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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Gizele Bakman Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção Rio de Janeiro 2019 Gizele Bakman Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profa. Dra. Anna Paula Uziel Rio de Janeiro 2019 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte. ___________________________________ _______________ Assinatura Data B168 Bakman, Gizele. Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção/ Gizele Bakman. – 2019. 174 f. Orientadora: Anna Paula Uziel. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicologia Social – Teses. 2. Avós – Teses. 3. Judaísmo – Teses. 4. Adoção – Teses. I. Uziel, Anna Paula.. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. es CDU 316.6 Gizele Bakman Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovada em 5 de fevereiro de 2019. Banca Examinadora: __________________________________________ Prof.ª Dra. Anna Paula Uziel (Orientadora) Instituto de Psicologia - UERJ __________________________________________ Prof.ª Dra. Claudia Lee Williams Fonseca Universidade Federal do Rio Grande do Sul __________________________________________ Prof.ª Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues Instituto de Psicologia - UERJ __________________________________________ Prof.ª Dra. Monica Grin Monteiro de Barros, Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________________ Prof.ª Dra. Alessandra de Andrade Rinaldi Universidade Federal Rural o Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2019 DEDICATÓRIA Aos meus avós e àquela menina, neta deles... AGRADECIMENTOS Muito tenho que agradecer neste momento. Foram anos intensos: estudo, debates, entrevistas, aulas, sensações, pensamentos, descobertas... Terminar a tese é um alivio pelo cansaço, tensão, cumprimento dos prazos e tarefas. Concluir, no entanto, é penoso porque significa fechar uma jornada extremamente gratificante, afetuosa e alegremente imprevisível. É conseguir deixar para trás uma intensa e proveitosa etapa de minha vida, onde aprendi nos acertos, nos enganos, nas palavras e nos silêncios. Agradeço a todos que me estiveram neste caminho, mas em especial, a minha orientadora Profa. Dra. Anna Paula Uziel, a Anna, pela oportunidade, estímulo, confiança, dedicação (insana) e amizade. A minha família mais próxima, em especial ao meu marido Mario, sempre preocupado e interessado na pesquisa, aos meus filhos Igor e Tamar, lindos e maravilhosos, ao meu filhote Simba, com seu silencio cúmplice, sou grata pelo incentivo e parceria nestes anos, acolhendo minhas alegrias, expectativas e apreensões. Também agradeço aos demais que chamo de família, que vibram pelas minhas conquistas, em especial: minha mãe, pai, sogro e sogra (z’l), que partiu recentemente, mas que era a que mais ansiava por me ver chegar até aqui. Sou grata aos meus amigos e amigas da vida, pela torcida e entusiasmo pela minha aventura. E, certamente, @s minh@s companheir@s do grupo de pesquisa de Mestrado, Doutorado e de todos os outros zilhões de projetos da Profa. Anna, tod@s pesquisador@s chei@s de ideias, energias e empenho para um mundo melhor, junto a quem tive ricos momentos de aprendizado e divertimento. Em especial à querida Jimena de Garay Hernández, pela sua disponibilidade e generosidade sempre presentes. Agradeço a banca examinadora, Profa. Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues, Profa. Dra. Claudia Lee Williams Fonseca, Profa. Dra. Monica Grin Monteiro de Barros, Profa. Dra. Alessandra de Andrade Rinaldi e Prof. Dr. Marco Antonio Ferreira do Nascimento pela leitura e interesse de participar desta jornada. E finalmente, agradeço aos avós, avôs, netos e netas, e suas famílias, que me receberam em suas casas e em suas vidas, me agraciando com suas memórias e afeto. Enquanto a erudição importa tremendamente, a família importa ainda mais. Estes dois esteios tendem a se sobrepor. Pais, mães, professores. Filhos, filhas, alunos. Texto, questão, debate. Não sabemos quanto a Deus, mas a continuidade judaica sempre foi pavimentada com palavras. Amós Oz e Fania Oz-Salzberger RESUMO BAKMAN, Gizele. Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção. 2019. 174 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Esta pesquisa, realizada com avós judeus que têm netos por adoção, pretendeu perceber como estas famílias a vivem, visto que é considerado judeu aquele que nasce em ventre judeu, tornando, em princípio, o laço sanguíneo uma marca importante na transmissão do judaísmo. A adoção, aceita pela lei judaica, ainda não é tão comumente realizada nesta comunidade. Foram entrevistadas 10 famílias, sendo 10 avós e três avôs, com idades entre 69 e 80 anos, com netos por adoção, entre quatro e 45 anos. As inspirações metodológicas manejadas foram a Cartografia e a História Oral. Para os avós, família é afeto e convivência, realizada através da continuidade do judaísmo, especialmente pelos seus aspectos de tradição e cultura. O pertencimento ao judaísmo fez parte das narrativas, seja através de uma identidade judaica, que se apresenta multifacetada, seja como afirmação da não necessidade de vínculos biológicos para a incorporação da criança por adoção à genealogia familiar. Mesmo quando a família não se percebia ligada ao judaísmo praticante, os netos, em sua maioria, realizaram cerimônias religiosas, rituais desempenhados para fortalecer valores, como continuidade e pertencimento. Fator importante na adoção é a realização do projeto parental dos filhos. Para os avós judeus por adoção, os laços familiares são tecidos na convivência e no afeto, embalados e reforçados pelas tradições do povo judeu, seus costumes e valores. Palavras chaves: Família. Avós. Adoção. Judaísmo. RESUMEN BAKMAN, Gizele. Por entre las tramas familiares: abuelos judíos y sus nietos por adopción. 2019. 174 f. Teses (Doctor em Social Psicología) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Esta investigación, realizada con abuelos judíos que tienen nietos por adopción, pretendió percibir cómo estas familias la viven, ya que es considerado judío el que nace en vientre judío, haciendo, en principio, el lazo sanguíneo como una marca importante en la transmisión del judaísmo. La adopción, aceptada por la ley judía, todavía no se realiza comúnmente en esta comunidad, y posee determinadas reglas, no siempre cumplidas. Se entrevistaron10 familias, siendo 10 abuelas y 3 abuelos, con edades entre 69 y 80 años, con nietos por adopción, entre 4 y 45 años. Las inspiraciones metodológicas manejadas fueron la Cartografía y la Historia Oral. Para los abuelos, familia es afecto y convivencia, realizada a través de la continuidad del judaísmo, especialmente por sus aspectos de tradición y cultura. La pertenencia al judaísmo formó parte de las narrativas, sea a través de una identidad judía, que se presenta multifacética, sea como afirmación de la no necesidad de vínculos biológicos para la incorporación del niño a la genealogía familiar. Incluso cuando la familia no se percibía ligada al judaísmo practicante, los nietos por adopción, en su mayoría, realizaron ceremonias religiosas, rituales desempeñados para fortalecer valores, como continuidad y pertenencia. Factor importante en la adopción es la realización del proyecto parental de los hijos. Para los abuelos judíos por adopción, los lazos familiares se tejen en la convivencia y el afecto, envueltos y reforzados por las tradiciones del pueblo judío, sus costumbres y valores. Palabras clave: Familia. Abuelos. Adopción. Judaísmo. LISTA DE GENOGRAMAS: Genograma 1 – A família de Sarah ...................................................................... 53 Genograma 2 – A família de Rebeca .................................................................... 58 Genograma 3 – A família de Isac e Lea .............................................................. 63 Genograma 4 – A família de Debora .................................................................... 69 Genograma 5 – A família de Miriam ..................................................................... 74 Genograma 6 – A família de Malka ...................................................................... 78 Genograma 7 – A família de Guita ....................................................................... 83 Genograma 8 – A família de Dinah....................................................................... 88 Genograma 9 – A família de Vicente e Luna ........................................................ 92 Genograma 10 – A família de Nicholas e Agatha ................................................... 97 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................... 10 1 A TRAJETÓRIA E OS (DES)CAMINHOS DE UMA PESQUISA SOBRE FAMÍLIAS ........................................................................................... 22 1.1 Inspirações metodológicas .............................................................. 22 1.2 Outras inspirações ............................................................................ 26 1.3 Aproximando o olhar ........................................................................ 29 1.3.1 Camadas médias ................................................................................ 30 1.3.2 Avós .................................................................................................... 31 1.3.3 O judaísmo ......................................................................................... 36 1.3.3.1 Pistas históricas .................................................................................. 37 1.3.3.2. Povo, cultura, religião .......................................................................... 39 1.3.3.3 Adoção e judaísmo .............................................................................. 45 2 MEUS ENTREVISTADOS ................................................................... 47 2.1 Sarah .................................................................................................. 53 2.2 Rebeca ............................................................................................... 58 2.3 sac e Lea ............................................................................................ 63 2.4 Debora ................................................................................................ 69 2.5 Miriam ................................................................................................. 73 2.6 Malka. ................................................................................................. 78 2.7 Guita ................................................................................................... 83 2.8 Dinah .................................................................................................. 87 2.9 Vicente e Luna ................................................................................... 91 2.10 Nicholas e Agatha ............................................................................. 96 3 FIOS FAMILIARES: ENTRE HISTÓRIAS, CORES E AFETOS ........ 102 3.1 Trançando histórias ........................................................................ 104 3.2 Trançando cores.............................................................................. 113 4 FIOS FAMILIARES: ENTRE RELIGIÃO, CULTURA E AFETO ........ 123 4.1 Continuidade e tradição .................................................................. 123 4.2 Religião, cultura e povo .................................................................. 134 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 147 REFERÊNCIAS ................................................................................. 156 GLOSSÁRIO ..................................................................................... 170 APÊNDICE - A Message for the Baby Whose Bris It Was at the Pittsburgh Synagogue, de Zev Steinberg ........................................................... 173 10 INTRODUÇÃO (...) criar um problema de pesquisa é virar a própria mesa, rachando os conceitos e fazendo ranger as articulações das teorias. Sandra Mara Corazza Alguns passos Com este texto celebro o final do meu Doutorado em Psicologia Social. Percorrer o caminho acadêmico era um sonho antigo, mas meu percurso profissional foi acontecendo de forma pouco planejada: em busca de trabalho, de colocação profissional e de conhecimentos. Ao ingressar no curso de Psicologia, no início dos anos 80, pretendia trabalhar com educação infantil, mas no término da Graduação, acabei por me encantar pela clínica de crianças, o que provocou meu encontro com a Terapia Sistêmica de Famílias e, a partir desta, com outras práticas sistêmicas, como: a Facilitação de Grupos, a Mediação de Conflitos e a Terapia Comunitária, além da possibilidade de lecionar em Curso de Especialização em Terapia de Família, por muitos anos, e atuar em diversos projetos realizados no Terceiro Setor. Somente em 2011, com mais de 20 anos de formada, é que ingressei no Mestrado em Psicologia Social da UERJ e realizei uma linda e divertida pesquisa com crianças sobre família. Concluído o Mestrado, desejava continuar a pesquisar o tema das famílias por alguma perspectiva diferente. Percebia tantas possibilidades, vieses, recortes, atravessamentos, mas não sabia por onde ir e não tinha quaisquer preferências. Um dos grupos de pesquisa com crianças, realizado no Mestrado, aconteceu em um abrigo. Fiquei especialmente impactada com uma das meninas, que demonstrou muita força de vida ao afirmar que seria médica, se imaginava fora do abrigo, apesar de ter uma história triste, aos seis anos de idade, marcada por mortes e abandono. Sonhei que a tinha adotado, porém, no sonho, tinha dúvidas de levá-la aos serviços religiosos da minha religião – o judaísmo. O sonho me impactou pelo forte desejo de adotá-la, mas também pelo ponto em que ele me interrogava: em que sentido introduzi-la numa nova prática religiosa seria um desrespeito? O quanto sua participação na religião seria importante para mim? Como minha mãe se sentiria a 11 respeito de sua presença na sinagoga?Ou de sua ausência? Ela, minha mãe, que é a representante desta linhagem familiar. Desta forma me surgiu uma questão: seria a religião um impasse para as famílias por adoção, como tinha sido no sonho para mim? Conversando sobre a ideia com minha orientadora, Anna Paula Uziel, e com uma pessoa que trabalha com adoções, na Vara da Infância e Juventude, lembrando de histórias ouvidas na clínica, o tema se fortaleceu e tornou robusta a importância da rede extensa na legitimação e aceitação da adoção. Surgia, assim, um projeto de pesquisa: entrevistar avós de crianças adotadas e pensar no atravessamento família-adoção-religião, mas sem deixar de ter em mente que meu foco principal de interesse são os laços familiares, e a adoção e a religião, atravessamentos que os colocam em evidência. O que me move atrai no campo de estudos sobre famílias é o quanto, apesar de problemas e conflitos, ela continua central na vida das pessoas, o quanto os laços sanguíneos são difíceis de desatar, mesmo quando já estão desgastados e esgarçados - um certo mistério sobre tamanha força. Já no Doutorado, comecei a pensar como o tema me envolvia diretamente, já que a adoção não estava, aparentemente, presente na minha vida ou de minha família. De repente, percebi que tive um maravilhoso avô adotivo: o pai de minha mãe era, de fato, seu padrasto. Só descobri este segredo de família na pré-adolescência. Na época, lembro que, passado o susto e certo sentimento de ter sido enganada, prevaleceu o enorme carinho e amor que emanava dele a todos os seus netos. Ele representa para mim, até hoje, mesmo falecido há quase 30 anos, uma fonte de amor, segurança, aceitação, cumplicidade - sentimentos fortes e inesquecíveis. Pensar que ele não possuía laços sanguíneos comigo, conosco, reconhecer a forma como abraçou, em vida, a esposa, seus filhos pequenos e, posteriormente, netos, somente fortalece o enorme afeto que sinto por ele. Seu nome em hebraico era Chaim, que significa vidas, nome que usávamos em preferência ao nome em português1, Jayme. Penso, e sinto, que ele nos deu mesmo vida, não por meio de seu material genético, mas pelo seu afeto e dedicação, pelo seu grande e profundo amor. Fiquei bastante feliz em encontrar algo que conecta minha história pessoal à minha pesquisa, em percebê-la se entremeando à minha vida, de forma ainda mais significativa. Afinal, como diz Latour (2006, p.343): “Bons trabalhos de campo sempre produzem muitas novas descrições...”. 1 Na tradição judaica, as crianças recebem nomes, em hebraico ou ídiche, em homenagem a parentes que, muitas vezes, não são usados no cotidiano, e diferem dos nomes do registro civil. 12 Antes de iniciar o campo, percebi que o tema mobilizava outros ao meu redor, de uma forma intensa e surpreendente. Há uma amiga, que já é avó de cinco netos e, sempre que nos encontramos, me pergunta da pesquisa e fala espontaneamente que acredita que não aceitaria bem um neto por adoção, mostrando vontade de conversar a respeito. Há um casal de amigos que sempre comenta sobre uma família que frequenta sua sinagoga, cujos pais são gays e adotaram um menino. Insistem que não posso deixá-los de fora da minha pesquisa e me parecem movidos por sua própria curiosidade a respeito. Ao longo do tempo, encontrei muitos olhares surpresos ao mencionar o tema da pesquisa, com interrogações se há mesmo famílias por adoção na comunidade judaica; sem falar dos tantos conhecidos que não se lembraram, ou não quiseram lembrar, de me indicar famílias que notoriamente tinham crianças por adoção. Esquecimento que também me sucedeu, como será contado. Conforme me entrego ao tema, aos entrevistados, às leituras do campo e à escrita, se torna mais forte a ambivalência que é pensar a família. Ambivalência porque, por um lado, percebo toda a sua complexidade, dificuldade de definição, de abranger as mais diversas experiências; e por outro, me deparo com algo simples, conhecido, quase óbvio, pertencente ao cotidiano de todos e todas. O que me faz lembrar de uma das ideias que esteve bem presente nas crianças do Mestrado: família é família, e ponto final! Assim, algumas perguntas pareceram bons orientadores, nesta pesquisa, para tentar alcançar descrições sobre o ser família: Como os laços são construídos quando há adoção? Como a religião adentra nesta tessitura? Qual o lugar dos avós nestas famílias? Me embrenho num mundo de novos estudos e pensamentos, num tema aparentemente tão antigo e corriqueiro, mas com a certeza de ser um universo que se expande, a todo tempo, em inúmeras direções. Desbravando caminhos Bourdieu (1996) afirma que a família é “(...) certamente uma ficção, um artefato social, uma ilusão no sentido mais comum do termo, mas “uma ilusão bem- fundamentada” (...).” (p.135) que, por vezes, alguns modelos ficam cristalizados e naturalizados como o da família heterossexual biparental. Apesar de todo o empenho de determinados grupos em definir e limitar o que é família, falar de família é falar sempre de uma diversidade social. As pesquisas 13 históricas indicam que nunca foi possível falar com unicidade a respeito do tema, seja no Brasil (SAMARA, 1983), ou mesmo em outros países (CORRÊA, 2012; SEGALEN, 1999). As possibilidades são múltiplas, bem além do simples modelo de família nuclear, casal heterossexual com filhos, tão presente no imaginário social e bastante cultuado no ocidente. Tal diversidade tem ganho maior visibilidade, ampliando a ideia do que pode ser considerado família: conjugalidades em diferentes formatos, recasamentos, casais sem filhos, homoparentalidade, monoparentalidade, pluriparentalidade. Muitas destas dinâmicas estão atreladas às transformações das relações de gênero, ao advento do feminismo, à cultura da adoção e às novas técnicas reprodutivas, incrementadas nas últimas décadas. O objetivo do presente estudo é pesquisar este grupamento social que, em nossa sociedade, conhecemos como família, percorrendo a tessitura de seus laços. Para tanto, entre diversas possibilidades, escolhi mirá-los através das famílias onde há laços por adoção. E, ainda, a partir do olhar dos avôs e das avós2, parte da família extensa que possui, a meu ver, enorme importância na trama familiar, mas que não se encontra diretamente ligada ao processo decisório da adoção. Possuo também a ambição de alcançar os sentidos construídos sobre o ser e o estar em famílias, atravessadas pelo judaísmo. No Mestrado (BAKMAN, 2013), as entrevistas foram realizadas com crianças a respeito do que pensam sobre famílias, como as definem e com quais critérios determinam quem são as pessoas consideradas como seus membros. Participaram das seis entrevistas em grupo, meninos e meninas, entre seis e 11 anos, em um total de 22 crianças de diferentes camadas sociais, todas da cidade do Rio de Janeiro, sendo algumas abrigadas. Nas entrevistas, as crianças fizeram desenhos de família, responderam algumas perguntas, mas, especialmente, discutiram entre si os temas levantados, de onde pude compreender suas visões, posicionamentos e sentidos sobre o tema. As crianças entrevistadas experimentavam diferentes manejos para conjugar aspectos que consideram importantes na conceituação de família, como afeto, 2 Na língua portuguesa quando nos referimos juntamente a pessoas do sexo feminino e do sexo masculino, como a avó e o avô, devemos formar o plural com a palavra avós, ou seja, os avós. Para facilitar o fluxo da leitura, mesmo que a maioria dos entrevistados tenha sido do sexo feminino, como será ainda apresentado, usarei o plural no masculino, seguindo as regras da norma culta da língua. 14 convivência e relações sanguíneas, que se articulam no que denominei, na época, de “camadas”, com maior ênfase no aspecto afetivodas relações. Camadas não no sentido de estratificação, mas de planos que se cruzam, se confundem, se atravessam, provenientes de distinções advindas de suas experiências pessoais. Penso agora, numa releitura, que essas camadas podem ser pensadas como dobras. A dobra “(...) exprime tanto um território subjetivo quanto o processo de produção desse território (...).” (SILVA, 2004, p. 56). As camadas entrelaçavam critérios cotidianos bastante comuns, assim como criavam novas possibilidades para justificar a inclusão e/ou exclusão de membros. Na visão das crianças, há forças que se mantém, algumas que se esvaem e outras que se firmam no que tange ao sentido e aos valores do que é ser e viver em família. Laços de sangue, convivência, amor e cuidado eram características que se destacavam. A primazia dos laços de sangue, tão comum, não foi identificada: o critério mais importante, apontado por elas para o pertencimento como família, era estar entre aqueles pelos quais elas nutrem e recebem bons afetos. Eu acho que família são o grupo de pessoas que se amam, e que ficam juntos, e que gostam um do outro e que compartilham momentos inesquecíveis, um com o outro! (FERNANDA 10 anos, apud BAKMAN, 2013, p.46). Família é umas pessoas que gostam da gente, ficam com a gente, que estão no nosso cotidiano. (JOSÉ 10 anos, apud BAKMAN, 2013, p.46). Eu ia falar que família são família. (WALERIA 7 anos, apud BAKMAN, 2013, p.45). É que eu sei o que que é, mas eu não sei explicar o que que é. (ROSANE 11 anos, apud BAKMAN, 2013, p.45). Como indica Rosane (apud BAKMAN, 2013), família é algo que conhecemos porque vivemos. Que nem sempre sabemos explicar e, por vezes, somente sentimos. Que parece normal, pronto, mas que está sempre em movimento e reconstrução. Algo que se estabiliza para logo voltar a oscilar, num vai e vem, deixando alguns rastros e cobrindo outros, mas produzindo uma impressão de totalidade e de unidade. Desta forma, as crianças ofereceram um olhar rizomático sobre as famílias, pois no sistema de rizomas, qualquer parte pode ser conectada a qualquer outra, não há unidade, nem linearidade, mas multiplicidade. Não existem pontos, senão linhas, não há começo nem fim, mas um meio pelo qual cresce e transborda. “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma 15 ou outra linha e segundo outras linhas.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.18). “(...) o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.32-33). Através deste olhar rizomático, as crianças pensam as famílias como algo em movimento, não passível de totalização, pensam-na “(...) não como único, mas como multiplicidade; não como família ou mesmo famílias, e sim como familiar.” (BAKMAN, 2013, p. 83). Assim, verbo, ação, movimento, em que a liberdade de escolha é possível, as regras não podem ser impostas por outros e as definições podem variar e se adaptar, a critério de cada um. Na intenção de manter-me como pesquisadora do tema famílias, e compreendendo o familiar como ação, escolhi a adoção como uma linha, uma brecha por onde penetrar, perceber, pensar e articular o assunto - um novo ponto de partida para mim. A adoção de crianças mostrou-se um universo rico de interpretações sobre concepção de família, sobre o que significa pertencer ou configurar uma família, como também sobre os valores colocados em jogo com relação ao sangue, à transmissão genética, acerca do que se tolera ou não quando o filho é “um estranho”. (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.63). A decisão de ter filhos parte de um ou dois membros, aquele(s) que pretende(m) exercer a função de pai(s) e/ou mãe(s), mas tal atitude envolve, de alguma forma, todo um grupo familiar, que estará incluída, direta ou indiretamente, com a chegada de um novo integrante. De forma semelhante ocorre com a adoção: quando um casal ou uma pessoa decide pela adoção de uma criança ou jovem, este passará a fazer parte de uma rede de parentes, com quem possuirá relações, próximas ou distantes, mas dos quais não depende qualquer decisão a respeito. Para Dolto (1999), todos os seres humanos estão na condição de serem ou não adotados, pois ela compreende que tanto na adoção, como na paternidade e maternidade biológicas, os pais precisam desejar os filhos, imaginá-los em suas fantasias e conferir a eles um lugar na descendência familiar. A autora (1989 apud PAIVA, 2004)3 também afirma que uma criança adotiva é inserida na tradição das famílias que a acolhem, apontando a importância de se pesquisar como as famílias dos pretendentes pensam a adoção. 3 DOLTO, Françoise. Dialogando sobre crianças e adolescentes. Campinas: Papirus, 1989. 16 O ECA - a Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente - expõe no capitulo III, art.19 (2001, p.22) o direito à convivência familiar e comunitária a que toda criança ou adolescente têm, o que indica que a relação de uma criança vai além do pai(s) e/ou mãe(s), estendendo-se a uma comunidade. Observada com certa atenção, a adoção revela-se um universo rico de interpretações não só sobre a família e o que significa pertencer a uma família, mas possibilita ampliar o entendimento sobre a sociedade em que vivemos, seus valores e seus preconceitos. A adoção é um ato jurídico que fixa relações. (VIEIRA, 2004b, p.1). A adoção é um tema atual e importante no Brasil, visto que há um número grande de crianças e jovens institucionalizados, sob responsabilidade do Estado, desejosos de serem reinseridos em uma vida familiar (OLIVEIRA, 2007). O registro das crianças disponíveis consta do Cadastro Nacional de Adoção (CNA)4. Após uma década de sua implementação, o sistema está sendo substituído por um novo CNA5, que tem o objetivo de colocar a criança como sujeito principal do processo, para que se permita a busca de uma família para ela. Assim, além das crianças aptas à adoção, o novo sistema traz informações do antigo Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual 47 mil crianças que vivem em instituições de acolhimento em todos os estados estão cadastradas. Os dados confirmam uma triste diferença entre as crianças que precisam de uma família e o desejo dos adotantes, que buscam, geralmente, um perfil difícil de ser encontrado (VIEIRA, 2004a)6. Nesta questão é importante sinalizar o intenso trabalho realizado em Varas de Infância e Juventude junto às famílias adotantes, em palestras e encontros preparatórios7, obrigatórios no processo de Habilitação para adoção, que além de 4 O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) é uma ferramenta digital que auxilia juízes das Varas da Infância e da Juventude na condução dos procedimentos dos processos de adoção em todo o país. 5 A grande inovação é um sistema de alertas que informa automaticamente, via e-mail, sobre a existência de uma criança ou pretendente compatível com aquele perfil que o juiz acabou de registrar, abrangendo dados de todo o Brasil. Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e- acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna. Acesso em: 03/04/2017. 6 A partir da literatura do campo e das informações advindas de palestras sabe-se que casais heterossexuais são bastante seletivos em sua procura por adoção. Eles têm preferências por meninas, brancas e recém-nascidas, porque desejam filhos semelhantes fisicamente, e/ou por acreditar que crianças pequenas e do sexo feminino são mais fáceis de educar e moldar. (VARGAS; MOÁS, 2010). 7 Podemos citar: o Café com Adoção (Disponível em: http://cafecomadocao.blogspot.com.br/. Acesso em: 21/9/2013.), que acontece na 1ª VIJ, cujas reuniões são abertase extraprocessuais, e o Flor de Maio, que tem encontros na Barra da Tijuca e em Madureira. (Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna http://cafecomadocao.blogspot.com.br/ 17 auxiliar no recebimento da criança ou jovem, também sensibilizam e culminam na ampliação deste perfil, como confirmam as pesquisas de Gondim et al (2008) e Silva e Benetti (2015). Rinaldi (2014) considera que as pessoas que pretendem realizar um projeto parental através da adoção possuem múltiplas razões: infertilidade, o não desejo de passar novamente por uma gravidez, por serem solteiras, por histórias pessoais ligadas à adoção, por serem um casal homoparental, por falta de recursos para buscar soluções médicas ou até como resultado de “uma cultura da adoção” promovida pelo Estado. (RINALDI, 2010; OTUKA; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2012; AMAZONAS; VERÍSSIMO; LOURENÇO, 2013; NASCIMENTO, 2011). Sobre a questão da motivação, Nizard (2009) afirma que as famílias, em sua maior parte, passaram primeiramente por tratamentos médicos na tentativa de fertilização, sendo a adoção uma decisão após o diagnóstico de infertilidade, como relatado em diversas outras pesquisas no Brasil (REPPOLD; HUTZ, 2003; SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006). El modelo privilegiado es el de la familia centrada en el lazo adulto-niño, que se relacionan voluntariamente en lo cotidiano, para vivir una relación directa, auténtica y responsable en términos de cuidado, educación y afecto. Hoy, la adopción es percibida cada vez más como la encarnación de este modelo y no como un desvío de la norma. (TARDUCCI, 2013, p.124)8. Seja qual for a motivação, o que está em jogo, para as pessoas ou os casais envolvidos, é a construção de um modelo de família que ainda é considerado um modelo ideal. Machin (2016), ao pesquisar sobre homoparentalidade, afirma: “Importa considerar que a decisão dos casais para realizar o projeto de ter filhos está informada por um contexto no qual estão em jogo valores culturais e simbólicos associados ao ideal de conformação de uma ‘verdadeira família’.” (MACHIN, 2016, p.354). Assim, a adoção é uma forma através das quais as famílias podem dar realidade ao projeto de parentalidade. Etimologicamente, a palavra adotar, do latim adoptare, significa considerar, escolher, cuidar. Conservando a origem do termo, de acordo com Levinzon (2004 http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp- content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf. Acesso em: 21/9/2013). 8 Tradução: O modelo privilegiado é o da família centrada no vínculo adulto-criança, que se relaciona voluntariamente no cotidiano, para viver uma relação direta, autêntica e responsável em termos de cuidado, educação e afeto. Hoje, a adoção é cada vez mais percebida como a incorporação desse modelo e não como um desvio da norma. http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp-content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp-content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf 18 apud AMAZONAS; VERÍSSIMO; LOURENÇO, 2013, p.633)9, a adoção é uma forma de oferecer a uma criança, que não pôde ser criada pelos pais que a conceberam e gestaram, a oportunidade de fazer parte de uma família, sendo por ela desejada e cuidada. Fonseca (2006) assinala que o termo “adoção”, frequentemente utilizado pelos brasileiros de classe média, não faz parte do vocabulário cotidiano nos bairros pobres, onde são mais utilizadas variantes do verbo “criar”. “A distinção é significativa, pois, linguisticamente, a ênfase é colocada no vínculo mais do que no indivíduo autônomo.” (FONSECA, 2006, p.20). Nesses bairros, assim como pode ser visto em outro trabalho da mesma autora (FONSECA, 1995), encontra-se comumente a circulação de crianças, que é “(...) a transferência de uma criança entre uma família e outra, seja sob a forma de guarda temporária ou de adoção propriamente dita.” (FONSECA, 2006, p. 13). A prática de circulação de crianças é antiga no Brasil e em vários países do mundo (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005; CARSTEN, 2014b), e aponta o quanto o cuidado das crianças pode ser realizado por pessoas para além dos pais ou da família próxima. Se na pesquisa do Mestrado parti da visão das crianças, aqui elejo partir do olhar dos avós, outra linha deste rizoma família. As crianças são os mais jovens deste emaranhado e, a meu ver (BAKMAN, 2013), trazem frescor, questionam coerência, colocam em xeque valores já adormecidos. E os avós, por sua vez, podem trazer a credibilidade de sua antiguidade, de seu posto, de sua história de vida percorrida, de valores afirmados, de caminhos já traçados. Seriam ambos os olhares tão diferentes assim? Avós e netos unem-se pelo parentesco; estão separados pela idade e pela diferença social resultante do fato que, como netos, estão em vias de vir a participar plenamente na vida social da comunidade dos avós que estão gradualmente se retirando dela. (RADCLIFFE-BROWN, 2013, p. 91). Tornar-se avó ou avô, seja por adoção ou não, não é uma escolha dos próprios, como já disse. Pode ser algo desejado, mas não depende deles sua ocorrência. No entanto, uma vez sucedido, os avós, vivos ou falecidos, presentes ou ausentes, próximos ou distantes, idosos ou mais jovens, tornam-se parte da história de um neto, assim como outros parentes da família extensa; mas, por serem pais dos pais 9 LEVINZON, Gina Khafif. Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 19 possuem um local, geralmente, privilegiado de expressão e participação em nossa sociedade brasileira. Segundo Mietkiewicz (2005), na França, o aumento da esperança de vida, a melhoria do estado de saúde dos idosos, a diminuição da taxa de natalidade e a mudança dos modos de organização familiar contribuíram para modificar e transformar as representações dos avós. Segundo a autora, “Os avós são (...) convocados a representar a estabilidade quando as transformações da família mudam as referências.” (MIETKIEWICZ, 2005, p.103) 10. Mesmo com as mudanças ocorridas nas rotinas sociais, nas dinâmicas e valores familiares, os avós ainda participam da vida em família, sejam como cuidadores dos seus netos (PAIXÃO; MORAIS, 2016) ou não. E, quando distantes geograficamente, a casa dos avós e a relação com os mesmos apontam para um espaço importante de socialização entre as gerações (RAMOS, 2014). Para Barros (1989, p.33), “No meio familiar, os avós representam a imagem da união entre seus antepassados e seus descendentes”, e são fundamentais na manutenção da identidade familiar. As pesquisas mostram a importância que tem a presença de um avô ou avó na vida de um neto ou neta, diante das inevitáveis transformações da vida em família. Neste tópico dos cuidados dos netos, há diferenças relacionadas às diversas camadas sociais no Brasil, já que nas camadas populares é mais comum a presença dos avós no cuidado direto das crianças, e até no seu sustento (CARDOSO; BRITO, 2014). O censo de 201011 destaca o contingente de netos (4,7%) presente numa unidade doméstica como mais expressivo que o de outros parentes, revelando a existência de uma convivência intergeracional no interior das unidades. Assim, o campo desta pesquisa foi composto por avós, judeus, que têm netos por adoção e que se dispuseram a conversar comigo sobre suas famílias. Importante ressaltar que, com esta discussão, a intenção não é de contrapor laços biológicos a laços adotivos, numa lógica dualista, apesar de saber que “a máquina binária procede assim, mesmo quando o entrevistador está de boa-fé.” (DELEUZE; PARNET, 2004,10 No original: “(...) les grands-parents sont (...) convíes à représenter la stabilité quand les transformations de la familiie bousculent les repères.» 11 Dados do gráfico 42. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicili os.pdf. Acesso em: 11/10/2018. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf 20 p. 32); mas sim discutir e pensar a respeito destas tensões, diferenças e deslocamentos. A religião é um dos eixos de conexão e de união entre as pessoas, que fortalece os vínculos e promove o pertencimento. É, geralmente, parte da cultura familiar na qual o filho, por adoção ou biológico, é inserido. Seu entroncamento com o cotidiano aponta para a sociedade em que vivemos. Já não é mais novidade sociológica a complexa e dinâmica relação estabelecida entre família e religião, uma vez que todas as transformações pelas quais atravessa a religião em nossa sociedade projetam reflexos sobre a família; ao mesmo tempo, as mudanças que percorrem o universo familiar brasileiro incidem em vários campos do social e, entre eles, no da religião. (FALCÃO, 2001, p.173). A escolha do judaísmo será melhor abordada, mas desde o início esteve presente como algo significativo já que, além do meu pertencimento, é uma religião que valoriza a família, a tradição e os laços de sangue. Então como pensar e definir as famílias nos dias de hoje? Sarti (2003) sugere pensar “(...) a noção de família como uma “categoria nativa”, ou seja, de acordo com o sentido a ela atribuído por quem a vive, considerando-o como um ponto de vista.” (SARTI, 2003, p.26, grifo da autora). Minha intenção, desde o início, foi perceber como se tecem os laços entre netos e avós, como a adoção é vivenciada pela família extensa, como a religião a atravessa e cruza, quais os valores que estão em cena e os sentidos que os avós atribuem ao viver em família. No primeiro capítulo, apresento a trajetória percorrida a partir das escolhas que delimitaram o campo da pesquisa: as inspirações metodológicas, teóricas e as características dos entrevistados. Aproveito para explanar aspectos do judaísmo e algumas questões ligadas a identidade judaica que são fundamentais para a compreensão do rumo das conversas, bem como apresentar algumas tradições, iniciando o leitor em algumas das peculiaridades deste grupo, do qual sou parte. Defino também os múltiplos sentidos do seu avô, hoje, em grandes centros. No capitulo dois, exibo o encontro com cada um dos meus entrevistados, pinceladas de suas histórias e das marcas que deixaram em mim e neste trabalho, que foi se produzindo a cada passo. No capitulo três, discuto temas que tencionam com as questões relativas à ausência de laços de sangue: como as famílias lidam com as histórias das crianças anteriores à adoção e com as diferenças de cor entre os membros nas novas famílias. 21 No capítulo quatro, a discussão procura compreender a importância da tradição e o posicionamento dos avós sobre a condição de judeu de seus netos por adoção, penetrando assim no cruzamento entre os temas da religião, da cultura e da convivência familiar. A todo instante, procuro apontar os efeitos desta pesquisa tanto em mim, em minha vida, na minha forma de pensar, quanto no contato com meus entrevistados e suas famílias. E termino, nas considerações finais, com a pretensão de ter aberto portas para um estudo contínuo e frutífero de temas tão fascinantes e atuais. Sem certezas, mas com novas afirmações, advindas de um caminho percorrido e trançado por muitas outras mãos. A viagem só está começando. 22 1 A TRAJETÓRIA E OS (DES)CAMINHOS DE UMA PESQUISA SOBRE FAMÍLIAS Todo texto é produzido em um lugar que é definido não apenas pelo autor, pelo seu estilo e pela história de vida deste autor, mas principalmente por uma sociedade que o envolve, pelas dimensões desta sociedade que penetram no autor, e através dele no texto, sem que disto ele se aperceba... José D´Assumpção Barros 1.1 Inspirações metodológicas A Cartografia e a História Oral são as inspirações metodológicas deste trabalho, reunidas pela valorização e pelo reconhecimento das entrevistas como um recurso primordial, que abre e aponta caminhos, levanta ideias e produz saberes. A junção dessas duas perspectivas se justifica também, pois pretendo discutir como cada entrevistado, ao traçar sua história e trajetória de vida, vivencia o ser e estar em família, e, juntos produzimos saberes aqui articulados. Uma prática de pesquisa é um modo de pensar, segundo Corazza (2007). A autora afirma que não se opta por uma metodologia de pesquisa “(...) e sim por uma prática de pesquisa que ‘nos toma’, no sentido de ser para nós significativa.” (CORAZZA, 2007, p. 121), que está implicada em nossa própria vida. A Cartografia, como perspectiva teórico-metodológica, tem suas origens nos trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, embora tenha sido debatida e incorporada como prática de pesquisa por diferentes autores e grupos (BENET; MERHY; PLA, 2016) também no Brasil. A Pesquisa Cartográfica confia na potência dos encontros estabelecidos no processo de pesquisar. Há uma aposta na construção coletiva do conhecimento entre pesquisadores/pesquisadoras e pesquisados/pesquisadas. (KASTRUP; PASSOS, 2014). “O pesquisador articulado vai a campo e move-se com ele para aprender; há um vínculo mútuo entre ele e aquilo que se faz presente no campo.” (POZZANA, 2014, p.59). Na Cartografia, fala-se em pistas porque não há regras fixas, mas sim uma forma fluida de se posicionar. Como método de pesquisa-intervenção, ela não se faz 23 de modo prescritivo: tem como diretriz estar sempre atento ao percurso, considerando os efeitos do pesquisar. Numa cartografia o que se faz é acompanhar as linhas que se traçam, marcar os pontos de ruptura e de enrijecimento, analisar os cruzamentos dessas linhas diversas que funcionam ao mesmo tempo. (KASTRUP; BARROS, 2010, p. 90-91). Na Cartografia também não é possível separar a análise das demais fases da pesquisa. A atitude de análise está sempre presente: a pesquisa é constantemente interrogada. Tudo faz parte de um mesmo processo: “(...) os objetos não existem por si mesmos.” (BARROS; BARROS, 2014, p.183) Dessa forma, a cartografia é sempre uma pesquisa-intervenção, pois é impossível, no encontro com o objeto de estudo, não haver zonas de interferências e de indeterminações, que podem, ou não, levar a desestabilizações. Produzir conhecimento é desestabilizar, e isso é intervir. Nesse sentido, pesquisar é transformar, inventar, sempre. (ROMAGNOLI, 2014, p.50) A História Oral, por sua vez, “(...) é um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da experiência humana.” (FREITAS, 2002, p.18), valorizando as trajetórias de vida e os depoimentos pessoais (ARAÚJO; FERNANDES, 2006). É uma metodologia que pretende recolher as vozes, amplificá-las e levá-las ao espaço público do discurso e da palavra. A História Oral é uma história das memórias, do tempo das lembranças, que “(...) nos conta menos sobre eventos que sobre significados.” (PORTELLI, 1997a, p.31, grifos do autor). Ela diz respeito a versões do passado (PORTELLI, 1997b), moldadas de diversas formas pelo meio social, mas lembradas de forma profundamente pessoal. É nesta possível inconsistência ou fragilidade que a História Oral tem um sentido e um lugar a ser ocupado, com originalidade (MEIHY; HOLANDA, 2007). (...). E... por que não? Por que não... ahistória oral? Por que não a intrusão de temas incômodos como a experiência, a memória, o autobiográfico, o vivido, o diálogo, a emoção, a linguagem, a ilusão, a mentira, a dúvida, a decisão, a suspeita, o infreqüente, o minoritário, o dividido, o reconstruído, o inaudível... na história? Por que não também os vivos, em adição às almas mortas? Por que não a Babel, a mistura de falas, ao invés de um único locutor onisciente? Por que não a versão e a diversão, a perturbar a seriedade historiográfica? (RODRIGUES, 2002, p. 98-99, grifos da autora). 24 O testemunho oral nunca é igual duas vezes, ele é construído a cada encontro, já que o entrevistador também se intromete com suas perguntas, silêncios e expressões. É o resultado do diálogo entre pesquisador e pesquisado (FREITAS, 2002). Tedesco, Sade e Caliman (2014) afirmam a importância da montagem da entrevista como experiência compartilhada, entre entrevistador e entrevistado(s), estabelecida no domínio da linguagem. Para estes autores, a entrevista é uma ferramenta eficaz na construção e acesso a esse plano, tornando-a um procedimento cartográfico que é favorável não somente a “(...) acompanhar processos, como também, por meio de seu caráter performativo, neles intervir, provocando mudanças, catalisando instantes de passagem, esses acontecimentos disruptivos que nos interessam conhecer.” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014, p. 93). O entrevistador, no meu caso entrevistadora, não é uma simples observadora, pois algo se constrói no encontro da entrevista: “O olhar não é do tipo que se debruça sobre as mutações vividas nesse processo, mas daquele que se constrói junto com elas e como parte delas.” (ROLNIK, 2014, p.15, grifos da autora). As entrevistas são como uma mola mestra que faz funcionar o todo. Através delas é possível acionar a micropolítica, como definida por Rolnik (2014, p.11): as “(...) questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, através dos quais se configuram os contornos da realidade em seu movimento continuo de criação coletiva.”. O que me interessa é o saber do dia a dia, do cotidiano, da convivência, como acontece em e para cada um dos envolvidos, e como as práticas se expandem para o coletivo ou dele tomam força. Quaisquer que sejam os seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível. (BLANCHOT, 2007, p.237). A entrevista exige dos participantes uma interação na experiência, uma entrega, uma cumplicidade. As emoções precisam estar presentes, permitindo a troca. “Fazer passar os afetos: é isso que parece gerar brilho.” (ROLNIK, 2014, p.47, grifo da autora). A confiança é um tema discutido por autores como Sade, Ferraz e Rocha (2014), que a consideram elemento essencial e ético a ser construído no espaço da entrevista. Me é impossível pensar na realização dos encontros, seja para troca de 25 informações, contagem de histórias, escuta de relatos ou exposição de opiniões, sem que tenha sido alcançado um bom grau de confiança entre os participantes. Há de se ressaltar, nessa pesquisa, o fato de que os/as entrevistados são membros da comunidade judaica e, como também o sou, acredito que isto permitiu que a intimidade se construísse de uma forma mais fácil, a partir deste espaço partilhado. Partíamos de um ponto onde eu não era totalmente estrangeira e que nosso mundo detinha vários cruzamentos. Parte dos entrevistados me conheciam diretamente ou conheciam a minha família, conforme será descrito caso a caso. Tal proximidade poderia gerar algum desconforto, que sempre é pertinente a momentos de exposição mais intensa, como a que vivemos juntos, embora não tenha sido a minha impressão mais forte. E sim, de que o terreno em comum, não totalmente desconhecido, interferiu positivamente na força dos encontros e na construção de uma confiança a priori. “Eis o que encontramos na palavra confiança: con fiar – fiar com, tecer com, composição e criação com o outro/outrem.” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014, p. 69, grifos dos autores). Os autores acima citados destacam dois aspectos incluídos na noção de confiança: engajamento e indeterminação. Compreendo que isto diz respeito à entrega da pesquisadora e do(a/s) participante(s), como também ao fato de as entrevistas serem pouco conduzidas, livres para tomar diferentes rumos, se criando a cada palavra, gesto ou olhar. Sade, Ferraz e Rocha (2014) também afirmam que é preciso estar disponível no tempo, para os assuntos, ou ainda nas condições que se apresentam, “(...) pois confiança demanda tempo, temporalidade na qual se estabelece a sintonia afetiva e o engajamento que nela se baseia (...).” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014, p. 85). Aspectos que fui aprendendo pelo caminho, “aos trancos e barrancos”, conforme vou relatar. Importante dizer que a todo instante me senti também interrogada pelas questões do campo, pelas narrativas dos entrevistados, pelos impactos de toda esta experiência em minha vida como mulher, mãe, judia, entrevistadora, pesquisadora, e, quem sabe um dia, avó! Sentimentos e questões que partilho em cada uma de minhas palavras. Ser um pesquisador implicado é analisar o lugar que se ocupa nas relações sociais e “não apenas no âmbito da intervenção que está sendo realizada. (...). É, portanto, afirmar o diverso, as diferenças que estão em nós e no mundo.” (COIMBRA; 26 NASCIMENTO, 2008). A implicação (ROMAGNOLI, 2014) é sempre efeito de um conjunto de valores, interesses, expectativas, desejos e crenças. 1.2 Outras inspirações Desde a elaboração do projeto para a inscrição na seleção do Doutorado, iniciei um levantamento bibliográfico de artigos através do Scielo, do Capes Periódicos e busquei outras fontes que foram sugeridas por colegas ou citadas por outros autores. Os artigos encontrados sobre adoção, apesar de numerosos, nem sempre foram possíveis de serem articulados com o trabalho aqui proposto, sobretudo pela diferença de enfoques e de propósitos. Há bastante escritos sobre esta temática, mas poucos que dizem respeito ao cruzamento dos temas aqui sublinhados, seja família extensa e adoção, seja religião e adoção, seja avós e adoção; e menos ainda que façam uso de abordagem metodológica semelhante. Boa parte dos autores se debruçam sobre questões específicas como a subjetividade dos técnicos que produzem os pareceres nas Varas de Família (CAMPOS; COSTA, 2004) ou a atuação fonoaudiológica no processo de um caso com adoção (SANTANA et AL, 2014), por exemplo. Uma maioria aponta impasses e problemas, aspecto que será ainda discutido. Apesar desta dificuldade de articulação, procuro citar todos aqueles que, de alguma forma, dialogam com a pesquisa aqui apresentada. Um grande achado nesta revisão foi a pesquisadora Sophie Nizard, que fez, na França e em Israel, uma ampla pesquisa sobre adoção com pais judeus, representantes religiosos e agências governamentais. Será bastante citada porque aborda, justamente, questões próximas ao que será apresentado e discutido neste estudo. Apesar de suas pesquisas não serem realizadas no Brasil, e as comunidades judaicas possuírem características diversas em cada país ou cidade que se encontram, algumas semelhanças e muitas das suas reflexões foram um alento para pensar esta pesquisa. Na busca, descobri, em uma revista12, uma menção à uma pesquisa, intitulada “A experiência da adoção pelo olhar dos avós”, conduzida por Nira Degani, sob a supervisão da Prof. Ariela Lowenstein e Dr. Eli Buchbinder da Faculdade de Bem- 12 https://www.news-medical.net/news/2007/04/17/23680.aspx Acesso em: 23/01/2018. 27 Estar Social e Estudos de Saúdeda Universidade de Haifa. O artigo menciona seu ineditismo por ter analisado as relações de adoção pelo ponto de vista dos avós. Porém, apesar de rastrear os nomes pela internet e, entrar em contato com a Universidade e com o próprio orientador, nada mais foi possível saber. O único material disponível para a leitura, além desta pequena menção, é o texto original em hebraico13. Nada foi publicado em outra língua, tornando-se um trabalho difícil de ser explorado, infelizmente. O resumo sobre esta pesquisa descrita no artigo, reproduzo aqui, já que pela impossibilidade de acesso, não disponho de mais dados. A pesquisadora entrevistou 15 avós, entre 59 e 90 anos, e identificou, o que ela nomeia, como cinco estágios no desenvolvimento das relações emocionais entre avós e seus netos adotados. Na primeira etapa, um avô olha o neto como uma solução para a angústia causada pela incapacidade de seu filho ou filha trazer uma criança para o mundo. No segundo estágio, enquanto uma forte conexão emocional ainda está ausente, o avô racionaliza a adoção e convence-se de que seus filhos salvaram uma criança abandonada. O terceiro estágio é marcado por uma conexão emocional superficial e, na quarta etapa, o avô aceita a criança como parte integrante da família multigeracional. Na fase final, os avós começam a expressar preocupação de que, quando seu neto completar 18 anos, ele começará a procurar detalhes sobre sua família biológica e poderá optar por estabelecer um relacionamento com eles e abandonar sua família adotiva, o que demonstra que os avós já olham o neto por adoção como um membro inseparável de sua família. Muitos desses aspectos se repetiram na presente pesquisa, como será possível observar, apesar das diretrizes teórico-metodológicas parecerem bastante diferentes, e que não eu não tenha nenhuma inclinação para organizar um padrão que seja comum a todos aqui entrevistados. Quanto à revisão, há poucas pesquisas no Brasil, que se dedicaram aos estudos com ou sobre avós, camada da população geralmente de idade avançada, por vezes, considerada improdutiva e com menor relevância social em nossa sociedade. Porém, há alguns estudos, sobre a relação entre eles e seus netos, que foram bons interlocutores (CARDOSO; BRITO, 2014, PAIXÃO; MORAES, 2016, RAMOS, 2014). Aqui ressalto uma publicação francesa, organizada por Schneider, 13 Link para a pesquisa enviado pela biblioteca da Universidade de Haifa: - סבאות במשפחות מאמצות :Acesso em . חווית האימוץ בעיני הסב / מאת: נירה דגני ; בהדרכת: אריאלה לבנשטיין, אלי בוכבינדר 17/10/2018. https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine 28 Mietkiewicz e Boyer (2005), intitulada “Grands-parents et grands-parentalités”14, com uma diversidade de artigos, casos e pesquisas, bastante atuais, como por exemplo, com avós cujos netos são filhos de casais homossexuais (JULIEN; BUREAU; BRUMATH, 2005), ou sobre a relação com “netos emprestados15”, filhos de parceiros de novos casamentos de seus próprios filhos, e que passam a conviver com as famílias (SCHNEIDER, 2005). Quanto ao campo dos estudos judaicos é possível encontrar vasto material sobre a imigração e a formação das comunidades judaicas pelo território nacional, como as amplas pesquisas de Egon e Frieda Wolff16, por exemplo, que preenchiam as prateleiras de minha casa. A diversidade e as características da comunidade judaica não são foco de trabalhos acadêmicos no Brasil, apesar do grande número de pesquisadores judeus, segundo Bernardo Sorj (2008). Para o autor, os cientistas sociais, de diferentes origens étnicas, estão mais identificados com uma agenda de pesquisa onde os problemas sociais encontram-se associados à classe e, mais recentemente, a gênero. Blay (2008) afirma que as Ciências Humanas, ao privilegiarem o critério racial para olhar a população brasileira, reduziram as diferenças internas de cada grupo. Apesar de os judeus terem um papel importante na construção de movimentos políticos e ideológicos, na vida econômica e científica do Brasil, são pouquíssimos os trabalhos que procuraram compreender os processos socioculturais de formação e transformação da comunidade judaica no Brasil. (SORJ, 2008, p.1). Em publicação recente, Grin e Gherman (2017) consideram que os estudos judaicos, desde os anos 2000, têm realizado uma virada, com pesquisas na área de história, ciências sociais e língua/literatura, adquirindo legitimidade no cenário acadêmico das grandes universidades; e que a sua produção já não depende do aporte mais direto das comunidades judaicas e suas instituições. 14 Tradução: “Avós e avosidades”. Na introdução (SCHNEIDER, MIETKIEWICZ E BOYER, 2005, p.24-25) falam sobre a criação do termo grand-parentalité (avosidade) a partir do neologismo parentalité (parentalidade). O sentido da palavra ainda será explorado, mas é utilizada para designar a relação existente entre avós e netos, que diz respeito tanto à competência como a um status social. 15 No original: « beaux-grand-parents ». A expressão “neto emprestado” é utilizada por uma amiga que vive esta experiência, e me parece uma boa possibilidade de tradução. 16 Egon e Frieda Wolff, pesquisadores, integrantes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, autores de dezenas de livros sobre a Imigração Judaica no Brasil, como: Judeus no Brasil Imperial. São Paulo: Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Judaicos, 1975; Judeus nos primórdios do brasil-republica. Rio de janeiro: Biblioteca Israelita H. N. Bialik, 1981. Disponível em: http://www.cbg.org.br/colegio/historia/antigos-titulares/egon-wolff/ Acesso em: 01/07/2018. http://www.cbg.org.br/colegio/historia/antigos-titulares/egon-wolff/ 29 Por sua vez, os estudos sobre família e parentesco são abundantes e perpassam os campos da Antropologia, História, Psicologia e outros mais, formando um vasto e diversificado campo de discussão, que muito inspirou todo este percurso. Assim, a revisão de todos esses campos de estudos indica a originalidade do tema escolhido e faz supor sua importância. A ausência destas correlações em outros trabalhos pode apontar também para um aspecto que foi, até recentemente, marcante em nossa sociedade: o segredo por detrás das adoções e a dificuldade de se tratar de um tema que expõe o que, com frequência, pode ser compreendido como fragilidade dos envolvidos, por indicar infertilidade, homossexualidade ou mesmo a monoparentalidade, assuntos ainda trancados na intimidade das famílias. 1.3 Aproximando o olhar O procedimento adotado nesta pesquisa foi de entrevistas abertas porque aposto, como já apresentado, que a pesquisa acontece em um espaço do meio, onde não há polos estáveis sujeito-objeto, e sim um espaço dialógico. Segundo Sade, Ferraz e Rocha (2014), a entrevista é o campo de circulação de determinados discursos. É um campo interativo (SOLON; COSTA; ROSSETTI-FERREIRA, 2008) em que as características de cada participante, seja ele entrevistado(s) ou entrevistadora, marcam o fluxo e o curso da conversação. Ao iniciar o campo, planejava buscar participantesde outras religiões, como o espiritismo e o candomblé, visto terem aspectos semelhantes no que tange ao não proselitismo e a uma importância concedida aos laços familiares, mesmo que de forma diferente do judaísmo. No entanto, esta intenção foi alterada a partir da banca de qualificação, porque, diante de tantas sugestões apontadas e perguntas formuladas, percebemos, eu e minha orientadora, que já havia material abundante, nos encontros com os avós judeus, para uma ampla discussão do cruzamento dos temas família, adoção e religião. (...) os planos, teórico e empírico, da pesquisa estabelecem entre si uma conversação, um processo de contágio ininterrupto entre ideias e gestos técnicos que exigem desvios, mudanças no projeto, a serem realizadas ao longo de todo desenvolvimento da investigação. (TEDESCO, 2015, p.33). Antes desta tomada de decisão, realizei uma entrevista com um avô católico, feliz, naquele momento, com a oportunidade de incluir um participante do sexo 30 masculino, pois já havia entrevistado duas avós judias. Sabia que Barros (1987), ao pesquisar família na perspectiva dos avós, teve dificuldade em encontrar homens que se dispusessem a dar seus depoimentos, o que a fez, na época, concluir que falar de família era um assunto da esfera feminina. Aspecto também encontrado por pesquisadores franceses que afirmam que os avôs são menos pesquisados que as avós (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005). E quando citados nas pesquisas (SCHNEIDER; BOYER, 2005), é possível perceber um paralelismo com os trabalhos existentes sobre a presença/ausência do pai, onde o acento é colocado sobre a perspectiva da carência ou da deficiência. Assim, ao decidir me limitar aos avós da comunidade judaica, retirei este material da tese, mas como a entrevista teve aspectos muitos interessantes, justamente ligados à questão do gênero, ela foi aproveitada em um artigo, já aprovado, mas ainda não publicado na revista Arquivos Brasileiros de Psicologia. Entrevistei 10 famílias, 13 avós, moradores da zona sul e da zona norte, nas faixas etárias entre 69 e 90 anos. Os avós pertencem às camadas médias, são judeus e tem netos por adoção, entre 4 e 45 anos. Os entrevistados são provenientes da minha rede pessoal. As indicações e os contatos foram realizados, geralmente, através da geração de filhos, que estão na minha faixa etária e de meus amigos, implicando, desde o início, mais de uma geração na realização da pesquisa. Na busca para compor o campo tive algumas recusas, alguns pedidos de indicação sem resposta, e alguns indicados que, por doença ou falecimento, não foi possível acionar. Uma em especial eu lamentei por ser uma situação ainda mais incomum na comunidade: um casal de mulheres, ambas judias, mães de dois filhos por adoção, mas que acabou por falecer enquanto a nora me pedia para esperar seu restabelecimento. Eu a vi num depoimento em um programa de TV e obtive seu contato através de um dos meus entrevistados. Apesar dessas perdas ou impossibilidades, há bastante material para ser explorado. 1.3.1 Camadas médias Os entrevistados pertencem às camadas médias da cidade do Rio de Janeiro. Quadros, Gimenez e Antunes (2012) utilizam-se da sociologia do trabalho para definir 31 os padrões de vida do que chamam de “nova classe média dos anos 2000”, inspiradas em Wright Mills (1979 apud QUADROS, GIMENEZ E ANTUNES, 2012, p.3)17. O conceito de nova classe média – classe social que não é proprietária dos meios de produção e que também não trabalha na fábrica com as mãos, como o operário – é amplo o suficiente para incluir ocupações as mais diversas e rendimentos os mais díspares: do vendedor de loja ao diretor do grande banco, do office boy ao advogado do grande escritório. (QUADROS, GIMENEZ E ANTUNES, 2012, p.7). A ideia de uma nova classe média surge em contraposição à composta pelos pequenos proprietários e profissionais liberais típicos dos EUA de fins do século XIX. Sua expansão, segundo Quadros (1990 apud NOGUEIRA, 1995)18, é fruto do impacto provocado pelas transformações econômicas, decorrentes do capitalismo: criação de novas ocupações ligadas à racionalização e burocratização das áreas administrativa, financeira e comercial da moderna empresa, à aplicação do conhecimento científico à produção, à expansão da burocracia do Estado, ao assalariamento dos profissionais liberais e intelectuais. Portanto, essa camada não forma um todo homogêneo: seus diversos segmentos abrangem pequenos proprietários e artesãos, profissionais liberais, funcionários públicos e quadros médios do setor privado. Segundo Nogueira (1995) é comum, nas Ciências Sociais, a distinção entre a fração tradicional, composta pelos pequenos proprietários (rurais, da indústria ou do comércio) e pelos profissionais liberais, e, a "nova" classe média constituída pelos setores assalariados. Há uma segmentação dessa camada, com um grupo que se caracteriza pela posse de um certo capital cultural e por ocupações de nível superior, e que são mais ou menos equiparadas em capital econômico e social. Para Salem (1986) a compreensão da lógica simbólica e dos padrões éticos das chamadas “camadas médias” não pode ser reduzida ou apreendida somente a partir de critérios socioeconômicos; devem estar associados a outras distinções de cunho simbólico, pela “(...) demarcação de experiências capazes de gerar uma identidade comum entre os indivíduos.” (SALEM, 1986, p.26). 1.3.2 Avós 17 WRIGHT MILLS, Charles. A nova classe média - White Collar. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 18 QUADROS, Valdir José de. Classes Médias no Desenvolvimento Brasileiro Recente, palestra proferida no Centro de Estudos de Cultura e do Consumo (CECC). EAESPIFGV, São Paulo, 1990. 32 Aos avós não cabe a tarefa definida da educação do neto: o tempo que lhes é concedido de convívio se entretém de carícias, histórias e brincadeiras. A ordem social se inverte: dos armários saem coisas doces fora de hora, o presente já não interessa (...). Ecléa Bosi Um dos fios que se tornou iluminado nas conversas sobre essas vidas e famílias, foi a compreensão do significado de ser avó e avô nesses tempos da vida contemporânea. Oliveira, Vianna e Cárdenas (2010, p.461) utilizam o termo avosidade e a definem como um laço de parentesco que “(...) está intimamente ligada às funções materna e paterna, das quais, entretanto, se diferencia, exercendo papel determinante na formação do sujeito.”. Ao avaliar a relação entre avós e netos na infância, as autoras concluem que há uma forte proximidade entre eles neste período, na percepção de ambos; mas que essa relação se modifica à medida que os netos crescem. Como já comentado, no caso da língua francesa, o termo grand-parentalité é proveniente do neologismo francês parentalité (SCHNEIDER, MIETKIEWICZ E BOYER, 2005), parentalidade em português, que já está bastante difundido nos escritos sobre família. Ao longo do texto, vou fazer uso do termo, avosidade, para me referir a relação entre avós e netos. Meus entrevistados não pensavam, no início de suas vidas adultas, em serem avós. Sua visão de vida, naquele momento, limitava-se à sua própria trajetória e, no máximo, a da geração seguinte - seus filhos. Os ciclos da vida, bem como os projetos e os sonhos, ocorrem em etapas, por exemplo: a busca e o amadurecimento pessoal e profissional, a formação de um casal, a passagem para uma nova dinâmica familiar; a vinda de filhos, sua criação e sustento, as preocupações em cada etapa de seus crescimentos e; de repente, com o passar do tempo, o tornar-se avó/avô, a mudança geracional, de tornar-se o mais velho, o menos necessário, geralmente. Se tornar avô – e é o nascimento do primeiro neto que impõe, pela lei da genealogia, este novo status -, é operar um " salto de geração ".E a entrada na avosidade é sempre um choque, mesmo quando o evento é fortemente desejado. (SCHNEIDER E BOYER, 2005, p.62)19. 19 No original: “Devenir grand-parent – et c’est la naissance du premier petit-enfant qui impose, par la loi de la généalogie, ce nouveau statut -, c’est opérer un « saut de génération » et la première étape, l’entrée dans la grand-parentalité, est toujours un choc, même lorsque l’evénement est fortement souhaité. ». 33 É notório um crescente envelhecimento da população mundial, no Brasil e em outros países, possivelmente relacionado à melhoria das condições de vida e aos avanços da medicina. Pelo que demonstram as pesquisas, no Brasil a velhice é feminina, refletido na amostra dos meus entrevistados. Segundo o IBGE, houve um aumento de 18%, da população idosa, entre 2012 e 2017, sendo 56% de mulheres20. Em estudo a partir de um censo no Canadá, Milan e Hamm (2003) justificam semelhante aspecto pela maior longevidade da mulher e pelo fato delas, geralmente, casarem mais jovens. Na Europa, até o século XVIII, a imagem dessa geração estava vinculada à velhice, à decadência e à morte. Ao longo dos anos, observa-se a transformação das características dos avós, consequência do aumento da esperança de vida e do recuo do modelo patriarcal, até então assimilado a uma autoridade forte da geração mais velha, com certa distância afetiva. (PEIXOTO, 2000). O aumento da esperança e da qualidade de vida e a coexistência de várias gerações são fenômenos sociais importantes da atualidade que obrigam a revisões paradigmáticas. Segundo Schneider e Bouyer (2005), pesquisadores franceses, com o advento dos valores contemporâneos como dinamismo, autonomia, realização pessoal, a geração atual dos avós não dispõe de normas e modelos elaborados de como ser avós. Essas normas se constituem progressivamente. A face da velhice, na atualidade, apresenta, enquanto construção social, aspectos muito diferentes em relação àquela que se exibia no início do século XX. Até mesmo a nomenclatura para essa fase da vida modificou-se com o aparecimento de outras designações. Terceira idade, melhor idade, feliz idade, maturidade, segunda juventude...: novas materialidades, novos sujeitos e novos procedimentos para referir-se à velhice, assim como alusões a novas possibilidades de vivê-la. (CORREA, 2009, p.28). No entanto, mesmo com as mudanças sociais e do perfil da velhice, a imagem dos avós como velhos e com menor vida ativa e social, ainda permanece: Por muito tempo – e isso ainda persiste –, a figura de um idoso foi apresentada por uma vovozinha típica dos contos de Monteiro Lobato, como a famosa Dona Benta (...) E assim, junto com Dona Benta, há idosos atletas, modernos, atarefados, ociosos e tantos outros mais. (CORREA, 2009, p.106/7). Segundo Peixoto (2000), as relações afetivas entre avós e netos se tornam mais significativas a partir dos anos 1930, quando os primeiros se tornam 20 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de- noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em- 2017.html Acesso em: 10/09/2018 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html 34 colaboradores dos pais na socialização das crianças. Cardoso (2010) justamente destaca que muitas avós mulheres, na realidade brasileira, precisam trabalhar, mas que mesmo assim ajudam os filhos das mais diversas formas, nos cuidados e/ou no sustento dos netos. Ao estudar as transformações decorrentes do nascimento de filhos, Dessen e Braz (2000), notaram que o maior apoio que as famílias recebem advém das famílias maternas e de parentes do sexo feminino. Robin (2005), pesquisadora francesa, também aponta para o mesmo aspecto, o que traz à tona uma boa discussão sobre as relações de gênero intrafamiliares, ainda presentes, apesar de tantas mudanças já encontradas nas dinâmicas familiares. As pesquisadoras Dias, Costa e Rangel (2005), em suas pesquisas com avós que criam netos, também percebem um maior envolvimento dos avós do lado materno. Segundo as autoras, cabe às avós manter e cuidar dos vínculos. Portanto, homens e mulheres inserem-se na vida familiar segundo referenciais de gênero, apreendidos ao longo da vida e que determinam funções socialmente legitimadas (FREITAS et al, 2009, p.86). Como já nos alertava Debert (1994, p.35): “(...) a experiência de gênero assim como a de envelhecimento está sempre moldada por outras experiências de forma que é preciso desestabilizar qualquer noção de identidade como coerente unitária e fixa.”. Na minha pesquisa, percebi que a relação entre avós e netos ainda é forte e importante, pelo ponto de vista dos avós. Os relatos sobre as famílias, a convivência, os relacionamentos, exalam carinho, amor e cuidado, num movimento que, de alguma forma, parte deles e volta para eles, como um bumerangue. Um processo que se planta, a partir do nascimento, educação e crescimento dos próprios filhos e se colhe através dos netos. A proximidade afetiva entre avós e netos está, segundo Peixoto (2000), ligada à qualidade da relação que os primeiros mantêm com seus filhos e respectivos cônjuges. Segalen (1999), pesquisadora francesa, afirma que a família se baseia na duração e na continuidade. Os avós relataram que o contato com os/as netos/as era (e ainda é) mais frequente quando eles eram menores, tinham menos atividades sociais e os avós eram mais solicitados a ajudar em seu cuidado. A casa cheia, o barulho das crianças, o dia a dia corrido remetem a uma forte saudade e a um tempo que não volta mais, para muitos cujos netos já estão crescidos. Paula et al (2011) indicam mudanças na relação intergeracional entre avós e netos segundo a percepção dos primeiros, que consideram que “a autoridade antes 35 existente deu lugar a conflitos e à falta de respeito.” (PAULA et al, 2011, p.919), fruto de uma educação com muita liberdade e sem controle. Assim, segundo as autoras, os avós, que antes ocupavam papéis centrais no modelo de família patriarcal, passaram a exercer papéis periféricos. Eles ganharam uma maior autonomia e independência, mas ocorreu um afastamento entre os grupos intergeracionais no seio familiar. Um dos problemas enfrentados pela geração dos avós é a solidão, já que a rede social se torna reduzida, pela morte de amigos e parentes, os compromissos se tornam menos frequentes, uma vez que, apesar de autônomos e ativos, muitos já estão aposentados, fora de ambientes de trabalho e, por vezes, afetados por problemas de saúde que agravam a locomoção e o deslocamento. A solidão e o isolamento foram mencionados por algumas entrevistadas que moram sozinhas e são viúvas. É na velhice que recai, de forma mais intensa, o isolacionismo da sociedade contemporânea. A condição de solidão a que muitos idosos estão submetidos é avassaladora. O afastamento do mundo do trabalho, única condição de expressão e valor humanos, da vida social, do lazer e isolados no próprio espaço doméstico, suas possibilidades de contato e apropriação do mundo encontram-se bastante reduzidas. (CORREA, 2009, p.12). Parte da solidão e do isolamento é enfrentada e minimizada pelo uso dos meios de comunicação. “(...) se os encontros são menos frequentes, as conversas telefônicas são muito intensas.” (PEIXOTO, 2000, p.95-96), e foram mencionadas pelos avós. Mas, importante acrescentar, as conversas por aplicativos de mensagens, por vídeo, as informações recebidas via redes sociais, que os entrevistados citaram como formas de manterem-se conectados e em contato, especialmente, com os jovens da família. Mas como alerta Correa (2009) em sua “Cartografias do Envelhecimento na Contemporaneidade”, nem sempre a população mais idosa tem acesso a esta vida computadorizada e tem, muitas vezes, dificuldade em se adaptar ao “(...) ritmo acelerado para o manejo desses produtos.” (CORREA, 2009, p.91). Ramos (2014) em sua pesquisa sobre a relação entre netos e avós mostra que as correlações entre proximidade geográfica e afetiva são bastante complexas e que a casa dos avós representa um espaço importante de socialização, realizada através do convívio pessoal e/ou virtual entre essas duas gerações. Os avós da minha pesquisa mostraram-se ainda ativos, social e/ou profissionalmente, com boa saúde e a possibilidade de usufruir da vida. Apesar de desejosos de conviver mais com seus familiares, compreendem que a falta de tempo 36 faz parte da vida contemporânea. Parte deles tornaram-se avós com idades de 40 e 50 anos, mas estou me referindo ao tempo das entrevistas realizadas, em que se encontravam entre 70 e 90 anos. Mesmo com a distância provocada pela correria da vida, pela possível dificuldade de usar os novos meios de comunicação, dos obstáculos oriundos da idade avançada, ou justamente por conta disso, os avós entrevistados mostram-se afoitos e abertos à alegria dos momentos em que podem estar com seus filhos e netos. Acredito que as conversas realizadas foram vividas por muitos dos avós, justamente como momentos em família, porque filhos e netos tornaram-se vivos e presentes, encheram a sala com suas vozes e gestos. As lembranças, as conquistas e as dificuldades de todas estas vidas foram comigo compartilhadas, com sabor de uma rica e intensa trajetória, ora como retratos em preto e branco, nostálgicos, ora como fotos coloridas, digitais, bem atualizadas. 1.3.3 O judaísmo Para pensar o judaísmo no século XXI não podemos passar ao largo da noção de família. Isso porque a melhor maneira de definir o judaísmo é uma família. A complexidade do judaísmo está em ser um pouco de tudo que não é: não é religião, não é filosofia, não é cultura, não é etnia, não é estado, não é terra. É tudo ao mesmo tempo. Mordechai Kaplan tentou expressar isso dizendo que somos uma civilização. A definição, no entanto, seja nos estatutos, seja na memória popular, é que somos uma família. Nilton Bonder Falar sobre judaísmo é falar sobre um campo que abrange temáticas diversas, como: religião, tradição, identidade e comunidade, questões fundamentais para acompanhar a discussão provocada nas entrevistas a respeito da condição judaica dos netos adotados, bem como das manifestações culturais das famílias envolvidas. Os dois últimos, identidade e comunidade, são conceitos relevantes para tentar dar um contorno ao que significa ser judeu. Ainda que de perspectivas diferentes, Stuart Hall e Judith Butler desconstroem a ideia de uma identidade fechada, internalizada no indivíduo: “As categorias de 37 identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e, como tal, exclusivistas.” (BUTLER, 1998, p.24). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis (...). (HALL, 2003, p. 13). Comunidade, por sua vez, é um termo clássico da sociologia, embora seja usado de forma difusa no cotidiano: comunidade da internet, comunidade de um bairro, comunidade de uma torcida de futebol, comunidade de uma universidade, entre outros. Para MacIver e Page (1973), um critério básico para chamar um grupo de comunidade é quando todas as relações sociais de alguém podem ser encontradas dentro dela; quer dizer, os interesses e a vida social se concentram basicamente nela. Esta descrição parece bastante difícil, rara e pouco fluida para descrever muitas comunidades existentes nos dias globalizados de hoje na sociedade ocidental. Para muitos de nós judeus, a palavra comunidade, só e simplesmente, é o termo que utilizamos para nos referirmos ao nosso grupo, de convívio ou não, a quem supomos que partilhe de alguns valores, envolvendo algumas peculiaridades e que, sem dúvida, vem carregada de sentimentos e experiências, que tenho o desafio de aqui iluminar porque estão intimamente ligadas às questões da pesquisa e às minhas implicações. No livro “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual”, Bauman (2003) explora o quanto o mundo se encontra distante da possibilidade de viver em comunidade. Suas primeiras linhas se relacionam muito bem a este campo de pesquisa: As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade”, “estar em comunidade”. (BAUMAN, 2003, p.7). 1.3.3.1 Pistas históricas A chegada dos judeus no Brasil (DECOL, 2001) data do período colonial com a chegada dos convertidos, banidos da Península Ibérica a partir de fins do século XV. Chamados de cristãos-novos, tiveram participação importante nos primórdios da 38 formação da população brasileira, mas não o fizeram com uma identidade religiosa, cultural e histórica distinta. A primeira referência de uma vida comunitária judaica brasileira, cuja presença se estende até os dias de hoje, são as comunidades judaicas da Amazônia (TOPEL, 2005), especialmente nas cidades de Belém, Manaus e algumas interioranas. Sua característica principal foi a homogeneidade: a maioria era oriunda da África do Norte. A presença judaica assumida como tal se inicia no século XIX. No entanto, a imigração judaica, de forma maciça, começou com o desenvolvimento da navegação a vapor e o estabelecimento de linhas comerciais entre a Europa e o Brasil, na segunda metade do século XIX. O movimento ganhou volume significativo na década de 1920, quando Estados Unidos e Argentina introduziram restrições à entrada de judeus e outros grupos. A partir de 1937, com a ascensão do Estado Novo de Getúlio Vargas, surge uma discussão pública da conveniência ou não da presença de judeus no país. Nos grupos que chegaram ao Sul e ao Sudeste do Brasil, antes da Primeira Guerra Mundial, no período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial, encontra-se uma grande variedade de lugares de origem. A organização social, ou seja, a criação de sinagogas, escolas e redes assistenciais tiveram como padrão as regiões das quais emigraram, criando um leque de diversidades. Interessante notar que, no Brasil, a pergunta sobre religião já existia nos censos do Império. Os judeus já haviam sido tabulados separadamente em 1900, embora na época não passassem de algumas centenas. Devido, provavelmente, ao aumento da população judaica, chamada pelo Estado Novo de questão judaica (DECOL, 2001, p. 152), no censo de 1940, os judeus já foram enumerados em uma categoria independente, dentre outras dez. Desde 1990, a pergunta sobre religião voltou a ser aberta e no censo de 2010, o IBGE enumerou dados para 148 denominações diferentes21, mostrando que o Brasil é um país de imensa multiplicidade étnica, cultural e religiosa. Nas primeiras gerações, havia uma adesão maior dos judeus a profissões ligadas ao comércio, justificada pelo desconhecimento da língua. Apesar de os judeus apesentarem algum destaque, em alguns campos profissionais, numericamente somos poucos. A população judaica no Brasil é de cerca de 107 mil22, que21 Disponível em: https://pt.slideshare.net/pletz/relatorio-22132833. Acesso em: 01/04/2017. 22 Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado. Acesso em: 05/01/2109. https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado 39 correspondem a 0,06% da população brasileira. Quando calculada a população estendida, isto é, todas as pessoas que moram em domicílio onde haja uma pessoa de religião judaica e com quem tem uma relação de parentesco direto, chega-se a 150 mil pessoas23. Segundo Grin e Gherman (2016b) há uma interessante discrepância entre o que a própria comunidade quantifica, cerca de 90 mil, e os dados censitários que, segundo os autores, deve apontar para uma diferença entre os que se declaram judeus e os que professam a religião. Desde esta diferença já é possível perceber quão intrincada é a questão da identidade judaica. 1.3.3.2. Povo, cultura, religião Assim, Topel (2005) traz uma interessante pergunta: “quais são os critérios das comunidades judaicas brasileiras para responder à complexa pergunta: “quem é judeu?”. A lei judaica afirma que é judeu aquele que nasce em ventre judeu ou aquele que se converte ao judaísmo. No entanto, segundo a autora, as comunidades judaicas não ortodoxas flexibilizam esse critério diante das mudanças ocorridas nas relações entre os judeus e as sociedades de acolhimento, que redundaram em altos índices de assimilação24, com o incremento de casamentos mistos25, sincretismo religioso, mudança de valores, entre outros. Azria (2000) compreende que os judeus integram novas dimensões à sua identidade judia, modelando-a com o objetivo de integração ou de assimilação. Ser judeu e como ser judeu tornaram-se livre escolha de cada um. Topel (2005) afirma que a grande maioria dos judeus brasileiros, no entanto, por viver numa sociedade que privatizou, pluralizou e subjetivou a fé, recria um judaísmo que se distancia da autoridade religiosa e cujo componente de escolha deu origem ao que Jonathan Sacks (1991 apud TOPEL, 2005, p.196)26 denominou “judeu adjetivado”. Assim, a identidade judaica na diáspora convive com outras identidades, 23 Disponível em: https://pt.slideshare.net/pletz/relatorio-22132833. Acesso em: 01/04/2017. 24 A palavra assimilação é bastante usada nos mais diversos meios judaicos para indicar um movimento pessoal que um judeu realiza de diluir e se afastar de sua cultura, podendo chegar ao ponto de perder todos os traços que dizem respeito a este grupo de pertencimento, no desejo de se incluir e ficar mais próximo ao meio em que vive. 25 Casamento misto é uma expressão usada quando somente um dos membros do casal é judeu. 26 SACKS, Jonathan. (Ed.). Orthodoxy Confronts Modernity. London, Ktav Publishing House, 1991. 40 como ser brasileiro, pertencer a algum partido político ou até de algum time de futebol27. A noção de diáspora é uma discussão importante nas Ciências Sociais, especialmente diante das mudanças ocorridas em torno dos conceitos de identidade e territorialidade. Diáspora significava dispersão, o que torna implícito um ponto de origem, uma terra natal (COHEN, 2008, p.519), experiência não limitada aos judeus, mas presente na vida de uma ampla gama de grupos étnicos. Cohen (2008) considera que mesmo na diáspora judaica, a ideia de terra natal está perdendo força. Será que podemos dilatar ainda mais os sentidos históricos do conceito de lar diaspórico para incluir novas formas de mobilidade e deslocamento e a construção de novas identidades e subjetividades? Proponho que adotemos a expressão “diáspora desterritorializada” para incluir as feições de uma série de experiências diaspóricas incomuns. Nesses exemplos, supõe-se que os grupos étnicos perderam os pontos convencionais de referência territorial, tornando-se, de fato, culturas móveis e multilocalizadas com lares virtuais ou incertos. (COHEN, 2008, p.527). Sorj (2004, p.69) não admite um modelo normativo para designar o que são diásporas, e sim “(...) todos aqueles grupos sociais que se autodefinem como tais (...).”. E é desta forma que tal conceito está sendo utilizado aqui, já que é uma definição usual neste grupo, que seguramente se refere não a um retorno desejado e necessário ao Estado de Israel, mas a ele como centro da vida e da história judaica, de um local que agrega, para muitos, sentimentos e sensações especiais. Diante deste cenário, torna-se fundamental explicitar a complexidade do judaísmo como identidade. Ser judeu é visto, geralmente, como o pertencimento a um povo que possui uma história, que mantém determinadas tradições e rituais, que se encontra espalhado ao redor do mundo. No entanto, nem sempre pertencer ao povo judeu significa conhecer a cultura judaica ou professar a religião. Como é possível ser agnóstico ou ateu e judeu ao mesmo tempo? Esta pergunta, que ouço repetidamente, supõe que o judaísmo se reduz a uma religião. (SORJ, 2001, p.33). Muitos judeus se dizem judeus em função de seus posicionamentos morais e éticos, sem seguir os preceitos religiosos, a partir de regras e noções, pautadas por histórias do Velho Testamento, que abrangem muitas áreas da vida. Eles estão se baseando. Justamente, em orientadores éticos, como o princípio simples e famoso: 27 Um exemplo curioso é o da comunidade no Facebook chamada de Idishflu, para judeus que torcem pelo time do fluminense. Parece piada, mas não é. 41 “(...) amarás o teu próximo como a ti mesmo (...).”, conforme consta em Levítico (19:18). Para outros, a mensagem deste conjunto ético está relacionada, por exemplo, a posicionamentos filosóficos como do sábio do Século I, chamado Hillel: “Se eu não for por mim, quem o será?” Que significa dizer que todos devem defender sua saúde, sua vida. Mas, ainda: “E se eu for somente para mim?”, significando que a vida sem solidariedade, responsabilidade pelo destino de outrem, amor ao próximo, não faz sentido. E: “Se não agora, quando?” que afirma que é preciso acionar as atitudes, sem delongas28. A prática da educação no judaísmo vai além do puro e simples acompanhamento dos princípios religiosos judaicos. Ela visa ao desenvolvimento do ser humano como um todo, em suas facetas intelectual, emocional, comportamental e moral. A vida comunitária não se restringe à pratica religiosa. Há uma enorme gama de instituições que proporcionam o pertencimento: escolas, clubes, organizações de mulheres, de idosos, grupo de jovens, de universitários, centros culturais – espaços onde a vida, a educação e a cultura judaicas se misturam, sejam ou não com cunho religioso. O judaísmo religioso se divide em três grandes correntes29: a ortodoxa, a reformista e a conservadora/conservativa. Os ortodoxos são os que cumprem de forma estrita os preceitos estipulados pela Lei Judaica, que determina quais alimentos devem ser consumidos, o descanso aos sábados e as leis da pureza dos corpos, entre outros. As crianças têm uma educação distinta da educação secular, com o objetivo de formá-los na ortodoxia religiosa. A corrente reformista não segue rigidamente a dieta alimentar, o descanso sabático e alguns procedimentos dos rituais religiosos, aceitando as mudanças do mundo atual, manifesta, nos rituais, pelo uso das línguas dos países onde se encontram e na equiparação do status entre homem e mulher. O judaísmo conservador, situa-se entre as duas correntes: as mulheres também foram igualadas aos homens, mas discordam dos reformistas no alcance de suas propostas. 28 Disponível em: http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/etica/etica.html e http://www.morasha.com.br/etica/impactos-da-etica-judaica-no-seculo-xxi.html. Acesso em: 10/11/2018. 29 Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/religiao/correntes-judaismo-moderno.htm;https://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2015/10/14/Grupos-Judaicos; http://culturahebraica.blogspot.com/2013/12/quais-sao-as-diferentes-denominacoes.html. Acesso em: 17/10/18. http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/etica/etica.html http://www.morasha.com.br/etica/impactos-da-etica-judaica-no-seculo-xxi.html https://brasilescola.uol.com.br/religiao/correntes-judaismo-moderno.htm https://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2015/10/14/Grupos-Judaicos http://culturahebraica.blogspot.com/2013/12/quais-sao-as-diferentes-denominacoes.html 42 Dentre outras correntes surgidas mais recentemente, destaco o Judaísmo Secular Humanista, onde o foco está em celebrar a tradição, a cultura, a ética e os valores. Posso afirmar que até mesmo entre judeus há dificuldade de compreender as nuances e as diferenças decorrentes de tão variadas linhas filosóficas, de distintas interpretações dos textos sagrados, bem como sua aplicação no cotidiano.30 “Em sua história milenar o judaísmo nunca constituiu um bloco monolítico (...).” (TOPEL, 2005, p.191). Em nenhum sentido a comunidade judaica é homogênea. A definição de judeu tem significados múltiplos e muitas vezes contraditórios: há judeu ortodoxo, secular, reformista, askenazita, sefaradita, progressista, conservador, homens, mulheres, gays. Essa lista pode ser quase inesgotável. (GRIN; GHERMAN, 2016a, p. 27, grifo dos autores). A discussão sobre identidade judaica na diáspora é um tema bastante presente em diversos países onde encontram-se comunidades judias. Discussão, fruto do desejo de se inserir na sociedade mais ampla, mas também manter alguma identidade. Para Bauman (2011), os judeus são o resumo de uma incoerência, pois formam justamente uma nação não nacional. Interpretações acerca do significado da presença judaica em qualquer país são uma questão complexa, tanto para os próprios judeus como para os não judeus. Esse quadro se explica porque as populações judaicas são variadas e seus múltiplos segmentos se relacionam entre si de formas variadas. (LEHMANN, 2016, p.9). Para Anthias (1998 apud COHEN, 2008, p. 521)31, o discurso diaspórico dedicou pouca atenção às divisões internas nas comunidades étnicas ou às possibilidades de negociações culturais seletivas entre as comunidades. As diásporas se auto representam através de uma imagem de unidade, que desconhece a sua diversidade interna (SORJ, 2004). Mas como afirma Pelbart (2011, p.33) “(...) a comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita de interrupção, fragmentação, suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros.”. Gherman (2016) acredita que a imagem de ser uma comunidade fechada se deve às redes de apoio que auxiliaram os imigrantes em seu processo de adaptação, desenvolvendo “fronteiras” que mediavam as atividades dos judeus com outros grupos 30 Por exemplo, é possível encontrar grupos como “Judeus para Cristo” e Congregação Humanista liderado por rabinos ateus. 31 ANTHIAS, Floya. Evaluating “diaspora”: beyond ethnicity. Sociology, London, v. 32, n.3, p. 557- 580, ago. 1998. 43 sociais. “Se, para um olhar exterior, os judeus são definidos basicamente como membros de um grupo religioso, internamente prevalecem inúmeras modalidades de auto percepção e coesão grupal.” (SORJ, 2008, p. 59). Historicamente os judeus construíram, ao longo do tempo e em diferentes países, instituições para garantir a sobrevivência tísica, cultural e religiosa. Esta rede de instituições constituiu a base da comunidade judaica nos países de origem. Os imigrantes e as gerações posteriores tanto puderam mantê- las, ampliá-las ou reduzi-las. (BLAY, 2008, p.28) Azria (2000) salienta que as identidades judias contemporâneas se constroem a partir de referências e de símbolos extraídos da tradição. Contudo, segundo ela: “Guiado por sua subjetividade tanto quanto por sua história pessoal, cada um transforma-se em seu próprio centro de decisão e inventa para si um judaísmo de ocasião.” (AZRIA, 2000, p.218), constituindo uma relação cada vez mais individualizada com a tradição. O judeu contemporâneo não se forma somente a partir do modelo comunitário, seus quadros de vida não lhes são impostos por sua dependência étnica ou religiosa. Em todas as épocas, os judeus mantiveram íntima relação com sua tradição. Não cessaram de escrutiná-la, folheá-la, interrogá-la, discuti-la ou até contestá-la, por ela mesma, mas também pela arte de viver que ela impôs a cada uma de suas gerações. (AZRIA, 2000, p.8) Herbert Danzger (1989 apud HERVIEU-LÉGER, 1993, p.251)32 diz que a tradição deixou de ser a evidência de um modo de vida transmitido de geração em geração, para se tornar um objeto de preferência subjetiva, da parte dos indivíduos que assim os escolhe. Segundo Hervieu-Léger (1993), a modernidade desconstruiu os sistemas tradicionais de crença, mas não a crença, que ainda se exprime num modo individualizado, subjetivo, disperso, e que pode resultar numa multiplicidade de combinações e de agenciamentos de significação que os indivíduos elaboram de forma cada vez mais independente do controle das instituições religiosas. As expressões modernas de necessidade de crença, segundo ela, estão ligadas à incerteza estrutural de uma sociedade em permanente mudança. “Ser religioso, na modernidade, não se trata de saber se engendrar e sim querer se engendrar.” 32 DANZGER, Herbert. Returning to tradition. The Contemporany Revival of Orthodox Judaism. New Haven, Yale University Press, 1989. 44 (HERVIEU-LÉGER 1993, p.245)33. Assim parece que, até hoje, a busca do pertencimento pela religião ou pela tradição parte de um desejo pessoal de integração e adquire um formato individualizado. Para Allouche-Benayoun (2011) o judaísmo hoje pode ser experimentado como herança religiosa, cultural ou familiar, característica comum e presente na França, ou em muitas comunidades na diáspora, como aqui no Brasil. Povo, nação, comunidade, cidadãos? Os judeus são e foram tudo isso. É claro que cada um desses termos inscreve-se num registro que lhe é próprio. (...). Expressão de um certo vinculo consigo próprio e com o mundo informado por uma lei e uma tradição, o judaísmo (...) é, ao mesmo tempo, este acervo precioso e esta realidade viva que, de geração em geração, os judeus têm se esforçado para reinventar e transmitir, cada vez. (AZRIA, 2000, p. 220). Kaplan (2010) considera que o judaísmo é uma herança social porque é a soma de usos característicos, ideias, normas e códigos através dos quais os judeus se diferenciam e se individualizam. Para ele, as comunidades judaicas na diáspora concedem aos judeus a oportunidade de viver o judaísmo como civilização. “O termo “civilização” é usualmente aplicado ao acúmulo de conhecimento, habilidades, instrumentos, artes, literatura e filosofias que situam entre os homens e natureza externa (...).” (KAPLAN, 2010, p.179)34. E, segundo o autor, entre os costumes que uma civilização não pode renunciar, estão os que têm relação com a formação da criança. O judaísmo inclui uma tradição religiosa com uma diversidade de correntes, mas que a partir do início dos tempos modernos ele se diversificou, criando versões seculares ou mesmo militantemente ateias que o transformaram em algo que certos autores designam como uma tradição cultural nacional e, outros, como uma civilização. (SORJ, 2001, p.33). Quer dizer, ser judeu ou se considerar judeu é algo que varia imensamente. Para mim, por exemplo, é um sentimento de pertencimento, cultural e simbólico. E, os ritos religiosos, que pratico parcialmente, são um modo de manter vivas as tradições e seus sentidos, que considero importantes. Mas é sempre bom frisar que esta discussão será guiada, neste estudo, pela perspectiva dos avós! Meu olhar, o discursoreligioso, as práticas comunitárias são pontos que atravessam o campo e, sem dúvida, os avós e suas famílias, como pretendo explorar. 33 No original: “Être religeux, em modernité, ce n’est pas tant se savoir engendré que se vouler engendré.». 34 No original: “The term “civilization” is usually applied to the accumulation of knowledge, skills, tools, arts, literature, laws, religions and philosophies which stands between man and external nature (...). » 45 1.3.3.3 Adoção e judaísmo Segundo a lei tradicional do Velho Testamento35, chamada de Halachá3637, seguida pelos judeus religiosos nos últimos 3300 anos, qualquer pessoa nascida de mãe judia é judia. Uma outra forma de tornar-se judeu ocorre através da conversão. Mas, como dito acima, ser/se considerar judeu, do povo judeu, não significa necessariamente seguir alguma corrente religiosa. Além de aceita pela lei judaica, a adoção é considerada uma Mitsvá, isto é, uma ação positiva. Porém, são necessários alguns cuidados para que a mesma seja realizada conforme a lei religiosa. Em primeiro lugar, saber se a mãe biológica é judia. Caso seja, deve-se também saber quem é o pai, já que não seriam aceitas crianças geradas fora do casamento ou frutos de incesto. Caso a mãe natural não seja judia, ou se desconheça sua origem, é necessário fazer uma conversão da criança, como com qualquer não-judeu que deseje ingressar na religião. A conversão de crianças pequenas consiste de algumas etapas e rituais: Mikve, que é um banho ritual, uma cerimônia de dar nome, circuncisão, para os meninos, e a garantia de criação em um lar judeu. A maioridade religiosa, chamado de Bar/Batmitzva, pela qual todo jovem judeu deve passar, o filho adotado, ao realizar, demonstra que concorda com a conversão. É uma confirmação, já que, geralmente, a mesma foi realizada à revelia quando a criança era ainda pequena. Para os ortodoxos há regras mais rígidas porque de todos os seus integrantes é exigida maior observância das obrigações religiosas. 35 As informações relativas às leis de adoção são provenientes de alguns sites, de uma conversa com um rabino reformista, pela leitura de jornais religiosos e de informações provenientes da minha própria vida comunitária. São esclarecimentos importantes porque constam nas conversas realizadas com os avós e no desenvolvimento do texto. Disponíveis em: https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e- Complicaes.htm ; http://press.ccar- ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searc hText=adoption&context=-1 Acessos em: 2/7/2018. https://www.jewishvirtuallibrary.org/adoption ; http://www.jewishencyclopedia.com/articles/852-adoption ; https://www.jlaw.com/Articles/maternity4.html . Acessos em: 31/01/2018. 36 Todas as palavras em língua estrangeira que se remetem a aspectos do judaísmo e necessitam de uma explicação mais ampla encontram-se disponíveis no Glossário, evitando-se assim a repetição de informações. 37 Halachá significa “caminho” em hebraico, o que indica, para alguns intérpretes, a busca pelos possíveis sentidos. https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e-Complicaes.htm https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e-Complicaes.htm http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1 http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1 http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1 https://www.jewishvirtuallibrary.org/adoption http://www.jewishencyclopedia.com/articles/852-adoption https://www.jlaw.com/Articles/maternity4.html 46 Para a conversão de adultos há ainda o requisito de um estudo profundo das leis religiosas, algum grau de observância, participação na comunidade e a passagem por um tribunal rabínico. Realizando uma análise da minha implicação, percebendo como as famílias vivem a experiência da adoção, noto que ao tornar o cruzamento entre religião judaica, adoção e família uma questão, estava partindo dos meus próprios preconceitos, advindos da minha vivência e cultura comunitária. “Colocar em análise as implicações permite, portanto, perceber as multiplicidades, as diferenças, a potência dos encontros, sempre coletivos e a produção histórica desses mesmos objetos, sujeitos e saberes.” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2015, p.131). 47 2 MEUS ENTREVISTADOS A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. Ecléa Bosi As entrevistas foram plenas de emoções e surpresas. Fui me encantando pelos meus entrevistados e suas histórias de vida. Os encontros ocorreram de diferentes modos: ora íntimos e intensos, ora mais pragmáticos, ora bem-humorados, ora angustiados e tensos, mas sempre com boa dose de cumplicidade tecida em apenas algumas horas, muito além do que eu poderia imaginar. Portelli (1997b) alerta que, como pesquisador, é preciso estar disposto a ouvir não somente aquilo que acreditamos querer ouvir, como também o que o entrevistado considera importante contar, o que, provavelmente, superará as expectativas. E, foi desta forma que vivi esta trajetória, me senti sempre começando e me surpreendendo, percebendo que o projeto de pesquisa se adensava a cada passo, tomando um rumo próprio. Cada encontro, com suas particularidades, me provocou novos aprendizados e iluminaram outros temas para a discussão. Trilhei os novos percursos, sem perder as pistas anteriormente marcadas como de meu interesse. “Entrevistar exige uma abertura ao estranho como o navegador que é capaz de abandonar por instantes seus instrumentos de navegação produzindo assim uma deriva necessária no encontro do novo.” (SOUSA, 2015, p.87). Ao iniciar a pesquisa, não percebia o desafio de falar desde dentro, de explicar coisas que já me são familiares. Como também de equacionar, questões sobre sigilo e confiança, por sermos todos de uma mesma, e pequena, comunidade. Apesar dos entrevistados terem assinado os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)38 e, deles não se preocuparem, aparentemente, com o destino das informações que me davam sobre suas vidas, me senti numa saia justa. 38A pesquisa foi inscrita no Plataforma Brasil (CAE 57974016.0.0000.5282) e todos os entrevistados assinaram o TCLE - exigência da resolução 510/16 do CNS. Muitas revistas da área de Psicologia, hoje, exigem a aprovação para publicação de artigos derivados da pesquisa. O eventual afastamento gerado pelo TCLE, que burocratiza o início do encontro pessoal, foi contornada com a mudança de tom provocada pelo início da conversa. Sua assinatura não salvaguarda nenhuma das partes, pois o critério ético do pesquisador, a entrega de informações pessoais são muito mais decorrência da confiança do que deste instrumento. Em algumas áreas do conhecimento, é fundamental que as pessoas sejam esclarecidas sobre os riscos que correm, o que não é 48 Meus primeiros contatos, geralmente, foram os filhos, pais das crianças por adoção, e eles sim demonstraram certa apreensão e curiosidade com os desdobramentos da pesquisa. Quem assinava o termo de responsabilidade, e quem concedia a entrevista, era somente o avô e/ou a avó, mas incluía relatos sobre outras vidas, no mínimo de mais duas gerações. Não queria expor o que tão cuidadosamente estava me sendo ofertado. Havia uma grande confiança depositada em minha escuta, que eu não queria quebrar, não poderia. Me senti imbricada nas delicadezas de suas vidas. A preocupaçãose fortaleceu ao escrever o texto para a banca de Qualificação: Como eu poderia me sentir bem em expor essas vidas sem autorização direta? Embaralhá-los, solução encontrada por alguns pesquisadores, ou trocar alguns dados, não me pareceu fazer jus à riqueza dos encontros e da linha cartográfica aqui escolhida. Meu desejo é apresentar meus entrevistados e suas vidas, dar-lhes o lugar de destaque que tiveram na minha trajetória de pesquisa, mostrar as passagens incríveis de suas histórias e as pessoas interessantes e singulares que são. Então, a melhor decisão que encontrei foi manter o que pudesse ser dito e suprimir o que facilitasse a identificação. Tal conduta omitirá alguns dados de vida interessantes. Lamento. Também me é difícil abrir mão de detalhes, obsessiva como sou; mas é o único modo de deixar que a beleza destes encontros possa ser descrita e compartilhada, sem encobri-los com subterfúgios. Deixo, assim, aos leitores, espaço para preencher com seus próprios devaneios, usando certa dose de magia e imaginação. Pretendo que cada entrevistado se materialize, para que todos possam conhecê-los, pois cada um deles teve uma força e uma presença marcante no traçado desta pesquisa. Descrevo-os, por ordem cronológica das entrevistas. Em cada apresentação há um genograma da família, trechos de conversa, e do meu diário de campo. O genograma (WENDT; CREPALDI, 2008) é uma descrição gráfica de como membros de uma família estão relacionados uns aos outros, abrangendo várias gerações, muito utilizado na Terapia de Família, para facilitar a compreensão da dinâmica familiar. O diário de campo é um dispositivo importante para a análise de implicação, pois “(...) trabalha com o cotidiano da pesquisa, historicizando-o, registrando-o, exatamente o caso desta pesquisa. De todo jeito, para mim, com certeza, esta assinatura não aquietou minhas dúvidas e preocupações. 49 potencializando-o; ou seja, incluindo-o naquilo que normalmente fica fora dos relatos considerados científicos.” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2015, p.133). O diário de campo também permite ao leitor mergulhar na experiência da entrevista, reconstruindo os cenários, as impressões, reverberando a minha voz como entrevistadora, dando vitalidade ao texto e ao encontro, que vai além da transcrição propriamente dita. Para mim, o diário foi experiência essencial para deixar fluir todos os detalhes, emoções e pensamentos que me inundaram a cada encontro. Para Rolnik (2014, p.225), o diário serve “para registrar as cartografias que vão sendo descobertas/inventadas ao longo da expedição. É o que permite ao cartógrafo prosseguir viagem.”. As entrevistas foram registradas com gravador digital de voz e transcritas por mim. Apesar de que “a mais literal tradução é dificilmente a melhor, e uma tradução verdadeiramente fiel sempre implica certa quantidade de invenção.” (PORTELLI, 1997a, p. 27), mantive o cuidado ao ouvir e transcrever, conectada ao conteúdo e ao que a melodia estavam a me dizer. Há autores que sugerem o termo transcriação, enfatizando justamente o caráter de recriação (MEIHY; HOLANDA, 2007) de uma entrevista, apontando para os atributos subjetivos do entrevistar e do narrar. Por isso, considero fundamental que eu mesma tenha realizado esta tarefa, retomando as emoções e intenções contidas nas palavras e nos silêncios: “Mas se você se força a ouvir, descobre muitas coisas: percebe as pausas e os silêncios, a entonação, o que não acontece na transcrição, mesmo quando você se esforça. (...). E praticamente consegue “sentir” o diálogo.” (THOMSON, 1997, p.243). Meus entrevistados abriram as portas de suas casas, o que me proporcionou penetrar em sua vida de forma efetiva e afetiva. Observei e senti a atmosfera, através da mobília, das fotos, dos ruídos e sabores. Violette Morin (1969 apud BOSI, 1994, 2003)39 chama de objetos biográficos os que envelhecem com o seu possuidor e se incorporam à sua vida. Eles representam as experiências vividas, afetos, e que por envelhecerem juntos, dão uma sensação de continuidade. Se a mobilidade e a contingência acompanham nosso viver e nossas relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam. Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Mais do que da ordem e da beleza, falam à nossa alma em sua língua natal. (BOSI, 1994, p.441). 39 MORIN, Violette. L’Object. Communications, 13, 1969. 50 Em muitas casas, as fotos me foram mostradas no transcurso da conversa. Em outras, foram incluídas, ao final, num passeio às estantes e aos porta-retratos, geralmente oferecido de forma espontânea com o intuito orgulhoso de me mostrarem seus filhos e netos. Quando não, foram por mim solicitados. (...) retratos antigos e recentes são retirados de gavetas ou apontados em lugares expostos na casa, trazendo aos relatos um tom mais concreto como se, através dessa amostragem, eu, enquanto pesquisadora, pudesse ser apresentada a todos esses familiares dos quais ouvi falar durante algumas horas. (BARROS, 1989, p.35). As entrevistas também foram recheadas pelas comidas que, em alguns casos, me remeteram a casa da minha própria e querida avó. Comida é um ingrediente muito presente na cultura judaica e é, com muita frequência, em torno da mesa que os encontros familiares acontecem. Uma outra marca forte d é o gosto pelas ironias e piadas. O judeu gosta de rir de si mesmo (embora não goste que os outros riam dele). O humor judaico utiliza o jogo de palavras, a ironia e a sátira, direcionados, principalmente, a zombar do próprio grupo, com elementos dialéticos que acabam por enaltecer suas peculiaridades. Tradição que pretendo manter ao longo do texto porque são bons e deliciosos modos de compreender um jeito típico de ser judeu.40 Assim, há muitas piadas relacionadas à importância que o alimentar-se bem tem para as mães super protetoras judias, chamadas de ídiche mame, que quer dizer simplesmente, mães judias, porém, sinônimo de uma relação super protetora, onipresente, orgulhosa e exigente sobre sua prole41. As entrevistas foram recheadas de passagens que, muitas vezes, se confundem com eventos históricos, como a 2ª Guerra Mundial, a criação do Estado de Israel, as ondas imigratórias. “Nos círculos judaicos, as histórias familiares são muitas vezes parte da história mais ampla e ativa dos judeus, submetida durante o 40 Uma boa fonte, utilizada aqui algumas vezes é: ZYLBERSZTAJN, Abram. As melhores piadas do humor judaico. Vol. 1. Editora Garamond, 2001 41 Duas mães judias se encontram no parque: - Sarah, quais são as idades dos seus filhos? - O engenheiro tem oito anos, e o médico, seis! https://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Abram+Zylbersztajn%22 51 século XX, às perseguições, ao Shoah42 e a várias migrações no contexto da descolonização.” (NIZARD, 2009, p.61)43. Todos os entrevistados se ofereceram para serem novamente entrevistados caso eu precisasse, sem que eu tivesse perguntado a este respeito. Alguns manifestaram enfaticamente seu desejo de voltar a conversar comigo. Credito este movimento a um conjunto de fatores: o bom encontro, a cumplicidade construída, a oportunidade de falar de si e de sua vida e a solidão na idade avançada, já aqui comentada. Penso que, especialmente em nosso tempo e estilo de vida cotidiana, tão corrida e sem espaço, com os filhos e netos já crescidos, um momento de boa conversa pode tornar-se, realmente, um acontecimento. Segundo Patai (2010), aceitar ser entrevistado significa usufruir de um tipo de escuta intensa encontrada nesta oportunidade, a qual não pareceexistir na vida cotidiana. “Assim, a oportunidade de falar longamente sobre a própria vida, de ter sua história gravada, tornar-se significativa.” (PATAI, 2010, p.24). A importância deste momento para meus entrevistados e a cumplicidade construída entre nós, me fez sentir responsável por tentar reencontrar alguns deles, saber como estavam, manter-me presente e mostrar meu afeto e gratidão por tudo que tinham me proporcionado. O desejo é voltar a encontrá-los simplesmente para a manutenção da relação, para usufruirmos, novamente, um da companhia do outro, para falar da vida com intimidade e intensidade. Nos encontros cotidianos, são tecidos vínculos e conexões que nos permitiram indagar, sem questionar, os sentidos que as pessoas deram às suas práticas e acompanhá-las em suas jornadas pelos diferentes territórios de onde construíram suas ações. Nesse sentido, se produzia cuidado nos encontros com os participantes, em um processo multidirecional. (BENET; MERHY; PLA, 2016, p.238)44. Para ajudar no percurso das conversas, segue um quadro com os nomes e alguns dados dos participantes à época das entrevistas realizadas. Todo os nomes 42 De origem religiosa, o termo Shoah, Holocausto, empresta caráter à morte, aceita em submissão à vontade divina. Tornou-se o termo padrão para se referir ao genocídio nazista contra o povo judeu ocorrido nas décadas de 30/40. Para uma interessante discussão sobre o uso do termo: DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Re. Dig. de Est. Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, out. 2007. 43 No original : «En milieu juif, les histoires familiales s’inscrivent bien souvent dans l’Histoire plus large et mouvementée des juifs, soumis au cours du XXe siècle, aux persécutions, à la Shoah, et aux diverses migrations en contexte de décolonisation.». 44 No original: “En los encuentros cotidianos se fueron tejiendo vínculos y conexiones que permitían indagar, sin cuestionar, los sentidos que las personas daban a sus prácticas y acompañarlas en sus recorridos por los diferentes territorios desde donde construían sus acciones. En este sentido, se estaba produciendo cuidado en los encuentros con los y las participantes, en un proceso que era multidireccional.”. 52 são fictícios. Escolhi Sarah para a minha primeira entrevistada pela força do seu simbolismo: Sarah é a primeira matriarca da história do povo hebreu e, ela, minha primeira entrevistada. Os nomes e apelidos das demais pessoas, quando citados, foram substituídos por outros que mantivessem, quando possível, proximidade com seus originais, se franceses, judeus, etc. Alguns tinham lindos sentidos em hebraico, mas pela questão do anonimato, não pude mantê-los. A simbologia dos nomes na tradição judaica é um aspecto interessante: geralmente os nomes são escolhidos em homenagem a parentes já falecidos, para os judeus ashkenazin, de origem europeia, e de parentes vivos, para os judeus sefaradim, de origem na península ibérica, onde a repetição dos nomes é uma constante45. Interessante acrescentar que é possível, e comum, no judaísmo fazer uma troca de nome na intenção de trocar a sorte, quando uma pessoa enfrenta problemas graves de saúde ou encontra-se em alguma situação de perigo. Esta prática pode ser vista na história de Abrão e Sarah no Velho Testamento46 e demonstra a importância dada a escolha dos nomes e o significado das cerimônias que lhe acompanha. Tabela de entrevistados: Nome e idade Estado civil Netos e idade (grifo nos netos por adoção) 1. Sarah (69 anos) Viúva Maria (17), Rafael (16), Gui (14), Bela (10), Iuri, (5), Tali (3) 2. Rebeca (82 anos) Divorciada Nicole (29), Fabio (26), Roberto (26), Marcela (13), Carolina (12) 3. Isac (84 anos) e Lea (76 anos) Casados Bianca (24), Daniel (18), Breno (14), Paulo (10), Carlos (4) 4. Debora (77anos) Viúva Sofia (26), Luana (23), Eduardo (19), Maria (19), Tomas (17) 5. Miriam (66 anos) Viúva Noé (13), Noah (12), Carol (2) 6. Malka (88 anos) Viúva Iuval (33), Daniel (31), Michel ( ), Alan (23), Davi (14), Julia (11) 7. Guita (75 anos) Viúva Henry (25), Lys (21), Gabriel (19), Naomi (18) Bisneto: Saul (1) 8. Dinah (88 anos) Viúva Selma (45), Lilian (45), Hugo (40), Joyce (16) Bisnetos: Ilan (11), Ana (3), Gabi (1a3m) 9. Vicente (82 anos) e Luna (79 anos) Casados Fabio (23), Rodrigo (21), João Hugo (19), Joana (17) e Hugo (4 anos) 10 Nicholas (80 anos) e Agatha (77 anos) Casados Sofia (13 anos) Fonte: BAKMAN, 2019. 45 Uma jovem casa com um judeu sefaradi e logo engravida. - “Qual o nome que dará para o seu filho?” Perguntam. - “Ainda não escolhemos”, responde. Ao que a sogra emenda: “Coitada, só ela que não sabe!” 46 Disponível em: https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome- Mudana-no-Destino.htm. Acesso em 26/09/2018. https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-Mudana-no-Destino.htm https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-Mudana-no-Destino.htm 53 2.1 Sarah Sarah, 69 anos, viúva há 11 anos, é aposentada e tem três filhos. O mais velho, Davi, é casado com Carla, pai de um casal de filhos: Maria, a neta por adoção, de 17 anos, e Rafael, de 16 anos. A segunda filha, Rosa, é casada com Luis, mãe de um casal de filhos: Gui, de 14 anos, e Bela, de 10 anos. O terceiro filho, Marcelo, é casado com Claudia, e também é pai de um casal de filhos: Iuri, de 5 anos, e Tali, de 3 anos. Genograma 1 – A família de Sarah Fonte: BAKMAN, 2019. Num taxi a caminho de Copacabana4748, sinto certa apreensão: minha primeira entrevista da pesquisa de Doutorado! Checo duas vezes o endereço, penso em algumas ideias, com a preocupação em manter a conversa a mais aberta possível. Chego a um endereço na larga avenida, muito movimentada e barulhenta. O edifício parece espremido naquela confusão e perdido no tempo, porque quando adentro, me encontro num hall suntuoso, todo de mármore, com estatuetas, espelhos e, tão longo, que não consigo perceber de onde vem a voz do porteiro que me fala. Fico impressionada com a 47 Os trechos do diário de campo serão apresentados em formato de citação. 48 É o único descrição em que mantive a informação sobre o bairro porque já há um artigo publicado onde o mesmo é indicado. 54 mudança de atmosfera, com a passagem do tempo, ao simplesmente entrar no edifício. Me recebe uma senhora gordinha, simpática, com um vestido bem informal e fresco. O dia estava horrivelmente quente e havia um barulho infernal de britadeira vindo da rua, apesar de estarmos no nono andar. Ela me convida a entrar e parece também um pouco apreensiva, por isto busco logo me apresentar e dizer, sem entrar em detalhes, de onde conheço seus filhos. O contato foi realizado com seu filho através de mensagem pelo Facebook e falei, rapidamente com ela ao telefone, para marcar e pegar o endereço. Seu filho é o pai da criança adotiva. Possuo esta informação há anos porque estava presente numa cerimônia de Ano Novo, em minha sinagoga, quando foi também celebrada a chegada desta criança, que recebia seu nome. Logo reparo na casa com uma decoração bem datada e arrumada. Reconheço alguns móveis e objetos como os da geração que eram dos meus próprios avós, que seriam bem mais idosos que ela. Há milhões de retratos espalhados pela casa, especialmente dos netos. Ensaiamos nos sentar no sofá, mas estou preocupada com a qualidade da gravação, devido ao intenso barulho vindo da rua, e com a intenção de ficarmos confortáveis, por um longo tempo, de frente uma para outra, na busca de intimidade. Então, sugiro a mesa de jantar e peço para encostar um pouco a janela. A entrevista flui. Começo com perguntas simples,influenciada por uma pesquisadora recém lida (PATAI, 2010). Acho que é um bom caminho mesmo. Ela parece ir ficando à vontade, pouco a pouco. Eu também. Algumas vezes se emociona, especialmente quando fala dos pais, do marido já falecido e dos tempos mais difíceis. Falar da vida parece ser para ela, especialmente, falar do passado. Posso sentir nesses relatos a sua vitalidade, emoção, e tudo que já enfrentou de lutas, perdas, impasses e conquistas até o momento. (Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2015) Gizele: Primeiro, assim, a senhora pode contar um pouquinho da sua vida. Aonde a senhora nasceu? Qual a sua idade? Falar um pouquinho deste caminho. Sarah: Meu nome é Sarah Bar. Eu nasci dia 11 de fevereiro de 1946 na Av. Suburbana. (...) meus pais moravam lá. Meus pais moravam lá. Papai trabalhava na fábrica (...) de azulejos. A mamãe era dona de casa, tomava conta da casa, sempre vinham parentes para a nossa casa, que era grande, tinha quintal, tinha árvores, tinha cachorro, tinha uma porção de coisas. Era assim de dois andares, a casa, embaixo tinha a sala, cozinha, banheiro e o quarto de empregada. E em cima, tinha três quartos, banheiro. O telefone ficava lá em cima. Quando o telefone começava a tocar e a gente estava no quintal, saía correndo, subia as escadas. Tum, Tum, Tum e aí atendia ao telefone lá em cima. (SARAH, out. 2015). Tenho uma grande surpresa com esta resposta: a partir de uma primeira e simples pergunta, recebo uma descrição cheia de detalhes, imagens, sons, através dos quais, quase, sou capaz de sentir os cheiros e ouvir os ruídos da sua casa de infância. Não podia imaginar que esta pergunta, simples e ampla, nos levaria a um tempo tão antigo e tão significativo. Dominique Veillon (1987 apud Pollak, 1989, 55 p.11)49 mostrou que as lembranças mais próximas, aquelas que guardamos como pontos de referência, são de ordem sensorial: o barulho, os cheiros e as cores. Apesar do meu espanto, e fascínio, outros pesquisadores, ligados à corrente da História Oral, já haviam indicado que: A casa materna é uma presença constante nas autobiografias. Nem sempre é a primeira casa que se conheceu, mas é aquela em que vivemos os momentos mais importantes da infância. Ela é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a partir dela, em todas as direções. (BOSI, 1994, p. 435). No prosseguimento da pesquisa, decido manter esta pergunta como a primeira, ciente de que a experiência da entrevista não se inicia neste momento, mas sim desde a indicação, o telefonema, a entrada na casa, os diálogos em torno do TCLE e do gravador, quando o entrevistado já faz comentários ou perguntas - espaços por onde o encontro já se desenha; mas ela se mostrou uma questão potente, aberta, que permite ao próprio narrador escolher um rumo para a conversa que oficialmente se inicia, já que o gravador somente é ligado, depois das primeiras formalidades. Gizele: E aí quantos netos a senhora tem? Sarah: Tenho seis. São lindos, lindos demais. Gizele: Quem é o mais velho? Sarah: Os mais velhos são do Davi: a Maria e o Rafael Gizele: A Maria [a neta por adoção] está com quantos anos? Sarah: A Maria está com 17, o Rafael com 16. Gizele: A Maria foi a primeira neta? Sarah: A Maria foi a primeira neta. Ela que trouxe a felicidade de nascer todos os outros depois. Gizele: Hoje em dia a senhora lembra que ela é adotada? Pensa na família biológica dela? Sarah: Não, eu não. Eu sou muito ligada a ela. Não sei. Para mim ela é minha neta mesmo, de coração, de tudo. Gizele: Nem lembra deste dado? Sarah: Nem lembro. Sarah: (...). A Maria sabe, ne, mas ninguém fala não. Eu realmente, eu nem lembro que ela é adotada. Gizele: Se não tocamos neste assunto? (Rindo) Sarah: Nem lembro, nem lembro. Gizele: Já está totalmente? Isto ficou totalmente no passado? Sarah: É minha netinha, minha netinha querida. No passado. Realmente, nem lembro. Para mim é minha netinha. Amo ela. Toda hora: oi querida, para lá e para cá. Adoro ela. Todos eles, né. Eu sou assim mesmo. (SARAH, out. 2015). Sarah: Eu gosto deles, eu digo que eu amo eles, que eu adoro eles, mando WhatsApp toda hora. (...). Gizele: A senhora é uma avó moderna sabe usar o WhatsApp! Sarah: WhatsApp, vou lá, fico lá filmando, gravando (...). Só sei usar também coisas simples. A gente da terceira idade (...) tem muitas coisas que eu 49 VEILLON, Dominique. La Seconde Guerre Mondiale à travers les sources orales. Cahiers de L’IHTP, n.4, p.53-70, 1985. 56 gostaria de saber no computador. Mas não sei não. Tem muitas coisas que eu não sei. Só sei as coisas mais simples, assim. (SARAH, out. 2015). Sarah manteve-se durante a maior parte da entrevista num estilo falante, detalhista e amoroso, ao contar da juventude, do casamento, do nascimento dos filhos, da vida de aposentada, das amigas e, principalmente, dos netos. Sua amorosidade se espalha por cada palavra dita. Difícil não notar o valor que ela dá ao fato de Maria ter inaugurado a geração de netos e considerando-a, de alguma forma, a responsável pela sorte de Sarah ser avó de outros mais. Várias passagens em que ela dizia não se lembrar, onde foi mais enxuta na sua fala, ou confusa com as datas. me deixaram intrigada porque se destoavam do todo. Discuti este aspecto num artigo50 onde escrevo sobre a memória que é construída coletivamente, valorizando ou não alguns aspectos ou passagens da vida, e esquecendo outros. Para Maurice Halbwachs (1968, 1976 apud BARROS, 1989)51 transmitir uma história, sobretudo a história familiar, é transmitir uma mensagem, referida, ao mesmo tempo à individualidade da memória afetiva de cada família e à memória da sociedade mais ampla, expressando a importância e permanência do valor da instituição familiar. O autor estudou os “quadros sociais da memória” (BOSI, 1994, p.54), onde a memória do indivíduo depende do relacionamento com o seu entorno: família, classe social, escola, comunidade, profissão e grupos de referência. A memória é compreendida, assim, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes (POLLAK, 1992), reforçando a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo (POLLAK, 1989). Os indivíduos não recordam sozinhos, precisam da memória dos outros para confirmar suas próprias lembranças. Como este aspecto não surgiu com outros entrevistados, não vou abordá-lo mais por aqui, privilegiando os assuntos que se destacaram e que envolvem os temas em pesquisa. Mas sem dúvida é uma matéria muito interessante e bastante explorada em diversos campos de estudo. Percebo que esta primeira entrevista com Sarah me teve como uma entrevistadora mais contida, ainda sem saber como adensar nos temas que me interessavam em especial, porém já sentindo que era importante seguir o fluxo e 50 BAKMAN, Gizele. O lembrar não se faz sem o esquecer: fragmentos de uma entrevista. Mnemosine, v. 13, p. 291-308, 2017. 51 HALBWACHS, Maurice. La mémoire coIlective. Paris: PUF, 1968. ______ Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Mouton, 1976. 57 deixar se levar por ele, esperando as brechas para incluir as perguntas referentes aos temas da pesquisa em si. Com o tempo percebi que as partes mais interessantes podiam ser justamente as que não pareciam conectadas diretamente às minhas perguntas sobre família e adoção. E houve espaço para: o que queriam me contar, para as minhas perguntas e para outras conversas que não eram tão importantes, mas que sustentavam o encontro e criavam um bom ambiente entre nós, como falar da minha família e da nossa comunidade. Assim, esta primeira entrevista serviu para criar um padrão de cuidado com o contexto, com o ambiente, com o tempo da conversa. O conforto, a necessidade de um olhar próximo e direto são detalhesque me preocuparam, neste e nos demais encontros, desejosa de construir uma atmosfera de cumplicidade e intimidade, já que acredito que falar de si, de sua vida e de sua família requer tais condições. Esta primeira conversa foi também um portal para pensar em temas como velhice, solidão, meios tecnológicos, apego, avosidade, entre outros – fios novos que surgiriam pelo caminho. Gizele: Então seu pai foi um pouco difícil para ele aceitar a Carla [nora convertida] no início? Sarah: É foi, mas depois aceitou numa boa. Papai era... Gizele: E quando a Maria veio, ele estava vivo ainda? Teu pai? Sarah: Deixa eu me lembrar. Não me lembro mais. Acho que não. Gizele: Ele faleceu quando? Se ela está com 17, ela nasceu em 98, ne? Sarah: Acho que papai já tinha morrido. Papai morreu em 94. Acho que foi depois. Gizele: Você imagina que seria difícil para ele aceitar isso ou ele aceitaria? Sarah: Não. Aceitaria. Ele era como eu: queria ver a felicidade das pessoas, das pessoas que ele gosta. Ele lutava por isto, ver a felicidade das pessoas. Mamãe aceitou numa boa também. Gizele: Queria ter mais netos? Ou acha que seis está bom? Sarah: Seria bom, mas cada um tem o seu, escolhe, tem suas escolhas. Mas eu gosto muito de criança. Adoro criança. Gosto muito mesmo. Eu adoro eles. É muito bom, a gente ser, é duas vezes mãe. Gizele: Qual que a Sra. acha que é mais apegado? Qual dos netos? Sarah: Não sei. Talvez, a Maria seja mais assim, me procure mais, os da Rosinha não me procuram não. Eu é que fico em cima, fico em cima deles todos. Gosto muito... a Bela fala assim: “Oi, vó”. Eu só ligo para escutar o “oi, vó”, Gizele: Mas quem a senhora vê mais? Convive mais? Sarah: A gente via mais quando eles eram menores. Agora cada um tem a sua turma, a sua vida, então aí eu vejo menos. Mas eu procuro participar. (...), mas eu vou, sempre que me chamam, eu vou. Qualquer atividade, qualquer evento que eles tenham, eu participo. Mas eles assim, eu acho: a gente se sente um pouco carente, ne? Porque fica sozinha, ne? (SARAH, out. 2015). 58 É perceptível pela sua fala, e tom, o apreço que tem entre ela e Maria: neta mais velha, neta mais presente, neta admirada. Parece sob encomenda para a pesquisa, mas será visto ainda muitas vezes por aqui. Termino o primeiro encontro com gostinho de quero mais, e maravilhada com o campo novo que se abre, repleto de cores, cheiros, sons, lembranças e intrigantes fios de família. 2.2 Rebeca Rebeca, 82 anos, aposentada, casada por duas vezes, sendo seus três filhos do primeiro casamento: a mais velha, Ana, separada, mãe de três filhos: Nicole, 29 anos, Fabio e Roberto, gêmeos de 26 anos. Os outros dois filhos de Rebeca também são gêmeos, Paulo e Claudia. Paulo é casado e tem uma filha, Marcela, de 13 anos. E Claudia é casada e tem uma filha por adoção, Carolina, de 12 anos, cujo pai tem dois filhos, já adultos, de outro casamento. Genograma 2 – A família de Rebeca Fonte: BAKMAN, 2019. Segunda entrevista agendada e eu, novamente, ansiosa! Surpresa pela rapidez da marcação, realizada através de mensagens pelo Facebook com a filha. Será que estava pronta para estar de novo em campo? Sabia desta 59 adoção devido às publicações da própria mãe da criança no Facebook, que foi minha monitora na juventude em movimento juvenil.52 Pelas instruções da filha, imaginei que a avó seria uma “figura”, pois eu não deveria ligar antes da 12hs, porque ela dormia, e nunca após às 19:30hs, porque acompanhava todas as novelas, aos 82 anos. Chego em cima da hora e me recebe uma senhora bonita, conservada, chique, sem maquiagem, pele linda, com os cabelos bem tratados e joviais. Um apartamento pequeno, um prédio grande, uma rua agradável. A atmosfera me dá a impressão de que o apartamento é, como ela, muito jovem para sua idade, diferente e contrastante com o de Sarah. Ela já tinha preparado o espaço, pois me encaminha para a pequena mesa de jantar, onde posso ver dispostas algumas cartinhas com letra de criança. Mal tenho tempo de me explicar e me apresentar, falar da entrevista e pedir licença para gravar, pois ela já vai contando de si e me enchendo de perguntas. Rapidamente se torna minha íntima, me chamando de Giza como se nos conhecêssemos há tempos. De alguma forma, ela me conhece, como conta no transcorrer da entrevista, que conviveu com meus pais, especialmente minha mãe, quando ambas estavam divorciadas, no final da década de70. Como na outra entrevista me oferece algo que não gosto. Desta vez, recuso com um pouco mais de tranquilidade o biscoito de queijo, que abomino, já que com Sarah, sem graça, bebo parte do horrível mate diet que me é servido. Acabo por beber o café sem adoçar diante do incomodo dela de não ter açúcar em casa. Me sinto forçada a ser boa convidada! Durante a entrevista me mostra cartinhas das netas, se confundindo sem saber de quais netas eram, e fotos das duas mais jovens, entre elas, Carolina, a neta por adoção. (Rio de Janeiro, 2 de março de 2016) Gizele: Então, vamos lá. Me conta um pouco assim da sua vida, começa por onde a senhora quiser e eu vou fazendo as perguntas que forem importantes para mim. Rebeca: A minha vida assim, quer dizer. Eu sempre fui muito autêntica. Tanto que eu separei um noivado. Eu tinha, foi gozado, 19 anos, estava noiva, ia casar. Mamãe adorava este rapaz. Era um rapaz muito bacana, matemático. E eu tinha muita admiração. Mas, sabe quando você percebe? Eu precisava, eu fui lá, eu fui a um hospital em Botafogo para conseguir falar com alguém. Você já viu coisa? Eu tinha 19 anos, quase 20. Aí eu peguei um psiquiatra. E disse que eu precisava, que eu queria resolver. Ele me deu uma injeção na veia. (Eu rio). Resumo: aí eu cancelei. Eu vi que não podia casar. Aí acabou o noivado. Mas nós continuamos muito amigos e tal. E eu fiquei assim muito mexida por causa da minha mãe porque ela queria. E depois aí, como é que foi? Viajei. Eu sempre fui muito cheia de vida. Namorei muito. Passeei muito e tal. Depois casei com o Shafir. E depois de um tempo (...). Gizele: A senhora trabalhava? Rebeca: Eu trabalhava. (...). Trabalhava, trabalhava, só que chegou um ponto que não dava mais. Ele jogava. E não estava assim nos momentos importantes. E aí eu fui trabalhar com (...) para poder criar os meninos: Ana, Claudia e Paulo. (REBECA, mar. 2016). 52 Não só no Brasil, mas em todo o mundo existem Movimentos Juvenis Judaicos. São grupos que pretendem difundir ideais judaicos utilizando a educação não formal, de jovem para jovem, com reuniões semanais. Há uma diversidade de movimentos, com plataformas ideológicas e posturas diferenciadas quanto à religião, a cultura, a política e ao Estado de Israel. 60 Novamente a primeira pergunta abre uma ampla descrição, mas desta vez o foco escolhido é o início da vida adulta e sua autenticidade. Autenticidade, percebida ao longo da conversa, no estilo de ser e de decidir sua vida, de ter rompido um noivado (na década de 50), da separação (na década de 70), de ter sustentado três filhos sozinha, de ter trocado de profissão em busca de uma mais rentável, de ter tido por muitos anos um companheiro, numa época (na década de 90) em que esta palavra nem era utilizada. Autenticidade que se estende na forma afetiva com que me recebe, torna-se íntima, me chama de “Giza”, pergunta pela minha vida e pela pesquisa, mostrando-se atualizada e curiosa. Autenticidade por transparecer, apesar da idade e das dificuldades relatadas, o brilho nos olhos, a vontade de viver e a jovialidade. Sinto saudades dela e de seu afeto só em descrevê-la. Ela me conta que, por Carolina ser a menor, é a mais acessível e disponível. Relata que a relação com a neta mais velha era muito intensa quando pequena, mas que hoje, adulta e trabalhando, quase não se veem. Os netos crescem e o contato diminui, comentário presentetambém na conversa com Sarah. Em Sarah havia um vazio em relação as informações da adoção e da história de Maria, mas aqui, Rebeca fala com desenvoltura no assunto e possui bastante informações a respeito. Gizele: Hoje com qual neto você tem mais contato? Rebeca: Com a Carolina. Gizele: Com a Carolina? Mesmo em São Paulo? É? Rebeca: Paixão da minha vida. É uma coisa assim. Parece até coisa de outras vidas. Gizele: Como foi quando Claudia te contou que ia adotar, a senhora lembra? Como foi esta notícia? Rebeca: Ela adotou. Carolina veio com um ano e pouco. Tudo bem. Sabe aquela coisa assim. (...). Então, ela tem uma ligação comigo totalmente espiritualizada, uma coisa assim totalmente linda. É gozado que eu ligo para a Carolina praticamente diariamente. Então é assim, eu vou falando, nem tem assunto, é para ouvir a vozinha, meio minuto, um minuto. E ela é apaixonada. Eu tenho uma coisa excepcional por ela. (...). Gizele: Mas a senhora já sabia que ela vinha? A Claudia já tinha te avisado? Rebeca: Eu sabia que ela vinha. (...). E ela veio com um ano e meio. Quando ela já estava em casa, depois de todo o processo, de leis, de Fórum, tudo que a Claudia passou, eu fui para lá. Gizele: Essa paixão foi desde o início, Rebeca? Rebeca: Foi criando. Porque ela chegou. (...). Eu ia muito a São Paulo, muito, muito, muito. Aí eu fui me habituando e ela também, ne? Mas depois dos quatro, cinco anos. Então, ela agora, começou assim uma ligação. Coisa linda, linda, linda. E ela comigo. Mas é uma coisa assim, por exemplo, quer ver? (Mexendo nas cartinhas). Gizele: Os outros netos quando eram pequenos tinham também essa ligação? Rebeca: Tinham, tinham, a Nicole, hoje em dia é a mais velha, e a Marcela, mas não como a Carolina. 61 Gizele: Nem nesta idade? Rebeca: Não (...) no sentido do que ela sente em relação a mim, do que ela bota, do que ela escreve. (REBECA, mar. 2016). A família de Rebeca é, atualmente, segundo ela, pouco ligada à comunidade e à religião, à exceção da neta adotada e de um outro neto, que foi monitor da minha filha no Movimento Juvenil. Ela atribui a Carolina a reaproximação da família ao judaísmo: sua filha voltou a frequentar espaços da comunidade, Marcela, sua outra neta, filha de mãe não judia, também demonstrou interesse em estudar para fazer o Batmitzva, como Carolina, e todos se encontram, regularmente, em jantares nas festas judaicas. Rebeca: (...) a Marcela tendo um pai feito o Paulo, que tem uma cultura judaica. Freud para ele é todo em alemão. Eu não posso explicar. Judeu, ne? Paulo tem uma cultura judaica, extraordinária, em geral. Paulo não fala de judaísmo para ela nem que chova canivete. E ela, aí a mãe fala assim: ah, D. Rebeca, leva a Marcela para alguma sinagoga, para ela ter alguma noção. Não sabe nada. (...). Rebeca comenta com especial ênfase sobre o afastamento de seu filho do judaísmo (que também foi meu monitor no movimento juvenil), como algo do inesperado devido ao seu enorme conhecimento nesta área, e que não se justifica pelo casamento misto. Interessante como a nora, não judia, solicita a Rebeca que cumpra o papel de formação judaica perante sua filha. Gizele: Eu tinha perguntado para a senhora se a senhora pensa na família biológica da Carolina? Se, às vezes, a senhora pensa nisso? [Ela acabou respondendo outra coisa na 1ª vez]. Rebeca: Não. Parece... (suspira) ela... eu soube que a mãe era catadora de papel. Não tem nome de pai, não tinha nome do pai. Parece que tem uma avó lá no Norte. Foram à avó porque não poderiam adotar se a avó quisesse. Ela não quis ficar, não pode ficar, com certeza dificuldade, ne? Parece que tem um irmão, ela ficou com o irmão. Parece que ela saiu do parto e foi pega. (...). Gizele: Mas você, Rebeca, às vezes pensa nisso? Ela tem outra avó? Ela tem um irmão? Rebeca: Eu penso, eu sou preocupada com a cabecinha dela. Isso eu sou. Gizele: E o que a senhora acha da cabecinha dela? Rebeca: Eu não sei. Como em geral ela reage bem, eu não falo nada sobre isso com ela. Ela é quem fala. Eu sinto que ela é altamente ligada com esta coisa de judaísmo. Uma coisa assim fora do comum. Ela conversa. Ela tem noções que eu não tenho, nunca tive. Eu também nunca estudei em escola judaica. Então essa coisa é muito importante para ela. (REBECA, mar. 2016). Sarah me deu a impressão de realizar através de seu amor e alegria, na sua relação com Maria, um contraponto a ausência de conexões biológicas. Em, Rebeca o afeto e, principalmente, a ligação com o judaísmo surgem de forma semelhante na sua narrativa. 62 Rebeca também descreve a forte relação com Carolina como algo da ordem do incompreensível, do mágico, mostrando-se feliz e maravilhada, eu diria mesmo, agradecida, pela presença dela em sua vida. Busca palavras para exprimir uma espécie de conexão-alma, na tentativa de nomear os fortes laços que sente existir entre elas, apesar de, em nenhum momento, mostrar-se uma mulher com crenças religiosas. Ramírez-Gálvez (2011), ao colocar o campo da reprodução assistida em diálogo com a adoção de crianças, analisando suas narrativas, afirma que na adoção, o milagre é atribuído a um encontro bem-sucedido, na reprodução assistida é o “milagre tecnológico” que possibilita a realização de um gesto mimetizado na natureza. “O vazio do sangue parece ser preenchido por um determinismo que é colocado em outro registro, o místico, mas que se mantém “fora de controle”.” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.75). Em uma pesquisa realizada com mulheres de três gerações, Machado e Barros (2009) perceberam que nas camadas médias, a religiosidade, mais do que a religião institucionalizada, significa uma busca de sentido para si, definindo uma religiosidade laica, com a possibilidade ou não de adesões aos credos e aos dogmas religiosos. Na sua pesquisa com judeus franceses e israelenses com filhos por adoção, Nizard (2009) menciona aspecto semelhante: “O anúncio da chegada da criança, e o primeiro encontro entre ela e seus pais, são, muitas vezes, descritos como um milagre, um momento de graça num sentido quase religioso do termo, a realização de um destino.” (NIZARD, 2009, p.56)53. Rebeca me traz elementos cartográficos novos: desenhos e cartas de suas netas, dispostas na mesa, que ela inclui durante nossa conversa. Lê alguns trechos e pede que eu leia outros. As cartas estão embaralhadas, nem sempre são da Carolina, a neta adotada, mas o sentido é um só: a força da relação e do amor entre avó e netas. Em suas oficinas sobre a memória com grupos de terceira idade, Correa (2009) percebeu que a memória perdida, muitas vezes, ganhava corpo em forma de relatos, fotografias ou objetos trazidos. Rebeca: Olha, hoje em dia, eu estou mais sozinha. Entende? Eu tenho amigas, claro, mas uma mora ali, outra mora aqui, não sei. Gizele: A senhora não é de sair não? ir ao cinema? 53 No original: « L’annonce de l’arrivée de l’enfant et la première rencontre entre l’enfant et ses parents, sont souvent racontées comme un miracle, un moment de grâce au sens quasi religieux du terme, la réalisation d’un destin.». 63 Rebeca: Saio. Eu assisti todos os filmes do Oscar. (Eu rio) Gizele: A senhora vai com quem? Rebeca: Ou eu vou com amiga. Se a amiga não pode, eu vou sozinha. (...). Isto eu faço: cinema. Com os filhos, não. Aninha, às vezes, eu vou ao cinema com ela. Eu me viro. (REBECA, mar. 2016). Neste detalhe de seu comentário, a ausência da companhia da filha, bem como o relato da falta de tempo dos netos já crescidos, aponta para o aspecto da solidão, que também foi perceptível nas palavras de Sarah: saudades de uma rotina mais cheia, de gente e de vida. Na hora de terminar parece que não queria que eu saísse. Sua filha tinha me escrito que achava uma hora muito tempo, mas com relutância, desliguei o gravador após uma hora e meia de conversaporque tinha outro compromisso. Que pena! Mesmo depois de chamar o elevador ela não parava de falar e me fez reentrar em sua casa para ver mais algumas fotos suas quando mais jovem e de sua família, dispostas nos porta-retratos. Lamentei não estar mais gravando e ter de ir embora. Que delícia de encontro! Aprendo uma nova lição: entrevistar sem limite de tempo, colocar-me totalmente à disposição da entrevista e do inesperado a que ela poderá me conduzir. (Bem como não desligar o gravador antes de ter certeza da finalização da conversa). Vivendo e aprendendo. Vou me abrindo às oscilações do campo, me sinto amadurecendo como pesquisadora. (Rio de Janeiro, 2 de março de 2016). “(...) os rumos do estudo são redesenhados localmente, vão sendo definidos ao longo de todo o processo a partir do encontro do pesquisador com o campo da pesquisa, em especial para nós, com os sujeitos da pesquisa.” (TEDESCO, 2015, p. 37). 2.3 Isac e Lea Isac, 84 anos, e Lea, 76 anos, estão casados há 55 anos. Tiveram três filhos: Marcio, casado com Gilda, tem dois filhos: Bianca, 24 anos, e Daniel, 18 anos. O segundo filho do casal é Felipe, 54 anos, casado com Gilberto, e que adotaram Carlos, 4 anos. E Miriam, casada com Lucien, tem dois filhos: Breno,14 anos, e Paulo, 10 anos. Genograma 3 – A família de Isac e Lea 64 Fonte: BAKMAN, 2019. Desde que iniciei minha pesquisa, um casal de amigos insiste que eu deveria entrevistar esta família que frequenta a sua sinagoga. São pessoas que eu conheço desde os tempos de menina porque foram amigos dos meus tios, morávamos perto e, eu e seus filhos, frequentávamos a mesma escola. Mas desconhecia a trajetória que cada um deles havia realizado na vida adulta. Somente com a filha menor, tinha algum convívio, porque temos alguns amigos em comum. Sabia que era casada, tinha filhos e onde estudavam. Mas, estranhamente, apesar do pouco contato, sentia-me próxima dos avós, estivemos juntos cerca de 15 ou 20 anos atrás no casamento de um primo meu, em Curitiba, onde rimos muito e passeamos pela cidade, juntamente com outros cariocas. Fiquei esperando uma oportunidade de me aproximar, preocupada com a possível delicadeza da situação da homossexualidade, tema que considero ainda tabu na comunidade. Vi a avó e a filha na sinagoga que frequentam por duas vezes em que lá estive, mas não me aproximei. Soube que o avô estava doente através de um e-mail da mesma sinagoga solicitando doação de sangue, e fiquei bastante mobilizada. Ao encontrar a filha numa festa, perguntei sobre o estado de saúde de seu pai e comentei sobre a minha pesquisa, pois já sabia que tinha um sobrinho adotado. Foi bem receptiva. Passado algum tempo e, informada que, apesar de em tratamento, o avô estava bem de saúde, decidi escrever uma mensagem para ela e saber da possibilidade de entrevista-lo ou à sua esposa. Poderia tê-lo feito diretamente, mas senti que assim seria mais cuidadoso. Prontamente me foram passados os contatos, a informação que aceitaram e o comentário de que ele era bem mais disposto a conversas. Tudo por mensagens de WhatsApp. 65 Ao telefonar, a esposa passou para ele combinar comigo o encontro. Ao ligar novamente para confirmar (atitude que tive para com todos os entrevistados), ele disse que tinha uma surpresa para mim: já havia contatado mais duas famílias judias com adoção. E assim que entro em sua casa, me entrega um papel com os devidos telefones, que está até hoje grudado em minha agenda, como uma doce lembrança deste encontro e disponibilidade. Eles moram num prédio, perto de onde eu morava em criança, mas depois descubro que não era neste apartamento que residiam na época. O ambiente é claro, amplo, com móveis antigos, certa mistura de novo e velho, muitos porta-retratos pela casa. Eles já parecem acomodados à minha espera. Durante a entrevista, realmente, ele é quem mais fala, cheio de detalhes, datas, de forma pausada, sem pressa, precisa dar sequência aos fatos de toda a sua vida, aliás de toda a sua família, para encadear e chegar aos tópicos que remetem à pesquisa. Ela só fala quando diz respeito diretamente a si ou para complementar, e confirmar, alguma afirmação. E, tenta por vezes, como eu, acelerar a fala dele. Não adianta. Parece que ele já tem um script pronto, e longo, em sua mente. Vou me dando conta que a conversa será longa, e que tenho que seguir os seus passos. Acho que ela também. Desistimos de acelerar: ele não tem pressa e parece imerso no prazer de relatar sua vida e de sua família. Parece que esse continuum tem um significado especial para ele. Durante a entrevista, ela almoça, vai ao cabeleireiro e quando volta, ainda estamos lá! Eu preciso interromper algumas vezes para ir ao banheiro. Ele é vistoriado pela acompanhante para medir glicose e temperatura, senta para almoçar e me oferece algo para comer, que aceito, com fome: um beigale54 de batata e suco de frutas, que me são muito bem-vindos desta vez. Em nenhum momento demonstra cansaço ou se sente interrompido em seu relato por qualquer destas interferências. Tenho um prazer pessoal de saber algumas passagens sobre meus tios maternos, seus amigos íntimos, cheias de detalhes, como num filme em preto e branco, pela nostalgia e distância das datas e dos costumes narrados. A entrevista durou um total de cinco horas! Ele me diz enfaticamente que poderia falar por mais cinco! Acredito. Saio exausta e incrédula. O que a necessidade de perfilar pelas gerações fala sobre o seu ser família para ele? Ou sobre seu momento de vida? (Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2016.) Gizele: Minha primeira pergunta é uma coisa muito geral assim: para vocês me contarem um pouco a vida de vocês, o percurso de vocês, da vida de vocês. Isac: Bom, são 55 anos de casados, 4 de março de 60 e? Lea: 61 Isac: 61. É 61. E tivemos 3 filhos. O Marcio, que é de 62, Felipe, que é de 64, e a Miriam de 67. Nós morávamos aqui neste bairro e eles estudavam no (...). Na infância deles nós tivemos, entre aspas, alguns problemas. Primeiro foi com o Marcio, na época era o Dr. XXX, meu vizinho, porque eu trabalhava (...). (ISAC e LEA, set. 2016). Isac inicia sua fala pelo casamento e a chegada dos filhos, mas a cada momento vai e volta ao passado, complementado e ampliando cada informação. Compreende que a forma como vivem suas vidas está relacionada com o que viveram 54 Folheado típico da culinária judaica recheado, geralmente, de batata ou queijo. 66 em suas famílias de origem, daí a importância destes deslocamentos no tempo. Assim, aos poucos, monta uma história que abarca quatro gerações. Para me contar sobre suas vidas, cita um problema com o primeiro filho na questão escolar, mas abre um grande parêntese sobre a trajetória de vida profissional, e retoma, muitas palavras depois, exatamente do ponto que estava - um controle total de sua narrativa, um estilo de ir e vir, sem perder o fio da meada, preso aos detalhes, que marcou toda a nossa conversa. Uma das características atribuídas ao povo judeu é o da tradição oral e da retórica, que Isac utiliza muito bem, transformando uma pergunta em outra, emendando e costurando diversos assuntos ao mesmo tempo, decidindo por que caminhos trilhar, me mantendo fascinada e interessada nas histórias de suas vidas55. Gizele: vocês se conheceram aonde? Isac: Eu vou te contar Gizele: Está bom, está bom. (Lea ri e ele começa o relato desde sua formatura, muitos anos antes de conhecê-la, até chegar à reposta a minha pergunta). Gizele: Mas vocês já estavam juntos? Já se conheciam? Isac: Nada, nada, eu não cheguei lá. Estou começando a me aproximar. (Eu rio). Lea: Falar é com ele mesmo! Gizele: Eu sei, a Miriam disse assim para mim, sua filha disse: “meu pai vai falar e a minha mãe vai ficar ali”. Mas você dá seus apartes quando... Isac: Você corta quando você achar que deve.[Eu e Lea tentamos algumas vezes sem sucesso!] Gizele: Então. Vamos falar Marcio, Felipe. Felipe fez o quê? Trabalha com quê? Isac: Felipe, Felipe foi... Bom, mas Marcio, acho que ainda tem que contar pata você porque tem um aspecto psicológico da história. Gizele: Fala! (Eu rio e ele volta a contar de uma dificuldade escolar que o filho mais velho teve na pré-escola.) (ISAC e LEA, set. 2016). Além de seu estilo próprio e sua fama de contador de histórias, tenho a impressão que o enfrentamento de uma doença grave ampliou a necessidade de falar de sua vida e se preocupar em deixar registros para sua família. “Outro importante aspecto da lembrança na velhice é a tentativa de articular e dar sentido ao passar da vida quando ela se aproxima do fim.” (THOMSON, 1998, p.288). Falar de si neste momento da vida em que se tomam avós e fazer uma retrospectiva de seu passado não é exclusividade do momento da entrevista. A pessoa realiza revisões sucessivas durante a vida, e a revisão nesta etapa parece dar-se também em função do conhecimento do fim da vida e da 55 Segue uma piada: O sujeito encontra um amigo judeu e diz: - É verdade que todo judeu sempre responde uma pergunta com outra pergunta? - Quem foi que te falou essa besteira? 67 proximidade da morte. A presença da morte já faz parte deste momento da vida: vários parentes e amigos de sua geração já morreram, bem como, evidentemente, das gerações ascendentes. Esta presença por si só traz a força da revisão da vida e também a familiaridade com a idéia de fim. (BARROS, 1989, p.36) Isac conduziu a conversa contando a vida de cada um dos filhos, com detalhes sobre estudos, carreira, relacionamentos, até chegar em casamento e filhos. O tema da homossexualidade de Felipe foi abordado de forma direta, com simplicidade e deu a impressão de que os valores família e união fazem com que este aspecto da vida dele, problemático em muitas outras famílias, tenha sido menos valorizado. Isac: Ele tinha um grande grupo de amigos. (...) Ai de repente surgiu o rapaz Gizele: O namorado? Isac: O companheiro dele. Que a gente não tinha... Como ele tinha uma capacidade de aglutinação, de amizades, a gente não atinava para esse lado dele. Gizele: Da homossexualidade? Isac: Entendeu? A gente não atinava. Então, a gente via aquelas reuniões, 20, 30 pessoas. (...). Aí em algum momento ele falou que estava namorando. Gizele: Mas ele apresentou em algum momento? Isac: Nunca apresentou oficialmente o companheiro. Gizele: Não? Isac: Não. Gizele: Mas ele frequenta a casa de vocês? Isac: Claro! Gizele: Mas não teve esse momento? Isac: Calma: Amigo. Gizele: Entendi. Isac: Você não pode, quanto mais um casal judeu admitir um negócio desse, a princípio, entre aspas, a gente levava com naturalidade. Até que o rapaz foi morar junto. Ai a gente viu que... Gizele: Que não era amigo. Isac: Nunca questionamos, nunca perguntamos nada. E não interessa. Lea: E nunca teve nada por parte da família contra. Gizele: Mas vocês ficaram surpresos ou aquilo fez sentindo de alguma forma? Isac: É um modo vivendis diferenciado. Gizele: Claro. Mas vocês ficaram surpresos ou de alguma forma aquilo fez sentindo? Isac: Aquilo foi se dando naturalmente, que você quando se deu conta, aconteceu. (ISAC e LEA, set. 2016). Fonseca (2008) e Zambrano (2006) ao discutir sobre as novas parentalidades, mostram o quanto elas são importantes para mostrar, e debater, a questão do parentesco como sendo uma questão política e cultural. Mas, graças à sua grande visibilidade, ela [a homoparentalidade] nos ajuda a ressaltar certos elementos, temas que exigem debate, e cujas repercussões se estendem bem além da família gay ou lésbica. Afinal, ajuda a revelar as atuais formas familiares como “co-produções” que envolvem – além de valores culturais – lei, tecnologia e dinheiro. (FONSECA, 2008, p. 781). 68 Em muitas passagens, Isac e Lea vão lembrando de passagens comigo ou com minha família, e eu vou compreendendo, e materializando, os sentimentos de intimidade e proximidade que nos une, inclusive passagens da minha própria vida que estavam esquecidas e que apontam para o cruzamento de nossas vidas. Isac: Essa menina eu conheci na barriga da mãe dela [falando sobre mim para a acompanhante]. Lea: Eu encontrei com você quando eu fui para Israel (...) (ISAC e LEA, set. 2016). Fico impressionada com sua boa memória e como tinha toda a história de sua vida, e de sua família, organizada em sua mente. Antes de eu sair, me mostra um texto onde escreveu as histórias da família, foto do arquivo de seu pai com endereços de famílias judias na Europa, para onde enviava encomendas, na primeira metade do século passado, e o documento do Museu do Holocausto de Israel, ao governo brasileiro, solicitando o envio do mesmo. Emocionante! Também mostra fotos antigas, guardadas com esmero. Eles já me haviam mostrado outras, no meio da entrevista ao citar os netos, que estavam nos porta-retratos espalhados pela casa. (Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2016.) Isac: (Lendo um papel onde escreve a história da família). Minha mãe dizia: “quem não tem história para contar, não viveu”, assim começa, a pedido da família, a minha história que começou as 11hs no dia 23 de janeiro de 1932, quando nasci no antigo hospital alemão no rio comprido. (ISAC e LEA, set. 2016). No dia 25/12, três meses após a realização da entrevista, recebo uma mensagem de sua filha comunicando o falecimento de Isac e ressaltando a data significativa deste dia: natal e primeiro dia da festa de Chanuka. Já havia escrito para ela uma vez para saber como estava seu estado de saúde, e soube que os resultados dos exames não tinham sido positivos. Fico muito emocionada. Vou com meu marido e mãe ao seu enterro, pois ambos o conheciam. Muita gente. Filhos muito abalados. Sua esposa me conta que faleceu bem e tranquilo. Linda homenagem da filha contando a pessoa alegre, sui generis, falante e amigo que ele era. Adorei, em especial, uma história relatada em seu discurso: que mesmo de repouso e imunidade baixa, Isac fez questão de ir à inauguração do supermercado Mundial de Copacabana para cumprimentar o gerente e os funcionários - imagem que me emociona e mostra a pessoa generosa e disponível que era, exatamente como foi comigo, ao abrir sua casa, sua vida, sua intimidade e ainda me indicar mais famílias para a pesquisa. Fui também na última reza da primeira semana de luto56. Um dos motivos era saber da autorização de Lea em entregar a gravação da entrevista, que já me tinha sido solicitada pela filha no dia do enterro. Ela concorda. Os filhos parecem melhores, a esposa, desta vez, desabada. 56 O costume judaico no período de luto são rezas diárias na primeira semana, chamada de Shiva, literalmente estar sentado, realizadas na casa ou na sinagoga, com um mínimo de 10 pessoas - Minian, literalmente número, quórum mínimo para rezas coletivas. Forma sábia, ao meu ver, para que os amigos e familiares tornem-se presentes para prestar homenagens, e permitir a família viver a dor do luto coletivamente. São também realizadas rezas para marcar: uma semana, um mês, um ano e subsequentes, de forma semelhante. 69 Fui também na reza de 30 dias. A sinagoga estava muito cheia. Vários discursos. Todos enfáticos em falar da pessoa de Isac, que deixava um grande vazio porque ocupava seu espaço com boas conversas, inabaláveis amizades, inúmeras histórias, alegria de viver e muito bom humor. Como foi comigo! No discurso de Felipe, ele menciona o “depoimento” de cinco horas que seu pai deu a mim! Fico especialmente emocionada porque ele diz que foi uma oportunidade de o pai rever os aspectos marcantes de sua vida e deixá-los registrados. Quão inesperado e marcantes pode ser uma entrevista na vida daqueles que participamdela, diretamente, ou ao seu redor! A emoção me toma agora, e sempre que volto a este encontro, e a tudo que ele me proporcionou. (Rio de janeiro, janeiro de 2017). Ao enviar o áudio da entrevista, aos filhos, por e-mail, Miriam escreve ao irmão Felipe, em cópia para mim: “Ao Kique [Carlos] a gente agradece quando ele for maior, pois se ele não tivesse chegado, não haveria esta entrevista!!”. De novo penso, e sinto, sobre os imprevisíveis caminhos e efeitos de uma pesquisa, como confirma Tedesco (2015, p.40): “(...) toda pesquisa é uma prática de intervenção. Isto significa dizer que toda pesquisa realiza ações, modifica fatos, imprime outras direções ao mundo.”. 2.4 Debora Debora tem 77 anos, aposentada, viúva, foi casada por 56 anos com Jacob, falecido há cerca de 1 ano e meio. Mora com Rosa, empregada que trabalha com ela há 38 anos. Tem três filhos: Marcelo, casado, pai de Sofia, 26 anos, e Luana, 23 anos; Sandra, casada, mãe de Eduardo, 19 anos, o neto por adoção, e Tulio, casado, pai de Maria, 19 anos, e Tomas, 17 anos. Genograma 4 – A família de Debora 70 Fonte: BAKMAN, 2019. Há algum tempo, pensava nesta família para participar da pesquisa, mas fui relembrada por uma amiga. Estranhamente não sei desde quando, e como, sabia que era um filho por adoção. Fui colega da mãe e do tio da criança no movimento juvenil, frequentei a casa deles como os demais do grupo, na época, mas nunca fomos próximos. A casa era um point, talvez por ser cobertura ou pela sua localização. Nos últimos trinta e poucos anos, nos vimos poucas vezes. Sabia bem pouco do rumo de suas vidas, embora tenhamos ainda amigos em comum. Na ausência de uma entrevista imediata, resolvi escrever para a filha. Expliquei por mensagem, via Facebook, sobre minha pesquisa e se haveria algum avô ou avó para ser entrevistado. Ela me respondeu que somente sua mãe, mas não sabia se toparia, que adora o neto, mas que desde que ficou viúva, cerca de dois anos atrás, a memória tem flutuado bastante. [Há também uma sogra viva, mas que não mora no Brasil]. Logo me escreve dizendo que a mãe concordou e me passa seus telefones. Ligo alguns dias depois. Ela não parece lembrar muito da ideia, mas aceita. Pede para eu ligar na outra semana para agendar um horário. Ligo e sua reação é a mesma: topa, mas não parece muito convicta. Será que não lembra? Não quer? Está ciente de sua atual falha de memória? Marcamos e digo que vou ligar antes para confirmar, como tenho feito com todos. Na manhã do dia agendado, a filha me escreve uma mensagem dizendo que ela gostaria de remarcar para mais tarde pois surgiu um aniversario, mas eu não posso. Ofereço outras opções. A filha me telefona, ao invés de responder por mensagem, e aproveita para saber mais da pesquisa e diz que conhece mais duas famílias. [Tento, tempos depois, por mensagem, que me passe estes contatos, mas ela não me responde]. Remarcamos. 71 No dia, pretendo confirmar, mas antes disso, a filha me escreve que está ok. Ao chegar em sua casa, a empregada se espanta e parece não saber da minha vinda. Mas ela vem à sala, toda arrumada e pronta. A casa é a mesma da minha juventude. As minhas lembranças vão se materializando, aos poucos. É repleta de enfeites, quadros, tapetes por todos os cantos. Ela é bonita, magra, vaidosa. Faz ginástica todos os dias e frequenta aulas sobre música clássica. Adora Artes. Realmente tem lapsos na memória: não lembra nomes, tem dúvida sobre outros, repete informações, se esquece de onde conheço seus filhos, me perguntando repetidas vezes. Quando vamos ver as fotos, no escritório, já no final da conversa, solicitado por mim, passo por um painel enorme que me recordo também ao olhar, bem anos 70: são os três filhos pequenos, que já estava ali quando frequentava a casa. Lindo! Percebo todos os cômodos arrumados, limpos, e ela me mostra as fotos, com certa ajuda da empregada pois tem dúvidas de quem são e de seus nomes. A empregada conhece todo mundo! Foi uma entrevista concisa, ela não falava com muitos detalhes sobre nada. Poderia ser estilo, mas minha sensação é que era devido à idade. Fui ficando aflita. Não conseguia fazer render a conversa, voltei em algumas perguntas, tentei outras. Acabou durando uma hora e meia, mas a minha sensação ao sair é de que detenho menos conteúdo que as demais. Tomei um delicioso café e comi um Kamish Broit57 com goiabada, que não gosto, para ser educada, novamente, parecido com um que minha avó fazia. Acho que preciso escrever sobre culinária e entrevistas. E também sobre o Facebook como fácil caminho de acesso aos entrevistados. (Rio de Janeiro, 13 jun. 2017). Gizele: Debora, me conta um pouquinho sobre a sua vida. O que você quiser. (Ela ri). Debora: Eu tive um marido maravilhoso. Faleceu já tem, faleceu em fevereiro do ano passado, tem um ano e alguns meses. Era um senhor companheiro mesmo. Gizele: Ele estava com quantos anos? Debora: Eu agora 70, 79. Gizele: Você tem quantos? Debora: Eu tenho 77. Gizele: 77. Debora: Eu tinha 76. O que que você quer saber mais? (Rindo). Gizele: Vocês foram casados por quanto tempo? Debora: 56 anos. Fora namoro, noivado, a vida. (Rindo). Gizele: Você era bem jovem quando vocês se conheceram! Debora: Éramos bem jovens, bem jovens. Por este primeiro diálogo já é possível perceber a diferença de narrativa para com os primeiros entrevistados: não pelo ponto escolhido para começar, porque acho significativo para o seu momento de viuvez; mas pelas repostas curtas, indecisas, com poucos detalhes; e, de alguma forma contrastante com seu sorriso, disposição e leveza de estar ali comigo. Gizele: Você trabalhou? Você falou para mim que estudou pedagogia. 57 Biscoito da culinária judia, recheado originalmente com geleia e frutas da época, com variações: nozes, damasco, banana, etc. 72 Debora: Trabalhei muito. Eu estudei pedagogia, queria fazer psicologia na época. Não tinha. Fazia parte da pedagogia, aí fui trabalhar. Meu marido tinha uma loja, aliás desde os pais dele, umas lojas enormes, que até hoje (..). Gizele: Qual era o nome da loja? Debora: Peraí, você agora me pegou. Rehsa. Gizele: Rehsa, nome de mulher! Debora: Me fugiu tudo. É. Acho que era o nome de... Gizele: Uma avó? Debora: É, a mãe do meu sogro. Rehsa, e eu trabalhei lá muitos anos. Eu gostava. Gizele: De ficar no balcão mesmo? Debora: Ah, ficava, atendia, conversava. Para mim foi ótimo. Gizele: A sua vida toda foi trabalho no comércio? Debora: Foi. Debora fala do passado e do presente, do marido, dos filhos e, especialmente, dos netos. Me faz perguntas todo o tempo, tentando manter o fluxo da conversa. Por vezes, se mostra aflita com os hiatos de sua memória, tentando preencher suas possíveis dúvidas a respeito de algumas informações ao pedir ajuda à Rosa. Gizele: E como é sua relação com seus netos? Com seus cinco netos? Debora: Acho que muito bem, graças a deus, muito bem. Muito bem. Gizele: Qual deles é mais apegado a você? Debora: É mais o Eduardo. (Ri) Gizele: O Eduardo. Então fala mais um pouquinho do Eduardo. O Eduardo... Debora: Porque ele está mais em contato comigo. (...). Então é mais fácil, as vezes o Eduardo vem para cá, ele tem um curso, às vezes almoça, vai para faculdade. [Ele é o neto que mora mais longe, mas estuda perto de sua casa]. (...). Gizele: Então o mais apegado é o Eduardo? Debora: Eu me dou muito bem com todos eles, mas quem está mais aqui é. Gizele: Presente. Por que a Sandra também é mais presente? Debora: É. Gizele: Filha menina, às vezes, é mais presente, ne? (Eu rio) Debora: Eu acho que é, é isso mesmo. (DEBORA, jun. 2017). O neto por adoção é o mais próximo, como Sarah e Rebeca, porém, penso que isto diz respeito a relação de proximidade que Debora tem com sua filha, que parece ser a mais presente e preocupada com a mãe. Nas famíliasmultigeracionais, segundo Peixoto (2000, p.105): “A proximidade afetiva entre avós e netos está ligada à natureza da relação que os primeiros mantêm com seus filhos e respectivos cônjuges.”. Além dos cuidados serem, ainda, mais circunscritos na esfera feminina, como vimos com as avós (DESSEN; BRAZ, 2000; ROBIN, 2005, DIAS; COSTA; RANGEL, 2005; SCHNEIDER; BOUYER, 2005). Debora parece lembrar somente do essencial da vida e do cotidiano. No caso do neto por adoção, no entanto, salienta o prazer e a alegria de sua chegada, e narra pormenores de como souberam da criança, quem ajudou a filha, porém não tem 73 informações a respeito de sua família biológica. Certas lembranças valorizadas, algumas memórias esquecidas, quem sabe? Gizele: E o Eduardo veio com que idade? Eu não sei nada da história do Eduardo. Debora: Ele? Com meses. Gizele: Com meses. Você sabia antes que ela ia adotar? (...). Debora: Eu achei que devia mesmo. Gizele: Aí o Eduardo veio bebezinho? Debora: Bebezinho. Ela buscou ele. Gizele: Você lembra como foi, Debora? Debora: Eu sei que foi uma coisa maravilhosa. Eu fui esperar ela no aeroporto, quando ela veio. (...). Gizele: E você lembra desse momento de ele estar chegando? Debora: Muito, muito. (...). Gizele: A família toda aceitou bem, Debora? Debora: Muito bem. Muito bem. Gizele: (...). Se lembra se parte da família como um todo foi fácil aceitar? Debora: Muito bem. Muito bem. (DEBORA, jun. 2017). A história que mais preencheu nossa conversa foi sobre uma sobrinha que se tornou religiosa, convertida para outra religião. Algo que lembro foi marcante na época58. Eu a conheci, no mesmo movimento juvenil, e sabia sobre a situação, mas não lembrava que eram parentes. Há muitas fotos dela espalhadas pela casa, e é uma das poucas, que me faz questão de mostrar. Debora: É difícil, difícil de acreditar. Ela ia nos feriados, de Rosh Hashana, de Iom Kipur. (...). Ela ia, ficava do lado do Jacob, o tempo todinho, queria saber tudo. Debora: E ela estava no judaísmo, não é dizer que ela não gostasse, que ela não fazia parte. Não, ela fazia questão, nos feriados, no Rosh Hashana, no Iom Kipur, ficava do lado do Jacob, fazia questão. Debora: Você sabe que nós fomos lá, ne? (...) Quando ela resolveu realmente. Ai a gente foi lá para ver se alguém tinha feito a cabeça dela, ne? (...) Fui com meu marido, com Jacob. Ele quis muito ver, né, ver de perto. E a gente sentiu que ela realmente gostava, né. (DEBORA, jun. 2017). Ao terminar percebo o quanto fui também entrevistada. Perguntas bem judias: nomes, família, religião, escola e a procura por pessoas em comum. Algo parecido tinha acontecido com Rebeca, mas aqui se tornou mais premente em torno do vazio da conversa, ao meu ver. De qualquer forma, fala bastante sobre este viver em comunidade, onde a busca por conexões se torna quase um hábito, uma brincadeira como a de montar um pequeno quebra-cabeças. E também a preocupação, como outras, se foi bom para mim, se valeu a pena. E a oferta para voltar, como os demais. 2.5 Miriam 58 É comum judeus que se assimilam, isto é, abandonam a tradição/religião, ou deixam de frequentar ambientes comunitários ou religiosos, tornam-se laicos, mas se converter e abraçar outra religião, sem dúvida, é fato raro e impactante. 74 Miriam tem 66 anos, viúva, trabalha, e mora na casa de sua filha, já falecida, aos 41 anos, Anat, um ano e meio antes da realização desta entrevista. Sua filha adotou sozinha duas crianças sete anos atrás: Noé, hoje com 13 anos, e Noah59, hoje com 12 anos. Ela tem outro filho, Rodrigo, casado e pai de Carol, de 2 anos. Genograma 5 – A família de Miriam Fonte: BAKMAN, 2019. Conheci a história dessa família porque meu filho deu aulas particulares de matemática para as crianças, indicado pela escola onde estudou. Achei lindo saber que se tratava de uma mãe que tinha adotado sozinha dois irmãos. Fui acompanhando, através de meu filho, as dificuldades das crianças de se organizar, estudar, concentrar e a saúde frágil da mãe, portadora de uma grave doença. Já tinha iniciado o Doutorado quando me dei conta que a avó era uma candidata a ser entrevistada. Demorou a cair a ficha, talvez, porque pensava mais na mãe e nos filhos, ou, talvez fosse minha memória esquecida! Demorei a tentar entrevistá-la pois sabia que a situação estava delicada, devido às repetidas internações da filha. Fiz um primeiro contato e ela disse que estava enrolada, justamente por este motivo. Tempos depois tentei novamente, ela concordou, mas me pediu para esperar ainda alguns dias, 59 Como comentei no início do capítulo, apesar de todos os nomes serem fictícios, tentei manter alguns traços aonde isto parecia ter um sentido especial, como aqui, onde os nomes de batismo das crianças têm origem hebraica, coincidentemente, e são como um par, o feminino e o masculino, como seria Marcelo e Marcela, por exemplo. 75 devido ao cansaço, e senti que não estava disposta. Não me lembro bem quando foram essas tentativas. Adiei bastante porque a saúde da filha piorou, até seu falecimento. Acompanhei, através do sofrimento do meu próprio filho, essa etapa dura e difícil para a família. Me doía pensar que as crianças estavam perdendo uma segunda mãe. Conheci a avó pessoalmente numa das rezas de luto em que acompanhei minha filha, que também os conhecia. As crianças, só vi, rapidamente, numa festa de Barmitzva, alguns meses depois. Me apresentei. Não me deram muita “bola”. Foi em maio de 2016. No final do ano, encontrei a avó, numa vernissage, e ela falou comigo sobre as crianças e da ajuda que meu filho lhes deu na época. Decidi convidá-los para uma noite festiva de Chanuka, porque achei que seria importante para todos estar de novo juntos, num momento descontraído, íntimo e festivo. Somente em julho de 2017 tomei coragem para refazer o convite. A entrevista foi na casa da filha onde ela, agora, vive com as crianças: um apartamento pequeno de três quartos, muito bem decorado. Assim que cheguei me entregou o convite de Barmtizva do neto e falou da dificuldade em organizar aquela festa, sonho da filha. Parecia nervosa. Sentamos no sofá. Explico da entrevista, do TCLE, e, antes de começar a gravar, ela me pergunta sobre onde estará escrito. E acrescenta que sua situação é única. Diz que se falar algo que possa magoar o neto, me pedirá para retirar porque ele não gosta de mencionar o passado, dizer que é adotado e falar da mãe falecida, ou mesmo tocar em seu nome. (A neta, por sua vez, fala do assunto abertamente e gosta de mexer nas coisas que trouxe do abrigo). Ela se emociona em muitas vezes, eu também. Me oferece um café e se preocupa com a hora porque tem dentista. Apesar de morar no Brasil desde os 17 anos, ainda tem um certo sotaque e um estilo de estrangeira. Erra algumas concordâncias e lhe faltam algumas palavras. Por não ser sua língua de origem ou pela emoção do relato? Não sei. Após a entrevista me envia uma mensagem com Save the date e pedindo desculpas pois não estava bem. Diz que foi difícil reviver, mas se eu precisar, estará às ordens. É o caso mais difícil de descrever sem identificar, tipo missão impossível. Me preocupo60. Estava tão aflita em ouvir este difícil relato que, muitas coisas que pensei não ter perguntado, só percebi na transcrição, de que sim conversamos. Cerca de três horas depois, comecei a ter uma enxaqueca que durou cerca de quinze horas. Meu coração ainda aperta ao pensar neles, no sofrimento e nas perdas! (Rio de Janeiro, 19 jul. 2017). Gizele: Me conta da sua vida primeiro assim. Miriam: Aí, sério? (Ela suspira e parece desabar no sofá onde já está sentada.) Gizele: Se quiser. Quantos anos você está? Miriam: Agora 66. Eu vim (...) com 17 porque a minha família resolveu vir para fazer turismo. E acabamosficando porque a minha avó adoeceu e minha mãe não quis deixar ela. Eu sempre quis voltar (..). Tinha uma raiva enorme que minha mãe veio para cá e ficou. (MIRIAM, jul. 2017). 60 A situação de Miriam é do tipo ”pegar ou largar”, quero dizer, eu não teria como inclui-la na pesquisa se retirasse tudo que a identifica. Apesar da preocupação, considerei que mantê-la seria mais importante para a pesquisa e para honrar estas vidas envolvidas. 76 Como nessa passagem pela qual inicia seu relato, a vida de Miriam é marcada por episódios de doença e morte: começa pela da sua avó, depois de seu marido e, então, de sua filha. Apesar disto, ela se mostra uma mulher forte, que enfrenta os percalços, que se dedica e ama seu trabalho. Miriam foi casada por 10 anos e ficou viúva quando os dois filhos ainda eram pequenos. Antes disso, enfrentou uma doença grave do marido que o impossibilitava de trabalhar. Agora, após a morte da filha, novamente, encontra-se sozinha com duas crianças para cuidar. Pelo seu relato, percebo que a filha também foi uma mulher corajosa, batalhadora, dedicada ao trabalho, aos amigos e aos filhos. Gizele: Mas ele [o marido] faleceu a Anat tinha quantos anos? Miriam: Oito. (Fala bem baixo). Gizele: Oito anos? E o Rodrigo, Rodrigo, ne, seu filho, quantos anos? Miriam: Três. (Fala bem baixo) Gizele: Caramba. Miriam: Três mais cinco, oito. Gizele: Duas crianças pequenas. Miriam: Meu destino, minha filha. Estou pegando agora um pouquinho maiores (Riso sarcástico). É isso. Gizele: E aí ela começou com a doença? Logo depois disso? Miriam: Mas casou, foi super feliz no casamento, sem dúvida nenhuma, até que ela resolveu adotar. Gizele: Adotar. Miriam: Adotar, porque ela teve vários abortos, vários abortos. Mas ele estava com ela a trajetória toda, dois anos de advogado, tudo que precisou. Até que chegou a carta de adoção. Chegou a carta de adoção, ele falou para ela que não era isso que ele queria. “Desculpe, vou te deixar”. E deixou. Gizele: Quantos anos ela ficou casada? Miriam: Dez justo. Gizele: Dez anos! Miriam: Dez ou 12. Dez, 12 anos. Eram super apaixonados. Tinham uma vida muito boa. Ele era maravilhoso. Não posso reclamar. Para ela. Ela também para ele. Eles eram um casal muito legal. Bateu isso nele. Ele falou: “quero ter filhos, o problema não é comigo. Eu vou querer ter filhos”. Tá bom, então. Gizele: Aí ela decidiu adotar sozinha? Miriam: Aí ela mudou toda a papelada. Contratou todos os advogados. Quando eu achei que ela não ia, ela foi atrás. (MIRIAM, jul. 2017). Miriam desde o início, teve uma participação ativa na recepção das crianças, possivelmente relacionado ao fato de a filha tê-los adotado sozinha: está a par de suas histórias anteriores à adoção, algo que se torna presente, várias vezes, ao longo da nossa conversa. Gizele: Vamos voltar um pouquinho assim, como foi para você, você lembra, quando ela disse quero adotar, vou adotar, não consigo engravidar, como você ouviu isso? Miriam: Eu levei um tempo para me convencer. Eu estava com tanto medo que ela piorasse pela doença porque eu sabia, eu fui com ela para milhões de médicos aqui, fora do país, tudo. E todos falaram da gravidade que ela era engravidar. E ela insistia em engravidar. Então, quando vi que para ela que era perigo de vida, então entre perigo de vida e adotar, adota. Não me opus pelo fato que são pessoas que não conheço, ou alguma coisa assim, porque 77 é judeu, não judeus, nada disso importou. Me importou o peso que seria para ela, que ela fisicamente não ia aguentar, que seria metade do meu trabalho, digamos assim. Mas também isso não me preocupou, eu tenho a força, eu sou uma pessoa muito disposta a ajudar os outros, sempre fui deste tipo (...). Aí ajudei, me apaixonei logo pelas crianças, esse foi o lado bom. Muito, muito. Miriam: Preparamos tudo para uma criança. Semana seguinte, ela diz: “descobri que ele tem irmã. Eu vou trazer a irmã”. “Tá bom, Anat, não quero, você não vai dar conta, impossível”. Mas eu não tinha entendido que era irmã, irmã, de coisa. Achei que era outro porque ela era tão generosa que ela trabalhava em todos os abrigos que você pode imaginar, e trazia pessoas para Kabalat Shabat, desde que perdeu o pai dela, ela já ia trabalhar no Lar da Criança61, conheceu o marido trabalhando lá (...). Então ela estava engajada nisso. “Tá bom, então eu vou voltar com dois”. “Anat, não vai dar conta”. Aí ela me comprou com a frase: “você consegue imaginar a minha vida sem o Rodrigo? Ou a vida do Rodrigo sem eu?” “Não, você tem toda razão: traz que eu vou te ajudar”. Gizele: E aí o Noé tinha 4? Miriam: E a Noah, 3. Gizele: Duas crianças pequenas! Miriam: Pequenas, falando um português que eu não entendia, porque o sotaque deles era uma coisa. O fato de Noé e Noah serem irmãos de sangue, foi suficiente para que Miriam e Anat tivessem certeza da importância de os manterem juntos, apontando uma valorização deste tipo de vínculo. Miriam tem irmãos, mas nada comentou sobre eles. Em outra passagem, ela se refere à avó biológica dos netos como uma avó verdadeira, apontando a força que os laços de sangue têm na sociedade, e mesmo em famílias por adoção. Miriam: Porque olha só, a avó mesmo deles, que eu saiba, quando a Anat me ligou, ela disse: “olha só, se prepara que ele vai te odiar”. Ai eu: “Por quê?” (...). Porque ele tem muita tristeza com uma avó. A avó disse que ia ficar com ele, toda semana ele estava com maletinha pronta, na porta do abrigo, esperando que a avó venha e a avó não vinha. Aí ele ficava mais uma semana. Aí ela dizia que vinha no domingo seguinte, ele estava com a maletinha na porta, e não vinha. Meses assim. Miriam: Mais uma perda e eu não sou o que eles queriam. É a tal história eu fui imposta pela vida. A Anat foi uma escolha deles. Ele se aproximou dela e disse. Ele usava óculos escuros, que ele dizia que queria ser invisível para ninguém ver. E ela chegou perto dele e disse: “Vamos ver seus olhos? Vamos”. Começou a conversar com ele. Ele amou ela e ela amou ele. Foi uma coisa muito rápida. Entendeu? Ele estava louco para ter mãe, ele gostou logo muito dela. (MIRIAM, jul. 2017). Miriam, Noé e Noah encontram-se num novo momento em suas vidas, precisando lidar com a morte e com a continuidade. A aproximação do Barmitzva aviva 61 Lar da Criança Israelita é uma instituição judaica de assistência social a famílias que não tem condições financeiras, ou emocionais, de cuidar de seus filhos, provendo bolsas de estudos, alimentação, orientação medica e psicológica. Em outros tempos, funcionou como abrigo e hoje, além dos auxílios mencionados, tem somente, uma pequena creche de turno diário para crianças de idade pré-escolar. 78 a ausência da mãe, a importância da família e dos amigos, a afirmação da escolha pela adoção e o lugar do judaísmo na tessitura destes laços. Criar os filhos dela, realizar seus sonhos e passar ainda por muitas outras etapas são as marcas desta família, que foge ao padrão netos-avó previsto ou presente na pesquisa. 2.6 Malka. Malka tem 88 anos, é viúva e aposentada. Mora com seu filho, Uri, 58 anos. Ele tem cinco filhos de dois casamentos: Iuval, 33 anos, Daniel, 31 anos, Michel, 29 anos, do primeiro casamento; e Davi, 14 anos, e Julia, 11 anos, do segundo. O outro filho dela chama-se Ariel, 60 anos, é casado com Dalia, e tem um filho, Alan, de 23 anos, que é o neto por adoção. Genograma 6 – A família de Malka Fonte: BAKMAN, 2019. Quando escolhi o tema da pesquisa, tinha em mente algumas famílias conhecidas. Aos poucos, fui percebendo de que conhecia mais famílias do que as pensadas anteriormente. Num encontro com minha orientadora, discutindo minha preocupação com o sigilo na comunidade judaica, conto uma situação de consultório, antiga, onde a famílianão quis que eu atendesse o filho porque ele estudava na mesma escola que os meus, tinham idade aproximada, embora nem nos conhecêssemos até aquele momento. Na época, por conta deste desconforto deles, fiz uma indicação e a família sentiu-se bem atendida. Ficamos com um bom contato e sempre nos cumprimentamos de forma afetuosa em festas na sinagoga que, atualmente, todos frequentamos. 79 Curiosamente, na mesma semana, encontro a tal terapeuta para quem os indiquei, quase 20 anos atrás, e me dou conta que é uma família com adoção! Por que não me lembrei deles antes? Nem quando falava com a Anna! Decido então sair em busca da mãe, primeiro pelo Facebook, sem reposta e, posteriormente, pelo WhatsApp, ao conseguir seu contato telefone com uma amiga em comum. Ela prontamente me responde e marcamos de falar ao telefone. Me atualiza da vida de seu filho, que como os meus, já é universitário. (Não comento que é na mesma universidade, e num prédio próximo, influenciada pela situação do passado). Acha interessante minha pesquisa e diz que sua sogra (sua mãe vive em outro país) certamente irá gostar de conversar comigo sobre o neto. Fico um tanto frustrada porque passam cerca de cinco dias até que ela me escreve dizendo que a sogra aceitou e me dá seu contato. Ela, por sua vez, é muito simpática e solícita ao telefone, quer que eu escolha um dia e hora de minha preferência já “que não se encontra mais na ativa” (sic), como insistiu por duas vezes em dizer. No dia marcado, ligo e confirma. Já tinha me dado o endereço no primeiro telefonema, mas fez questão de me explicar a localização da rua. Chego numa rua bem tranquila, apesar de uma vizinhança bem movimentada. Prédio antigo, daqueles que a portaria fica ao fundo e há um jardim coberto na frente. O porteiro toca o interfone e consigo ouvir o toque, apesar de ser no quarto andar. Ninguém atende. Insiste. Estranho. Ele diz que não deve ter ninguém em casa. Digo que falei com ela há pouco e que está me esperando. Me deixa subir. Toco a campainha e escuto um homem atendendo ao interfone. O filho abre a porta abotoando a blusa. Parece saído do banho, e não muito à vontade. Diz que ela já vem e me convida para sentar na sala. Passo pela porta de uma pequena cozinha e consigo ver uma bandeja preparada para um café. Na sala, a tv está ligada com som alto e vejo o local onde ela deveria estar anteriormente sentada, pela disposição dos controles e de remédios. Parece que já estava à minha espera. Vem de dento uma senhora baixinha, com uma roupa simples e um sorriso simpático, bochechas avermelhadas, pele clara e límpida. Logo me simpatizo. Pede desculpas. Diz que já estava pronta para me receber quando precisou ir lá dentro. Desliga a tv e me convida a sentar, me oferece um café e digo que aceitarei mais tarde. Pergunta se prefiro sentar na mesa ou no sofá. Escolho o sofá pois me parece mais confortável. Ela logo me pergunta o que quero saber sobre seu neto. Digo que primeiro quero explicar a pesquisa, falo do TCLE e do gravador. Tudo ok. Ligo. Ela se surpreende com minha primeira pergunta, pelo fato que quero saber de sua vida. Diz que não estava preparada para isso. Em partes mais difíceis de seu relato, se emociona, se cala, fecha os olhos e parece não conseguir respirar. Percebo que não passa bem. Me aflijo. Digo que podemos parar ou mudar de assunto, mas ela pede um tempo e prossegue. Algumas vezes. Diz que já tinha tomado um Sustrate62 antes de eu chegar, mas que vai tomar outro. Me ofereço para pegar água para ela, que recusa e chama o filho duas vezes. Ele responde que está ao telefone e ela aceita minha ajuda. Ao longo da conversa, me surpreendo com sua excelente memória: cita datas, nomes, tem um relato coeso e linear. Quando não lembra de algo, se 62 Remédio para o coração. 80 aborrece consigo mesma, se esforça e acaba por se lembrar. Em vários momentos, coloca a posição do braço sobre o espaldar do sofá, onde a minha se encontra, segura a minha mão e eu a seguro de volta, fazendo-me carinho: algo novo e inesperado. Lembro de minha avó: um tipo de afago que trocávamos - silencioso e doce, inundado de cumplicidade. Quando vamos juntas buscar mais água, numa segunda vez, percebo que além da xicara de café, na bandeja, há doces, do tipo que já me foi oferecido na casa de Debora, o tal que não gosto, que minha avó também fazia com goiabada. Acho graça. Percebo como tudo é limpo e organizado, de uma forma incrível para uma senhora idosa, que só tem uma faxineira uma vez por semana, como me disse. A entrevista dura quase três horas. Ela demora para falar do neto por adoção, pois, antes, conta uma história de vida superinteressante, que me fascina. No final da entrevista aceito, finalmente, o café e como um doce, por delicadeza. Antes, vejo as fotos dos porta-retratos da sala e em seu quarto porque ela queria achar uma, determinada, do momento da adoção. O quarto é do tipo franciscano. A sala tem móveis antigos, mas em bom estado, parecendo de boa qualidade. Vejo que há um pequeno banheiro fora de uso no corredor. Quando uso o banheiro principal, percebo que a toalha e o sabonete foram recém trocados, reconfirmando o quanto que ela foi cuidadosa ao se preparar para a minha visita. O filho vem ao final e parece querer conversar um pouco, me preocupo se escutou algo. Senta e ela lhe diz que falou até de seus filhos mais novos, ele dá um sorriso tímido. Mas eu já estou bem cansada para abrir um novo diálogo. Me levam à porta e ela insiste que ele me acompanhe até lá embaixo, pensando que parei na sua garagem. Digo que não vim de carro por temer não ter vaga, ela lamenta que esqueceu de me dizer que eu poderia parar no prédio. Se aborrece consigo mesma por isso, da mesma forma que se aborrecia quando não lembrava de algo, mostrando exigência consigo mesma. Me despeço em hebraico e seus olhos brilham, pela oportunidade de falar e por ver que falo bem. (O que já tinha ocorrido numa pequena passagem na entrevista). Sua pronuncia é linda e sua habilidade com a língua intacta. Aproveita para mandar um recado para minha mãe, já que em algum momento lhe conto de uma significativa similitude entre suas vidas atuais. Saio cansada, feliz e emocionada. Que bom ter de andar e voltar para casa de ônibus, assim posso digerir e despressurizar a emoção que sua vida provocou em mim. Demoro a fazer este diário: me falta coragem de retomar este encontro, que agora faço, de forma saudosa e angustiada por suas dores e preocupações. Reluto ainda mais em iniciar a transcrição. Me aperta o coração seu final de vida, suas mágoas, sua inquietude, apesar da doçura e do semblante ameno. Algumas semanas depois encontro a nora e o filho na praia. Agradeço e digo que foi muito bom. A nora me diz que ela me adorou. Comento da casa e da acolhida. “Ela te mostrou as panelas ariadas que ganhou de casamento?” Pergunta a nora. “Agora no Ano Novo, preparou toda a comida sozinha”, agrega. De novo me sinto extasiada com tamanha força, vitalidade, desejo de cuidar e estar com os seus, apesar de tudo: uma linda lição de vida. (Rio de Janeiro, 6 de setembro de 2017). Gizele: Eu quero primeiro que você me conte da sua vida. Malka: Minha vida? Gizele: É da sua vida. Malka: Ih, minha filha, em relação? Desde que época? 81 Gizele: O que a senhora quiser, para a gente se conhecer um pouco, eu saber da senhora, da sua família, porque a minha pesquisa é sobre família, então conversar um pouquinho, saber um pouquinho. Malka: Tá, vou tentar reduzir um pouquinho, porque na minha época, a gente queria que a pessoa entendesse, ficava se explicando. Gizele: Mas eu posso ficar bastante tempo com a senhora. Malka: Ficava se explicando (rindo) até eu desatar o nó. Eu, graças a deus, me criei numa família de imigrantes. Eu mesma fui trazida da România, sabe? Gizele: Da România! Malka: Mas fui registradacomo já nascida aqui, porque eu tinha já um aninho. Aí aconselharam meus pais dizer que eu nasci aqui. Malka: Eu pensei que era só para falar do Alan. (Após uma pausa de emoção). Gizele: Mas a gente pode pular. (Me falava dos problemas decorrente da doença e morte do marido) Malka: Mas eu não ia deixar de aceitar. Gizele: Mas, olha só, a gente pode pular. Pode falar dos filhos, dos netos. Malka: Eu vou te dizer uma coisa: é vida! Malka: Eu estou te dizendo a verdade, eu achei que eu posso falar tudo aberto mesmo. Gizele: Mas pode mesmo. A gente corta e deixa só as partes da pesquisa. Respira. A senhora ficou cansada? Malka: Não é cansada. Gizele: Emoção? Malka: Tudo junto. E olha que eu tomei o remédio antes de tu chegar. Gizele: Mas a senhora está bem? Malka: Daqui a pouco eu tomo outro. Gizele: Mas a senhora está bem? Malka: É que eu revivo tudo, sabe? (MALKA, set. 2017). A emoção, as saudades, as dificuldades e as dores foram o cerne de nossa conversa. Ela tinha muitas histórias para contar: do período que morou em outra cidade, do tempo que morou fora do país, da vida, doença e morte do marido, da decepção com a família dele, das alegrias com sua própria família, da trajetória dos filhos e das preocupações com os netos. Tudo narrado em detalhes, num tom comovido e sincero. Seu relato lembra sua casa: límpido, organizado, iluminado e com sinais de vida, passada e aberta ao presente. Malka: Eu sinto demais que eu tenho muito pouco contato com o Alan. Eu só tive um contato muito intimo com ele quando eu morava [no mesmo bairro], até os dois anos. Gizele: Pequenininho? Malka: Até os dois aninhos, até mais. Eu estranho como ele se lembra. Porque eu sou uma avó muito presente, fui uma avó muito presente, com todos eles. Gizele: Mas ele vem aqui o Alan? Malka: Muito pouco, quase nada. Mas não tem nada a ver com adoção. Malka relata detalhadamente a vida de cada neto, seus percursos, suas lutas e, demonstra especial preocupação com um que tem dificuldades emocionais. Os três netos mais velhos, viveram junto com os pais, em sua casa, por muitos anos, o que 82 justifica, em parte, seu maior apego. Do neto por adoção, Alan, fala pouco: além do menor contato, parece se preocupar menos. Fala com nostalgia dos primeiros anos de vida dele, quando moravam perto e ela ajudava em seus cuidados. E também da alegria de sua chegada e da realização do filho e da nora em tornarem-se pais. Malka: (...). Bom, Deus é grande e existe, sabe? Porque foi uma alegria geral, para a família toda, eles se realizarem como pai e mãe, e desde a notícia de que esse bebê existia para a nossa família foi uma alegria geral. (...). (MALKA, set. 2017). Malka aponta para a tensão com os laços de sangue, numa passagem que não diz respeito ao Alan, mas sim aos seus dois netos menores, com os quais não tem convívio. É uma história para ela de dor e abuso, que me conta com sofrimento, como em outras passagens difíceis, pelo intuito de ser franca a respeito de sua vida e de sua família. Mas, talvez, também, para aproveitar aquele momento de confiança e cumplicidade para conversar sobre suas aflições. Malka: (...). Todos os três são a minha paixão, todos os quatro. Gizele: Quatro meninos? Malka: Quatro meninos. (Pausa). Eu não considero netos (...). [me conta sobre os dois netos mais jovens]. Foi um comportamento muito, dela, um comportamento muito abusivo, muito invasivo (...). Eu só fiquei sabendo disso quando as crianças, quando o menino já tinha três anos, que ele existiu. Ele já tinha três anos (...). Gizele: E a senhora não tem nenhum convívio com eles? Malka: Eu não tive, eu não tenho nenhum convívio. Mas eu já recebi eles aqui em casa (...). Gizele: Então são duas crianças que a senhora não considera neto? Malka: Não. Eu vou te explicar. Não que eu não considero neto. Eu que ajudo a sustentar. (...). É da minha aposentadoria (...), mas esse capitulo da minha vida é muito obscuro, sabe? Porque eu não estou acostumada a me comportar assim. Eu falei para minha família depois que eu descobri: eu não sei administrar os meus netos que eu convivi desde a barriga da mãe com esses dois, eu não posso administrar isso porque eles não aceitam. E como é que eu vou? Eu não sei. (MALKA, set. 2017). Não vou me estender nesta situação, porque não diz respeito ao Alan, mas há no diálogo acima uma questão interessante quando ela fala do diferencial de conhecer os outros netos desde a barriga da mãe. Isso certamente não aconteceu com o Alan, mas no caso dele não parece criar uma barreira, possivelmente porque há (boa) convivência com o neto, o filho e a nora. E também, a chegada do Alan é acompanhada por ela, desde que a adoção se efetiva, quando ajudou, mesmo à distância na escolha de seu nome, que me narra com uma doce pontada de orgulho. 83 Passados cerca de 10 meses, num Shabat em minha sinagoga, na hora da reza para os enlutados63, uma espécie de fala chorosa chama a atenção de todos no recinto. Ao olhar, vejo o filho que morava com ela. Meu coração dispara. Uma fila à frente estão o outro filho e a nora. Fico aflita e emocionada. Assim que termina o serviço, vou lhes procurar. Preciso dizer o quando gostei de tê-la conhecido e escutado suas histórias. Converso um pouco com eles, nora e marido, mas minha angustia permanece ao pensar no destino de seu filho mais velho e dos netos que ajudava a sustentar, seja física ou emocionalmente. Eu não estava preparada para saber que mais um de meus queridos entrevistados não poderão ser revisitados, nem para um simples café. Lamento não tê-la visto mais uma vez para um forte e último afago. (Rio de janeiro, junho de 2018) 2.7 Guita Guita tem 75 anos, é viúva e aposentada. Foi casada com Eliezer por quase 50 anos, falecido sete anos atrás, com quem teve três filhas. As mais velhas são gêmeas e estão com 52 anos: Yasmim e Beatriz. Ambas estão casadas e tem filhos. Yasmim é mãe de Henry, 25 anos; Beatriz é mãe de Gabriel, 19 anos, o neto por adoção, que já está casado e tem um filho chamado Saul, de um ano. A terceira filha, Elisa, tem 51 anos, é casada e mãe de Lys, 21 anos, também casada, e de Naomi, 18 anos. Genograma 7 – A família de Guita 63 Chama-se Kadish a reza de lembrança de entes queridos falecidos, que é entoada em todos os serviços religiosos realizados na sinagoga. É uma obrigação religiosa diária para aqueles que cumprem o período de luto, mas também são proferidas pelos que marcam alguma data relativa ao falecimento de algum familiar. 84 Fonte: BAKMAN, 2019. Numa certa manhã, decido fazer um tour de force e enviar mensagens para conseguir novas famílias. Foram cerca de 30 mensagens. Obtive como respostas: algumas sugestões de pessoas já entrevistadas, muitos “não conheço” e algumas novas indicações. Assim uma amiga sugere uma avó, fala com sua filha, tia da criança adotada e com a avó, e me passa o seu contato. Diz que é amiga da minha mãe, mas pelo nome não sei de quem se trata. Telefono e marco. No dia, ligo para confirmar e ela me avisa que tem hora para terminar. Penso em transferir, mas acabo mantendo a entrevista. Chego preocupada e frustrada porque teríamos, no máximo, cerca de uma hora e meia. Ela mora em um prédio antigo, que estava em reformas. Demora a atender o interfone. Me recebe na porta, eu a conheço mesmo, mas não tenho ideia de quem seja, não sei nada sobre ela! Digo: “Ah, é você! Pelo nome não estava certa, minha mãe tem tantas amigas!” Ri e concorda. Falo mais para quebrar o gelo pois realmente não a conheço, embora seu rosto seja familiar. Sentamos no sofá. Eu derretendo do calor da rua. Ela fica em dúvida de ligar o ar condicionado porque ficaria em cima mim. Eu fico na dúvida por conta do barulho na gravação. Me oferece água. Aceito e peço para usar o banheiro antes de começarmos.Apartamento amplo, com cara de reformado, moderno para a sua idade. Durante a entrevista, me surpreendo ao perceber, aos poucos, a mistura de cores na sala, a pouca presença de enfeites, todos judaicos. Ela menciona retratos que estão na parede do corredor, que eu peço para ver ao final, algo que já incorporei ao campo. Assim que sento, me pergunta da pesquisa, se escolhi famílias judias porque são diferentes das outras. Ela acha que são. Explico da pesquisa e do sigilo. Ela diz que é melhor mesmo ficar entre nós. Primeira diferença marcante, já 85 que os demais não se preocuparam com isto, exceto por Miriam, com algo que magoasse ao neto, e que acabou diluído durante a conversa. A entrevista flui. Ela é, sem dúvida, diferente, como mesmo diz, das senhoras de sua idade: jovial de espirito e de proposta de vida. Vamos nos tornando próximas e íntimas, num estilo menos emocionado, mais pragmático, franco e aberto. Uma confiança que se constrói a cada palavra, facilitada por valores em comum: estudo, trabalho, filhos e judaísmo, ao meu ver. Na parte do neto por adoção, se abre totalmente e não tem mesura em falar das dificuldades. Gosto dela e penso como é (e foi) uma mulher avante do seu tempo, em muitos aspectos de sua vida. Me surpreendo que nada sabia sobre ela e não parece que conheço suas filhas, apesar de idades próximas à minha: estudaram em outros colégios judaicos e frequentaram outros movimentos juvenis. Confirmo este desconhecimento, ao final, ao ver as fotos. Eu, preocupada com seu horário, olho no relógio e ela me diz que poderá ficar mais uma hora, deixará a ida ao banco para o dia seguinte, mas precisa ir a fisioterapia. Talvez um sinal de que também estivesse gostando da conversa e confiando na proposta. Ocupamos todas as duas horas e meia de que ela dispunha e, como em outras entrevistas, sinto que poderíamos conversar ainda mais. Em algum momento do encontro, ela liga o ar condicionado porque, mesmo com a janela aberta, continuava muito quente. O barulho atrapalhou parte da gravação, mas foi de grande alívio. Ela foi também a única que não me ofereceu nada para comer. Achei bom, mas, confesso que estranhei. Ela se define como alguém que nunca gostou de ser “doméstica” (sic). Será por isso? Acabo saindo com fome e sede, mas ao menos não bebi, nem comi algo de que não gostava. Nova diferença! Descemos juntas e, na rua, a ajudo a entrar num taxi. Nesse pequeno percurso, ainda conversamos coisas importantes, ainda não ditas, como seus problemas de saúde. Parece não querer se despedir e diz claramente que gostaria de continuar a conversa, que o papo nos tornou próximas. Prometo um café e ela diz que adoraria. Saio bem, leve, e à noite, penso em algumas passagens que me emocionaram: a carreira brilhante de seu falecido marido, a grande ajuda na criação dos sobrinhos, a doença grave do neto mais velho e o empenho com o neto por adoção. Percebo que gostaria de me tornar uma idosa como ela: que estuda, hebraico e judaísmo, e curte as filhas e os netos, dona de sua vida e independente. (Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2018). Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, me fala, me conta primeiro um pouquinho da sua vida para a gente se conhecer. Guita: Mas qual aspecto? Familiar? Profissional? Gizele: O que você quiser, só para a gente ir se conhecendo. Guita: Profissional. Eu sou (...), trabalhei a vida toda na área de saúde, (...). E num certo momento, eu dupliquei meu trabalho, continuei no município e entrei para (...). (cita instituições ligadas a saúde e, posteriormente, um hospital da rede pública). (GUITA, jan. 2018). Desde esta primeira reposta é possível perceber o valor que Guita atribui à vida profissional, o orgulho que sente de sua profissão e trabalho, e quanto lhe faz falta esta ocupação. De forma semelhante, conta do grande cientista que seu marido foi, bem como do ótimo desempenho de suas filhas em suas trajetórias profissionais. 86 O valor do estudo é forte em sua família, e ainda está presente em sua vida nos dias de hoje. Mantém, sob sua alçada, em relação a Gabriel, o neto por adoção, o sustento financeiro dos estudos, como também o incentivo e o monitoramento. Também ajuda e valoriza os estudos de sua empregada. Guita: É, mas assim. Ele vai. Eu falei assim: eu quero acompanhar você. Só funciona assim. “Aí, não, vó”. Ele meu deu o portal dele para eu acompanhar. Gizele: Para você ver as notas direto? Guita: Eu vejo as notas direto. Gizele: Que graça! (Eu rio e ela em seguida). Guita: É. Aí que acontece. Ele não é de frequentar muito, não é nada disso. Ele passa raspando, mas passa raspando porque a média lá é seis. Ele passa com 6,2. (Eu rio e ela em seguida). Passou em tudo. Guita: Eu tenho uma empregada que está há 13 anos aqui. Ela veio com 17 e está com 30. Ela é uma moça, o meu marido era muito, muito, muito a favor da educação. Ele fazia tudo para essa menina estudar. Ela chegou aqui do Norte, ela não tinha nem ensino médio e botou e fez. E, eu, o que que eu fiz? Estou continuando a obra dele: ela está na faculdade de nutrição. (GUITA, jan. 2018). Guita faz questão de estar presente na vida de todos: filhas, genros, sobrinhos, netos e bisneto, mas, especialmente na de Gabriel. Relata que ele é mais retraído e que mantém menos contato com os demais, primos e tios, bem diferente de quando era criança; mas que frequenta o Shabat em sua casa e traz seu bisneto, Saul, cuja escola também é ela quem provê. Guita: É. Sou bisa desse menino. (...). O menino é uma graça. Uma gracinha, xodó da família (...). Adoram, da família toda porque a gente se reúne no Shabat na casa da Elisa, aqui. Gizele: Ah, é todo Shabat? Guita: Todo Shabat. Ai ela sempre traz o Saul, ne. Saul é uma gracinha. Gizele: Dentro da família com os tios, com os primos, como foi o Gabriel quando ele chegou assim? Guita: Ele não é um menino sociável assim. Ele, graças deus, ele tem vindo ao Shabat, mas graças a mamãe aqui empurrando. Porque sei lá, semana passada, por exemplo, retrasada, ele não apareceu. Aí chegou na semana, aí Beatriz pegou, mandou um WhatsApp: a gente não vai poder ir. Aí eu liguei direto para ele: “Gabriel, tua mãe disse que não vem, por que é?”. “Ah, vó, não tô sabendo não porque ela falou isso”. Falei: “você vem, ne?” (Eu rio) E veio. Entendeu? mas ele vem, mas não se comunica com o resto. Gizele: Nem agora com o filho? Guita: Ah, com o filho sim. Gizele: Não, o filho como ponte, filho ajudando ele na interação com os outros? Guita: É, um pouquinho, um pouquinho. Gizele: Mas quando ele era pequeninho, ele interagia com os outros primos? Guita: Ah, sim. Eu até me lembro quando eles eram pequenos, o clube que a gente ia (...) adorava aquela piscina. (...). E a gente ia, ia a família toda. (...) acho que se dava. Gizele: Porque a tua neta tem mais ou menos a idade dele. Guita: É, as meninas têm mais ou menos a idade dele. (...). 87 Gizele: Mas me diz uma coisa, Guita, o que significa para você ser avó? Guita: Olha, eu vou te dizer uma coisa: uma coisa assim muito, muito gratificante, muito mesmo. A gente tem a impressão que já esqueceu um pouco dos filhos: a gente gosta tanto quanto os filhos ou talvez até mais. (...). Eu acho que eles assim só me deram alegrias porque como eu trabalhava a vida toda, nunca fui daquelas avós de ficar tomando conta de neto. (...). Então, a minha relação com eles é só uma coisa prazerosa, de prazer. Sobre o neto Gabriel, ela conta das dificuldades que ele teve na escola judaica, que ela atribui a sua cor e às dificuldades dos pais de o assumirem como filho por adoção. Relata também sua passagem pela marginalização e das dificuldades emocionais enfrentadas por ele atualmente. Parte destes temas serão abordados nos próximos capítulos. Guita: Eu acho que nessa família (...), não sei por que, mas é verdade, sou a mais durona. Gizele: Qual o legado que vocêacha que deixa como avó para eles? Para seus filhos? Guita: Olha, a minha família é muito de fazer discurso. (...). O meu marido já era assim. (...). Eu puxei dele um pouco isso, sabe. Eu gosto de falar nas festas e tudo. Ai, eles me consideram muito por causa disso. Eles falam que eu sou aquela avó, alegre, com espirito jovem, que, inteligente, culta. (...). Gizele: Que é esse o legado que você está deixando da cultura? Do afeto? Guita: De, assim, de alegria, de viver cada momento, sabe. A vida passa e você tem que saber que está passando. e a gente tem que aproveitar cada momento, de que a gente tem que enquanto a gente está vivo, a gente tem que procurar conhecer coisas novas e saber o que se passa no mundo, ne. (GUITA, jan. 2018). Guita é um grande alicerce para toda a família, apesar de se cuidar e ocupar sua vida de aposentada e viúva, de forma independente. Diferente de muitas mulheres de sua geração, ela diz que não nasceu para ser mãe (ou doméstica), que teve sempre alguém para lhe ajudar com as filhas e nunca parou de trabalhar. Mas, apesar disso, ou justamente por isso, construiu e mantém uma ótima relação com todos à sua volta: é presente, cuidadora e cuidadosa, de uma forma objetiva e pragmática. Acompanha e estimula o caminho das filhas, genros, sobrinhos, netos, netas e bisneto, sem deixar de cumprir seus próprios projetos de aproveitar a vida com viagens, programas culturais e estudos. Foi ótima (re)conhece-la! 2.8 Dinah Dinah, 88 anos, viúva há 24 anos. Foi casada por 44 anos. Mãe de Vitor, Karen e Julio. Vitor é casado com Marta, e tem uma filha por adoção, Lilian, de 45 anos, que 88 é casada e tem, por sua vez, uma filha de um ano e três meses, Gabi. Karen está no terceiro casamento e teve dois filhos: Selma, de 45 anos, que é mãe de Ilan, 11 anos, e Hugo, de 40 anos, casado e pai de Ana, de três anos. Julio, 63 anos, é casado com Isabel, e pai de uma filha por adoção, Joyce, de 16 anos. Dinah tem, então quatro netos, sendo duas por adoção, e três bisnetos. Genograma 8 – A família de Dinah Fonte: BAKMAN, 2019. Fruto das 30 mensagens enviadas, recebo o contato de Dinah, que tinha duas netas por adoção e já havia aceitado participar! Entendi que minha amiga tinha alguma conexão com o pai de uma delas, mas não sabia ao certo. Duas netas e eu ainda não sabia! Foi também fácil e rápido agendar para minha alegria. No telefonema de confirmação, falamos através da empregada pois ela estava ocupada, mas pude ouvir: “mas já não está marcado?” Então tá. Prédio espremido, portaria pequena. Ela mesma abre a porta. Levo um certo susto pois era miúda, bem idosa, com um desses vestidos velhos de ficar em casa. Minha primeira sensação é de que seria uma conversa sem muito desenvolvimento devido a sua avançada idade. Ledo engano. 89 Ela já tinha separado uma cadeira da mesa de jantar para se sentar, perto do sofá, mas eu sugiro que nos duas sentemos perto da mesa, porque queria ficar próxima fisicamente, confortável e perto da janela, devido ao intenso calor. Assim, ela arrasta sozinha um grande ventilador para perto da mesa. Reparo rapidamente nas salas contiguas: de estar e de jantar. Pequenas, limpas, arrumadas. Móveis antigos e austeros. Alguns objetos de enfeites, em sua maioria pequenos. Só depois vejo que há também muitos porta- retratos. Percebo livros na mesa de centro. E o jornal aberto sobre a mesa de jantar com uns óculos de leitura em cima. Ela logo se senta e diz que está à disposição, que é só eu perguntar que vai responder. Vai logo dizendo que nem lembra que as netas são adotadas. São ótimas. Já tinha me dito algo assim ao telefone na primeira vez que nos falamos. Mas eu preciso de um tempinho para explicar da pesquisa, do gravador e do TCLE. Ela o lê todo. É a primeira a fazer isso. Estou curiosa com sua idade. Depois venho a saber que está para completar 89 anos. Durante a conversa, demonstra uma mente totalmente lúcida e rápida de pensamento, firme nas palavras e nas colocações. Pelo visto, nas atitudes também. Fui totalmente enganada pelas aparências. Assim que ligo o gravador, ela fala que não sabe quem é a pessoa que me indicou. Tento descrever, dizer como a conheço e o que sei dela. E também achar uma foto pelo celular no Facebook para lhe mostrar. Ela acha que deve ser amiga da nora e, pela conversa, parece que esse era o elo sim. Ao terminarmos, me oferece um café. Aceito só água e peço para ir ao banheiro. Vejo que tem mais dois quartos, simples. Ela mesmo serve a água para mim. Pergunto se vai descer comigo já que disse que levaria a secretária eletrônica para o conserto. “Não, vou me trocar!” E assim nos despedimos, desta vez, com menos apego, mas com pragmatismo e eficiência. Fico com a sensação de que ela deu à entrevista o tom que dá a sua vida: sem delongas, direto, sincero - foi assim ao marcar, ao introduzir o assunto da adoção, ao falar de seus posicionamentos. Ela usa celular, WhatsApp, sabe sobre Wi-Fi: um assombro de tão bem situada na vida. (Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2018.) Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, Dona Dinah, para a gente se conhecer. Dinah: A minha vida não tem nada de extraordinário, é uma vida. Eu sou formada, mas nunca exerci a profissão, sempre fui dona de casa Gizele: Formada em que? Dinah: Sou contadora. Mas nunca exerci a profissão, porque eu sempre gostei de ser dona de casa, mãe, dona de casa e, hoje, tenho três filhos, uma filha e dois filhos, todos casados, bem casados, tenho quatro netos, três bisnetos, tudo na santa paz. Gizele: Quantos anos a senhora tem? Dinah: Eu sou muito idosa. Dinah: Sou uma pessoa realizada, me sinto, não sei se eu sou, mas eu me considero realizada. Eu alcancei, eu nem almejei porque eu jamais poderia imaginar que eu teria uma velhice boa, apesar dos pesares porque a velhice tem chegado. Eu acabei de fazer fisioterapia(ri). (DINAH, fev. 2018). Dinah é simples, direta e segura. Interessante a forma centralizadora que ela se coloca na família, apesar da idade avançada e de dizer que não se intromete na vida dos filhos, somente “toma conta” (sic). No entanto, eu diria: uma grande matriarca - o filho, que trabalhava com o pai, ainda almoça todos os dias em sua casa; um neto 90 já morou com ela enquanto fazia uma nova faculdade; os netos e bisnetos, do lado da filha, frequentam muito a sua casa; um primo vem todos os finais de semana almoçar com ela; e as netas ligam com frequência - um estilo particular de manter-se conectada com cada um. A relação mais estreita com a filha, seus filhos e netos, mostra mais uma vez que, os elos se mantem mais fortes pela linhagem feminina. Com os demais, filhos, noras, netos e bisneta, mantêm uma relação mais distante fisicamente, porém sustentada por telefonemas e mensagens. Dinah: E sou mãe até hoje, até o dia de hoje. Eu digo: “se os meus filhos deixassem eu seria aquela Ídiche mame64 até hoje”. (Eu rio). Mas eles não deixam. Me chamam a atenção: “mãe, eu já sou avó, mãe”. Me põe no meu lugar, mas eu não fico. Eu tomo conta de vida de todos. (...). Eu nasci para isso. Eu nasci para ser mãe. Gizele: Para ser avó também? Dinah: Avó e bisavó. Dinah: (...). Os meus filhos são muito independentes. (...). E você sabe que eu sou uma sogra maravilhosa, não vou na casa de filho. (Eu rio). Não vou. Só quando eu sou convidada. Mas assim mesmo eu fico sentada. Eu sou visita. Eu não sou intrusa. As minhas noras, eu acho que elas me adoram, porque elas quase não me veem. (Eu rio). Só por telefone. É à minha maneira de pensar. (DINAH, fev. 2018). Dinah: Mas eu não peço nada a ninguém. Sou muito independente. (...). Enquanto eu tiver consciência (...), eu mantenho a minha casa como sempre, porque eu tenho um primo que passa comigo os sábados, passa o dia, almoça comigo. A minha casa é uma pensão. Gizele: Qual neto é mais ligado na senhora? Dinah: O meu bisneto.Gizele: O bisneto? Dinah: É. Agora. Mas a minha neta mais velha (...) Gizele: Por que? Por que ela conviveu mais com a senhora? Dinah: Eu a criei. Criei errado, mas criei. (Dou uma gargalha e ela ri em seguida) (...). Quer dizer, eu criei ela errado. Por que? Porque eu era nova também. não tinha aquela maneira de ver. Por quê? A minha filha se separou do pai dela, e era aquela pena e coitadinha. A coitadinha, matei ela. (DINAH, fev. 2018). Dinah respeita as demais posturas religiosas presentes em sua vida familiar, apesar de denotar bastante valor às tradições judaicas. Parece que a vida lhe mostrou um sentido maior em valorizar as relações do que forçar a manutenção das tradições. Ocorre em sua família, um progressivo desinteresse e participação no judaísmo, principalmente na casa dos filhos homens. Apesar de não gostar, respeita e aceita. Porém, fala com orgulho do bisneto que sabe rezar bem e de um discurso que fez na 64 Mãe judia. 91 família da nora para explicar o que era o Chanuka. Demonstra especial alegria e amor para com os bisnetos e admiração pelo filho e nora que tem atividades intelectuais. Ao comentar o luto pela morte de uma sobrinha, motivo que a levou de volta a fazer análise alguns anos atrás, percebo que conheço a família. Sua sobrinha era amiga de minha tia e seus filhos, apesar de menores, frequentavam a minha escola e eu sabia que um era filho por adoção - uma história da minha juventude, que me marcou porque era um assunto velado. Ele deve ter agora cerca de 50 anos. Gizele: Então a sua irmã também tinha um neto adotado, não é? Dinah: É, mas ninguém sabia. Gizele: Ninguém sabia. Mas era um segredo que todos sabiam, ne, dona Dinah, porque eu era garota e eu sabia. Dinah: Você sabe por que? Foi um garoto da escola. Foi uma mãe que disse para um garoto da escola e ele teve um trauma muito grande, aliás a maneira que ele soube, ele teve um trauma muito grande. Gizele: Então a sua irmã também já tinha um neto adotado! É interessante, ne? Dinah: Ele foi muito amado. Gizele: Ele era lindo! Dinah: Ele hoje já é pai de dois garotos lindos. (DINAH, fev. 2018). Este é um aspecto presente em diversos textos e que ainda não tinha surgido em minha pesquisa: a experiência de adoção, por vezes, é repetida nas famílias - sobrinho neto e duas netas por adoção. No entanto, há uma interessante diferença, não somente pelas idades das netas, mas de posicionamento de cada casal de pais frente à adoção, que será comentado no próximo capítulo. Dinah: (...) E eu vou te dizer uma coisa, eu não me lembro jamais que elas são adotadas. Não passa pela minha cabeça que elas são adotadas. Não as considero adotadas, são minhas netas e o que eu faço para uma (...) e quando eu tenho que dar Chanukaguelt65, eu dou Chanuka para todos. [netos e bisnetos]. Gizele: O que significa para a senhora ser avó? Dinah: Tudo. Eu tinha um irmão, que ele faleceu, meu irmão, ele dizia assim: a gente não devia ter filho, a gente devia ter neto. Gizele: E o que que é família para a senhora? Dinah: Olha, família, para mim, é tudo, é tudo na vida. Uma pessoa que não tem família, não tem nada. A perda de um marido, para mim, é insubstituível. Mas a família é primordial para o ser humano (...). (DINAH, fev. 2018). 2.9 Vicente e Luna 65 Dinheiro dado na festa de Chanuka às crianças, onde guelt dignifica dinheiro em ídiche. 92 Vicente, 82 anos, e Luna, 79 anos, estão casados há 57 anos. Tiveram três filhos. O mais velho, Enzo, tem 55 anos, está no segundo casamento, do qual tem dois filhos: Fabio, 23 anos, e Rodrigo, 19 anos. O segundo filho do casal, Renato, 53 anos, também está no segundo casamento, sendo os filhos, no caso, do primeiro: João Hugo, 21 anos, e Joana, 17 anos. A terceira filha, Isabel, tem 51 anos e também está no segundo casamento, com Leandro, há 12 anos, que é pai de uma filha que hoje tem 22 anos, e adotaram Hugo, que está com quatro anos. Genograma 9 – A família de Vicente e Luna Fonte: BAKMAN, 2019. Mais um fruto das 30 mensagens: uma amiga comentou, pensando que eu já teria entrevistado, porque é parente de outra mais próxima. Busco o contato e escrevo um e-mail para a mãe da criança, que lembra de mim, aceita e também me envia o e-mail de sua própria mãe. Neste interim encontro minha amiga, que diz que não sabia do teor da minha pesquisa. Estranho! Me explica seu grau de parentesco, me mostra foto da mãe e da criança em seu celular. Ao vê-la, me lembro dela, mas não dos avós. Acho que nunca cruzei com eles. O avô também está vivo. Assim, na hora do telefonema de confirmação, pergunto se ele também poderia participar. Ela diz que sim, que é o “mais entusiasmado” (sic). Fico feliz de ter mais um participante do sexo masculino. Chego a rua, prédio enorme, antigo: adoro! Ela me recebe já na porta. Aspecto abatido, gripada. Escuto a voz do avô vinda lá de dentro e algo ligado: tv ou computador. Sentamos na sala, quente. Ela parece meio fechada. Demoro a ficar à vontade. 93 Aos poucos, vamos nos aproximando. Em algum momento, ela vai ao computador lá dentro em busca de uma foto que acha linda, do primeiro encontro da filha com o neto, mas não localiza. No final, me mostra algumas fotos que estão na sala, poucas. A sala é do tipo antigo, conservador, austera. O marido vem para sala no terço final da entrevista, mas seus comentários e sua atitude demonstram uma alegria de vida, amor pelos filhos e netos que colore toda a conversa. Ambos estão bem para a idade: ela, mais castigada pelas doenças recém enfrentadas; ele, com pequenos sinais de falha da memória recente. Como sempre, uso o banheiro na chegada e na saída. Aqueles azulejos hidráulicos azuis. Lindo! No final me oferece um copo de refresco. Aceito. Estava sedenta e queria tomar um remédio. Não gosto da bebida, mas bebo. Fico apreensiva porque ao pegar o gravador, percebo que este tinha parado e não estava mais gravando. Memória cheia. Sinto raiva do meu apego pelas entrevistas já realizadas, copiadas, transcritas, mas não deletadas! Ela fica também preocupada e se oferece, caso precise refazer. Saio impressionada com a atualidade deles diante do mundo e da vida. Tocada por ela e suas palavras tão bem colocadas e expressas diante do mundo, inteligente e reflexiva; e por ele, pelo afeto que emana e preenche a vida. Em casa, vejo que perdi os 20 minutos finais de 2hs40min de entrevista. Devo ter perdido pouco conteúdo, já que muito da parte final foi uma conversa sobre nossa comunidade e sobre o mundo. Escrevo um e-mail para ela avisando que estava tudo ok. (Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2018). Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, para a gente se conhecer. Luna: Da minha vida? Gizele: O que você quiser. Luna: Estou casada há 57 anos com o meu namorado (Ri discretamente) e nós tivemos três filhos, ne? Você conhece a Isabel? A mais nova? Gizele: Conheço a Isabel. (...). Luna: E sempre moramos nesta mesma casa, desde que casamos, moramos aqui. (VICENTE e LUNA, fev. 2018). Luna e Vicente fazem um casal com algumas diferenças em relação à maioria dos de sua geração: ela sempre trabalhou, ele sempre gostou de cuidar dos filhos; ela mais pragmática, ele mais amoroso. Tiveram uma vida bem caseira e no bairro, onde há uma escola e clube judaico, que frequentaram com os filhos e onde fizeram amizades que perduram até hoje. Luna: (...) ele descia com as crianças, domingo, feriado, só que ficava na rua de trás, porque, agora tem movimento em tudo que é lado, mas era mais sossegado, mas ele ficava envergonhado porque... Gizele: Era o único pai! Luna: Envergonhado. Iam dizer: o que que é isso? Mulher folgada. (...) ou esse homem não é muito homem, ou outro tipo de coisa (...). Digo para ele e digo para os filhos: teu pai foi muito melhorpai do que vocês. Gizele: Você diz isso para os seus filhos? Luna: Digo. Ah, essa geração é muito mais egoísta, muito egoísta. E eles são ótimos, são ótimos filhos para mim, são bons pais, mas não é, não é. (...). Muito para si. 94 Luna: Eu aprendi a beijar os meus filhos porque ele, via na casa dele até demais: beijoca, beijoca, beijoca. Vicente: Até hoje é assim. Fico com eles no colo, estou o tempo todo beijando eles. Gizele: Não importa o tamanho? (Rindo) Vicente: Não. Luna: Não. Vicente: E os meus filhos também barbudos se encontram na rua ficando beijando, beijando. Não tem conversa. Os netos também Luna: Eu gostei tanto disso. Eu não tinha hábito de pegar, segurar, nada. Vicente: Abraço na rua, dou beijo. Luna: E eu me impunha isso: vou me acostumar a beijar, eles vão gostar de beijar porque eu não tinha isso, era diferente. Contrariando os estereótipos de gênero, desde cedo em sua relação com os filhos, Vicente é um pai presente, carinhoso, confidente e participativo, atitude que estende aos netos. Mantem até hoje, como diz, relações extremamente afetivas, diferente da experiência de muitos outros pais que: “Nesse sentido, as responsabilidades sociais impostas ao pai provedor também lhes trazem prejuízos no campo da subjetividade, uma vez que as ações estabelecidas são exercidas sobre rígidos parâmetros socioculturais.” (FREITAS et al, 2009, p.87). Gizele: Vamos voltar para o Hugo (Rindo). Luna: Vamos voltar (Rindo). Gizele: Mas faz parte porque o tema é família. Luna: Faz parte porque, principalmente, a família aceitou ele, assim, já é. Gizele: Todos? Luna: Todos. Gizele: Todos os primos? Os tios? Luna: Os tios todos, imagina, já é. Gizele: O Vicente? Luna: O Vicente? Você vai ver: só falta botar babador nele, com todos os netos! Com os filhos sempre foi assim: são os melhores, os mais bonitos, o máximo. (Eu rio) E com os netos também, nossa, ele sempre, imagina. (VICENTE e LUNA, fev. 2018). Segundo Luna, ao ver Hugo, pela primeira vez, aos 10 meses, a filha e o genro já sabiam que o queriam como filho – outro aspecto presente e já comentado – o encontro mítico (NIZARD, 2009; RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011). O processo de adoção tinha sido realizado somente por ela, de início, já que seu marido, pai de uma filha adulta, não tinha certeza de querer mais filhos. Com a chegada de Hugo, ele decide ser pai, se casam e passam a morar na mesma casa, após 12 anos de relacionamento. Luna: É, por causa da demora, eu acho que foi isso, tenho essa ideia. Ela mesma, estava muito chato. (...).. Ela queria, queria, queria e a gente torcendo. Até que um dia ela falou: “mãe, tem um menino e eu vou lá, vou ver o menino no abrigo”. O retrato que eu mais gosto foi do dia que ela foi ver. Deixa eu ver, eu tinha no computador. Que ela foi ver o menino, pegou ele no colo. Ele tinha 10 meses. deixa eu procurar. (O retrato que ela não acha...) (...). Olha, eu queria te mostrar é que aquele primeiro dia que ela foi e pegou 95 ele no colo, você vê, é um negócio lindo porque ela já está assim com eles dois, assim. Gizele: Ela foi conhecer ele tinha dez meses e você já sente que ali... Luna: O Leandro foi com ela, o marido dela, foi com ela. E você já vê, está assim, o retrato é lindo, muito bonitinho. (...). Até que finalmente... a essa altura o Leandro já estava apaixonado, ele estava em casa com ele. Logo, um pouco tempo depois ele se mudou. Gizele: Isso que eu ia perguntar: eles já moravam juntos? Não? Luna: Não moravam juntos, mas ele se mudou. Aí ele começou: papai, um menino de 10 meses, daqui a pouco já está falando. Gizele: Sim. Luna: Aí ele falava Lelelo, não conseguia falar Leandro (Eu rio). Ai a Isabel foi lá concretizar a adoção quando chegou ao final do processo, e ele falou também quero adotar. (Ela ri). “Aí, você é casado?”. “Não”. “Ficaria muito mais fácil se vocês forem casados”. “Ah é?” Casaram. (Nos duas rimos discretamente). Na semana retrasada, fizeram um ano de casamento. (...) All´s well that ends well. No final, deu tudo certo. Gizele: (...). Se você quiser me falar um pouquinho como é que ser avó do Hugo? Vicente: É igual dos meus outros netos. Gizele: É? Vicente: Não tem diferença nenhuma. Gizele: Como foi assim, para você, a chegada dele? Vicente: Nada, como se a Isabel estivesse morando fora e tivesse vindo com ele. Não tem menor diferença. Gizele: Vindo com ele? Você não tivesse visto porque ela estava longe assim? (Rindo discretamente porque achei a imagem tão bem comparada.) Vicente: É isso, não tem menor diferença. (VICENTE e LUNA, fev. 2018). Hugo, o neto, por adoção, o menor, é o xodó da família. Vicente, especialmente, parece usufruir de sua convivência. Percebe e aponta aspectos de semelhança entre eles, e com um de seus filhos. Tal atitude me lembra Rebeca: uma forma de explicar o grande afeto sentido por este novo neto, com quem não possui laços de sangue, mas parece ter, já, muitos laços de afinidade/afeto. Gizele: De que você brinca com ele, Vicente? Vicente: Não, ele brinca sozinho. Ele não precisa que brinque com ele. (...) o Enzo é que fazia isso, a Isabel não. Luna: Cada neto é diferente. (...) O Fabio, o mais velho, nunca pedia para brincar. Engraçado, ne? Vicente: A imaginação dele era suficiente, o Hugo também talvez seja. Ele faz as historinhas dele, faz vozinhas. (...). Parece muito com o Enzo. Luna: A gente fica descobrindo coisas que parece com um, parece com outro. Parece com ele também. Vicente: Ele parece muito comigo. É o neto que parece mais comigo. Gizele: (Rindo). De que? Temperamento? Vicente: Temperamento, é. Ele é muito observador, ele sente as coisas. Muito. Muito curioso, ele (Rindo). Vicente: Por isso que eu digo que ele parece comigo, eu estou permanentemente ligado, eu estou andando na rua, estou sabendo tudo que está acontecendo em volta. Se alguém chega perto de mim, por trás, eu estou sentindo. Luna: Mas ele é, Vicente acha que ele se parece com ele. Vicente: Parece muito, muita coisa, talvez porque o signo é igual ao meu. Ele quase que nasceu no dia do meu aniversário (...). Ele conversa muito comigo. 96 A gente conversa muito, como eu sempre conversei com os outros netos, à beça, com os meus filhos. Meus filhos sempre se abriam. Luna: Ele sempre se deu. Vicente: Contavam para mim coisas que não contavam para ela. Vicente: Olha eu só vou te dizer uma coisa: para definir a relação da gente com o Hugo. Gizele: Com o Hugo? Vicente: Ele adora vir aqui em casa. Luna: Ele pede todo feliz. Vicente: Ah, vamos para a casa da vovó? Para casa do vovô? Então não precisa dizer mais nada. Ele se sente tão bem aqui. Quer vir para cá. E ele não gosta de sair de casa, é igual a mim! (VICENTE e LUNA, fev. 2018). Luna também curte Hugo, netos e filhos, embora tenha um jeito mais retraído e venha de uma temporada de problemas de saúde. Como em outras famílias, o nome do neto adotado ganha um significado especial pois o nome escolhido para Hugo é o mesmo do pai de Luna. Gizele: O nome do menino é? Luna: Hugo. O nome do meu pai. A Isabel quis isso e eu achei tão legal. Gizele: E como foi a chegada do Hugo para você? Luna: Olha, foi uma maravilha, uma beleza. Mas de lá para cá eu não pude curtir ele muito porque na minha vida aconteceram. Ele chegou em (...) meados de agosto. Pesadinho ele. Gorduchinho. Agora ele está compridinho. (...). E eu já não conseguia mais pegar como eu pegava os outros. Foi diferente dos outros, completamente. Também muito mais velha. Gizele: Você acha que por conta da sua idade é que foi diferente? Luna: Não, a força vai ficando (...) menor. E pouco depois, quebrei um braço. Ai que não podia fazer mais nada, podia no máximo sentar no meu colo. E alguns meses depois, apareceu um câncer de útero. (...) Então não pude curtir assim a mesma coisa que eu tive com as crianças, muito, muito mais com ela, que é a filha, que é geralmente a coisa muitomais próxima do que uma nora. Se bem que não é para me gabar, mas dei mais atenção para os meus netos que as respectivas mães, por todos os motivos: uma tinha muitos outros filhos, a outra... Gizele: As respectivas avós ou mães? Luna: As respectivas avós. Elas podiam contar comigo sempre. Essas coisas de levar para ballet, natação, psicóloga. Um deles precisou de psicóloga. No olhar de Luna, tanto ela como Vicente são melhores pais e avós do que os filhos e as outras avós. Assim, parecido com Lea e Isac, há um padrão de como ser família que desejam que seja repetido, que tenha continuidade, que se torna um valor: uma forma de relacionamento afetuoso, presente e colaborativo. 2.10 Nicholas e Agatha Nicholas, 80 anos, e Agatha, 77 anos, aposentados e casados há 51 anos. São nascidos em outros países, passaram a maior parte de suas vidas morando fora, especialmente nos EUA, aonde ainda mantêm uma residência, intercalando períodos 97 aqui e lá, atualmente. Têm um casal de filhos: David, 47 anos, casado. E Isadora, 50 anos, mãe de Sofia, 13 anos, a neta por adoção. Genograma 10 – A família de Nicholas e Agatha Fonte: BAKMAN, 2019. Sem famílias para entrevistar, tento duas amigas de minha mãe, que tinha adiado porque achei que estavam “certas”. Ambas recusam por motivos de saúde. Assim, peço ajuda novamente à minha rede pessoal. Entre as pessoas que envio mensagens está uma conhecida que trabalha na Vara da Infância. Ela pergunta se pode colocar nos grupos de WhatsApp de adoção. Claro! Entram em contato duas pessoas, mas uma não tinha nada a ver, nem me lembro bem do que se tratava. A outra me diz que é judia, está habilitada, à procura de uma adoção tardia e seus pais, são vivos e judeus. Conversamos. Apesar de ainda não ter neto adotado, acho que pode ser interessante porque estão vivendo intensamente, e agora, esta possibilidade. Entro em contato. Fazem perguntas. Marcamos. Preciso desmarcar devido a um falecimento familiar. Eles vão viajar por cerca de 40 dias, que pena! Passados quase dois meses, envio para a filha um folder sobre uma semana de estudos, com o tema Judaísmo e Família, numa sinagoga, onde vou apresentar parte da pesquisa. Ela me escreve que já adotou, há uma semana, uma jovem de 13 anos. Seus pais recém chegaram e conheceram a neta. Vou ligar!! Marcamos. No dia, confirmo. Eles têm fisioterapia. Querem trocar o horário? Não. Mantenho, preocupada porque sei que o limite de hora não é bom. E eles são dois! Prédio na avenida atlântica. Subo. Ela abre a porta. Já tinha visto sua foto no WhatsApp. É uma figura diferente e bonita. Cabelos abundantes, curtos e brancos. Olhos verdes. Jovialidade no modo de vestir. 98 Ele está sentado, se levanta para me receber. Alto, magro, meio careca, parece mesmo americano. Nos sentamos, quero olhar a sala, mas não é possível porque já estão à minha espera. Três ambientes grandes, muitos objetos, janelas amplas de vista para o mar. Algo me impacta, não entendo bem o quê. Ele já vai me perguntando sobre a pesquisa. Digo que posso comentar, mas antes queria explicar do gravador, TCLE e tal. Ela pede também para gravar em seu celular. Ok. Mal começamos, ela traz duas fotos da neta para me mostrar, e dois vídeos do primeiro encontro entre eles. Me emociono com o abraço que a jovem dá nos recém avós. Eles querem que eu os ajude porque também precisam “aprender a ser avós” (sic), já que não tinham ainda netos. (E sou pesquisadora do tema!) Aos poucos, compreendo meu impacto. Me dou conta de que aquela vista, aquelas antigas janelas brancas de madeira, de frente para o mar, é a vista da janela da casa de meus avós maternos, de novo aqui presentes: no início, pelo meio e no final, já que considero que esta será minha última entrevista. E só, na rua, absorvendo esta emoção, percebo que Sara é o nome verídico da minha avó, esposa de Chaim. Se não fosse comigo, custaria a acreditar... Ela vai para a fisioterapia, ele fica mais um pouco, mas também será atendido em seguida. Lamento. “Poderia ter ficado mais, conversado mais”. Saio inundada pelo: abraço que Sofia dá em seu novo avó - abraço de quem quer ser acolhida, afagada, amada; pelas lindas trajetórias de vida, pelo entusiasmo deles com a nova neta e pelo meu “retorno” a querida sala das minhas lembranças. Obrigada, Sofia. (Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2018). Nicholas e Agatha têm histórias de vida muito interessantes. Viveram em diversos países, realizaram muitos projetos em áreas sociais e de pesquisa. Vivem entre o Brasil e os EUA, onde têm família mais numerosa, inclusive o filho David. Apesar de muitos anos vivendo e trabalhando por aqui, Nicholas tem falhas de concordância e sentido ao falar português, mas que não atrapalham nossa conversa, ao contrário, provocam interessantes impasses. Gizele: Eu sempre começo, assim, pedindo para as pessoas me contarem um pouco sobre a vida, de vocês, para eu conhecer um pouco a vida de vocês. Agatha: Começa por você. Nicky66: Ah, minha vida, eu sou judeu, vivi (...), as famílias vieram, da minha mãe, da Ucrânia, de um shtetel67. Do meu pai de Lituânia e Bielo Rússia. Gizele: Que época isso? Nicky: Começo no século, XX, 1904, para 1906. Fui criado em Boston, nos subúrbios de Boston. Gizele: Vocês foram para os EUA direto? Nicky: Para os EUA direto. Bom, não sei bem. Sempre a família, meu pai fez uma parada (...). Fui criado em Boston, família bem classe média americana, com aspirações de assimilação (...). No início, praticávamos judaísmo, assistíamos sinagoga, mas depois do meu Barmitzva, isso tudo parou. Fui 66 Nicholas é chamado por um diminutivo, todo o tempo, por ela e pela filha nas mensagens de celular, que adoto aqui na transcrição, mesmo sendo um nome fictício. 67 Palavra em Ídiche, dialeto dos judeus europeus, que se refere aos pequenos vilarejos onde viviam grande parte da população judaica na Europa Oriental, antes da primeira guerra mundial. 99 para a escola pública e depois para a universidade (...) fundada para judeus (...). Me aposentei de novo com 70 anos, mudamos para o Brasil, mantendo uma casa que nós temos em Massachusetts. E aqui que estamos. Temos dois filhos: Isa e David, que tem 47 anos. Agatha: Eu nasci na China. Gizele: Na China! Agatha: De uma família judaica, mãe da Sibéria, pai da Ucrânia. Ela já era casada quando veio para a China, com o primeiro marido dela, com o qual teve uma filha. Ele foi morto durante a guerra com os japoneses. Ela conheceu meu pai já na China, aí nasceu meu irmão e eu. Quer dizer, eu primeiro e depois meu irmão. E vivi na China, até os 13 anos, 12. Eu fiz 13 no caminho para o Brasil. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). Interessante como ambos iniciam e fazem sua descrição incluindo a identidade judaica como parte determinante de suas vidas, numa trajetória marcada por muitas mudanças geográficas. Apesar de estar atrelado ao meu tema de pesquisa, outros entrevistados não iniciaram por este aspecto. No final da conversa, ela me diz algo que me faz compreender a importância do judaísmo numa vida tão errante e diversa, experiência que desconheço, mas que julgo que possa sim ser significante para os que são, continuamente, imigrantes. Agatha: Quando me perguntam de onde eu sou, eu digo que sou judia porque é a única coisa que tenho desde o meu nascimento até hoje. Gizele: Interessante. Agatha: Sem mudar, mesmo que mude de local. Nicholas, por sua vez, falou ter um interesse especial nas questões genealógicas e históricas do judaísmo, que tem se debruçado sobre a pesquisa de suas famílias de origem, já tendo conseguido mapear desde o bisavô de seu pai. Nicky: (...) descobrimos os bisavôs do meu pai, a casa onde ele morava. [na Lituânia]. Gizele: O que? O bisavô do seu pai? Nicky: Sim. O bisavô do meu pai. Agatha: Com mapa, com a rua, o número, a casa.Nicky: Quer dizer que já temos sete gerações já tem nossa neta. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). Sofia já está incluída por eles na genealogia da família, apesar de ser bem nova em suas vidas, já que faz somente três semanas que sua filha, Isadora, adotou a jovem. É a única neta e parecem deslumbrados com esta nova fase, além de felizes com a realização da filha em tornar-se mãe. Penso que já vinham acompanhando este processo e amadurecendo a ideia de tornarem-se avós, mas como diz Agatha, algo que só pode se materializar com a presença física da neta em suas vidas, recentemente ocorrida. 100 Agatha: Olha, nós chegamos aqui no dia 11 de outubro, só tem uma semana e pouco que a gente conheceu a nossa neta. Gizele: Sim, mas vocês vinham acompanhando? (...) Nicky: Desde que ela tinha 24 anos [agora 50 anos] e se casou, que a gente acompanhou. Gizele: Que ela queria ser mãe? Nicky: Que ela queria ser mãe, sempre. E a gente, na verdade, eu mais do que Agatha, eu queria ser avô, acho que é uma parte da tradição judaica que eu pessoalmente gosto que é procriar, então para mim sempre foi uma parte da vida meio vazia, então neste título eu acompanhei o desejo da minha filha de ser mãe e eu de ser avô. Agatha: Quando você disse que eu não queria ser avó, na verdade o que aconteceu comigo é que eu... Nicky: Eu não falei isso. Falei que você estava menos envolvida, empolgada do que eu. Essa colocação é sua de que não queria ser avó. Agatha: Talvez seja. É porque a minha vida estava muito ocupada com uma espécie de filha, ou avô postiço que se tornou a fundação. Então, se era para suplementar aquilo que eu não tinha, talvez tenha sido. E que a minha dedicação de criar uma entidade, um ser, foi totalmente focado na fundação, o que levou muitos anos. A fundação hoje tem 18 anos e está andando com os pés próprios, não precisa mais de mim. Então eu estou pronta agora para ter essa relação. E tendo alguém com quem ter essa relação faz uma diferença enorme. (...) Então, quando surgiu essa oportunidade, e o Nicky descreveu todo o processo, e agora nós estamos nesta fase, eu concordo com Nicky que nós temos que aprender a ser avós. Eu acho que nós temos, se fosse, Isa teve uma maneira de pensar muito interessante quando ela decidiu (...) ter uma criança mais velha. Ela queria uma criança com quem ela pudesse conversar e quem pudesse contar a história dela. (...). A outra coisa que eu achei muito interessante, a criatividade dela de pensar que todos os amigos dela, na faixa etária dela, 45, 50 anos, hoje em dia tem filhos adolescentes ou pré-adolescentes. Gizele: Sim. Agatha: E se ela viesse com um bebê, ela estaria com pais muito mais jovens, com quem ela teria pouco em comum. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). Nicky: Eu achava complicado [Falando da chegada de uma criança com uma cultura tão diferente da deles]. É interessante que quando eu vi essa foto, e lá em... Gizele: A primeira? Nicky: A primeira, eu fiquei encantado como Isa ficou encantado, então eu encorajei ela a ir conhecer a menina, e quando ela começou a relatar dessa menina que estava no abrigo particular, com um bom currículo, com um bom cuidado. Ela criou uma estrutura para ela mesma, que eu acho que fez uma diferença na vida dela. Ela é diferente dessas crianças dos abrigos aqui no rio. Ela primeiro estava na série certa para a idade dela, ela está com 13 anos na 8ª serie; segundo ela fazia aulas de canto, ela gosta de cantar. Ela faz aulas de caratê, pertencia a um grupo de ajuda na igreja. A gente desde o dia que ela chegou lá, começou a trocar mensagens com a menina pelo WhatsApp, e ela imediatamente começou, através de fotos que Isa levou para apresentar ela e a família, começou um livro chamado minha família, a menina. Gizele: A menina? Nicky: A menina. Então se sua tese é sobre o conceito de família (eu rio), ela começou este livro e nos mandou páginas dela em que eu vi fotos de mim, onde ela escreveu ao lado, meu avô. Isadora optou por uma adoção tardia, um tema que consta de farta bibliografia, e que abrange características interessantes. Adoção tardia é o termo utilizado para 101 designar a criança que, no momento da adoção, possui idade superior a dois anos. Designação criticada por alguns autores (SILVA, 2009), porque reforça a ideia que há uma idade ideal para ser adotado, prejudicando à adoção de crianças maiores. A opção pela adoção tardia não é tão comum no Brasil, cujo perfil de crianças procuradas é de tenra idade, de preferência bebês, como previamente mencionado. Ebrahim (2001a, 2001b), em sua pesquisa, compara os pais que realizaram adoção tardia com pais que adotaram bebês e conclui que tais adoções são beneficiadas pelas características dos adotantes, que apresentam um nível socioeconômico superior, uma maior presença de filhos biológicos, e uma maturidade e estabilidade mais elevadas. Nicky: (...) Primeiro, Isa queria uma criança mais velha, falou acima de 12 anos, eu sempre achava que criança mais nova era mais fácil para me dar como avó e também para ela ter tempo de ser mãe, antes que a criança ser adolescente e bater para a vida particular. Segundo: a questão de raça, que eu não tenho preconceito, para mim criança é criança, essa não era problema, mas preocupante foi as origens da criança, a bagagem que a criança trouxe. (...). E tem sempre crianças que tem histórias, principalmente mais velhas, que eu acho difícil trazer para nossa casa onde não é simplesmente uma diferença de classe, mas uma diferença de cultura, que nós temos essa história internacional, de vida. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). As preocupações de Nicholas quanto a bagagem que uma criança que vem de abrigo traz será também um tema abordado com detalhe no próximo capitulo. Apesar das diferenças apontadas, Nicholas e Agatha reconhecem também pontos de convergência da vida deles com os da neta. Seriam como outros avós, tentativas de estabelecer conexões? Nicholas não fala claramente, mas parece apontar isso quando cita o gosto dela por música e atividade física. Agatha, por sua vez, encontra um significativo ponto em comum em suas histórias: Agatha: E eu fiz 13 anos, num navio, vindo pra cá. E um ponto interessante é que a nossa netinha tem 13 anos, e veio para o rio de janeiro, pela 1ª vez, faz menos de um mês. Então, eu tenho uma simpatia especial para essa transição, que eu fiz. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). 102 3 FIOS FAMILIARES: ENTRE HISTÓRIAS, CORES E AFETOS Cartografamos com afetos, abrindo nossa atenção e nossa sensibilidade a diversos e imprevisíveis atravessamentos. Virgínia Kastrup e Eduardo Passos Ao voltar meu olhar para toda esta trajetória, percebo uma trama multifacetada, recheada de imagens e sons, emoções e silêncios, cheiros e gostos, ocupada pelas vozes de meus entrevistados, suas histórias, suas casas, suas fotos, suas famílias e, especialmente, pelos vestígios que cada um desses encontros provocou em mim. Anteriormente introduzi cada um deles, personagens principais desta aventura, bem como parte da experiência de nossas conversas, beirando o que os fazia estar ali: ser judeu e avó ou avô por laços de adoção; e espreitando, o que produziam de singular: suas trajetórias de vida e formas de articular judaísmo, avosidade e adoção. Na tentativa de continuar o caminho, me percebo em um emaranhado de pensamentos e de afetos, onde torna-se difícil sinalizar, o que é meu, o que é de cada um, o que é de cada encontro. O plano comum que se traça na pesquisa cartográfica não pode, de modo algum, ser entendido como homogeneidade ou abrandamento das diferenças entre os participantes da investigação (sujeitos e coisas). Como pensar, então, o comum na diferença? Como pensar o plano comum do heterogêneo? (KASTRUP; PASSOS, 2014, p. 19). Segundo Kastrup e Passos (2014), o comum porta um sentido duplo de partilha e pertencimento. “O comumé aquilo que partilhamos e em que tomamos parte, pertencemos, nos engajamos.” (KASTRUP; PASSOS, 2014, p.21). Os autores usam as ideias de Jacques Rancière (1996; 2005 apud KASTRUP; PASSOS, 2014, p.21)68 sobre a “partilha do sensível”, que seria a existência de um comum partilhado e, ao mesmo tempo, de partes exclusivas. Segundo Tedesco, Sade e Caliman (2014) é o entrevistar que promove o acesso ao plano coletivo de forças e sua indeterminação, à pluralidade de vozes existente na experiência compartilhada do dizer. “Envolve um plano que só é comum justamente porque atravessa a todos, mas não é de ninguém. É comum por estar além 68 RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Ed.34, 1996. _______ A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org./ Ed. 34, 2005. 103 e aquém da dimensão pessoal, da dimensão das individualidades.” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014, p. 120). Então, ao conversarmos, estou, de alguma forma, também dialogando com suas famílias, acionando os valores que exercitam como comunidade, no aqui e agora, porém sem garantias (ou desejo) de totalização ou busca por unanimidade. Embora o judaísmo seja um dos fios que tecem esse comum heterogêneo da pesquisa, muitas das experiências aqui relatadas acontecem em outras famílias e dizem respeito ao ser avô, ser avô por adoção, viver em família, nesses tempos atuais, com toda a diversidade que isso significa. As linhas tecidas nas conversas com os avós, através de minhas perguntas ou do fluxo dos diálogos, mostraram-se imbricadas de tal forma que falar de um é falar de outro, tornando bem difícil escrever sobre essas tramas. Origem, memória, legado, tradição, identidade, dificuldades, medos, afetos, afinidades, convivência são fios que se cruzam e se esparramam: um conduz ao outro, de forma não linear. Então, novamente, como no Mestrado, a imagem que se forma em minha mente é a de um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1997): um emaranhado onde por vezes uma ponta se faz mais visível e outra mais furtiva, que num momento seguinte, pode se sobressair ou se cruzar, cabendo a mim percorrer os traçados. “Pensar, nas coisas, entre as coisas, é justamente fazer rizoma, e não raiz, traçar a linha e não o ponto.” (DELEUZE; PARNET, 2004, p.38, grifo dos autores). Afirmar que as tramas familiares se apresentam como um rizoma é apontar um diagrama onde qualquer ponto pode ser conectado com outro, não há unidade, nem hierarquias, mas multiplicidade, um entre que cresce e transborda, tornando-se, assim, de difícil desmonte ou totalização, pois é ação que se faz ao viver, sentir e prosseguir, sempre em movimento. Meu propósito é continuar a partilhar experiências, pensamentos e sentimentos, que fizeram emergir temas importantes para o debate sobre os laços familiares. Assim, uma importante discussão presente nos estudos sobre adoção é o lugar dado à história da criança, às informações sobre sua origem e família biológica - tema conectado ao âmago desta pesquisa, no que diz respeito à inserção dela numa cultura e religião que são, possivelmente, diferentes dos contextos de onde nasceu e/ou viveu os primeiros meses/anos de vida. O modo como as famílias lidam como estes aspectos se desdobram em posturas distintas sobre: falar, o que falar, com quem falar – que acabam por fortalecer alguns mitos e romper outros. 104 Desta forma, proponho discutir alguns pontos que se articulam às informações sobre as crianças: como as famílias, os avós e os netos lidam com elas, e as fantasias e temores envolvidos. Em seguida, pensar sobre afetos que a diferença de cor da pele desperta: como adultos e crianças enfrentam o racismo em seus cotidianos. 3.1 Trançando histórias O tema da busca das origens é debatido, na literatura da área, por vieses diferentes: a transmissão genética (ALLENBRANDT, 2015), os valores culturais (FONSECA, 2006; MEZMUR, 2009), pouca e ineficiente documentação sobre as “mães abandonantes” (FONSECA, 2012), entre outros. Moreno (2009) realiza um levantamento das interpretações jurídicas e historiográficas em torno da temática da adoção na sociedade luso-brasileira, no período anterior ao século XX, e conclui que, ao longo de quase três séculos, a adoção ficou adormecida esperando por um “retorno triunfal” (MORENO, 2009, p. 454), ocorrido após a segunda Guerra Mundial e diante de um contexto de orfandade generalizada na Europa. Foi o Direito Romano que forneceu o alicerce e o instrumento jurídico necessários para criar diferentes laços com as cartas de adoção, em fins do século XVIII e início do XIX. No Brasil, o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) institui a adoção em caráter pleno, irrevogável e irretratável, para menores de 18 anos ou maiores, em que a convivência tenha se iniciado antes do adotado completar a maioridade, atribuindo a ele a condição de filho, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, de filhos biológicos, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais. O ECA outorga direitos exclusivos aos pais adotivos, apagando-se toda informação sobre os genitores no registro civil. Embora, o direito ao acesso às informações nos processos de adoção está garantido à criança ou jovem, quando atinge a maioridade, desde a Lei Nacional de Adoção no 12010 de 2009 (BRASIL, 2009), conhecida como Nova Lei da Adoção. Queiroz (2004) questiona a existência de uma nova certidão de nascimento sem os dados dos pais biológicos, por provocar uma ambiguidade: “Esse desmentido manifesto na letra da lei revela o duplo do estranho/ familiar presente no imaginário social e vivido pelos pais adotivos (...).” (QUEIROZ, 2004, p.106). Penso que uma nova certidão indica uma garantia de Direitos, uma decisão irrevogável, importante 105 para os envolvidos no processo da adoção; e o não encobrimento do passado pode ser realizado de diversos modos. O respeito e a importância da religião no caso das adoções também são citados no ECA, no Capítulo II, Artigo 16 III (BRASIL, 1990, p.20) como um dos Diretos da criança e do adolescente. E, no Capitulo IV, Artigo 16 1 B (BRASIL, 1990, p.216) justamente afirma que, em caso de criança adotável, é importante levar em conta sua origem étnica, religiosa e cultural. No entanto, vários são os obstáculos que se interpõem - a desqualificação dessa origem, as dimensões continentais do país, a miscigenação - que tornam esta prescrição difícil de se executar. Fonseca (2006) considera que a análise da transferência de crianças entre grupos de tradição diferentes introduz a questão das desigualdades sociais e políticas, seja nas adoções nacionais ou internacionais. Coimbra (2013), em sua tese de Doutorado, afirma que a adoção se reveste de características privilegiadas para um estudo sobre a dimensão da identidade e do pertencimento, pois há um deslocamento da criança entre famílias, da natural à substituta. Para o autor, a adoção traduz a experiência de viver em (ou entre) dois mundos, traduzidos em duas famílias e, de modo mais abrangente, em uma travessia, no caso das adoções internacionais. Mezmur (2009) afirma que o provérbio que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” (MEZMUR, 2009, p.86-87) é mais verdadeiro na África do que em qualquer outro lugar do mundo, tornando fundamental reconhecer o papel da família estendida e da comunidade, reafirmando a importância do contexto cultural e da religião envolvida quando há adoção internacional de crianças. Valério e Lyra (2014), na busca por compreender o processo de construção de significados sobre adoção a partir de um membro da família extensa, afirmam que haverá sempre uma tensão entre a cultura pessoal e o mundo social no qual a pessoa está inserida, mas que o tempo faz com queos envolvidos refaçam suas crenças, diminuindo as possíveis tensões. Apesar de considerar a importância destas primeiras histórias relativas às vidas das crianças, ao traçar a pesquisa, privilegiei olhar para outros momentos: a experiência dos avós em torno da adoção dos netos em e por suas novas família - a decisão por adotar, a espera, a chegada, o acolhimento e a costura das relações através do tempo. Não no sentido de contrapor laços biológicos a laços adotivos, numa lógica binária ou de exclusão, mas para compreender a trama familiar e alcançar 106 as questões da identidade judaica. No entanto, a história dos netos anterior à adoção foi colocada em pauta nas conversas, mesmo que no início eu não tenha me dado conta, de forma clara, que seria um tema imprescindível e inescapável. O segredo foi prática usual nas adoções quando eram realizadas de forma direta, fora das vias legais, “à brasileira” (FONSECA, 2006), ou mesmo legalmente, num período, não tão distante, onde era comum não se assumir a condição adotiva dos filhos. Teixeira Filho (2010, p.246) nos alerta que “(...) o segredo só existe enquanto tal, pois que se postula a consanguinidade como a verdade de uma filiação.” Mas, mesmo que a lógica do segredo já tenha sido, em parte, ultrapassada, no que tange a contar, explicar e valorizar para com a criança sua história, parece que, muitas vezes, as famílias tendem a preferir manter este assunto no âmbito mais privado, pelos mais diferentes sentidos. Gizele: E a senhora lembra o que a senhora achou na época que eles decidiram isso? Dinah: Quando decidiram não. Mas eu sabia que ela estava fazendo tratamento. (...). Acompanhei o tratamento dela, mas quando ela... Eu acho que eu sabia sim porque ela adotou legalmente, então, teve que ter aquela inscrição, aonde, quando... Gizele: Não sabe? Aha! Dinah: Também nunca me interessei por esses pormenores e minha nora não toca. E quando a Isabel falou tudo para a menina, para a filha do Julio...(...) A Joyce, ela sabe ela que é adotada. Gizele: Não é um segredo, mas não é um assunto comentado. É isso? Dinah: É, é. Na casa do Julio, mas na casa do Vitor não. Não sei se ela sabe. Gizele: Ah, não sabe se ela sabe? Dinah: Nunca perguntei, nunca demonstrei, nunca nos demonstramos, nem do meu lado, nem do outro lado, da outra avó, também não. (DINAH, fev. 2018) Gizele: Você conhece outras pessoas, você tem outras amigas? Você tem no teu círculo de amizade alguma outra amiga que tem netos adotados também? Sarah: Eu sei. Eu sei sim, tem algumas pessoas que adotaram. Mas as pessoas não falam muito não. Gizele: Não falam? Não é um tema importante? Sarah: Não é um tema que as pessoas falem. Só se perguntar. (SARAH, out. 2015). Dinah reafirma algumas vezes em nossa conversa não lembrar e não se importar com a adoção das netas, mas cada filho/nora lida de forma diferente com a revelação da adoção - é uma escolha do casal parental, que cabe aos demais aceitar. No caso de sua família, onde há um intervalo de cerca de 30 anos entre uma e outra, a diferença de tratamento do tema pode indicar uma mudança ocorrida no tempo quanto à cultura da adoção. 107 A utilização da palavra revelação, aqui, não é por acaso. Durante muito tempo, esteve presente também a ideia de que, se o segredo não era bom, deveria haver um momento de revelação da verdade. Rosa (2008) chama de armadilha este momento, pois os pais ao assumirem um tom solene para falar com os filhos, mostram que o assunto é um tabu – individual, familiar, social. O conceito de revelação também parece estar ultrapassado, e o mais comum, e indicado hoje em dia, é que as crianças saibam desde sempre as minúcias de sua história, conforme seja possível para sua idade. D'Andrea (2002 citado em SILVA, 2009, p.50)69 sugere que os pais preparem o terreno, de modo que a informação ocorra da forma mais comum possível, por meio de histórias, fotos, relato de experiências, pequenas observações, pois assim a criança tem a sensação de sempre ter sabido, e evita-se o caráter imponente e traumático do desvendamento de um segredo. Mas, mesmo tendo escapado da alçada do segredo, as adoções podem ainda ocupar um espaço esfumaçado, onde não é permitido livre acesso a todos ou aos pormenores. Sarah e Rebeca confirmam que não é um assunto comentado: o tema ainda envolve cuidados. Gizele: A senhora tem amigas que têm netos adotados? A senhora conhece alguém que tem neto ou uma neta adotada? Rebeca: Não. Gizele: Não? Rebeca: É difícil. Além, do já contraponto empreendido por Sarah ao ser questionada sobre a história de Maria, manifestado pela intensa alegria por sua adoção, ela também realiza um deslocamento temporal, valorizando o que acontece quando a neta já se encontra em sua família, sem deixar de assinalar a preocupação com algo inédito entre eles: era a primeira vez que sua família recebia um filho em adoção. Gizele: Quando eles casaram a senhora começou a pensar vou virar avó? Sarah: Ah, sim, sempre quis. Eu sempre quis. O Davi demorou um pouco com a Carla. Demoraram um pouco. Ela tinha problemas de ovário, esqueci o nome. O médico falou você pode ter filho daqui a um ano, daqui a dois, daqui a cinco, daqui a dez. Aí eles resolveram adotar a Maria. Gizele: Como você soube desta decisão deles de adotar a Maria? Sarah: Ele falou para mim. A gente fica preocupada porque nunca aconteceu isto na família. Gizele: Primeira adoção da família? 69 D’ANDREA, Antônio. O casal adotante. In: ANDOLFI, M. (Org.). A crise do casal: uma perspectiva sistêmico-relacional. Porto Alegre: Artmed, 2002. 108 Sarah: Primeira adoção. Isto nunca aconteceu. A gente sempre fica preocupada, quem é que vai pegar, quais são as... Mas a gente ficou numa boa. Eu, quando ela chegou, eu me encantei. Tinha até um retrato que eu fiquei olhando, embevecida. Uma gracinha, uma gracinha, linda. (SARAH, out. 2015). Sarah: Quando ela chegou, eu já aceitei logo. Eu já aceitei logo. Gizele: Quando viu o nenenzinho? (...). Sarah: Eles até foram buscar as coisas para ela. Fizeram uma viagem para os EUA, foram buscar, compraram uns negócios. Eu estava vendo que eles estavam desenvolvendo para chegar a Maria Gizele: Demorou? Este processo de adoção demorou? Sarah: Não, não sei, aí já não sei. Acho que demorou um pouco sim. Até viram qual a criança que tinha mais afinidade com eles. Nem sei nem como é que é feito a adoção. Nem sei. Gizele: Aí ela chegou! Sarah: Chegou. É linda demais, eu fiquei encantada, e a gente curte. Eu curto muito ela. Curto muito. Acho ela uma graça. Sarah: A Carla trouxe um negócio que botava leite e tinha um fiozinho que corria e o neném mamava. Então a Maria mamava na Carla. Interessante aquele negócio, muito interessante. (SARAH, out. 2015). A escolha da Sarah em relatar alguns detalhes que envolvem a chegada da neta indica sua necessidade, ou desejo, de inscrição na vida de Maria desde o/um princípio, pela imaginada escolha da criança que tivesse “mais afinidade”, pelo enxoval e pela amamentação. Algumas informações, preenchidas também pela sua imaginação, já que a questão de afinidade, possivelmente, não estava presente numa criança tão pequena. Tempos depois, soube pelo pai de Maria que existem informações a respeito da família biológica, inclusive uma carta da mãe para ela. Ele manifestou um temor caso a filha queira procurá-los, devido à situação de pobreza com a qual ela poderia se deparar. Pela revisão bibliográfica, sabe-se que os temores são os mais diversos: desde a abordagem com os filhos das histórias de abandono (PAIVA, 2004) até o medo dos pais de serem eles abandonados pelos filhos (NASCIMENTO,2011), o que outrora foi, também, justificativa para o segredo. São questões que povoam os medos e as fantasias dos pais e dos avós, vistas nas palavras de alguns dosentrevistados. Sejam nas reuniões ou nas conversas informais, os principais temores que acometem os futuros pais adotivos dizem respeito à hereditariedade, à carga genética da criança que adotarão; à possibilidade da mãe biológica ou outro parente consangüíneo desejar uma reaproximação da criança e interferir na vida familiar; à possibilidade que alguém um dia lhes tome o filho; se vão conseguir criar laços fortes e permanentes com a criança; se esse filho vai gostar deles ou os rejeitará quando souber que foi adotado; o que fazer se o filho quiser conhecer a família biológica, como lidar com isso. (VIEIRA, 2004a, p.45). 109 Rebeca, diferente de Sarah, era falante, detalhista e extensa em toda sua narrativa, e estava a par de informações sobre sua neta anteriores à adoção, compartilhadas comigo. Num trecho já lançado, vemos que ela se preocupa com a neta no sentido de como ela vai lidar sobre seu passado. Carolina é uma das crianças, mencionadas na pesquisa, que fala abertamente de sua adoção e o judaísmo aparece como uma nova e importante marca para ela e para a família ao seu redor, como também já comentado. Debora sabia detalhes sobre a adoção do neto, algumas vezes lembrados, outrora esquecidos, variando como sua capacidade de se organizar na conversa. Mas aponta, além da enorme satisfação, certa preocupação relativa à adoção, salientando que estas também existentes para com os filhos biológicos. Malka também fala da preocupação com as raízes, mas articuladas a outros aspectos que ainda serão colocados. “Há, em torno do filho por adoção, fantasias de que ele pode ter sangue ruim e, conseqüentemente, ser motivo de preocupação e sofrimento para os pais adotivos.” (MAUX; DUTRA, 2009, p.119). Gizele: Você disse que você ficou feliz, que você achou que a Sandra devia adotar mesmo. Debora: Ela sempre foi apaixonada. Gizele: E ela não pensou em adotar mais crianças? Outros filhos? Debora: Difícil. Não é fácil. Eu acho que não é fácil. Ela, graças a deus, deu sorte, a gente, até os teus filhos você não sabe, ne? Gizele: Assim difícil que você diz é de ter algum problema? Debora: É, você nunca sabe. A possível existência de uma carga negativa no passado dos netos por adoção também me atravessa e fica perceptível na forma como insisto no tema ou o abordo, utilizando palavras como preocupação e aceitação. Me sinto parte de um tempo, não tão longínquo, onde as adoções eram consideradas problemáticas. Sem falar que denunciavam, geralmente, questões de infertilidade do casal, tema também tabu, até recentemente. Atravessamentos que também são presentes em outros profissionais e pesquisadores, como mostram algumas pesquisas. Pontes et al (2008) optou por investigar o imaginário social de professores do ensino fundamental sobre a criança adotada, e mostrou que este se organiza a partir de dois campos temáticos: o abandono infantil e a infertilidade, que configura um campo, onde a criança é aceita se houver a possibilidade de ser esquecida sua verdadeira origem. As autoras concluem que o modo como a sociedade brasileira se 110 comporta diante da prática de adoção gera pesada carga sobre os ombros da criança adotada. Campos e Costa (2004), em pesquisa com técnicos do setor de adoção, constataram que o processo de adoção é permeado de subjetividade e emoções que superam e transcendem os aspectos legais e jurídicos, o que impossibilidade quantificar e objetivar dimensões importantes das famílias nos estudos psicossociais. As autoras sugerem que devem ser tomadas medidas preventivas para buscar entender esta subjetividade por parte dos técnicos, juízes e promotores, na tentativa de evitar arbitrariedades. Vargas e Weber (1996 apud GAGNO e WEBER, 2003)70 afirmam justamente que grande parte das pesquisas brasileiras sobre famílias por adoção descreve casos clínicos e psiquiátricos, criando uma clara distorção, e a associação da adoção com problemas e fracassos, como se obstáculos e dificuldades não fossem também existentes entre pais e filhos biológicos. Assim, segundo as autoras, as práticas “psi” e educacionais precisam ser responsabilizadas por parte deste enredo. Por outro lado, Rosa (2008) alerta que uma visão romantizada da adoção deixa na obscuridade as fantasias que estão implicadas nestas famílias, e culmina que a cada impasse na vida ou na educação dos filhos, tanto as crianças como os pais adotivos lidam com dúvidas a respeito das origens. Embora saliente que as dificuldades não são exclusivas do processo de filiação por adoção, acrescenta que nesses casos estas se revestem de configurações especiais. Assim, é preciso desmistificar a associação errônea entre adoção e fracasso, mito de laços sanguíneos, herança genética entre outras distorções. Na verdade, a adoção não é um processo artificial, falso ou ilegítimo; pelo contrário, envolve relações humanas de afeto e amor que florescem a partir da reciprocidade entre o adotado e a família adotante. (SILVA, 2009, p.37). Miriam, como vimos, acompanhou de forma intensa a adoção de Noé e Noah. Ela diz claramente que o passado deve ser deixado para trás, apesar de conhecido e documentado, o que algumas avós disseram mais nas entrelinhas. Gizele: E seu filho? Como ele recebeu? Miriam: Bem também. Com uma diferença assim, ela trouxe todo o passado deles em algum documento. O Rodrigo pegou e leu tudo. Ai quando ela me 70 VARGAS, Marlizete Moldonado; WEBER, Lidia Natalia Dobrianskyj. Um estudo das publicações científicas internacionais sobre adoção. In: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Caderno de Resumos da XXVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia (p. 118). Ribeirão Preto: SBP, 1996. 111 passou, eu falei não quero, não vou ler nada, nada, nada. Para mim tábua rasa, tábula71. Gizele: Rasa. Miriam: (...). O que a partir de agora, não quero ter pena deles, nem são coitadinhos, nem sofreu isso, não sofreu aquilo. A vida deles começa por aqui, conosco, então, né, isso. No entanto, Miriam mantém contato com o abrigo de onde os netos vieram, e onde pediu ajuda, quando da morte da filha, preocupada com a possibilidade de perder a guarda das crianças, indicando certa ambivalência entre manter o contato e deixar o passado preterido, embora, possivelmente, a permanência na instituição de acolhimento não seja exatamente a fase que ela queira que seja esquecida. A preocupação com a questão da origem do filho ocupa um lugar central. Há sempre uma atitude de ambigüidade: dizer a verdade, mas não querer saber sobre os genitores do filho. Nesse sentido, a verdade é sempre parcial, pois mantém encoberto e em segredo a origem e as razões do abandono pelos genitores. (QUEIROZ, 2004, p.103). Na família de Luna e Vicente, a adoção e a passagem pelo abrigo têm sido tratadas de forma franca com o neto, na intenção de lidar bem com sua história e seguindo a orientação de uma psicóloga, segundo relato de Luna. Gizele: Ele sabe que ele é adotado? Luna: Ele sabe, ele fala tanto nisso, (...), ele já foi até ao abrigo. Ele quis conhecer a casinha aonde a mamãe buscou ele. (...). Então foi lá um dia: Foi nessa escada que minha mãe subiu quando me deixou aqui? (...) A última coisa que a Isabel me contou foi que ele falou na barriga da minha mãe, não sei o que, a minha mãe já morreu? A minha mãe, falou mãe alguma coisa, já morreu? A Isabel: não sei, acho que não. Gizele: A Isabel teme que ele vá algum dia buscar isso? Luna: Aparentemente não. Ela está deixando a vida correr, ne? Gizele: Você tem este temor, Luna, que ele um dia...? Luna: Eu acho que mais adiante ela vai ter de se confrontar com algumas situações, espero que não sejam muito... ontem, veio jantar aqui em casa um casal, que tem um filho adotivo de, já deve ter 25, 26 anos, e nós estávamos conversando sobre isso e ele disse queele não quer saber. O rapaz não quer saber nada, nada, nada. E o Hugo pergunta o tempo todo. Luna não completa a frase, mas é possível imaginar que a palavra que cabe aqui é dolorosa. De fato, o abandono, a origem miserável não faz parte somente das fantasias das famílias, mas integra muitas vezes a vida das crianças disponíveis para adoção no Brasil. (PAIVA, 2004). E como ela mesmo narra, há outras crianças ou jovens que não têm o interesse de realizar estas buscas. Isac e Lea dispunham de informações sobre o passado de Carlos, especialmente relacionado à sua frágil saúde. Relatam que, por conta deste aspecto, 71 O fato de se expressar numa língua que não é a sua de nascença faz com que suas frases tenham, por vezes, conjugações e sentidos truncados. 112 a assistente social, bem como outros ao redor, atribuem a esta adoção uma “missão divina” (sic), um sentido mítico, desta vez, nomeado por pessoas de fora da família. Lea: Esse menino foi rejeitado. Isac: Esse menino foi rejeitado por 15 famílias (...). Por que que eu soube? Esse garoto, ele recebeu esse menino sabendo que esse menino, sabendo que ele era doente. A turma diz o seguinte: é missão divina. (...). A mãe dele, depois você ficou sabendo, na adoção eles contam, ela se prostituía para dinheiro para drogas e morreu de overdose. Não se sabe de pai, não se sabe de avós. (...). O menino ficou 61 dias no Copa D´or. Lea: No CTI. Gizele: Depois de adotado? Lea: Sim, sim, depois de adotado. Isac: Ele já adotou doente (...). Eu entrava no quarto do garoto ele tinha mais fios do que eu. (...). É porque ele tinha que viver mesmo. Ele lutou muito para chegar o que ele é hoje. (...). Um determinado dia, a assistente social que cuidava do caso (...) veio e disse: “eu vim aqui como amiga. Ele foi recusado por 15 famílias, só deus que mandou para o seu filho que pode dar a ele Copa D’or.”. Penso que este sentido de sorte, ou de missão, tem foco nas crianças e na sua mudança de destino; todavia, muitos pais por adoção, e suas famílias, parecem sentir que eles é que foram agraciados pela chegada de seu filho - percepção construída não somente pelas conversas com os avós, mas também por conversas informais e assistir depoimentos72 com pais por adoção. Nicholas e Agatha, que estão vivendo agora e, intensamente, a chegada da neta, apesar da curiosidade sobre seu passado, mostraram-se respeitosos sobre o limite entre saber, perguntar e seguir a possibilidade e o desejo dela sobre dividir informações de sua vida anterior à adoção. Nicky: Isa quer muito respeitar as raízes dela, de Sofia. Eu acho importante. E Sofia é interessante, nós íamos o final de semana para São Paulo (...). Mas quando cancelamos a viagem para SP, ela falou algo, primeiro para Isa e depois para mim, ela disse: invés de marcar, remarcar a viagem para SP, poderíamos viajar como família para Unaí? Que é onde ela veio, ela queria que nos conhecemos a história dela, embora ela revela muito pouco, não falou sobre os pais, origens, e Isa falou que nós não podemos perguntar. Deixa ela contar se e quando ela quiser. (...). E depois, o nosso filho David, abriu no Google Maps, Google Earth. Gizele: Sim. Nicky: E fez ela nos levou numa caminhada pela cidadezinha Unaí. Gizele: (eu rio) Que nem aquele filme. Nicky: É. Gizele: Aquele filme Lion. Nicky: Isto. (...). Mostrando a escola, o abrigo, a aula de caratê, a academia de caratê, cheia de orgulho de nos mostrar. 72 A série “Histórias de adoção”, do GNT, do diretor Roberto Berliner. 113 Aqui encontramos uma diferença interessante sobre a questão do passado da criança e suas raízes como percebe Nicky. Por ser uma adoção tardia, não há como negar ou esconder que a jovem já tem um percurso e vivências pessoais que não poderão ser esquecidas ou apagadas, como tão facilmente se consegue, ou se tenta, em crianças pequenas e bebês. Guita foi a única avó que narrou explicitamente a dificuldade de sua filha e genro em lidarem com a revelação da adoção do Gabriel perante a comunidade, mas que será comentado em articulação com o tema a seguir. Apesar da proximidade construída nas entrevistas, percebo que, em alguns casos, os avós não compartilharam, ou não se estenderam nessas temáticas. Talvez não se sintam autorizados, pelos seus próprios filhos, a abordar este assunto de forma mais ampla, para além da família nuclear. Ou, como vimos em algumas famílias, também não falem entre si a este respeito. Portanto, a reduzida circulação de informações/comentários sobre as origens das crianças e suas famílias naturais, nas entrevistas, pode ser compreendida por diferentes ângulos: pela dificuldade de falar de um passado que geralmente tem marcas de abandono, miséria ou maus tratos – fruto da desigualdade social no país; pela falta de informações a respeito, seja porque ainda se encontra marcado pelo segredo, seja por não ser um assunto abordado em família e, ainda, porque, justamente é um assunto de família, deve ficar protegido de olhares mais estrangeiros. 3.2 Trançando cores Da mesma forma como não vislumbrei, antecipadamente, a importância das histórias de vida dos netos, do nascimento até a chegada nessas famílias, ocorreu quanto às questões raciais. Eu havia pensado que as diferenças físicas poderiam estar presentes num conjunto de preconceitos que as famílias por adoção estão sujeitas, ainda, a enfrentar. No entanto, os desdobramentos decorrentes das diferenças de cor de pele emergiram com intensidade, mesmo quando não explicitados. Não tenho claro se não presumi a presença e a fundamental importância de tais questões por ser a adoção um tema novo para mim, se estava mais preocupada em compreender sobre as relações e o questionamento religioso, ou ainda porque o racismo não tinha me atravessado de forma tão intensa. 114 Certamente, também, meu medo de lidar com temas tão sensíveis: discriminação, preconceito e sofrimentos emocionais, das mais diversas ordens, envolvendo crianças e jovens. Mas foi um elemento chave para alavancar o que, agora, percebo estava bem presente. Houve um certo evitamento inicial, que foi sendo abandonado conforme percebi que era um tema fundamental e que deveria, e poderia, ser conversado Segundo Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017) são poucos os estudos brasileiros que relacionam dinâmicas familiares e relações raciais, bem como incipientes os trabalhos que falam de vínculos afetivos e a relação com os processos de racialização no país. Fonseca (2011) aponta, no entanto, a existência de uma vasta literatura internacional sobre o tema em uma ampla e cuidadosa revisão da antropologia da adoção mostrando como as pesquisas sobre famílias e relações raciais “(...) enriquecem debates não só sobre família, filiação e parentesco, mas também sobre desigualdade e violência, tecnologias de governo em um mundo globalizado e subjetividades variantes diante de dinâmicas multiculturais.” (FONSECA, 2011, p.39). Schucman (2014, 2017) utiliza o conceito de raça social, que não se refere a dados biológicos, mas a construções sociais, a partir de Guimarães (1999 apud SCHUCMAN, 2017, p.85): “(...) formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios”, onde as raças são definidas em termos de diferenças morais, psicológicas e intelectuais. O meu argumento é o seguinte: “cor” não é uma categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a idéia de raça que orienta essa forma de classificação. Se pensarmos em “raça” como uma categoria que expressa um modo de classificação baseado na idéia de raça, podemos afirmar que estamos tratando de um conceito sociológico, certamentenão realista, no sentido ontológico, pois não reflete algo existente no mundo real, mas um conceito analítico nominalista, no sentido de que se refere a algo que orienta e ordena o discurso sobre a vida social. (GUIMARÃES, 2003, p.103-104). Malka, como outras avós, narra a alegria da chegada do neto, Alan, e complementa, contando como ajudou na escolha de seu nome. Ressalta sua beleza e inteligência, bem como a realização da nora e do filho em se tornarem pais. Ela toca de forma sutil sobre a preocupação com as raízes, mas relata que, somente se inquietou fortemente, quando o neto teve uma primeira namorada. No entanto, não compartilhou suas inquietudes com seu filho e nora, confirmando mais uma vez o quanto este assunto permanece num espaço difícil em algumas famílias. 115 Gizele: E a senhora lembra como foi quando ele chegou? Malka: Claro! (eu rio). Direto! O enxoval do Alan foi todo lavado na minha casa. (...). Mas assim, como é que eu vou te explicar: Você é mãe, você vê a alegria do seu filho, você não fica alegre também? Gizele: Hum, hum, com certeza. Malka: Tem um lado preocupante, tu não sabes as raízes. Gizele: A senhora lembra de ficar preocupada? Malka: Na notícia da vinda do Alan não, só depois. Você pode até rir, mas eu vou te contar porquê. (...). Quis o destino que numa viagem a Disneylândia, que o Alan fez (...). Acho que ele tinha 15, 16 anos, não me lembro direto. Ele conheceu uma menina das bandas lá de Florianópolis (ri) e namoraram. Pode ser que ele já tinha 17, não me lembro direto da idade. Mas acho que não. Bom, namoraram. Ele se apaixonou pela menina (rindo). Foi a primeira preocupação que eu tive em relação a adoção dele. Gizele: Por que? Podia ser família dele é isso que a senhora pensou? Malka: Exatamente. Só isso. Gizele: E a senhora falou isso com o Ariel? Ou com a Dalia? Malka: Não! (Eu rio). Não. A primeira pessoa que eu ... Não falei pra ninguém. (Eu rio). (...) Gizele: Foi a única vez que a senhora se preocupou? Malka: Só. Gizele: Se preocupou com a história biológica dele? Malka: Sim. Esse negócio de pinkt73, ele foi namorar lá em Santa Catarina, ele nem é, ele nasceu em Curitiba, é de Curitiba. sabe lá? (...) Gizele: Mas isso veio nessa hora, ne? Malka: Quando a Dalia me disse, ele gostou tanto dessa menina que eles fizeram, tiraram até umas férias lá para ele rever essa menina, aí acabou o namoro, depois dessa viagem (rindo). (...). Gizele: Mas quando ele veio pequeninho a senhora não ficou preocupada? Malka: Não. Gizele: Só ficou feliz? Malka: Gizele, não é pelo físico dele, eu fiquei feliz da felicidade estampada, quando eles me mandaram os retratos. Eu tenho até hoje, tu quer eu te mostro? Deles em Curitiba, na casa do Charles, que eles ficaram. Ficaram dois dias, até fazer o registro e tudo. Ele foi registrado lá mesmo. Se tu visses a alegria estampada no rosto da Sara. Malka aqui assinala, também, de forma discreta, a alegria pelos traços físicos do neto, que só percebo ao transcrever a entrevista, mas imagino que deva se referir ao fato de Alan ser branco e louro. Esta menção me lembrou de um comentário da amiga que os havia encaminhado para terapia: como Alan era parecido com os pais, o que também pode estar incluído na satisfação de Malka. A busca por crianças com características físicas semelhante aos pais sempre foi presente no perfil desejado pelas pessoas que buscam a adoção, seja para manter o segredo, seja para camuflá-lo de um olhar mais estrangeiro, ou por outros aspectos. A “parecença” (COSTA, 1990, p.4) é a intencionalidade por parte dos pais adotivos, de preencher o espaço do biológico, ausentes na adoção e, assim, controlar a ameaça que apresenta ao social a ascensão de classe oriunda da adoção e da herança trazida 73 Palavra em ídiche que quer dizer, de repente. 116 com ela. “A parecença se configura como um ideal a ser atingido (...).” (RAMÍREZ- GÁLVEZ, 2011, p.78, grifo da autora), que somente se torna importante num contexto de biologização das relações (COSTA, 1990). Segundo Ramírez-Gálvez (2011), a tentativa de biologização na adoção pode ocorrer através de várias estratégias: o período de espera semelhante ao tempo de gestação de um filho biológico, o desejo de adotar crianças recém-nascidas, sem marcas do passado e, principalmente, na escolha de crianças com biótipo similar ao dos adotantes. Estratégias que podem ser “(...) interpretadas como uma forma de aproximar a adoção ao desenvolvimento “natural” reprodutivo, que neste caso, suprimiria só a etapa da gravidez.” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.65-66). A questão de abordar a adoção e de como fazê-lo, cruza, muitas vezes, através do enfrentamento da diferença da cor da pele entre os membros da família. Miriam relata que, entre os próprios netos há uma disparidade em relação a falar ou não sobre a adoção: a neta diz que é adotada, fala do passado, quer mexer nas lembranças do abrigo; o neto ignora e se cala a respeito. Miriam: (...). Com a Anat, fomos num supermercado. Aí eu estava passando, como eu sou no Leme, todo mundo já me conhece, o Zona sul do leme. “Ih, dona Miriam, quem é essa menina?” Falei: “minha neta.”. Ela mesma disse assim: “não pode, ela é mulata, ela é morena e você é branca”. Ai a Noah olhou e falou assim: “por que não pode? Ela é minha avó e me adotou. A filha dela me adotou. Então eu sou morena, mas a minha mãe também é moreninha, viu?”. Noah, além de falar abertamente sobre sua adoção, introduz nesta passagem um aspecto interessante sobre a semelhança entre mãe e filhos que, no caso deles, me chamou a atenção quando busquei no Facebook foto da filha, Anat, que não conheci. Seria interessante saber sobre a importância da parecença para os filhos, o que poderia ajudar a compreender a vivência dos mesmo sobre a adoção. Queiroz (2004) afirma que os pais por adoção manifestam satisfação quando alguém reconhece semelhanças físicas entre eles e os filhos - o que me faz pensar o quão difícil é este afastamento do biológico, mesmo em famílias que vivem boas experiências de laços por adoção. “Paradoxalmente, em famílias paradoxalmente adotivas, as similaridades são também importantes na construção social do parentesco.” 74. (NIZARD, 2010, p.6). 74 No original: «Dans les familles adoptives paradoxalement les ressemblances sont tout aussi importantes dans la construction sociale de la parenté 117 Como visto a busca pelas mais diversas possibilidades de conexão, para além da semelhança física, ocupa um lugar privilegiado para justificar, ou fortalecer, os afetos já existentes entre os familiares, como vimos entre Rebeca e Carolina, Anat e Noah, Vicente e Hugo, e Agatha e Sofia75. Miriam contou que seus netos tiveram boa aceitação na escola judaica, com exceção de uma única situação, que muito a aborreceu. Ela disse não perceber nenhum preconceito das demais crianças, famílias, corpo docente ou discente. É uma família que já convive numa palheta de cores: as crianças lembram muito sua filha, Anat, que era morena, como seu pai, de origem espanhol e moreno, Miriam é loura e branca, como seu filho Rodrigo. Gizele: E como foi a recepção na escola judia? Miriam: Sem problema nenhum, nenhum, nenhum. (...). Um dia em dezembro fomos para formalizar as coisas, e precisava, eu seria a avó assinando que sou a avó. Voltamos. Voltei. No primeiro dia de aula com diploma, olha aqui, eu com atestado de... Gizele: De avó Miriam: De nascimento, que já tenho netos, que tem dois avós. Passei por todo mundo. (...). Para não mentir assim, uma coordenadora virou, disse assim: que moreninha, que mulatinha clara que você arrumou! Em todas festas, vou botar ela para sambar no palco. Eu vou dar para ela porque ela deve ser ótima, já percebi que ela é artista, vai sambar, vai isso, vai aquilo,mas ela falou num tom, que eu nunca vi a Noah moreninha, nem mulatinha, nem nada, nunca pensei, entendeu? Para mim tanto faz, não sou preconceituosa. Segurei isso dias (...). cheguei para ela: Vamos conversar? (...). estou sem dormir, pela maneira como você falou da minha neta, não gostei, porque a pessoa não é só cor, a pessoa não é só aparência (...). Isac e Lea fizeram comentários sobre a cor de Carlos, elogiando sua beleza; e, ao mencionar a intenção de Felipe na escolha de uma escola judaica para o neto, percebo que o fato de ser um casal de homens é ainda maior fonte de preocupação com possível discriminação, para Lea, do que a cor de seu neto. Penso que a homofobia na comunidade judaica, com suas piadas jocosas, ainda é mais forte do que o racismo, que já tem um embate mais firmado no meio social. Lea: O Carlos é uma criança muito inteligente, muito inteligente, bonito. Gizele: Ele frequenta a família? Isac: O quê?? Você precisa ver ele com os primos! Lea: Normal; ele é muito querido, ele é muito pelas crianças. Gizele: Como os primos receberam ele? (Ela se levanta e busca um porta- retratos com foto dele). Que sorriso bonito! 75 Interessante como as técnicas de Reprodução Assistida (RA) nem sempre são colocadas em tensão com o tema da adoção ou consanguinidade, pois, de alguma forma, mimetizam uma reprodução sexual típica, embora coloque questões semelhantes. Para maior discussão, ver: BESTARD; 2009; RAMÍREZ-GÁLVEZ. 2011. E sobre a busca de uma herança étnica através de RA, ver: FONSECA, 2008; SILVA, 2013. 118 Isac: Ele é bonito. Esse cara vai ser artista. Ele é bonito. Neguinho bonito ele. Isac: Ele agora está procurando escola para ele. O menino é muito inteligente. Lea: Aí, ele falou para mim: mãe, eu vou botar... aonde eu boto? [Cita nome de escolas judaicas]. Eu falei eu não boto em lugar nenhum. Não bota em escola judia, não bota. Primeiro ele é moreninho Isac: Moreninho para... Lea: Moreninho. Segundo vocês são dois. Para que você vai arranjar problema? Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017) acreditam que pessoas com um racismo arraigado se cegam para a cor de seus entes queridos, negando-as. Mas acho importante assinalar que não percebi, da parte de Isac, Lea ou Miriam, uma negação das diferenças fenotípicas, como é assinalado de forma problemática por Schucman (2017) em famílias inter-raciais onde os “(...) sujeitos negam a negritude e perdem a possibilidade de desconstruir os estereótipos negativos atrelados ao signo ‘negro’.” (2017, p.451, grifo da autora). Gizele: Então a família toda foi tranquilo receber ele? Luna: Tranquilo. Gizele: O fato dele ser negro? Luna: Não, ninguém. Ele diz assim, disse um dia: vovô, eu sou marrom. Gizele: Marrom é tão bom! (rindo). Luna: Aí o Vicente falou: por que você é marrom? Então eu sou bege também. Sou bege. E o Leandro também diz que ele é marrom e o Leandro é bem moreno. Vicente e Leandro, avô e pai de Hugo, também não negam a cor do neto/filho e, por caminhos bem afetuosas, ajudam na inclusão da criança na palheta de cores da família e a desconstruir algo já muito arraigado que é pensar (e dizer) que existe uma cor determinada, chamada, erroneamente, de cor da pele, e que, não casualmente, é clara. Um exemplo de quão naturalizado pode ser a racismo, já que é uma expressão que muitos utilizam sem se dar conta do que está embutido nesta adjetivação. Nicholas, como apontado no capítulo anterior, mostra a apreensão com o passado e com as diferenças culturais da neta, que está vindo de uma cidade pequena para uma família transcultural e transnacional, embora enfatize uma positiva diferença entre ela e as crianças que estão em outros abrigos. Ao explicar suas preocupações, faz questão de me dizer que não dizem respeito à questão racial. Nicky: (...), mas preocupante foi as origens da criança, a bagagem que a criança trouxe. Enquanto a Isa estava visitando abrigos no Rio, eu fiquei muito preocupada porque as crianças têm realmente muito bagagem. 119 Nicky: [E depois, comparando a neta]: Ela criou uma estrutura para ela mesma, que eu acho que fez uma diferença na vida dela. Ela é diferente dessas crianças dos abrigos aqui no rio. Ela primeiro estava na série certa para a idade dela, ela está com 13 anos na 8ª serie; segundo ela fazia aulas de canto, ela gosta de cantar. Ela faz aulas de caratê, pertencia a um grupo de ajuda na igreja. Agatha: (...). Então em termos da Sofia o que eu espero que ela conhece isso tudo e depois ela faz a decisão dela. Gizele: A decisão dela. Agatha: Daquilo que ela quer fazer, daquilo que ela quer aceitar, daquilo que. Gizele: Mas como ele? Você acha que? Como ele? Você? quer que ela receba essa bagagem? Agatha: Sem dúvida, aos poucos. Nicky: Eu não considero bagagem, essa história. Gizele: Bagagem é tudo que você traz. (...), não bagagem do sentido do pesado, mas do que você traz. Nicky: Mas tem pesado, tem pesado porque as nossas vidas como judeus, na China, os pogroms, o holocausto, família de minha mãe foi morta, tem esses pesos. Eu penso que como a gente vai explicar o Pessach para ela. Tem um lado interessante porque os judeus naquela época, provavelmente, eram da cor dela. Gizele: Sim. Nicky: Mas, e a história talvez seja interessante, se a gente achar em português, uma história do Êxodos para ela ver, apreciar. Nicholas mostra incômodo ao meu uso da palavra bagagem, pois enquanto eu me refiro ao arcabouço cultural da família, ele se remete ao povo judeu. Parece que para ele esta palavra, já utilizada em outro momento, tem numa conotação forte e negativa. É possível que também haja algum desentendimento por conta de sua língua dominante ser o inglês. Acho interessante que eles já estejam pensando no Pessach, visto que ainda falta cerca de seis meses para esta festa. E antes disto ainda tem o Natal e o Chanuka, que Agatha conta que também já está sendo planejado. Quer dizer, mostram-se preocupados e empenhados na inserção da neta em sua cultura e família, ao mesmo tempo em que não pretendem deixar de lado o que for importante para ela. Agatha: Eu acho que nosso primeiro teste para nós vai ser Chanuka e Natal, porque Natal ela conhece, Chanuka ela não conhece, como a gente vai juntar essas duas festas vai ser interessante. Gizele: Vocês costumam juntar essas duas festas? Agatha: Já juntamos. Nicky: Quando as crianças eram jovens, e sempre que a gente morava longe de família, comemorávamos com amigos que não eram judeus, então sempre tinha. E tínhamos uma tradição que todo ano a árvore era a altura da nossa filha, enquanto crescia. Agatha: Mas não durou muito a tradição (Eu e ela rimos) Nicky: Não durou. E nosso filho, ele primeiro pretendia vir para Chanuka, Natal e conhecer a menina naquela ocasião, dizendo olha, vai ser a primeiro momento de fusão das culturas, vamos marcar de uma maneira significante. E Isa disse: olha, pode ser, mas eu quero que você venha, eu quero que ela conhecesse você logo no início. 120 Gizele: Antes? Nicky: Então ele veio. A junção de Natal e Chanuka é bem comum em casamentos mistos, onde somente um membro do casal é judeu; mas ter uma árvore em casa, como citam, eu me arriscaria a dizer que não é nada comum em famílias como onde ambos são judeus. Bem interessante assinalar, a partir do comentário de Nicholas, que há judeus de origens diversas e biótipos variados. Pode-se perceber isto em todas as comunidades, quando há judeus oriundos da Europa, da Península Ibérica, ou dos Países Árabes, mas, especialmente em Israel, onde se encontram judeus vindos de todos os cantos do mundo. Assim, apesar de a imagem do judeu, mais comum e naturalizada, ser alguém de pele muito branca, o que corresponde à descrição mais comum do perfil de crianças desejadas no Brasil, outros fenótipos podem aproximar fisicamente pais e filhos,como inclusive é o caso dos netos de Miriam, como já mencionado. É de se supor que nos casos em que há marcante diferença de traços e/ou cor da pele, entre crianças e adultos, a adoção esteja evidente; porém, na família de Guita, apesar destas distinções, ela nem sabe ao certo se filha e genro falaram com Gabriel a respeito, como ou quando. Posicionamento com o qual não concorda e, de alguma forma, credita às dificuldades do neto em se adaptar meio ambiente diferente em relação às suas características físicas. Guita: (...). Eu falava para a Beatriz: Beatriz, o problema é que vocês não contaram para ele. Ai a Beatriz escreveu, tinha um CD, ela gravou uma história, a história da vida dele, contando como eles que foram buscar, que ele era filho do coração, aquelas coisas que você fala para o adotado. E ele, mas ela não conseguiu mostrar, o marido não queria. Acho que levou anos. Eu sei que na época. Acho que nunca chegou perto e falou você não é meu filho. É claro que ele soube depois. Guita: (...). Acontece que eles pegaram essa criança achando que era branca, não era, era mulata. Quer dizer, quando ele era pequeno, ele era branquinho. Gizele: Qual o nome dele? Guita: Gabriel Gizele: Quantos anos ele tem agora? Só para eu ter uma ideia. Guita: Uns 19 anos. Ai ele, botaram na escola [judaica e religiosa] e a (...) Beatriz não disse, eles tinham um problema para dizer que ele era adotado, os dois. Gizele: Mas a família sabia? Guita: Todo mundo sabia. Guita tem o relato mais forte no que diz respeito às dificuldades colocadas pelas diferenças raciais como algo que possa ter impactado negativamente a inclusão do 121 neto no ambiente social judaico. Mas acresce suas dificuldades ao fato que os pais de Gabriel nunca assumiram publicamente a adoção, lidando sempre de forma fugidia com as informações, seja perante a escola ou a sinagoga, ou mesmo perante o próprio filho. Gizele: Ele fez Barmitzva? Guita: Olha só, o Barmitzva foi outra história. Tudo com eles é assim meio enganoso. Ele, o pai do Roberto, era diretor, já faleceu, era diretor daquela sinagoga (...). Que é muito ortodoxa. Então, começaram, aí quando ele foi tratar do Barmtizva, lá começaram a exigir um papel que eles não tinham, a certidão de casamento deles, eles tinham; uma certidão aí que eles não tinham. Gizele: Os pais? Guita: É. Aí não quiseram fazer. Ai, não sei como, o Roberto fez alguma confusão lá, que conseguiram que fizesse o Barmtizva lá, mas sem o rabino, foi com outra pessoa, um ajudante de rabino, não sei nem quem era, uma pessoa que reza, que rezava. O Barmtizva foi lá. Toda esta narrativa sobre o Barmitzva é bem confusa. Não estou certa se ela conhece os detalhes, já que foi encaminhado pelos avós paternos. O que ela sinaliza, ao meu ver, é um padrão dos pais de Gabriel em conseguir as coisas de forma pouco clara, na tentativa de não assumir a adoção. São pensamentos e preocupações que Guita divide comigo de forma franca. A partir das ideias Schucman (2017) sobre os efeitos da negação familiar, pode- se pensar que Gabriel não criou estratégias para lidar com o preconceito que enfrentou na escola, já que “(...). a família é um espaço privilegiado para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da violência racista vivida na sociedade de forma mais ampla, mas também o lócus de legitimação e vivência racistas.” (SCHUCMAN, 2017, p.439). Guita: Eu acho que ele não se identifica [com o judaísmo]. E eu acho que o negócio da cor, eu acho que ele entrou para essa turma [de traficantes] porque era gente da cor dele. Gizele: Mas você se lembra se você ficou preocupada com alguma coisa? Dele ser adotado? De como que ia ser assim na comunidade isso? Guita: Ah, nem me passou pela cabeça isso. Não, primeiro eu pensei que ela ia adotar uma criança branca, porque eu acho que os problemas dele todo é de cor. Gizele: Você acha? Guita: Eu acho que essa turma que ele pegou é negra. Gizele: Mas para sua filha foi um problema ele ser de cor? Você acha? Guita: Não, não acho. Gizele: Pro Roberto foi um problema? Guita: Não, não foi. Gizele: O problema foi o entorno? [a comunidade judaica]. Guita: O entorno. Gizele: Dentro da família com os tios, com os primos, como foi o Gabriel quando ele chegou assim? Guita: Ele não é um menino sociável assim. Ele, graças deus, ele tem vindo ao Shabat, mas graças a mamãe aqui, empurra. 122 Apesar de todas estas dificuldades, a adoção é vista como uma possibilidade positiva por Guita, tanto que ela fez essa sugestão para outra filha que só conseguiu ter um filho biológico: Guita: (A Yasmin) teve um menino, que ela queria ter mais filhos (...) resolveu fazer parto natural. Ai, esse parto natural estragou um pouco a vida dela porque passou da hora do menino nascer, ela teve uma porção de complicações (...). Ela estava doida para ter filhos, acabou fazendo inseminação (...) Gizele: Ela tentou depois de ter esse filho? Guita: É, mas não conseguiu. Eu até falei para ela, adota. Mas não adotaram não. Ficaram só com esse menino. Antes de finalizar é interessante esclarecer que, em várias famílias, só tive conhecimento de como eram as crianças fisicamente ao ver as suas fotos (por vezes no final da entrevista), e o tema das possíveis diferenças fenotípicas entre seus membros não surgiu na conversa, me impedindo de estender, e entender, o assunto para com todos os avós. Guimarães (2003) assinala justamente que os pesquisadores precisam estar atentos aos discursos que os atravessam, bem como aos seus também são entrevistados porque “(...) qualquer categoria só faz sentido no interior de um discurso, no nosso caso, racial; quando nos deparamos com uma resposta sobre identidade, temos que investigar qual o discurso que está orientando as respostas.” (GUIMARÃES, 2003, p. 106). Fios que ficaram ainda pouco desfiados, a espera de novas investidas. 123 4 FIOS FAMILIARES: ENTRE RELIGIÃO, CULTURA E AFETO Transmitir identidade judaica a um filho adotivo significa torná-lo parte de uma genealogia e imprimi-lo em uma memória coletiva (..). Sophie Nizard Como vimos até aqui, falar de família é contar histórias: densas e intensas. O tema deste trabalho une fios, de antes e de depois, do encontro dessas crianças e desses adultos, através da adoção, formando famílias. Para construir as relações com filhos e netos, os avós se reportam às suas próprias histórias, de infância e juventude, muitas vezes, norteadas pelo judaísmo como fio condutor. As famílias de origem dos entrevistados estiveram bastante presentes nos relatos: comentários a respeito de pais, avós e família extensa vieram atreladas a temas como filhos, festas, conquistas pessoais e profissionais, dificuldades diversas e judaísmo. Um contraste que aponta, de certa forma, para uma oposição de valores entre os diferentes passados, como se a história de vida dos avós fosse imprescindível para adensar o ser-família, e a dos netos, não. Valorizar a família de origem, e/ou as instituições por onde as crianças passaram, parece ameaçar o objetivo principal, que é viver (n)a família atual. 4.1 Continuidade e tradição Malka: Meus pais imigraram da România trazidos por um tio meu. Sabe, as famílias faziam assim: vinha um, veio um irmão da mamãe casado (...). Ganhavam um dinheirinho. A preocupação deles era só ter para a comida e ter dinheiro para trazer um familiar. Então este tio trouxe meus pais e a mim, com um aninho. E a gente convivia assim conhecendo os avós paternos e maternos através de cartas e o que os pais contavam para a gente, ne? Gizele: Para a Sra. o que é família? Sarah: Família é isso. É isso que a gente tem. Todos lutando para o bem comum. Ajudando o que precisa, o que precisa ajuda o outro, em termos, ne, vamos ver, tomara que seja, ne, assim: quando um precisa, a gente ajuda. Um aspecto marcante das famílias judiasentrevistadas é justamente a importância da família como rede de apoio, sustento, cooperação, que não somente no século passado, mas também hoje, mantém seu valor. Apesar das mudanças nos padrões de relacionamento, estabelecidas pelas melhores condições 124 socioeconômicas, distancia geografia, maior individualidade, entre outros, hoje ainda é possível perceber a valorização, em algumas famílias, da residência próxima, do trabalho conjunto numa empresa familiar, ou da permanência/continuidade numa mesma profissão. A transmissão é parte fundamental da função parental. Todos os pais desejam transmitir a seus filhos aquilo que eles acreditam, seus valores, suas práticas e ainda mais uma parte de si mesmo. Como parte de si, eles transmitem também uma inscrição numa genealogia familiar, eles transmitem uma memória. Eles constroem uma continuidade (...). (NIZARD, 2011b, p.179-180)76 O desejo de continuidade e proximidade que atravessa gerações inclui a preservação e partilha de determinadas memórias. Os avós falaram de suas próprias famílias, de seus pais, avós e até de familiares mais antigos, que muitos nem conheceram pessoalmente devido à distância ou às guerras. Ouvi relatos sobre a motivação de vir para o Brasil, as dificuldades do deslocamento e da chegada, as perdas materiais e as famílias deixadas além-mar. A geração, nascida ou criada aqui, foi descrita como um trunfo, fruto da liberdade, de (re)construção familiar e sucesso profissional, com realizações de diversas ordens. Todos nós, imigrantes e filhos de imigrantes, temos uma memória que se estende além de nossas próprias vivências. É a Memória das experiências ouvidas, narradas por aqueles com quem convivemos. Nossa vida é acrescida de outras emoções, tensores, esperanças (...). Observei que pessoas de origens nacionais distintas trouxeram na bagagem outros costumes, valores, sofrimentos, alegrias, parentescos, antigos e visões políticas. Contudo, uma experiência era comum a todos: pobreza e perseguição. (BLAY, 2008, p.26). Tais descrições, sobre a história da família e dos antepassados, estão fortemente atreladas à herança de um modo de ser família: que coopera, que se junta, que se encontra, que convive de forma estreita, com valores que estão conectados a um estilo de vida, com respeito, união e ajuda mútua. Os avós falaram de tensões e desentendimentos também: muitos relataram histórias difíceis de decepções, brigas e rupturas familiares. Em toda esta coleção de memórias, o que importa são os valores 76 No original : « La transmission fait fondamentalment paartie de la fonction parentale. Tout parent souhaite transmettre à ses enfants ce en qoi il croit, ses valeurs, ses practiques, plus encore une parte de soi. Avec cette part de soi, il transmet aussi une inscription dans une généalogie familiale, il transmet une mémoire. Il construit de la continuité (...). ». 125 que são transmitidos em cada passagem, seja ela edificante, alegre, triste ou catastrófica77. Lea: Acho que [família] é tudo. Acho que é. Eu nunca parei para pensar. Mas eu acho que é uma vida. É uma, não sei se é porque eu presenciei isso na casa dos meus pais, na casa dos pais dele, é uma continuidade. Isac: Moral da história: quero mostrar para você o sentimento, o negócio de família. E aqui meu pai fazia questão. (...). Então esse espirito de família. (...). Então meu pai tinha muito este espirito na família, ele aglutinava, mesmo na Argentina. Gizele: Que é o que vocês fazem hoje, ne? [Me referindo ao grupo de mensagens do WhatsApp que ele me mostrou]. Isac: É o que a gente faz, aglutina. (...). Então aquele negócio de família. Estou provando a você que existe um berço. O meu pai também tinha e todos os outros têm. (...). Então esse núcleo família existe. E eles estão mantendo, entendeu? Gizele: O que que é família para você? Miriam: Como eu eduquei, como eu acredito, né: é um faz pelo outro, todos somos um pelo outro, sem distinção. As festas judaicas o que eu mais sinto falta é uma mesa cheia. Por isso que a Anat quando fazia as festas, botava 20 pessoas, porque ela sabia o quanto era importante para mim isso. Basicamente é isso: um dá para outro, estar lá para o outro. Gizele: O que que é família para você, Debora? Debora: Eu acho que é uma coisa importante, eu sempre tive uma família muito [inaudível], eu tive uma avó, que eu me lembro que eu morava, quando eu nasci morava no subúrbio. Gizele: Aonde? Debora: Todos os Santos, Méier, morava na rua Jacob Bonifácio, Todos os Santos. É uma estação depois do Méier. E eu ia todo final de semana para casa da minha avó. Isso eu não vou me esquecer. Eu era pequena. Malka: Sabe? E também esqueci de te contar. Quando meus pais imigraram, vê se hoje você entende isso? Três casais com filhos morando na mesma casa, daí essa minha...(...). Imagina, cunhadas convivendo. Eu não me lembro de grandes alterações de comunicações, assim, vamos dizer que a gente chama brigas, não. Grandes, não. Mas claro que tinham opiniões diferentes. As vezes a gente dizia: pai, por que você está gritando com o tio. Sabe? Chamando a atenção do outro. Essas lembranças eu tenho. Gizele: (...). O que que é família para você? Agatha: Ah, superimportante, a família era muito pequena, ao contrário dele, e a gente vivia numa família nuclear, no sentido que dependíamos um do outro (...). Como qualquer família tinha tensões (...). Então, família para mim é muito importante. E ser judia neste sentido é um sentido judaico, de preservação. 77 O judeu também tem fama de ser muito dramático, principalmente, as famosas mães judias, então segue uma piada: Jacó telefona para sua mãe. Ela atende. - Quem fala? - Sou eu, mamãe. Você está bem? - Estou ótima, meu filho. - Como? Está mesmo bem? - Sim, estou. - Desculpe, madame, deve ser engano. A senhora não pode ser a minha mãe. 126 Os avós descrevem um tempo em que as relações familiares não estavam tão restritas à família nuclear, como são mais comuns hoje em dia, em nossa vida urbana e acelerada, possivelmente porque eram imigrantes, numa terra desconhecida, ainda com poucos contatos sociais. E também porque os meios de comunicação eram mais caros e escassos, tornando os encontros pessoais mais constantes e significantes. Sarah: Eu morava no Leme. Aí ficamos lá até o Davi completar uns 10 anos. Ai a gente veio para cá. A mamãe foi para lá que era menor. (...). Minha mãe me ajudava muito. Gizele: Com as crianças? Sarah: Com as crianças, ela vinha aqui sempre, para dar uma olhada, vinha aqui sempre. Ficava com eles também. Gizele: Era uma avó presente? Sarah: É, minha mãe era muito presente. E também ajudou muito a minha irmã. Isac: Família é família. (Eu rio). É o conjunto que faz você crescer. Lea: É convivência, é amor, é carinho, é respeito. A família foi descrita, principalmente, pelos seus aspectos positivos, seja quando falavam do passado ou do presente. Roudinesco (2003) afirma que apesar de todas as mudanças ocorridas nos últimos anos, a família continua a ser reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Segundo a autora, a família “(...) é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.” (ROUDINESCO, 2003, p.198). Gizele: E assim, a família, o que que é família para você? Guita: A família, no momento, é tudo, ne. (...). E eu agora estou numa fase, por isso que eu digo que família é importante que eu pretendo viajar só com os meus filhos. (...) Pensei, eu, todo ano, no meu aniversário, eu comemoro com, eu levo meus filhos para algum lugar (...). Vai todo mundo. Gizele: O que que é família para vocês? Luna: Difícil responder assim com poucas palavras Vicente: Não tem definição nenhumanão. Negócio tão instintivo que não tem definição. (Rindo). Luna: É. Sei lá. Não sei. Gizele: Não sabe? Luna: É um carinho que a gente sente um pelo outro, os filhos. Essa história toda que eu te contei aí, foram nascendo os filhos e eu procuro sempre juntar, sempre juntar. Porque eu também acho que quando a gente não tiver mais aí, eles não vão ter tanta chance de se encontrar Vicente: Nem quem faça o imposto de renda (...). Luna: Eu sei, estou consciente já: há anos que eu faço isso, que eu planto neles coisa para eles terem lembranças, da família, de como havia reuniões, não só os filhos, como os netos também. E eu acho isso muito bom. E eu acho muito gostoso, quando eu lembro da casa (...). E a mãe dele também que reunia. 127 Gizele: Hoje o que é família para a senhora? Rebeca: Família? Ah, da família é muito importante. Família é essa coisa (...) Família, eu sento com ela e começo a falar do avô, da avó que ela não conheceu. Como é que era, como que não era. É uma ligação, com as meninas, família quando junta. Está vendo este apartamento? Eu tinha mesa lá no Flamengo para 12, 14 pessoas, essa aqui mal dá seis. Mas vem todo mundo para cá. É uma bagunça (...) Gizele: Família então é ligação, é festa? Rebeca: É ligação, é festa, é ajuda, é participar da cabecinha de cada um, ne? Problemas de cada um. Para os avós, ser família é, principalmente, cuidar e se preocupar com o outro, manter uma relação de afeto e ajuda, para o crescimento e a realização mútua. Família é ter, e manter, espaços para se encontrar, se reunir, compartilhar histórias, semear valores. Os encontros familiares tornaram-se menos frequentes por múltiplas razões: as pessoas têm menos tempo, moram mais longe, podem se comunicar por outras vias. E, talvez, por isso, estes encontros, quando acontecem, tenham se transformado no cerne da vida da família extensa. Uma espécie de pilar. Os encontros são menos frequentes, temos mais prazer com eles. As atividades realizadas em família estão mudadas. Os atos da vida cotidiana eram realizados em conjunto. Hoje se organiza atividades centradas nos reencontros. (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005, p.12-13)78. Lea: O meu sobrinho de Israel esteve aqui com a família. Então eu fiz um jantar. Isac: Um lanche. Lea: Um lanche, então, veio todo mundo, ele [o neto adotado] pinta e borda. Ele e o Bruno, o menor da Miriam. Isac: Ele idolatra o pequeno. Lea: Eles tiram todas as almofadas. Isac: Como era na casa da minha mãe: quando eu era pequeno, briga de travesseiros. Lea: Briga de travesseiros. Eles se sentem. Isac: Eu digo, Lea, deixa, que é isso que vai ficar. Debora: Para mim família é uma coisa muito importante, eu acho que é uma coisa muito bacana, não sei se... Eu fui criada em família. Eu tive uma avó, a mãe da minha mãe, e ela reunia a família todo sábado. Todo mundo ia para casa dela: filhos, netos, as irmãs, os genros, tudo, cunhados, todo mundo ela reunia. Não pensa que era banquete não. Eu sempre digo isso para os meus filhos. Era café com leite, pão, manteiga, queijo, bolo. (...), mas eu nunca esqueço a minha avó e ela reunia a família inteira. Eu era muito ligada e os primos todos moravam ali em volta da minha avó. Agatha: (...) eu digo que a minha religião é gastronômica (eu rio), porque minha mãe, minha mãe trouxe toda a tradição, e eram judeus da Sibéria, muito pegados à religião. Minha avó era muito, muito religiosa, ortodoxa, e faziam comidas, todas as comidas judaicas, principalmente para os grandes feriados. 78 No original: « Les rencontres, si elles sont moins fréquents, sont moins contraintes; on y prend plus de plaisir. Les activités réalisés en famille sont transformées. On efectuait naguère les actes de la vie quotidienne ensemble; on organise aujourd´hui des activités centreés sur la reencontre. ». 128 Nesta manutenção/exaltação dos personagens do passado, pode se perceber o destaque que é atribuído às avós. Elas servem de exemplo para um modelo que se quer perpetuar, que abarca cuidado, amor, e, principalmente, a responsabilidade a respeito dos encontros familiares, onde as relações se atualizam, se mantêm, e fios de afetos, novos ou antigos, são tecidos. Sem falar na possibilidade de a casa da avó ser um terreno que se propõe mais “neutro”, quando há diferenças, discórdias ou rupturas. Lembrar dos avós quando se abrem para falar de si mesmos como avós é o momento da integração de dois pedaços de um ciclo de vida. Eles esperam repetir um modelo fundado nas ideias de transmissão de valores, abrindo espaço para que um pouco de si próprios sobreviva em seus netos, assim como eles carregam consigo as marcas de seus avós. (BARROS, 1989, p.36). Julien, Bureau e Brumath (2005) apontam várias pesquisas, de diferentes países, que demonstram que as avós têm maior presença que os avôs, não somente no auxílio, mas também no apoio emocional. Elas também mantem uma relação mais afetuosa com os netos - as marcas do cuidado com as relações se mantêm, em nossa sociedade, atreladas ao feminino. Cuidado que também se traduz pela comida preparada com esmero. A refeição familiar é uma constante na memória das famílias. Para nós, judeus, ela é uma marca indelével, pelos pratos típicos de cada festividade, pela abundância, pelas recordações que suscitam: costumes, rezas, músicas, melodias, piadas, anedotas, embates, entes queridos, lugares perdidos no tempo – enfim, afetos, traduzidos em imagens, cheiros e gostos. Isac: E não só, e a minha mãe e o meu pai, eles não me ensinaram ídiche, religião, mas a casa era judaica. Lea: Exatamente: casa judaica. Gizele: Quer dizer uma casa que tem festas, que faz Shabat. Vocês fazem Shabat? Lea: A mãe dele fazia e depois ela parou. Isac: A minha mãe fazia. A gente acende as velas, comemora. Gizele: Qual o legado que a Sra. acha que está deixando? Que quer deixar para esses netos todos? Sarah: Olha, fico feliz de eles terem continuado a religião judaica. Todos os três fazem Shabat. Ninguém é religioso. Gizele: As três famílias? Sarah: As três famílias fazem Shabat. Na casa de um, na casa de outro. O Marcelinho também faz questão de fazer lá. Eu gosto de ver. Além da importância do encontro, símbolo da união familiar, para os avós, ser família é estar ligado à tradição e à cultura judaica, é passar adiante valores culturais 129 que receberam e que desejam transmitir. É dar continuidade aos costumes. Quitutes e lembranças que remetem aos antepassados, e formam um baú de memórias, de onde se é possível sentir os cheiros, lembrar os gostos, ouvir as vozes, os risos ou os silêncios, como me aconteceu, algumas vezes, ao ouvi-los e me lembrar da minha própria vida, minhas histórias, minha família. Assim, estar à mesa é estar em família. Ou estar em família é, muitas vezes, estar à mesa. Finalmente, no momento atual, chamado por alguns de pós-modernidade, mudanças radicais nos estilos identitários seculares vêm ocorrendo. (...) que, aliás, não ocorre exclusivamente entre judeus, de recuperação e recriação da tradição, (...) estas manifestações aparecem hoje como parte de um passado idealizado. Cultivar ligações com o judaísmo significa, na atualidade, consumir um ou outro produto cultural de um vasto cardápio de bens simbólicos. Estes podem se expressar, por exemplo, na participação em festas e rituais religiosos; no consumo habitual de comida judaica adquirida em delicatessen da moda (...). (SORJ, 2008, p.59, grifo do autor) Portanto, em muitas famílias as práticas religiosas deram lugar a tradições de como fazer: onde jantar, o que comer, como se vestir, várias delas advindas das restrições alimentares de cada data, ou do simbolismo ligado à cada comemoração. Mantiveram-se algumas regras e alimentos, mesmo quando os motivos se descolaram, e se afastaram, dos preceitos religiosos. No Shabat,chalot79 e velas; no Ano Novo, bolo de mel e roupa branca; em Pessach, matza80; ... Alimentos, melodias ou tradições, encontrados nas mesas das famílias judias ao redor do mundo, e no transcorrer dos tempos. Traços de memória. A memória - o retorno da memória oferece à identidade judia novos meios de expressão. Investir nisso aparece como uma compensação para o vazio deixado pelo abandono das formas tradicionais da vida judia. Esse novo interesse por tudo o que é “reconstituição da memória” quer ser testemunho e afirmação, por outras vias, da fidelidade ao judaísmo e sua herança. (AZRIA, 2000, p. 208, grifos da autora). Importante frisar que as famílias entrevistadas possuem formas distintas de participação cultural ou religiosa na comunidade. Muitas frequentam sinagogas, mas não todas; muitas fazem Shabat, mas não todas, muitas conhecem as tradições, mas não todas. No entanto, todas manifestaram que através da vida judaica, seja lá o que isto queira dizer para cada uma, a família se mantém como família, principalmente através dos encontros e celebrações. 79 Pão em forma de tranças que se costuma comer no Shabat, geralmente acompanhado de uma reza que agradece pelos alimentos. 80 Espécie de bolacha, sem fermento. 130 Portanto, seja religioso, ateu, tradicional, cultural ou o que for, contar histórias, transmitir valores, repetir costumes faz parte do ser família, e principalmente do ser- judeu para as famílias entrevistadas, e muitas outras, eu diria. Percebo um movimento que ocorre como um zoom, às avessas: que parte de uma pessoa, para uma família nuclear, para sua família extensa, ascendência, segmento de uma comunidade, componente de um povo, elemento da humanidade. Chamamos de tradição (...) o conjunto de representações, imagens, saberes teóricos e práticos, comportamentos, atitudes e etc. que um grupo ou uma sociedade aceita em nome da continuidade necessária entre o presente e o passado. (HERVIEU-LÉGER, 1993, p.127, grifos da autora)81. Dinah: Não. Nunca foi. Eu nunca... eu sou uma pessoa light. Eu sou judia, mas não sou fanática. Frequento a sinagoga sim, só nos Iom tov82. Não sou de sinagoga. Gizele: Aonde a senhora vai? Quando a senhora vai aonde a senhora vai? Dinah: Eu vou no mais perto. (...). Eu comemoro. Eu sou tradicional, eu não sou religiosa. Eu sou, eu acho, eu tenho a consciência que eu sou obrigada a comemorar por causa dos meus netos. A minha família é uma família (...), agora, tem um parêntese. Eu venho de uma família tradicional religiosa. Eu tive um sogro morando comigo mais de 10 anos, religioso. (...). E depois que eles se foram, acabou. Eles levaram a religião com eles, mas eu faço questão. E as minhas noras são muito inteligentes, são pessoas muito compreensivas. (...). Na casa dos meus filhos não tem religião, nenhum dos dois. E te digo uma coisa, não por causa das minhas noras, por causa dos meus filhos. Meus filhos mesmo (...) Dinah afirma a importância da transmissão judaica aos netos - o cerne de uma cultura que sempre valorizou a transmissão oral. O judaísmo é constituído pela memória de gerações, em que os mais velhos têm a obrigação de transmitir os conhecimentos para os mais novos, o que demonstra a importância que se atribui ao ensino e a educação83. Nizard (2017) assinala que no Talmude84 a pessoa que cuida, educa e ensina as antigas escrituras a um órfão está lhe oferecendo um novo nascimento, promovendo a transmissão de saberes ao posto de engendramento. A autora conclui 81 No original: “On appellera tradition, dans cette perspective, l’ensemble des représentations, images, savoirs théoriques et pratiques, comportements, attitudes etc. Qu’on groupe ou une societé accepte au nom de la continuité nécessaire entre le passé et le présent. ». 82 Iom Tov, literalmente dia bom, refere-se aos dias do Ano Novo e do Perdão, feriados considerados de maior importância na prática religiosa por muitos judeus, mesmo os não praticantes. 83 Numa série israelense, disponível atualmente no Netflix, chamada Shtisel, um avô ortodoxo é processado, num tribunal rabínico, por sua filha com quem rompeu relações quando do seu casamento com um homem de outra linha religiosa ortodoxa, por sua ausência na obrigação como avó de transmitir aos netos os ensinamentos religiosos. 84 Talmude é uma coletânea de livros que apresenta discussões rabínicas relativas às leis, à ética, aos costumes judaicos. 131 que adotar, pela passagem mencionada (SANHEDRIN 19b), “(...) é criar não uma filiação, mas uma afiliação.” (2010, p.2)85, através do ensino do judaísmo. E ainda salienta que, deste ponto de vista, tanto o pai por adoção, quanto a mãe por adoção, são igualmente dotados do poder de transmitir seu judaísmo, realizando uma igualdade de gêneros. Por ser uma tradição de transmissão oral, debater e discordar é uma presença na vida judia por diferentes aspectos. Uma das práticas religiosas rotineiras é o estudo dos trechos bíblicos, realizados semanalmente durante os serviços religiosos matutinos do sábado. Nas escolas rabínicas, o estudo é sempre realizado, ao menos, em duplas, na busca constante dos diferentes olhares e interpretações; bem como um sistema de aulas dialético, de perguntas e respostas entre professores e alunos. Assim, estar em família é também discordar, debater. É criar bons embates. Há várias anedotas que dizem respeito ao gosto muitos de nós, judeus, pelas controvérsias e discussões, como: “dois judeus, três opiniões”86, o que aponta para complexidade do ser comunidade, em sua diversidade, mas também para uma tradição que valoriza o debate. A frase de Dinah também é interessante, pois ela se preocupa com a continuidade na geração dos netos, como se a dos filhos já tenha se dado por cumprida, com sucesso ou não. Dinah parece tirar proveito do fato que a relação entre avós e netos, uma geração alternada, tem como marca ser uma relação mais jocosa (RADCLIFFE-BROWN, 2013), onde imperam brincadeiras e descontração. E, eu acrescentaria, bolos, biscoitos... “(...) com os da segunda geração ascendente, avós e parentes colaterais, pode haver, e em geral há, um relacionamento de simples amistosidade e relativamente isento de restrições.” (RADCLIFFE-BROWN, 2013, p.90). O importante, dizem os entrevistados, é que a transmissão do judaísmo e seus valores aconteça: mesmo que pule gerações, mesmo que seja pelas festas, pelas comidas, numa fase mais tardia da vida dos netos... Para Hervieu-Léger (1993), a transmissão da memória coletiva define a modalidade através da qual o passado 85 No original : (...). c’est créer non une filiation mais une affiliation. ». 86 O que me faz lembrar a piada do náufrago judeu que, após dez anos desaparecido, é encontrado numa ilha deserta por um navio. O capitão encanta-se com as suas estratégias de sobrevivência, que incluíam a construção de uma casa, a confecção de redes de pesca e arpões e, para sua surpresa, duas sinagogas. “Duas sinagogas?”, pergunta o capitão, “Para que construir duas sinagogas se você está sozinho na ilha?”. “Muito simples”, responde o náufrago. “Uma é onde eu vou, na outra eu nunca colocarei os meus pés!” 132 convoca a comunidade a encarar o presente e o futuro, através de um conjunto de representações e práticas do grupo. Então ao realizar os encontros, comemorar as festas, fazer o Shabat, os avós estão apontando uma direção a seguir, aberta às mudanças e passível de oscilações. Isac: (...). Eu aprendi na minha vida que educar é dar exemplo. Não adianta dizer não fuma se eu continuo a fumar. Não adianta eu dizer não tenha amantes, se eu tenho. Não adianta eu ser bandido e careta, cheque sem fundo, se eu sou assim. Não adianta. Então é aquela história. Eu recebi, ela recebeu.Menos até. Mas sua mãe também fazia. Lea: O quê? Isac: Festas, jantares. Lea: Sempre fez. Isac: Não de religiosidade. Gizele: Não, de cultura. Isac: Tradition. Tradição. Minha mãe e meu pai que eu estava dizendo, faziam. Lea: E isso os três [os filhos] fazem. Isac: Os três fazem. Nicky: (...). Sobre a questão do judaísmo, sei que família, o conceito de família é muito importante para ela, eu acho que ela tem que conhecer o que é família para nós. E família para nós é a marca judaica. Gizele: (...) a Lilian, é criada como judia ou sem religião? Dinah: Na casa dos meus filhos não existe religião. (...). Agora, elas têm consciência da religião do pai. E tem orgulho. Eu vou te contar um caso. A Helena, ela está estudando naquela escola [cita uma escola católica tradicional] (...). Aí ela pedia os símbolos para mostrar em turma, no maior orgulho. A única judia e que tinha em casa. Um dia cheguei em casa: vó, me empresta o candelabro, vó, me empresta a Torah, eu emprestava, ne. E ela levava em sala e se achava a maior, ne(rindo) Gizele: Mas ela se considera judia (a Helena, neta adotada)? Dinah: Não. Os meus filhos não se consideram Gizele: A senhora considera ela judia? Também não? Dinah: Não. Gizele: Não. A Lilian também não? Dinah: Não. Gizele: A Ana também não? Dinah: Não. Quando elas eram pequenas, os meus filhos até levavam elas no kol nidrei87, mas agora não levam mais A força do judaísmo, atrelado ao conceito de família e de convivência, explicitada pelos avós, seja em suas famílias de origem, seja nas famílias de hoje, de certa forma me surpreenderam pela sua intensidade e constância. Acredito que isto me aconteceu porque eu, desde o início, me pretendia uma pesquisadora de famílias, não uma pesquisadora de famílias judias, apesar da restrição do campo. Eu pretendia alcançar com a pesquisa sentidos comuns, para além da minha comunidade, que atingissem este campo de estudos do qual me sinto parte. E também porque, de 87 Reza da primeira noite do Dia do Perdão. 133 alguma forma, não acredito que haja tantas diferenças entre as famílias judias e muitas outras, mas sim peculiaridades, muitas. A implicação do pesquisador, por sua vez, é um dos mais valiosos dispositivos de trabalho no campo, pois é a partir de sua subjetividade que fluxos irrompem, agenciamentos ganham expressão, sentidos são dados, e algo é produzido. (ROMAGNOLI, 2014, p.49) Acredito também que, neste quesito, meu pertencimento ocasiona certa invisibilidade das forças que me atravessam. Muitas vezes é mais fácil perceber aquilo que não é tão familiar. Na minha trajetória como judia, aprendi a valorizar o crescimento num lar judaico e a vivência nos espaços comunitários, através da escola, do movimento juvenil e da participação em congregação religiosa, sem me considerar religiosa. Teci uma vida, ligada à comunidade, às tradições e à cultura, sem me manter restrita ou circunscrita a ela, já que tenho inúmeras amizades e relações profissionais distantes deste meio. Mas, sem dúvida, sou, e me sinto, enredada pelo judaísmo. Assim, para os avós desta pesquisa, um dos aspectos fortes do ser família é a criação de um elo entre passado, presente e futuro, não com linearidade, mas com flexibilidade, como fluxo, onde, apesar das transformações, encontram-se possibilidade de confluências. O afeto que sentem pelos filhos e netos, a felicidade de ver a continuidade familiar, de perceber que alcançaram pontos de vida almejados, muda a perspectiva sobre a vida e transforma os possíveis obstáculos em novas posições. Na perspectiva genealógica a história não é constituída por uma sucessão de fatos cronológicos, que denotam progresso ou linearidade. A história é marcada por descontinuidades, caracterizadas por mudanças e transformações dos saberes e das práticas ali articulados. (ZAMBENEDETTI; SILVA, 2011, p.456). Ao enfatizar a importância do passado, os avós apontam que é possível construir uma gênese familiar também com os netos por adoção, onde a descontinuidade sanguínea não implica uma ruptura, mas cria um novo diagrama de forças. A transmissão de uma memória familiar “(...) não está em oposição a um reconhecimento da história da criança antes da sua chegada em sua nova família”. (NIZARD, 2004, p.128)88. 88 No original : « (...) n’etre pas en opposition avec une reconnaissance de l’histoire de l’enfant avant son arrivée au sein de sa nouvelle famille. ». 134 As tradições familiares e culturais oferecem, no meu entender, uma conexão, uma possibilidade de passagem, onde não somente os netos por adoção, mas todos os familiares podem se vincular ou reafirmar seu pertencimento; que também contemplam atalhos, retornos, bifurcações, novas conexões. “O judaísmo não é apenas uma questão de compromisso individual. Por mais pessoal que possa ser o envolvimento pessoal de alguém, o judaísmo sempre provoca uma ligação com o passado e com as gerações futuras.” (YISRAEL, 1994, p.90). Pais adotivos não rompem com a crença ocidental de que o vínculo biológico é elemento constituinte dos laços de filiação, do contrário, a maioria deles não se empenharia tanto em imitar a biologia. Mas a vivência da adoção e o amadurecimento acerca das experiências vividas os levam a enfatizar outras formas de vinculação que propiciam o fortalecimento de solidariedades duradouras inerentes à família. A união, o amor, a amizade, a disponibilidade afetiva de uns para com os outros, o apoio, a intimidade, a proximidade, o estar junto nos momentos de dificuldade são o que fazem um lar e uma família. (VIEIRA, 2004b, p. 154). 4.2 Religião, cultura e povo Uma das ideias semente desta pesquisa era saber se os avós consideravam seus netos por adoção judeus, porque considero-a fundamental para acionar a possível tensão provocada pela ausência de “sangue judeu”; e, assim, melhor compreender a tessitura desses novos laços. É uma questão que articula o cruzamento familiar e social, mas que também procura saber se há fios nesta trama familiar que possuem maior força: Os avós destacam alguns fios? Algumas conexões são mais fortes? Onde ancoram os argumentos? Eles flutuam? São plurais? Na minha trajetória pessoal, nunca questionei a condição de judeus dos meus filhos biológicos, o que demonstra que também carrego uma valorização da transmissão por laços de sangue - um tipo de filiação que é incontestável em nossa sociedade, considerada como natural. Embora eu não esteja, como família, somente atrelada a este aspecto, mas, especialmente, à convivência e à construção dos afetos, sua valorização me atravessa fortemente. E, diferente de um filho por adoção, que possui uma história, em parte distinta, a dos meus filhos biológicos se confunde com a minha desde sempre, o que justifica, parcialmente, o meu não questionamento. É preciso ressaltar que o fato de eu considerar e criar meus filhos como judeus certamente não impede que eles tenham um futuro religioso/cultural diferente, como 135 a sobrinha de Debora ao abraçar outra religião, o neto de Vicente e Luna, o filho de Rebeca, os filhos de Dinah ao se afastarem do judaísmo. Gizele: A senhora alguma vez pensou que a Maria não era judia? Sarah: Não, de jeito nenhum. Acho que a educação ne? O papel da gente (...). Acho que a parte educacional que é a mais importante, ne? Gizele: Que torna a pessoa? Sarah: Que torna a pessoa de um círculo, de um círculo familiar, né? Acho que é a educação. Ela foi educada dentro da comunidade judaica. Gizele: Não tem problema. Como você vê assim: eles são judeus? Como você considera o judaísmo deles? Miriam: Completamente. É impressionante porque eles vieram sem nada. Não sabe o que que era Jesus, não sabiam o que que era catolicismo, nada. Porque lá não havia religião. O que haviaé, de noite, Deus, me proteja, tinha uma reza, que até eles esqueceram, muito bonitinha, que até escutei uma vez eles, antes de dormir, falando, mas não era, nunca foram a igreja, sinagoga, nada. E a primeira vez que nós fomos para ambas, isso até me chamou atenção. Fomos para aquela sinagoga, primeira sinagoga em Pernambuco, e saímos de lá fomos conhecer porque eu adoro arte, essas coisas. Quando saímos da igreja, Noé falou: “poxa, que diferença!”, e olha que ele estava conosco dois meses, “eu sou judeu e notei que na sinagoga não tem uma imagem, não tem estatua, não tem nada. E os católicos está cheio de estátuas, e tem um homem que está sofrendo e sangrando e não sei o que.”. Tinha dois meses conosco. A maior parte dos avós mostrou certa surpresa diante do meu questionamento da condição de judeus de seus netos por adoção, como se não houvesse dúvida sobre isso, ou como se não tivessem nunca se interrogado sobre este aspecto. Alguns tiveram respostas rápidas que, quando tensionadas, era preciso buscar as justificativas embutidas, não tão fáceis de acionar. Outros demonstraram precisar de um tempo maior para refletir. Portanto, não era algo que sabiam, mas que sentiam a respeito de seus netos. Apesar de certa hesitação, ou de não fazer muito sentido a minha pergunta, a maioria dos avós respondeu de forma afirmativa. E, foram em busca de respostas mais precisas para demonstrar a certeza de que seus netos eram judeus: são criados num lar judaico, numa família judia, que se reúnem nas festas, por vezes, fazem Shabat; e além disso, vários frequentam (ou frequentaram) as escolas judaicas e/ou os movimentos juvenis e/ou as sinagogas. Justamente assim como eu frequentei e frequento! E/ou porque tinham uma família judia, assim como meus filhos! Estamos, portanto, diante de duas concepções simultâneas de linhagem: uma linhagem genealógica que passa pela filiação como princípio biológico, 136 uma linhagem simbólica que passa pelo conhecimento, o estudo, o ensino e a transmissão das leis. (NIZARD, 2010) 89 Com suas certezas, os avós apontam que não há dúvidas no que é considerado mais importante: os laços construídos pelos afetos, a convivência marcada pela transmissão de valores, o acesso ao patrimônio judaico. Um pertencimento à família, um pertencimento ao judaísmo. Nizard (2017) justamente comenta, em sua pesquisa, que os pais das crianças por adoção estão convencidos de que elas, ao se tornarem seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são parte de si, mesmo que este fato não seja reafirmado pela lei religiosa mais restrita. Com exceção de Sofia, neta de Nicholas e Agatha, todos os netos por adoção passaram pelas cerimonias religiosas, embora a maior parte dos avós desconhecesse as leis judaicas a respeito da adoção. O que estava em jogo, ao sentirem-se contentes (e realizados) que seus netos passaram pelos rituais judaicos, era o apoio aos filhos e a participação na formação de suas próprias famílias. E, consequentemente, receber o neto, inclui-lo nesse novo grupo, num novo registro, de uma nova história. Radcliffe- Brown (2013) sugere que para se compreender uma religião, é preciso concentrar atenção maior nos ritos que nas crenças, pois eles são os elementos mais estáveis e duradouros. Na pesquisa de Nizard (2011a), a maioria dos pais por adoção segue os passos da conversão90 dos filhos, mesmo os que consideravam que não tinham muito de judaísmo para repassar, mas desejam ser reconhecidos, juntamente com seus filhos, como judeus. A conversão (NIZARD, 2004), que é originalmente um ato religioso, se torna uma forma de reforçar a adoção, ligando a criança a um passado e construindo uma segurança para seu futuro. Miriam: (...). Eles são de mãe judia, pela religião o fato de serem educados por uma mãe judia, estar num colégio judaico, praticar as tradições basta. Eles são judeus. (...). A gente frequentava todas as sinagogas sem... Gizele: Vocês nunca tiveram? Miriam: Uma linha? Não. Linha religiosidade, entendeu? (...). Gizele: Eles não fizeram cerimônia de dar o nome? Na sinagoga? Miriam: Não deu tempo, não deu tempo. E como já vieram com nomes em hebraico: Noé e Noah Gizele: É incrível isso (rindo). Gizele: Para a senhora ele é judeu? 89 No original : « On est donc face à deux conceptions simultanées de la lignée : une lignée généalogique qui passe par la filiation comme principe biologique, une lignée symbolique qui passe par la connaissance, l’étude, l’enseignement, la transmission de la loi. » . 90 Somente para frisar que, como exposto no capitulo1, a passagem pelos rituais, no caso de criança adotada, funciona como um ato de conversão. 137 Malka: É Gizele: Por que? Malka: Porque ele fez a circuncisão, ele fez o Barmitzva, eu enxergo ele como judeu. E enxergo ele com todo amor, com todo carinho, que ele foi criado com dois judeus. Ele compõe toda a família judia. Gizele: Para a senhora isso dá conta dele ser judeu? Malka: Para mim, olha, para mim, o convertido não é considerado judeu? Por que que ele não vai ser considerado judeu? Ele passou o Britmilah e passou um Barmitzva. Gizele: E o que a senhora pensa sobre a Carolina, assim, a Carolina é judia? Rebeca: (...) Olha, Gisela, uma coisa que me espanta muito, a Carolina (...) tem paixão pelo judaísmo. Ela conhece o judaísmo. Estudou história judaica. Ela fala com qualquer adulto que entenda. Ela sabe muito mais do que eu. Ela me dá aulas. Ela ama, ela ama ser judia. É uma coisa assim fora do comum. Gizele: E para a senhora ela é judia? Rebeca: É, para mim ela é. Você pergunta assim. O Marcio não é religioso. Mas ele sempre foi às datas que se comemoram, sempre levou a Carolina (...). Mas ela tem um judaísmo, uma coisa fora do comum. Gizele: Então para a senhora ela é judia porquê ... Rebeca: É. Gizele: Qual motivo que você me daria, assim? Rebeca: Não, Gisela, você sabe que para mim ela seria o que ela quisesse. Não tem essa coisa. Gizele: Então ela é judia porque ela quer, na sua cabeça? Rebeca: Totalmente porque ela quer. Gizele: E você considera o Hugo judeu? Luna: Olha, ainda não. Ele fez o Britmilah. Ela fez questão. Gizele: Aonde? Luna: Na casa dela. (...). Gizele: Mas teve algum apoio de alguma sinagoga? Alguma coisa? Não? Luna: Não, ela não dá a menor bola para isso, e nós também não. Gizele: Mas quis circuncisar? (Com certo riso irônico). Luna: Ah, sim, quis. (...) o Leandro ainda não tinha pensado em adotá-lo, então a decisão era só dela. Gizele: Era só dela; e ela queria circuncisar ele? Luna: É, queria. Gizele: Quer dizer ela queria, ela quer que ele seja judeu? Luna: Quer, quer (...) Gizele: E você disse para mim que ainda não é judeu? Por quê? Luna: Não, não sei, não porquê.... nunca tinha pensado nisso. (eu rio). A reticência de Luna indica, como ela mesma explica, nunca ter pensado ou se preocupado com o assunto. Não se trata de contradição ou incoerência, e sim de algo que fica embutido numa forma de ser família, que não requer muita explicação, apesar de Miriam, Malka e Rebeca levantarem pontos chaves: ter uma mãe judia, passar por uma determinada educação, frequentar espaços comunitários/religiosos, sentir orgulho, conhecer o judaísmo, e, mais do que tudo, querer ser parte. Manter tradições, que com suas festas, comidas, melodias – magia e alegria - unem as famílias – este sim o mais forte dos sentidos. 138 Luna: Para mim isto não é fundamental não, sinceramente. Meus pais nunca foram religiosos, nós íamos, casados já, a Iom kipur. Hoje em dia nem vou mais. Meus filhos fizeram Barmitzva e uma festinha, mas não, eu sempre fui contra aquela coisa uau. (...). Gizele: Seus filhos também não são ligados? Luna: Não, não são ligados, mas Pessach, Rosh Hashana e Chanuka tem sempre um almoço aqui, a gente sempre fala de alguma coisa, a gente faz um pequeno... Gizele:Vem todo mundo? Luna: Vem todo mundo. Até há pouco tempo, até algum tempo atrás, eu fazia quase todo sábado um almoço. (...). Eu sempre tive muito prazer nisso, mas as forças vão diminuindo. (...). Gizele: De vez em quando você faz? Luna: Ah, faço, de vez em quando faço. Agora mesmo teve a última vez, última não, a mais recente, além do Chanuka. (...). Gizele: Você considera eles judeus? (Eu incluo os outros netos também que não tem conexão com a vida judaica, segundo me relatou) Luna: Olha eu não sei, está muito acima disso. O que eu acho deles está muito acima disso. (...). Não é importante para mim. Eu me sinto judia e acho isso importante, mas não com rituais. Eu quero que eles sejam judeus na ética e no comportamento, acompanhem os avós, o avô. Gizele: Mas você disse que gosta dessas coisas das tradições. Luna: Eu gosto, eu gosto da tradição, da tradição. Gizele: Isso você gostaria que mantivesse na família? Luna: Gostaria, gostaria muito, mas eu não sei se vai continuar depois de mim não, mas eu quero deixar marcado na cabeça deles isso. É uma intenção mesmo. Gizele: O Hugo, então, você disse que não sabe ainda, vai depender da trajetória dele? Luna: Olha, eu não sei, eu acho que eu respondi muito precipitadamente, porque (rindo) ele chega da escola cantando aquelas músicas (eu rio), Chanuka e Pessach. Gizele: Vou voltar uma pergunta, que eu fiz para ela lá atrás, que é uma pergunta importante na minha pesquisa: você acha que o Hugo é judeu? Vicente: Com certeza. Luna: Que bonitinho! (Rindo) Vicente: Eita! Não tenho a menor dúvida! (rindo) Gizele: É? Vicente: Claro! Gizele: Por quê? Vicente: Primeiro porque ele está na escola ídiche, então ele sabe o que que é isso e tudo; e ele se considera judeu, esse que é o negócio todo. Dos meus netos, ele se considera judeu e só tem um que não se considera judeu. A complexidade do ser judeu – cultura, religião ou povo - também se reflete na vida das pessoas. Em tramas. E há algo forte que se encontra na esfera de um sentimento pessoal de pertencimento, muitas vezes, intraduzível em palavras, mesmo que haja boas justificativas. É um “sentir-se judeu!” Possivelmente seu sentido maior, para muitos de nós, está atrelado a experiencia do familiar, como bem disse Nicholas: “(...) família para nós é a marca judaica.”. As cerimônias religiosas funcionam como os encontros familiares, conectando o passado do povo, de seus próprios pais, avós ou bisavós, à família de hoje - mesmo 139 quando se percebe afastada do judaísmo como religião - fortalecendo os afetos, costurando os fios e celebrando a vida. Portanto, compreendo que, pelo olhar dos avós não são os rituais que tornam os netos judeus, mas por serem judeus devem passar pelos rituais. “Como toda cultura, o judaísmo ritualiza as etapas da vida.” (AZRIA, 2000, p. 89). Esta inversão, se podemos chamar assim, é uma potente pista para entender o que vem se configurando, nesta pesquisa, como uma família judia. Sophie Nizard (2011b) afirma que a entrada da criança na memória da família por adoção é um ponto fundamental. A família ao receber a criança tem desejo de incorporá-la a sua história e aos seus costumes. O que não me parece que é diferente do que acontece com um filho biológico, mas pode ser que a importância desse “mergulho” nas histórias91 e herança familiar ocorram de forma mais intensa. Quando os pais por adoção são judeus, as questões de integração ao seio da família são somadas à integração ao seio do grupo, do povo. A transmissão familiar se acompanha, então, de uma transmissão de uma memória judaica. Mas como transmitir essa memória que não é do seu meio biológico? Nomear, circuncisar, converter, recontar histórias da família, recitar os ritos de seu povo, fotografar e colocar em cena a imagem da família, reforçando na casa da criança e nas casas dos parentes o sentimento de pertencimento a uma família por adoção e ao povo judeu. (NIZARD, 2011a, p.83)92. A adesão aos rituais, de forma naturalizada, encarando-o como tradição e não necessariamente atos religiosos, como etapas da vida a serem cumpridas, não são exclusivos às famílias por adoção: são comuns em grande parte das famílias não praticantes da comunidade. São momentos que, por funcionarem como atos públicos, justificam e afirmam o pertencimento. Isac: Mas quando ele [o neto] saiu do hospital, Felipe foi para o Marcel [o rabino] e diz: “eu quero saber qual o nome eu dou em hebraico para ele” (...). Aí o Marcel veio e disse: “Esse menino veio de força e o Marcel deu um nome 91 Aqui lembro-me de uma passagem de minha vida pessoal onde meu filho folheava um álbum com fotografias de um gato que tivemos, e choramingava de saudades, sendo que ele tinha apenas 6 meses de idade quando o mesmo deixou nossa casa. Mas as histórias de como o gato reagiu enciumado à sua chegada à família faziam parte do enredo familiar. Entendo que ele sentia nostalgia por algo vivido e contado por seus pais, que fazia parte de sua história e já estava incorporado às suas lembranças. 92 No original: “Quand le parents adoptifs sont juifs, les questions d’integration au sein de la famille se doublent de celle de l’integration au sein du groupe, du peuple. La transmition familiale s’acopagne alors de la trasnmission d’une memorie juive. Mais comment transmettre cette mémoire à um enfant qui n’est pas biologiquement le sien? Nommer, circoncire, convertir, raconter l’histoire de la famille, faire le récit de celle du peuple notamment à l’occasion des rites, photographier et mettre en scéne l’imagerie familiale. Renforcent, chez l’enfant comme chez des preches, le sentiment de son appartenance à la famille adoptive et au peuple juife.». 140 lá em hebraico”.93 (...) Marcel disse: “Vamos esperar. Deixa passar”. Aí marcou. Ele fez Britmilah. Gizele: Que lindo, ne? Isac: Fez, fez Britmilah. Lea: Deu nome. Isa: Piscina, mikve e foi na torah, e deu o nome. Lea: E deu o nome. Gizele: Vocês foram nesta cerimônia? Isac: Toda a família inteira. Lea: A família inteira. Isac: Ele faz parte da família. Lea: Ele faz parte. Gizele: Aproveitando, depois a gente continua, qual o significado para vocês do Carlos estar inserido na comunidade judaica, ter feito brit? Isac: Eu não sei. Gizele: O que significa para vocês? Isac: Só o futuro que vai dizer. Que que você quer? Casa judeu com judia, dois meses depois estão separados. Lea: E eu vou te dizer, Gizele, nós nunca falamos: Felipe, ele tem que ser judeu. Isac: Foi dele. Gizele: Mas quando o Felipe tomou essa decisão o que que significou para vocês? Lea: Nada, normal. Isac: Normal. Gizele: Se ele não decidisse? Isac: Se ele dissesse... Lea: Ia ficar a mesma coisa. Lea: Que ele levou o menino para fazer brtiz, levou para o mikva, deu nome Isac: A gente fica. Lea: Para a gente fica, que sabe que vai seguir Isac: Se vai seguir... Gizele: Mas para vocês foi importante? Isac: Não. Gizele: Não foi decisivo, mas foi importante? Isac: Se ele chegasse e dissesse não vou fazer nada. Lea: Eu ia aceitar numa boa. Isac: Porque a gente não tem esse vínculo. Lea: Eu não ia questionar. Nós não temos esse vínculo religioso. Gizele: Mas a Lea trabalha e frequenta a sinagoga! Isac: Não é sobre o ponto de vista religioso. É serviço comunitário. Trabalhar com a pessoa especial. Gizele: E para vocês o Carlos é judeu? A partir disso? Isac: É. Lea: É. Ele foi aceito pelo Felipe. Isac: O que que é ser judeu? Gizele: Eu que estou perguntando! Isac e Lea relatam que partiu de Felipe, o movimento e o desejo da inserção de seu filho na religião, assim que ele sai do hospital, após longo período internado. 93 Neste momento cito alguns nomes para saber qual foi o escolhido, movida pela minha curiosidade. Acham que é um dos mencionados. Porem após ouvir a entrevista,Felipe me envia um e-mail retificando a informação: o nome do Carlos em hebraico é Chaim Ariel, onde Chaim é vida, Ariel, o forte leão de Judá, símbolo de deus e de força. A neta de Sarah tem um lindo nome – igual em português e hebraico - que remete justamente a ela ter vindo de outro local, mas que não foi explorado aqui para que o sigilo fosse mantido. 141 É possível que aqui, a rapidez do gesto possa estar atrelada a uma questão de fé, já que a criança passou por risco de vida. Lea e Isac contaram justamente, noutra passagem que, anos antes, começaram a frequentar uma sinagoga em busca de apoio espiritual e emocional perante uma grave doença do filho mais velho, Marcio, que marcou a família. Apoio que estavam recebendo, à época da entrevista, por conta da doença de Isac. Porem, Isac, faz questão de marcar que o vínculo não é religioso, e sim comunitário. Lea, por sua vez, explicita algo bastante interessante: o fato de Felipe tê-lo escolhido como filho é suficiente para que os avós não questionem, somente apoiem. Compreendo que, de alguma forma, todos os avós dizem, implícita ou explicitamente, sobre este ponto: a partir da decisão dos filhos pela adoção, o que importa é ver a realização de seus projetos de vida, de tornarem-se pais e/ou mães e formarem, felizes, suas próprias famílias. E, uma vez netos, preferencialmente, judeus. Continuidade. Pertencimento. Gizele: Debora, me diz uma coisa, no teu ponto de vista o Eduardo é judeu? Debora: Claro que é Gizele: Por que? O que que faz dele? Debora: Porque eu acho que ele foi criado nisso, quer dizer, eu acho, ne, a gente nunca sabe Gizele: Sim, para você, tua opinião Debora: Eu acho que ele foi criado disso, estudou em escola judaica. Não sei, eu sinto ele, mas Gizele: Você sente ele judeu? Debora: É Gizele: Ele se considera judeu também? Debora: Considera Gizele: Você se lembra se ele fez alguma coisa na época na sinagoga, alguma cerimônia? Debora: Não, ele fez Barmitzva Gizele: E pequeninho, fez circuncisão? Debora: Fez, fez Gizele: Deu o nome, provavelmente? Debora: Deu Gizele: Aonde? Lembra? Em que sinagoga foi isso? Debora: Não sei, você me fez uma boa pergunta. (...). Gizele: Mas para você ele é judeu porque ele frequentou a escola judaica Debora: Eu acho que ele se considera judeu Gizele: Você considera ele judeu? Debora: Eu, sim. Todos os meus netos. O Marcelo é casado com uma não judia, e o Tulio também Gizele: E elas se converteram? (Somos interrompidas pela empregada). Gizele: Você estava falando que suas noras não são judias, se converteram ou não? Debora: Não Gizele: E as crianças estão sendo criadas como judeus? Como não judeus? Debora: Olha filha, todos os feriados judaicos Gizele: Você faz? Debora: Eu faço, acho que sim, ne? 142 Gizele: Elas frequentam escolas judias? Debora: Não. Só o Eduardo. Gizele: Só o Eduardo. Interessante, ne? Debora: Só o Eduardo. Gizele: Mas você não sabe como o Marcelo encara, por exemplo, se as filhas são judias ou não Debora: Nunca perguntei. (...). Mas eu acho que elas se consideram. Gizele: Judias? As do Tulio também Debora: Eu acho que sim Para Debora, a transmissão do judaísmo pode ocorrer pela herança de seus filhos, pais dos netos, que não nasceram em “ventre judeu”, não frequentaram escolas judias, mas pertencem à família, participam das festas e reuniões em sua casa. Não são netos por adoção, mas como as mães não são judias, a situação guarda semelhanças e nos ajuda a perceber as tramas. Os encontros familiares, a identidade dos pais e, certamente, os afetos são elevados ao posto de engendramento. E ainda, ela deduz, sente, não é um assunto que ela comente ou discuta, também semelhante ao que, por vezes, ocorre com a adoção. Dinah: E as minhas noras [não judias] são muito inteligentes, são pessoas muito compreensivas. A mulher do Julio, o pessach é na casa dela que ela faz questão de fazer o pessach, como manda o figurino porque o Julio (...) sabe reger um pessach como meu pai fazia. E o Vitor não. Não sei se é por causa da profissão e tal. O Vitor é liberal, mas respeita. A mulher dele também. Na casa dos meus filhos não tem religião, nenhum dos dois. E te digo uma coisa, não por causa das minhas noras, por causa dos meus filhos. Meus filhos mesmo. Dinah não considera suas netas por adoção judias porque seus próprios filhos, pais delas, já não o são. Porém, em algumas passagens mostra o quanto de confuso e incoerente pode ser viver numa comunidade onde religião, cultura e tradição se atravessam. Ela diz que as netas sabem e sentem orgulho da religião dos pais. Qual seria se afirma que em suas casas não tem religião? E, ainda, acrescenta, orgulhosamente, que o filho, não mais judeu, faz um completo Seder94 de Pessach em sua casa, sinalizando o quanto essas fronteiras, já apresentadas, se misturam e dizem respeito à discussão sobre identidade judaica: o que é ser judeu? O que é se considerar judeu? O que é ser reconhecido como judeu? Por quem?95 94 Seder, literalmente, ordem, diz respeito ao jantar festivo do Pessach, que possui uma grande liturgia com relato de histórias, músicas e pratos típicos. 95 Segue uma piada para não perder o costume: Jacob pega o ônibus em São Paulo e vai visitar sua mãe no interior do estado. Quando o vê, a senhora dia: - Fico muito feliz com sua visita, mas cadê seu livro de rezas? - Mamãe, na cidade grande não se anda com o livro. - Mas, e sua kipá (solidéu), meu filho? - Na cidade grande só se usa kipá na sinagoga. 143 Importante frisar que minha intenção nunca foi discutir os aspectos e as normas religiosas (por mais que me sentisse atraída nessa direção), mas sim compreender toda esta tessitura que a adoção torna mais proeminente. Guita foi a avó que teve uma posição bem diferente das demais. Ela não considera o neto, Gabriel, judeu, pois na sua percepção, ele não se identifica como tal. No entanto, ao falar da namorada do neto mais velho, Henry, diz que ela será a primeira goy96 da família. Assim, de alguma forma, não contabiliza a esposa do Gabriel, nem ele como não judeus. Gizele: E você acha que ele se considera judeu, o Gabriel? Guita: Não acho. Gizele: Você considera ele judeu, Guita? Guita: Também não. Gizele: Não? Por que? Guita: Porque ele nunca frequentou nada, nunca quis frequentar nada, diferente do Henry. (...). O Henry também nunca foi criado num ambiente judaico (...). Quer dizer e já aconteceu, embora ele esteja namorando uma garota evangélica, ele vir visitar os pais aqui no Rio, uma vez aconteceu, que ele queria ir na sinagoga. Quer dizer, eu considero ele apesar de estar com uma menina goy, ele tem alguma coisa com a gente, o Gabriel não. (...). Gizele: Você acha que ele [Gabriel] não se considera judeu? E a família também de alguma forma vê ele como não judeu? Guita: Não. A minha família não é assim muito ligada. Bom, claro que tem a Beatriz. mas o meu núcleo familiar tem alguma coisa de judaísmo, mas assim, os meus irmãos nunca tiveram nada a ver com religião, entendeu, nunca. Não sei dentro do nosso núcleo. Gizele: Se o Gabriel chegasse para você dissesse que é judeu, ne, que ele se considera judeu, em algum momento da vida isso acontecesse, você ficaria surpresa? Guita: Eu ia ficar surpresa e feliz. Compreendo que, como em Debora, o fato de Gabriel, a esposa e seu filho Saul serem próximos, estarem presente no cotidiano, participar do Shabat, nas festividades judaicas, embaralha e esfumaça essas fronteiras. A mãe de Saul não é judia, tem poucos familiares e vivem todos na casa de Beatriz e Roberto. Interessante que mesmo assim, é através dos encontros do Shabat, um ritual judaico, que a família se reúne e que os laços continuam a ser tecidos entre todos, indistintamente. Apesar da difícil adaptação de Gabriel na comunidade e a sua presumível não identificação,ele escolhe um nome judeu, de um antepassado de Guita, para seu filho, aceita que o mesmo seja circuncisado para agradar aos próprios pais, e o coloca numa - Está bem, Jacob, eu compreendo, novos tempos, não podemos ficar presos no passado; mas, me esclareça apenas uma última duvida de sua velha mãe: você ainda é circuncisado? - 96 Não judeu. 144 creche da comunidade judaica – o que aponta novamente o quanto o cruzamento entre cultura, religião e povo é superposto e complexo. Gizele: O Saul foi circuncisado? Guita: Foi, pois é, ah, deixa eu contar. Gizele: (rindo) Tem uma contradição, um paradoxo? Guita: É, não é contradição. É uma coisa dos pais. A Beatriz é muito judia, ele também. Todos. Então eles falaram com o Gabriel, ele vai ser circuncisado, ele não se opôs. Então a gente foi, eu fui no consultório, (...). Ele fez uma cerimônia. Ele chamou o casal primeiro, explicou tudo da religião, e tal, como é que era. E depois nós entramos e ele fez a circuncisão, serviram bolo. Muito bonitinha. E a Beatriz, ligou para o [rabino] e pediu se ele poderia fazer, como se diz, torná-lo judeu, mas fazer alguma coisa para introduzir ele. Aí sabe o que o rabino fez? (...). aí o Gabriel não quis entrar na mikve, aí o próprio rabino entrou, tu acredita? Segurando o menino e fez o batizado. (...). Quer dizer, o garoto por enquanto é judeu (...). A insistência de Beatriz e Roberto na circuncisão do neto parece seguir os requisitos que tem sido apontado por outros avós: afeto, convivência, pertencimento, desejo de continuidade, importância do ser judeu. Difícil saber como eles pensam o judaísmo de Gabriel, e parece que não são, novamente, assuntos abordados em família, mas que Guita demonstrou especial interesse e confiança em compartilhar comigo. À mesa do Shabat é o momento em que eles se reúnem como família, frequentemente, como o fazem muitas outras - pela possibilidade do encontro, da costura familiar, dos fios que se trançam através do judaísmo. Nesses rituais de conversão, o lugar do corpo é central. Ele é que é ritualizado. Pelo corpo biológico que passam as inscrições materiais e simbólicas da criança dentro do corpo social, estabelecendo verdadeiros ritos de passagem de um status a outro. (NIZARD, 2004, p.126)97.98 Gabriel vive numa família judia, frequentou a escola comunitária, passou pelos ritos, pertence a trama de afetos, mas não se sente judeu, o que aponta novamente para a dimensão pessoal envolvida neste engendramento. A transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes situa a família como o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e ao mesmo tempo o veículo da preservação dos valores familiares. Em torno dessa idéia de transmissão de valores está presente a noção de um tempo que se repete, de um tempo cíclico. (BARROS, 1989, p.36). 97 No original: “ Dans ces rituels de conversion, la place du corps est centrale. C’ est lui qui est ritualisé, c’est par le corps biologique que passent les inscriptions matérielles et symboliques de l’enfant dans les corps scoial, instituant des véritables rites de passage d’un statut a l’autre. ». 98 O tema do corpo como algo central nos ritos e tradições (RADCLIFFE-BROWN, 2013), como também da sua importância na gestão dos corpos (FOUCAULT, 2007), apesar de muito interessante, não será explorado neta tese. 145 Nicholas e Agatha são a família mais diferente quanto às circunstancias da adoção nesta pesquisa, já que a neta recém chegou, tem 13 anos e vinha recebendo uma formação cristã. Sua mãe já ofereceu para que ela continue sua vida religiosa numa igreja perto de casa, pois era parte importante de sua vida quando estava no abrigo. Os avós apoiam e compreende o valor deste pertencimento, mas não diminuem a relevância da transmissão judaica, entremeada na vida familiar, pois já estão criando estratégias com a intenção de que os valores judaicos possam ser por ela conhecidos e agregados. Nicky: (...). E essa família tem pessoas, tem tradição, então aquilo que ela conhece. Eu não imagino que ela vai adotar e fazer parte. E não me importo se ela é cristã ou judia, mas eu acho que ela tem que conhecer quem somos, para poder fazer parte. Nicky: Meu interesse é ela conhecer algo do judaísmo, é totalmente secular, e ligado à família. O desejo pela continuidade da religião e da cultura não se restringe a netos por adoção, nem a essas famílias. As mais diversas comunidades judias espalhadas pelo mundo sempre tiveram atenção a manutenção e a continuidade de suas tradições. Num livro com um interessante e significativo título “Teremos netos judeus?”, o rabino Jonathan Sacks (2002) aponta a preocupação que o número de crianças nascidas ou criadas como judeus na Inglaterra e nos EUA estejam diminuindo drasticamente. Conforme Falcke e Wagner (2005) 99, é possível identificar a força do legado familiar na transmissão de seus valores, crenças, normas e mitos de geração a geração nas mais diversas culturas. Esse processo baseia-se no pressuposto de que todo indivíduo se insere em uma história que já existe antes mesmo de ele nascer, à qual deve adaptar-se e corresponder. Por serem as relações familiares tão marcantes e influentes na vida do sujeito, elas acabam por representar a base do comportamento futuro sem que o sujeito se dê conta da força que ela supõe em suas escolhas e decisões. (STAUDT; WAGNER, 2008, p. 177). A presença e continuidade de uma vida judaica foi um dos critérios mencionados pelos avós para avaliar suas trajetórias e falar de seus legados. Eles, que já são avós ou bisavós - momento de vida que sugere uma avaliação – a qualificam através do que miram, não mais em seus caminhos, mas nos percursos realizados por seus filhos e netos. Bons projetos pessoais e profissionais, com valores humanos e judaicos, mostram aos avós que sua jornada foi fértil. 99 FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. A dinâmica familiar e o fenômeno da transgeracionalidade: definição de conceitos. In: WAGNER, Adriana. (Org.). Como se perpetua a família? A transmissão dos modelos familiares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. 146 Gizele: Qual o legado que a Sra. acha que está deixando? Que quer deixar para esses netos todos? Sarah: Olha, fico feliz deles terem continuado a religião judaica. Todos os três fazem Shabat. Ninguém é religioso. Gizele: As três famílias? Sarah: As três famílias fazem Shabat. Na casa de um, na casa de outro. O Marcelinho também faz questão de fazer lá. Eu gosto de ver. Lea: Eu posso dizer eu, nós, dever cumprido, entendeu? Três filhos maravilhosos, netos maravilhosos, bem-criados, honestos (...). Formaram famílias também maravilhosas. Então, o que que você quer mais na vida? (...). Eu hoje posso morrer feliz (...). Dever cumprido. Debora: Eu acho que o legado de gostar de trabalhar, de estar bem, eu acho que sim, ne? Para os “meus” avós da pesquisa, todos os laços familiares são trançados na convivência, no afeto e nos cuidados. Embalados e fortalecidos pelas tradições de nosso povo, nossos costumes e valores. Movimentos e ações do familiar - familiar verbo, que significa estar em família. “Consanguinidade e afinidade em geral tentam resumir os laços familiares, mas não esgotam a diversidade de composições que hoje habitam este campo.” (UZIEL, 2004, p. 29). Enfim, sentados à mesa, comendo beigales, bagunçando os sofás, contando piadas, ouvindo os silêncios, discutindo religião, mas, especialmente, sempre, tecendo fios de afeto. 147 CONSIDERAÇÕES FINAIS Olhar o outro, olhar o entorno, olhar para si. Olhar o que se fez e deixou de fazer, as linhas e entrelinhas, o visto e não visto. Andrea Vieira Zanella Minha pesquisa com os avós judeus com netos por adoção teve a pretensãode alcançar alguns sentidos do ser-família, em nossa sociedade, neste tempo da contemporaneidade. A família é uma instituição em contínua mudança que, apesar de conhecer diferentes nuances, em cada época, mantem sua força e centralidade na vida social. A adoção é uma prática antiga que, como a família, em cada tempo e lugar assume diferentes desenhos, mas que tem alcançado, felizmente, maior presença nos mais diversos grupos. Credito estas mudanças, nas camadas médias, das quais trato aqui, ao trabalho das Varas de justiça responsáveis, bem como dos grupos de apoio, na fomentação de uma forte e presente cultura da adoção; mas especialmente às famílias homoparentais e monoparentais que, em busca da realização de tecer suas tramas familiares, fora dos modelos hegemônicos, têm derrubado os muros dos preconceitos e permitido visibilidade aos filhos por adoção. Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência psíquica e política. (PELBART, 2002). Diversos autores (ARIÈS, 1978; TARDUCCI, 2013) indicam que o que permanece bastante imutável é a centralidade das crianças nos processos de agrupamento social, sejam famílias ou não, ou mesmo quando as famílias passam por diferentes transformações, como nos divórcios ou recasamentos. Na noção de família moderna, o primado do afeto tornou a separação conjugal algo natural: quando termina o amor, termina a relação. O mesmo primado, expresso em teorias de psicologia infantil, decretou a irrevogabilidade da relação filial. (FONSECA, 2008, p.772). 148 No Brasil, há muitos anos, a discussão sobre adoção está enlaçada pela questão religiosa: seja pelos entendimentos divinos dos encontros entre pais/mães e filhos/filhas, seja pelos abrigos mantidos por instituições religiosas, das mais diversas religiões. Ao cruzar com o judaísmo, no entanto, a intensão não era promover uma discussão religiosa, mas sim acionar importantes forças que ora se entrelaçam, ora se superpõem: sangue, cultura, relações, herança, pertencimento, família, povo, identidade, comunidade, entre outros. O propósito era pensar como no cruzamento entre adoção, religião e família, os avós se deslocam, descolam ou recolocam os fios da trama familiar. Buscar o olhar dos avós pareceu bem interessante porque, além de afastados do processo decisório, são pessoas que já viveram a maior parte de suas vidas e, agora, encontram-se, ao menos nas camadas médias, em um momento em que não são mais os protagonistas, mas sim, coadjuvantes em diversas outras. Sem protagonismo, mas com demasiada importância, como visto neste estudo. Os avós mostram-se fundamentais na montagem da trama familiar – em determinados contextos e valores - porque são eles os responsáveis pelos reencontros familiares, à mesa, na continuidade das tradições, ou simplesmente, na costura dos afetos. Eles são os guardiões das memórias, desfiando os fios que vêm se entremeando desde seus próprios avós, bisavós, e, hoje, enlaçam netos e bisnetos. Exercer seu lugar é tarefa imprescindível. E, nesta pesquisa, apesar de em menor número, os avôs se mostraram tão comprometidos quando as avós na tarefa de manter as relações afetivas e as reuniões familiares, diferente da literatura do campo. Na maioria das famílias entrevistadas, a adoção foi alternativa à infertilidade, como é relatado na literatura. A possibilidade de ver o filho/filha alcançar seu projeto de parentalidade é o motivo que torna a adoção bem vista pelos avós. “O desejo por um filho biológico e o desejo de adoção não são, a priori, incompatíveis: eles se unem, de fato, no desejo de parentalidade, qualquer que seja o modo de acesso a essa parentalidade.” (NIZARD, 2009, p.61)100. Assim, constituir uma família com filhos é o valor, que fica acima da imposição ou desejo de gerá-los biologicamente. Ter netos é ter continuidade. Ter netos é dar continuidade. 100 No original: «Le désir d’un enfant biologique et le désir d’adoption n’étant pas a priori incompatibles, ils se rejoignent en effet dans le désir de parentalité, quel que soit le mode d’accession à cette parentalité.» 149 A adoção se tornou, em alguns anos um modo "normalizado", no entanto, "normal" de acesso à parentalidade. Ela veio bagunçar as representações tradicionais da família, dissociando reprodução e filiação. Ela somente pode se desenvolver de forma duradoura em sociedades abertas à diversidade das origens, mas ela age mutuamente nesta abertura, fazendo e aceitando o distante como próximo. (NIZARD, 2009, p.60)101 As marcas do segredo, tão enredadas no tema da adoção até recentemente, parecem ter finalmente desfeito o nó. As famílias entrevistadas variam no modo como lidam com a história dos netos anteriores à adoção, com um passado que também precisa ser incluído e valorizado, mesmo que seja ainda difícil para alguns avós, pois geralmente traz marcas de sofrimento, abandono e miséria. Há importantes transformações, especialmente percebidas nas famílias com laços por adoção realizados mais recentemente, que manejam essas singularidades incluindo-as nas vidas com maior facilidade e flexibilidade. O que fica evidenciado no aceite dos avós em participar da pesquisa, conhecendo o tema de antemão. As diferenças físicas, por vezes, bem marcadas, também têm sido definidas como parte da singularidade das famílias por adoção, e manejadas para não se tornarem um obstáculo na vida da criança, ao menos, nas famílias onde a adoção não é vivenciada pela aura do segredo ou do falso encobrimento. Mesmo que o enfrentamento das diferenças raciais possa ainda ocorrer na sociedade mais ampla. O afeto e a convivência são os principais fios presentes na tessitura de das tramas familiares das famílias pesquisadas, independentemente da natureza dos laços. E para atingir estas condições, as regras são viver e conviver. Estes sim, fios determinantes na costura que se realiza entre os familiares. Quase a totalidade dos avós da pesquisa têm netos por laços de sangue, mas nenhuma diferença nas relações foi apontada sob este aspecto. Aliás, em muitos casos, são justamente os netos por adoção que mantém com os avós uma relação mais estreita, apegada e frequente. Porque se juntavam, ao menos dois aspectos importantes: ser neto e ser o menor, ser neto e ter sido o primeiro, ser neto e estar mais por perto, ser neto e precisar de apoio, ser neto e ser o caçula, ser neto com afinidades em comum, ser o único e esperado neto! Então, as condições de apego 101 No original: “L’adoption est devenue en quelques années un mode certes « normalisé » mais « normal » d’accession à la parentalité. Elle vient bouleverser les représentations traditionnelles de la famille en dissociant procréation et filiation. Elle ne peut se développer durablement que dans des sociétés ouvertes sur la diversité des origines, mais elle agit réciproquement sur cette ouverture en faisant accepter le lointain comme proche.». 150 podem variar no tempo, na distância, mas, novamente, não estão atreladas à natureza dos laços. As conversas em torno dos temas família, adoção e religião tiveram, de forma mais marcante,um tom positivo por parte dos entrevistados. Mas, em seus relatos, eles também incluíram situações de tensões, conflitos, decepções e rupturas, que são presentes nos relacionamentos entre pessoas. Família é festa, mas não somente! Algumas falas dos avós soaram estanques e pré-estabelecidas, repetindo frases que habitam o senso comum e ideias simplistas sobre amor, ajuda, respeito. Mas pensando bem, são valores que produzem um ser-família, baseado em posturas éticas, citadas como um padrão que receberam de seus pais, transmitiram para os filhos e desejam perceber nos netos. como o conceito de família comentado no início da tese, simples porque complexo. Assim, desde os antepassados dos avós, seus próprios pais e avós, o principal fio condutor são os afetos que circulam entre seus membros, tecidos na convivência, que mesmo não sendo diária, pois estamos falando de família extensa e camadas médias, em uma cidade grande, acontecem, e se renovam nos encontros familiares, muitas vezes. Encontros esses principalmente realizados na casa dos avós, onde há um terreno fértil para costurar toda essa emaranhada tessitura. E o judaísmo é um fio que adensa a experiência do viver e conviver. Ele se entremeia na costura por meio de uma herança que vem através dos anos, sendo cultivada, ampliada e transformada, mas que mantém a importância das histórias pessoais, das lembranças, dos costumes que dão fortes sensações de continuidade e pertencimento. Saber se os netos eram judeus pelo olhar dos avós, ou se eles mesmos se consideravam judeus, não era o mais importante, apesar de ter sido a pergunta semente da pesquisa. O importante, ficou claro desde as primeiras entrevistas, passou a ser observar a trama que se construía quando contavam as histórias de suas famílias, e que tinham no neto por adoção parte destacada pois sabiam que era um ponto que me interpelava. E assim, muitas vezes, as repostas foram simples e diretas. Outras vezes, saíram em busca de justificativas ou explicações mais concretas na tentativa de dar corpo ao que diziam, já que falavam de algo que sentiam, da experiência do viver e do cotidiano, dos afetos tramados. 151 A discussão deste tópico me mostrou que a importância da tradição judaica, e de sua manutenção, se por um lado não era determinante, por outro atravessava os afetos tecidos na convivência. Sua força parece dizer mais respeito à possibilidade de gerar encontro, comunhão e dar continuidade a um estilo de ser-família. O pertencimento ao judaísmo se promove de diferentes formas: pela educação, pelas práticas religiosas, pela inserção comunitária, ou simplesmente pela casa. Este debate também confirmou o complexo e intricado mundo da identidade judaica, onde religião e cultura, povo e família, se atravessam fortemente. A todo tempo, me senti atraída em discutir todo este conjunto que torna o ser judeu difícil e fascinante, mas tive que me conter em meus próprios devaneios. Os avós desejam, mas não impõem que seus netos por adoção sejam judeus, nem os outros, mas, tenho a impressão que, se for de sua escolha, preferem que todos os seus familiares sejam judeus! Porque valorizam o judaísmo, seus princípios, costumes e o pertencimento que ele provoca entre seus membros. Sem uma forma prescrita porque, como mostrado neste estudo, no judaísmo o que se tem, intensamente, é uma palheta de possibilidades. A restrição do campo empírico às famílias judias não estava no meu projeto inicial, apesar de o judaísmo sempre ter sido algo muito presente e importante em minha vida. Todavia, agora, faz todo o sentido que possa ser eu a encaminhar esta discussão no campo dos estudos de família. Também me apercebi, sempre, defendendo que a pesquisa não se tornasse somente sobre famílias judias. Sobre famílias judias, sim, mas não apenas, por entender que muitas das questões que surgiram são questões de família. Não universais, mas famílias de camadas médias, urbanas, com avós na faixa entre os 70- 90 anos. Um exercício constante de ajustar a lente, ampliar, focar, transgredir. No entanto, compreendo, agora, que foi fundamental ser parte, ter esta conexão com meus entrevistados para a construção de boas conversas e deliciosos encontros. Além de certa facilidade de constituir o campo, o mais importante foi a possibilidade de estar junto com eles, de falar de coisas em comum, com proximidade. De alcançar, com rapidez, um espaço de intimidade e cumplicidade, por não sermos estranhos – pertencemos à mesma família/comunidade. Ter circunscrito este universo empírico às famílias judias trouxe a necessidade de traduzir e expressar sentidos que já estão colados no meu cotidiano e na cultura que me envolve. Uma tentativa de explicar as práticas e as instituições, mas também 152 facilitar a imersão do leitor neste mundo de peculiaridades, piadas, quitutes e costumes diversos. Espero ter sido feliz nesta difícil tarefa! É possível supor que justamente por serem famílias que incorporaram bem a adoção, que mesmo com dificuldades que apareceram no passado ou que se constituem agora, as crianças foram bem recebidas; que entendem a adoção como forma possível de chegada da criança na família, foram elas que se dispuseram a falar comigo. Talvez as com vivencias negativas tivessem experiências muito diferentes dessas. O que não desvaloriza seus depoimentos, a meu ver, ao contrário, os torna pungentes e importantes. Relembrando as minhas inquietações iniciais sobre o respeito à criança e à legítima inclusão dela numa nova religião, acredito, agora, que seja um olhar de alguém que não vive esta experiência de forma direta e porta ideias e sentimentos contaminados pelos preconceitos das últimas décadas; pois não percebi qualquer desconforto ou preocupação das famílias entrevistadas nestes quesitos, estejam seus netos seguindo ou não o judaísmo. Minha grande preocupação com o sigilo e o resguardar das histórias narradas foram abrandadas conforme percebi, justamente, que os avós não se aquietaram com seus destinos e não vivem suas vidas sob o signo do segredo, medo ou preconceito. Tentei ser cuidadosa e respeitosa, dentro do limite que não prejudicasse a apresentação deste estudo. Os laços por adoção foram o cerne das conversas, mas não seu limite. Abrangeram diversos outros personagens e histórias das famílias. Descobri muitas vidas em cada uma dessas. Importante salientar a responsabilidade que tenho eu, e outros agentes da esfera “psi”, para com a renovação deste tema, provocando uma virada de enfoque nos trabalhos acadêmicos, para que a adoção possa ser descrita, lida, compreendida e aceita pelo viés do afeto, cuidado, segurança, apoio, sem romantismo, mas de acordo com tantas experiências felizes e bem sucedidas – o que não descarta as dificuldades. Importante incrementar um olhar que desmistifique a experiência da adoção em seu cotidiano. E o que será que dar este testemunho, percorrer nossa conversa marcou os avós? Penso que servi de testemunha - alguém a quem desde fora é permitido olhar, admirar, e confirmar o que vivem em suas famílias. Muitos conheciam a mim, meus familiares e partes de minha história, que também tem caminhos que se bifurcaram, 153 com rupturas e obstáculos, como o divórcio de meus pais, em tempos ainda tão conservadores. Será que isto me tornou uma interlocutora mais confiável no sentido de saber que família é também buscar e percorrer novos e outros caminhos, nem sempre previstos ou desejados? Além de, claro, um carimbo de psicóloga em doutoramento, títulos bastante valorizados na comunidade. Sarti (2003, p.26, grifo da autora) sugere pensar a “família como uma “categoria nativa”, ou seja, de acordo com o sentido a ela atribuído por quem a vive, considerando-o como um ponto de vista.”. A proximidade entre os posicionamentos dos avós e das crianças entrevistadas na pesquisado Mestrado foi diversas vezes apontada: ambos se esforçaram para relacionar as forças socialmente vigentes com as que provêm de suas próprias experiências. Interessante pensar que, apesar da grande distância de idade entre essas gerações, parecem viver um mesmo tempo de movimento, de diversificação e de alargamento das fronteiras do que significa ser família. Mas, a despeito de ter encontrado, na pesquisa, uma ideia bem uniforme do que é ser família, elas são sempre verbo, ação, mudança. Não é possível, nem desejado, se restringir ou prescrever um modelo estanque, duro, que deve ser seguido, e sim valorizar e compreender o que é vivido por cada um em seu meio. Não há como totalizar esta experiência numa única e simples definição. Assim novamente compreendo que há muitas famílias na palavra família. Seria ótimo encontrar outro e novo termo para abranger toda a diversidade possível nesta experiência. Mas reconheço que esse é um desejo difícil, já que é uma noção muito arraigada na sociedade e na vida cotidiana. Então o que há dentro da palavra famílias para os avós judeus por adoção? Afeto, Aceitação, Cotidiano, Convivência Continuidade, Comunidade, Comida, Cultura, Encontro, Proximidade, Religião, Tradição, União, Valores. Parece muito, mas pode se resumir num cheiro gostoso, num som (re)conhecido, num gesto caloroso, num baú cheio de memorias, antigas, novas, vividas ou inventadas. A pesquisa me balançou em muitos sentidos: também me descobri uma pesquisadora que gosta e sabe conversar com pessoas de mais idade, algo com o qual não tinha familiaridade. Absorvi prazerosamente cada um dos momentos que estive com meus entrevistados. E acreditei em todas as verdades que preencheram nossas conversas, porque o importante era estar com eles, sentar em suas salas e ouvir o que queriam dizer. 154 A atmosfera do local, os móveis e as fotos tornaram-se parte da cartografia destas vidas, bem como os cheiros e os gostos, as lágrimas e os risos, as palavras e os silêncios, e especialmente os afetos que circularam entre nós. Os familiares, saídos das imagens e das falas, tornaram-se personagens vivos das histórias, preenchendo os cenários da vida. Provocou em mim uma importante transformação: encontrei famílias menos preconceituosas do que imaginara, e felizes em viver suas tramas. “(...) as marcas são os estados vividos em nosso corpo no encontro com outros corpos, a diferença que nos arranca de nós mesmos e nos torna outro.” (ROLNIK, 1993, p.5). Escrever é uma parte difícil porque parece nunca atingir a gama de sensações, de experiências, de (des)caminhos que se percorreu. Ainda mais que havia tanto a ser dito e contado: cada frase abrangia tantas minúcias que montar o fluxo dos capítulos pareceu, muitas vezes, um difícil quebra-cabeça onde uma peça pode ser encaixada em diversos outros lugares. Uma trama com múltiplos fios, emaranhada, porque diversa, divertida, dura, duradoura. Os diários foram parte fundamental deste caminho, além de colocar neles toda a experiencia e as nuances, me permitiram também criar um atalho de volta a cada um desses encontros. Eu me sentia de novo diante sentada naqueles sofás, ouvindo aquelas vozes, usufruindo das lições de vida e da circulação de afetos. Mas eles, os diários, aprendi: não são estanques e sempre que os relia, os reescrevia, como aqui, até o último momento - peças vivas, portais, que quase por magia permitem o acesso a um fluxo contínuo de afetos e pensamentos. Um encontro que nunca fecha, que sempre acontece novamente e permite novos olhares e outras escutas. Um recontar de muitas e infinitas histórias. Escrever também parece que só termina porque há prazos a cumprir: cada leitura provoca novas miradas, percebe-se novas brechas e algumas derrapadas. Me sinto em dívida porque, certamente, há muito mais a ser dito e articulado. Muito ainda a descobrir. O tema das lembranças que estão sempre presentes nos testemunhos orais, que produzem um significativo tipo de verdade, também me aconteceu: recordações que foram rompendo, aos poucos: meu avô adotivo, os biscoitos de minha avó, seu nome, a sala da casa deles e as famílias (re)conhecidas por adoção. Eu também tive minha vida e memórias abaladas a todo instante. (Re)ouvi também minhas próprias histórias. 155 Toda narrativa articula alguns elementos, como: quem narra, o quê narra, por que narra, como narra, para quem narra, quando narra... (...). Toda narrativa, no entanto, possui uma dose, maior ou menor, de criação, invenção, fabulação, isto é: uma dose de ficção. (...) Memória e imaginação não se opõem, como quer o senso comum; antes completam-se, pois possuem a mesma origem, natureza, poderes. (AMADO, 1995, p.133-134) Por fim, ou por agora, sobre o cruzamento da pesquisa com minha vida pessoal, em algum momento, numa palestra, no meio deste caminho, descobri que, no Brasil, o Dia Nacional da Adoção ocorre justamente no meu aniversário, 25 de maio. Destino? Mistério? Piada pronta? Quem sabe? Me considero uma pessoa cética, mas não pude deixar de me assombrar com alguns detalhes vividos pelo caminho. Termino aqui, sem totalizar as experiências, mantendo os desafios que o estudo somente adensou, já que famílias são sempre verbo, ação, mudança. E assim, aqui, reafirmo que para os avós desta pesquisa que vivem a experiência de adoção em suas vidas, os laços familiares são tecidos na convivência e no afeto, embalados e intensificados pelas tradições de suas famílias, seus costumes e, principalmente, seus valores. Le Chaim! Um brinde à vida e à sua continuidade! 156 REFERÊNCIAS ALLEBRANDT, Débora. La science de la parenté: Adoption, génétique et identité parmi les adoptés au Brésil. Vibrant, v. 12, n. 1, p. 141-166, 2015. ALLOUCHE-BENAYOUN, Joëlle. La “techouva” identitaire des descendants de couples mixtes. In: GROSS, Martine; MATHIEU, Séverine; NIZARD, Sophie. Sacrées familles! Changements familiaux, changements religiex. Èditions Éres, 2011. p. 101-115. AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São Paulo, n. 14, p.125-136, 1995. AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida; VERÍSSIMO, Hugo Vasconcelos; LOURENÇO, Gilclécia Oliveira. A adoção de crianças por gays. Psicologia & Sociedade, v. 25, n.3, p. 631-641, 2013. ARAÚJO, Maria Paula; FERNANDES, Tânia Maria. O diálogo da História Oral com a historiografia contemporânea. In: VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). História Oral: teoria, educação e sociedade. 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