores46. Nesse particular, reitera-se que o conceito de satisfação dos interesses dos credores, ao menos no âmbito do direito falimentar, é diverso daquele concebido pelo direito das obrigações. Apesar disso, em não raras situações, muitos credores preferem manter o vínculo negocial com a empresa em recuperação do que a convolar em falência. A médio e longo prazo, tal estratégia pode lhes ser mais vantajosa. Com nota, a introdução do princípio da preservação da empresa no ordenamento jurídico provocou mudanças importantes dogmáticas, não podendo tal circunstância ser ignorada pelos operadores do direito. Nesse sentido, é tarefa da doutrina e da jurisprudência delinear o alcance normativo do texto legal. 4.2 Razões para a assunção da hipótese: alguns problemas concretos A positivação do princípio da preservação da empresa consistiu em escolha realizada diretamente pelo legislador. Trata-se de elemento que não pode ser desconsiderado. A ponderação por ele realizada orientou-se no sentido de que, em se tratando de recuperação e falência, o interesse preponderante a ser tutelado não pode ser apenas o dos credores. E sua motivação parece clara: a atividade exercida pela empresa provoca reflexos em inúmeros outros agentes econômicos, além dos próprios credores47. Logo, nos casos em que a interrupção da atividade pela empresa esteja em risco, há de se tutelar também o interesse dos demais stakeholders, pois esses também sofrerão as consequências de uma possível ruptura. Natural, portanto, que a legislação considere os demais afetados, mesmo que nem todos sejam credores. A título ilustrativo, podemos mencionar o caso da montadora X, localizada no município Y. Apesar de a referida cidade ser de médio porte, parcela substancial dos recursos nela gerados advém da montadora e das demais empresas que lá se instalaram por sua causa. Tais recursos abarcam os impostos recolhidos ao erário, verbas com salários, fornecedores, terceirizados e assim por diante. Desse modo, caso a empresa X cesse suas atividades, é inequívoco que as consequências daí advindas atingirão não só os seus credores, mas muitos outros agentes econômicos. Com a introdução do art. 47, a Lei 11.101/2005 encampou o argumento de que a empresa é um fenômeno econômico e social48, sendo de vital relevância a sua preservação sempre que possível. Em suma, a ponderação realizada foi no sentido de que as consequências alcançadas a médio e longo prazo com a manutenção da fonte produtora são benéficas.49 Parece-nos evidente assim que o legislador avocou para si a tarefa de avaliar as consequências, determinando ao julgador a perspectiva (o telos ) que deverá ser utilizada quando da aplicação da norma. No tocante à recuperação, parece haver um consenso doutrinário no sentido de que tal instituto se destina apenas às empresas que possuam efetivas condições de serem recuperadas50. Dito isso, retomamos à indagação realizada no capítulo anterior: qual seria o fundamento normativo capaz de justificar o fato de um determinado credor, no bojo de uma recuperação judicial, ter de suportar um deságio – muitas vezes superior a 50% do crédito a que faz jus – para permitir a continuidade da atividade pela empresa? Para responder a esse questionamento, recorremos às lições de Sheila Cerezetti51: “a via da recuperação é legalmente eleita como a preferida na luta contra a crise. Isso significa que o Estado, na qualidade de garantidor do interesse público, prioriza o instrumento da recuperação sobre o da liquidação. (...) Indica-se, ainda, que esse interesse é caracterizado como público não apenas por ser distinto do interesse específico do devedor ou dos credores, mas especialmente porque se refere ao interesse que pode coincidir com o da coletividade como um todo ou que, ao menos, diz respeito a um interesse por ela privilegiado.” Desse modo, o princípio da preservação da empresa seria uma manifestação concreta do interesse público. Além disso, a autora, quando do desenvolvimento de sua tese, traçou um paralelo entre a doutrina institucionalista e o princípio da preservação da empresa52, pois, no seu entender, ambos estão diretamente relacionados. Como se pode constatar, tal perspectiva consagra uma ruptura importante em relação às ideias de Douglas Baird expostas no capítulo anterior, as quais colocam os credores como os principais destinatários da falência e da recuperação53. Também no âmbito estadunidense tal disputa doutrinária não é nova. Nesse sentido, mostra-se A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 10 oportuno que façamos alusão à doutrina de Elizabeth Warren, uma das principais defensoras da preservação da empresa naquele ordenamento jurídico. Para a autora, o debate relativo à Lei de Falências não pode ficar adstrito à questão da eficiência, pois, nesse caso, poderão passar despercebidos elementos que, embora cruciais, costumam ser desconsiderados pelos modelos econômicos54. Em se tratando das suas funções, sustenta que, quando uma empresa depara com a falência, há substanciais riscos de que inexistam recursos suficientes para o adimplemento de todas as obrigações. E isso traz como consequência o fato de que alguns grupos terão de suportar os prejuízos daí advindos55. Assevera a doutrinadora ainda (em crítica direta a Baird) que é impossível evitar a produção de regras que repartam as consequências das falências. Nesse sentido, de acordo com Warren, a lei deve perseguir quatro principais objetivos56: i) valorizar a empresa devedora; ii) distribuir valores com a observância a múltiplos princípios normativos; iii) internalizar custos das falhas do negócio entre as partes que negociaram com a empresa devedora e, por fim, iv) criar confiança no sistema de fiscalização pelos privados57. No tocante ao item (i), seu entendimentoé de que as regras da falência e da recuperação devem oferecer mecanismos para que os débitos possam ser repactuados. Deve haver uma preocupação para que o valor da empresa seja mantido, assim como com o seu going-concern58, pois a sua perda, geralmente verificada na fase de liquidação, diminui sensivelmente o seu valor. Por fim, aduz que outro método de aumentar o valor da empresa é reduzir os incentivos dos credores para desmantelá-la59. No tocante ao item (ii), sustenta Warren que qualquer sistema de falência e recuperação possui necessariamente implicações distributivas, em face da criação de prioridades para pagamentos60. Nesse sentido, o sistema em exame reflete decisões baseadas em objetivos distintos daqueles perseguidos pelos sistemas ordinários. Desse modo, os pagamentos não deverão ocorrer na ordem em que os credores promoveram a cobrança dos débitos, havendo uma preocupação especial a todos aqueles que integram a mesma classe, os quais devem ser tratados de forma equânime61. Quanto ao item (iii), há uma preocupação especial com o fisco, na medida em que a lei americana exige o pagamento integral dos impostos. Em se tratando dos demais credores, a lei estimula a negociação entre o devedor e seus credores. Como decorrência disso, o credor está ciente de que a melhor forma de evitar perdas é analisar de forma adequada os riscos envolvidos quando da realização da operação, providência essa, em termos sistêmicos, importante para economia62. Por fim, no que concerne ao item (iv) a autora defende que deverá haver a criação de mecanismos de fiscalização do procedimento. Diferentemente de outros países situados na Ásia e na Europa, recursos públicos não são alocados para a fiscalização dos devedores. O procedimento é privado. Logo, mostra-se relevante que os envolvidos neste processo possam fiscalizar os atos ocorridos, pois isso gera confiança no sistema, o que é essencial para seu adequado funcionamento63. Ao que se verifica, tanto Elizabeth Warren quanto Sheila Cerezetti não atribuem à Lei de Falências e Recuperação a função preponderante de satisfação dos interesses dos credores. Segundo ambas, a sua função deve consistir na ideia de preservação da empresa, na medida em que ali reside um claro interesse público para tanto. Veja-se que a adoção dessa premissa pode conformar a conduta dos credores quando da realização da assembleia geral preconizada pelo art. 35 da Lei 11.101/2005. Nesse caso, o voto não será resultado da autonomia da vontade dos respectivos64, mas, sim, deverá obedecer aos limites da autonomia privada.65 Considerando o exposto até aqui, acredita-se haver se demonstrado que o direito de falências e recuperação excepciona o direito das obrigações. Disso decorre que o sentido atribuído às categorias dogmáticas por este não pode ser reproduzido de maneira irrefletida por aquele. Ao que nos parece, o equívoco de Baird foi desconsiderar tal circunstância. Nesse sentido, concordamos com Comparato quando esse afirmou que a empresa é um centro de interesses66. Necessário, portanto, que todos eles sejam considerados quando da falência e/ou da recuperação, que não devem estar limitadas à tutela exclusiva dos interesses dos credores. 5 Conclusões A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 11 À luz do exposto, sustenta-se que o direito de falências excepciona o direito das obrigações. Logo, os conceitos inerentes a este não podem (e não devem) ser simplesmente reproduzidos, em diverso subsistema jurídico, de maneira irrefletida. Além disso, a empresa consiste num centro de interesses. Daí a impossibilidade de se reconhecer que a função da Lei 11.101/2005 consista na exclusiva satisfação dos interesses dos credores. A conclusão que se apresenta mais ponderada é no sentido de que ambas as funções receberam acolhida no subsistema falimentar brasileiro, muito embora a preservação da empresa se sobreponha à satisfação dos interesses objetivos dos credores. Frente a tal tensionamento, o intérprete deve buscar a solução que mais seja capaz de concomitantemente fomentar ambas (ideal de concordância prática). Não sendo possível, há de se privilegiar, como regra, a função de preservação da empresa. 6 Referências Bibliográficas AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil. vol. VI. t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011. ALMEIDA COSTA, Mario Júlio. Direito das obrigações. 9. ed. Coimbra: Almedina, 2009. ANDRIGHI, Fátima Nancy. Da falência. In: LIMA, Osmar Brina Corrêa; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (coords.). Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas: Lei 11.101, de 09.02.2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. BAIRD, Douglas. Loss Distribution, Forum Shopping, and Bankruptcy: a Reply to Warren. University of Chicago Law Review. vol. 54, 1987. BAIRD, Douglas; RASMUSSEN, Robert. The End of Bankruptcy. Standford Law Review. vol. 55, 2002. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. BETTI, Emilio. Teoria general del negocio juridico. Traduzido por A. Martins Perez. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2009. CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações. São Paulo: Malheiros, 2012. CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell'interpretazione giuridica. Bologna: Il Molino, 2007. COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da microempresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. GUASTINI, Riccardo. La Sintassi del Diritto. Turim: G. Giappichelli Editore, 2011. LOPUCKI, Lynn. The Nature of the Bankrupt Firm: a Reply to Baird and Rasmussen’s The End of Bankruptcy. Standford Law Review. vol. 56, 2003. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 12 MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014. POUND, Roscoe. Law in Books and Law in Action. American Law Review. n. 44, 1910. SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. Recuperação extrajudicial de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2013. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Recuperação judicial, a principal inovação da lei de recuperação de empresas – LRE. Revista do Advogado. ano XXV. n. 83. p. 98-106. São Paulo, set. 2005. WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World. Michigan Law Review. n. 2. vol. 92, 1993. 1 Lei 11.101/2005. 2 Nesse sentido, conferir, na doutrina italiana, GUASTINI, Riccardo. La Sintassi del Diritto. Turim: G. Giappichelli Editore, 2011, p. 393 ss. e CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell'interpretazione giuridica. Bologna: Il Molino, 2007, p. 50. Na doutrina brasileira, conferir ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 50 e, na doutrina portuguesa, CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 142 e ss. 3 MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 32. 4 “Função e finalidade não são sinônimos, mas estão vinculadas a um mesmo fenômeno, que é o estudo dos modelos jurídicos a partir das consequências que podem ser produzidas. Enquanto a noção de função é usada para descrever o caráter instrumental do modelo, que serve para determinados fins, a expressão ‘finalidade’ descreve ospróprios fins para os quais o instrumento deve ser usado” (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 273). 5 A expressão foi cunhada por MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 199. 6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, op. cit., p. 201. 7 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, op. cit., p. 200. 8 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, op. cit., p. 216. 9 Segundo Ruy Rosado de Aguiar Junior, “a obrigação não consiste apenas em débito e crédito, mas também em uma gama de outros direitos e deveres secundários, direitos formativos e posições jurídicas igualmente importantes” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil. vol. VI, t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 1). 10 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 17. 11 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo, op. cit., p. 20. 12 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 46. 13 Conforme Jorge Cesa Ferreira da Silva, “o móvel do interesse pode ser qualquer, não se apresentando, em regra, relevante para a relação obrigacional (art. 140), ainda que exceção A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 13 importante relativamente aos motivos tenha sido introduzida no novo Código (art. 166, III). Do mesmo modo, o interesse também pode variar com o passar do tempo. Antes ou depois da prestação, o credor pode constatar que não era exatamente aquele bem da vida, ou aquele exato fato, que buscava. Por isso, tendo em conta os valores protegidos pelo ordenamento (segurança, fluidez no tráfego jurídico etc) é imperioso que os interesses perseguidos sejam fixados em um determinado momento histórico, tornando-se então relativamente perenes, não sendo mutáveis em razão de circunstâncias meramente subjetivas (idiossincrasias do sujeito concreto), ou em razão do tempo, salvo se este promover alterações substanciais das condições vinculadas à relação. Por isso, afirma-se que o interesse do credor é objetivo, o que significa dizer que ele se vincula ao momento específico da constituição do vínculo e conforme os elementos, igualmente objetivos, que compuseram a prestação devida (tempo, lugar, por quem deve ser prestada etc). Quando esses requisitos são observados, entende-se que o credor teve seus interesses satisfeitos, ainda que os interesses subjetivos do credor já se tenham alterado (FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. adimplemento e extinção das obrigações, op. cit., p. 43-44). 14 ALMEIDA COSTA, Mario Júlio. Direito das obrigações. 9. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 58. 15 ALMEIDA COSTA, Mario Júlio. Direito das obrigações, op. cit., p. 925. 16 Sobre o tema, conferir BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos, op. cit., p. 103. 17 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, op. cit., p. 216. 18 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil., op. cit., p. 22. 19 Sobre o assunto vide FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 69. 20 Por todos, vide BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição, direito material e processo, op. cit., p. 181 ss. 21 Sobre o tema, aduz Ruy Rosado de Aguiar Jr. “o dever do obrigado e# cumprir com a prestac#a#o acordada (prestac#a#o prima#ria), que corresponde ao de#bito; em caso de descumprimento, tem o credor uma pretensa#o de direito material contra o devedor, de exigir a pro#pria prestac#a#o, com execuc#a#o especi#fica, ou a indenizac#a#o (prestac#a#o secunda#ria), que corresponde a# responsabilidade. Essa opc#a#o e# do credor, na#o do devedor. A responsabilidade (b) na#o e# de natureza processual, como querem alguns, que a reduzem ao direito de promover demanda judicial (direito processual auto#nomo de exigir a prestac#a#o do Estado), mas sim e# um elemento da relac#a#o obrigacional que se apresenta como uma verdadeira pretensa#o ligada ao direito material de ac#a#o, e este pode ou na#o ser exercido em jui#zo, dependendo do ordenamento juri#dico.” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil, op. cit., p. 11). 22 Trata-se da famosa expressão do realista POUND, Roscoe. Law in Books and Law in Action. American Law Review, n. 44, p. 12, 1910. 23 Veja-se nesse sentido o REsp 1187404/MT, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, corte Especial, julgado em 19.06.2013, DJe 21.08.2013. 24 O art. 94 da Lei 11.101/2005 arrolou as hipóteses em que a falência do devedor poderá ser decretada. 25 Nesse sentido, ver FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e extinção das obrigações, op. cit., p. 47. 26 Lembre-se, pois oportuno, que o pagamento dos quirografários pressupõe, necessariamente, o pagamento da integralidade das demais classes de credores precedentes constantes no art. 83 da Lei 11.101/2005. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 14 27 Sobre o tema, vide o Recurso Especial n. 1.333.349-SP, de Relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 26.11.2014. 28 Sobre o tema, vejam-se as críticas realizadas por Manoel Bezerra Filho: (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 57). 29 Sustentam Spinelli, Tellechea e Scalzilli “que uma das principais funções da lei é propiciar um ambiente de cooperação entre os agentes envolvidos, sobretudo, nos processos recuperatórios, com a participação ativa dos credores, alocando em sua esfera de ação boa parcela do poder decisório sobre o esforço de soerguimento da empresa, posto que eles (credores) são os mais afetados com as medidas propostas pelo devedor. A experiência econômica demonstra que os resultados globais das recuperações tendem a ser melhores quando as partes diretamente envolvidas no empreendimento cooperam entre si” (SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo; SCALZILLI, João Pedro. Recuperação extrajudicial de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 28). 30 Segundo Sheila Cerezetti, esse também foi o principal objetivo do Decreto-Lei 7.661/1945: “verifica-se que até a entrada em vigor da Lei de Recuperação e Falências o sistema concursal pátrio esteve imbuído pelo ideal de satisfação dos créditos em prejuízo de qualquer consideração acerca da manutenção da empresa, que alcançava a extinção mediante processos falimentares normalmente longos e custosos. Ao lado do procedimento liquidatório encontrava-se o instituto da concordata, concedido por meio de “favor legal” ao devedor que cumprisse as exigências legais e pretendesse evitar a sua quebra pela via do parcelamento de débitos quirografários” (CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 204). 31 Lembre-se, pois necessário, que a Lei 11.101/2005 aplica-se somente às sociedades empresárias e ao empresário individual. Além disso, as hipóteses para os pedidos de recuperação e falência, respectivamente, encontram-se positivados pelos artigos 48 e 83, respectivamente. 32 Segundo Paulo Fernandes Campos Salles de Toledo, os objetivos da lei de falências são mediatos e imediatos. Os primeiros seriam a manutenção da fonte produtora e, como consequência, a manutenção dos empregos dos trabalhadores e a satisfação dos interesses dos credores. As finalidades mediatas, por seu turno, a serem alcançadas em período mais longo, seriam a preservação da empresa, a função social da empresa e o estímulo à atividade econômica (TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Recuperação judicial, a principal inovação da lei de recuperação de empresas – LRE. Revista do Advogado, ano XXV, n. 83, p. 98-106. São Paulo, set. 2005, p. 102-103). 33 Vide art. 35, I, da Lei 11.101/2005. 34 Nas palavras de Baird, “the issue, it must be noted, is not how losses from a firm failure shouldbe distributed, but whether this question (however hard it may be to answer) is a question of the law generally (as Jackson and I would argue) or one peculiar to bankruptcy law (as Warren would argue)” . (BAIRD, Douglas. Loss Distribution, Forum Shopping and Bankruptcy: a Reply to Warren. University of Chicago Law Review, vol. 54, p. 816, 1987). 35 Conforme Warren, “it is possible to have a legal regime with no formal bankruptcy system, but it is not possible to avoid legal rules that deal with the consequences of business failure. Some rules must determine the rights of the contract claimants and tort victims, banks and employees, or suppliers and customers when the pool of the debtor's assets rapidly diminishes and the claimants clamor for satisfaction” (WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World. Michigan Law Review, vol. 92, n. 2, p. 343, 1993). 36 Segundo Baird: “my basic disagreement with Warren is not with the distributional schemes she embraces, but with whether a single set of rules should distribute losses that flow from a business failure. Many laws, from UCC Article 9 to ERISA, concern themselves with distributing such losses. Nonbankruptcy priority rules distribute losses and will continue to do so regardless of whether a special set of bankruptcy priority rules exists. A coherent approach to the question of how losses from failed firms should be distributed cannot ignore the distributional effects many legal rules have on A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 15 firms that are not in bankruptcy. Legal rights should turn as little as possible on the forum in which one person or another seeks to vindicate them. Whenever we must have a legal rule to distribute losses in bankruptcy, we must also have a legal rule that distributes the same loss outside of bankruptcy.7 All Jackson and I advocate is that these two rules be the same (...). To say that bankruptcy and nonbankruptcy priorities should be the same does not say anything about what those priorities should be. Despite Warren's assertions to the contrary, Jackson and I in our work on bankruptcy do not say who should bear the loss when a firm fails; we do not conceive this as a bankruptcy question. In our work on bankruptcy, we have talked only about the issues that remain after one decides how losses should be distributed because we regard only these issues as distinct bankruptcy issues. To respond to us in a normative debate about bankruptcy policy, Warren has to challenge our assertion that fixing priorities among creditors is not a bankruptcy problem. She cannot assert (as she does repeatedly) that following existing nonbankruptcy priorities in bankruptcy generates bad results. Warren needs to show why she tolerates these bad results outside of bankruptcy and why the results she wants in bankruptcy cannot be had by changing the nonbankruptcy rules. Even if Warren has some reason for rejecting the idea of parity, she must still explain why the problem of forum shopping is unimportant” (BAIRD, Douglas. Loss Distribution, Forum Shopping, and Bankruptcy: a Reply to Warren, op. cit., p. 822). 37 Segundo o autor, “the second observation, however, does not follow from the first. As long as many firms close or fail outside of bankruptcy, treating the question of how to distribute the losses that flow from a business failure as a bankruptcy question ignores much of the problem and creates perverse incentives” (BAIRD, Douglas. Loss Distribution, Forum Shopping, and Bankruptcy: a Reply to Warren, op. cit., p. 816-817). 38 Na Lei 11.101, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, a responsabilidade pessoal dos sócios, dos controladores e dos administradores será apurada em ação de procedimento ordinário, pelo próprio juízo da falência. Trata-se de apuração de responsabilidade própria dos gestores, prevista no art. 1.016 do CC e no art. 158 da Lei das Sociedades Anônimas, que estabelecem a responsabilidade solidária e ilimitada dos administradores, perante a sociedade e terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções. 39 De acordo com Baird, “the second point is deeper. To argue that a special set of distributional concerns arises when a debtor defaults to many creditors at the same time it fails or closes is to assume a link exists between who has rights to the assets of a firm and how those assets are used. Such links are hard to show and harder to justify, as a large body of literature has shown. 5 Traditional bankruptcy scholars are alone in the academy in their belief that the financing decisions of a firm and its investment decisions are inseparable. Whether a firm continues to manufacture a particular product or even stays in business is an issue utterly distinct from the question of who owns the firm's assets” (BAIRD, Douglas. Loss Distribution, Forum Shopping, and Bankruptcy: a Reply to Warren, op. cit., p. 819-820). 40 Vide art. 58 da Lei 11.101/2005. 41 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 95-96. 42 Seja ela judicial ou extrajudicial. 43 Veja-se o entendimento de Nancy Andrigui sobre a nova lei: “fica claro, portanto, que estão superadas as visões clássicas da falência, que a tratam como um favor legal ao empresário, ora como um mero concurso em favor dos credores. O foco da falência passa a ser a intervenção na administração de uma organização que, em crise, não consegue mais harmonizar os interesses de todos aqueles que com ela se relacionam (credores, empregados, sócios, administradores e clientes). Prioriza-se a manutenção a organização empresarial, mesmo no caso de falência, para buscar nova harmonia em seu seio” (ANDRIGHI, Fátima Nancy. Da falência. In: LIMA, Osmar Brina Corrêa; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (coords.). Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas: Lei 11.101, de 09.02.2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 491-492). 44 Vide artigo 60 (especialmente o seu parágrafo único) e o art. 140 da Lei 11.101/2005. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 16 45 Nesse sentido, vide TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Recuperação judicial, a principal inovação da lei de recuperação de empresas, op. cit., p. 102-103. 46 Vide a respeito a opinião de Sheila Cerezetti: “Imprescindível reconhecer que a satisfação dos interesses do credor não exclui a possibilidade de preservação da empresa, já que isso pode ser alcançado sempre que o interesse dos credores identificar ser esse o melhor expediente para a realização dos direitos creditórios (CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A Recuperação judicial da sociedade por ações, op. cit., p. 134). 47 Nesse sentido, fazemos referências às lições de Fábio Konder Comparato para quem a empresa é um centro de múltiplos interesses, como os interesses dos empregados, dos minoritários do empresário, dos credores, da região, do Fisco e do Mercado em geral (COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da microempresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 102). 48 Segundo Sheila Cerezetti, “Impõe-se, então, a necessidade de atribuir um mínimo de conteúdo ao conceito de interesse público no que tange ao direito concursal, que seria equivalente a um interesse geral na manutenção da empresa, no sentido de se evitar a dispersão de organização produtiva que assegura postos de trabalho e tem relevância social”. CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações, op. cit., p. 236). 49 Vide a propósito o entendimento de Sheila Cerezetti: CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações, op. cit., p. 115-116). 50 Sobre o tema vide Manoel Justino Bezerra Filho: “A recuperação judicial destina-se às empresas que estejam em situação de crise econômico-financeira, com possibilidade, porém, de superação; pois aquelas em tal estado, mas em crise de naturezainsuperável, devem ter sua falência decretada, até para que não se tornem elemento de perturbação do bom andamento das relações econômicas do mercado. Tal tentativa de recuperação prende-se, como já lembrado acima, ao valor social da empresa em funcionamento, que deve ser preservado não só pelo incremento da produção, como, principalmente, pela manutenção do emprego, elemento da paz social” (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência, op. cit., p. 139-140). 51 CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações, op. cit., p. 116 e 234. 52 CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações, op. cit., p. 207. 53 Frise-se que Baird chegou a inclusive escrever um artigo juntamente Robert Rasmussen intitulado The End of Bankruptcy no qual afirma que as recuperações judiciais previstas pelo capítulo 11 desapareceram, sendo tal procedimento utilizado apenas para alienação dos seus ativos, mediante acordos preexistentes. Dificilmente o capítulo 11 consiste num fórum onde vários stakeholders negociam de forma aberta entre eles acerca do destino da empresa. Tal assertiva foi baseada em métodos empíricos realizados (BAIRD, Douglas; RASMUSSEN, Robert. The End of Bankruptcy. Standford Law Review, vol. 55, p. 751-752, 2002). Em resposta a esse artigo, vide LOPUCKI, Lynn. The Nature of the Bankrupt Firm: a Reply to Baird and Rasmussen’s The End of Bankruptcy. Standford Law Review, vol. 56, 2003. Disponível em: [http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id="39778]." Acesso em: 02.02.2016. 54 Nas palavras da autora, “If the inquiry over bankruptcypolicy becomes nothing more than a debate over allocative efficiency, it will pass over crucial elements of the policy scheme that cannot be so neatly tied up in economic models” (WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 338). 55 WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 343. 56 “This system aims greater or lesser efficacy, toward four principal goals: (1) to enhance the value of the failing debtor; (2) to distribute value according to multiple normative principles; (3) to internalize the costs of the business failure to the parties dealing with the debtor; and (4) to create reliance on private monitoring” (WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 17 343-344). 57 Tal propósito pode parecer estranho, à primeira vista, ao leitor brasileiro. Todavia, o sistema de falências americano é eminentemente privado, o que o diferencia do sistema brasileiro, o qual é público, uma vez que processado perante o Poder Judiciário. Logo, é preciso dotá-lo de mecanismos de controle por parte daqueles que integram o processo. 58 Em português, pode-se traduzir por empresa em andamento. 59 WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 345, 350 e 351. 60 WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 353. 61 Nota-se aqui a preocupação da autora com a par conditio creditorum. 62 WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 362. 63 WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking in an Imperfect World, op. cit., p. 362. 64 Sobre o tema vide MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, op. cit., p. 228 e ss. 65 Nas palavras de Betti, “Si los particulares, en las relaciones entre ellos, son dueños de perseguir, en virtud de su autonomía, los fines prácticos que mejor responden a sus intereses, el orden jurídico es, con todo, árbitro de ponderar tales fines según sus tipos, atendiendo a la transcendencia social, tal como él la entiende, conforme a la sociabilidad de su función ordenadora. Es obvio, en efecto, que el Derecho no pude prestar su apoyo a la autonomía privada para la su consecución de cualquier fin que ésta se proponga. Antes de revestir al negocio con su propia sanción, el orden jurídico valora la función práctica que caracteriza su tipo y lo trata en consecuencia. Las hipótesis posibles son tres: a) que no juzgue su función digna o necesitada de tutela, en cuyo caso ignora el negocio y lo abandona a sí mismo como indiferente, dejándolo desprovisto de sanción jurídica; b) que considere, en cambio, su función como socialmente trascendente y digna de tutela, y entonces reconoce al negocio y lo toma bajo su protección; c) o que, finalmente, estime la función reprobable, y entonces combate al negocio, haciendo sí, jurídicamente trascendente el comportamiento del individuo, pero en el sentido de provocar efectos contrarios al fin práctico normalmente perseguido. Cuando el orden jurídico no inviste al negocio con su tutela, si bien existe un negocio de la vida privada en sentido social, con una correspondiente función práctica, no se tiene, sin embargo, un negocio jurídico, sino, o un acto jurídicamente intranscendente (en la primera hipótesis señalada) o un acto jurídico ilícito (en la tercera hipótesis). Sólo en la segunda hipótesis consignada es elevado a la dignidad del negocio jurídico el acto de autonomía privada; entonces el Derecho le concede los efectos jurídicos destinados a asegurar el cumplimiento de la función útil que caracteriza a su tipo y le da vida de modo más ajustado posible” (BETTI, Emilio. Teoria general del negocio jurídico. Traduzido por A. Martins Perez. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959, p. 50-51). 66 COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da microempresa, op. cit., p. 102. A função da Lei de Recuperação e de Falência no sistema de direito privado brasileiro Página 18
Compartilhar