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Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
Centro de Educação e Humanidades 
Instituto de Psicologia 
 
 
 
 
 
 
Gizele Bakman 
 
 
 
 
 
 
Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por 
adoção 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2019 
Gizele Bakman 
 
 
 
 
 
Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção 
 
 
 
 
 
 
 
Tese apresentada, como requisito parcial 
para obtenção do título de Doutor, ao 
Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia Social, da Universidade do 
Estado do Rio de Janeiro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profa. Dra. Anna Paula Uziel 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2019 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CATALOGAÇÃO NA FONTE 
 UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A 
 
 
 
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou 
parcial desta tese, desde que citada a fonte. 
 
___________________________________ _______________ 
 Assinatura Data 
 
 
B168 Bakman, Gizele. 
 Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção/ 
Gizele Bakman. – 2019. 
 174 f. 
 
 
 Orientadora: Anna Paula Uziel. 
 Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 
Instituto de Psicologia. 
 
 
 1. Psicologia Social – Teses. 2. Avós – Teses. 3. Judaísmo – Teses. 
4. Adoção – Teses. I. Uziel, Anna Paula.. I. Universidade do Estado do 
Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. 
 
 es CDU 316.6 
 
Gizele Bakman 
 
Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção 
 
Tese apresentada, como requisito parcial 
para obtenção do título de Doutor, ao 
Programa de Pós-Graduação em Psicologia 
Social, da Universidade do Estado do Rio de 
Janeiro. 
 
Aprovada em 5 de fevereiro de 2019. 
 
Banca Examinadora: 
 
__________________________________________ 
Prof.ª Dra. Anna Paula Uziel (Orientadora) 
Instituto de Psicologia - UERJ 
 
__________________________________________ 
Prof.ª Dra. Claudia Lee Williams Fonseca 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 
 
__________________________________________ 
Prof.ª Dra. Heliana de Barros Conde Rodrigues 
Instituto de Psicologia - UERJ 
 
__________________________________________ 
Prof.ª Dra. Monica Grin Monteiro de Barros, 
Universidade Federal do Rio de Janeiro 
 
__________________________________________ 
Prof.ª Dra. Alessandra de Andrade Rinaldi 
Universidade Federal Rural o Rio de Janeiro 
 
Rio de Janeiro 
2019 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Aos meus avós e àquela menina, neta deles... 
AGRADECIMENTOS 
 
Muito tenho que agradecer neste momento. Foram anos intensos: estudo, 
debates, entrevistas, aulas, sensações, pensamentos, descobertas... Terminar a tese 
é um alivio pelo cansaço, tensão, cumprimento dos prazos e tarefas. Concluir, no 
entanto, é penoso porque significa fechar uma jornada extremamente gratificante, 
afetuosa e alegremente imprevisível. É conseguir deixar para trás uma intensa e 
proveitosa etapa de minha vida, onde aprendi nos acertos, nos enganos, nas palavras 
e nos silêncios. 
Agradeço a todos que me estiveram neste caminho, mas em especial, a minha 
orientadora Profa. Dra. Anna Paula Uziel, a Anna, pela oportunidade, estímulo, 
confiança, dedicação (insana) e amizade. 
A minha família mais próxima, em especial ao meu marido Mario, sempre 
preocupado e interessado na pesquisa, aos meus filhos Igor e Tamar, lindos e 
maravilhosos, ao meu filhote Simba, com seu silencio cúmplice, sou grata pelo 
incentivo e parceria nestes anos, acolhendo minhas alegrias, expectativas e 
apreensões. Também agradeço aos demais que chamo de família, que vibram pelas 
minhas conquistas, em especial: minha mãe, pai, sogro e sogra (z’l), que partiu 
recentemente, mas que era a que mais ansiava por me ver chegar até aqui. 
Sou grata aos meus amigos e amigas da vida, pela torcida e entusiasmo pela 
minha aventura. E, certamente, @s minh@s companheir@s do grupo de pesquisa de 
Mestrado, Doutorado e de todos os outros zilhões de projetos da Profa. Anna, tod@s 
pesquisador@s chei@s de ideias, energias e empenho para um mundo melhor, junto 
a quem tive ricos momentos de aprendizado e divertimento. Em especial à querida 
Jimena de Garay Hernández, pela sua disponibilidade e generosidade sempre 
presentes. 
Agradeço a banca examinadora, Profa. Dra. Heliana de Barros Conde 
Rodrigues, Profa. Dra. Claudia Lee Williams Fonseca, Profa. Dra. Monica Grin 
Monteiro de Barros, Profa. Dra. Alessandra de Andrade Rinaldi e Prof. Dr. Marco 
Antonio Ferreira do Nascimento pela leitura e interesse de participar desta jornada. 
E finalmente, agradeço aos avós, avôs, netos e netas, e suas famílias, que me 
receberam em suas casas e em suas vidas, me agraciando com suas memórias e 
afeto. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Enquanto a erudição importa tremendamente, a família importa ainda mais. 
Estes dois esteios tendem a se sobrepor. Pais, mães, professores. Filhos, filhas, 
alunos. Texto, questão, debate. Não sabemos quanto a Deus, mas a continuidade 
judaica sempre foi pavimentada com palavras. 
Amós Oz e Fania Oz-Salzberger 
RESUMO 
 
BAKMAN, Gizele. Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por 
adoção. 2019. 174 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de 
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. 
 
Esta pesquisa, realizada com avós judeus que têm netos por adoção, 
pretendeu perceber como estas famílias a vivem, visto que é considerado judeu 
aquele que nasce em ventre judeu, tornando, em princípio, o laço sanguíneo uma 
marca importante na transmissão do judaísmo. A adoção, aceita pela lei judaica, 
ainda não é tão comumente realizada nesta comunidade. Foram entrevistadas 10 
famílias, sendo 10 avós e três avôs, com idades entre 69 e 80 anos, com netos por 
adoção, entre quatro e 45 anos. As inspirações metodológicas manejadas foram a 
Cartografia e a História Oral. Para os avós, família é afeto e convivência, realizada 
através da continuidade do judaísmo, especialmente pelos seus aspectos de tradição 
e cultura. O pertencimento ao judaísmo fez parte das narrativas, seja através de uma 
identidade judaica, que se apresenta multifacetada, seja como afirmação da não 
necessidade de vínculos biológicos para a incorporação da criança por adoção à 
genealogia familiar. Mesmo quando a família não se percebia ligada ao judaísmo 
praticante, os netos, em sua maioria, realizaram cerimônias religiosas, rituais 
desempenhados para fortalecer valores, como continuidade e pertencimento. Fator 
importante na adoção é a realização do projeto parental dos filhos. Para os avós 
judeus por adoção, os laços familiares são tecidos na convivência e no afeto, 
embalados e reforçados pelas tradições do povo judeu, seus costumes e valores. 
 
Palavras chaves: Família. Avós. Adoção. Judaísmo. 
 
RESUMEN 
 
BAKMAN, Gizele. Por entre las tramas familiares: abuelos judíos y sus nietos 
por adopción. 2019. 174 f. Teses (Doctor em Social Psicología) – Instituto de 
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. 
 
Esta investigación, realizada con abuelos judíos que tienen nietos por 
adopción, pretendió percibir cómo estas familias la viven, ya que es considerado judío 
el que nace en vientre judío, haciendo, en principio, el lazo sanguíneo como una 
marca importante en la transmisión del judaísmo. La adopción, aceptada por la ley 
judía, todavía no se realiza comúnmente en esta comunidad, y posee determinadas 
reglas, no siempre cumplidas. Se entrevistaron10 familias, siendo 10 abuelas y 3 
abuelos, con edades entre 69 y 80 años, con nietos por adopción, entre 4 y 45 años. 
Las inspiraciones metodológicas manejadas fueron la Cartografía y la Historia Oral. 
Para los abuelos, familia es afecto y convivencia, realizada a través de la continuidad 
del judaísmo, especialmente por sus aspectos de tradición y cultura. La pertenencia 
al judaísmo formó parte de las narrativas, sea a través de una identidad judía, que se 
presenta multifacética, sea como afirmación de la no necesidad de vínculos biológicos 
para la incorporación del niño a la genealogía familiar. Incluso cuando la familia no se 
percibía ligada al judaísmo practicante, los nietos por adopción, en su mayoría, 
realizaron ceremonias religiosas, rituales desempeñados para fortalecer valores, 
como continuidad y pertenencia. Factor importante en la adopción es la realización del 
proyecto parental de los hijos. Para los abuelos judíos por adopción, los lazos 
familiares se tejen en la convivencia y el afecto, envueltos y reforzados por las 
tradiciones del pueblo judío, sus costumbres y valores. 
 
Palabras clave: Familia. Abuelos. Adopción. Judaísmo. 
 
LISTA DE GENOGRAMAS: 
 
Genograma 1 – A família de Sarah ...................................................................... 53 
Genograma 2 – A família de Rebeca .................................................................... 58 
Genograma 3 – A família de Isac e Lea .............................................................. 63 
Genograma 4 – A família de Debora .................................................................... 69 
Genograma 5 – A família de Miriam ..................................................................... 74 
Genograma 6 – A família de Malka ...................................................................... 78 
Genograma 7 – A família de Guita ....................................................................... 83 
Genograma 8 – A família de Dinah....................................................................... 88 
Genograma 9 – A família de Vicente e Luna ........................................................ 92 
Genograma 10 – A família de Nicholas e Agatha ................................................... 97 
 
SUMÁRIO 
 
 INTRODUÇÃO .................................................................................... 10 
1 A TRAJETÓRIA E OS (DES)CAMINHOS DE UMA PESQUISA SOBRE 
FAMÍLIAS ........................................................................................... 22 
1.1 Inspirações metodológicas .............................................................. 22 
1.2 Outras inspirações ............................................................................ 26 
1.3 Aproximando o olhar ........................................................................ 29 
1.3.1 Camadas médias ................................................................................ 30 
1.3.2 Avós .................................................................................................... 31 
1.3.3 O judaísmo ......................................................................................... 36 
1.3.3.1 Pistas históricas .................................................................................. 37 
1.3.3.2. Povo, cultura, religião .......................................................................... 39 
1.3.3.3 Adoção e judaísmo .............................................................................. 45 
2 MEUS ENTREVISTADOS ................................................................... 47 
2.1 Sarah .................................................................................................. 53 
2.2 Rebeca ............................................................................................... 58 
2.3 sac e Lea ............................................................................................ 63 
2.4 Debora ................................................................................................ 69 
2.5 Miriam ................................................................................................. 73 
2.6 Malka. ................................................................................................. 78 
2.7 Guita ................................................................................................... 83 
2.8 Dinah .................................................................................................. 87 
2.9 Vicente e Luna ................................................................................... 91 
2.10 Nicholas e Agatha ............................................................................. 96 
3 FIOS FAMILIARES: ENTRE HISTÓRIAS, CORES E AFETOS ........ 102 
3.1 Trançando histórias ........................................................................ 104 
3.2 Trançando cores.............................................................................. 113 
4 FIOS FAMILIARES: ENTRE RELIGIÃO, CULTURA E AFETO ........ 123 
4.1 Continuidade e tradição .................................................................. 123 
4.2 Religião, cultura e povo .................................................................. 134 
 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 147 
 REFERÊNCIAS ................................................................................. 156 
 GLOSSÁRIO ..................................................................................... 170 
 APÊNDICE - A Message for the Baby Whose Bris It Was at the Pittsburgh 
Synagogue, de Zev Steinberg ........................................................... 173 
10 
 
INTRODUÇÃO 
 
(...) criar um problema de pesquisa é virar a própria mesa, 
rachando os conceitos e fazendo ranger as articulações das 
teorias. 
Sandra Mara Corazza 
 
Alguns passos 
 
Com este texto celebro o final do meu Doutorado em Psicologia Social. 
Percorrer o caminho acadêmico era um sonho antigo, mas meu percurso profissional 
foi acontecendo de forma pouco planejada: em busca de trabalho, de colocação 
profissional e de conhecimentos. 
Ao ingressar no curso de Psicologia, no início dos anos 80, pretendia trabalhar 
com educação infantil, mas no término da Graduação, acabei por me encantar pela 
clínica de crianças, o que provocou meu encontro com a Terapia Sistêmica de 
Famílias e, a partir desta, com outras práticas sistêmicas, como: a Facilitação de 
Grupos, a Mediação de Conflitos e a Terapia Comunitária, além da possibilidade de 
lecionar em Curso de Especialização em Terapia de Família, por muitos anos, e atuar 
em diversos projetos realizados no Terceiro Setor. Somente em 2011, com mais de 
20 anos de formada, é que ingressei no Mestrado em Psicologia Social da UERJ e 
realizei uma linda e divertida pesquisa com crianças sobre família. 
Concluído o Mestrado, desejava continuar a pesquisar o tema das famílias por 
alguma perspectiva diferente. Percebia tantas possibilidades, vieses, recortes, 
atravessamentos, mas não sabia por onde ir e não tinha quaisquer preferências. 
Um dos grupos de pesquisa com crianças, realizado no Mestrado, aconteceu 
em um abrigo. Fiquei especialmente impactada com uma das meninas, que 
demonstrou muita força de vida ao afirmar que seria médica, se imaginava fora do 
abrigo, apesar de ter uma história triste, aos seis anos de idade, marcada por mortes 
e abandono. Sonhei que a tinha adotado, porém, no sonho, tinha dúvidas de levá-la 
aos serviços religiosos da minha religião – o judaísmo. O sonho me impactou pelo 
forte desejo de adotá-la, mas também pelo ponto em que ele me interrogava: em que 
sentido introduzi-la numa nova prática religiosa seria um desrespeito? O quanto sua 
participação na religião seria importante para mim? Como minha mãe se sentiria a 
11 
 
respeito de sua presença na sinagoga?Ou de sua ausência? Ela, minha mãe, que é 
a representante desta linhagem familiar. 
Desta forma me surgiu uma questão: seria a religião um impasse para as 
famílias por adoção, como tinha sido no sonho para mim? Conversando sobre a ideia 
com minha orientadora, Anna Paula Uziel, e com uma pessoa que trabalha com 
adoções, na Vara da Infância e Juventude, lembrando de histórias ouvidas na clínica, 
o tema se fortaleceu e tornou robusta a importância da rede extensa na legitimação e 
aceitação da adoção. Surgia, assim, um projeto de pesquisa: entrevistar avós de 
crianças adotadas e pensar no atravessamento família-adoção-religião, mas sem 
deixar de ter em mente que meu foco principal de interesse são os laços familiares, e 
a adoção e a religião, atravessamentos que os colocam em evidência. 
O que me move atrai no campo de estudos sobre famílias é o quanto, apesar 
de problemas e conflitos, ela continua central na vida das pessoas, o quanto os laços 
sanguíneos são difíceis de desatar, mesmo quando já estão desgastados e 
esgarçados - um certo mistério sobre tamanha força. 
Já no Doutorado, comecei a pensar como o tema me envolvia diretamente, já 
que a adoção não estava, aparentemente, presente na minha vida ou de minha 
família. De repente, percebi que tive um maravilhoso avô adotivo: o pai de minha mãe 
era, de fato, seu padrasto. Só descobri este segredo de família na pré-adolescência. 
Na época, lembro que, passado o susto e certo sentimento de ter sido enganada, 
prevaleceu o enorme carinho e amor que emanava dele a todos os seus netos. Ele 
representa para mim, até hoje, mesmo falecido há quase 30 anos, uma fonte de amor, 
segurança, aceitação, cumplicidade - sentimentos fortes e inesquecíveis. Pensar que 
ele não possuía laços sanguíneos comigo, conosco, reconhecer a forma como 
abraçou, em vida, a esposa, seus filhos pequenos e, posteriormente, netos, somente 
fortalece o enorme afeto que sinto por ele. Seu nome em hebraico era Chaim, que 
significa vidas, nome que usávamos em preferência ao nome em português1, Jayme. 
Penso, e sinto, que ele nos deu mesmo vida, não por meio de seu material genético, 
mas pelo seu afeto e dedicação, pelo seu grande e profundo amor. 
Fiquei bastante feliz em encontrar algo que conecta minha história pessoal à 
minha pesquisa, em percebê-la se entremeando à minha vida, de forma ainda mais 
significativa. Afinal, como diz Latour (2006, p.343): “Bons trabalhos de campo sempre 
produzem muitas novas descrições...”. 
 
1 Na tradição judaica, as crianças recebem nomes, em hebraico ou ídiche, em homenagem a 
parentes que, muitas vezes, não são usados no cotidiano, e diferem dos nomes do registro civil. 
12 
 
Antes de iniciar o campo, percebi que o tema mobilizava outros ao meu redor, 
de uma forma intensa e surpreendente. Há uma amiga, que já é avó de cinco netos e, 
sempre que nos encontramos, me pergunta da pesquisa e fala espontaneamente que 
acredita que não aceitaria bem um neto por adoção, mostrando vontade de conversar 
a respeito. Há um casal de amigos que sempre comenta sobre uma família que 
frequenta sua sinagoga, cujos pais são gays e adotaram um menino. Insistem que não 
posso deixá-los de fora da minha pesquisa e me parecem movidos por sua própria 
curiosidade a respeito. 
Ao longo do tempo, encontrei muitos olhares surpresos ao mencionar o tema 
da pesquisa, com interrogações se há mesmo famílias por adoção na comunidade 
judaica; sem falar dos tantos conhecidos que não se lembraram, ou não quiseram 
lembrar, de me indicar famílias que notoriamente tinham crianças por adoção. 
Esquecimento que também me sucedeu, como será contado. 
Conforme me entrego ao tema, aos entrevistados, às leituras do campo e à 
escrita, se torna mais forte a ambivalência que é pensar a família. Ambivalência 
porque, por um lado, percebo toda a sua complexidade, dificuldade de definição, de 
abranger as mais diversas experiências; e por outro, me deparo com algo simples, 
conhecido, quase óbvio, pertencente ao cotidiano de todos e todas. O que me faz 
lembrar de uma das ideias que esteve bem presente nas crianças do Mestrado: família 
é família, e ponto final! 
Assim, algumas perguntas pareceram bons orientadores, nesta pesquisa, para 
tentar alcançar descrições sobre o ser família: Como os laços são construídos quando 
há adoção? Como a religião adentra nesta tessitura? Qual o lugar dos avós nestas 
famílias? Me embrenho num mundo de novos estudos e pensamentos, num tema 
aparentemente tão antigo e corriqueiro, mas com a certeza de ser um universo que 
se expande, a todo tempo, em inúmeras direções. 
 
Desbravando caminhos 
 
Bourdieu (1996) afirma que a família é “(...) certamente uma ficção, um artefato 
social, uma ilusão no sentido mais comum do termo, mas “uma ilusão bem-
fundamentada” (...).” (p.135) que, por vezes, alguns modelos ficam cristalizados e 
naturalizados como o da família heterossexual biparental. 
Apesar de todo o empenho de determinados grupos em definir e limitar o que 
é família, falar de família é falar sempre de uma diversidade social. As pesquisas 
13 
 
históricas indicam que nunca foi possível falar com unicidade a respeito do tema, seja 
no Brasil (SAMARA, 1983), ou mesmo em outros países (CORRÊA, 2012; SEGALEN, 
1999). As possibilidades são múltiplas, bem além do simples modelo de família 
nuclear, casal heterossexual com filhos, tão presente no imaginário social e bastante 
cultuado no ocidente. 
Tal diversidade tem ganho maior visibilidade, ampliando a ideia do que pode 
ser considerado família: conjugalidades em diferentes formatos, recasamentos, casais 
sem filhos, homoparentalidade, monoparentalidade, pluriparentalidade. Muitas destas 
dinâmicas estão atreladas às transformações das relações de gênero, ao advento do 
feminismo, à cultura da adoção e às novas técnicas reprodutivas, incrementadas nas 
últimas décadas. 
O objetivo do presente estudo é pesquisar este grupamento social que, em 
nossa sociedade, conhecemos como família, percorrendo a tessitura de seus laços. 
Para tanto, entre diversas possibilidades, escolhi mirá-los através das famílias onde 
há laços por adoção. E, ainda, a partir do olhar dos avôs e das avós2, parte da família 
extensa que possui, a meu ver, enorme importância na trama familiar, mas que não 
se encontra diretamente ligada ao processo decisório da adoção. Possuo também a 
ambição de alcançar os sentidos construídos sobre o ser e o estar em famílias, 
atravessadas pelo judaísmo. 
No Mestrado (BAKMAN, 2013), as entrevistas foram realizadas com crianças a 
respeito do que pensam sobre famílias, como as definem e com quais critérios 
determinam quem são as pessoas consideradas como seus membros. Participaram 
das seis entrevistas em grupo, meninos e meninas, entre seis e 11 anos, em um total 
de 22 crianças de diferentes camadas sociais, todas da cidade do Rio de Janeiro, 
sendo algumas abrigadas. Nas entrevistas, as crianças fizeram desenhos de família, 
responderam algumas perguntas, mas, especialmente, discutiram entre si os temas 
levantados, de onde pude compreender suas visões, posicionamentos e sentidos 
sobre o tema. 
As crianças entrevistadas experimentavam diferentes manejos para conjugar 
aspectos que consideram importantes na conceituação de família, como afeto, 
 
2 Na língua portuguesa quando nos referimos juntamente a pessoas do sexo feminino e do sexo 
masculino, como a avó e o avô, devemos formar o plural com a palavra avós, ou seja, os avós. Para 
facilitar o fluxo da leitura, mesmo que a maioria dos entrevistados tenha sido do sexo feminino, 
como será ainda apresentado, usarei o plural no masculino, seguindo as regras da norma culta da 
língua. 
14 
 
convivência e relações sanguíneas, que se articulam no que denominei, na época, de 
“camadas”, com maior ênfase no aspecto afetivodas relações. Camadas não no 
sentido de estratificação, mas de planos que se cruzam, se confundem, se 
atravessam, provenientes de distinções advindas de suas experiências pessoais. 
Penso agora, numa releitura, que essas camadas podem ser pensadas como dobras. 
A dobra “(...) exprime tanto um território subjetivo quanto o processo de produção 
desse território (...).” (SILVA, 2004, p. 56). 
As camadas entrelaçavam critérios cotidianos bastante comuns, assim como 
criavam novas possibilidades para justificar a inclusão e/ou exclusão de membros. Na 
visão das crianças, há forças que se mantém, algumas que se esvaem e outras que 
se firmam no que tange ao sentido e aos valores do que é ser e viver em família. Laços 
de sangue, convivência, amor e cuidado eram características que se destacavam. A 
primazia dos laços de sangue, tão comum, não foi identificada: o critério mais 
importante, apontado por elas para o pertencimento como família, era estar entre 
aqueles pelos quais elas nutrem e recebem bons afetos. 
 
Eu acho que família são o grupo de pessoas que se amam, e que ficam 
juntos, e que gostam um do outro e que compartilham momentos 
inesquecíveis, um com o outro! (FERNANDA 10 anos, apud BAKMAN, 2013, 
p.46). 
 
Família é umas pessoas que gostam da gente, ficam com a gente, que estão 
no nosso cotidiano. (JOSÉ 10 anos, apud BAKMAN, 2013, p.46). 
 
Eu ia falar que família são família. (WALERIA 7 anos, apud BAKMAN, 2013, 
p.45). 
 
É que eu sei o que que é, mas eu não sei explicar o que que é. (ROSANE 11 
anos, apud BAKMAN, 2013, p.45). 
 
Como indica Rosane (apud BAKMAN, 2013), família é algo que conhecemos 
porque vivemos. Que nem sempre sabemos explicar e, por vezes, somente sentimos. 
Que parece normal, pronto, mas que está sempre em movimento e reconstrução. Algo 
que se estabiliza para logo voltar a oscilar, num vai e vem, deixando alguns rastros e 
cobrindo outros, mas produzindo uma impressão de totalidade e de unidade. 
Desta forma, as crianças ofereceram um olhar rizomático sobre as famílias, 
pois no sistema de rizomas, qualquer parte pode ser conectada a qualquer outra, não 
há unidade, nem linearidade, mas multiplicidade. Não existem pontos, senão linhas, 
não há começo nem fim, mas um meio pelo qual cresce e transborda. “Um rizoma 
pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma 
15 
 
ou outra linha e segundo outras linhas.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.18). “(...) o 
rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, 
conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas 
de fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.32-33). 
 Através deste olhar rizomático, as crianças pensam as famílias como algo 
em movimento, não passível de totalização, pensam-na “(...) não como único, mas 
como multiplicidade; não como família ou mesmo famílias, e sim como familiar.” 
(BAKMAN, 2013, p. 83). Assim, verbo, ação, movimento, em que a liberdade de 
escolha é possível, as regras não podem ser impostas por outros e as definições 
podem variar e se adaptar, a critério de cada um. 
Na intenção de manter-me como pesquisadora do tema famílias, e 
compreendendo o familiar como ação, escolhi a adoção como uma linha, uma brecha 
por onde penetrar, perceber, pensar e articular o assunto - um novo ponto de partida 
para mim. 
 
A adoção de crianças mostrou-se um universo rico de interpretações sobre 
concepção de família, sobre o que significa pertencer ou configurar uma 
família, como também sobre os valores colocados em jogo com relação ao 
sangue, à transmissão genética, acerca do que se tolera ou não quando o 
filho é “um estranho”. (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.63). 
 
A decisão de ter filhos parte de um ou dois membros, aquele(s) que 
pretende(m) exercer a função de pai(s) e/ou mãe(s), mas tal atitude envolve, de 
alguma forma, todo um grupo familiar, que estará incluída, direta ou indiretamente, 
com a chegada de um novo integrante. De forma semelhante ocorre com a adoção: 
quando um casal ou uma pessoa decide pela adoção de uma criança ou jovem, este 
passará a fazer parte de uma rede de parentes, com quem possuirá relações, 
próximas ou distantes, mas dos quais não depende qualquer decisão a respeito. 
Para Dolto (1999), todos os seres humanos estão na condição de serem ou não 
adotados, pois ela compreende que tanto na adoção, como na paternidade e 
maternidade biológicas, os pais precisam desejar os filhos, imaginá-los em suas 
fantasias e conferir a eles um lugar na descendência familiar. A autora (1989 apud 
PAIVA, 2004)3 também afirma que uma criança adotiva é inserida na tradição das 
famílias que a acolhem, apontando a importância de se pesquisar como as famílias 
dos pretendentes pensam a adoção. 
 
3 DOLTO, Françoise. Dialogando sobre crianças e adolescentes. Campinas: Papirus, 1989. 
16 
 
O ECA - a Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e 
do Adolescente - expõe no capitulo III, art.19 (2001, p.22) o direito à convivência 
familiar e comunitária a que toda criança ou adolescente têm, o que indica que a 
relação de uma criança vai além do pai(s) e/ou mãe(s), estendendo-se a uma 
comunidade. 
 
Observada com certa atenção, a adoção revela-se um universo rico de 
interpretações não só sobre a família e o que significa pertencer a uma 
família, mas possibilita ampliar o entendimento sobre a sociedade em que 
vivemos, seus valores e seus preconceitos. A adoção é um ato jurídico que 
fixa relações. (VIEIRA, 2004b, p.1). 
 
A adoção é um tema atual e importante no Brasil, visto que há um número 
grande de crianças e jovens institucionalizados, sob responsabilidade do Estado, 
desejosos de serem reinseridos em uma vida familiar (OLIVEIRA, 2007). O registro 
das crianças disponíveis consta do Cadastro Nacional de Adoção (CNA)4. Após uma 
década de sua implementação, o sistema está sendo substituído por um novo CNA5, 
que tem o objetivo de colocar a criança como sujeito principal do processo, para que 
se permita a busca de uma família para ela. Assim, além das crianças aptas à adoção, 
o novo sistema traz informações do antigo Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas, 
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual 47 mil crianças que vivem em 
instituições de acolhimento em todos os estados estão cadastradas. Os dados 
confirmam uma triste diferença entre as crianças que precisam de uma família e o 
desejo dos adotantes, que buscam, geralmente, um perfil difícil de ser encontrado 
(VIEIRA, 2004a)6. 
Nesta questão é importante sinalizar o intenso trabalho realizado em Varas de 
Infância e Juventude junto às famílias adotantes, em palestras e encontros 
preparatórios7, obrigatórios no processo de Habilitação para adoção, que além de 
 
4 O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) é uma ferramenta digital que auxilia juízes das Varas da 
Infância e da Juventude na condução dos procedimentos dos processos de adoção em todo o país. 
5 A grande inovação é um sistema de alertas que informa automaticamente, via e-mail, sobre a 
existência de uma criança ou pretendente compatível com aquele perfil que o juiz acabou de 
registrar, abrangendo dados de todo o Brasil. Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e-
acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna. Acesso em: 03/04/2017. 
6 A partir da literatura do campo e das informações advindas de palestras sabe-se que casais 
heterossexuais são bastante seletivos em sua procura por adoção. Eles têm preferências por 
meninas, brancas e recém-nascidas, porque desejam filhos semelhantes fisicamente, e/ou por 
acreditar que crianças pequenas e do sexo feminino são mais fáceis de educar e moldar. (VARGAS; 
MOÁS, 2010). 
7 Podemos citar: o Café com Adoção (Disponível em: http://cafecomadocao.blogspot.com.br/. Acesso 
em: 21/9/2013.), que acontece na 1ª VIJ, cujas reuniões são abertase extraprocessuais, e o Flor de 
Maio, que tem encontros na Barra da Tijuca e em Madureira. (Disponível em: 
http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna
http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/cadastro-nacional-de-adocao-cna
http://cafecomadocao.blogspot.com.br/
17 
 
auxiliar no recebimento da criança ou jovem, também sensibilizam e culminam na 
ampliação deste perfil, como confirmam as pesquisas de Gondim et al (2008) e Silva 
e Benetti (2015). 
Rinaldi (2014) considera que as pessoas que pretendem realizar um projeto 
parental através da adoção possuem múltiplas razões: infertilidade, o não desejo de 
passar novamente por uma gravidez, por serem solteiras, por histórias pessoais 
ligadas à adoção, por serem um casal homoparental, por falta de recursos para buscar 
soluções médicas ou até como resultado de “uma cultura da adoção” promovida pelo 
Estado. (RINALDI, 2010; OTUKA; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2012; 
AMAZONAS; VERÍSSIMO; LOURENÇO, 2013; NASCIMENTO, 2011). 
Sobre a questão da motivação, Nizard (2009) afirma que as famílias, em sua 
maior parte, passaram primeiramente por tratamentos médicos na tentativa de 
fertilização, sendo a adoção uma decisão após o diagnóstico de infertilidade, como 
relatado em diversas outras pesquisas no Brasil (REPPOLD; HUTZ, 2003; 
SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006). 
 
El modelo privilegiado es el de la familia centrada en el lazo adulto-niño, que 
se relacionan voluntariamente en lo cotidiano, para vivir una relación directa, 
auténtica y responsable en términos de cuidado, educación y afecto. Hoy, la 
adopción es percibida cada vez más como la encarnación de este modelo y 
no como un desvío de la norma. (TARDUCCI, 2013, p.124)8. 
 
Seja qual for a motivação, o que está em jogo, para as pessoas ou os casais 
envolvidos, é a construção de um modelo de família que ainda é considerado um 
modelo ideal. Machin (2016), ao pesquisar sobre homoparentalidade, afirma: “Importa 
considerar que a decisão dos casais para realizar o projeto de ter filhos está informada 
por um contexto no qual estão em jogo valores culturais e simbólicos associados ao 
ideal de conformação de uma ‘verdadeira família’.” (MACHIN, 2016, p.354). Assim, a 
adoção é uma forma através das quais as famílias podem dar realidade ao projeto de 
parentalidade. 
Etimologicamente, a palavra adotar, do latim adoptare, significa considerar, 
escolher, cuidar. Conservando a origem do termo, de acordo com Levinzon (2004 
 
http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp-
content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf. Acesso em: 
21/9/2013). 
8 Tradução: O modelo privilegiado é o da família centrada no vínculo adulto-criança, que se relaciona 
voluntariamente no cotidiano, para viver uma relação direta, autêntica e responsável em termos de 
cuidado, educação e afeto. Hoje, a adoção é cada vez mais percebida como a incorporação desse 
modelo e não como um desvio da norma. 
http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp-content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf
http://www.aconchegodf.org.br/unirparacuidar/wp-content/uploads/2012/04/Relacao_de_Grupos_de_Apoio_a_Adocao_no_Brasil.pdf
18 
 
apud AMAZONAS; VERÍSSIMO; LOURENÇO, 2013, p.633)9, a adoção é uma forma 
de oferecer a uma criança, que não pôde ser criada pelos pais que a conceberam e 
gestaram, a oportunidade de fazer parte de uma família, sendo por ela desejada e 
cuidada. 
Fonseca (2006) assinala que o termo “adoção”, frequentemente utilizado pelos 
brasileiros de classe média, não faz parte do vocabulário cotidiano nos bairros pobres, 
onde são mais utilizadas variantes do verbo “criar”. “A distinção é significativa, pois, 
linguisticamente, a ênfase é colocada no vínculo mais do que no indivíduo autônomo.” 
(FONSECA, 2006, p.20). Nesses bairros, assim como pode ser visto em outro trabalho 
da mesma autora (FONSECA, 1995), encontra-se comumente a circulação de 
crianças, que é “(...) a transferência de uma criança entre uma família e outra, seja 
sob a forma de guarda temporária ou de adoção propriamente dita.” (FONSECA, 
2006, p. 13). A prática de circulação de crianças é antiga no Brasil e em vários países 
do mundo (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005; CARSTEN, 2014b), e 
aponta o quanto o cuidado das crianças pode ser realizado por pessoas para além 
dos pais ou da família próxima. 
Se na pesquisa do Mestrado parti da visão das crianças, aqui elejo partir do 
olhar dos avós, outra linha deste rizoma família. As crianças são os mais jovens deste 
emaranhado e, a meu ver (BAKMAN, 2013), trazem frescor, questionam coerência, 
colocam em xeque valores já adormecidos. E os avós, por sua vez, podem trazer a 
credibilidade de sua antiguidade, de seu posto, de sua história de vida percorrida, de 
valores afirmados, de caminhos já traçados. Seriam ambos os olhares tão diferentes 
assim? 
 
Avós e netos unem-se pelo parentesco; estão separados pela idade e pela 
diferença social resultante do fato que, como netos, estão em vias de vir a 
participar plenamente na vida social da comunidade dos avós que estão 
gradualmente se retirando dela. (RADCLIFFE-BROWN, 2013, p. 91). 
 
Tornar-se avó ou avô, seja por adoção ou não, não é uma escolha dos próprios, 
como já disse. Pode ser algo desejado, mas não depende deles sua ocorrência. No 
entanto, uma vez sucedido, os avós, vivos ou falecidos, presentes ou ausentes, 
próximos ou distantes, idosos ou mais jovens, tornam-se parte da história de um neto, 
assim como outros parentes da família extensa; mas, por serem pais dos pais 
 
9 LEVINZON, Gina Khafif. Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 
19 
 
possuem um local, geralmente, privilegiado de expressão e participação em nossa 
sociedade brasileira. 
Segundo Mietkiewicz (2005), na França, o aumento da esperança de vida, a 
melhoria do estado de saúde dos idosos, a diminuição da taxa de natalidade e a 
mudança dos modos de organização familiar contribuíram para modificar e 
transformar as representações dos avós. Segundo a autora, “Os avós são (...) 
convocados a representar a estabilidade quando as transformações da família mudam 
as referências.” (MIETKIEWICZ, 2005, p.103) 10. 
Mesmo com as mudanças ocorridas nas rotinas sociais, nas dinâmicas e 
valores familiares, os avós ainda participam da vida em família, sejam como 
cuidadores dos seus netos (PAIXÃO; MORAIS, 2016) ou não. E, quando distantes 
geograficamente, a casa dos avós e a relação com os mesmos apontam para um 
espaço importante de socialização entre as gerações (RAMOS, 2014). Para Barros 
(1989, p.33), “No meio familiar, os avós representam a imagem da união entre seus 
antepassados e seus descendentes”, e são fundamentais na manutenção da 
identidade familiar. As pesquisas mostram a importância que tem a presença de um 
avô ou avó na vida de um neto ou neta, diante das inevitáveis transformações da vida 
em família. 
Neste tópico dos cuidados dos netos, há diferenças relacionadas às diversas 
camadas sociais no Brasil, já que nas camadas populares é mais comum a presença 
dos avós no cuidado direto das crianças, e até no seu sustento (CARDOSO; BRITO, 
2014). O censo de 201011 destaca o contingente de netos (4,7%) presente numa 
unidade doméstica como mais expressivo que o de outros parentes, revelando a 
existência de uma convivência intergeracional no interior das unidades. 
Assim, o campo desta pesquisa foi composto por avós, judeus, que têm netos 
por adoção e que se dispuseram a conversar comigo sobre suas famílias. Importante 
ressaltar que, com esta discussão, a intenção não é de contrapor laços biológicos a 
laços adotivos, numa lógica dualista, apesar de saber que “a máquina binária procede 
assim, mesmo quando o entrevistador está de boa-fé.” (DELEUZE; PARNET, 2004,10 No original: “(...) les grands-parents sont (...) convíes à représenter la stabilité quand les 
transformations de la familiie bousculent les repères.» 
11 Dados do gráfico 42. Disponível em: 
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicili
os.pdf. Acesso em: 11/10/2018. 
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
20 
 
p. 32); mas sim discutir e pensar a respeito destas tensões, diferenças e 
deslocamentos. 
A religião é um dos eixos de conexão e de união entre as pessoas, que fortalece 
os vínculos e promove o pertencimento. É, geralmente, parte da cultura familiar na 
qual o filho, por adoção ou biológico, é inserido. Seu entroncamento com o cotidiano 
aponta para a sociedade em que vivemos. 
 
Já não é mais novidade sociológica a complexa e dinâmica relação 
estabelecida entre família e religião, uma vez que todas as transformações 
pelas quais atravessa a religião em nossa sociedade projetam reflexos sobre 
a família; ao mesmo tempo, as mudanças que percorrem o universo familiar 
brasileiro incidem em vários campos do social e, entre eles, no da religião. 
(FALCÃO, 2001, p.173). 
 
A escolha do judaísmo será melhor abordada, mas desde o início esteve 
presente como algo significativo já que, além do meu pertencimento, é uma religião 
que valoriza a família, a tradição e os laços de sangue. 
Então como pensar e definir as famílias nos dias de hoje? Sarti (2003) sugere 
pensar “(...) a noção de família como uma “categoria nativa”, ou seja, de acordo com 
o sentido a ela atribuído por quem a vive, considerando-o como um ponto de vista.” 
(SARTI, 2003, p.26, grifo da autora). Minha intenção, desde o início, foi perceber 
como se tecem os laços entre netos e avós, como a adoção é vivenciada pela família 
extensa, como a religião a atravessa e cruza, quais os valores que estão em cena e 
os sentidos que os avós atribuem ao viver em família. 
No primeiro capítulo, apresento a trajetória percorrida a partir das escolhas que 
delimitaram o campo da pesquisa: as inspirações metodológicas, teóricas e as 
características dos entrevistados. Aproveito para explanar aspectos do judaísmo e 
algumas questões ligadas a identidade judaica que são fundamentais para a 
compreensão do rumo das conversas, bem como apresentar algumas tradições, 
iniciando o leitor em algumas das peculiaridades deste grupo, do qual sou parte. 
Defino também os múltiplos sentidos do seu avô, hoje, em grandes centros. 
No capitulo dois, exibo o encontro com cada um dos meus entrevistados, 
pinceladas de suas histórias e das marcas que deixaram em mim e neste trabalho, 
que foi se produzindo a cada passo. 
No capitulo três, discuto temas que tencionam com as questões relativas à 
ausência de laços de sangue: como as famílias lidam com as histórias das crianças 
anteriores à adoção e com as diferenças de cor entre os membros nas novas famílias. 
21 
 
No capítulo quatro, a discussão procura compreender a importância da tradição 
e o posicionamento dos avós sobre a condição de judeu de seus netos por adoção, 
penetrando assim no cruzamento entre os temas da religião, da cultura e da 
convivência familiar. 
A todo instante, procuro apontar os efeitos desta pesquisa tanto em mim, em 
minha vida, na minha forma de pensar, quanto no contato com meus entrevistados e 
suas famílias. 
E termino, nas considerações finais, com a pretensão de ter aberto portas para 
um estudo contínuo e frutífero de temas tão fascinantes e atuais. Sem certezas, mas 
com novas afirmações, advindas de um caminho percorrido e trançado por muitas 
outras mãos. A viagem só está começando. 
 
 
 
22 
 
1 A TRAJETÓRIA E OS (DES)CAMINHOS DE UMA PESQUISA SOBRE FAMÍLIAS 
 
Todo texto é produzido em um lugar que é definido não apenas 
pelo autor, pelo seu estilo e pela história de vida deste autor, 
mas principalmente por uma sociedade que o envolve, pelas 
dimensões desta sociedade que penetram no autor, e através 
dele no texto, sem que disto ele se aperceba... 
José D´Assumpção Barros 
 
1.1 Inspirações metodológicas 
 
A Cartografia e a História Oral são as inspirações metodológicas deste trabalho, 
reunidas pela valorização e pelo reconhecimento das entrevistas como um recurso 
primordial, que abre e aponta caminhos, levanta ideias e produz saberes. A junção 
dessas duas perspectivas se justifica também, pois pretendo discutir como cada 
entrevistado, ao traçar sua história e trajetória de vida, vivencia o ser e estar em 
família, e, juntos produzimos saberes aqui articulados. 
Uma prática de pesquisa é um modo de pensar, segundo Corazza (2007). A 
autora afirma que não se opta por uma metodologia de pesquisa “(...) e sim por uma 
prática de pesquisa que ‘nos toma’, no sentido de ser para nós significativa.” 
(CORAZZA, 2007, p. 121), que está implicada em nossa própria vida. 
A Cartografia, como perspectiva teórico-metodológica, tem suas origens nos 
trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, embora tenha sido debatida e 
incorporada como prática de pesquisa por diferentes autores e grupos (BENET; 
MERHY; PLA, 2016) também no Brasil. 
A Pesquisa Cartográfica confia na potência dos encontros estabelecidos no 
processo de pesquisar. Há uma aposta na construção coletiva do conhecimento entre 
pesquisadores/pesquisadoras e pesquisados/pesquisadas. (KASTRUP; PASSOS, 
2014). “O pesquisador articulado vai a campo e move-se com ele para aprender; há 
um vínculo mútuo entre ele e aquilo que se faz presente no campo.” (POZZANA, 2014, 
p.59). 
Na Cartografia, fala-se em pistas porque não há regras fixas, mas sim uma 
forma fluida de se posicionar. Como método de pesquisa-intervenção, ela não se faz 
23 
 
de modo prescritivo: tem como diretriz estar sempre atento ao percurso, considerando 
os efeitos do pesquisar. 
 
Numa cartografia o que se faz é acompanhar as linhas que se traçam, marcar 
os pontos de ruptura e de enrijecimento, analisar os cruzamentos dessas 
linhas diversas que funcionam ao mesmo tempo. (KASTRUP; BARROS, 
2010, p. 90-91). 
 
Na Cartografia também não é possível separar a análise das demais fases da 
pesquisa. A atitude de análise está sempre presente: a pesquisa é constantemente 
interrogada. Tudo faz parte de um mesmo processo: “(...) os objetos não existem por 
si mesmos.” (BARROS; BARROS, 2014, p.183) 
 
Dessa forma, a cartografia é sempre uma pesquisa-intervenção, pois é 
impossível, no encontro com o objeto de estudo, não haver zonas de 
interferências e de indeterminações, que podem, ou não, levar a 
desestabilizações. Produzir conhecimento é desestabilizar, e isso é intervir. 
Nesse sentido, pesquisar é transformar, inventar, sempre. (ROMAGNOLI, 
2014, p.50) 
 
A História Oral, por sua vez, “(...) é um método de pesquisa que utiliza a técnica 
da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da 
experiência humana.” (FREITAS, 2002, p.18), valorizando as trajetórias de vida e os 
depoimentos pessoais (ARAÚJO; FERNANDES, 2006). É uma metodologia que 
pretende recolher as vozes, amplificá-las e levá-las ao espaço público do discurso e 
da palavra. 
A História Oral é uma história das memórias, do tempo das lembranças, que 
“(...) nos conta menos sobre eventos que sobre significados.” (PORTELLI, 1997a, 
p.31, grifos do autor). Ela diz respeito a versões do passado (PORTELLI, 1997b), 
moldadas de diversas formas pelo meio social, mas lembradas de forma 
profundamente pessoal. É nesta possível inconsistência ou fragilidade que a História 
Oral tem um sentido e um lugar a ser ocupado, com originalidade (MEIHY; HOLANDA, 
2007). 
 
(...). E... por que não? Por que não... ahistória oral? Por que não a intrusão 
de temas incômodos como a experiência, a memória, o autobiográfico, o 
vivido, o diálogo, a emoção, a linguagem, a ilusão, a mentira, a dúvida, a 
decisão, a suspeita, o infreqüente, o minoritário, o dividido, o reconstruído, o 
inaudível... na história? Por que não também os vivos, em adição às almas 
mortas? Por que não a Babel, a mistura de falas, ao invés de um único locutor 
onisciente? Por que não a versão e a diversão, a perturbar a seriedade 
historiográfica? (RODRIGUES, 2002, p. 98-99, grifos da autora). 
 
24 
 
O testemunho oral nunca é igual duas vezes, ele é construído a cada encontro, 
já que o entrevistador também se intromete com suas perguntas, silêncios e 
expressões. É o resultado do diálogo entre pesquisador e pesquisado (FREITAS, 
2002). 
Tedesco, Sade e Caliman (2014) afirmam a importância da montagem da 
entrevista como experiência compartilhada, entre entrevistador e entrevistado(s), 
estabelecida no domínio da linguagem. Para estes autores, a entrevista é uma 
ferramenta eficaz na construção e acesso a esse plano, tornando-a um procedimento 
cartográfico que é favorável não somente a “(...) acompanhar processos, como 
também, por meio de seu caráter performativo, neles intervir, provocando mudanças, 
catalisando instantes de passagem, esses acontecimentos disruptivos que nos 
interessam conhecer.” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014, p. 93). 
O entrevistador, no meu caso entrevistadora, não é uma simples observadora, 
pois algo se constrói no encontro da entrevista: “O olhar não é do tipo que se debruça 
sobre as mutações vividas nesse processo, mas daquele que se constrói junto com 
elas e como parte delas.” (ROLNIK, 2014, p.15, grifos da autora). 
As entrevistas são como uma mola mestra que faz funcionar o todo. Através 
delas é possível acionar a micropolítica, como definida por Rolnik (2014, p.11): as “(...) 
questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o político, 
o social e o cultural, através dos quais se configuram os contornos da realidade em 
seu movimento continuo de criação coletiva.”. O que me interessa é o saber do dia a 
dia, do cotidiano, da convivência, como acontece em e para cada um dos envolvidos, 
e como as práticas se expandem para o coletivo ou dele tomam força. 
 
Quaisquer que sejam os seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: 
não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o 
insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez 
também o lugar de toda significação possível. (BLANCHOT, 2007, p.237). 
 
A entrevista exige dos participantes uma interação na experiência, uma 
entrega, uma cumplicidade. As emoções precisam estar presentes, permitindo a troca. 
“Fazer passar os afetos: é isso que parece gerar brilho.” (ROLNIK, 2014, p.47, 
grifo da autora). 
A confiança é um tema discutido por autores como Sade, Ferraz e Rocha 
(2014), que a consideram elemento essencial e ético a ser construído no espaço da 
entrevista. Me é impossível pensar na realização dos encontros, seja para troca de 
25 
 
informações, contagem de histórias, escuta de relatos ou exposição de opiniões, sem 
que tenha sido alcançado um bom grau de confiança entre os participantes. 
Há de se ressaltar, nessa pesquisa, o fato de que os/as entrevistados são 
membros da comunidade judaica e, como também o sou, acredito que isto permitiu 
que a intimidade se construísse de uma forma mais fácil, a partir deste espaço 
partilhado. Partíamos de um ponto onde eu não era totalmente estrangeira e que 
nosso mundo detinha vários cruzamentos. Parte dos entrevistados me conheciam 
diretamente ou conheciam a minha família, conforme será descrito caso a caso. 
Tal proximidade poderia gerar algum desconforto, que sempre é pertinente a 
momentos de exposição mais intensa, como a que vivemos juntos, embora não tenha 
sido a minha impressão mais forte. E sim, de que o terreno em comum, não totalmente 
desconhecido, interferiu positivamente na força dos encontros e na construção de uma 
confiança a priori. “Eis o que encontramos na palavra confiança: con fiar – fiar com, 
tecer com, composição e criação com o outro/outrem.” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 
2014, p. 69, grifos dos autores). 
Os autores acima citados destacam dois aspectos incluídos na noção de 
confiança: engajamento e indeterminação. Compreendo que isto diz respeito à 
entrega da pesquisadora e do(a/s) participante(s), como também ao fato de as 
entrevistas serem pouco conduzidas, livres para tomar diferentes rumos, se criando a 
cada palavra, gesto ou olhar. 
Sade, Ferraz e Rocha (2014) também afirmam que é preciso estar disponível 
no tempo, para os assuntos, ou ainda nas condições que se apresentam, “(...) pois 
confiança demanda tempo, temporalidade na qual se estabelece a sintonia afetiva e 
o engajamento que nela se baseia (...).” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014, p. 85). 
Aspectos que fui aprendendo pelo caminho, “aos trancos e barrancos”, conforme vou 
relatar. 
Importante dizer que a todo instante me senti também interrogada pelas 
questões do campo, pelas narrativas dos entrevistados, pelos impactos de toda esta 
experiência em minha vida como mulher, mãe, judia, entrevistadora, pesquisadora, e, 
quem sabe um dia, avó! Sentimentos e questões que partilho em cada uma de minhas 
palavras. 
Ser um pesquisador implicado é analisar o lugar que se ocupa nas relações 
sociais e “não apenas no âmbito da intervenção que está sendo realizada. (...). É, 
portanto, afirmar o diverso, as diferenças que estão em nós e no mundo.” (COIMBRA; 
26 
 
NASCIMENTO, 2008). A implicação (ROMAGNOLI, 2014) é sempre efeito de um 
conjunto de valores, interesses, expectativas, desejos e crenças. 
 
1.2 Outras inspirações 
 
Desde a elaboração do projeto para a inscrição na seleção do Doutorado, iniciei 
um levantamento bibliográfico de artigos através do Scielo, do Capes Periódicos e 
busquei outras fontes que foram sugeridas por colegas ou citadas por outros autores. 
Os artigos encontrados sobre adoção, apesar de numerosos, nem sempre 
foram possíveis de serem articulados com o trabalho aqui proposto, sobretudo pela 
diferença de enfoques e de propósitos. Há bastante escritos sobre esta temática, mas 
poucos que dizem respeito ao cruzamento dos temas aqui sublinhados, seja família 
extensa e adoção, seja religião e adoção, seja avós e adoção; e menos ainda que 
façam uso de abordagem metodológica semelhante. 
Boa parte dos autores se debruçam sobre questões específicas como a 
subjetividade dos técnicos que produzem os pareceres nas Varas de Família 
(CAMPOS; COSTA, 2004) ou a atuação fonoaudiológica no processo de um caso com 
adoção (SANTANA et AL, 2014), por exemplo. Uma maioria aponta impasses e 
problemas, aspecto que será ainda discutido. Apesar desta dificuldade de articulação, 
procuro citar todos aqueles que, de alguma forma, dialogam com a pesquisa aqui 
apresentada. 
Um grande achado nesta revisão foi a pesquisadora Sophie Nizard, que fez, na 
França e em Israel, uma ampla pesquisa sobre adoção com pais judeus, 
representantes religiosos e agências governamentais. Será bastante citada porque 
aborda, justamente, questões próximas ao que será apresentado e discutido neste 
estudo. Apesar de suas pesquisas não serem realizadas no Brasil, e as comunidades 
judaicas possuírem características diversas em cada país ou cidade que se 
encontram, algumas semelhanças e muitas das suas reflexões foram um alento para 
pensar esta pesquisa. 
Na busca, descobri, em uma revista12, uma menção à uma pesquisa, intitulada 
“A experiência da adoção pelo olhar dos avós”, conduzida por Nira Degani, sob a 
supervisão da Prof. Ariela Lowenstein e Dr. Eli Buchbinder da Faculdade de Bem-
 
12 https://www.news-medical.net/news/2007/04/17/23680.aspx Acesso em: 23/01/2018. 
27 
 
Estar Social e Estudos de Saúdeda Universidade de Haifa. O artigo menciona seu 
ineditismo por ter analisado as relações de adoção pelo ponto de vista dos avós. 
Porém, apesar de rastrear os nomes pela internet e, entrar em contato com a 
Universidade e com o próprio orientador, nada mais foi possível saber. O único 
material disponível para a leitura, além desta pequena menção, é o texto original em 
hebraico13. Nada foi publicado em outra língua, tornando-se um trabalho difícil de ser 
explorado, infelizmente. 
O resumo sobre esta pesquisa descrita no artigo, reproduzo aqui, já que pela 
impossibilidade de acesso, não disponho de mais dados. A pesquisadora entrevistou 
15 avós, entre 59 e 90 anos, e identificou, o que ela nomeia, como cinco estágios no 
desenvolvimento das relações emocionais entre avós e seus netos adotados. Na 
primeira etapa, um avô olha o neto como uma solução para a angústia causada pela 
incapacidade de seu filho ou filha trazer uma criança para o mundo. No segundo 
estágio, enquanto uma forte conexão emocional ainda está ausente, o avô racionaliza 
a adoção e convence-se de que seus filhos salvaram uma criança abandonada. O 
terceiro estágio é marcado por uma conexão emocional superficial e, na quarta etapa, 
o avô aceita a criança como parte integrante da família multigeracional. Na fase final, 
os avós começam a expressar preocupação de que, quando seu neto completar 18 
anos, ele começará a procurar detalhes sobre sua família biológica e poderá optar por 
estabelecer um relacionamento com eles e abandonar sua família adotiva, o que 
demonstra que os avós já olham o neto por adoção como um membro inseparável de 
sua família. Muitos desses aspectos se repetiram na presente pesquisa, como será 
possível observar, apesar das diretrizes teórico-metodológicas parecerem bastante 
diferentes, e que não eu não tenha nenhuma inclinação para organizar um padrão que 
seja comum a todos aqui entrevistados. 
Quanto à revisão, há poucas pesquisas no Brasil, que se dedicaram aos 
estudos com ou sobre avós, camada da população geralmente de idade avançada, 
por vezes, considerada improdutiva e com menor relevância social em nossa 
sociedade. Porém, há alguns estudos, sobre a relação entre eles e seus netos, que 
foram bons interlocutores (CARDOSO; BRITO, 2014, PAIXÃO; MORAES, 2016, 
RAMOS, 2014). Aqui ressalto uma publicação francesa, organizada por Schneider, 
 
13 Link para a pesquisa enviado pela biblioteca da Universidade de Haifa: - סבאות במשפחות מאמצות
 :Acesso em . חווית האימוץ בעיני הסב / מאת: נירה דגני ; בהדרכת: אריאלה לבנשטיין, אלי בוכבינדר
17/10/2018. 
https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine
https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine
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https://haifa-primo.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=972HAI_MAIN_ALMA2179958630002791&context=L&vid=HAU&lang=iw_IL&search_scope=books_and_more&adaptor=Local%20Search%20Engine
28 
 
Mietkiewicz e Boyer (2005), intitulada “Grands-parents et grands-parentalités”14, com 
uma diversidade de artigos, casos e pesquisas, bastante atuais, como por exemplo, 
com avós cujos netos são filhos de casais homossexuais (JULIEN; BUREAU; 
BRUMATH, 2005), ou sobre a relação com “netos emprestados15”, filhos de parceiros 
de novos casamentos de seus próprios filhos, e que passam a conviver com as 
famílias (SCHNEIDER, 2005). 
Quanto ao campo dos estudos judaicos é possível encontrar vasto material 
sobre a imigração e a formação das comunidades judaicas pelo território nacional, 
como as amplas pesquisas de Egon e Frieda Wolff16, por exemplo, que preenchiam 
as prateleiras de minha casa. 
A diversidade e as características da comunidade judaica não são foco de 
trabalhos acadêmicos no Brasil, apesar do grande número de pesquisadores judeus, 
segundo Bernardo Sorj (2008). Para o autor, os cientistas sociais, de diferentes 
origens étnicas, estão mais identificados com uma agenda de pesquisa onde os 
problemas sociais encontram-se associados à classe e, mais recentemente, a gênero. 
Blay (2008) afirma que as Ciências Humanas, ao privilegiarem o critério racial para 
olhar a população brasileira, reduziram as diferenças internas de cada grupo. 
 
Apesar de os judeus terem um papel importante na construção de 
movimentos políticos e ideológicos, na vida econômica e científica do Brasil, 
são pouquíssimos os trabalhos que procuraram compreender os processos 
socioculturais de formação e transformação da comunidade judaica no Brasil. 
(SORJ, 2008, p.1). 
 
Em publicação recente, Grin e Gherman (2017) consideram que os estudos 
judaicos, desde os anos 2000, têm realizado uma virada, com pesquisas na área de 
história, ciências sociais e língua/literatura, adquirindo legitimidade no cenário 
acadêmico das grandes universidades; e que a sua produção já não depende do 
aporte mais direto das comunidades judaicas e suas instituições. 
 
14 Tradução: “Avós e avosidades”. Na introdução (SCHNEIDER, MIETKIEWICZ E BOYER, 2005, 
p.24-25) falam sobre a criação do termo grand-parentalité (avosidade) a partir do neologismo 
parentalité (parentalidade). O sentido da palavra ainda será explorado, mas é utilizada para 
designar a relação existente entre avós e netos, que diz respeito tanto à competência como a um 
status social. 
15 No original: « beaux-grand-parents ». A expressão “neto emprestado” é utilizada por uma amiga 
que vive esta experiência, e me parece uma boa possibilidade de tradução. 
16 Egon e Frieda Wolff, pesquisadores, integrantes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 
autores de dezenas de livros sobre a Imigração Judaica no Brasil, como: Judeus no Brasil Imperial. 
São Paulo: Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Judaicos, 1975; Judeus nos primórdios 
do brasil-republica. Rio de janeiro: Biblioteca Israelita H. N. Bialik, 1981. Disponível em: 
http://www.cbg.org.br/colegio/historia/antigos-titulares/egon-wolff/ Acesso em: 01/07/2018. 
http://www.cbg.org.br/colegio/historia/antigos-titulares/egon-wolff/
29 
 
Por sua vez, os estudos sobre família e parentesco são abundantes e 
perpassam os campos da Antropologia, História, Psicologia e outros mais, formando 
um vasto e diversificado campo de discussão, que muito inspirou todo este percurso. 
Assim, a revisão de todos esses campos de estudos indica a originalidade do 
tema escolhido e faz supor sua importância. A ausência destas correlações em outros 
trabalhos pode apontar também para um aspecto que foi, até recentemente, marcante 
em nossa sociedade: o segredo por detrás das adoções e a dificuldade de se tratar 
de um tema que expõe o que, com frequência, pode ser compreendido como 
fragilidade dos envolvidos, por indicar infertilidade, homossexualidade ou mesmo a 
monoparentalidade, assuntos ainda trancados na intimidade das famílias. 
 
1.3 Aproximando o olhar 
 
O procedimento adotado nesta pesquisa foi de entrevistas abertas porque 
aposto, como já apresentado, que a pesquisa acontece em um espaço do meio, onde 
não há polos estáveis sujeito-objeto, e sim um espaço dialógico. Segundo Sade, 
Ferraz e Rocha (2014), a entrevista é o campo de circulação de determinados 
discursos. É um campo interativo (SOLON; COSTA; ROSSETTI-FERREIRA, 2008) 
em que as características de cada participante, seja ele entrevistado(s) ou 
entrevistadora, marcam o fluxo e o curso da conversação. 
Ao iniciar o campo, planejava buscar participantesde outras religiões, como o 
espiritismo e o candomblé, visto terem aspectos semelhantes no que tange ao não 
proselitismo e a uma importância concedida aos laços familiares, mesmo que de forma 
diferente do judaísmo. No entanto, esta intenção foi alterada a partir da banca de 
qualificação, porque, diante de tantas sugestões apontadas e perguntas formuladas, 
percebemos, eu e minha orientadora, que já havia material abundante, nos encontros 
com os avós judeus, para uma ampla discussão do cruzamento dos temas família, 
adoção e religião. 
 
(...) os planos, teórico e empírico, da pesquisa estabelecem entre si uma 
conversação, um processo de contágio ininterrupto entre ideias e gestos 
técnicos que exigem desvios, mudanças no projeto, a serem realizadas ao 
longo de todo desenvolvimento da investigação. (TEDESCO, 2015, p.33). 
 
Antes desta tomada de decisão, realizei uma entrevista com um avô católico, 
feliz, naquele momento, com a oportunidade de incluir um participante do sexo 
30 
 
masculino, pois já havia entrevistado duas avós judias. Sabia que Barros (1987), ao 
pesquisar família na perspectiva dos avós, teve dificuldade em encontrar homens que 
se dispusessem a dar seus depoimentos, o que a fez, na época, concluir que falar de 
família era um assunto da esfera feminina. Aspecto também encontrado por 
pesquisadores franceses que afirmam que os avôs são menos pesquisados que as 
avós (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005). E quando citados nas 
pesquisas (SCHNEIDER; BOYER, 2005), é possível perceber um paralelismo com os 
trabalhos existentes sobre a presença/ausência do pai, onde o acento é colocado 
sobre a perspectiva da carência ou da deficiência. 
Assim, ao decidir me limitar aos avós da comunidade judaica, retirei este 
material da tese, mas como a entrevista teve aspectos muitos interessantes, 
justamente ligados à questão do gênero, ela foi aproveitada em um artigo, já aprovado, 
mas ainda não publicado na revista Arquivos Brasileiros de Psicologia. 
Entrevistei 10 famílias, 13 avós, moradores da zona sul e da zona norte, nas 
faixas etárias entre 69 e 90 anos. Os avós pertencem às camadas médias, são judeus 
e tem netos por adoção, entre 4 e 45 anos. Os entrevistados são provenientes da 
minha rede pessoal. As indicações e os contatos foram realizados, geralmente, 
através da geração de filhos, que estão na minha faixa etária e de meus amigos, 
implicando, desde o início, mais de uma geração na realização da pesquisa. 
Na busca para compor o campo tive algumas recusas, alguns pedidos de 
indicação sem resposta, e alguns indicados que, por doença ou falecimento, não foi 
possível acionar. Uma em especial eu lamentei por ser uma situação ainda mais 
incomum na comunidade: um casal de mulheres, ambas judias, mães de dois filhos 
por adoção, mas que acabou por falecer enquanto a nora me pedia para esperar seu 
restabelecimento. Eu a vi num depoimento em um programa de TV e obtive seu 
contato através de um dos meus entrevistados. Apesar dessas perdas ou 
impossibilidades, há bastante material para ser explorado. 
 
 
1.3.1 Camadas médias 
 
Os entrevistados pertencem às camadas médias da cidade do Rio de Janeiro. 
Quadros, Gimenez e Antunes (2012) utilizam-se da sociologia do trabalho para definir 
31 
 
os padrões de vida do que chamam de “nova classe média dos anos 2000”, inspiradas 
em Wright Mills (1979 apud QUADROS, GIMENEZ E ANTUNES, 2012, p.3)17. 
 
O conceito de nova classe média – classe social que não é proprietária dos 
meios de produção e que também não trabalha na fábrica com as mãos, como 
o operário – é amplo o suficiente para incluir ocupações as mais diversas e 
rendimentos os mais díspares: do vendedor de loja ao diretor do grande 
banco, do office boy ao advogado do grande escritório. (QUADROS, 
GIMENEZ E ANTUNES, 2012, p.7). 
 
A ideia de uma nova classe média surge em contraposição à composta pelos 
pequenos proprietários e profissionais liberais típicos dos EUA de fins do século XIX. 
Sua expansão, segundo Quadros (1990 apud NOGUEIRA, 1995)18, é fruto do impacto 
provocado pelas transformações econômicas, decorrentes do capitalismo: criação de 
novas ocupações ligadas à racionalização e burocratização das áreas administrativa, 
financeira e comercial da moderna empresa, à aplicação do conhecimento científico à 
produção, à expansão da burocracia do Estado, ao assalariamento dos profissionais 
liberais e intelectuais. Portanto, essa camada não forma um todo homogêneo: seus 
diversos segmentos abrangem pequenos proprietários e artesãos, profissionais 
liberais, funcionários públicos e quadros médios do setor privado. 
Segundo Nogueira (1995) é comum, nas Ciências Sociais, a distinção entre a 
fração tradicional, composta pelos pequenos proprietários (rurais, da indústria ou do 
comércio) e pelos profissionais liberais, e, a "nova" classe média constituída pelos 
setores assalariados. Há uma segmentação dessa camada, com um grupo que se 
caracteriza pela posse de um certo capital cultural e por ocupações de nível superior, 
e que são mais ou menos equiparadas em capital econômico e social. 
Para Salem (1986) a compreensão da lógica simbólica e dos padrões éticos 
das chamadas “camadas médias” não pode ser reduzida ou apreendida somente a 
partir de critérios socioeconômicos; devem estar associados a outras distinções de 
cunho simbólico, pela “(...) demarcação de experiências capazes de gerar uma 
identidade comum entre os indivíduos.” (SALEM, 1986, p.26). 
 
1.3.2 Avós 
 
 
17 WRIGHT MILLS, Charles. A nova classe média - White Collar. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 
18 QUADROS, Valdir José de. Classes Médias no Desenvolvimento Brasileiro Recente, palestra 
proferida no Centro de Estudos de Cultura e do Consumo (CECC). EAESPIFGV, São Paulo, 1990. 
32 
 
Aos avós não cabe a tarefa definida da educação do neto: o 
tempo que lhes é concedido de convívio se entretém de carícias, 
histórias e brincadeiras. A ordem social se inverte: dos armários 
saem coisas doces fora de hora, o presente já não interessa (...). 
Ecléa Bosi 
 
Um dos fios que se tornou iluminado nas conversas sobre essas vidas e 
famílias, foi a compreensão do significado de ser avó e avô nesses tempos da vida 
contemporânea. 
Oliveira, Vianna e Cárdenas (2010, p.461) utilizam o termo avosidade e a 
definem como um laço de parentesco que “(...) está intimamente ligada às funções 
materna e paterna, das quais, entretanto, se diferencia, exercendo papel determinante 
na formação do sujeito.”. Ao avaliar a relação entre avós e netos na infância, as 
autoras concluem que há uma forte proximidade entre eles neste período, na 
percepção de ambos; mas que essa relação se modifica à medida que os netos 
crescem. 
Como já comentado, no caso da língua francesa, o termo grand-parentalité é 
proveniente do neologismo francês parentalité (SCHNEIDER, MIETKIEWICZ E 
BOYER, 2005), parentalidade em português, que já está bastante difundido nos 
escritos sobre família. Ao longo do texto, vou fazer uso do termo, avosidade, para me 
referir a relação entre avós e netos. 
Meus entrevistados não pensavam, no início de suas vidas adultas, em serem 
avós. Sua visão de vida, naquele momento, limitava-se à sua própria trajetória e, no 
máximo, a da geração seguinte - seus filhos. Os ciclos da vida, bem como os projetos 
e os sonhos, ocorrem em etapas, por exemplo: a busca e o amadurecimento pessoal 
e profissional, a formação de um casal, a passagem para uma nova dinâmica familiar; 
a vinda de filhos, sua criação e sustento, as preocupações em cada etapa de seus 
crescimentos e; de repente, com o passar do tempo, o tornar-se avó/avô, a mudança 
geracional, de tornar-se o mais velho, o menos necessário, geralmente. 
 
Se tornar avô – e é o nascimento do primeiro neto que impõe, pela lei da 
genealogia, este novo status -, é operar um " salto de geração ".E a entrada 
na avosidade é sempre um choque, mesmo quando o evento é fortemente 
desejado. (SCHNEIDER E BOYER, 2005, p.62)19. 
 
19 No original: “Devenir grand-parent – et c’est la naissance du premier petit-enfant qui impose, par la 
loi de la généalogie, ce nouveau statut -, c’est opérer un « saut de génération » et la première étape, 
l’entrée dans la grand-parentalité, est toujours un choc, même lorsque l’evénement est fortement 
souhaité. ». 
33 
 
 
É notório um crescente envelhecimento da população mundial, no Brasil e em 
outros países, possivelmente relacionado à melhoria das condições de vida e aos 
avanços da medicina. Pelo que demonstram as pesquisas, no Brasil a velhice é 
feminina, refletido na amostra dos meus entrevistados. Segundo o IBGE, houve um 
aumento de 18%, da população idosa, entre 2012 e 2017, sendo 56% de mulheres20. 
Em estudo a partir de um censo no Canadá, Milan e Hamm (2003) justificam 
semelhante aspecto pela maior longevidade da mulher e pelo fato delas, geralmente, 
casarem mais jovens. 
Na Europa, até o século XVIII, a imagem dessa geração estava vinculada à 
velhice, à decadência e à morte. Ao longo dos anos, observa-se a transformação das 
características dos avós, consequência do aumento da esperança de vida e do recuo 
do modelo patriarcal, até então assimilado a uma autoridade forte da geração mais 
velha, com certa distância afetiva. (PEIXOTO, 2000). 
O aumento da esperança e da qualidade de vida e a coexistência de várias 
gerações são fenômenos sociais importantes da atualidade que obrigam a revisões 
paradigmáticas. Segundo Schneider e Bouyer (2005), pesquisadores franceses, com 
o advento dos valores contemporâneos como dinamismo, autonomia, realização 
pessoal, a geração atual dos avós não dispõe de normas e modelos elaborados de 
como ser avós. Essas normas se constituem progressivamente. 
 
A face da velhice, na atualidade, apresenta, enquanto construção social, 
aspectos muito diferentes em relação àquela que se exibia no início do século 
XX. Até mesmo a nomenclatura para essa fase da vida modificou-se com o 
aparecimento de outras designações. Terceira idade, melhor idade, feliz 
idade, maturidade, segunda juventude...: novas materialidades, novos 
sujeitos e novos procedimentos para referir-se à velhice, assim como alusões 
a novas possibilidades de vivê-la. (CORREA, 2009, p.28). 
No entanto, mesmo com as mudanças sociais e do perfil da velhice, a imagem 
dos avós como velhos e com menor vida ativa e social, ainda permanece: 
 
Por muito tempo – e isso ainda persiste –, a figura de um idoso foi 
apresentada por uma vovozinha típica dos contos de Monteiro Lobato, como 
a famosa Dona Benta (...) E assim, junto com Dona Benta, há idosos atletas, 
modernos, atarefados, ociosos e tantos outros mais. 
(CORREA, 2009, p.106/7). 
 
Segundo Peixoto (2000), as relações afetivas entre avós e netos se tornam 
mais significativas a partir dos anos 1930, quando os primeiros se tornam 
 
20 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-
2017.html Acesso em: 10/09/2018 
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017.html
34 
 
colaboradores dos pais na socialização das crianças. Cardoso (2010) justamente 
destaca que muitas avós mulheres, na realidade brasileira, precisam trabalhar, mas 
que mesmo assim ajudam os filhos das mais diversas formas, nos cuidados e/ou no 
sustento dos netos. 
Ao estudar as transformações decorrentes do nascimento de filhos, Dessen e 
Braz (2000), notaram que o maior apoio que as famílias recebem advém das famílias 
maternas e de parentes do sexo feminino. Robin (2005), pesquisadora francesa, 
também aponta para o mesmo aspecto, o que traz à tona uma boa discussão sobre 
as relações de gênero intrafamiliares, ainda presentes, apesar de tantas mudanças já 
encontradas nas dinâmicas familiares. 
As pesquisadoras Dias, Costa e Rangel (2005), em suas pesquisas com avós 
que criam netos, também percebem um maior envolvimento dos avós do lado 
materno. Segundo as autoras, cabe às avós manter e cuidar dos vínculos. Portanto, 
homens e mulheres inserem-se na vida familiar segundo referenciais de gênero, 
apreendidos ao longo da vida e que determinam funções socialmente legitimadas 
(FREITAS et al, 2009, p.86). Como já nos alertava Debert (1994, p.35): “(...) a 
experiência de gênero assim como a de envelhecimento está sempre moldada por 
outras experiências de forma que é preciso desestabilizar qualquer noção de 
identidade como coerente unitária e fixa.”. 
Na minha pesquisa, percebi que a relação entre avós e netos ainda é forte e 
importante, pelo ponto de vista dos avós. Os relatos sobre as famílias, a convivência, 
os relacionamentos, exalam carinho, amor e cuidado, num movimento que, de alguma 
forma, parte deles e volta para eles, como um bumerangue. Um processo que se 
planta, a partir do nascimento, educação e crescimento dos próprios filhos e se colhe 
através dos netos. 
A proximidade afetiva entre avós e netos está, segundo Peixoto (2000), ligada 
à qualidade da relação que os primeiros mantêm com seus filhos e respectivos 
cônjuges. Segalen (1999), pesquisadora francesa, afirma que a família se baseia na 
duração e na continuidade. 
Os avós relataram que o contato com os/as netos/as era (e ainda é) mais 
frequente quando eles eram menores, tinham menos atividades sociais e os avós 
eram mais solicitados a ajudar em seu cuidado. A casa cheia, o barulho das crianças, 
o dia a dia corrido remetem a uma forte saudade e a um tempo que não volta mais, 
para muitos cujos netos já estão crescidos. 
Paula et al (2011) indicam mudanças na relação intergeracional entre avós e 
netos segundo a percepção dos primeiros, que consideram que “a autoridade antes 
35 
 
existente deu lugar a conflitos e à falta de respeito.” (PAULA et al, 2011, p.919), fruto 
de uma educação com muita liberdade e sem controle. Assim, segundo as autoras, 
os avós, que antes ocupavam papéis centrais no modelo de família patriarcal, 
passaram a exercer papéis periféricos. Eles ganharam uma maior autonomia e 
independência, mas ocorreu um afastamento entre os grupos intergeracionais no seio 
familiar. 
Um dos problemas enfrentados pela geração dos avós é a solidão, já que a 
rede social se torna reduzida, pela morte de amigos e parentes, os compromissos se 
tornam menos frequentes, uma vez que, apesar de autônomos e ativos, muitos já 
estão aposentados, fora de ambientes de trabalho e, por vezes, afetados por 
problemas de saúde que agravam a locomoção e o deslocamento. A solidão e o 
isolamento foram mencionados por algumas entrevistadas que moram sozinhas e são 
viúvas. 
 
É na velhice que recai, de forma mais intensa, o isolacionismo da sociedade 
contemporânea. A condição de solidão a que muitos idosos estão submetidos 
é avassaladora. O afastamento do mundo do trabalho, única condição de 
expressão e valor humanos, da vida social, do lazer e isolados no próprio 
espaço doméstico, suas possibilidades de contato e apropriação do mundo 
encontram-se bastante reduzidas. (CORREA, 2009, p.12). 
 
Parte da solidão e do isolamento é enfrentada e minimizada pelo uso dos meios 
de comunicação. “(...) se os encontros são menos frequentes, as conversas 
telefônicas são muito intensas.” (PEIXOTO, 2000, p.95-96), e foram mencionadas 
pelos avós. Mas, importante acrescentar, as conversas por aplicativos de mensagens, 
por vídeo, as informações recebidas via redes sociais, que os entrevistados citaram 
como formas de manterem-se conectados e em contato, especialmente, com os 
jovens da família. 
Mas como alerta Correa (2009) em sua “Cartografias do Envelhecimento na 
Contemporaneidade”, nem sempre a população mais idosa tem acesso a esta vida 
computadorizada e tem, muitas vezes, dificuldade em se adaptar ao “(...) ritmo 
acelerado para o manejo desses produtos.” (CORREA, 2009, p.91). 
Ramos (2014) em sua pesquisa sobre a relação entre netos e avós mostra que 
as correlações entre proximidade geográfica e afetiva são bastante complexas e que 
a casa dos avós representa um espaço importante de socialização, realizada através 
do convívio pessoal e/ou virtual entre essas duas gerações. 
Os avós da minha pesquisa mostraram-se ainda ativos, social e/ou 
profissionalmente, com boa saúde e a possibilidade de usufruir da vida. Apesar de 
desejosos de conviver mais com seus familiares, compreendem que a falta de tempo 
36 
 
faz parte da vida contemporânea. Parte deles tornaram-se avós com idades de 40 e 
50 anos, mas estou me referindo ao tempo das entrevistas realizadas, em que se 
encontravam entre 70 e 90 anos. 
Mesmo com a distância provocada pela correria da vida, pela possível 
dificuldade de usar os novos meios de comunicação, dos obstáculos oriundos da 
idade avançada, ou justamente por conta disso, os avós entrevistados mostram-se 
afoitos e abertos à alegria dos momentos em que podem estar com seus filhos e netos. 
Acredito que as conversas realizadas foram vividas por muitos dos avós, 
justamente como momentos em família, porque filhos e netos tornaram-se vivos e 
presentes, encheram a sala com suas vozes e gestos. As lembranças, as conquistas 
e as dificuldades de todas estas vidas foram comigo compartilhadas, com sabor de 
uma rica e intensa trajetória, ora como retratos em preto e branco, nostálgicos, ora 
como fotos coloridas, digitais, bem atualizadas. 
 
1.3.3 O judaísmo 
 
Para pensar o judaísmo no século XXI não podemos passar ao 
largo da noção de família. Isso porque a melhor maneira de 
definir o judaísmo é uma família. A complexidade do judaísmo 
está em ser um pouco de tudo que não é: não é religião, não é 
filosofia, não é cultura, não é etnia, não é estado, não é terra. É 
tudo ao mesmo tempo. Mordechai Kaplan tentou expressar isso 
dizendo que somos uma civilização. A definição, no entanto, seja 
nos estatutos, seja na memória popular, é que somos uma 
família. 
Nilton Bonder 
Falar sobre judaísmo é falar sobre um campo que abrange temáticas diversas, 
como: religião, tradição, identidade e comunidade, questões fundamentais para 
acompanhar a discussão provocada nas entrevistas a respeito da condição judaica 
dos netos adotados, bem como das manifestações culturais das famílias envolvidas. 
Os dois últimos, identidade e comunidade, são conceitos relevantes para tentar dar 
um contorno ao que significa ser judeu. 
Ainda que de perspectivas diferentes, Stuart Hall e Judith Butler desconstroem 
a ideia de uma identidade fechada, internalizada no indivíduo: “As categorias de 
37 
 
identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e, como tal, 
exclusivistas.” (BUTLER, 1998, p.24). 
 
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma 
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e 
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma 
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis (...). 
(HALL, 2003, p. 13). 
 
Comunidade, por sua vez, é um termo clássico da sociologia, embora seja 
usado de forma difusa no cotidiano: comunidade da internet, comunidade de um 
bairro, comunidade de uma torcida de futebol, comunidade de uma universidade, entre 
outros. Para MacIver e Page (1973), um critério básico para chamar um grupo de 
comunidade é quando todas as relações sociais de alguém podem ser encontradas 
dentro dela; quer dizer, os interesses e a vida social se concentram basicamente nela. 
Esta descrição parece bastante difícil, rara e pouco fluida para descrever muitas 
comunidades existentes nos dias globalizados de hoje na sociedade ocidental. 
Para muitos de nós judeus, a palavra comunidade, só e simplesmente, é o 
termo que utilizamos para nos referirmos ao nosso grupo, de convívio ou não, a quem 
supomos que partilhe de alguns valores, envolvendo algumas peculiaridades e que, 
sem dúvida, vem carregada de sentimentos e experiências, que tenho o desafio de 
aqui iluminar porque estão intimamente ligadas às questões da pesquisa e às minhas 
implicações. 
No livro “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual”, Bauman (2003) 
explora o quanto o mundo se encontra distante da possibilidade de viver em 
comunidade. Suas primeiras linhas se relacionam muito bem a este campo de 
pesquisa: 
 
As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A 
palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer 
que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade”, “estar em 
comunidade”. (BAUMAN, 2003, p.7). 
 
1.3.3.1 Pistas históricas 
 
A chegada dos judeus no Brasil (DECOL, 2001) data do período colonial com 
a chegada dos convertidos, banidos da Península Ibérica a partir de fins do século 
XV. Chamados de cristãos-novos, tiveram participação importante nos primórdios da 
38 
 
formação da população brasileira, mas não o fizeram com uma identidade religiosa, 
cultural e histórica distinta. 
A primeira referência de uma vida comunitária judaica brasileira, cuja presença 
se estende até os dias de hoje, são as comunidades judaicas da Amazônia (TOPEL, 
2005), especialmente nas cidades de Belém, Manaus e algumas interioranas. Sua 
característica principal foi a homogeneidade: a maioria era oriunda da África do Norte. 
A presença judaica assumida como tal se inicia no século XIX. No entanto, a 
imigração judaica, de forma maciça, começou com o desenvolvimento da navegação 
a vapor e o estabelecimento de linhas comerciais entre a Europa e o Brasil, na 
segunda metade do século XIX. O movimento ganhou volume significativo na década 
de 1920, quando Estados Unidos e Argentina introduziram restrições à entrada de 
judeus e outros grupos. A partir de 1937, com a ascensão do Estado Novo de Getúlio 
Vargas, surge uma discussão pública da conveniência ou não da presença de judeus 
no país. 
Nos grupos que chegaram ao Sul e ao Sudeste do Brasil, antes da Primeira 
Guerra Mundial, no período entre guerras e após a Segunda Guerra Mundial, 
encontra-se uma grande variedade de lugares de origem. A organização social, ou 
seja, a criação de sinagogas, escolas e redes assistenciais tiveram como padrão as 
regiões das quais emigraram, criando um leque de diversidades. 
Interessante notar que, no Brasil, a pergunta sobre religião já existia nos censos 
do Império. Os judeus já haviam sido tabulados separadamente em 1900, embora na 
época não passassem de algumas centenas. Devido, provavelmente, ao aumento da 
população judaica, chamada pelo Estado Novo de questão judaica (DECOL, 2001, p. 
152), no censo de 1940, os judeus já foram enumerados em uma categoria 
independente, dentre outras dez. Desde 1990, a pergunta sobre religião voltou a ser 
aberta e no censo de 2010, o IBGE enumerou dados para 148 denominações 
diferentes21, mostrando que o Brasil é um país de imensa multiplicidade étnica, cultural 
e religiosa. 
Nas primeiras gerações, havia uma adesão maior dos judeus a profissões 
ligadas ao comércio, justificada pelo desconhecimento da língua. Apesar de os judeus 
apesentarem algum destaque, em alguns campos profissionais, numericamente 
somos poucos. A população judaica no Brasil é de cerca de 107 mil22, que21 Disponível em: https://pt.slideshare.net/pletz/relatorio-22132833. Acesso em: 01/04/2017. 
22 Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado. Acesso em: 05/01/2109. 
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado
39 
 
correspondem a 0,06% da população brasileira. Quando calculada a população 
estendida, isto é, todas as pessoas que moram em domicílio onde haja uma pessoa 
de religião judaica e com quem tem uma relação de parentesco direto, chega-se a 150 
mil pessoas23. 
Segundo Grin e Gherman (2016b) há uma interessante discrepância entre o 
que a própria comunidade quantifica, cerca de 90 mil, e os dados censitários que, 
segundo os autores, deve apontar para uma diferença entre os que se declaram 
judeus e os que professam a religião. Desde esta diferença já é possível perceber 
quão intrincada é a questão da identidade judaica. 
 
1.3.3.2. Povo, cultura, religião 
 
Assim, Topel (2005) traz uma interessante pergunta: “quais são os critérios das 
comunidades judaicas brasileiras para responder à complexa pergunta: “quem é 
judeu?”. A lei judaica afirma que é judeu aquele que nasce em ventre judeu ou aquele 
que se converte ao judaísmo. No entanto, segundo a autora, as comunidades judaicas 
não ortodoxas flexibilizam esse critério diante das mudanças ocorridas nas relações 
entre os judeus e as sociedades de acolhimento, que redundaram em altos índices de 
assimilação24, com o incremento de casamentos mistos25, sincretismo religioso, 
mudança de valores, entre outros. Azria (2000) compreende que os judeus integram 
novas dimensões à sua identidade judia, modelando-a com o objetivo de integração 
ou de assimilação. Ser judeu e como ser judeu tornaram-se livre escolha de cada um. 
Topel (2005) afirma que a grande maioria dos judeus brasileiros, no entanto, 
por viver numa sociedade que privatizou, pluralizou e subjetivou a fé, recria um 
judaísmo que se distancia da autoridade religiosa e cujo componente de escolha deu 
origem ao que Jonathan Sacks (1991 apud TOPEL, 2005, p.196)26 denominou “judeu 
adjetivado”. Assim, a identidade judaica na diáspora convive com outras identidades, 
 
23 Disponível em: https://pt.slideshare.net/pletz/relatorio-22132833. Acesso em: 01/04/2017. 
24 A palavra assimilação é bastante usada nos mais diversos meios judaicos para indicar um 
movimento pessoal que um judeu realiza de diluir e se afastar de sua cultura, podendo chegar ao 
ponto de perder todos os traços que dizem respeito a este grupo de pertencimento, no desejo de se 
incluir e ficar mais próximo ao meio em que vive. 
25 Casamento misto é uma expressão usada quando somente um dos membros do casal é judeu. 
26 SACKS, Jonathan. (Ed.). Orthodoxy Confronts Modernity. London, Ktav Publishing House, 1991. 
40 
 
como ser brasileiro, pertencer a algum partido político ou até de algum time de 
futebol27. 
A noção de diáspora é uma discussão importante nas Ciências Sociais, 
especialmente diante das mudanças ocorridas em torno dos conceitos de identidade 
e territorialidade. Diáspora significava dispersão, o que torna implícito um ponto de 
origem, uma terra natal (COHEN, 2008, p.519), experiência não limitada aos judeus, 
mas presente na vida de uma ampla gama de grupos étnicos. Cohen (2008) considera 
que mesmo na diáspora judaica, a ideia de terra natal está perdendo força. 
 
Será que podemos dilatar ainda mais os sentidos históricos do conceito de 
lar diaspórico para incluir novas formas de mobilidade e deslocamento e a 
construção de novas identidades e subjetividades? Proponho que adotemos 
a expressão “diáspora desterritorializada” para incluir as feições de uma série 
de experiências diaspóricas incomuns. Nesses exemplos, supõe-se que os 
grupos étnicos perderam os pontos convencionais de referência territorial, 
tornando-se, de fato, culturas móveis e multilocalizadas com lares virtuais ou 
incertos. (COHEN, 2008, p.527). 
 
Sorj (2004, p.69) não admite um modelo normativo para designar o que são 
diásporas, e sim “(...) todos aqueles grupos sociais que se autodefinem como tais 
(...).”. E é desta forma que tal conceito está sendo utilizado aqui, já que é uma 
definição usual neste grupo, que seguramente se refere não a um retorno desejado e 
necessário ao Estado de Israel, mas a ele como centro da vida e da história judaica, 
de um local que agrega, para muitos, sentimentos e sensações especiais. 
Diante deste cenário, torna-se fundamental explicitar a complexidade do 
judaísmo como identidade. Ser judeu é visto, geralmente, como o pertencimento a um 
povo que possui uma história, que mantém determinadas tradições e rituais, que se 
encontra espalhado ao redor do mundo. No entanto, nem sempre pertencer ao povo 
judeu significa conhecer a cultura judaica ou professar a religião. 
 
Como é possível ser agnóstico ou ateu e judeu ao mesmo tempo? Esta 
pergunta, que ouço repetidamente, supõe que o judaísmo se reduz a uma 
religião. (SORJ, 2001, p.33). 
 
Muitos judeus se dizem judeus em função de seus posicionamentos morais e 
éticos, sem seguir os preceitos religiosos, a partir de regras e noções, pautadas por 
histórias do Velho Testamento, que abrangem muitas áreas da vida. Eles estão se 
baseando. Justamente, em orientadores éticos, como o princípio simples e famoso: 
 
27 Um exemplo curioso é o da comunidade no Facebook chamada de Idishflu, para judeus que torcem 
pelo time do fluminense. Parece piada, mas não é. 
41 
 
“(...) amarás o teu próximo como a ti mesmo (...).”, conforme consta em Levítico 
(19:18). 
Para outros, a mensagem deste conjunto ético está relacionada, por exemplo, 
a posicionamentos filosóficos como do sábio do Século I, chamado Hillel: “Se eu não 
for por mim, quem o será?” Que significa dizer que todos devem defender sua saúde, 
sua vida. Mas, ainda: “E se eu for somente para mim?”, significando que a vida sem 
solidariedade, responsabilidade pelo destino de outrem, amor ao próximo, não faz 
sentido. E: “Se não agora, quando?” que afirma que é preciso acionar as atitudes, sem 
delongas28. 
A prática da educação no judaísmo vai além do puro e simples 
acompanhamento dos princípios religiosos judaicos. Ela visa ao desenvolvimento do 
ser humano como um todo, em suas facetas intelectual, emocional, comportamental 
e moral. 
A vida comunitária não se restringe à pratica religiosa. Há uma enorme gama 
de instituições que proporcionam o pertencimento: escolas, clubes, organizações de 
mulheres, de idosos, grupo de jovens, de universitários, centros culturais – espaços 
onde a vida, a educação e a cultura judaicas se misturam, sejam ou não com cunho 
religioso. 
O judaísmo religioso se divide em três grandes correntes29: a ortodoxa, a 
reformista e a conservadora/conservativa. Os ortodoxos são os que cumprem de 
forma estrita os preceitos estipulados pela Lei Judaica, que determina quais alimentos 
devem ser consumidos, o descanso aos sábados e as leis da pureza dos corpos, entre 
outros. As crianças têm uma educação distinta da educação secular, com o objetivo 
de formá-los na ortodoxia religiosa. A corrente reformista não segue rigidamente a 
dieta alimentar, o descanso sabático e alguns procedimentos dos rituais religiosos, 
aceitando as mudanças do mundo atual, manifesta, nos rituais, pelo uso das línguas 
dos países onde se encontram e na equiparação do status entre homem e mulher. 
O judaísmo conservador, situa-se entre as duas correntes: as mulheres também foram 
igualadas aos homens, mas discordam dos reformistas no alcance de suas propostas. 
 
28 Disponível em: http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/etica/etica.html e 
http://www.morasha.com.br/etica/impactos-da-etica-judaica-no-seculo-xxi.html. Acesso em: 
10/11/2018. 
29 Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/religiao/correntes-judaismo-moderno.htm;https://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2015/10/14/Grupos-Judaicos; 
http://culturahebraica.blogspot.com/2013/12/quais-sao-as-diferentes-denominacoes.html. Acesso 
em: 17/10/18. 
http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/etica/etica.html
http://www.morasha.com.br/etica/impactos-da-etica-judaica-no-seculo-xxi.html
https://brasilescola.uol.com.br/religiao/correntes-judaismo-moderno.htm
https://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2015/10/14/Grupos-Judaicos
http://culturahebraica.blogspot.com/2013/12/quais-sao-as-diferentes-denominacoes.html
42 
 
Dentre outras correntes surgidas mais recentemente, destaco o Judaísmo Secular 
Humanista, onde o foco está em celebrar a tradição, a cultura, a ética e os valores. 
Posso afirmar que até mesmo entre judeus há dificuldade de compreender as 
nuances e as diferenças decorrentes de tão variadas linhas filosóficas, de distintas 
interpretações dos textos sagrados, bem como sua aplicação no cotidiano.30 “Em sua 
história milenar o judaísmo nunca constituiu um bloco monolítico (...).” (TOPEL, 2005, 
p.191). 
 
Em nenhum sentido a comunidade judaica é homogênea. A definição de 
judeu tem significados múltiplos e muitas vezes contraditórios: há judeu 
ortodoxo, secular, reformista, askenazita, sefaradita, progressista, 
conservador, homens, mulheres, gays. Essa lista pode ser quase inesgotável. 
(GRIN; GHERMAN, 2016a, p. 27, grifo dos autores). 
 
A discussão sobre identidade judaica na diáspora é um tema bastante presente 
em diversos países onde encontram-se comunidades judias. Discussão, fruto do 
desejo de se inserir na sociedade mais ampla, mas também manter alguma 
identidade. Para Bauman (2011), os judeus são o resumo de uma incoerência, pois 
formam justamente uma nação não nacional. 
 
Interpretações acerca do significado da presença judaica em qualquer país 
são uma questão complexa, tanto para os próprios judeus como para os não 
judeus. Esse quadro se explica porque as populações judaicas são variadas 
e seus múltiplos segmentos se relacionam entre si de formas variadas. 
(LEHMANN, 2016, p.9). 
 
Para Anthias (1998 apud COHEN, 2008, p. 521)31, o discurso diaspórico 
dedicou pouca atenção às divisões internas nas comunidades étnicas ou às 
possibilidades de negociações culturais seletivas entre as comunidades. As 
diásporas se auto representam através de uma imagem de unidade, que desconhece 
a sua diversidade interna (SORJ, 2004). Mas como afirma Pelbart (2011, p.33) “(...) a 
comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita de interrupção, fragmentação, 
suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros.”. 
Gherman (2016) acredita que a imagem de ser uma comunidade fechada se 
deve às redes de apoio que auxiliaram os imigrantes em seu processo de adaptação, 
desenvolvendo “fronteiras” que mediavam as atividades dos judeus com outros grupos 
 
30 Por exemplo, é possível encontrar grupos como “Judeus para Cristo” e Congregação Humanista 
liderado por rabinos ateus. 
31 ANTHIAS, Floya. Evaluating “diaspora”: beyond ethnicity. Sociology, London, v. 32, n.3, p. 557-
580, ago. 1998. 
43 
 
sociais. “Se, para um olhar exterior, os judeus são definidos basicamente como 
membros de um grupo religioso, internamente prevalecem inúmeras modalidades de 
auto percepção e coesão grupal.” (SORJ, 2008, p. 59). 
 
Historicamente os judeus construíram, ao longo do tempo e em diferentes 
países, instituições para garantir a sobrevivência tísica, cultural e religiosa. 
Esta rede de instituições constituiu a base da comunidade judaica nos países 
de origem. Os imigrantes e as gerações posteriores tanto puderam mantê-
las, ampliá-las ou reduzi-las. (BLAY, 2008, p.28) 
 
Azria (2000) salienta que as identidades judias contemporâneas se constroem 
a partir de referências e de símbolos extraídos da tradição. Contudo, segundo ela: 
“Guiado por sua subjetividade tanto quanto por sua história pessoal, cada um 
transforma-se em seu próprio centro de decisão e inventa para si um judaísmo de 
ocasião.” (AZRIA, 2000, p.218), constituindo uma relação cada vez mais 
individualizada com a tradição. O judeu contemporâneo não se forma somente a partir 
do modelo comunitário, seus quadros de vida não lhes são impostos por sua 
dependência étnica ou religiosa. 
 
Em todas as épocas, os judeus mantiveram íntima relação com sua tradição. 
Não cessaram de escrutiná-la, folheá-la, interrogá-la, discuti-la ou até 
contestá-la, por ela mesma, mas também pela arte de viver que ela impôs a 
cada uma de suas gerações. (AZRIA, 2000, p.8) 
 
Herbert Danzger (1989 apud HERVIEU-LÉGER, 1993, p.251)32 diz que a 
tradição deixou de ser a evidência de um modo de vida transmitido de geração em 
geração, para se tornar um objeto de preferência subjetiva, da parte dos indivíduos 
que assim os escolhe. 
Segundo Hervieu-Léger (1993), a modernidade desconstruiu os sistemas 
tradicionais de crença, mas não a crença, que ainda se exprime num modo 
individualizado, subjetivo, disperso, e que pode resultar numa multiplicidade de 
combinações e de agenciamentos de significação que os indivíduos elaboram de 
forma cada vez mais independente do controle das instituições religiosas. As 
expressões modernas de necessidade de crença, segundo ela, estão ligadas à 
incerteza estrutural de uma sociedade em permanente mudança. “Ser religioso, na 
modernidade, não se trata de saber se engendrar e sim querer se engendrar.” 
 
32 DANZGER, Herbert. Returning to tradition. The Contemporany Revival of Orthodox Judaism. New 
Haven, Yale University Press, 1989. 
44 
 
(HERVIEU-LÉGER 1993, p.245)33. Assim parece que, até hoje, a busca do 
pertencimento pela religião ou pela tradição parte de um desejo pessoal de integração 
e adquire um formato individualizado. 
Para Allouche-Benayoun (2011) o judaísmo hoje pode ser experimentado como 
herança religiosa, cultural ou familiar, característica comum e presente na França, ou 
em muitas comunidades na diáspora, como aqui no Brasil. 
 
Povo, nação, comunidade, cidadãos? Os judeus são e foram tudo isso. É 
claro que cada um desses termos inscreve-se num registro que lhe é próprio. 
(...). Expressão de um certo vinculo consigo próprio e com o mundo informado 
por uma lei e uma tradição, o judaísmo (...) é, ao mesmo tempo, este acervo 
precioso e esta realidade viva que, de geração em geração, os judeus têm se 
esforçado para reinventar e transmitir, cada vez. (AZRIA, 2000, p. 220). 
 
Kaplan (2010) considera que o judaísmo é uma herança social porque é a soma 
de usos característicos, ideias, normas e códigos através dos quais os judeus se 
diferenciam e se individualizam. Para ele, as comunidades judaicas na diáspora 
concedem aos judeus a oportunidade de viver o judaísmo como civilização. “O termo 
“civilização” é usualmente aplicado ao acúmulo de conhecimento, habilidades, 
instrumentos, artes, literatura e filosofias que situam entre os homens e natureza 
externa (...).” (KAPLAN, 2010, p.179)34. E, segundo o autor, entre os costumes que 
uma civilização não pode renunciar, estão os que têm relação com a formação da 
criança. 
 
O judaísmo inclui uma tradição religiosa com uma diversidade de correntes, 
mas que a partir do início dos tempos modernos ele se diversificou, criando 
versões seculares ou mesmo militantemente ateias que o transformaram em 
algo que certos autores designam como uma tradição cultural nacional e, 
outros, como uma civilização. (SORJ, 2001, p.33). 
 
Quer dizer, ser judeu ou se considerar judeu é algo que varia imensamente. 
Para mim, por exemplo, é um sentimento de pertencimento, cultural e simbólico. E, os 
ritos religiosos, que pratico parcialmente, são um modo de manter vivas as tradições 
e seus sentidos, que considero importantes. Mas é sempre bom frisar que esta 
discussão será guiada, neste estudo, pela perspectiva dos avós! Meu olhar, o discursoreligioso, as práticas comunitárias são pontos que atravessam o campo e, sem dúvida, 
os avós e suas famílias, como pretendo explorar. 
 
33 No original: “Être religeux, em modernité, ce n’est pas tant se savoir engendré que se vouler 
engendré.». 
34 No original: “The term “civilization” is usually applied to the accumulation of knowledge, skills, tools, 
arts, literature, laws, religions and philosophies which stands between man and external nature 
(...). » 
45 
 
 
1.3.3.3 Adoção e judaísmo 
 
Segundo a lei tradicional do Velho Testamento35, chamada de Halachá3637, 
seguida pelos judeus religiosos nos últimos 3300 anos, qualquer pessoa nascida de 
mãe judia é judia. Uma outra forma de tornar-se judeu ocorre através da conversão. 
Mas, como dito acima, ser/se considerar judeu, do povo judeu, não significa 
necessariamente seguir alguma corrente religiosa. 
Além de aceita pela lei judaica, a adoção é considerada uma Mitsvá, isto é, uma 
ação positiva. Porém, são necessários alguns cuidados para que a mesma seja 
realizada conforme a lei religiosa. Em primeiro lugar, saber se a mãe biológica é judia. 
Caso seja, deve-se também saber quem é o pai, já que não seriam aceitas crianças 
geradas fora do casamento ou frutos de incesto. Caso a mãe natural não seja judia, 
ou se desconheça sua origem, é necessário fazer uma conversão da criança, como 
com qualquer não-judeu que deseje ingressar na religião. 
A conversão de crianças pequenas consiste de algumas etapas e rituais: Mikve, 
que é um banho ritual, uma cerimônia de dar nome, circuncisão, para os meninos, e 
a garantia de criação em um lar judeu. A maioridade religiosa, chamado de 
Bar/Batmitzva, pela qual todo jovem judeu deve passar, o filho adotado, ao realizar, 
demonstra que concorda com a conversão. É uma confirmação, já que, geralmente, a 
mesma foi realizada à revelia quando a criança era ainda pequena. Para os ortodoxos 
há regras mais rígidas porque de todos os seus integrantes é exigida maior 
observância das obrigações religiosas. 
 
35 As informações relativas às leis de adoção são provenientes de alguns sites, de uma conversa 
com um rabino reformista, pela leitura de jornais religiosos e de informações provenientes da minha 
própria vida comunitária. São esclarecimentos importantes porque constam nas conversas 
realizadas com os avós e no desenvolvimento do texto. 
Disponíveis em: https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e-
Complicaes.htm ; http://press.ccar-
ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searc
hText=adoption&context=-1 Acessos em: 2/7/2018. https://www.jewishvirtuallibrary.org/adoption ; 
http://www.jewishencyclopedia.com/articles/852-adoption ; 
https://www.jlaw.com/Articles/maternity4.html . Acessos em: 31/01/2018. 
36 Todas as palavras em língua estrangeira que se remetem a aspectos do judaísmo e necessitam de 
uma explicação mais ampla encontram-se disponíveis no Glossário, evitando-se assim a repetição 
de informações. 
37 Halachá significa “caminho” em hebraico, o que indica, para alguns intérpretes, a busca pelos 
possíveis sentidos. 
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e-Complicaes.htm
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2510683/jewish/Adoo-Procedimentos-e-Complicaes.htm
http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1
http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1
http://press.ccar-ebook.com/Contemporary_American_Reform_Responsa/~searchResults?searchMode=quick&searchText=adoption&context=-1
https://www.jewishvirtuallibrary.org/adoption
http://www.jewishencyclopedia.com/articles/852-adoption
https://www.jlaw.com/Articles/maternity4.html
46 
 
Para a conversão de adultos há ainda o requisito de um estudo profundo das 
leis religiosas, algum grau de observância, participação na comunidade e a passagem 
por um tribunal rabínico. 
Realizando uma análise da minha implicação, percebendo como as famílias 
vivem a experiência da adoção, noto que ao tornar o cruzamento entre religião judaica, 
adoção e família uma questão, estava partindo dos meus próprios preconceitos, 
advindos da minha vivência e cultura comunitária. “Colocar em análise as implicações 
permite, portanto, perceber as multiplicidades, as diferenças, a potência dos 
encontros, sempre coletivos e a produção histórica desses mesmos objetos, sujeitos 
e saberes.” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2015, p.131). 
 
 
47 
 
2 MEUS ENTREVISTADOS 
 
A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim 
transforma o narrador sua matéria, a vida humana. 
Ecléa Bosi 
 
As entrevistas foram plenas de emoções e surpresas. Fui me encantando pelos 
meus entrevistados e suas histórias de vida. Os encontros ocorreram de diferentes 
modos: ora íntimos e intensos, ora mais pragmáticos, ora bem-humorados, ora 
angustiados e tensos, mas sempre com boa dose de cumplicidade tecida em apenas 
algumas horas, muito além do que eu poderia imaginar. 
Portelli (1997b) alerta que, como pesquisador, é preciso estar disposto a ouvir 
não somente aquilo que acreditamos querer ouvir, como também o que o entrevistado 
considera importante contar, o que, provavelmente, superará as expectativas. E, foi 
desta forma que vivi esta trajetória, me senti sempre começando e me surpreendendo, 
percebendo que o projeto de pesquisa se adensava a cada passo, tomando um rumo 
próprio. 
Cada encontro, com suas particularidades, me provocou novos aprendizados e 
iluminaram outros temas para a discussão. Trilhei os novos percursos, sem perder as 
pistas anteriormente marcadas como de meu interesse. “Entrevistar exige uma 
abertura ao estranho como o navegador que é capaz de abandonar por instantes seus 
instrumentos de navegação produzindo assim uma deriva necessária no encontro do 
novo.” (SOUSA, 2015, p.87). 
Ao iniciar a pesquisa, não percebia o desafio de falar desde dentro, de explicar 
coisas que já me são familiares. Como também de equacionar, questões sobre sigilo 
e confiança, por sermos todos de uma mesma, e pequena, comunidade. Apesar dos 
entrevistados terem assinado os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido 
(TCLE)38 e, deles não se preocuparem, aparentemente, com o destino das 
informações que me davam sobre suas vidas, me senti numa saia justa. 
 
38A pesquisa foi inscrita no Plataforma Brasil (CAE 57974016.0.0000.5282) e todos os entrevistados 
assinaram o TCLE - exigência da resolução 510/16 do CNS. Muitas revistas da área de Psicologia, 
hoje, exigem a aprovação para publicação de artigos derivados da pesquisa. O eventual 
afastamento gerado pelo TCLE, que burocratiza o início do encontro pessoal, foi contornada com a 
mudança de tom provocada pelo início da conversa. Sua assinatura não salvaguarda nenhuma das 
partes, pois o critério ético do pesquisador, a entrega de informações pessoais são muito mais 
decorrência da confiança do que deste instrumento. Em algumas áreas do conhecimento, é 
fundamental que as pessoas sejam esclarecidas sobre os riscos que correm, o que não é 
48 
 
Meus primeiros contatos, geralmente, foram os filhos, pais das crianças por 
adoção, e eles sim demonstraram certa apreensão e curiosidade com os 
desdobramentos da pesquisa. Quem assinava o termo de responsabilidade, e quem 
concedia a entrevista, era somente o avô e/ou a avó, mas incluía relatos sobre outras 
vidas, no mínimo de mais duas gerações. Não queria expor o que tão cuidadosamente 
estava me sendo ofertado. Havia uma grande confiança depositada em minha escuta, 
que eu não queria quebrar, não poderia. Me senti imbricada nas delicadezas de suas 
vidas. 
A preocupaçãose fortaleceu ao escrever o texto para a banca de Qualificação: 
Como eu poderia me sentir bem em expor essas vidas sem autorização direta? 
Embaralhá-los, solução encontrada por alguns pesquisadores, ou trocar alguns 
dados, não me pareceu fazer jus à riqueza dos encontros e da linha cartográfica aqui 
escolhida. Meu desejo é apresentar meus entrevistados e suas vidas, dar-lhes o lugar 
de destaque que tiveram na minha trajetória de pesquisa, mostrar as passagens 
incríveis de suas histórias e as pessoas interessantes e singulares que são. 
Então, a melhor decisão que encontrei foi manter o que pudesse ser dito e 
suprimir o que facilitasse a identificação. Tal conduta omitirá alguns dados de vida 
interessantes. Lamento. Também me é difícil abrir mão de detalhes, obsessiva como 
sou; mas é o único modo de deixar que a beleza destes encontros possa ser descrita 
e compartilhada, sem encobri-los com subterfúgios. Deixo, assim, aos leitores, espaço 
para preencher com seus próprios devaneios, usando certa dose de magia e 
imaginação. 
Pretendo que cada entrevistado se materialize, para que todos possam 
conhecê-los, pois cada um deles teve uma força e uma presença marcante no traçado 
desta pesquisa. Descrevo-os, por ordem cronológica das entrevistas. Em cada 
apresentação há um genograma da família, trechos de conversa, e do meu diário de 
campo. 
O genograma (WENDT; CREPALDI, 2008) é uma descrição gráfica de como 
membros de uma família estão relacionados uns aos outros, abrangendo várias 
gerações, muito utilizado na Terapia de Família, para facilitar a compreensão da 
dinâmica familiar. 
O diário de campo é um dispositivo importante para a análise de implicação, 
pois “(...) trabalha com o cotidiano da pesquisa, historicizando-o, registrando-o, 
 
exatamente o caso desta pesquisa. De todo jeito, para mim, com certeza, esta assinatura não 
aquietou minhas dúvidas e preocupações. 
49 
 
potencializando-o; ou seja, incluindo-o naquilo que normalmente fica fora dos relatos 
considerados científicos.” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2015, p.133). O diário de 
campo também permite ao leitor mergulhar na experiência da entrevista, 
reconstruindo os cenários, as impressões, reverberando a minha voz como 
entrevistadora, dando vitalidade ao texto e ao encontro, que vai além da transcrição 
propriamente dita. 
Para mim, o diário foi experiência essencial para deixar fluir todos os detalhes, 
emoções e pensamentos que me inundaram a cada encontro. Para Rolnik (2014, 
p.225), o diário serve “para registrar as cartografias que vão sendo 
descobertas/inventadas ao longo da expedição. É o que permite ao cartógrafo 
prosseguir viagem.”. 
As entrevistas foram registradas com gravador digital de voz e transcritas por 
mim. Apesar de que “a mais literal tradução é dificilmente a melhor, e uma tradução 
verdadeiramente fiel sempre implica certa quantidade de invenção.” (PORTELLI, 
1997a, p. 27), mantive o cuidado ao ouvir e transcrever, conectada ao conteúdo e ao 
que a melodia estavam a me dizer. Há autores que sugerem o termo transcriação, 
enfatizando justamente o caráter de recriação (MEIHY; HOLANDA, 2007) de uma 
entrevista, apontando para os atributos subjetivos do entrevistar e do narrar. Por isso, 
considero fundamental que eu mesma tenha realizado esta tarefa, retomando as 
emoções e intenções contidas nas palavras e nos silêncios: “Mas se você se força a 
ouvir, descobre muitas coisas: percebe as pausas e os silêncios, a entonação, o que 
não acontece na transcrição, mesmo quando você se esforça. (...). E praticamente 
consegue “sentir” o diálogo.” (THOMSON, 1997, p.243). 
Meus entrevistados abriram as portas de suas casas, o que me proporcionou 
penetrar em sua vida de forma efetiva e afetiva. Observei e senti a atmosfera, através 
da mobília, das fotos, dos ruídos e sabores. Violette Morin (1969 apud BOSI, 1994, 
2003)39 chama de objetos biográficos os que envelhecem com o seu possuidor e se 
incorporam à sua vida. Eles representam as experiências vividas, afetos, e que por 
envelhecerem juntos, dão uma sensação de continuidade. 
 
Se a mobilidade e a contingência acompanham nosso viver e nossas 
relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na 
velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam. Mais que um sentimento 
estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição 
no mundo, à nossa identidade. Mais do que da ordem e da beleza, falam à 
nossa alma em sua língua natal. (BOSI, 1994, p.441). 
 
 
39 MORIN, Violette. L’Object. Communications, 13, 1969. 
50 
 
Em muitas casas, as fotos me foram mostradas no transcurso da conversa. Em 
outras, foram incluídas, ao final, num passeio às estantes e aos porta-retratos, 
geralmente oferecido de forma espontânea com o intuito orgulhoso de me mostrarem 
seus filhos e netos. Quando não, foram por mim solicitados. 
 
(...) retratos antigos e recentes são retirados de gavetas ou apontados em 
lugares expostos na casa, trazendo aos relatos um tom mais concreto como 
se, através dessa amostragem, eu, enquanto pesquisadora, pudesse ser 
apresentada a todos esses familiares dos quais ouvi falar durante algumas 
horas. (BARROS, 1989, p.35). 
 
As entrevistas também foram recheadas pelas comidas que, em alguns casos, 
me remeteram a casa da minha própria e querida avó. Comida é um ingrediente muito 
presente na cultura judaica e é, com muita frequência, em torno da mesa que os 
encontros familiares acontecem. 
Uma outra marca forte d é o gosto pelas ironias e piadas. O judeu gosta de rir 
de si mesmo (embora não goste que os outros riam dele). O humor judaico utiliza o 
jogo de palavras, a ironia e a sátira, direcionados, principalmente, a zombar do próprio 
grupo, com elementos dialéticos que acabam por enaltecer suas peculiaridades. 
Tradição que pretendo manter ao longo do texto porque são bons e deliciosos modos 
de compreender um jeito típico de ser judeu.40 
Assim, há muitas piadas relacionadas à importância que o alimentar-se bem 
tem para as mães super protetoras judias, chamadas de ídiche mame, que quer dizer 
simplesmente, mães judias, porém, sinônimo de uma relação super protetora, 
onipresente, orgulhosa e exigente sobre sua prole41. 
As entrevistas foram recheadas de passagens que, muitas vezes, se 
confundem com eventos históricos, como a 2ª Guerra Mundial, a criação do Estado 
de Israel, as ondas imigratórias. “Nos círculos judaicos, as histórias familiares são 
muitas vezes parte da história mais ampla e ativa dos judeus, submetida durante o 
 
40 Uma boa fonte, utilizada aqui algumas vezes é: ZYLBERSZTAJN, Abram. As melhores piadas 
do humor judaico. Vol. 1. Editora Garamond, 2001 
41 Duas mães judias se encontram no parque: 
- Sarah, quais são as idades dos seus filhos? 
- O engenheiro tem oito anos, e o médico, seis! 
https://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&tbo=p&tbm=bks&q=inauthor:%22Abram+Zylbersztajn%22
51 
 
século XX, às perseguições, ao Shoah42 e a várias migrações no contexto da 
descolonização.” (NIZARD, 2009, p.61)43. 
Todos os entrevistados se ofereceram para serem novamente entrevistados 
caso eu precisasse, sem que eu tivesse perguntado a este respeito. Alguns 
manifestaram enfaticamente seu desejo de voltar a conversar comigo. Credito este 
movimento a um conjunto de fatores: o bom encontro, a cumplicidade construída, a 
oportunidade de falar de si e de sua vida e a solidão na idade avançada, já aqui 
comentada. Penso que, especialmente em nosso tempo e estilo de vida cotidiana, tão 
corrida e sem espaço, com os filhos e netos já crescidos, um momento de boa 
conversa pode tornar-se, realmente, um acontecimento. Segundo Patai (2010), aceitar 
ser entrevistado significa usufruir de um tipo de escuta intensa encontrada nesta 
oportunidade, a qual não pareceexistir na vida cotidiana. “Assim, a oportunidade de 
falar longamente sobre a própria vida, de ter sua história gravada, tornar-se 
significativa.” (PATAI, 2010, p.24). 
A importância deste momento para meus entrevistados e a cumplicidade 
construída entre nós, me fez sentir responsável por tentar reencontrar alguns deles, 
saber como estavam, manter-me presente e mostrar meu afeto e gratidão por tudo 
que tinham me proporcionado. O desejo é voltar a encontrá-los simplesmente para a 
manutenção da relação, para usufruirmos, novamente, um da companhia do outro, 
para falar da vida com intimidade e intensidade. 
 
Nos encontros cotidianos, são tecidos vínculos e conexões que nos 
permitiram indagar, sem questionar, os sentidos que as pessoas deram às 
suas práticas e acompanhá-las em suas jornadas pelos diferentes territórios 
de onde construíram suas ações. Nesse sentido, se produzia cuidado nos 
encontros com os participantes, em um processo multidirecional. (BENET; 
MERHY; PLA, 2016, p.238)44. 
 
Para ajudar no percurso das conversas, segue um quadro com os nomes e 
alguns dados dos participantes à época das entrevistas realizadas. Todo os nomes 
 
42 De origem religiosa, o termo Shoah, Holocausto, empresta caráter à morte, aceita em submissão à 
vontade divina. Tornou-se o termo padrão para se referir ao genocídio nazista contra o povo judeu 
ocorrido nas décadas de 30/40. Para uma interessante discussão sobre o uso do termo: 
DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Re. Dig. de Est. 
Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, out. 2007. 
43 No original : «En milieu juif, les histoires familiales s’inscrivent bien souvent dans l’Histoire plus 
large et mouvementée des juifs, soumis au cours du XXe siècle, aux persécutions, à la Shoah, et 
aux diverses migrations en contexte de décolonisation.». 
44 No original: “En los encuentros cotidianos se fueron tejiendo vínculos y conexiones que permitían 
indagar, sin cuestionar, los sentidos que las personas daban a sus prácticas y acompañarlas en sus 
recorridos por los diferentes territorios desde donde construían sus acciones. En este sentido, se 
estaba produciendo cuidado en los encuentros con los y las participantes, en un proceso que era 
multidireccional.”. 
52 
 
são fictícios. Escolhi Sarah para a minha primeira entrevistada pela força do seu 
simbolismo: Sarah é a primeira matriarca da história do povo hebreu e, ela, minha 
primeira entrevistada. 
Os nomes e apelidos das demais pessoas, quando citados, foram substituídos 
por outros que mantivessem, quando possível, proximidade com seus originais, se 
franceses, judeus, etc. Alguns tinham lindos sentidos em hebraico, mas pela questão 
do anonimato, não pude mantê-los. 
A simbologia dos nomes na tradição judaica é um aspecto interessante: 
geralmente os nomes são escolhidos em homenagem a parentes já falecidos, para os 
judeus ashkenazin, de origem europeia, e de parentes vivos, para os judeus 
sefaradim, de origem na península ibérica, onde a repetição dos nomes é uma 
constante45. 
Interessante acrescentar que é possível, e comum, no judaísmo fazer uma 
troca de nome na intenção de trocar a sorte, quando uma pessoa enfrenta problemas 
graves de saúde ou encontra-se em alguma situação de perigo. Esta prática pode ser 
vista na história de Abrão e Sarah no Velho Testamento46 e demonstra a importância 
dada a escolha dos nomes e o significado das cerimônias que lhe acompanha. 
 
Tabela de entrevistados: 
 Nome e idade Estado civil Netos e idade (grifo nos netos por adoção) 
1. Sarah (69 anos) Viúva Maria (17), Rafael (16), Gui (14), Bela (10), Iuri, (5), 
Tali (3) 
2. Rebeca (82 anos) Divorciada Nicole (29), Fabio (26), Roberto (26), Marcela (13), 
Carolina (12) 
3. Isac (84 anos) e 
Lea (76 anos) 
Casados Bianca (24), Daniel (18), Breno (14), Paulo (10), 
Carlos (4) 
4. Debora (77anos) Viúva Sofia (26), Luana (23), Eduardo (19), Maria (19), 
Tomas (17) 
5. Miriam (66 anos) Viúva Noé (13), Noah (12), Carol (2) 
6. Malka (88 anos) Viúva Iuval (33), Daniel (31), Michel ( ), Alan (23), Davi (14), 
Julia (11) 
7. Guita (75 anos) Viúva Henry (25), Lys (21), Gabriel (19), Naomi (18) 
Bisneto: Saul (1) 
8. Dinah (88 anos) Viúva Selma (45), Lilian (45), Hugo (40), Joyce (16) 
Bisnetos: Ilan (11), Ana (3), Gabi (1a3m) 
9. Vicente (82 anos) e 
Luna (79 anos) 
Casados Fabio (23), Rodrigo (21), João Hugo (19), Joana (17) e 
Hugo (4 anos) 
10 Nicholas (80 anos) 
e Agatha (77 anos) 
Casados Sofia (13 anos) 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
45 Uma jovem casa com um judeu sefaradi e logo engravida. 
- “Qual o nome que dará para o seu filho?” Perguntam. 
- “Ainda não escolhemos”, responde. Ao que a sogra emenda: “Coitada, só ela que não sabe!” 
46 Disponível em: https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-
Mudana-no-Destino.htm. Acesso em 26/09/2018. 
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-Mudana-no-Destino.htm
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/3516609/jewish/Mudana-de-Nome-Mudana-no-Destino.htm
53 
 
 
 
2.1 Sarah 
 
Sarah, 69 anos, viúva há 11 anos, é aposentada e tem três filhos. O mais velho, 
Davi, é casado com Carla, pai de um casal de filhos: Maria, a neta por adoção, de 17 
anos, e Rafael, de 16 anos. A segunda filha, Rosa, é casada com Luis, mãe de um 
casal de filhos: Gui, de 14 anos, e Bela, de 10 anos. O terceiro filho, Marcelo, é casado 
com Claudia, e também é pai de um casal de filhos: Iuri, de 5 anos, e Tali, de 3 anos. 
 
Genograma 1 – A família de Sarah 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Num taxi a caminho de Copacabana4748, sinto certa apreensão: minha 
primeira entrevista da pesquisa de Doutorado! Checo duas vezes o endereço, 
penso em algumas ideias, com a preocupação em manter a conversa a mais 
aberta possível. Chego a um endereço na larga avenida, muito movimentada 
e barulhenta. O edifício parece espremido naquela confusão e perdido no 
tempo, porque quando adentro, me encontro num hall suntuoso, todo de 
mármore, com estatuetas, espelhos e, tão longo, que não consigo perceber 
de onde vem a voz do porteiro que me fala. Fico impressionada com a 
 
47 Os trechos do diário de campo serão apresentados em formato de citação. 
48 É o único descrição em que mantive a informação sobre o bairro porque já há um artigo publicado 
onde o mesmo é indicado. 
54 
 
mudança de atmosfera, com a passagem do tempo, ao simplesmente entrar 
no edifício. 
 
Me recebe uma senhora gordinha, simpática, com um vestido bem informal e 
fresco. O dia estava horrivelmente quente e havia um barulho infernal de 
britadeira vindo da rua, apesar de estarmos no nono andar. Ela me convida a 
entrar e parece também um pouco apreensiva, por isto busco logo me 
apresentar e dizer, sem entrar em detalhes, de onde conheço seus filhos. 
O contato foi realizado com seu filho através de mensagem pelo Facebook e 
falei, rapidamente com ela ao telefone, para marcar e pegar o endereço. Seu 
filho é o pai da criança adotiva. Possuo esta informação há anos porque 
estava presente numa cerimônia de Ano Novo, em minha sinagoga, quando 
foi também celebrada a chegada desta criança, que recebia seu nome. 
 
Logo reparo na casa com uma decoração bem datada e arrumada. 
Reconheço alguns móveis e objetos como os da geração que eram dos meus 
próprios avós, que seriam bem mais idosos que ela. Há milhões de retratos 
espalhados pela casa, especialmente dos netos. 
Ensaiamos nos sentar no sofá, mas estou preocupada com a qualidade da 
gravação, devido ao intenso barulho vindo da rua, e com a intenção de 
ficarmos confortáveis, por um longo tempo, de frente uma para outra, na 
busca de intimidade. Então, sugiro a mesa de jantar e peço para encostar um 
pouco a janela. 
 
A entrevista flui. Começo com perguntas simples,influenciada por uma 
pesquisadora recém lida (PATAI, 2010). Acho que é um bom caminho 
mesmo. Ela parece ir ficando à vontade, pouco a pouco. Eu também. 
Algumas vezes se emociona, especialmente quando fala dos pais, do marido 
já falecido e dos tempos mais difíceis. Falar da vida parece ser para ela, 
especialmente, falar do passado. Posso sentir nesses relatos a sua vitalidade, 
emoção, e tudo que já enfrentou de lutas, perdas, impasses e conquistas até 
o momento. (Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2015) 
 
Gizele: Primeiro, assim, a senhora pode contar um pouquinho da sua vida. 
Aonde a senhora nasceu? Qual a sua idade? Falar um pouquinho deste 
caminho. 
Sarah: Meu nome é Sarah Bar. Eu nasci dia 11 de fevereiro de 1946 na Av. 
Suburbana. (...) meus pais moravam lá. Meus pais moravam lá. Papai 
trabalhava na fábrica (...) de azulejos. A mamãe era dona de casa, tomava 
conta da casa, sempre vinham parentes para a nossa casa, que era grande, 
tinha quintal, tinha árvores, tinha cachorro, tinha uma porção de coisas. Era 
assim de dois andares, a casa, embaixo tinha a sala, cozinha, banheiro e o 
quarto de empregada. E em cima, tinha três quartos, banheiro. O telefone 
ficava lá em cima. Quando o telefone começava a tocar e a gente estava no 
quintal, saía correndo, subia as escadas. Tum, Tum, Tum e aí atendia ao 
telefone lá em cima. (SARAH, out. 2015). 
 
Tenho uma grande surpresa com esta resposta: a partir de uma primeira e 
simples pergunta, recebo uma descrição cheia de detalhes, imagens, sons, através 
dos quais, quase, sou capaz de sentir os cheiros e ouvir os ruídos da sua casa de 
infância. Não podia imaginar que esta pergunta, simples e ampla, nos levaria a um 
tempo tão antigo e tão significativo. Dominique Veillon (1987 apud Pollak, 1989, 
55 
 
p.11)49 mostrou que as lembranças mais próximas, aquelas que guardamos como 
pontos de referência, são de ordem sensorial: o barulho, os cheiros e as cores. Apesar 
do meu espanto, e fascínio, outros pesquisadores, ligados à corrente da História Oral, 
já haviam indicado que: 
 
A casa materna é uma presença constante nas autobiografias. Nem sempre 
é a primeira casa que se conheceu, mas é aquela em que vivemos os 
momentos mais importantes da infância. Ela é o centro geométrico do mundo, 
a cidade cresce a partir dela, em todas as direções. (BOSI, 1994, p. 435). 
 
No prosseguimento da pesquisa, decido manter esta pergunta como a primeira, 
ciente de que a experiência da entrevista não se inicia neste momento, mas sim desde 
a indicação, o telefonema, a entrada na casa, os diálogos em torno do TCLE e do 
gravador, quando o entrevistado já faz comentários ou perguntas - espaços por onde 
o encontro já se desenha; mas ela se mostrou uma questão potente, aberta, que 
permite ao próprio narrador escolher um rumo para a conversa que oficialmente se 
inicia, já que o gravador somente é ligado, depois das primeiras formalidades. 
 
Gizele: E aí quantos netos a senhora tem? 
Sarah: Tenho seis. São lindos, lindos demais. 
Gizele: Quem é o mais velho? 
Sarah: Os mais velhos são do Davi: a Maria e o Rafael 
Gizele: A Maria [a neta por adoção] está com quantos anos? 
Sarah: A Maria está com 17, o Rafael com 16. 
Gizele: A Maria foi a primeira neta? 
Sarah: A Maria foi a primeira neta. Ela que trouxe a felicidade de nascer todos 
os outros depois. 
 
Gizele: Hoje em dia a senhora lembra que ela é adotada? Pensa na família 
biológica dela? 
Sarah: Não, eu não. Eu sou muito ligada a ela. Não sei. Para mim ela é minha 
neta mesmo, de coração, de tudo. 
Gizele: Nem lembra deste dado? 
Sarah: Nem lembro. 
 
Sarah: (...). A Maria sabe, ne, mas ninguém fala não. Eu realmente, eu nem 
lembro que ela é adotada. 
Gizele: Se não tocamos neste assunto? (Rindo) 
Sarah: Nem lembro, nem lembro. 
Gizele: Já está totalmente? Isto ficou totalmente no passado? 
Sarah: É minha netinha, minha netinha querida. No passado. Realmente, nem 
lembro. Para mim é minha netinha. Amo ela. Toda hora: oi querida, para lá e 
para cá. Adoro ela. Todos eles, né. Eu sou assim mesmo. (SARAH, out. 
2015). 
Sarah: Eu gosto deles, eu digo que eu amo eles, que eu adoro eles, mando 
WhatsApp toda hora. (...). 
Gizele: A senhora é uma avó moderna sabe usar o WhatsApp! 
Sarah: WhatsApp, vou lá, fico lá filmando, gravando (...). Só sei usar também 
coisas simples. A gente da terceira idade (...) tem muitas coisas que eu 
 
49 VEILLON, Dominique. La Seconde Guerre Mondiale à travers les sources orales. Cahiers de 
L’IHTP, n.4, p.53-70, 1985. 
56 
 
gostaria de saber no computador. Mas não sei não. Tem muitas coisas que 
eu não sei. Só sei as coisas mais simples, assim. (SARAH, out. 2015). 
 
Sarah manteve-se durante a maior parte da entrevista num estilo falante, 
detalhista e amoroso, ao contar da juventude, do casamento, do nascimento dos 
filhos, da vida de aposentada, das amigas e, principalmente, dos netos. Sua 
amorosidade se espalha por cada palavra dita. Difícil não notar o valor que ela dá ao 
fato de Maria ter inaugurado a geração de netos e considerando-a, de alguma forma, 
a responsável pela sorte de Sarah ser avó de outros mais. 
Várias passagens em que ela dizia não se lembrar, onde foi mais enxuta na 
sua fala, ou confusa com as datas. me deixaram intrigada porque se destoavam do 
todo. Discuti este aspecto num artigo50 onde escrevo sobre a memória que é 
construída coletivamente, valorizando ou não alguns aspectos ou passagens da vida, 
e esquecendo outros. 
Para Maurice Halbwachs (1968, 1976 apud BARROS, 1989)51 transmitir uma 
história, sobretudo a história familiar, é transmitir uma mensagem, referida, ao mesmo 
tempo à individualidade da memória afetiva de cada família e à memória da sociedade 
mais ampla, expressando a importância e permanência do valor da instituição familiar. 
O autor estudou os “quadros sociais da memória” (BOSI, 1994, p.54), onde a memória 
do indivíduo depende do relacionamento com o seu entorno: família, classe social, 
escola, comunidade, profissão e grupos de referência. A memória é compreendida, 
assim, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, 
transformações e mudanças constantes (POLLAK, 1992), reforçando a coesão social, 
não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo (POLLAK, 1989). Os indivíduos 
não recordam sozinhos, precisam da memória dos outros para confirmar suas próprias 
lembranças. 
Como este aspecto não surgiu com outros entrevistados, não vou abordá-lo 
mais por aqui, privilegiando os assuntos que se destacaram e que envolvem os temas 
em pesquisa. Mas sem dúvida é uma matéria muito interessante e bastante explorada 
em diversos campos de estudo. 
Percebo que esta primeira entrevista com Sarah me teve como uma 
entrevistadora mais contida, ainda sem saber como adensar nos temas que me 
interessavam em especial, porém já sentindo que era importante seguir o fluxo e 
 
50 BAKMAN, Gizele. O lembrar não se faz sem o esquecer: fragmentos de uma entrevista. 
Mnemosine, v. 13, p. 291-308, 2017. 
51 HALBWACHS, Maurice. La mémoire coIlective. Paris: PUF, 1968. 
______ Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Mouton, 1976. 
57 
 
deixar se levar por ele, esperando as brechas para incluir as perguntas referentes aos 
temas da pesquisa em si. 
Com o tempo percebi que as partes mais interessantes podiam ser justamente 
as que não pareciam conectadas diretamente às minhas perguntas sobre família e 
adoção. E houve espaço para: o que queriam me contar, para as minhas perguntas e 
para outras conversas que não eram tão importantes, mas que sustentavam o 
encontro e criavam um bom ambiente entre nós, como falar da minha família e da 
nossa comunidade. 
Assim, esta primeira entrevista serviu para criar um padrão de cuidado com o 
contexto, com o ambiente, com o tempo da conversa. O conforto, a necessidade de 
um olhar próximo e direto são detalhesque me preocuparam, neste e nos demais 
encontros, desejosa de construir uma atmosfera de cumplicidade e intimidade, já que 
acredito que falar de si, de sua vida e de sua família requer tais condições. 
Esta primeira conversa foi também um portal para pensar em temas como 
velhice, solidão, meios tecnológicos, apego, avosidade, entre outros – fios novos que 
surgiriam pelo caminho. 
 
Gizele: Então seu pai foi um pouco difícil para ele aceitar a Carla [nora 
convertida] no início? 
Sarah: É foi, mas depois aceitou numa boa. Papai era... 
Gizele: E quando a Maria veio, ele estava vivo ainda? Teu pai? 
Sarah: Deixa eu me lembrar. Não me lembro mais. Acho que não. 
Gizele: Ele faleceu quando? Se ela está com 17, ela nasceu em 98, ne? 
Sarah: Acho que papai já tinha morrido. Papai morreu em 94. Acho que foi 
depois. 
Gizele: Você imagina que seria difícil para ele aceitar isso ou ele aceitaria? 
Sarah: Não. Aceitaria. Ele era como eu: queria ver a felicidade das pessoas, 
das pessoas que ele gosta. Ele lutava por isto, ver a felicidade das pessoas. 
Mamãe aceitou numa boa também. 
 
Gizele: Queria ter mais netos? Ou acha que seis está bom? 
Sarah: Seria bom, mas cada um tem o seu, escolhe, tem suas escolhas. Mas 
eu gosto muito de criança. Adoro criança. Gosto muito mesmo. Eu adoro eles. 
É muito bom, a gente ser, é duas vezes mãe. 
 
Gizele: Qual que a Sra. acha que é mais apegado? Qual dos netos? 
Sarah: Não sei. Talvez, a Maria seja mais assim, me procure mais, os da 
Rosinha não me procuram não. Eu é que fico em cima, fico em cima deles 
todos. Gosto muito... a Bela fala assim: “Oi, vó”. Eu só ligo para escutar o “oi, 
vó”, 
 
Gizele: Mas quem a senhora vê mais? Convive mais? 
Sarah: A gente via mais quando eles eram menores. Agora cada um tem a 
sua turma, a sua vida, então aí eu vejo menos. Mas eu procuro participar. 
(...), mas eu vou, sempre que me chamam, eu vou. Qualquer atividade, 
qualquer evento que eles tenham, eu participo. Mas eles assim, eu acho: a 
gente se sente um pouco carente, ne? Porque fica sozinha, ne? (SARAH, out. 
2015). 
 
58 
 
É perceptível pela sua fala, e tom, o apreço que tem entre ela e Maria: neta 
mais velha, neta mais presente, neta admirada. Parece sob encomenda para a 
pesquisa, mas será visto ainda muitas vezes por aqui. Termino o primeiro encontro 
com gostinho de quero mais, e maravilhada com o campo novo que se abre, repleto 
de cores, cheiros, sons, lembranças e intrigantes fios de família. 
 
2.2 Rebeca 
 
Rebeca, 82 anos, aposentada, casada por duas vezes, sendo seus três filhos 
do primeiro casamento: a mais velha, Ana, separada, mãe de três filhos: Nicole, 29 
anos, Fabio e Roberto, gêmeos de 26 anos. Os outros dois filhos de Rebeca também 
são gêmeos, Paulo e Claudia. Paulo é casado e tem uma filha, Marcela, de 13 anos. 
E Claudia é casada e tem uma filha por adoção, Carolina, de 12 anos, cujo pai tem 
dois filhos, já adultos, de outro casamento. 
 
Genograma 2 – A família de Rebeca 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Segunda entrevista agendada e eu, novamente, ansiosa! Surpresa pela 
rapidez da marcação, realizada através de mensagens pelo Facebook com a 
filha. Será que estava pronta para estar de novo em campo? Sabia desta 
59 
 
adoção devido às publicações da própria mãe da criança no Facebook, que 
foi minha monitora na juventude em movimento juvenil.52 
 
Pelas instruções da filha, imaginei que a avó seria uma “figura”, pois eu não 
deveria ligar antes da 12hs, porque ela dormia, e nunca após às 19:30hs, 
porque acompanhava todas as novelas, aos 82 anos. Chego em cima da hora 
e me recebe uma senhora bonita, conservada, chique, sem maquiagem, pele 
linda, com os cabelos bem tratados e joviais. Um apartamento pequeno, um 
prédio grande, uma rua agradável. A atmosfera me dá a impressão de que o 
apartamento é, como ela, muito jovem para sua idade, diferente e 
contrastante com o de Sarah. 
 
Ela já tinha preparado o espaço, pois me encaminha para a pequena mesa 
de jantar, onde posso ver dispostas algumas cartinhas com letra de criança. 
Mal tenho tempo de me explicar e me apresentar, falar da entrevista e pedir 
licença para gravar, pois ela já vai contando de si e me enchendo de 
perguntas. Rapidamente se torna minha íntima, me chamando de Giza como 
se nos conhecêssemos há tempos. De alguma forma, ela me conhece, como 
conta no transcorrer da entrevista, que conviveu com meus pais, 
especialmente minha mãe, quando ambas estavam divorciadas, no final da 
década de70. 
 
Como na outra entrevista me oferece algo que não gosto. Desta vez, recuso 
com um pouco mais de tranquilidade o biscoito de queijo, que abomino, já 
que com Sarah, sem graça, bebo parte do horrível mate diet que me é servido. 
Acabo por beber o café sem adoçar diante do incomodo dela de não ter 
açúcar em casa. Me sinto forçada a ser boa convidada! 
 
Durante a entrevista me mostra cartinhas das netas, se confundindo sem 
saber de quais netas eram, e fotos das duas mais jovens, entre elas, Carolina, 
a neta por adoção. (Rio de Janeiro, 2 de março de 2016) 
 
Gizele: Então, vamos lá. Me conta um pouco assim da sua vida, começa por 
onde a senhora quiser e eu vou fazendo as perguntas que forem importantes 
para mim. 
Rebeca: A minha vida assim, quer dizer. Eu sempre fui muito autêntica. Tanto 
que eu separei um noivado. Eu tinha, foi gozado, 19 anos, estava noiva, ia 
casar. Mamãe adorava este rapaz. Era um rapaz muito bacana, matemático. 
E eu tinha muita admiração. Mas, sabe quando você percebe? Eu precisava, 
eu fui lá, eu fui a um hospital em Botafogo para conseguir falar com alguém. 
Você já viu coisa? Eu tinha 19 anos, quase 20. Aí eu peguei um psiquiatra. E 
disse que eu precisava, que eu queria resolver. Ele me deu uma injeção na 
veia. (Eu rio). Resumo: aí eu cancelei. Eu vi que não podia casar. Aí acabou 
o noivado. Mas nós continuamos muito amigos e tal. E eu fiquei assim muito 
mexida por causa da minha mãe porque ela queria. E depois aí, como é que 
foi? Viajei. Eu sempre fui muito cheia de vida. Namorei muito. Passeei muito 
e tal. Depois casei com o Shafir. E depois de um tempo (...). 
Gizele: A senhora trabalhava? 
Rebeca: Eu trabalhava. (...). Trabalhava, trabalhava, só que chegou um ponto 
que não dava mais. Ele jogava. E não estava assim nos momentos 
importantes. E aí eu fui trabalhar com (...) para poder criar os meninos: Ana, 
Claudia e Paulo. (REBECA, mar. 2016). 
 
 
52 Não só no Brasil, mas em todo o mundo existem Movimentos Juvenis Judaicos. São grupos que 
pretendem difundir ideais judaicos utilizando a educação não formal, de jovem para jovem, com 
reuniões semanais. Há uma diversidade de movimentos, com plataformas ideológicas e posturas 
diferenciadas quanto à religião, a cultura, a política e ao Estado de Israel. 
60 
 
Novamente a primeira pergunta abre uma ampla descrição, mas desta vez o 
foco escolhido é o início da vida adulta e sua autenticidade. Autenticidade, percebida 
ao longo da conversa, no estilo de ser e de decidir sua vida, de ter rompido um noivado 
(na década de 50), da separação (na década de 70), de ter sustentado três filhos 
sozinha, de ter trocado de profissão em busca de uma mais rentável, de ter tido por 
muitos anos um companheiro, numa época (na década de 90) em que esta palavra 
nem era utilizada. Autenticidade que se estende na forma afetiva com que me recebe, 
torna-se íntima, me chama de “Giza”, pergunta pela minha vida e pela pesquisa, 
mostrando-se atualizada e curiosa. Autenticidade por transparecer, apesar da idade e 
das dificuldades relatadas, o brilho nos olhos, a vontade de viver e a jovialidade. Sinto 
saudades dela e de seu afeto só em descrevê-la. 
Ela me conta que, por Carolina ser a menor, é a mais acessível e disponível. 
Relata que a relação com a neta mais velha era muito intensa quando pequena, mas 
que hoje, adulta e trabalhando, quase não se veem. Os netos crescem e o contato 
diminui, comentário presentetambém na conversa com Sarah. 
Em Sarah havia um vazio em relação as informações da adoção e da história 
de Maria, mas aqui, Rebeca fala com desenvoltura no assunto e possui bastante 
informações a respeito. 
 
Gizele: Hoje com qual neto você tem mais contato? 
Rebeca: Com a Carolina. 
Gizele: Com a Carolina? Mesmo em São Paulo? É? 
Rebeca: Paixão da minha vida. É uma coisa assim. Parece até coisa de 
outras vidas. 
Gizele: Como foi quando Claudia te contou que ia adotar, a senhora lembra? 
Como foi esta notícia? 
Rebeca: Ela adotou. Carolina veio com um ano e pouco. Tudo bem. Sabe 
aquela coisa assim. (...). Então, ela tem uma ligação comigo totalmente 
espiritualizada, uma coisa assim totalmente linda. É gozado que eu ligo para 
a Carolina praticamente diariamente. Então é assim, eu vou falando, nem tem 
assunto, é para ouvir a vozinha, meio minuto, um minuto. E ela é apaixonada. 
Eu tenho uma coisa excepcional por ela. (...). 
Gizele: Mas a senhora já sabia que ela vinha? A Claudia já tinha te avisado? 
Rebeca: Eu sabia que ela vinha. (...). E ela veio com um ano e meio. Quando 
ela já estava em casa, depois de todo o processo, de leis, de Fórum, tudo que 
a Claudia passou, eu fui para lá. 
Gizele: Essa paixão foi desde o início, Rebeca? 
Rebeca: Foi criando. Porque ela chegou. (...). Eu ia muito a São Paulo, muito, 
muito, muito. Aí eu fui me habituando e ela também, ne? Mas depois dos 
quatro, cinco anos. Então, ela agora, começou assim uma ligação. Coisa 
linda, linda, linda. E ela comigo. Mas é uma coisa assim, por exemplo, quer 
ver? (Mexendo nas cartinhas). 
Gizele: Os outros netos quando eram pequenos tinham também essa 
ligação? 
Rebeca: Tinham, tinham, a Nicole, hoje em dia é a mais velha, e a Marcela, 
mas não como a Carolina. 
61 
 
Gizele: Nem nesta idade? 
Rebeca: Não (...) no sentido do que ela sente em relação a mim, do que ela 
bota, do que ela escreve. (REBECA, mar. 2016). 
 
A família de Rebeca é, atualmente, segundo ela, pouco ligada à comunidade e 
à religião, à exceção da neta adotada e de um outro neto, que foi monitor da minha 
filha no Movimento Juvenil. Ela atribui a Carolina a reaproximação da família ao 
judaísmo: sua filha voltou a frequentar espaços da comunidade, Marcela, sua outra 
neta, filha de mãe não judia, também demonstrou interesse em estudar para fazer o 
Batmitzva, como Carolina, e todos se encontram, regularmente, em jantares nas 
festas judaicas. 
 
Rebeca: (...) a Marcela tendo um pai feito o Paulo, que tem uma cultura 
judaica. Freud para ele é todo em alemão. Eu não posso explicar. Judeu, ne? 
Paulo tem uma cultura judaica, extraordinária, em geral. Paulo não fala de 
judaísmo para ela nem que chova canivete. E ela, aí a mãe fala assim: ah, D. 
Rebeca, leva a Marcela para alguma sinagoga, para ela ter alguma noção. 
Não sabe nada. (...). 
 
Rebeca comenta com especial ênfase sobre o afastamento de seu filho do 
judaísmo (que também foi meu monitor no movimento juvenil), como algo do 
inesperado devido ao seu enorme conhecimento nesta área, e que não se justifica 
pelo casamento misto. Interessante como a nora, não judia, solicita a Rebeca que 
cumpra o papel de formação judaica perante sua filha. 
 
Gizele: Eu tinha perguntado para a senhora se a senhora pensa na família 
biológica da Carolina? Se, às vezes, a senhora pensa nisso? [Ela acabou 
respondendo outra coisa na 1ª vez]. 
Rebeca: Não. Parece... (suspira) ela... eu soube que a mãe era catadora de 
papel. Não tem nome de pai, não tinha nome do pai. Parece que tem uma 
avó lá no Norte. Foram à avó porque não poderiam adotar se a avó quisesse. 
Ela não quis ficar, não pode ficar, com certeza dificuldade, ne? Parece que 
tem um irmão, ela ficou com o irmão. Parece que ela saiu do parto e foi pega. 
(...). 
Gizele: Mas você, Rebeca, às vezes pensa nisso? Ela tem outra avó? Ela tem 
um irmão? 
Rebeca: Eu penso, eu sou preocupada com a cabecinha dela. Isso eu sou. 
Gizele: E o que a senhora acha da cabecinha dela? 
Rebeca: Eu não sei. Como em geral ela reage bem, eu não falo nada sobre 
isso com ela. Ela é quem fala. Eu sinto que ela é altamente ligada com esta 
coisa de judaísmo. Uma coisa assim fora do comum. Ela conversa. Ela tem 
noções que eu não tenho, nunca tive. Eu também nunca estudei em escola 
judaica. Então essa coisa é muito importante para ela. (REBECA, mar. 2016). 
 
Sarah me deu a impressão de realizar através de seu amor e alegria, na sua 
relação com Maria, um contraponto a ausência de conexões biológicas. Em, Rebeca 
o afeto e, principalmente, a ligação com o judaísmo surgem de forma semelhante na 
sua narrativa. 
62 
 
Rebeca também descreve a forte relação com Carolina como algo da ordem do 
incompreensível, do mágico, mostrando-se feliz e maravilhada, eu diria mesmo, 
agradecida, pela presença dela em sua vida. Busca palavras para exprimir uma 
espécie de conexão-alma, na tentativa de nomear os fortes laços que sente existir 
entre elas, apesar de, em nenhum momento, mostrar-se uma mulher com crenças 
religiosas. 
Ramírez-Gálvez (2011), ao colocar o campo da reprodução assistida em 
diálogo com a adoção de crianças, analisando suas narrativas, afirma que na adoção, 
o milagre é atribuído a um encontro bem-sucedido, na reprodução assistida é o 
“milagre tecnológico” que possibilita a realização de um gesto mimetizado na 
natureza. “O vazio do sangue parece ser preenchido por um determinismo que é 
colocado em outro registro, o místico, mas que se mantém “fora de controle”.” 
(RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.75). 
Em uma pesquisa realizada com mulheres de três gerações, Machado e Barros 
(2009) perceberam que nas camadas médias, a religiosidade, mais do que a religião 
institucionalizada, significa uma busca de sentido para si, definindo uma religiosidade 
laica, com a possibilidade ou não de adesões aos credos e aos dogmas religiosos. 
Na sua pesquisa com judeus franceses e israelenses com filhos por adoção, 
Nizard (2009) menciona aspecto semelhante: “O anúncio da chegada da criança, e o 
primeiro encontro entre ela e seus pais, são, muitas vezes, descritos como um milagre, 
um momento de graça num sentido quase religioso do termo, a realização de um 
destino.” (NIZARD, 2009, p.56)53. 
Rebeca me traz elementos cartográficos novos: desenhos e cartas de suas 
netas, dispostas na mesa, que ela inclui durante nossa conversa. Lê alguns trechos e 
pede que eu leia outros. As cartas estão embaralhadas, nem sempre são da Carolina, 
a neta adotada, mas o sentido é um só: a força da relação e do amor entre avó e 
netas. Em suas oficinas sobre a memória com grupos de terceira idade, Correa (2009) 
percebeu que a memória perdida, muitas vezes, ganhava corpo em forma de relatos, 
fotografias ou objetos trazidos. 
 
Rebeca: Olha, hoje em dia, eu estou mais sozinha. Entende? Eu tenho 
amigas, claro, mas uma mora ali, outra mora aqui, não sei. 
Gizele: A senhora não é de sair não? ir ao cinema? 
 
53 No original: « L’annonce de l’arrivée de l’enfant et la première rencontre entre l’enfant et ses 
parents, sont souvent racontées comme un miracle, un moment de grâce au sens quasi religieux du 
terme, la réalisation d’un destin.». 
63 
 
Rebeca: Saio. Eu assisti todos os filmes do Oscar. (Eu rio) 
Gizele: A senhora vai com quem? 
Rebeca: Ou eu vou com amiga. Se a amiga não pode, eu vou sozinha. (...). 
Isto eu faço: cinema. Com os filhos, não. Aninha, às vezes, eu vou ao cinema 
com ela. Eu me viro. (REBECA, mar. 2016). 
 
Neste detalhe de seu comentário, a ausência da companhia da filha, bem como 
o relato da falta de tempo dos netos já crescidos, aponta para o aspecto da solidão, 
que também foi perceptível nas palavras de Sarah: saudades de uma rotina mais 
cheia, de gente e de vida. 
 
Na hora de terminar parece que não queria que eu saísse. Sua filha tinha me 
escrito que achava uma hora muito tempo, mas com relutância, desliguei o 
gravador após uma hora e meia de conversaporque tinha outro 
compromisso. Que pena! Mesmo depois de chamar o elevador ela não 
parava de falar e me fez reentrar em sua casa para ver mais algumas fotos 
suas quando mais jovem e de sua família, dispostas nos porta-retratos. 
Lamentei não estar mais gravando e ter de ir embora. Que delícia de 
encontro! 
 
Aprendo uma nova lição: entrevistar sem limite de tempo, colocar-me 
totalmente à disposição da entrevista e do inesperado a que ela poderá me 
conduzir. (Bem como não desligar o gravador antes de ter certeza da 
finalização da conversa). Vivendo e aprendendo. Vou me abrindo às 
oscilações do campo, me sinto amadurecendo como pesquisadora. (Rio de 
Janeiro, 2 de março de 2016). 
 
“(...) os rumos do estudo são redesenhados localmente, vão sendo definidos 
ao longo de todo o processo a partir do encontro do pesquisador com o campo da 
pesquisa, em especial para nós, com os sujeitos da pesquisa.” (TEDESCO, 2015, p. 
37). 
 
2.3 Isac e Lea 
 
Isac, 84 anos, e Lea, 76 anos, estão casados há 55 anos. Tiveram três filhos: 
Marcio, casado com Gilda, tem dois filhos: Bianca, 24 anos, e Daniel, 18 anos. O 
segundo filho do casal é Felipe, 54 anos, casado com Gilberto, e que adotaram Carlos, 
4 anos. E Miriam, casada com Lucien, tem dois filhos: Breno,14 anos, e Paulo, 10 
anos. 
 
Genograma 3 – A família de Isac e Lea 
64 
 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Desde que iniciei minha pesquisa, um casal de amigos insiste que eu deveria 
entrevistar esta família que frequenta a sua sinagoga. São pessoas que eu 
conheço desde os tempos de menina porque foram amigos dos meus tios, 
morávamos perto e, eu e seus filhos, frequentávamos a mesma escola. Mas 
desconhecia a trajetória que cada um deles havia realizado na vida adulta. 
Somente com a filha menor, tinha algum convívio, porque temos alguns 
amigos em comum. Sabia que era casada, tinha filhos e onde estudavam. 
Mas, estranhamente, apesar do pouco contato, sentia-me próxima dos avós, 
estivemos juntos cerca de 15 ou 20 anos atrás no casamento de um primo 
meu, em Curitiba, onde rimos muito e passeamos pela cidade, juntamente 
com outros cariocas. 
 
Fiquei esperando uma oportunidade de me aproximar, preocupada com a 
possível delicadeza da situação da homossexualidade, tema que considero 
ainda tabu na comunidade. Vi a avó e a filha na sinagoga que frequentam por 
duas vezes em que lá estive, mas não me aproximei. Soube que o avô estava 
doente através de um e-mail da mesma sinagoga solicitando doação de 
sangue, e fiquei bastante mobilizada. 
 
Ao encontrar a filha numa festa, perguntei sobre o estado de saúde de seu 
pai e comentei sobre a minha pesquisa, pois já sabia que tinha um sobrinho 
adotado. Foi bem receptiva. Passado algum tempo e, informada que, apesar 
de em tratamento, o avô estava bem de saúde, decidi escrever uma 
mensagem para ela e saber da possibilidade de entrevista-lo ou à sua 
esposa. Poderia tê-lo feito diretamente, mas senti que assim seria mais 
cuidadoso. Prontamente me foram passados os contatos, a informação que 
aceitaram e o comentário de que ele era bem mais disposto a conversas. 
Tudo por mensagens de WhatsApp. 
 
65 
 
Ao telefonar, a esposa passou para ele combinar comigo o encontro. Ao ligar 
novamente para confirmar (atitude que tive para com todos os entrevistados), 
ele disse que tinha uma surpresa para mim: já havia contatado mais duas 
famílias judias com adoção. E assim que entro em sua casa, me entrega um 
papel com os devidos telefones, que está até hoje grudado em minha agenda, 
como uma doce lembrança deste encontro e disponibilidade. 
 
Eles moram num prédio, perto de onde eu morava em criança, mas depois 
descubro que não era neste apartamento que residiam na época. O ambiente 
é claro, amplo, com móveis antigos, certa mistura de novo e velho, muitos 
porta-retratos pela casa. Eles já parecem acomodados à minha espera. 
 
Durante a entrevista, realmente, ele é quem mais fala, cheio de detalhes, 
datas, de forma pausada, sem pressa, precisa dar sequência aos fatos de 
toda a sua vida, aliás de toda a sua família, para encadear e chegar aos 
tópicos que remetem à pesquisa. Ela só fala quando diz respeito diretamente 
a si ou para complementar, e confirmar, alguma afirmação. E, tenta por vezes, 
como eu, acelerar a fala dele. Não adianta. Parece que ele já tem um script 
pronto, e longo, em sua mente. Vou me dando conta que a conversa será 
longa, e que tenho que seguir os seus passos. Acho que ela também. 
Desistimos de acelerar: ele não tem pressa e parece imerso no prazer de 
relatar sua vida e de sua família. Parece que esse continuum tem um 
significado especial para ele. 
 
Durante a entrevista, ela almoça, vai ao cabeleireiro e quando volta, ainda 
estamos lá! Eu preciso interromper algumas vezes para ir ao banheiro. Ele é 
vistoriado pela acompanhante para medir glicose e temperatura, senta para 
almoçar e me oferece algo para comer, que aceito, com fome: um beigale54 
de batata e suco de frutas, que me são muito bem-vindos desta vez. Em 
nenhum momento demonstra cansaço ou se sente interrompido em seu relato 
por qualquer destas interferências. 
 
Tenho um prazer pessoal de saber algumas passagens sobre meus tios 
maternos, seus amigos íntimos, cheias de detalhes, como num filme em preto 
e branco, pela nostalgia e distância das datas e dos costumes narrados. A 
entrevista durou um total de cinco horas! Ele me diz enfaticamente que 
poderia falar por mais cinco! Acredito. Saio exausta e incrédula. O que a 
necessidade de perfilar pelas gerações fala sobre o seu ser família para ele? 
Ou sobre seu momento de vida? (Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2016.) 
 
Gizele: Minha primeira pergunta é uma coisa muito geral assim: para vocês 
me contarem um pouco a vida de vocês, o percurso de vocês, da vida de 
vocês. 
Isac: Bom, são 55 anos de casados, 4 de março de 60 e? 
Lea: 61 
Isac: 61. É 61. E tivemos 3 filhos. O Marcio, que é de 62, Felipe, que é de 64, 
e a Miriam de 67. Nós morávamos aqui neste bairro e eles estudavam no (...). 
Na infância deles nós tivemos, entre aspas, alguns problemas. Primeiro foi 
com o Marcio, na época era o Dr. XXX, meu vizinho, porque eu trabalhava 
(...). (ISAC e LEA, set. 2016). 
 
Isac inicia sua fala pelo casamento e a chegada dos filhos, mas a cada 
momento vai e volta ao passado, complementado e ampliando cada informação. 
Compreende que a forma como vivem suas vidas está relacionada com o que viveram 
 
54 Folheado típico da culinária judaica recheado, geralmente, de batata ou queijo. 
66 
 
em suas famílias de origem, daí a importância destes deslocamentos no tempo. 
Assim, aos poucos, monta uma história que abarca quatro gerações. 
Para me contar sobre suas vidas, cita um problema com o primeiro filho na 
questão escolar, mas abre um grande parêntese sobre a trajetória de vida profissional, 
e retoma, muitas palavras depois, exatamente do ponto que estava - um controle total 
de sua narrativa, um estilo de ir e vir, sem perder o fio da meada, preso aos detalhes, 
que marcou toda a nossa conversa. 
Uma das características atribuídas ao povo judeu é o da tradição oral e da 
retórica, que Isac utiliza muito bem, transformando uma pergunta em outra, 
emendando e costurando diversos assuntos ao mesmo tempo, decidindo por que 
caminhos trilhar, me mantendo fascinada e interessada nas histórias de suas vidas55. 
 
Gizele: vocês se conheceram aonde? 
Isac: Eu vou te contar 
Gizele: Está bom, está bom. (Lea ri e ele começa o relato desde sua 
formatura, muitos anos antes de conhecê-la, até chegar à reposta a minha 
pergunta). 
 
Gizele: Mas vocês já estavam juntos? Já se conheciam? 
Isac: Nada, nada, eu não cheguei lá. Estou começando a me aproximar. (Eu 
rio). 
Lea: Falar é com ele mesmo! 
Gizele: Eu sei, a Miriam disse assim para mim, sua filha disse: “meu pai vai 
falar e a minha mãe vai ficar ali”. Mas você dá seus apartes quando... 
Isac: Você corta quando você achar que deve.[Eu e Lea tentamos algumas 
vezes sem sucesso!] 
 
Gizele: Então. Vamos falar Marcio, Felipe. Felipe fez o quê? Trabalha com 
quê? 
Isac: Felipe, Felipe foi... Bom, mas Marcio, acho que ainda tem que contar 
pata você porque tem um aspecto psicológico da história. 
Gizele: Fala! (Eu rio e ele volta a contar de uma dificuldade escolar que o filho 
mais velho teve na pré-escola.) (ISAC e LEA, set. 2016). 
 
Além de seu estilo próprio e sua fama de contador de histórias, tenho a 
impressão que o enfrentamento de uma doença grave ampliou a necessidade de falar 
de sua vida e se preocupar em deixar registros para sua família. “Outro importante 
aspecto da lembrança na velhice é a tentativa de articular e dar sentido ao passar da 
vida quando ela se aproxima do fim.” (THOMSON, 1998, p.288). 
Falar de si neste momento da vida em que se tomam avós e fazer uma 
retrospectiva de seu passado não é exclusividade do momento da entrevista. 
A pessoa realiza revisões sucessivas durante a vida, e a revisão nesta etapa 
parece dar-se também em função do conhecimento do fim da vida e da 
 
55 Segue uma piada: O sujeito encontra um amigo judeu e diz: 
- É verdade que todo judeu sempre responde uma pergunta com outra pergunta? 
- Quem foi que te falou essa besteira? 
67 
 
proximidade da morte. A presença da morte já faz parte deste momento da 
vida: vários parentes e amigos de sua geração já morreram, bem como, 
evidentemente, das gerações ascendentes. Esta presença por si só traz a 
força da revisão da vida e também a familiaridade com a idéia de fim. 
(BARROS, 1989, p.36) 
 
Isac conduziu a conversa contando a vida de cada um dos filhos, com detalhes 
sobre estudos, carreira, relacionamentos, até chegar em casamento e filhos. O tema 
da homossexualidade de Felipe foi abordado de forma direta, com simplicidade e deu 
a impressão de que os valores família e união fazem com que este aspecto da vida 
dele, problemático em muitas outras famílias, tenha sido menos valorizado. 
 
Isac: Ele tinha um grande grupo de amigos. (...) Ai de repente surgiu o rapaz 
Gizele: O namorado? 
Isac: O companheiro dele. Que a gente não tinha... Como ele tinha uma 
capacidade de aglutinação, de amizades, a gente não atinava para esse lado 
dele. 
Gizele: Da homossexualidade? 
Isac: Entendeu? A gente não atinava. Então, a gente via aquelas reuniões, 
20, 30 pessoas. (...). Aí em algum momento ele falou que estava namorando. 
Gizele: Mas ele apresentou em algum momento? 
Isac: Nunca apresentou oficialmente o companheiro. 
Gizele: Não? 
Isac: Não. 
Gizele: Mas ele frequenta a casa de vocês? 
Isac: Claro! 
Gizele: Mas não teve esse momento? 
Isac: Calma: Amigo. 
Gizele: Entendi. 
Isac: Você não pode, quanto mais um casal judeu admitir um negócio desse, 
a princípio, entre aspas, a gente levava com naturalidade. Até que o rapaz foi 
morar junto. Ai a gente viu que... 
Gizele: Que não era amigo. 
Isac: Nunca questionamos, nunca perguntamos nada. E não interessa. 
Lea: E nunca teve nada por parte da família contra. 
Gizele: Mas vocês ficaram surpresos ou aquilo fez sentindo de alguma forma? 
Isac: É um modo vivendis diferenciado. 
Gizele: Claro. Mas vocês ficaram surpresos ou de alguma forma aquilo fez 
sentindo? 
Isac: Aquilo foi se dando naturalmente, que você quando se deu conta, 
aconteceu. (ISAC e LEA, set. 2016). 
 
Fonseca (2008) e Zambrano (2006) ao discutir sobre as novas parentalidades, 
mostram o quanto elas são importantes para mostrar, e debater, a questão do 
parentesco como sendo uma questão política e cultural. 
 
Mas, graças à sua grande visibilidade, ela [a homoparentalidade] nos ajuda a 
ressaltar certos elementos, temas que exigem debate, e cujas repercussões 
se estendem bem além da família gay ou lésbica. Afinal, ajuda a revelar as 
atuais formas familiares como “co-produções” que envolvem – além de 
valores culturais – lei, tecnologia e dinheiro. (FONSECA, 2008, p. 781). 
 
68 
 
Em muitas passagens, Isac e Lea vão lembrando de passagens comigo ou com 
minha família, e eu vou compreendendo, e materializando, os sentimentos de 
intimidade e proximidade que nos une, inclusive passagens da minha própria vida que 
estavam esquecidas e que apontam para o cruzamento de nossas vidas. 
 
Isac: Essa menina eu conheci na barriga da mãe dela [falando sobre mim 
para a acompanhante]. 
 
Lea: Eu encontrei com você quando eu fui para Israel (...) 
 (ISAC e LEA, set. 2016). 
 
Fico impressionada com sua boa memória e como tinha toda a história de 
sua vida, e de sua família, organizada em sua mente. Antes de eu sair, me 
mostra um texto onde escreveu as histórias da família, foto do arquivo de seu 
pai com endereços de famílias judias na Europa, para onde enviava 
encomendas, na primeira metade do século passado, e o documento do 
Museu do Holocausto de Israel, ao governo brasileiro, solicitando o envio do 
mesmo. Emocionante! Também mostra fotos antigas, guardadas com 
esmero. Eles já me haviam mostrado outras, no meio da entrevista ao citar 
os netos, que estavam nos porta-retratos espalhados pela casa. (Rio de 
Janeiro, 17 de setembro de 2016.) 
 
Isac: (Lendo um papel onde escreve a história da família). Minha mãe dizia: 
“quem não tem história para contar, não viveu”, assim começa, a pedido da 
família, a minha história que começou as 11hs no dia 23 de janeiro de 1932, 
quando nasci no antigo hospital alemão no rio comprido. (ISAC e LEA, set. 
2016). 
 
No dia 25/12, três meses após a realização da entrevista, recebo uma 
mensagem de sua filha comunicando o falecimento de Isac e ressaltando a 
data significativa deste dia: natal e primeiro dia da festa de Chanuka. Já havia 
escrito para ela uma vez para saber como estava seu estado de saúde, e 
soube que os resultados dos exames não tinham sido positivos. Fico muito 
emocionada. 
 
Vou com meu marido e mãe ao seu enterro, pois ambos o conheciam. Muita 
gente. Filhos muito abalados. Sua esposa me conta que faleceu bem e 
tranquilo. Linda homenagem da filha contando a pessoa alegre, sui generis, 
falante e amigo que ele era. Adorei, em especial, uma história relatada em 
seu discurso: que mesmo de repouso e imunidade baixa, Isac fez questão de 
ir à inauguração do supermercado Mundial de Copacabana para 
cumprimentar o gerente e os funcionários - imagem que me emociona e 
mostra a pessoa generosa e disponível que era, exatamente como foi comigo, 
ao abrir sua casa, sua vida, sua intimidade e ainda me indicar mais famílias 
para a pesquisa. 
 
Fui também na última reza da primeira semana de luto56. Um dos motivos era 
saber da autorização de Lea em entregar a gravação da entrevista, que já me 
tinha sido solicitada pela filha no dia do enterro. Ela concorda. Os filhos 
parecem melhores, a esposa, desta vez, desabada. 
 
56 O costume judaico no período de luto são rezas diárias na primeira semana, chamada de Shiva, 
literalmente estar sentado, realizadas na casa ou na sinagoga, com um mínimo de 10 pessoas - 
Minian, literalmente número, quórum mínimo para rezas coletivas. Forma sábia, ao meu ver, para 
que os amigos e familiares tornem-se presentes para prestar homenagens, e permitir a família viver 
a dor do luto coletivamente. São também realizadas rezas para marcar: uma semana, um mês, um 
ano e subsequentes, de forma semelhante. 
69 
 
 
Fui também na reza de 30 dias. A sinagoga estava muito cheia. Vários 
discursos. Todos enfáticos em falar da pessoa de Isac, que deixava um 
grande vazio porque ocupava seu espaço com boas conversas, inabaláveis 
amizades, inúmeras histórias, alegria de viver e muito bom humor. Como foi 
comigo! 
 
No discurso de Felipe, ele menciona o “depoimento” de cinco horas que seu 
pai deu a mim! Fico especialmente emocionada porque ele diz que foi uma 
oportunidade de o pai rever os aspectos marcantes de sua vida e deixá-los 
registrados. Quão inesperado e marcantes pode ser uma entrevista na vida 
daqueles que participamdela, diretamente, ou ao seu redor! A emoção me 
toma agora, e sempre que volto a este encontro, e a tudo que ele me 
proporcionou. (Rio de janeiro, janeiro de 2017). 
 
Ao enviar o áudio da entrevista, aos filhos, por e-mail, Miriam escreve ao irmão 
Felipe, em cópia para mim: “Ao Kique [Carlos] a gente agradece quando ele for maior, 
pois se ele não tivesse chegado, não haveria esta entrevista!!”. De novo penso, e 
sinto, sobre os imprevisíveis caminhos e efeitos de uma pesquisa, como confirma 
Tedesco (2015, p.40): “(...) toda pesquisa é uma prática de intervenção. Isto significa 
dizer que toda pesquisa realiza ações, modifica fatos, imprime outras direções ao 
mundo.”. 
 
2.4 Debora 
 
Debora tem 77 anos, aposentada, viúva, foi casada por 56 anos com Jacob, 
falecido há cerca de 1 ano e meio. Mora com Rosa, empregada que trabalha com ela 
há 38 anos. Tem três filhos: Marcelo, casado, pai de Sofia, 26 anos, e Luana, 23 anos; 
Sandra, casada, mãe de Eduardo, 19 anos, o neto por adoção, e Tulio, casado, pai 
de Maria, 19 anos, e Tomas, 17 anos. 
 
 
 
 
Genograma 4 – A família de Debora 
70 
 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Há algum tempo, pensava nesta família para participar da pesquisa, mas fui 
relembrada por uma amiga. Estranhamente não sei desde quando, e como, 
sabia que era um filho por adoção. Fui colega da mãe e do tio da criança no 
movimento juvenil, frequentei a casa deles como os demais do grupo, na 
época, mas nunca fomos próximos. A casa era um point, talvez por ser 
cobertura ou pela sua localização. Nos últimos trinta e poucos anos, nos 
vimos poucas vezes. Sabia bem pouco do rumo de suas vidas, embora 
tenhamos ainda amigos em comum. 
 
Na ausência de uma entrevista imediata, resolvi escrever para a filha. 
Expliquei por mensagem, via Facebook, sobre minha pesquisa e se haveria 
algum avô ou avó para ser entrevistado. Ela me respondeu que somente sua 
mãe, mas não sabia se toparia, que adora o neto, mas que desde que ficou 
viúva, cerca de dois anos atrás, a memória tem flutuado bastante. [Há 
também uma sogra viva, mas que não mora no Brasil]. Logo me escreve 
dizendo que a mãe concordou e me passa seus telefones. Ligo alguns dias 
depois. Ela não parece lembrar muito da ideia, mas aceita. Pede para eu ligar 
na outra semana para agendar um horário. Ligo e sua reação é a mesma: 
topa, mas não parece muito convicta. Será que não lembra? Não quer? Está 
ciente de sua atual falha de memória? Marcamos e digo que vou ligar antes 
para confirmar, como tenho feito com todos. 
 
Na manhã do dia agendado, a filha me escreve uma mensagem dizendo que 
ela gostaria de remarcar para mais tarde pois surgiu um aniversario, mas eu 
não posso. Ofereço outras opções. A filha me telefona, ao invés de responder 
por mensagem, e aproveita para saber mais da pesquisa e diz que conhece 
mais duas famílias. [Tento, tempos depois, por mensagem, que me passe 
estes contatos, mas ela não me responde]. Remarcamos. 
 
71 
 
No dia, pretendo confirmar, mas antes disso, a filha me escreve que está ok. 
Ao chegar em sua casa, a empregada se espanta e parece não saber da 
minha vinda. Mas ela vem à sala, toda arrumada e pronta. A casa é a mesma 
da minha juventude. As minhas lembranças vão se materializando, aos 
poucos. É repleta de enfeites, quadros, tapetes por todos os cantos. Ela é 
bonita, magra, vaidosa. Faz ginástica todos os dias e frequenta aulas sobre 
música clássica. Adora Artes. 
 
Realmente tem lapsos na memória: não lembra nomes, tem dúvida sobre 
outros, repete informações, se esquece de onde conheço seus filhos, me 
perguntando repetidas vezes. Quando vamos ver as fotos, no escritório, já no 
final da conversa, solicitado por mim, passo por um painel enorme que me 
recordo também ao olhar, bem anos 70: são os três filhos pequenos, que já 
estava ali quando frequentava a casa. Lindo! Percebo todos os cômodos 
arrumados, limpos, e ela me mostra as fotos, com certa ajuda da empregada 
pois tem dúvidas de quem são e de seus nomes. A empregada conhece todo 
mundo! 
 
Foi uma entrevista concisa, ela não falava com muitos detalhes sobre nada. 
Poderia ser estilo, mas minha sensação é que era devido à idade. Fui ficando 
aflita. Não conseguia fazer render a conversa, voltei em algumas perguntas, 
tentei outras. Acabou durando uma hora e meia, mas a minha sensação ao 
sair é de que detenho menos conteúdo que as demais. Tomei um delicioso 
café e comi um Kamish Broit57 com goiabada, que não gosto, para ser 
educada, novamente, parecido com um que minha avó fazia. Acho que 
preciso escrever sobre culinária e entrevistas. E também sobre o Facebook 
como fácil caminho de acesso aos entrevistados. (Rio de Janeiro, 13 jun. 
2017). 
 
Gizele: Debora, me conta um pouquinho sobre a sua vida. O que você quiser. 
(Ela ri). 
Debora: Eu tive um marido maravilhoso. Faleceu já tem, faleceu em fevereiro 
do ano passado, tem um ano e alguns meses. Era um senhor companheiro 
mesmo. 
Gizele: Ele estava com quantos anos? 
Debora: Eu agora 70, 79. 
Gizele: Você tem quantos? 
Debora: Eu tenho 77. 
Gizele: 77. 
Debora: Eu tinha 76. O que que você quer saber mais? (Rindo). 
Gizele: Vocês foram casados por quanto tempo? 
Debora: 56 anos. Fora namoro, noivado, a vida. (Rindo). 
Gizele: Você era bem jovem quando vocês se conheceram! 
Debora: Éramos bem jovens, bem jovens. 
 
Por este primeiro diálogo já é possível perceber a diferença de narrativa para 
com os primeiros entrevistados: não pelo ponto escolhido para começar, porque acho 
significativo para o seu momento de viuvez; mas pelas repostas curtas, indecisas, com 
poucos detalhes; e, de alguma forma contrastante com seu sorriso, disposição e 
leveza de estar ali comigo. 
 
Gizele: Você trabalhou? Você falou para mim que estudou pedagogia. 
 
57 Biscoito da culinária judia, recheado originalmente com geleia e frutas da época, com variações: 
nozes, damasco, banana, etc. 
72 
 
Debora: Trabalhei muito. Eu estudei pedagogia, queria fazer psicologia na 
época. Não tinha. Fazia parte da pedagogia, aí fui trabalhar. Meu marido tinha 
uma loja, aliás desde os pais dele, umas lojas enormes, que até hoje (..). 
Gizele: Qual era o nome da loja? 
Debora: Peraí, você agora me pegou. Rehsa. 
Gizele: Rehsa, nome de mulher! 
Debora: Me fugiu tudo. É. Acho que era o nome de... 
Gizele: Uma avó? 
Debora: É, a mãe do meu sogro. Rehsa, e eu trabalhei lá muitos anos. Eu 
gostava. 
Gizele: De ficar no balcão mesmo? 
Debora: Ah, ficava, atendia, conversava. Para mim foi ótimo. 
Gizele: A sua vida toda foi trabalho no comércio? 
Debora: Foi. 
 
Debora fala do passado e do presente, do marido, dos filhos e, especialmente, 
dos netos. Me faz perguntas todo o tempo, tentando manter o fluxo da conversa. Por 
vezes, se mostra aflita com os hiatos de sua memória, tentando preencher suas 
possíveis dúvidas a respeito de algumas informações ao pedir ajuda à Rosa. 
 
Gizele: E como é sua relação com seus netos? Com seus cinco netos? 
Debora: Acho que muito bem, graças a deus, muito bem. Muito bem. 
Gizele: Qual deles é mais apegado a você? 
Debora: É mais o Eduardo. (Ri) 
Gizele: O Eduardo. Então fala mais um pouquinho do Eduardo. O Eduardo... 
Debora: Porque ele está mais em contato comigo. (...). Então é mais fácil, as 
vezes o Eduardo vem para cá, ele tem um curso, às vezes almoça, vai para 
faculdade. [Ele é o neto que mora mais longe, mas estuda perto de sua casa]. 
(...). 
Gizele: Então o mais apegado é o Eduardo? 
Debora: Eu me dou muito bem com todos eles, mas quem está mais aqui é. 
Gizele: Presente. Por que a Sandra também é mais presente? 
Debora: É. 
Gizele: Filha menina, às vezes, é mais presente, ne? (Eu rio) 
Debora: Eu acho que é, é isso mesmo. (DEBORA, jun. 2017). 
 
O neto por adoção é o mais próximo, como Sarah e Rebeca, porém, penso que 
isto diz respeito a relação de proximidade que Debora tem com sua filha, que parece 
ser a mais presente e preocupada com a mãe. Nas famíliasmultigeracionais, segundo 
Peixoto (2000, p.105): “A proximidade afetiva entre avós e netos está ligada à natureza 
da relação que os primeiros mantêm com seus filhos e respectivos cônjuges.”. Além 
dos cuidados serem, ainda, mais circunscritos na esfera feminina, como vimos com 
as avós (DESSEN; BRAZ, 2000; ROBIN, 2005, DIAS; COSTA; RANGEL, 2005; 
SCHNEIDER; BOUYER, 2005). 
Debora parece lembrar somente do essencial da vida e do cotidiano. No caso 
do neto por adoção, no entanto, salienta o prazer e a alegria de sua chegada, e narra 
pormenores de como souberam da criança, quem ajudou a filha, porém não tem 
73 
 
informações a respeito de sua família biológica. Certas lembranças valorizadas, 
algumas memórias esquecidas, quem sabe? 
 
Gizele: E o Eduardo veio com que idade? Eu não sei nada da história do 
Eduardo. 
Debora: Ele? Com meses. 
Gizele: Com meses. Você sabia antes que ela ia adotar? (...). 
Debora: Eu achei que devia mesmo. 
Gizele: Aí o Eduardo veio bebezinho? 
Debora: Bebezinho. Ela buscou ele. 
Gizele: Você lembra como foi, Debora? 
Debora: Eu sei que foi uma coisa maravilhosa. Eu fui esperar ela no 
aeroporto, quando ela veio. (...). 
Gizele: E você lembra desse momento de ele estar chegando? 
Debora: Muito, muito. (...). 
Gizele: A família toda aceitou bem, Debora? 
Debora: Muito bem. Muito bem. 
Gizele: (...). Se lembra se parte da família como um todo foi fácil aceitar? 
Debora: Muito bem. Muito bem. (DEBORA, jun. 2017). 
 
A história que mais preencheu nossa conversa foi sobre uma sobrinha que se 
tornou religiosa, convertida para outra religião. Algo que lembro foi marcante na 
época58. Eu a conheci, no mesmo movimento juvenil, e sabia sobre a situação, mas 
não lembrava que eram parentes. Há muitas fotos dela espalhadas pela casa, e é uma 
das poucas, que me faz questão de mostrar. 
 
Debora: É difícil, difícil de acreditar. Ela ia nos feriados, de Rosh Hashana, de 
Iom Kipur. (...). Ela ia, ficava do lado do Jacob, o tempo todinho, queria saber 
tudo. 
 
Debora: E ela estava no judaísmo, não é dizer que ela não gostasse, que ela 
não fazia parte. Não, ela fazia questão, nos feriados, no Rosh Hashana, no 
Iom Kipur, ficava do lado do Jacob, fazia questão. 
 
Debora: Você sabe que nós fomos lá, ne? (...) Quando ela resolveu 
realmente. Ai a gente foi lá para ver se alguém tinha feito a cabeça dela, ne? 
(...) Fui com meu marido, com Jacob. Ele quis muito ver, né, ver de perto. E 
a gente sentiu que ela realmente gostava, né. (DEBORA, jun. 2017). 
 
Ao terminar percebo o quanto fui também entrevistada. Perguntas bem judias: 
nomes, família, religião, escola e a procura por pessoas em comum. Algo 
parecido tinha acontecido com Rebeca, mas aqui se tornou mais premente 
em torno do vazio da conversa, ao meu ver. De qualquer forma, fala bastante 
sobre este viver em comunidade, onde a busca por conexões se torna quase 
um hábito, uma brincadeira como a de montar um pequeno quebra-cabeças. 
E também a preocupação, como outras, se foi bom para mim, se valeu a 
pena. E a oferta para voltar, como os demais. 
 
2.5 Miriam 
 
58 É comum judeus que se assimilam, isto é, abandonam a tradição/religião, ou deixam de frequentar 
ambientes comunitários ou religiosos, tornam-se laicos, mas se converter e abraçar outra religião, 
sem dúvida, é fato raro e impactante. 
74 
 
 
Miriam tem 66 anos, viúva, trabalha, e mora na casa de sua filha, já falecida, 
aos 41 anos, Anat, um ano e meio antes da realização desta entrevista. Sua filha 
adotou sozinha duas crianças sete anos atrás: Noé, hoje com 13 anos, e Noah59, hoje 
com 12 anos. Ela tem outro filho, Rodrigo, casado e pai de Carol, de 2 anos. 
 
Genograma 5 – A família de Miriam 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Conheci a história dessa família porque meu filho deu aulas particulares de 
matemática para as crianças, indicado pela escola onde estudou. Achei lindo 
saber que se tratava de uma mãe que tinha adotado sozinha dois irmãos. Fui 
acompanhando, através de meu filho, as dificuldades das crianças de se 
organizar, estudar, concentrar e a saúde frágil da mãe, portadora de uma 
grave doença. 
 
Já tinha iniciado o Doutorado quando me dei conta que a avó era uma 
candidata a ser entrevistada. Demorou a cair a ficha, talvez, porque pensava 
mais na mãe e nos filhos, ou, talvez fosse minha memória esquecida! 
Demorei a tentar entrevistá-la pois sabia que a situação estava delicada, 
devido às repetidas internações da filha. Fiz um primeiro contato e ela disse 
que estava enrolada, justamente por este motivo. Tempos depois tentei 
novamente, ela concordou, mas me pediu para esperar ainda alguns dias, 
 
59 Como comentei no início do capítulo, apesar de todos os nomes serem fictícios, tentei manter 
alguns traços aonde isto parecia ter um sentido especial, como aqui, onde os nomes de batismo das 
crianças têm origem hebraica, coincidentemente, e são como um par, o feminino e o masculino, 
como seria Marcelo e Marcela, por exemplo. 
75 
 
devido ao cansaço, e senti que não estava disposta. Não me lembro bem 
quando foram essas tentativas. 
 
Adiei bastante porque a saúde da filha piorou, até seu falecimento. 
Acompanhei, através do sofrimento do meu próprio filho, essa etapa dura e 
difícil para a família. Me doía pensar que as crianças estavam perdendo uma 
segunda mãe. Conheci a avó pessoalmente numa das rezas de luto em que 
acompanhei minha filha, que também os conhecia. As crianças, só vi, 
rapidamente, numa festa de Barmitzva, alguns meses depois. Me apresentei. 
Não me deram muita “bola”. Foi em maio de 2016. 
 
No final do ano, encontrei a avó, numa vernissage, e ela falou comigo sobre 
as crianças e da ajuda que meu filho lhes deu na época. Decidi convidá-los 
para uma noite festiva de Chanuka, porque achei que seria importante para 
todos estar de novo juntos, num momento descontraído, íntimo e festivo. 
 
Somente em julho de 2017 tomei coragem para refazer o convite. A entrevista 
foi na casa da filha onde ela, agora, vive com as crianças: um apartamento 
pequeno de três quartos, muito bem decorado. Assim que cheguei me 
entregou o convite de Barmtizva do neto e falou da dificuldade em organizar 
aquela festa, sonho da filha. Parecia nervosa. 
 
Sentamos no sofá. Explico da entrevista, do TCLE, e, antes de começar a 
gravar, ela me pergunta sobre onde estará escrito. E acrescenta que sua 
situação é única. Diz que se falar algo que possa magoar o neto, me pedirá 
para retirar porque ele não gosta de mencionar o passado, dizer que é 
adotado e falar da mãe falecida, ou mesmo tocar em seu nome. (A neta, por 
sua vez, fala do assunto abertamente e gosta de mexer nas coisas que trouxe 
do abrigo). 
 
Ela se emociona em muitas vezes, eu também. Me oferece um café e se 
preocupa com a hora porque tem dentista. Apesar de morar no Brasil desde 
os 17 anos, ainda tem um certo sotaque e um estilo de estrangeira. Erra 
algumas concordâncias e lhe faltam algumas palavras. Por não ser sua língua 
de origem ou pela emoção do relato? Não sei. 
 
Após a entrevista me envia uma mensagem com Save the date e pedindo 
desculpas pois não estava bem. Diz que foi difícil reviver, mas se eu precisar, 
estará às ordens. É o caso mais difícil de descrever sem identificar, tipo 
missão impossível. Me preocupo60. Estava tão aflita em ouvir este difícil relato 
que, muitas coisas que pensei não ter perguntado, só percebi na transcrição, 
de que sim conversamos. Cerca de três horas depois, comecei a ter uma 
enxaqueca que durou cerca de quinze horas. Meu coração ainda aperta ao 
pensar neles, no sofrimento e nas perdas! (Rio de Janeiro, 19 jul. 2017). 
 
Gizele: Me conta da sua vida primeiro assim. 
Miriam: Aí, sério? (Ela suspira e parece desabar no sofá onde já está 
sentada.) 
Gizele: Se quiser. Quantos anos você está? 
Miriam: Agora 66. Eu vim (...) com 17 porque a minha família resolveu vir para 
fazer turismo. E acabamosficando porque a minha avó adoeceu e minha mãe 
não quis deixar ela. Eu sempre quis voltar (..). Tinha uma raiva enorme que 
minha mãe veio para cá e ficou. (MIRIAM, jul. 2017). 
 
 
60 A situação de Miriam é do tipo ”pegar ou largar”, quero dizer, eu não teria como inclui-la na 
pesquisa se retirasse tudo que a identifica. Apesar da preocupação, considerei que mantê-la seria 
mais importante para a pesquisa e para honrar estas vidas envolvidas. 
76 
 
Como nessa passagem pela qual inicia seu relato, a vida de Miriam é marcada 
por episódios de doença e morte: começa pela da sua avó, depois de seu marido e, 
então, de sua filha. Apesar disto, ela se mostra uma mulher forte, que enfrenta os 
percalços, que se dedica e ama seu trabalho. 
Miriam foi casada por 10 anos e ficou viúva quando os dois filhos ainda eram 
pequenos. Antes disso, enfrentou uma doença grave do marido que o impossibilitava 
de trabalhar. Agora, após a morte da filha, novamente, encontra-se sozinha com duas 
crianças para cuidar. Pelo seu relato, percebo que a filha também foi uma mulher 
corajosa, batalhadora, dedicada ao trabalho, aos amigos e aos filhos. 
 
Gizele: Mas ele [o marido] faleceu a Anat tinha quantos anos? 
Miriam: Oito. (Fala bem baixo). 
Gizele: Oito anos? E o Rodrigo, Rodrigo, ne, seu filho, quantos anos? 
Miriam: Três. (Fala bem baixo) 
Gizele: Caramba. 
Miriam: Três mais cinco, oito. 
Gizele: Duas crianças pequenas. 
Miriam: Meu destino, minha filha. Estou pegando agora um pouquinho 
maiores (Riso sarcástico). É isso. 
Gizele: E aí ela começou com a doença? Logo depois disso? 
Miriam: Mas casou, foi super feliz no casamento, sem dúvida nenhuma, até 
que ela resolveu adotar. 
Gizele: Adotar. 
Miriam: Adotar, porque ela teve vários abortos, vários abortos. Mas ele estava 
com ela a trajetória toda, dois anos de advogado, tudo que precisou. Até que 
chegou a carta de adoção. Chegou a carta de adoção, ele falou para ela que 
não era isso que ele queria. “Desculpe, vou te deixar”. E deixou. 
Gizele: Quantos anos ela ficou casada? 
Miriam: Dez justo. 
Gizele: Dez anos! 
Miriam: Dez ou 12. Dez, 12 anos. Eram super apaixonados. Tinham uma vida 
muito boa. Ele era maravilhoso. Não posso reclamar. Para ela. Ela também 
para ele. Eles eram um casal muito legal. Bateu isso nele. Ele falou: “quero 
ter filhos, o problema não é comigo. Eu vou querer ter filhos”. Tá bom, então. 
Gizele: Aí ela decidiu adotar sozinha? 
Miriam: Aí ela mudou toda a papelada. Contratou todos os advogados. 
Quando eu achei que ela não ia, ela foi atrás. (MIRIAM, jul. 2017). 
 
Miriam desde o início, teve uma participação ativa na recepção das crianças, 
possivelmente relacionado ao fato de a filha tê-los adotado sozinha: está a par de 
suas histórias anteriores à adoção, algo que se torna presente, várias vezes, ao longo 
da nossa conversa. 
 
Gizele: Vamos voltar um pouquinho assim, como foi para você, você lembra, 
quando ela disse quero adotar, vou adotar, não consigo engravidar, como 
você ouviu isso? 
Miriam: Eu levei um tempo para me convencer. Eu estava com tanto medo 
que ela piorasse pela doença porque eu sabia, eu fui com ela para milhões 
de médicos aqui, fora do país, tudo. E todos falaram da gravidade que ela era 
engravidar. E ela insistia em engravidar. Então, quando vi que para ela que 
era perigo de vida, então entre perigo de vida e adotar, adota. Não me opus 
pelo fato que são pessoas que não conheço, ou alguma coisa assim, porque 
77 
 
é judeu, não judeus, nada disso importou. Me importou o peso que seria para 
ela, que ela fisicamente não ia aguentar, que seria metade do meu trabalho, 
digamos assim. Mas também isso não me preocupou, eu tenho a força, eu 
sou uma pessoa muito disposta a ajudar os outros, sempre fui deste tipo (...). 
Aí ajudei, me apaixonei logo pelas crianças, esse foi o lado bom. Muito, muito. 
 
Miriam: Preparamos tudo para uma criança. Semana seguinte, ela diz: 
“descobri que ele tem irmã. Eu vou trazer a irmã”. “Tá bom, Anat, não quero, 
você não vai dar conta, impossível”. Mas eu não tinha entendido que era irmã, 
irmã, de coisa. Achei que era outro porque ela era tão generosa que ela 
trabalhava em todos os abrigos que você pode imaginar, e trazia pessoas 
para Kabalat Shabat, desde que perdeu o pai dela, ela já ia trabalhar no Lar 
da Criança61, conheceu o marido trabalhando lá (...). Então ela estava 
engajada nisso. “Tá bom, então eu vou voltar com dois”. “Anat, não vai dar 
conta”. Aí ela me comprou com a frase: “você consegue imaginar a minha 
vida sem o Rodrigo? Ou a vida do Rodrigo sem eu?” “Não, você tem toda 
razão: traz que eu vou te ajudar”. 
Gizele: E aí o Noé tinha 4? 
Miriam: E a Noah, 3. 
Gizele: Duas crianças pequenas! 
Miriam: Pequenas, falando um português que eu não entendia, porque o 
sotaque deles era uma coisa. 
 
O fato de Noé e Noah serem irmãos de sangue, foi suficiente para que Miriam 
e Anat tivessem certeza da importância de os manterem juntos, apontando uma 
valorização deste tipo de vínculo. Miriam tem irmãos, mas nada comentou sobre eles. 
Em outra passagem, ela se refere à avó biológica dos netos como uma avó verdadeira, 
apontando a força que os laços de sangue têm na sociedade, e mesmo em famílias 
por adoção. 
 
Miriam: Porque olha só, a avó mesmo deles, que eu saiba, quando a Anat me 
ligou, ela disse: “olha só, se prepara que ele vai te odiar”. Ai eu: “Por quê?” 
(...). Porque ele tem muita tristeza com uma avó. A avó disse que ia ficar com 
ele, toda semana ele estava com maletinha pronta, na porta do abrigo, 
esperando que a avó venha e a avó não vinha. Aí ele ficava mais uma 
semana. Aí ela dizia que vinha no domingo seguinte, ele estava com a 
maletinha na porta, e não vinha. Meses assim. 
 
Miriam: Mais uma perda e eu não sou o que eles queriam. É a tal história eu 
fui imposta pela vida. A Anat foi uma escolha deles. Ele se aproximou dela e 
disse. Ele usava óculos escuros, que ele dizia que queria ser invisível para 
ninguém ver. E ela chegou perto dele e disse: “Vamos ver seus olhos? 
Vamos”. Começou a conversar com ele. Ele amou ela e ela amou ele. Foi 
uma coisa muito rápida. Entendeu? Ele estava louco para ter mãe, ele gostou 
logo muito dela. (MIRIAM, jul. 2017). 
 
Miriam, Noé e Noah encontram-se num novo momento em suas vidas, 
precisando lidar com a morte e com a continuidade. A aproximação do Barmitzva aviva 
 
61 Lar da Criança Israelita é uma instituição judaica de assistência social a famílias que não tem 
condições financeiras, ou emocionais, de cuidar de seus filhos, provendo bolsas de estudos, 
alimentação, orientação medica e psicológica. Em outros tempos, funcionou como abrigo e hoje, 
além dos auxílios mencionados, tem somente, uma pequena creche de turno diário para crianças de 
idade pré-escolar. 
78 
 
a ausência da mãe, a importância da família e dos amigos, a afirmação da escolha 
pela adoção e o lugar do judaísmo na tessitura destes laços. Criar os filhos dela, 
realizar seus sonhos e passar ainda por muitas outras etapas são as marcas desta 
família, que foge ao padrão netos-avó previsto ou presente na pesquisa. 
 
2.6 Malka. 
 
Malka tem 88 anos, é viúva e aposentada. Mora com seu filho, Uri, 58 anos. 
Ele tem cinco filhos de dois casamentos: Iuval, 33 anos, Daniel, 31 anos, Michel, 29 
anos, do primeiro casamento; e Davi, 14 anos, e Julia, 11 anos, do segundo. O outro 
filho dela chama-se Ariel, 60 anos, é casado com Dalia, e tem um filho, Alan, de 23 
anos, que é o neto por adoção. 
 
Genograma 6 – A família de Malka 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
Quando escolhi o tema da pesquisa, tinha em mente algumas famílias 
conhecidas. Aos poucos, fui percebendo de que conhecia mais famílias do 
que as pensadas anteriormente. Num encontro com minha orientadora, 
discutindo minha preocupação com o sigilo na comunidade judaica, conto 
uma situação de consultório, antiga, onde a famílianão quis que eu 
atendesse o filho porque ele estudava na mesma escola que os meus, tinham 
idade aproximada, embora nem nos conhecêssemos até aquele momento. 
Na época, por conta deste desconforto deles, fiz uma indicação e a família 
sentiu-se bem atendida. Ficamos com um bom contato e sempre nos 
cumprimentamos de forma afetuosa em festas na sinagoga que, atualmente, 
todos frequentamos. 
79 
 
 
Curiosamente, na mesma semana, encontro a tal terapeuta para quem os 
indiquei, quase 20 anos atrás, e me dou conta que é uma família com adoção! 
Por que não me lembrei deles antes? Nem quando falava com a Anna! Decido 
então sair em busca da mãe, primeiro pelo Facebook, sem reposta e, 
posteriormente, pelo WhatsApp, ao conseguir seu contato telefone com uma 
amiga em comum. Ela prontamente me responde e marcamos de falar ao 
telefone. 
 
Me atualiza da vida de seu filho, que como os meus, já é universitário. (Não 
comento que é na mesma universidade, e num prédio próximo, influenciada 
pela situação do passado). Acha interessante minha pesquisa e diz que sua 
sogra (sua mãe vive em outro país) certamente irá gostar de conversar 
comigo sobre o neto. 
 
Fico um tanto frustrada porque passam cerca de cinco dias até que ela me 
escreve dizendo que a sogra aceitou e me dá seu contato. Ela, por sua vez, 
é muito simpática e solícita ao telefone, quer que eu escolha um dia e hora 
de minha preferência já “que não se encontra mais na ativa” (sic), como 
insistiu por duas vezes em dizer. No dia marcado, ligo e confirma. Já tinha 
me dado o endereço no primeiro telefonema, mas fez questão de me explicar 
a localização da rua. 
 
Chego numa rua bem tranquila, apesar de uma vizinhança bem 
movimentada. Prédio antigo, daqueles que a portaria fica ao fundo e há um 
jardim coberto na frente. O porteiro toca o interfone e consigo ouvir o toque, 
apesar de ser no quarto andar. Ninguém atende. Insiste. Estranho. Ele diz 
que não deve ter ninguém em casa. Digo que falei com ela há pouco e que 
está me esperando. Me deixa subir. 
 
Toco a campainha e escuto um homem atendendo ao interfone. O filho abre 
a porta abotoando a blusa. Parece saído do banho, e não muito à vontade. 
Diz que ela já vem e me convida para sentar na sala. 
Passo pela porta de uma pequena cozinha e consigo ver uma bandeja 
preparada para um café. Na sala, a tv está ligada com som alto e vejo o local 
onde ela deveria estar anteriormente sentada, pela disposição dos controles 
e de remédios. Parece que já estava à minha espera. 
 
Vem de dento uma senhora baixinha, com uma roupa simples e um sorriso 
simpático, bochechas avermelhadas, pele clara e límpida. Logo me simpatizo. 
Pede desculpas. Diz que já estava pronta para me receber quando precisou 
ir lá dentro. Desliga a tv e me convida a sentar, me oferece um café e digo 
que aceitarei mais tarde. Pergunta se prefiro sentar na mesa ou no sofá. 
Escolho o sofá pois me parece mais confortável. Ela logo me pergunta o que 
quero saber sobre seu neto. Digo que primeiro quero explicar a pesquisa, falo 
do TCLE e do gravador. Tudo ok. Ligo. 
 
Ela se surpreende com minha primeira pergunta, pelo fato que quero saber 
de sua vida. Diz que não estava preparada para isso. Em partes mais difíceis 
de seu relato, se emociona, se cala, fecha os olhos e parece não conseguir 
respirar. Percebo que não passa bem. Me aflijo. Digo que podemos parar ou 
mudar de assunto, mas ela pede um tempo e prossegue. Algumas vezes. Diz 
que já tinha tomado um Sustrate62 antes de eu chegar, mas que vai tomar 
outro. Me ofereço para pegar água para ela, que recusa e chama o filho duas 
vezes. Ele responde que está ao telefone e ela aceita minha ajuda. 
 
Ao longo da conversa, me surpreendo com sua excelente memória: cita 
datas, nomes, tem um relato coeso e linear. Quando não lembra de algo, se 
 
62 Remédio para o coração. 
80 
 
aborrece consigo mesma, se esforça e acaba por se lembrar. Em vários 
momentos, coloca a posição do braço sobre o espaldar do sofá, onde a minha 
se encontra, segura a minha mão e eu a seguro de volta, fazendo-me carinho: 
algo novo e inesperado. Lembro de minha avó: um tipo de afago que 
trocávamos - silencioso e doce, inundado de cumplicidade. 
 
Quando vamos juntas buscar mais água, numa segunda vez, percebo que 
além da xicara de café, na bandeja, há doces, do tipo que já me foi oferecido 
na casa de Debora, o tal que não gosto, que minha avó também fazia com 
goiabada. Acho graça. Percebo como tudo é limpo e organizado, de uma 
forma incrível para uma senhora idosa, que só tem uma faxineira uma vez 
por semana, como me disse. 
 
A entrevista dura quase três horas. Ela demora para falar do neto por adoção, 
pois, antes, conta uma história de vida superinteressante, que me fascina. No 
final da entrevista aceito, finalmente, o café e como um doce, por delicadeza. 
Antes, vejo as fotos dos porta-retratos da sala e em seu quarto porque ela 
queria achar uma, determinada, do momento da adoção. O quarto é do tipo 
franciscano. A sala tem móveis antigos, mas em bom estado, parecendo de 
boa qualidade. Vejo que há um pequeno banheiro fora de uso no corredor. 
Quando uso o banheiro principal, percebo que a toalha e o sabonete foram 
recém trocados, reconfirmando o quanto que ela foi cuidadosa ao se preparar 
para a minha visita. 
 
O filho vem ao final e parece querer conversar um pouco, me preocupo se 
escutou algo. Senta e ela lhe diz que falou até de seus filhos mais novos, ele 
dá um sorriso tímido. Mas eu já estou bem cansada para abrir um novo 
diálogo. Me levam à porta e ela insiste que ele me acompanhe até lá embaixo, 
pensando que parei na sua garagem. Digo que não vim de carro por temer 
não ter vaga, ela lamenta que esqueceu de me dizer que eu poderia parar no 
prédio. Se aborrece consigo mesma por isso, da mesma forma que se 
aborrecia quando não lembrava de algo, mostrando exigência consigo 
mesma. 
 
Me despeço em hebraico e seus olhos brilham, pela oportunidade de falar e 
por ver que falo bem. (O que já tinha ocorrido numa pequena passagem na 
entrevista). Sua pronuncia é linda e sua habilidade com a língua intacta. 
Aproveita para mandar um recado para minha mãe, já que em algum 
momento lhe conto de uma significativa similitude entre suas vidas atuais. 
Saio cansada, feliz e emocionada. Que bom ter de andar e voltar para casa 
de ônibus, assim posso digerir e despressurizar a emoção que sua vida 
provocou em mim. 
 
Demoro a fazer este diário: me falta coragem de retomar este encontro, que 
agora faço, de forma saudosa e angustiada por suas dores e preocupações. 
Reluto ainda mais em iniciar a transcrição. Me aperta o coração seu final de 
vida, suas mágoas, sua inquietude, apesar da doçura e do semblante ameno. 
 
Algumas semanas depois encontro a nora e o filho na praia. Agradeço e digo 
que foi muito bom. A nora me diz que ela me adorou. Comento da casa e da 
acolhida. “Ela te mostrou as panelas ariadas que ganhou de casamento?” 
Pergunta a nora. “Agora no Ano Novo, preparou toda a comida sozinha”, 
agrega. De novo me sinto extasiada com tamanha força, vitalidade, desejo 
de cuidar e estar com os seus, apesar de tudo: uma linda lição de vida. (Rio 
de Janeiro, 6 de setembro de 2017). 
 
Gizele: Eu quero primeiro que você me conte da sua vida. 
Malka: Minha vida? 
Gizele: É da sua vida. 
Malka: Ih, minha filha, em relação? Desde que época? 
81 
 
Gizele: O que a senhora quiser, para a gente se conhecer um pouco, eu saber 
da senhora, da sua família, porque a minha pesquisa é sobre família, então 
conversar um pouquinho, saber um pouquinho. 
Malka: Tá, vou tentar reduzir um pouquinho, porque na minha época, a gente 
queria que a pessoa entendesse, ficava se explicando. 
Gizele: Mas eu posso ficar bastante tempo com a senhora. 
Malka: Ficava se explicando (rindo) até eu desatar o nó. Eu, graças a deus, 
me criei numa família de imigrantes. Eu mesma fui trazida da România, sabe? 
Gizele: Da România! 
Malka: Mas fui registradacomo já nascida aqui, porque eu tinha já um aninho. 
Aí aconselharam meus pais dizer que eu nasci aqui. 
 
Malka: Eu pensei que era só para falar do Alan. (Após uma pausa de 
emoção). 
Gizele: Mas a gente pode pular. (Me falava dos problemas decorrente da 
doença e morte do marido) 
Malka: Mas eu não ia deixar de aceitar. 
Gizele: Mas, olha só, a gente pode pular. Pode falar dos filhos, dos netos. 
Malka: Eu vou te dizer uma coisa: é vida! 
 
Malka: Eu estou te dizendo a verdade, eu achei que eu posso falar tudo aberto 
mesmo. 
Gizele: Mas pode mesmo. A gente corta e deixa só as partes da pesquisa. 
Respira. A senhora ficou cansada? 
Malka: Não é cansada. 
Gizele: Emoção? 
Malka: Tudo junto. E olha que eu tomei o remédio antes de tu chegar. 
Gizele: Mas a senhora está bem? 
Malka: Daqui a pouco eu tomo outro. 
Gizele: Mas a senhora está bem? 
Malka: É que eu revivo tudo, sabe? (MALKA, set. 2017). 
 
A emoção, as saudades, as dificuldades e as dores foram o cerne de nossa 
conversa. Ela tinha muitas histórias para contar: do período que morou em outra 
cidade, do tempo que morou fora do país, da vida, doença e morte do marido, da 
decepção com a família dele, das alegrias com sua própria família, da trajetória dos 
filhos e das preocupações com os netos. Tudo narrado em detalhes, num tom 
comovido e sincero. Seu relato lembra sua casa: límpido, organizado, iluminado e com 
sinais de vida, passada e aberta ao presente. 
 
Malka: Eu sinto demais que eu tenho muito pouco contato com o Alan. Eu só 
tive um contato muito intimo com ele quando eu morava [no mesmo bairro], 
até os dois anos. 
Gizele: Pequenininho? 
Malka: Até os dois aninhos, até mais. Eu estranho como ele se lembra. 
Porque eu sou uma avó muito presente, fui uma avó muito presente, com 
todos eles. 
Gizele: Mas ele vem aqui o Alan? 
Malka: Muito pouco, quase nada. Mas não tem nada a ver com adoção. 
 
Malka relata detalhadamente a vida de cada neto, seus percursos, suas lutas 
e, demonstra especial preocupação com um que tem dificuldades emocionais. Os três 
netos mais velhos, viveram junto com os pais, em sua casa, por muitos anos, o que 
82 
 
justifica, em parte, seu maior apego. Do neto por adoção, Alan, fala pouco: além do 
menor contato, parece se preocupar menos. Fala com nostalgia dos primeiros anos 
de vida dele, quando moravam perto e ela ajudava em seus cuidados. E também da 
alegria de sua chegada e da realização do filho e da nora em tornarem-se pais. 
 
Malka: (...). Bom, Deus é grande e existe, sabe? Porque foi uma alegria geral, 
para a família toda, eles se realizarem como pai e mãe, e desde a notícia de 
que esse bebê existia para a nossa família foi uma alegria geral. (...). (MALKA, 
set. 2017). 
 
Malka aponta para a tensão com os laços de sangue, numa passagem que não 
diz respeito ao Alan, mas sim aos seus dois netos menores, com os quais não tem 
convívio. É uma história para ela de dor e abuso, que me conta com sofrimento, como 
em outras passagens difíceis, pelo intuito de ser franca a respeito de sua vida e de 
sua família. Mas, talvez, também, para aproveitar aquele momento de confiança e 
cumplicidade para conversar sobre suas aflições. 
 
Malka: (...). Todos os três são a minha paixão, todos os quatro. 
Gizele: Quatro meninos? 
Malka: Quatro meninos. (Pausa). Eu não considero netos (...). [me conta 
sobre os dois netos mais jovens]. Foi um comportamento muito, dela, um 
comportamento muito abusivo, muito invasivo (...). Eu só fiquei sabendo disso 
quando as crianças, quando o menino já tinha três anos, que ele existiu. Ele 
já tinha três anos (...). 
Gizele: E a senhora não tem nenhum convívio com eles? 
Malka: Eu não tive, eu não tenho nenhum convívio. Mas eu já recebi eles aqui 
em casa (...). 
Gizele: Então são duas crianças que a senhora não considera neto? 
Malka: Não. Eu vou te explicar. Não que eu não considero neto. Eu que ajudo 
a sustentar. (...). É da minha aposentadoria (...), mas esse capitulo da minha 
vida é muito obscuro, sabe? Porque eu não estou acostumada a me 
comportar assim. Eu falei para minha família depois que eu descobri: eu não 
sei administrar os meus netos que eu convivi desde a barriga da mãe com 
esses dois, eu não posso administrar isso porque eles não aceitam. E como 
é que eu vou? Eu não sei. (MALKA, set. 2017). 
 
Não vou me estender nesta situação, porque não diz respeito ao Alan, mas há 
no diálogo acima uma questão interessante quando ela fala do diferencial de conhecer 
os outros netos desde a barriga da mãe. Isso certamente não aconteceu com o Alan, 
mas no caso dele não parece criar uma barreira, possivelmente porque há (boa) 
convivência com o neto, o filho e a nora. E também, a chegada do Alan é 
acompanhada por ela, desde que a adoção se efetiva, quando ajudou, mesmo à 
distância na escolha de seu nome, que me narra com uma doce pontada de orgulho. 
 
83 
 
Passados cerca de 10 meses, num Shabat em minha sinagoga, na hora da 
reza para os enlutados63, uma espécie de fala chorosa chama a atenção de 
todos no recinto. Ao olhar, vejo o filho que morava com ela. Meu coração 
dispara. Uma fila à frente estão o outro filho e a nora. Fico aflita e emocionada. 
 
Assim que termina o serviço, vou lhes procurar. Preciso dizer o quando gostei 
de tê-la conhecido e escutado suas histórias. Converso um pouco com eles, 
nora e marido, mas minha angustia permanece ao pensar no destino de seu 
filho mais velho e dos netos que ajudava a sustentar, seja física ou 
emocionalmente. Eu não estava preparada para saber que mais um de meus 
queridos entrevistados não poderão ser revisitados, nem para um simples 
café. Lamento não tê-la visto mais uma vez para um forte e último afago. (Rio 
de janeiro, junho de 2018) 
 
2.7 Guita 
 
Guita tem 75 anos, é viúva e aposentada. Foi casada com Eliezer por quase 50 
anos, falecido sete anos atrás, com quem teve três filhas. As mais velhas são gêmeas 
e estão com 52 anos: Yasmim e Beatriz. Ambas estão casadas e tem filhos. Yasmim 
é mãe de Henry, 25 anos; Beatriz é mãe de Gabriel, 19 anos, o neto por adoção, que 
já está casado e tem um filho chamado Saul, de um ano. A terceira filha, Elisa, tem 51 
anos, é casada e mãe de Lys, 21 anos, também casada, e de Naomi, 18 anos. 
 
 
 
 
 
Genograma 7 – A família de Guita 
 
63 Chama-se Kadish a reza de lembrança de entes queridos falecidos, que é entoada em todos os 
serviços religiosos realizados na sinagoga. É uma obrigação religiosa diária para aqueles que 
cumprem o período de luto, mas também são proferidas pelos que marcam alguma data relativa ao 
falecimento de algum familiar. 
84 
 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Numa certa manhã, decido fazer um tour de force e enviar mensagens para 
conseguir novas famílias. Foram cerca de 30 mensagens. Obtive como 
respostas: algumas sugestões de pessoas já entrevistadas, muitos “não 
conheço” e algumas novas indicações. 
Assim uma amiga sugere uma avó, fala com sua filha, tia da criança adotada 
e com a avó, e me passa o seu contato. Diz que é amiga da minha mãe, mas 
pelo nome não sei de quem se trata. Telefono e marco. 
 
No dia, ligo para confirmar e ela me avisa que tem hora para terminar. Penso 
em transferir, mas acabo mantendo a entrevista. Chego preocupada e 
frustrada porque teríamos, no máximo, cerca de uma hora e meia. Ela mora 
em um prédio antigo, que estava em reformas. Demora a atender o interfone. 
Me recebe na porta, eu a conheço mesmo, mas não tenho ideia de quem 
seja, não sei nada sobre ela! Digo: “Ah, é você! Pelo nome não estava certa, 
minha mãe tem tantas amigas!” Ri e concorda. Falo mais para quebrar o gelo 
pois realmente não a conheço, embora seu rosto seja familiar. 
 
Sentamos no sofá. Eu derretendo do calor da rua. Ela fica em dúvida de ligar 
o ar condicionado porque ficaria em cima mim. Eu fico na dúvida por conta 
do barulho na gravação. Me oferece água. Aceito e peço para usar o banheiro 
antes de começarmos.Apartamento amplo, com cara de reformado, moderno 
para a sua idade. Durante a entrevista, me surpreendo ao perceber, aos 
poucos, a mistura de cores na sala, a pouca presença de enfeites, todos 
judaicos. Ela menciona retratos que estão na parede do corredor, que eu 
peço para ver ao final, algo que já incorporei ao campo. 
 
Assim que sento, me pergunta da pesquisa, se escolhi famílias judias porque 
são diferentes das outras. Ela acha que são. Explico da pesquisa e do sigilo. 
Ela diz que é melhor mesmo ficar entre nós. Primeira diferença marcante, já 
85 
 
que os demais não se preocuparam com isto, exceto por Miriam, com algo 
que magoasse ao neto, e que acabou diluído durante a conversa. 
 
A entrevista flui. Ela é, sem dúvida, diferente, como mesmo diz, das senhoras 
de sua idade: jovial de espirito e de proposta de vida. Vamos nos tornando 
próximas e íntimas, num estilo menos emocionado, mais pragmático, franco 
e aberto. Uma confiança que se constrói a cada palavra, facilitada por valores 
em comum: estudo, trabalho, filhos e judaísmo, ao meu ver. 
 
Na parte do neto por adoção, se abre totalmente e não tem mesura em falar 
das dificuldades. Gosto dela e penso como é (e foi) uma mulher avante do 
seu tempo, em muitos aspectos de sua vida. Me surpreendo que nada sabia 
sobre ela e não parece que conheço suas filhas, apesar de idades próximas 
à minha: estudaram em outros colégios judaicos e frequentaram outros 
movimentos juvenis. Confirmo este desconhecimento, ao final, ao ver as 
fotos. 
 
Eu, preocupada com seu horário, olho no relógio e ela me diz que poderá 
ficar mais uma hora, deixará a ida ao banco para o dia seguinte, mas precisa 
ir a fisioterapia. Talvez um sinal de que também estivesse gostando da 
conversa e confiando na proposta. Ocupamos todas as duas horas e meia de 
que ela dispunha e, como em outras entrevistas, sinto que poderíamos 
conversar ainda mais. 
 
Em algum momento do encontro, ela liga o ar condicionado porque, mesmo 
com a janela aberta, continuava muito quente. O barulho atrapalhou parte da 
gravação, mas foi de grande alívio. Ela foi também a única que não me 
ofereceu nada para comer. Achei bom, mas, confesso que estranhei. Ela se 
define como alguém que nunca gostou de ser “doméstica” (sic). Será por 
isso? Acabo saindo com fome e sede, mas ao menos não bebi, nem comi 
algo de que não gostava. Nova diferença! 
 
Descemos juntas e, na rua, a ajudo a entrar num taxi. Nesse pequeno 
percurso, ainda conversamos coisas importantes, ainda não ditas, como seus 
problemas de saúde. Parece não querer se despedir e diz claramente que 
gostaria de continuar a conversa, que o papo nos tornou próximas. Prometo 
um café e ela diz que adoraria. 
 
Saio bem, leve, e à noite, penso em algumas passagens que me 
emocionaram: a carreira brilhante de seu falecido marido, a grande ajuda na 
criação dos sobrinhos, a doença grave do neto mais velho e o empenho com 
o neto por adoção. Percebo que gostaria de me tornar uma idosa como ela: 
que estuda, hebraico e judaísmo, e curte as filhas e os netos, dona de sua 
vida e independente. (Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2018). 
 
Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, me fala, me conta primeiro um 
pouquinho da sua vida para a gente se conhecer. 
Guita: Mas qual aspecto? Familiar? Profissional? 
Gizele: O que você quiser, só para a gente ir se conhecendo. 
Guita: Profissional. Eu sou (...), trabalhei a vida toda na área de saúde, (...). 
E num certo momento, eu dupliquei meu trabalho, continuei no município e 
entrei para (...). (cita instituições ligadas a saúde e, posteriormente, um 
hospital da rede pública). (GUITA, jan. 2018). 
 
Desde esta primeira reposta é possível perceber o valor que Guita atribui à vida 
profissional, o orgulho que sente de sua profissão e trabalho, e quanto lhe faz falta 
esta ocupação. De forma semelhante, conta do grande cientista que seu marido foi, 
bem como do ótimo desempenho de suas filhas em suas trajetórias profissionais. 
86 
 
O valor do estudo é forte em sua família, e ainda está presente em sua vida 
nos dias de hoje. Mantém, sob sua alçada, em relação a Gabriel, o neto por adoção, 
o sustento financeiro dos estudos, como também o incentivo e o monitoramento. 
Também ajuda e valoriza os estudos de sua empregada. 
 
Guita: É, mas assim. Ele vai. Eu falei assim: eu quero acompanhar você. Só 
funciona assim. “Aí, não, vó”. Ele meu deu o portal dele para eu acompanhar. 
Gizele: Para você ver as notas direto? 
Guita: Eu vejo as notas direto. 
Gizele: Que graça! (Eu rio e ela em seguida). 
Guita: É. Aí que acontece. Ele não é de frequentar muito, não é nada disso. 
Ele passa raspando, mas passa raspando porque a média lá é seis. Ele passa 
com 6,2. (Eu rio e ela em seguida). Passou em tudo. 
 
Guita: Eu tenho uma empregada que está há 13 anos aqui. Ela veio com 17 
e está com 30. Ela é uma moça, o meu marido era muito, muito, muito a favor 
da educação. Ele fazia tudo para essa menina estudar. Ela chegou aqui do 
Norte, ela não tinha nem ensino médio e botou e fez. E, eu, o que que eu fiz? 
Estou continuando a obra dele: ela está na faculdade de nutrição. (GUITA, 
jan. 2018). 
 
Guita faz questão de estar presente na vida de todos: filhas, genros, sobrinhos, 
netos e bisneto, mas, especialmente na de Gabriel. Relata que ele é mais retraído e 
que mantém menos contato com os demais, primos e tios, bem diferente de quando 
era criança; mas que frequenta o Shabat em sua casa e traz seu bisneto, Saul, cuja 
escola também é ela quem provê. 
 
Guita: É. Sou bisa desse menino. (...). O menino é uma graça. Uma gracinha, 
xodó da família (...). Adoram, da família toda porque a gente se reúne no 
Shabat na casa da Elisa, aqui. 
Gizele: Ah, é todo Shabat? 
Guita: Todo Shabat. Ai ela sempre traz o Saul, ne. Saul é uma gracinha. 
 
Gizele: Dentro da família com os tios, com os primos, como foi o Gabriel 
quando ele chegou assim? 
Guita: Ele não é um menino sociável assim. Ele, graças deus, ele tem vindo 
ao Shabat, mas graças a mamãe aqui empurrando. Porque sei lá, semana 
passada, por exemplo, retrasada, ele não apareceu. Aí chegou na semana, 
aí Beatriz pegou, mandou um WhatsApp: a gente não vai poder ir. Aí eu liguei 
direto para ele: “Gabriel, tua mãe disse que não vem, por que é?”. “Ah, vó, 
não tô sabendo não porque ela falou isso”. Falei: “você vem, ne?” (Eu rio) E 
veio. Entendeu? mas ele vem, mas não se comunica com o resto. 
Gizele: Nem agora com o filho? 
Guita: Ah, com o filho sim. 
Gizele: Não, o filho como ponte, filho ajudando ele na interação com os 
outros? 
Guita: É, um pouquinho, um pouquinho. 
Gizele: Mas quando ele era pequeninho, ele interagia com os outros primos? 
Guita: Ah, sim. Eu até me lembro quando eles eram pequenos, o clube que a 
gente ia (...) adorava aquela piscina. (...). E a gente ia, ia a família toda. (...) 
acho que se dava. 
Gizele: Porque a tua neta tem mais ou menos a idade dele. 
Guita: É, as meninas têm mais ou menos a idade dele. (...). 
87 
 
 
Gizele: Mas me diz uma coisa, Guita, o que significa para você ser avó? 
Guita: Olha, eu vou te dizer uma coisa: uma coisa assim muito, muito 
gratificante, muito mesmo. A gente tem a impressão que já esqueceu um 
pouco dos filhos: a gente gosta tanto quanto os filhos ou talvez até mais. (...). 
Eu acho que eles assim só me deram alegrias porque como eu trabalhava a 
vida toda, nunca fui daquelas avós de ficar tomando conta de neto. (...). 
Então, a minha relação com eles é só uma coisa prazerosa, de prazer. 
 
Sobre o neto Gabriel, ela conta das dificuldades que ele teve na escola judaica, 
que ela atribui a sua cor e às dificuldades dos pais de o assumirem como filho por 
adoção. Relata também sua passagem pela marginalização e das dificuldades 
emocionais enfrentadas por ele atualmente. Parte destes temas serão abordados nos 
próximos capítulos. 
 
Guita: Eu acho que nessa família (...), não sei por que, mas é verdade, sou a 
mais durona. 
 
Gizele: Qual o legado que vocêacha que deixa como avó para eles? Para 
seus filhos? 
Guita: Olha, a minha família é muito de fazer discurso. (...). O meu marido já 
era assim. (...). Eu puxei dele um pouco isso, sabe. Eu gosto de falar nas 
festas e tudo. Ai, eles me consideram muito por causa disso. Eles falam que 
eu sou aquela avó, alegre, com espirito jovem, que, inteligente, culta. (...). 
Gizele: Que é esse o legado que você está deixando da cultura? Do afeto? 
Guita: De, assim, de alegria, de viver cada momento, sabe. A vida passa e 
você tem que saber que está passando. e a gente tem que aproveitar cada 
momento, de que a gente tem que enquanto a gente está vivo, a gente tem 
que procurar conhecer coisas novas e saber o que se passa no mundo, ne. 
(GUITA, jan. 2018). 
 
Guita é um grande alicerce para toda a família, apesar de se cuidar e ocupar 
sua vida de aposentada e viúva, de forma independente. Diferente de muitas mulheres 
de sua geração, ela diz que não nasceu para ser mãe (ou doméstica), que teve sempre 
alguém para lhe ajudar com as filhas e nunca parou de trabalhar. Mas, apesar disso, 
ou justamente por isso, construiu e mantém uma ótima relação com todos à sua volta: 
é presente, cuidadora e cuidadosa, de uma forma objetiva e pragmática. Acompanha 
e estimula o caminho das filhas, genros, sobrinhos, netos, netas e bisneto, sem deixar 
de cumprir seus próprios projetos de aproveitar a vida com viagens, programas 
culturais e estudos. Foi ótima (re)conhece-la! 
 
2.8 Dinah 
 
Dinah, 88 anos, viúva há 24 anos. Foi casada por 44 anos. Mãe de Vitor, Karen 
e Julio. Vitor é casado com Marta, e tem uma filha por adoção, Lilian, de 45 anos, que 
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é casada e tem, por sua vez, uma filha de um ano e três meses, Gabi. Karen está no 
terceiro casamento e teve dois filhos: Selma, de 45 anos, que é mãe de Ilan, 11 anos, 
e Hugo, de 40 anos, casado e pai de Ana, de três anos. Julio, 63 anos, é casado com 
Isabel, e pai de uma filha por adoção, Joyce, de 16 anos. Dinah tem, então quatro 
netos, sendo duas por adoção, e três bisnetos. 
 
Genograma 8 – A família de Dinah 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
 
Fruto das 30 mensagens enviadas, recebo o contato de Dinah, que tinha duas 
netas por adoção e já havia aceitado participar! Entendi que minha amiga 
tinha alguma conexão com o pai de uma delas, mas não sabia ao certo. Duas 
netas e eu ainda não sabia! Foi também fácil e rápido agendar para minha 
alegria. No telefonema de confirmação, falamos através da empregada pois 
ela estava ocupada, mas pude ouvir: “mas já não está marcado?” Então tá. 
 
Prédio espremido, portaria pequena. Ela mesma abre a porta. Levo um certo 
susto pois era miúda, bem idosa, com um desses vestidos velhos de ficar em 
casa. Minha primeira sensação é de que seria uma conversa sem muito 
desenvolvimento devido a sua avançada idade. Ledo engano. 
 
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Ela já tinha separado uma cadeira da mesa de jantar para se sentar, perto do 
sofá, mas eu sugiro que nos duas sentemos perto da mesa, porque queria 
ficar próxima fisicamente, confortável e perto da janela, devido ao intenso 
calor. Assim, ela arrasta sozinha um grande ventilador para perto da mesa. 
Reparo rapidamente nas salas contiguas: de estar e de jantar. Pequenas, 
limpas, arrumadas. Móveis antigos e austeros. Alguns objetos de enfeites, 
em sua maioria pequenos. Só depois vejo que há também muitos porta-
retratos. Percebo livros na mesa de centro. E o jornal aberto sobre a mesa de 
jantar com uns óculos de leitura em cima. 
 
Ela logo se senta e diz que está à disposição, que é só eu perguntar que vai 
responder. Vai logo dizendo que nem lembra que as netas são adotadas. São 
ótimas. Já tinha me dito algo assim ao telefone na primeira vez que nos 
falamos. Mas eu preciso de um tempinho para explicar da pesquisa, do 
gravador e do TCLE. Ela o lê todo. É a primeira a fazer isso. Estou curiosa 
com sua idade. Depois venho a saber que está para completar 89 anos. 
 
Durante a conversa, demonstra uma mente totalmente lúcida e rápida de 
pensamento, firme nas palavras e nas colocações. Pelo visto, nas atitudes 
também. Fui totalmente enganada pelas aparências. Assim que ligo o 
gravador, ela fala que não sabe quem é a pessoa que me indicou. Tento 
descrever, dizer como a conheço e o que sei dela. E também achar uma foto 
pelo celular no Facebook para lhe mostrar. Ela acha que deve ser amiga da 
nora e, pela conversa, parece que esse era o elo sim. 
 
Ao terminarmos, me oferece um café. Aceito só água e peço para ir ao 
banheiro. Vejo que tem mais dois quartos, simples. Ela mesmo serve a água 
para mim. Pergunto se vai descer comigo já que disse que levaria a secretária 
eletrônica para o conserto. “Não, vou me trocar!” E assim nos despedimos, 
desta vez, com menos apego, mas com pragmatismo e eficiência. Fico com 
a sensação de que ela deu à entrevista o tom que dá a sua vida: sem 
delongas, direto, sincero - foi assim ao marcar, ao introduzir o assunto da 
adoção, ao falar de seus posicionamentos. Ela usa celular, WhatsApp, sabe 
sobre Wi-Fi: um assombro de tão bem situada na vida. (Rio de Janeiro, 19 de 
fevereiro de 2018.) 
 
Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, Dona Dinah, para a gente se 
conhecer. 
Dinah: A minha vida não tem nada de extraordinário, é uma vida. Eu sou 
formada, mas nunca exerci a profissão, sempre fui dona de casa 
Gizele: Formada em que? 
Dinah: Sou contadora. Mas nunca exerci a profissão, porque eu sempre 
gostei de ser dona de casa, mãe, dona de casa e, hoje, tenho três filhos, uma 
filha e dois filhos, todos casados, bem casados, tenho quatro netos, três 
bisnetos, tudo na santa paz. 
Gizele: Quantos anos a senhora tem? 
Dinah: Eu sou muito idosa. 
 
Dinah: Sou uma pessoa realizada, me sinto, não sei se eu sou, mas eu me 
considero realizada. Eu alcancei, eu nem almejei porque eu jamais poderia 
imaginar que eu teria uma velhice boa, apesar dos pesares porque a velhice 
tem chegado. Eu acabei de fazer fisioterapia(ri). (DINAH, fev. 2018). 
 
Dinah é simples, direta e segura. Interessante a forma centralizadora que ela 
se coloca na família, apesar da idade avançada e de dizer que não se intromete na 
vida dos filhos, somente “toma conta” (sic). No entanto, eu diria: uma grande matriarca 
- o filho, que trabalhava com o pai, ainda almoça todos os dias em sua casa; um neto 
90 
 
já morou com ela enquanto fazia uma nova faculdade; os netos e bisnetos, do lado da 
filha, frequentam muito a sua casa; um primo vem todos os finais de semana almoçar 
com ela; e as netas ligam com frequência - um estilo particular de manter-se 
conectada com cada um. 
A relação mais estreita com a filha, seus filhos e netos, mostra mais uma vez 
que, os elos se mantem mais fortes pela linhagem feminina. Com os demais, filhos, 
noras, netos e bisneta, mantêm uma relação mais distante fisicamente, porém 
sustentada por telefonemas e mensagens. 
 
Dinah: E sou mãe até hoje, até o dia de hoje. Eu digo: “se os meus filhos 
deixassem eu seria aquela Ídiche mame64 até hoje”. (Eu rio). Mas eles não 
deixam. Me chamam a atenção: “mãe, eu já sou avó, mãe”. Me põe no meu 
lugar, mas eu não fico. Eu tomo conta de vida de todos. (...). Eu nasci para 
isso. Eu nasci para ser mãe. 
Gizele: Para ser avó também? 
Dinah: Avó e bisavó. 
 
Dinah: (...). Os meus filhos são muito independentes. (...). E você sabe que 
eu sou uma sogra maravilhosa, não vou na casa de filho. (Eu rio). Não vou. 
Só quando eu sou convidada. Mas assim mesmo eu fico sentada. Eu sou 
visita. Eu não sou intrusa. As minhas noras, eu acho que elas me adoram, 
porque elas quase não me veem. (Eu rio). Só por telefone. É à minha maneira 
de pensar. (DINAH, fev. 2018). 
 
Dinah: Mas eu não peço nada a ninguém. Sou muito independente. (...). 
Enquanto eu tiver consciência (...), eu mantenho a minha casa como sempre, 
porque eu tenho um primo que passa comigo os sábados, passa o dia, 
almoça comigo. A minha casa é uma pensão. 
 
Gizele: Qual neto é mais ligado na senhora? 
Dinah: O meu bisneto.Gizele: O bisneto? 
Dinah: É. Agora. Mas a minha neta mais velha (...) 
Gizele: Por que? Por que ela conviveu mais com a senhora? 
Dinah: Eu a criei. Criei errado, mas criei. (Dou uma gargalha e ela ri em 
seguida) (...). Quer dizer, eu criei ela errado. Por que? Porque eu era nova 
também. não tinha aquela maneira de ver. Por quê? A minha filha se separou 
do pai dela, e era aquela pena e coitadinha. A coitadinha, matei ela. (DINAH, 
fev. 2018). 
 
Dinah respeita as demais posturas religiosas presentes em sua vida familiar, 
apesar de denotar bastante valor às tradições judaicas. Parece que a vida lhe mostrou 
um sentido maior em valorizar as relações do que forçar a manutenção das tradições. 
Ocorre em sua família, um progressivo desinteresse e participação no judaísmo, 
principalmente na casa dos filhos homens. Apesar de não gostar, respeita e aceita. 
Porém, fala com orgulho do bisneto que sabe rezar bem e de um discurso que fez na 
 
64 Mãe judia. 
91 
 
família da nora para explicar o que era o Chanuka. Demonstra especial alegria e amor 
para com os bisnetos e admiração pelo filho e nora que tem atividades intelectuais. 
Ao comentar o luto pela morte de uma sobrinha, motivo que a levou de volta a 
fazer análise alguns anos atrás, percebo que conheço a família. Sua sobrinha era 
amiga de minha tia e seus filhos, apesar de menores, frequentavam a minha escola e 
eu sabia que um era filho por adoção - uma história da minha juventude, que me 
marcou porque era um assunto velado. Ele deve ter agora cerca de 50 anos. 
 
Gizele: Então a sua irmã também tinha um neto adotado, não é? 
Dinah: É, mas ninguém sabia. 
Gizele: Ninguém sabia. Mas era um segredo que todos sabiam, ne, dona 
Dinah, porque eu era garota e eu sabia. 
Dinah: Você sabe por que? Foi um garoto da escola. Foi uma mãe que disse 
para um garoto da escola e ele teve um trauma muito grande, aliás a maneira 
que ele soube, ele teve um trauma muito grande. 
Gizele: Então a sua irmã também já tinha um neto adotado! É interessante, 
ne? 
Dinah: Ele foi muito amado. 
Gizele: Ele era lindo! 
Dinah: Ele hoje já é pai de dois garotos lindos. (DINAH, fev. 2018). 
 
Este é um aspecto presente em diversos textos e que ainda não tinha surgido 
em minha pesquisa: a experiência de adoção, por vezes, é repetida nas famílias - 
sobrinho neto e duas netas por adoção. No entanto, há uma interessante diferença, 
não somente pelas idades das netas, mas de posicionamento de cada casal de pais 
frente à adoção, que será comentado no próximo capítulo. 
 
Dinah: (...) E eu vou te dizer uma coisa, eu não me lembro jamais que elas 
são adotadas. Não passa pela minha cabeça que elas são adotadas. Não as 
considero adotadas, são minhas netas e o que eu faço para uma (...) e 
quando eu tenho que dar Chanukaguelt65, eu dou Chanuka para todos. [netos 
e bisnetos]. 
 
Gizele: O que significa para a senhora ser avó? 
Dinah: Tudo. Eu tinha um irmão, que ele faleceu, meu irmão, ele dizia assim: 
a gente não devia ter filho, a gente devia ter neto. 
 
Gizele: E o que que é família para a senhora? 
Dinah: Olha, família, para mim, é tudo, é tudo na vida. Uma pessoa que não 
tem família, não tem nada. A perda de um marido, para mim, é insubstituível. 
Mas a família é primordial para o ser humano (...). (DINAH, fev. 2018). 
 
2.9 Vicente e Luna 
 
 
65 Dinheiro dado na festa de Chanuka às crianças, onde guelt dignifica dinheiro em ídiche. 
92 
 
Vicente, 82 anos, e Luna, 79 anos, estão casados há 57 anos. Tiveram três 
filhos. O mais velho, Enzo, tem 55 anos, está no segundo casamento, do qual tem 
dois filhos: Fabio, 23 anos, e Rodrigo, 19 anos. O segundo filho do casal, Renato, 53 
anos, também está no segundo casamento, sendo os filhos, no caso, do primeiro: 
João Hugo, 21 anos, e Joana, 17 anos. A terceira filha, Isabel, tem 51 anos e também 
está no segundo casamento, com Leandro, há 12 anos, que é pai de uma filha que 
hoje tem 22 anos, e adotaram Hugo, que está com quatro anos. 
 
Genograma 9 – A família de Vicente e Luna 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Mais um fruto das 30 mensagens: uma amiga comentou, pensando que eu já 
teria entrevistado, porque é parente de outra mais próxima. Busco o contato 
e escrevo um e-mail para a mãe da criança, que lembra de mim, aceita e 
também me envia o e-mail de sua própria mãe. Neste interim encontro minha 
amiga, que diz que não sabia do teor da minha pesquisa. Estranho! Me 
explica seu grau de parentesco, me mostra foto da mãe e da criança em seu 
celular. Ao vê-la, me lembro dela, mas não dos avós. Acho que nunca cruzei 
com eles. O avô também está vivo. Assim, na hora do telefonema de 
confirmação, pergunto se ele também poderia participar. Ela diz que sim, que 
é o “mais entusiasmado” (sic). Fico feliz de ter mais um participante do sexo 
masculino. 
 
Chego a rua, prédio enorme, antigo: adoro! Ela me recebe já na porta. 
Aspecto abatido, gripada. Escuto a voz do avô vinda lá de dentro e algo 
ligado: tv ou computador. Sentamos na sala, quente. Ela parece meio 
fechada. Demoro a ficar à vontade. 
 
93 
 
Aos poucos, vamos nos aproximando. Em algum momento, ela vai ao 
computador lá dentro em busca de uma foto que acha linda, do primeiro 
encontro da filha com o neto, mas não localiza. No final, me mostra algumas 
fotos que estão na sala, poucas. A sala é do tipo antigo, conservador, austera. 
 
O marido vem para sala no terço final da entrevista, mas seus comentários e 
sua atitude demonstram uma alegria de vida, amor pelos filhos e netos que 
colore toda a conversa. Ambos estão bem para a idade: ela, mais castigada 
pelas doenças recém enfrentadas; ele, com pequenos sinais de falha da 
memória recente. 
 
Como sempre, uso o banheiro na chegada e na saída. Aqueles azulejos 
hidráulicos azuis. Lindo! No final me oferece um copo de refresco. Aceito. 
Estava sedenta e queria tomar um remédio. Não gosto da bebida, mas bebo. 
Fico apreensiva porque ao pegar o gravador, percebo que este tinha parado 
e não estava mais gravando. Memória cheia. Sinto raiva do meu apego pelas 
entrevistas já realizadas, copiadas, transcritas, mas não deletadas! Ela fica 
também preocupada e se oferece, caso precise refazer. 
 
Saio impressionada com a atualidade deles diante do mundo e da vida. 
Tocada por ela e suas palavras tão bem colocadas e expressas diante do 
mundo, inteligente e reflexiva; e por ele, pelo afeto que emana e preenche a 
vida. 
 
Em casa, vejo que perdi os 20 minutos finais de 2hs40min de entrevista. Devo 
ter perdido pouco conteúdo, já que muito da parte final foi uma conversa sobre 
nossa comunidade e sobre o mundo. Escrevo um e-mail para ela avisando 
que estava tudo ok. (Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2018). 
 
Gizele: Me conta um pouquinho da sua vida, para a gente se conhecer. 
Luna: Da minha vida? 
Gizele: O que você quiser. 
Luna: Estou casada há 57 anos com o meu namorado (Ri discretamente) e 
nós tivemos três filhos, ne? Você conhece a Isabel? A mais nova? 
Gizele: Conheço a Isabel. (...). 
Luna: E sempre moramos nesta mesma casa, desde que casamos, moramos 
aqui. (VICENTE e LUNA, fev. 2018). 
 
Luna e Vicente fazem um casal com algumas diferenças em relação à maioria 
dos de sua geração: ela sempre trabalhou, ele sempre gostou de cuidar dos filhos; ela 
mais pragmática, ele mais amoroso. Tiveram uma vida bem caseira e no bairro, onde 
há uma escola e clube judaico, que frequentaram com os filhos e onde fizeram 
amizades que perduram até hoje. 
 
Luna: (...) ele descia com as crianças, domingo, feriado, só que ficava na rua 
de trás, porque, agora tem movimento em tudo que é lado, mas era mais 
sossegado, mas ele ficava envergonhado porque... 
Gizele: Era o único pai! 
Luna: Envergonhado. Iam dizer: o que que é isso? Mulher folgada. (...) ou 
esse homem não é muito homem, ou outro tipo de coisa (...). Digo para ele e 
digo para os filhos: teu pai foi muito melhorpai do que vocês. 
Gizele: Você diz isso para os seus filhos? 
Luna: Digo. Ah, essa geração é muito mais egoísta, muito egoísta. E eles são 
ótimos, são ótimos filhos para mim, são bons pais, mas não é, não é. (...). 
Muito para si. 
 
94 
 
Luna: Eu aprendi a beijar os meus filhos porque ele, via na casa dele até 
demais: beijoca, beijoca, beijoca. 
Vicente: Até hoje é assim. Fico com eles no colo, estou o tempo todo beijando 
eles. 
Gizele: Não importa o tamanho? (Rindo) 
Vicente: Não. 
Luna: Não. 
Vicente: E os meus filhos também barbudos se encontram na rua ficando 
beijando, beijando. Não tem conversa. Os netos também 
Luna: Eu gostei tanto disso. Eu não tinha hábito de pegar, segurar, nada. 
Vicente: Abraço na rua, dou beijo. 
Luna: E eu me impunha isso: vou me acostumar a beijar, eles vão gostar de 
beijar porque eu não tinha isso, era diferente. 
 
Contrariando os estereótipos de gênero, desde cedo em sua relação com os 
filhos, Vicente é um pai presente, carinhoso, confidente e participativo, atitude que 
estende aos netos. Mantem até hoje, como diz, relações extremamente afetivas, 
diferente da experiência de muitos outros pais que: “Nesse sentido, as 
responsabilidades sociais impostas ao pai provedor também lhes trazem prejuízos no 
campo da subjetividade, uma vez que as ações estabelecidas são exercidas sobre 
rígidos parâmetros socioculturais.” (FREITAS et al, 2009, p.87). 
 
Gizele: Vamos voltar para o Hugo (Rindo). 
Luna: Vamos voltar (Rindo). 
Gizele: Mas faz parte porque o tema é família. 
Luna: Faz parte porque, principalmente, a família aceitou ele, assim, já é. 
Gizele: Todos? 
Luna: Todos. 
Gizele: Todos os primos? Os tios? 
Luna: Os tios todos, imagina, já é. 
Gizele: O Vicente? 
Luna: O Vicente? Você vai ver: só falta botar babador nele, com todos os 
netos! Com os filhos sempre foi assim: são os melhores, os mais bonitos, o 
máximo. (Eu rio) E com os netos também, nossa, ele sempre, imagina. 
(VICENTE e LUNA, fev. 2018). 
 
Segundo Luna, ao ver Hugo, pela primeira vez, aos 10 meses, a filha e o genro 
já sabiam que o queriam como filho – outro aspecto presente e já comentado – o 
encontro mítico (NIZARD, 2009; RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011). O processo de adoção 
tinha sido realizado somente por ela, de início, já que seu marido, pai de uma filha 
adulta, não tinha certeza de querer mais filhos. Com a chegada de Hugo, ele decide 
ser pai, se casam e passam a morar na mesma casa, após 12 anos de 
relacionamento. 
 
Luna: É, por causa da demora, eu acho que foi isso, tenho essa ideia. Ela 
mesma, estava muito chato. (...).. Ela queria, queria, queria e a gente 
torcendo. Até que um dia ela falou: “mãe, tem um menino e eu vou lá, vou ver 
o menino no abrigo”. O retrato que eu mais gosto foi do dia que ela foi ver. 
Deixa eu ver, eu tinha no computador. Que ela foi ver o menino, pegou ele no 
colo. Ele tinha 10 meses. deixa eu procurar. (O retrato que ela não acha...) 
(...). Olha, eu queria te mostrar é que aquele primeiro dia que ela foi e pegou 
95 
 
ele no colo, você vê, é um negócio lindo porque ela já está assim com eles 
dois, assim. 
Gizele: Ela foi conhecer ele tinha dez meses e você já sente que ali... 
Luna: O Leandro foi com ela, o marido dela, foi com ela. E você já vê, está 
assim, o retrato é lindo, muito bonitinho. (...). Até que finalmente... a essa 
altura o Leandro já estava apaixonado, ele estava em casa com ele. Logo, 
um pouco tempo depois ele se mudou. 
Gizele: Isso que eu ia perguntar: eles já moravam juntos? Não? 
Luna: Não moravam juntos, mas ele se mudou. Aí ele começou: papai, um 
menino de 10 meses, daqui a pouco já está falando. 
Gizele: Sim. 
Luna: Aí ele falava Lelelo, não conseguia falar Leandro (Eu rio). Ai a Isabel 
foi lá concretizar a adoção quando chegou ao final do processo, e ele falou 
também quero adotar. (Ela ri). “Aí, você é casado?”. “Não”. “Ficaria muito mais 
fácil se vocês forem casados”. “Ah é?” Casaram. (Nos duas rimos 
discretamente). Na semana retrasada, fizeram um ano de casamento. (...) 
All´s well that ends well. No final, deu tudo certo. 
 
Gizele: (...). Se você quiser me falar um pouquinho como é que ser avó do 
Hugo? 
Vicente: É igual dos meus outros netos. 
Gizele: É? 
Vicente: Não tem diferença nenhuma. 
Gizele: Como foi assim, para você, a chegada dele? 
Vicente: Nada, como se a Isabel estivesse morando fora e tivesse vindo com 
ele. Não tem menor diferença. 
Gizele: Vindo com ele? Você não tivesse visto porque ela estava longe 
assim? (Rindo discretamente porque achei a imagem tão bem comparada.) 
Vicente: É isso, não tem menor diferença. (VICENTE e LUNA, fev. 2018). 
 
Hugo, o neto, por adoção, o menor, é o xodó da família. Vicente, especialmente, 
parece usufruir de sua convivência. Percebe e aponta aspectos de semelhança entre 
eles, e com um de seus filhos. Tal atitude me lembra Rebeca: uma forma de explicar 
o grande afeto sentido por este novo neto, com quem não possui laços de sangue, 
mas parece ter, já, muitos laços de afinidade/afeto. 
 
Gizele: De que você brinca com ele, Vicente? 
Vicente: Não, ele brinca sozinho. Ele não precisa que brinque com ele. (...) o 
Enzo é que fazia isso, a Isabel não. 
Luna: Cada neto é diferente. (...) O Fabio, o mais velho, nunca pedia para 
brincar. Engraçado, ne? 
Vicente: A imaginação dele era suficiente, o Hugo também talvez seja. Ele 
faz as historinhas dele, faz vozinhas. (...). Parece muito com o Enzo. 
Luna: A gente fica descobrindo coisas que parece com um, parece com outro. 
Parece com ele também. 
Vicente: Ele parece muito comigo. É o neto que parece mais comigo. 
Gizele: (Rindo). De que? Temperamento? 
Vicente: Temperamento, é. Ele é muito observador, ele sente as coisas. 
Muito. Muito curioso, ele (Rindo). 
 
Vicente: Por isso que eu digo que ele parece comigo, eu estou 
permanentemente ligado, eu estou andando na rua, estou sabendo tudo que 
está acontecendo em volta. Se alguém chega perto de mim, por trás, eu estou 
sentindo. 
Luna: Mas ele é, Vicente acha que ele se parece com ele. 
Vicente: Parece muito, muita coisa, talvez porque o signo é igual ao meu. Ele 
quase que nasceu no dia do meu aniversário (...). Ele conversa muito comigo. 
96 
 
A gente conversa muito, como eu sempre conversei com os outros netos, à 
beça, com os meus filhos. Meus filhos sempre se abriam. 
Luna: Ele sempre se deu. 
Vicente: Contavam para mim coisas que não contavam para ela. 
 
Vicente: Olha eu só vou te dizer uma coisa: para definir a relação da gente 
com o Hugo. 
Gizele: Com o Hugo? 
Vicente: Ele adora vir aqui em casa. 
Luna: Ele pede todo feliz. 
Vicente: Ah, vamos para a casa da vovó? Para casa do vovô? Então não 
precisa dizer mais nada. Ele se sente tão bem aqui. Quer vir para cá. E ele 
não gosta de sair de casa, é igual a mim! (VICENTE e LUNA, fev. 2018). 
 
Luna também curte Hugo, netos e filhos, embora tenha um jeito mais retraído 
e venha de uma temporada de problemas de saúde. Como em outras famílias, o nome 
do neto adotado ganha um significado especial pois o nome escolhido para Hugo é o 
mesmo do pai de Luna. 
 
Gizele: O nome do menino é? 
Luna: Hugo. O nome do meu pai. A Isabel quis isso e eu achei tão legal. 
Gizele: E como foi a chegada do Hugo para você? 
Luna: Olha, foi uma maravilha, uma beleza. Mas de lá para cá eu não pude 
curtir ele muito porque na minha vida aconteceram. Ele chegou em (...) 
meados de agosto. Pesadinho ele. Gorduchinho. Agora ele está compridinho. 
(...). E eu já não conseguia mais pegar como eu pegava os outros. Foi 
diferente dos outros, completamente. Também muito mais velha. 
Gizele: Você acha que por conta da sua idade é que foi diferente? 
Luna: Não, a força vai ficando (...) menor. E pouco depois, quebrei um braço. 
Ai que não podia fazer mais nada, podia no máximo sentar no meu colo. E 
alguns meses depois, apareceu um câncer de útero. (...) Então não pude 
curtir assim a mesma coisa que eu tive com as crianças, muito, muito mais 
com ela, que é a filha, que é geralmente a coisa muitomais próxima do que 
uma nora. Se bem que não é para me gabar, mas dei mais atenção para os 
meus netos que as respectivas mães, por todos os motivos: uma tinha muitos 
outros filhos, a outra... 
Gizele: As respectivas avós ou mães? 
Luna: As respectivas avós. Elas podiam contar comigo sempre. Essas coisas 
de levar para ballet, natação, psicóloga. Um deles precisou de psicóloga. 
 
No olhar de Luna, tanto ela como Vicente são melhores pais e avós do que os 
filhos e as outras avós. Assim, parecido com Lea e Isac, há um padrão de como ser 
família que desejam que seja repetido, que tenha continuidade, que se torna um valor: 
uma forma de relacionamento afetuoso, presente e colaborativo. 
 
2.10 Nicholas e Agatha 
 
Nicholas, 80 anos, e Agatha, 77 anos, aposentados e casados há 51 anos. São 
nascidos em outros países, passaram a maior parte de suas vidas morando fora, 
especialmente nos EUA, aonde ainda mantêm uma residência, intercalando períodos 
97 
 
aqui e lá, atualmente. Têm um casal de filhos: David, 47 anos, casado. E Isadora, 50 
anos, mãe de Sofia, 13 anos, a neta por adoção. 
 
Genograma 10 – A família de Nicholas e Agatha 
 
Fonte: BAKMAN, 2019. 
 
Sem famílias para entrevistar, tento duas amigas de minha mãe, que tinha 
adiado porque achei que estavam “certas”. Ambas recusam por motivos de 
saúde. Assim, peço ajuda novamente à minha rede pessoal. Entre as 
pessoas que envio mensagens está uma conhecida que trabalha na Vara da 
Infância. Ela pergunta se pode colocar nos grupos de WhatsApp de adoção. 
Claro! Entram em contato duas pessoas, mas uma não tinha nada a ver, nem 
me lembro bem do que se tratava. A outra me diz que é judia, está habilitada, 
à procura de uma adoção tardia e seus pais, são vivos e judeus. 
Conversamos. Apesar de ainda não ter neto adotado, acho que pode ser 
interessante porque estão vivendo intensamente, e agora, esta possibilidade. 
 
Entro em contato. Fazem perguntas. Marcamos. Preciso desmarcar devido a 
um falecimento familiar. Eles vão viajar por cerca de 40 dias, que pena! 
Passados quase dois meses, envio para a filha um folder sobre uma semana 
de estudos, com o tema Judaísmo e Família, numa sinagoga, onde vou 
apresentar parte da pesquisa. Ela me escreve que já adotou, há uma 
semana, uma jovem de 13 anos. Seus pais recém chegaram e conheceram 
a neta. Vou ligar!! 
 
Marcamos. No dia, confirmo. Eles têm fisioterapia. Querem trocar o horário? 
Não. Mantenho, preocupada porque sei que o limite de hora não é bom. E 
eles são dois! Prédio na avenida atlântica. Subo. Ela abre a porta. Já tinha 
visto sua foto no WhatsApp. É uma figura diferente e bonita. Cabelos 
abundantes, curtos e brancos. Olhos verdes. Jovialidade no modo de vestir. 
98 
 
Ele está sentado, se levanta para me receber. Alto, magro, meio careca, 
parece mesmo americano. 
 
Nos sentamos, quero olhar a sala, mas não é possível porque já estão à 
minha espera. Três ambientes grandes, muitos objetos, janelas amplas de 
vista para o mar. Algo me impacta, não entendo bem o quê. Ele já vai me 
perguntando sobre a pesquisa. Digo que posso comentar, mas antes queria 
explicar do gravador, TCLE e tal. Ela pede também para gravar em seu 
celular. Ok. 
 
Mal começamos, ela traz duas fotos da neta para me mostrar, e dois vídeos 
do primeiro encontro entre eles. Me emociono com o abraço que a jovem dá 
nos recém avós. Eles querem que eu os ajude porque também precisam 
“aprender a ser avós” (sic), já que não tinham ainda netos. (E sou 
pesquisadora do tema!) 
 
Aos poucos, compreendo meu impacto. Me dou conta de que aquela vista, 
aquelas antigas janelas brancas de madeira, de frente para o mar, é a vista 
da janela da casa de meus avós maternos, de novo aqui presentes: no início, 
pelo meio e no final, já que considero que esta será minha última entrevista. 
E só, na rua, absorvendo esta emoção, percebo que Sara é o nome verídico 
da minha avó, esposa de Chaim. Se não fosse comigo, custaria a acreditar... 
 
Ela vai para a fisioterapia, ele fica mais um pouco, mas também será atendido 
em seguida. Lamento. “Poderia ter ficado mais, conversado mais”. Saio 
inundada pelo: abraço que Sofia dá em seu novo avó - abraço de quem quer 
ser acolhida, afagada, amada; pelas lindas trajetórias de vida, pelo 
entusiasmo deles com a nova neta e pelo meu “retorno” a querida sala das 
minhas lembranças. Obrigada, Sofia. (Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2018). 
 
Nicholas e Agatha têm histórias de vida muito interessantes. Viveram em 
diversos países, realizaram muitos projetos em áreas sociais e de pesquisa. Vivem 
entre o Brasil e os EUA, onde têm família mais numerosa, inclusive o filho David. 
Apesar de muitos anos vivendo e trabalhando por aqui, Nicholas tem falhas de 
concordância e sentido ao falar português, mas que não atrapalham nossa conversa, 
ao contrário, provocam interessantes impasses. 
Gizele: Eu sempre começo, assim, pedindo para as pessoas me contarem 
um pouco sobre a vida, de vocês, para eu conhecer um pouco a vida de 
vocês. 
Agatha: Começa por você. 
Nicky66: Ah, minha vida, eu sou judeu, vivi (...), as famílias vieram, da minha 
mãe, da Ucrânia, de um shtetel67. Do meu pai de Lituânia e Bielo Rússia. 
Gizele: Que época isso? 
Nicky: Começo no século, XX, 1904, para 1906. Fui criado em Boston, nos 
subúrbios de Boston. 
Gizele: Vocês foram para os EUA direto? 
Nicky: Para os EUA direto. Bom, não sei bem. Sempre a família, meu pai fez 
uma parada (...). Fui criado em Boston, família bem classe média americana, 
com aspirações de assimilação (...). No início, praticávamos judaísmo, 
assistíamos sinagoga, mas depois do meu Barmitzva, isso tudo parou. Fui 
 
66 Nicholas é chamado por um diminutivo, todo o tempo, por ela e pela filha nas mensagens de 
celular, que adoto aqui na transcrição, mesmo sendo um nome fictício. 
67 Palavra em Ídiche, dialeto dos judeus europeus, que se refere aos pequenos vilarejos onde viviam 
grande parte da população judaica na Europa Oriental, antes da primeira guerra mundial. 
99 
 
para a escola pública e depois para a universidade (...) fundada para judeus 
(...). Me aposentei de novo com 70 anos, mudamos para o Brasil, mantendo 
uma casa que nós temos em Massachusetts. E aqui que estamos. Temos 
dois filhos: Isa e David, que tem 47 anos. 
 
Agatha: Eu nasci na China. 
Gizele: Na China! 
Agatha: De uma família judaica, mãe da Sibéria, pai da Ucrânia. Ela já era 
casada quando veio para a China, com o primeiro marido dela, com o qual 
teve uma filha. Ele foi morto durante a guerra com os japoneses. Ela 
conheceu meu pai já na China, aí nasceu meu irmão e eu. Quer dizer, eu 
primeiro e depois meu irmão. E vivi na China, até os 13 anos, 12. Eu fiz 13 
no caminho para o Brasil. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). 
 
Interessante como ambos iniciam e fazem sua descrição incluindo a identidade 
judaica como parte determinante de suas vidas, numa trajetória marcada por muitas 
mudanças geográficas. Apesar de estar atrelado ao meu tema de pesquisa, outros 
entrevistados não iniciaram por este aspecto. No final da conversa, ela me diz algo 
que me faz compreender a importância do judaísmo numa vida tão errante e diversa, 
experiência que desconheço, mas que julgo que possa sim ser significante para os 
que são, continuamente, imigrantes. 
 
Agatha: Quando me perguntam de onde eu sou, eu digo que sou judia porque 
é a única coisa que tenho desde o meu nascimento até hoje. 
Gizele: Interessante. 
Agatha: Sem mudar, mesmo que mude de local. 
 
Nicholas, por sua vez, falou ter um interesse especial nas questões 
genealógicas e históricas do judaísmo, que tem se debruçado sobre a pesquisa de 
suas famílias de origem, já tendo conseguido mapear desde o bisavô de seu pai. 
 
Nicky: (...) descobrimos os bisavôs do meu pai, a casa onde ele morava. [na 
Lituânia]. 
Gizele: O que? O bisavô do seu pai? 
Nicky: Sim. O bisavô do meu pai. 
Agatha: Com mapa, com a rua, o número, a casa.Nicky: Quer dizer que já temos sete gerações já tem nossa neta. (NICHOLAS 
e AGATHA, out. 2018). 
 
Sofia já está incluída por eles na genealogia da família, apesar de ser bem nova 
em suas vidas, já que faz somente três semanas que sua filha, Isadora, adotou a 
jovem. É a única neta e parecem deslumbrados com esta nova fase, além de felizes 
com a realização da filha em tornar-se mãe. Penso que já vinham acompanhando este 
processo e amadurecendo a ideia de tornarem-se avós, mas como diz Agatha, algo 
que só pode se materializar com a presença física da neta em suas vidas, 
recentemente ocorrida. 
 
100 
 
Agatha: Olha, nós chegamos aqui no dia 11 de outubro, só tem uma semana 
e pouco que a gente conheceu a nossa neta. 
Gizele: Sim, mas vocês vinham acompanhando? (...) 
Nicky: Desde que ela tinha 24 anos [agora 50 anos] e se casou, que a gente 
acompanhou. 
Gizele: Que ela queria ser mãe? 
Nicky: Que ela queria ser mãe, sempre. E a gente, na verdade, eu mais do 
que Agatha, eu queria ser avô, acho que é uma parte da tradição judaica que 
eu pessoalmente gosto que é procriar, então para mim sempre foi uma parte 
da vida meio vazia, então neste título eu acompanhei o desejo da minha filha 
de ser mãe e eu de ser avô. 
 
Agatha: Quando você disse que eu não queria ser avó, na verdade o que 
aconteceu comigo é que eu... 
Nicky: Eu não falei isso. Falei que você estava menos envolvida, empolgada 
do que eu. Essa colocação é sua de que não queria ser avó. 
Agatha: Talvez seja. É porque a minha vida estava muito ocupada com uma 
espécie de filha, ou avô postiço que se tornou a fundação. Então, se era para 
suplementar aquilo que eu não tinha, talvez tenha sido. E que a minha 
dedicação de criar uma entidade, um ser, foi totalmente focado na fundação, 
o que levou muitos anos. A fundação hoje tem 18 anos e está andando com 
os pés próprios, não precisa mais de mim. Então eu estou pronta agora para 
ter essa relação. E tendo alguém com quem ter essa relação faz uma 
diferença enorme. (...) Então, quando surgiu essa oportunidade, e o Nicky 
descreveu todo o processo, e agora nós estamos nesta fase, eu concordo 
com Nicky que nós temos que aprender a ser avós. Eu acho que nós temos, 
se fosse, Isa teve uma maneira de pensar muito interessante quando ela 
decidiu (...) ter uma criança mais velha. Ela queria uma criança com quem ela 
pudesse conversar e quem pudesse contar a história dela. (...). A outra coisa 
que eu achei muito interessante, a criatividade dela de pensar que todos os 
amigos dela, na faixa etária dela, 45, 50 anos, hoje em dia tem filhos 
adolescentes ou pré-adolescentes. 
Gizele: Sim. 
Agatha: E se ela viesse com um bebê, ela estaria com pais muito mais jovens, 
com quem ela teria pouco em comum. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). 
 
Nicky: Eu achava complicado [Falando da chegada de uma criança com uma 
cultura tão diferente da deles]. É interessante que quando eu vi essa foto, e 
lá em... 
Gizele: A primeira? 
Nicky: A primeira, eu fiquei encantado como Isa ficou encantado, então eu 
encorajei ela a ir conhecer a menina, e quando ela começou a relatar dessa 
menina que estava no abrigo particular, com um bom currículo, com um bom 
cuidado. Ela criou uma estrutura para ela mesma, que eu acho que fez uma 
diferença na vida dela. Ela é diferente dessas crianças dos abrigos aqui no 
rio. Ela primeiro estava na série certa para a idade dela, ela está com 13 anos 
na 8ª serie; segundo ela fazia aulas de canto, ela gosta de cantar. Ela faz 
aulas de caratê, pertencia a um grupo de ajuda na igreja. A gente desde o dia 
que ela chegou lá, começou a trocar mensagens com a menina pelo 
WhatsApp, e ela imediatamente começou, através de fotos que Isa levou para 
apresentar ela e a família, começou um livro chamado minha família, a 
menina. 
Gizele: A menina? 
Nicky: A menina. Então se sua tese é sobre o conceito de família (eu rio), ela 
começou este livro e nos mandou páginas dela em que eu vi fotos de mim, 
onde ela escreveu ao lado, meu avô. 
 
Isadora optou por uma adoção tardia, um tema que consta de farta bibliografia, 
e que abrange características interessantes. Adoção tardia é o termo utilizado para 
101 
 
designar a criança que, no momento da adoção, possui idade superior a dois anos. 
Designação criticada por alguns autores (SILVA, 2009), porque reforça a ideia que há 
uma idade ideal para ser adotado, prejudicando à adoção de crianças maiores. 
A opção pela adoção tardia não é tão comum no Brasil, cujo perfil de crianças 
procuradas é de tenra idade, de preferência bebês, como previamente mencionado. 
Ebrahim (2001a, 2001b), em sua pesquisa, compara os pais que realizaram adoção 
tardia com pais que adotaram bebês e conclui que tais adoções são beneficiadas 
pelas características dos adotantes, que apresentam um nível socioeconômico 
superior, uma maior presença de filhos biológicos, e uma maturidade e estabilidade 
mais elevadas. 
 
Nicky: (...) Primeiro, Isa queria uma criança mais velha, falou acima de 12 
anos, eu sempre achava que criança mais nova era mais fácil para me dar 
como avó e também para ela ter tempo de ser mãe, antes que a criança ser 
adolescente e bater para a vida particular. Segundo: a questão de raça, que 
eu não tenho preconceito, para mim criança é criança, essa não era 
problema, mas preocupante foi as origens da criança, a bagagem que a 
criança trouxe. (...). E tem sempre crianças que tem histórias, principalmente 
mais velhas, que eu acho difícil trazer para nossa casa onde não é 
simplesmente uma diferença de classe, mas uma diferença de cultura, que 
nós temos essa história internacional, de vida. (NICHOLAS e AGATHA, out. 
2018). 
 
As preocupações de Nicholas quanto a bagagem que uma criança que vem de 
abrigo traz será também um tema abordado com detalhe no próximo capitulo. 
Apesar das diferenças apontadas, Nicholas e Agatha reconhecem também 
pontos de convergência da vida deles com os da neta. Seriam como outros avós, 
tentativas de estabelecer conexões? Nicholas não fala claramente, mas parece 
apontar isso quando cita o gosto dela por música e atividade física. Agatha, por sua 
vez, encontra um significativo ponto em comum em suas histórias: 
 
Agatha: E eu fiz 13 anos, num navio, vindo pra cá. E um ponto interessante é 
que a nossa netinha tem 13 anos, e veio para o rio de janeiro, pela 1ª vez, faz 
menos de um mês. Então, eu tenho uma simpatia especial para essa 
transição, que eu fiz. (NICHOLAS e AGATHA, out. 2018). 
 
102 
 
3 FIOS FAMILIARES: ENTRE HISTÓRIAS, CORES E AFETOS 
 
Cartografamos com afetos, abrindo nossa atenção e nossa 
sensibilidade a diversos e imprevisíveis atravessamentos. 
Virgínia Kastrup e Eduardo Passos 
 
Ao voltar meu olhar para toda esta trajetória, percebo uma trama multifacetada, 
recheada de imagens e sons, emoções e silêncios, cheiros e gostos, ocupada pelas 
vozes de meus entrevistados, suas histórias, suas casas, suas fotos, suas famílias e, 
especialmente, pelos vestígios que cada um desses encontros provocou em mim. 
Anteriormente introduzi cada um deles, personagens principais desta aventura, 
bem como parte da experiência de nossas conversas, beirando o que os fazia estar 
ali: ser judeu e avó ou avô por laços de adoção; e espreitando, o que produziam de 
singular: suas trajetórias de vida e formas de articular judaísmo, avosidade e adoção. 
Na tentativa de continuar o caminho, me percebo em um emaranhado de 
pensamentos e de afetos, onde torna-se difícil sinalizar, o que é meu, o que é de cada 
um, o que é de cada encontro. 
 
O plano comum que se traça na pesquisa cartográfica não pode, de modo 
algum, ser entendido como homogeneidade ou abrandamento das diferenças 
entre os participantes da investigação (sujeitos e coisas). Como pensar, 
então, o comum na diferença? Como pensar o plano comum do heterogêneo? 
(KASTRUP; PASSOS, 2014, p. 19). 
 
 Segundo Kastrup e Passos (2014), o comum porta um sentido duplo de partilha 
e pertencimento. “O comumé aquilo que partilhamos e em que tomamos parte, 
pertencemos, nos engajamos.” (KASTRUP; PASSOS, 2014, p.21). Os autores usam 
as ideias de Jacques Rancière (1996; 2005 apud KASTRUP; PASSOS, 2014, p.21)68 
sobre a “partilha do sensível”, que seria a existência de um comum partilhado e, ao 
mesmo tempo, de partes exclusivas. 
 Segundo Tedesco, Sade e Caliman (2014) é o entrevistar que promove o 
acesso ao plano coletivo de forças e sua indeterminação, à pluralidade de vozes 
existente na experiência compartilhada do dizer. “Envolve um plano que só é comum 
justamente porque atravessa a todos, mas não é de ninguém. É comum por estar além 
 
68 RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Ed.34, 1996. 
_______ A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org./ Ed. 34, 
2005. 
103 
 
e aquém da dimensão pessoal, da dimensão das individualidades.” (TEDESCO; 
SADE; CALIMAN, 2014, p. 120). Então, ao conversarmos, estou, de alguma forma, 
também dialogando com suas famílias, acionando os valores que exercitam como 
comunidade, no aqui e agora, porém sem garantias (ou desejo) de totalização ou 
busca por unanimidade. 
Embora o judaísmo seja um dos fios que tecem esse comum heterogêneo da 
pesquisa, muitas das experiências aqui relatadas acontecem em outras famílias e 
dizem respeito ao ser avô, ser avô por adoção, viver em família, nesses tempos atuais, 
com toda a diversidade que isso significa. 
As linhas tecidas nas conversas com os avós, através de minhas perguntas ou 
do fluxo dos diálogos, mostraram-se imbricadas de tal forma que falar de um é falar 
de outro, tornando bem difícil escrever sobre essas tramas. Origem, memória, legado, 
tradição, identidade, dificuldades, medos, afetos, afinidades, convivência são fios que 
se cruzam e se esparramam: um conduz ao outro, de forma não linear. Então, 
novamente, como no Mestrado, a imagem que se forma em minha mente é a de um 
rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1997): um emaranhado onde por vezes uma ponta se 
faz mais visível e outra mais furtiva, que num momento seguinte, pode se sobressair 
ou se cruzar, cabendo a mim percorrer os traçados. “Pensar, nas coisas, entre as 
coisas, é justamente fazer rizoma, e não raiz, traçar a linha e não o ponto.” (DELEUZE; 
PARNET, 2004, p.38, grifo dos autores). 
Afirmar que as tramas familiares se apresentam como um rizoma é apontar um 
diagrama onde qualquer ponto pode ser conectado com outro, não há unidade, nem 
hierarquias, mas multiplicidade, um entre que cresce e transborda, tornando-se, 
assim, de difícil desmonte ou totalização, pois é ação que se faz ao viver, sentir e 
prosseguir, sempre em movimento. 
Meu propósito é continuar a partilhar experiências, pensamentos e 
sentimentos, que fizeram emergir temas importantes para o debate sobre os laços 
familiares. Assim, uma importante discussão presente nos estudos sobre adoção é o 
lugar dado à história da criança, às informações sobre sua origem e família biológica 
- tema conectado ao âmago desta pesquisa, no que diz respeito à inserção dela numa 
cultura e religião que são, possivelmente, diferentes dos contextos de onde nasceu 
e/ou viveu os primeiros meses/anos de vida. O modo como as famílias lidam como 
estes aspectos se desdobram em posturas distintas sobre: falar, o que falar, com 
quem falar – que acabam por fortalecer alguns mitos e romper outros. 
104 
 
Desta forma, proponho discutir alguns pontos que se articulam às informações 
sobre as crianças: como as famílias, os avós e os netos lidam com elas, e as fantasias 
e temores envolvidos. Em seguida, pensar sobre afetos que a diferença de cor da pele 
desperta: como adultos e crianças enfrentam o racismo em seus cotidianos. 
 
3.1 Trançando histórias 
 
O tema da busca das origens é debatido, na literatura da área, por vieses 
diferentes: a transmissão genética (ALLENBRANDT, 2015), os valores culturais 
(FONSECA, 2006; MEZMUR, 2009), pouca e ineficiente documentação sobre as 
“mães abandonantes” (FONSECA, 2012), entre outros. 
Moreno (2009) realiza um levantamento das interpretações jurídicas e 
historiográficas em torno da temática da adoção na sociedade luso-brasileira, no 
período anterior ao século XX, e conclui que, ao longo de quase três séculos, a adoção 
ficou adormecida esperando por um “retorno triunfal” (MORENO, 2009, p. 454), 
ocorrido após a segunda Guerra Mundial e diante de um contexto de orfandade 
generalizada na Europa. Foi o Direito Romano que forneceu o alicerce e o instrumento 
jurídico necessários para criar diferentes laços com as cartas de adoção, em fins do 
século XVIII e início do XIX. 
No Brasil, o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) 
institui a adoção em caráter pleno, irrevogável e irretratável, para menores de 18 anos 
ou maiores, em que a convivência tenha se iniciado antes do adotado completar a 
maioridade, atribuindo a ele a condição de filho, com os mesmos direitos e deveres, 
inclusive sucessórios, de filhos biológicos, desligando-o de qualquer vínculo com pais 
e parentes biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais. O ECA outorga direitos 
exclusivos aos pais adotivos, apagando-se toda informação sobre os genitores no 
registro civil. Embora, o direito ao acesso às informações nos processos de adoção 
está garantido à criança ou jovem, quando atinge a maioridade, desde a Lei Nacional 
de Adoção no 12010 de 2009 (BRASIL, 2009), conhecida como Nova Lei da Adoção. 
Queiroz (2004) questiona a existência de uma nova certidão de nascimento 
sem os dados dos pais biológicos, por provocar uma ambiguidade: “Esse desmentido 
manifesto na letra da lei revela o duplo do estranho/ familiar presente no imaginário 
social e vivido pelos pais adotivos (...).” (QUEIROZ, 2004, p.106). Penso que uma 
nova certidão indica uma garantia de Direitos, uma decisão irrevogável, importante 
105 
 
para os envolvidos no processo da adoção; e o não encobrimento do passado pode 
ser realizado de diversos modos. 
O respeito e a importância da religião no caso das adoções também são citados 
no ECA, no Capítulo II, Artigo 16 III (BRASIL, 1990, p.20) como um dos Diretos da 
criança e do adolescente. E, no Capitulo IV, Artigo 16 1 B (BRASIL, 1990, p.216) 
justamente afirma que, em caso de criança adotável, é importante levar em conta sua 
origem étnica, religiosa e cultural. No entanto, vários são os obstáculos que se 
interpõem - a desqualificação dessa origem, as dimensões continentais do país, a 
miscigenação - que tornam esta prescrição difícil de se executar. 
Fonseca (2006) considera que a análise da transferência de crianças entre 
grupos de tradição diferentes introduz a questão das desigualdades sociais e políticas, 
seja nas adoções nacionais ou internacionais. 
Coimbra (2013), em sua tese de Doutorado, afirma que a adoção se reveste de 
características privilegiadas para um estudo sobre a dimensão da identidade e do 
pertencimento, pois há um deslocamento da criança entre famílias, da natural à 
substituta. Para o autor, a adoção traduz a experiência de viver em (ou entre) dois 
mundos, traduzidos em duas famílias e, de modo mais abrangente, em uma travessia, 
no caso das adoções internacionais. 
Mezmur (2009) afirma que o provérbio que diz que “é preciso uma aldeia inteira 
para educar uma criança” (MEZMUR, 2009, p.86-87) é mais verdadeiro na África do 
que em qualquer outro lugar do mundo, tornando fundamental reconhecer o papel da 
família estendida e da comunidade, reafirmando a importância do contexto cultural e 
da religião envolvida quando há adoção internacional de crianças. 
Valério e Lyra (2014), na busca por compreender o processo de construção de 
significados sobre adoção a partir de um membro da família extensa, afirmam que 
haverá sempre uma tensão entre a cultura pessoal e o mundo social no qual a pessoa 
está inserida, mas que o tempo faz com queos envolvidos refaçam suas crenças, 
diminuindo as possíveis tensões. 
Apesar de considerar a importância destas primeiras histórias relativas às vidas 
das crianças, ao traçar a pesquisa, privilegiei olhar para outros momentos: a 
experiência dos avós em torno da adoção dos netos em e por suas novas família - 
a decisão por adotar, a espera, a chegada, o acolhimento e a costura das relações 
através do tempo. Não no sentido de contrapor laços biológicos a laços adotivos, 
numa lógica binária ou de exclusão, mas para compreender a trama familiar e alcançar 
106 
 
as questões da identidade judaica. No entanto, a história dos netos anterior à adoção 
foi colocada em pauta nas conversas, mesmo que no início eu não tenha me dado 
conta, de forma clara, que seria um tema imprescindível e inescapável. 
O segredo foi prática usual nas adoções quando eram realizadas de forma 
direta, fora das vias legais, “à brasileira” (FONSECA, 2006), ou mesmo legalmente, 
num período, não tão distante, onde era comum não se assumir a condição adotiva 
dos filhos. Teixeira Filho (2010, p.246) nos alerta que “(...) o segredo só existe 
enquanto tal, pois que se postula a consanguinidade como a verdade de uma filiação.” 
Mas, mesmo que a lógica do segredo já tenha sido, em parte, ultrapassada, no 
que tange a contar, explicar e valorizar para com a criança sua história, parece que, 
muitas vezes, as famílias tendem a preferir manter este assunto no âmbito mais 
privado, pelos mais diferentes sentidos. 
 
Gizele: E a senhora lembra o que a senhora achou na época que eles 
decidiram isso? 
Dinah: Quando decidiram não. Mas eu sabia que ela estava fazendo 
tratamento. (...). Acompanhei o tratamento dela, mas quando ela... Eu acho 
que eu sabia sim porque ela adotou legalmente, então, teve que ter aquela 
inscrição, aonde, quando... 
Gizele: Não sabe? Aha! 
Dinah: Também nunca me interessei por esses pormenores e minha nora não 
toca. E quando a Isabel falou tudo para a menina, para a filha do Julio...(...) 
A Joyce, ela sabe ela que é adotada. 
Gizele: Não é um segredo, mas não é um assunto comentado. É isso? 
Dinah: É, é. Na casa do Julio, mas na casa do Vitor não. Não sei se ela sabe. 
Gizele: Ah, não sabe se ela sabe? 
Dinah: Nunca perguntei, nunca demonstrei, nunca nos demonstramos, nem 
do meu lado, nem do outro lado, da outra avó, também não. (DINAH, fev. 
2018) 
 
Gizele: Você conhece outras pessoas, você tem outras amigas? Você tem no 
teu círculo de amizade alguma outra amiga que tem netos adotados também? 
Sarah: Eu sei. Eu sei sim, tem algumas pessoas que adotaram. Mas as 
pessoas não falam muito não. 
Gizele: Não falam? Não é um tema importante? 
Sarah: Não é um tema que as pessoas falem. Só se perguntar. (SARAH, out. 
2015). 
 
Dinah reafirma algumas vezes em nossa conversa não lembrar e não se 
importar com a adoção das netas, mas cada filho/nora lida de forma diferente com a 
revelação da adoção - é uma escolha do casal parental, que cabe aos demais aceitar. 
No caso de sua família, onde há um intervalo de cerca de 30 anos entre uma e outra, 
a diferença de tratamento do tema pode indicar uma mudança ocorrida no tempo 
quanto à cultura da adoção. 
107 
 
A utilização da palavra revelação, aqui, não é por acaso. Durante muito tempo, 
esteve presente também a ideia de que, se o segredo não era bom, deveria haver um 
momento de revelação da verdade. Rosa (2008) chama de armadilha este momento, 
pois os pais ao assumirem um tom solene para falar com os filhos, mostram que o 
assunto é um tabu – individual, familiar, social. 
O conceito de revelação também parece estar ultrapassado, e o mais comum, 
e indicado hoje em dia, é que as crianças saibam desde sempre as minúcias de sua 
história, conforme seja possível para sua idade. D'Andrea (2002 citado em SILVA, 
2009, p.50)69 sugere que os pais preparem o terreno, de modo que a informação 
ocorra da forma mais comum possível, por meio de histórias, fotos, relato de 
experiências, pequenas observações, pois assim a criança tem a sensação de sempre 
ter sabido, e evita-se o caráter imponente e traumático do desvendamento de um 
segredo. 
Mas, mesmo tendo escapado da alçada do segredo, as adoções podem ainda 
ocupar um espaço esfumaçado, onde não é permitido livre acesso a todos ou aos 
pormenores. Sarah e Rebeca confirmam que não é um assunto comentado: o tema 
ainda envolve cuidados. 
 
Gizele: A senhora tem amigas que têm netos adotados? A senhora conhece 
alguém que tem neto ou uma neta adotada? 
Rebeca: Não. 
Gizele: Não? 
Rebeca: É difícil. 
 
Além, do já contraponto empreendido por Sarah ao ser questionada sobre a 
história de Maria, manifestado pela intensa alegria por sua adoção, ela também realiza 
um deslocamento temporal, valorizando o que acontece quando a neta já se encontra 
em sua família, sem deixar de assinalar a preocupação com algo inédito entre eles: 
era a primeira vez que sua família recebia um filho em adoção. 
 
Gizele: Quando eles casaram a senhora começou a pensar vou virar avó? 
Sarah: Ah, sim, sempre quis. Eu sempre quis. O Davi demorou um pouco com 
a Carla. Demoraram um pouco. Ela tinha problemas de ovário, esqueci o 
nome. O médico falou você pode ter filho daqui a um ano, daqui a dois, daqui 
a cinco, daqui a dez. Aí eles resolveram adotar a Maria. 
Gizele: Como você soube desta decisão deles de adotar a Maria? 
Sarah: Ele falou para mim. A gente fica preocupada porque nunca aconteceu 
isto na família. 
Gizele: Primeira adoção da família? 
 
69 D’ANDREA, Antônio. O casal adotante. In: ANDOLFI, M. (Org.). A crise do casal: uma perspectiva 
sistêmico-relacional. Porto Alegre: Artmed, 2002. 
108 
 
Sarah: Primeira adoção. Isto nunca aconteceu. A gente sempre fica 
preocupada, quem é que vai pegar, quais são as... Mas a gente ficou numa 
boa. Eu, quando ela chegou, eu me encantei. Tinha até um retrato que eu 
fiquei olhando, embevecida. Uma gracinha, uma gracinha, linda. (SARAH, 
out. 2015). 
 
Sarah: Quando ela chegou, eu já aceitei logo. Eu já aceitei logo. 
Gizele: Quando viu o nenenzinho? (...). 
Sarah: Eles até foram buscar as coisas para ela. Fizeram uma viagem para 
os EUA, foram buscar, compraram uns negócios. Eu estava vendo que eles 
estavam desenvolvendo para chegar a Maria 
Gizele: Demorou? Este processo de adoção demorou? 
Sarah: Não, não sei, aí já não sei. Acho que demorou um pouco sim. Até 
viram qual a criança que tinha mais afinidade com eles. Nem sei nem como 
é que é feito a adoção. Nem sei. 
Gizele: Aí ela chegou! 
Sarah: Chegou. É linda demais, eu fiquei encantada, e a gente curte. Eu curto 
muito ela. Curto muito. Acho ela uma graça. 
 
Sarah: A Carla trouxe um negócio que botava leite e tinha um fiozinho que 
corria e o neném mamava. Então a Maria mamava na Carla. Interessante 
aquele negócio, muito interessante. (SARAH, out. 2015). 
 
A escolha da Sarah em relatar alguns detalhes que envolvem a chegada da 
neta indica sua necessidade, ou desejo, de inscrição na vida de Maria desde o/um 
princípio, pela imaginada escolha da criança que tivesse “mais afinidade”, pelo 
enxoval e pela amamentação. Algumas informações, preenchidas também pela sua 
imaginação, já que a questão de afinidade, possivelmente, não estava presente numa 
criança tão pequena. 
Tempos depois, soube pelo pai de Maria que existem informações a respeito 
da família biológica, inclusive uma carta da mãe para ela. Ele manifestou um temor 
caso a filha queira procurá-los, devido à situação de pobreza com a qual ela poderia 
se deparar. Pela revisão bibliográfica, sabe-se que os temores são os mais diversos: 
desde a abordagem com os filhos das histórias de abandono (PAIVA, 2004) até o 
medo dos pais de serem eles abandonados pelos filhos (NASCIMENTO,2011), o que 
outrora foi, também, justificativa para o segredo. São questões que povoam os medos 
e as fantasias dos pais e dos avós, vistas nas palavras de alguns dosentrevistados. 
 
Sejam nas reuniões ou nas conversas informais, os principais temores que 
acometem os futuros pais adotivos dizem respeito à hereditariedade, à carga 
genética da criança que adotarão; à possibilidade da mãe biológica ou outro 
parente consangüíneo desejar uma reaproximação da criança e interferir na 
vida familiar; à possibilidade que alguém um dia lhes tome o filho; se vão 
conseguir criar laços fortes e permanentes com a criança; se esse filho vai 
gostar deles ou os rejeitará quando souber que foi adotado; o que fazer se o 
filho quiser conhecer a família biológica, como lidar com isso. (VIEIRA, 2004a, 
p.45). 
 
109 
 
Rebeca, diferente de Sarah, era falante, detalhista e extensa em toda sua 
narrativa, e estava a par de informações sobre sua neta anteriores à adoção, 
compartilhadas comigo. Num trecho já lançado, vemos que ela se preocupa com a 
neta no sentido de como ela vai lidar sobre seu passado. Carolina é uma das crianças, 
mencionadas na pesquisa, que fala abertamente de sua adoção e o judaísmo aparece 
como uma nova e importante marca para ela e para a família ao seu redor, como 
também já comentado. 
Debora sabia detalhes sobre a adoção do neto, algumas vezes lembrados, 
outrora esquecidos, variando como sua capacidade de se organizar na conversa. Mas 
aponta, além da enorme satisfação, certa preocupação relativa à adoção, salientando 
que estas também existentes para com os filhos biológicos. Malka também fala da 
preocupação com as raízes, mas articuladas a outros aspectos que ainda serão 
colocados. “Há, em torno do filho por adoção, fantasias de que ele pode ter sangue 
ruim e, conseqüentemente, ser motivo de preocupação e sofrimento para os pais 
adotivos.” (MAUX; DUTRA, 2009, p.119). 
 
Gizele: Você disse que você ficou feliz, que você achou que a Sandra devia 
adotar mesmo. 
Debora: Ela sempre foi apaixonada. 
Gizele: E ela não pensou em adotar mais crianças? Outros filhos? 
Debora: Difícil. Não é fácil. Eu acho que não é fácil. Ela, graças a deus, deu 
sorte, a gente, até os teus filhos você não sabe, ne? 
Gizele: Assim difícil que você diz é de ter algum problema? 
Debora: É, você nunca sabe. 
 
 A possível existência de uma carga negativa no passado dos netos por adoção 
também me atravessa e fica perceptível na forma como insisto no tema ou o abordo, 
utilizando palavras como preocupação e aceitação. Me sinto parte de um tempo, não 
tão longínquo, onde as adoções eram consideradas problemáticas. Sem falar que 
denunciavam, geralmente, questões de infertilidade do casal, tema também tabu, até 
recentemente. Atravessamentos que também são presentes em outros profissionais 
e pesquisadores, como mostram algumas pesquisas. 
Pontes et al (2008) optou por investigar o imaginário social de professores do 
ensino fundamental sobre a criança adotada, e mostrou que este se organiza a partir 
de dois campos temáticos: o abandono infantil e a infertilidade, que configura um 
campo, onde a criança é aceita se houver a possibilidade de ser esquecida sua 
verdadeira origem. As autoras concluem que o modo como a sociedade brasileira se 
110 
 
comporta diante da prática de adoção gera pesada carga sobre os ombros da criança 
adotada. 
Campos e Costa (2004), em pesquisa com técnicos do setor de adoção, 
constataram que o processo de adoção é permeado de subjetividade e emoções que 
superam e transcendem os aspectos legais e jurídicos, o que impossibilidade 
quantificar e objetivar dimensões importantes das famílias nos estudos psicossociais. 
As autoras sugerem que devem ser tomadas medidas preventivas para buscar 
entender esta subjetividade por parte dos técnicos, juízes e promotores, na tentativa 
de evitar arbitrariedades. 
Vargas e Weber (1996 apud GAGNO e WEBER, 2003)70 afirmam justamente 
que grande parte das pesquisas brasileiras sobre famílias por adoção descreve casos 
clínicos e psiquiátricos, criando uma clara distorção, e a associação da adoção com 
problemas e fracassos, como se obstáculos e dificuldades não fossem também 
existentes entre pais e filhos biológicos. Assim, segundo as autoras, as práticas “psi” 
e educacionais precisam ser responsabilizadas por parte deste enredo. 
Por outro lado, Rosa (2008) alerta que uma visão romantizada da adoção deixa 
na obscuridade as fantasias que estão implicadas nestas famílias, e culmina que a 
cada impasse na vida ou na educação dos filhos, tanto as crianças como os pais 
adotivos lidam com dúvidas a respeito das origens. Embora saliente que as 
dificuldades não são exclusivas do processo de filiação por adoção, acrescenta que 
nesses casos estas se revestem de configurações especiais. 
 
Assim, é preciso desmistificar a associação errônea entre adoção e fracasso, 
mito de laços sanguíneos, herança genética entre outras distorções. Na 
verdade, a adoção não é um processo artificial, falso ou ilegítimo; pelo 
contrário, envolve relações humanas de afeto e amor que florescem a partir 
da reciprocidade entre o adotado e a família adotante. (SILVA, 2009, p.37). 
 
Miriam, como vimos, acompanhou de forma intensa a adoção de Noé e Noah. 
Ela diz claramente que o passado deve ser deixado para trás, apesar de conhecido e 
documentado, o que algumas avós disseram mais nas entrelinhas. 
 
Gizele: E seu filho? Como ele recebeu? 
Miriam: Bem também. Com uma diferença assim, ela trouxe todo o passado 
deles em algum documento. O Rodrigo pegou e leu tudo. Ai quando ela me 
 
70 VARGAS, Marlizete Moldonado; WEBER, Lidia Natalia Dobrianskyj. Um estudo das publicações 
científicas internacionais sobre adoção. In: Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Caderno de 
Resumos da XXVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia (p. 118). Ribeirão 
Preto: SBP, 1996. 
111 
 
passou, eu falei não quero, não vou ler nada, nada, nada. Para mim tábua 
rasa, tábula71. 
Gizele: Rasa. 
Miriam: (...). O que a partir de agora, não quero ter pena deles, nem são 
coitadinhos, nem sofreu isso, não sofreu aquilo. A vida deles começa por 
aqui, conosco, então, né, isso. 
 
No entanto, Miriam mantém contato com o abrigo de onde os netos vieram, e 
onde pediu ajuda, quando da morte da filha, preocupada com a possibilidade de 
perder a guarda das crianças, indicando certa ambivalência entre manter o contato e 
deixar o passado preterido, embora, possivelmente, a permanência na instituição de 
acolhimento não seja exatamente a fase que ela queira que seja esquecida. 
 
A preocupação com a questão da origem do filho ocupa um lugar central. Há 
sempre uma atitude de ambigüidade: dizer a verdade, mas não querer saber 
sobre os genitores do filho. Nesse sentido, a verdade é sempre parcial, pois 
mantém encoberto e em segredo a origem e as razões do abandono pelos 
genitores. (QUEIROZ, 2004, p.103). 
 
Na família de Luna e Vicente, a adoção e a passagem pelo abrigo têm sido 
tratadas de forma franca com o neto, na intenção de lidar bem com sua história e 
seguindo a orientação de uma psicóloga, segundo relato de Luna. 
 
Gizele: Ele sabe que ele é adotado? 
Luna: Ele sabe, ele fala tanto nisso, (...), ele já foi até ao abrigo. Ele quis 
conhecer a casinha aonde a mamãe buscou ele. (...). Então foi lá um dia: Foi 
nessa escada que minha mãe subiu quando me deixou aqui? (...) A última 
coisa que a Isabel me contou foi que ele falou na barriga da minha mãe, não 
sei o que, a minha mãe já morreu? A minha mãe, falou mãe alguma coisa, já 
morreu? A Isabel: não sei, acho que não. 
Gizele: A Isabel teme que ele vá algum dia buscar isso? 
Luna: Aparentemente não. Ela está deixando a vida correr, ne? 
Gizele: Você tem este temor, Luna, que ele um dia...? 
Luna: Eu acho que mais adiante ela vai ter de se confrontar com algumas 
situações, espero que não sejam muito... ontem, veio jantar aqui em casa um 
casal, que tem um filho adotivo de, já deve ter 25, 26 anos, e nós estávamos 
conversando sobre isso e ele disse queele não quer saber. O rapaz não quer 
saber nada, nada, nada. E o Hugo pergunta o tempo todo. 
Luna não completa a frase, mas é possível imaginar que a palavra que cabe 
aqui é dolorosa. De fato, o abandono, a origem miserável não faz parte somente das 
fantasias das famílias, mas integra muitas vezes a vida das crianças disponíveis para 
adoção no Brasil. (PAIVA, 2004). E como ela mesmo narra, há outras crianças ou 
jovens que não têm o interesse de realizar estas buscas. 
Isac e Lea dispunham de informações sobre o passado de Carlos, 
especialmente relacionado à sua frágil saúde. Relatam que, por conta deste aspecto, 
 
71 O fato de se expressar numa língua que não é a sua de nascença faz com que suas frases tenham, 
por vezes, conjugações e sentidos truncados. 
112 
 
a assistente social, bem como outros ao redor, atribuem a esta adoção uma “missão 
divina” (sic), um sentido mítico, desta vez, nomeado por pessoas de fora da família. 
 
Lea: Esse menino foi rejeitado. 
Isac: Esse menino foi rejeitado por 15 famílias (...). Por que que eu soube? 
Esse garoto, ele recebeu esse menino sabendo que esse menino, sabendo 
que ele era doente. A turma diz o seguinte: é missão divina. (...). A mãe dele, 
depois você ficou sabendo, na adoção eles contam, ela se prostituía para 
dinheiro para drogas e morreu de overdose. Não se sabe de pai, não se sabe 
de avós. (...). O menino ficou 61 dias no Copa D´or. 
Lea: No CTI. 
Gizele: Depois de adotado? 
Lea: Sim, sim, depois de adotado. 
Isac: Ele já adotou doente (...). Eu entrava no quarto do garoto ele tinha mais 
fios do que eu. (...). É porque ele tinha que viver mesmo. Ele lutou muito para 
chegar o que ele é hoje. (...). Um determinado dia, a assistente social que 
cuidava do caso (...) veio e disse: “eu vim aqui como amiga. Ele foi recusado 
por 15 famílias, só deus que mandou para o seu filho que pode dar a ele Copa 
D’or.”. 
 
Penso que este sentido de sorte, ou de missão, tem foco nas crianças e na sua 
mudança de destino; todavia, muitos pais por adoção, e suas famílias, parecem sentir 
que eles é que foram agraciados pela chegada de seu filho - percepção construída 
não somente pelas conversas com os avós, mas também por conversas informais e 
assistir depoimentos72 com pais por adoção. 
Nicholas e Agatha, que estão vivendo agora e, intensamente, a chegada da 
neta, apesar da curiosidade sobre seu passado, mostraram-se respeitosos sobre o 
limite entre saber, perguntar e seguir a possibilidade e o desejo dela sobre dividir 
informações de sua vida anterior à adoção. 
 
Nicky: Isa quer muito respeitar as raízes dela, de Sofia. Eu acho importante. 
E Sofia é interessante, nós íamos o final de semana para São Paulo (...). Mas 
quando cancelamos a viagem para SP, ela falou algo, primeiro para Isa e 
depois para mim, ela disse: invés de marcar, remarcar a viagem para SP, 
poderíamos viajar como família para Unaí? Que é onde ela veio, ela queria 
que nos conhecemos a história dela, embora ela revela muito pouco, não 
falou sobre os pais, origens, e Isa falou que nós não podemos perguntar. 
Deixa ela contar se e quando ela quiser. (...). E depois, o nosso filho David, 
abriu no Google Maps, Google Earth. 
Gizele: Sim. 
Nicky: E fez ela nos levou numa caminhada pela cidadezinha Unaí. 
Gizele: (eu rio) Que nem aquele filme. 
Nicky: É. 
Gizele: Aquele filme Lion. 
Nicky: Isto. (...). Mostrando a escola, o abrigo, a aula de caratê, a academia 
de caratê, cheia de orgulho de nos mostrar. 
 
 
72 A série “Histórias de adoção”, do GNT, do diretor Roberto Berliner. 
113 
 
Aqui encontramos uma diferença interessante sobre a questão do passado da 
criança e suas raízes como percebe Nicky. Por ser uma adoção tardia, não há como 
negar ou esconder que a jovem já tem um percurso e vivências pessoais que não 
poderão ser esquecidas ou apagadas, como tão facilmente se consegue, ou se tenta, 
em crianças pequenas e bebês. 
Guita foi a única avó que narrou explicitamente a dificuldade de sua filha e 
genro em lidarem com a revelação da adoção do Gabriel perante a comunidade, mas 
que será comentado em articulação com o tema a seguir. 
Apesar da proximidade construída nas entrevistas, percebo que, em alguns 
casos, os avós não compartilharam, ou não se estenderam nessas temáticas. Talvez 
não se sintam autorizados, pelos seus próprios filhos, a abordar este assunto de forma 
mais ampla, para além da família nuclear. Ou, como vimos em algumas famílias, 
também não falem entre si a este respeito. 
Portanto, a reduzida circulação de informações/comentários sobre as origens 
das crianças e suas famílias naturais, nas entrevistas, pode ser compreendida por 
diferentes ângulos: pela dificuldade de falar de um passado que geralmente tem 
marcas de abandono, miséria ou maus tratos – fruto da desigualdade social no país; 
pela falta de informações a respeito, seja porque ainda se encontra marcado pelo 
segredo, seja por não ser um assunto abordado em família e, ainda, porque, 
justamente é um assunto de família, deve ficar protegido de olhares mais estrangeiros. 
 
3.2 Trançando cores 
 
Da mesma forma como não vislumbrei, antecipadamente, a importância das 
histórias de vida dos netos, do nascimento até a chegada nessas famílias, ocorreu 
quanto às questões raciais. Eu havia pensado que as diferenças físicas poderiam 
estar presentes num conjunto de preconceitos que as famílias por adoção estão 
sujeitas, ainda, a enfrentar. No entanto, os desdobramentos decorrentes das 
diferenças de cor de pele emergiram com intensidade, mesmo quando não 
explicitados. 
Não tenho claro se não presumi a presença e a fundamental importância de 
tais questões por ser a adoção um tema novo para mim, se estava mais preocupada 
em compreender sobre as relações e o questionamento religioso, ou ainda porque o 
racismo não tinha me atravessado de forma tão intensa. 
114 
 
Certamente, também, meu medo de lidar com temas tão sensíveis: discriminação, 
preconceito e sofrimentos emocionais, das mais diversas ordens, envolvendo crianças 
e jovens. Mas foi um elemento chave para alavancar o que, agora, percebo estava 
bem presente. Houve um certo evitamento inicial, que foi sendo abandonado conforme 
percebi que era um tema fundamental e que deveria, e poderia, ser conversado 
Segundo Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017) são poucos os estudos 
brasileiros que relacionam dinâmicas familiares e relações raciais, bem como 
incipientes os trabalhos que falam de vínculos afetivos e a relação com os processos 
de racialização no país. Fonseca (2011) aponta, no entanto, a existência de uma vasta 
literatura internacional sobre o tema em uma ampla e cuidadosa revisão da 
antropologia da adoção mostrando como as pesquisas sobre famílias e relações 
raciais “(...) enriquecem debates não só sobre família, filiação e parentesco, mas 
também sobre desigualdade e violência, tecnologias de governo em um mundo 
globalizado e subjetividades variantes diante de dinâmicas multiculturais.” 
(FONSECA, 2011, p.39). 
Schucman (2014, 2017) utiliza o conceito de raça social, que não se refere a 
dados biológicos, mas a construções sociais, a partir de Guimarães (1999 apud 
SCHUCMAN, 2017, p.85): “(...) formas de identidade baseadas numa ideia biológica 
errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e 
privilégios”, onde as raças são definidas em termos de diferenças morais, psicológicas 
e intelectuais. 
 
O meu argumento é o seguinte: “cor” não é uma categoria objetiva, cor é uma 
categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, 
mulatos ou pardos é a idéia de raça que orienta essa forma de classificação. 
Se pensarmos em “raça” como uma categoria que expressa um modo de 
classificação baseado na idéia de raça, podemos afirmar que estamos 
tratando de um conceito sociológico, certamentenão realista, no sentido 
ontológico, pois não reflete algo existente no mundo real, mas um conceito 
analítico nominalista, no sentido de que se refere a algo que orienta e ordena 
o discurso sobre a vida social. (GUIMARÃES, 2003, p.103-104). 
 
Malka, como outras avós, narra a alegria da chegada do neto, Alan, e 
complementa, contando como ajudou na escolha de seu nome. Ressalta sua beleza 
e inteligência, bem como a realização da nora e do filho em se tornarem pais. Ela toca 
de forma sutil sobre a preocupação com as raízes, mas relata que, somente se 
inquietou fortemente, quando o neto teve uma primeira namorada. No entanto, não 
compartilhou suas inquietudes com seu filho e nora, confirmando mais uma vez o 
quanto este assunto permanece num espaço difícil em algumas famílias. 
115 
 
 
Gizele: E a senhora lembra como foi quando ele chegou? 
Malka: Claro! (eu rio). Direto! O enxoval do Alan foi todo lavado na minha 
casa. (...). Mas assim, como é que eu vou te explicar: Você é mãe, você vê a 
alegria do seu filho, você não fica alegre também? 
Gizele: Hum, hum, com certeza. 
Malka: Tem um lado preocupante, tu não sabes as raízes. 
Gizele: A senhora lembra de ficar preocupada? 
Malka: Na notícia da vinda do Alan não, só depois. Você pode até rir, mas eu 
vou te contar porquê. (...). Quis o destino que numa viagem a Disneylândia, 
que o Alan fez (...). Acho que ele tinha 15, 16 anos, não me lembro direto. Ele 
conheceu uma menina das bandas lá de Florianópolis (ri) e namoraram. Pode 
ser que ele já tinha 17, não me lembro direto da idade. Mas acho que não. 
Bom, namoraram. Ele se apaixonou pela menina (rindo). Foi a primeira 
preocupação que eu tive em relação a adoção dele. 
Gizele: Por que? Podia ser família dele é isso que a senhora pensou? 
Malka: Exatamente. Só isso. 
Gizele: E a senhora falou isso com o Ariel? Ou com a Dalia? 
Malka: Não! (Eu rio). Não. A primeira pessoa que eu ... Não falei pra ninguém. 
(Eu rio). (...) 
Gizele: Foi a única vez que a senhora se preocupou? 
Malka: Só. 
Gizele: Se preocupou com a história biológica dele? 
Malka: Sim. Esse negócio de pinkt73, ele foi namorar lá em Santa Catarina, 
ele nem é, ele nasceu em Curitiba, é de Curitiba. sabe lá? (...) 
Gizele: Mas isso veio nessa hora, ne? 
Malka: Quando a Dalia me disse, ele gostou tanto dessa menina que eles 
fizeram, tiraram até umas férias lá para ele rever essa menina, aí acabou o 
namoro, depois dessa viagem (rindo). (...). 
Gizele: Mas quando ele veio pequeninho a senhora não ficou preocupada? 
Malka: Não. 
Gizele: Só ficou feliz? 
Malka: Gizele, não é pelo físico dele, eu fiquei feliz da felicidade estampada, 
quando eles me mandaram os retratos. Eu tenho até hoje, tu quer eu te 
mostro? Deles em Curitiba, na casa do Charles, que eles ficaram. Ficaram 
dois dias, até fazer o registro e tudo. Ele foi registrado lá mesmo. Se tu visses 
a alegria estampada no rosto da Sara. 
 
Malka aqui assinala, também, de forma discreta, a alegria pelos traços físicos 
do neto, que só percebo ao transcrever a entrevista, mas imagino que deva se referir 
ao fato de Alan ser branco e louro. Esta menção me lembrou de um comentário da 
amiga que os havia encaminhado para terapia: como Alan era parecido com os pais, 
o que também pode estar incluído na satisfação de Malka. 
A busca por crianças com características físicas semelhante aos pais sempre 
foi presente no perfil desejado pelas pessoas que buscam a adoção, seja para manter 
o segredo, seja para camuflá-lo de um olhar mais estrangeiro, ou por outros aspectos. 
A “parecença” (COSTA, 1990, p.4) é a intencionalidade por parte dos pais adotivos, 
de preencher o espaço do biológico, ausentes na adoção e, assim, controlar a ameaça 
que apresenta ao social a ascensão de classe oriunda da adoção e da herança trazida 
 
73 Palavra em ídiche que quer dizer, de repente. 
116 
 
com ela. “A parecença se configura como um ideal a ser atingido (...).” (RAMÍREZ-
GÁLVEZ, 2011, p.78, grifo da autora), que somente se torna importante num contexto 
de biologização das relações (COSTA, 1990). 
Segundo Ramírez-Gálvez (2011), a tentativa de biologização na adoção pode 
ocorrer através de várias estratégias: o período de espera semelhante ao tempo de 
gestação de um filho biológico, o desejo de adotar crianças recém-nascidas, sem 
marcas do passado e, principalmente, na escolha de crianças com biótipo similar ao 
dos adotantes. Estratégias que podem ser “(...) interpretadas como uma forma de 
aproximar a adoção ao desenvolvimento “natural” reprodutivo, que neste caso, 
suprimiria só a etapa da gravidez.” (RAMÍREZ-GÁLVEZ, 2011, p.65-66). 
A questão de abordar a adoção e de como fazê-lo, cruza, muitas vezes, através 
do enfrentamento da diferença da cor da pele entre os membros da família. Miriam 
relata que, entre os próprios netos há uma disparidade em relação a falar ou não sobre 
a adoção: a neta diz que é adotada, fala do passado, quer mexer nas lembranças do 
abrigo; o neto ignora e se cala a respeito. 
 
Miriam: (...). Com a Anat, fomos num supermercado. Aí eu estava passando, 
como eu sou no Leme, todo mundo já me conhece, o Zona sul do leme. “Ih, 
dona Miriam, quem é essa menina?” Falei: “minha neta.”. Ela mesma disse 
assim: “não pode, ela é mulata, ela é morena e você é branca”. Ai a Noah 
olhou e falou assim: “por que não pode? Ela é minha avó e me adotou. A filha 
dela me adotou. Então eu sou morena, mas a minha mãe também é 
moreninha, viu?”. 
 
Noah, além de falar abertamente sobre sua adoção, introduz nesta passagem 
um aspecto interessante sobre a semelhança entre mãe e filhos que, no caso deles, 
me chamou a atenção quando busquei no Facebook foto da filha, Anat, que não 
conheci. Seria interessante saber sobre a importância da parecença para os filhos, o 
que poderia ajudar a compreender a vivência dos mesmo sobre a adoção. 
Queiroz (2004) afirma que os pais por adoção manifestam satisfação quando 
alguém reconhece semelhanças físicas entre eles e os filhos - o que me faz pensar o 
quão difícil é este afastamento do biológico, mesmo em famílias que vivem boas 
experiências de laços por adoção. “Paradoxalmente, em famílias paradoxalmente 
adotivas, as similaridades são também importantes na construção social do 
parentesco.” 74. (NIZARD, 2010, p.6). 
 
74 No original: «Dans les familles adoptives paradoxalement les ressemblances sont tout aussi 
importantes dans la construction sociale de la parenté 
117 
 
 Como visto a busca pelas mais diversas possibilidades de conexão, para além 
da semelhança física, ocupa um lugar privilegiado para justificar, ou fortalecer, os 
afetos já existentes entre os familiares, como vimos entre Rebeca e Carolina, Anat e 
Noah, Vicente e Hugo, e Agatha e Sofia75. 
Miriam contou que seus netos tiveram boa aceitação na escola judaica, com 
exceção de uma única situação, que muito a aborreceu. Ela disse não perceber 
nenhum preconceito das demais crianças, famílias, corpo docente ou discente. É uma 
família que já convive numa palheta de cores: as crianças lembram muito sua filha, 
Anat, que era morena, como seu pai, de origem espanhol e moreno, Miriam é loura e 
branca, como seu filho Rodrigo. 
 
Gizele: E como foi a recepção na escola judia? 
Miriam: Sem problema nenhum, nenhum, nenhum. (...). Um dia em dezembro 
fomos para formalizar as coisas, e precisava, eu seria a avó assinando que 
sou a avó. Voltamos. Voltei. No primeiro dia de aula com diploma, olha aqui, 
eu com atestado de... 
Gizele: De avó 
Miriam: De nascimento, que já tenho netos, que tem dois avós. Passei por 
todo mundo. (...). Para não mentir assim, uma coordenadora virou, disse 
assim: que moreninha, que mulatinha clara que você arrumou! Em todas 
festas, vou botar ela para sambar no palco. Eu vou dar para ela porque ela 
deve ser ótima, já percebi que ela é artista, vai sambar, vai isso, vai aquilo,mas ela falou num tom, que eu nunca vi a Noah moreninha, nem mulatinha, 
nem nada, nunca pensei, entendeu? Para mim tanto faz, não sou 
preconceituosa. Segurei isso dias (...). cheguei para ela: Vamos conversar? 
(...). estou sem dormir, pela maneira como você falou da minha neta, não 
gostei, porque a pessoa não é só cor, a pessoa não é só aparência (...). 
 
Isac e Lea fizeram comentários sobre a cor de Carlos, elogiando sua beleza; e, 
ao mencionar a intenção de Felipe na escolha de uma escola judaica para o neto, 
percebo que o fato de ser um casal de homens é ainda maior fonte de preocupação 
com possível discriminação, para Lea, do que a cor de seu neto. Penso que a 
homofobia na comunidade judaica, com suas piadas jocosas, ainda é mais forte do 
que o racismo, que já tem um embate mais firmado no meio social. 
 
Lea: O Carlos é uma criança muito inteligente, muito inteligente, bonito. 
Gizele: Ele frequenta a família? 
Isac: O quê?? Você precisa ver ele com os primos! 
Lea: Normal; ele é muito querido, ele é muito pelas crianças. 
Gizele: Como os primos receberam ele? (Ela se levanta e busca um porta-
retratos com foto dele). Que sorriso bonito! 
 
75 Interessante como as técnicas de Reprodução Assistida (RA) nem sempre são colocadas em 
tensão com o tema da adoção ou consanguinidade, pois, de alguma forma, mimetizam uma 
reprodução sexual típica, embora coloque questões semelhantes. Para maior discussão, ver: 
BESTARD; 2009; RAMÍREZ-GÁLVEZ. 2011. E sobre a busca de uma herança étnica através de 
RA, ver: FONSECA, 2008; SILVA, 2013. 
118 
 
Isac: Ele é bonito. Esse cara vai ser artista. Ele é bonito. Neguinho bonito ele. 
 
Isac: Ele agora está procurando escola para ele. O menino é muito inteligente. 
Lea: Aí, ele falou para mim: mãe, eu vou botar... aonde eu boto? [Cita nome 
de escolas judaicas]. Eu falei eu não boto em lugar nenhum. Não bota em 
escola judia, não bota. Primeiro ele é moreninho 
Isac: Moreninho para... 
Lea: Moreninho. Segundo vocês são dois. Para que você vai arranjar 
problema? 
 
Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017) acreditam que pessoas com um 
racismo arraigado se cegam para a cor de seus entes queridos, negando-as. Mas 
acho importante assinalar que não percebi, da parte de Isac, Lea ou Miriam, uma 
negação das diferenças fenotípicas, como é assinalado de forma problemática por 
Schucman (2017) em famílias inter-raciais onde os “(...) sujeitos negam a negritude e 
perdem a possibilidade de desconstruir os estereótipos negativos atrelados ao signo 
‘negro’.” (2017, p.451, grifo da autora). 
 
Gizele: Então a família toda foi tranquilo receber ele? 
Luna: Tranquilo. 
Gizele: O fato dele ser negro? 
Luna: Não, ninguém. Ele diz assim, disse um dia: vovô, eu sou marrom. 
Gizele: Marrom é tão bom! (rindo). 
Luna: Aí o Vicente falou: por que você é marrom? Então eu sou bege também. 
Sou bege. E o Leandro também diz que ele é marrom e o Leandro é bem 
moreno. 
 
Vicente e Leandro, avô e pai de Hugo, também não negam a cor do neto/filho 
e, por caminhos bem afetuosas, ajudam na inclusão da criança na palheta de cores 
da família e a desconstruir algo já muito arraigado que é pensar (e dizer) que existe 
uma cor determinada, chamada, erroneamente, de cor da pele, e que, não 
casualmente, é clara. Um exemplo de quão naturalizado pode ser a racismo, já que é 
uma expressão que muitos utilizam sem se dar conta do que está embutido nesta 
adjetivação. 
Nicholas, como apontado no capítulo anterior, mostra a apreensão com o 
passado e com as diferenças culturais da neta, que está vindo de uma cidade pequena 
para uma família transcultural e transnacional, embora enfatize uma positiva diferença 
entre ela e as crianças que estão em outros abrigos. Ao explicar suas preocupações, 
faz questão de me dizer que não dizem respeito à questão racial. 
 
Nicky: (...), mas preocupante foi as origens da criança, a bagagem que a 
criança trouxe. Enquanto a Isa estava visitando abrigos no Rio, eu fiquei muito 
preocupada porque as crianças têm realmente muito bagagem. 
 
119 
 
Nicky: [E depois, comparando a neta]: Ela criou uma estrutura para ela 
mesma, que eu acho que fez uma diferença na vida dela. Ela é diferente 
dessas crianças dos abrigos aqui no rio. Ela primeiro estava na série certa 
para a idade dela, ela está com 13 anos na 8ª serie; segundo ela fazia aulas 
de canto, ela gosta de cantar. Ela faz aulas de caratê, pertencia a um grupo 
de ajuda na igreja. 
 
Agatha: (...). Então em termos da Sofia o que eu espero que ela conhece isso 
tudo e depois ela faz a decisão dela. 
Gizele: A decisão dela. 
Agatha: Daquilo que ela quer fazer, daquilo que ela quer aceitar, daquilo que. 
Gizele: Mas como ele? Você acha que? Como ele? Você? quer que ela 
receba essa bagagem? 
Agatha: Sem dúvida, aos poucos. 
Nicky: Eu não considero bagagem, essa história. 
Gizele: Bagagem é tudo que você traz. (...), não bagagem do sentido do 
pesado, mas do que você traz. 
Nicky: Mas tem pesado, tem pesado porque as nossas vidas como judeus, 
na China, os pogroms, o holocausto, família de minha mãe foi morta, tem 
esses pesos. Eu penso que como a gente vai explicar o Pessach para ela. 
Tem um lado interessante porque os judeus naquela época, provavelmente, 
eram da cor dela. 
Gizele: Sim. 
Nicky: Mas, e a história talvez seja interessante, se a gente achar em 
português, uma história do Êxodos para ela ver, apreciar. 
 
Nicholas mostra incômodo ao meu uso da palavra bagagem, pois enquanto eu 
me refiro ao arcabouço cultural da família, ele se remete ao povo judeu. Parece que 
para ele esta palavra, já utilizada em outro momento, tem numa conotação forte e 
negativa. É possível que também haja algum desentendimento por conta de sua 
língua dominante ser o inglês. 
Acho interessante que eles já estejam pensando no Pessach, visto que ainda 
falta cerca de seis meses para esta festa. E antes disto ainda tem o Natal e o Chanuka, 
que Agatha conta que também já está sendo planejado. Quer dizer, mostram-se 
preocupados e empenhados na inserção da neta em sua cultura e família, ao mesmo 
tempo em que não pretendem deixar de lado o que for importante para ela. 
 
Agatha: Eu acho que nosso primeiro teste para nós vai ser Chanuka e Natal, 
porque Natal ela conhece, Chanuka ela não conhece, como a gente vai juntar 
essas duas festas vai ser interessante. 
Gizele: Vocês costumam juntar essas duas festas? 
Agatha: Já juntamos. 
Nicky: Quando as crianças eram jovens, e sempre que a gente morava longe 
de família, comemorávamos com amigos que não eram judeus, então sempre 
tinha. E tínhamos uma tradição que todo ano a árvore era a altura da nossa 
filha, enquanto crescia. 
Agatha: Mas não durou muito a tradição (Eu e ela rimos) 
Nicky: Não durou. E nosso filho, ele primeiro pretendia vir para Chanuka, 
Natal e conhecer a menina naquela ocasião, dizendo olha, vai ser a primeiro 
momento de fusão das culturas, vamos marcar de uma maneira significante. 
E Isa disse: olha, pode ser, mas eu quero que você venha, eu quero que ela 
conhecesse você logo no início. 
120 
 
Gizele: Antes? 
Nicky: Então ele veio. 
 
A junção de Natal e Chanuka é bem comum em casamentos mistos, onde 
somente um membro do casal é judeu; mas ter uma árvore em casa, como citam, eu 
me arriscaria a dizer que não é nada comum em famílias como onde ambos são 
judeus. 
Bem interessante assinalar, a partir do comentário de Nicholas, que há judeus 
de origens diversas e biótipos variados. Pode-se perceber isto em todas as 
comunidades, quando há judeus oriundos da Europa, da Península Ibérica, ou dos 
Países Árabes, mas, especialmente em Israel, onde se encontram judeus vindos de 
todos os cantos do mundo. Assim, apesar de a imagem do judeu, mais comum e 
naturalizada, ser alguém de pele muito branca, o que corresponde à descrição mais 
comum do perfil de crianças desejadas no Brasil, outros fenótipos podem aproximar 
fisicamente pais e filhos,como inclusive é o caso dos netos de Miriam, como já 
mencionado. 
É de se supor que nos casos em que há marcante diferença de traços e/ou cor 
da pele, entre crianças e adultos, a adoção esteja evidente; porém, na família de Guita, 
apesar destas distinções, ela nem sabe ao certo se filha e genro falaram com Gabriel 
a respeito, como ou quando. Posicionamento com o qual não concorda e, de alguma 
forma, credita às dificuldades do neto em se adaptar meio ambiente diferente em 
relação às suas características físicas. 
 
Guita: (...). Eu falava para a Beatriz: Beatriz, o problema é que vocês não 
contaram para ele. Ai a Beatriz escreveu, tinha um CD, ela gravou uma 
história, a história da vida dele, contando como eles que foram buscar, que 
ele era filho do coração, aquelas coisas que você fala para o adotado. E ele, 
mas ela não conseguiu mostrar, o marido não queria. Acho que levou anos. 
Eu sei que na época. Acho que nunca chegou perto e falou você não é meu 
filho. É claro que ele soube depois. 
 
Guita: (...). Acontece que eles pegaram essa criança achando que era branca, 
não era, era mulata. Quer dizer, quando ele era pequeno, ele era branquinho. 
Gizele: Qual o nome dele? 
Guita: Gabriel 
Gizele: Quantos anos ele tem agora? Só para eu ter uma ideia. 
Guita: Uns 19 anos. Ai ele, botaram na escola [judaica e religiosa] e a (...) 
Beatriz não disse, eles tinham um problema para dizer que ele era adotado, 
os dois. 
Gizele: Mas a família sabia? 
Guita: Todo mundo sabia. 
 
Guita tem o relato mais forte no que diz respeito às dificuldades colocadas pelas 
diferenças raciais como algo que possa ter impactado negativamente a inclusão do 
121 
 
neto no ambiente social judaico. Mas acresce suas dificuldades ao fato que os pais 
de Gabriel nunca assumiram publicamente a adoção, lidando sempre de forma fugidia 
com as informações, seja perante a escola ou a sinagoga, ou mesmo perante o próprio 
filho. 
 
Gizele: Ele fez Barmitzva? 
Guita: Olha só, o Barmitzva foi outra história. Tudo com eles é assim meio 
enganoso. Ele, o pai do Roberto, era diretor, já faleceu, era diretor daquela 
sinagoga (...). Que é muito ortodoxa. Então, começaram, aí quando ele foi 
tratar do Barmtizva, lá começaram a exigir um papel que eles não tinham, a 
certidão de casamento deles, eles tinham; uma certidão aí que eles não 
tinham. 
Gizele: Os pais? 
Guita: É. Aí não quiseram fazer. Ai, não sei como, o Roberto fez alguma 
confusão lá, que conseguiram que fizesse o Barmtizva lá, mas sem o rabino, 
foi com outra pessoa, um ajudante de rabino, não sei nem quem era, uma 
pessoa que reza, que rezava. O Barmtizva foi lá. 
 
Toda esta narrativa sobre o Barmitzva é bem confusa. Não estou certa se ela 
conhece os detalhes, já que foi encaminhado pelos avós paternos. O que ela sinaliza, 
ao meu ver, é um padrão dos pais de Gabriel em conseguir as coisas de forma pouco 
clara, na tentativa de não assumir a adoção. São pensamentos e preocupações que 
Guita divide comigo de forma franca. 
A partir das ideias Schucman (2017) sobre os efeitos da negação familiar, pode-
se pensar que Gabriel não criou estratégias para lidar com o preconceito que 
enfrentou na escola, já que “(...). a família é um espaço privilegiado para o 
desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da violência racista vivida na 
sociedade de forma mais ampla, mas também o lócus de legitimação e vivência 
racistas.” (SCHUCMAN, 2017, p.439). 
 
Guita: Eu acho que ele não se identifica [com o judaísmo]. E eu acho que o 
negócio da cor, eu acho que ele entrou para essa turma [de traficantes] 
porque era gente da cor dele. 
Gizele: Mas você se lembra se você ficou preocupada com alguma coisa? 
Dele ser adotado? De como que ia ser assim na comunidade isso? 
Guita: Ah, nem me passou pela cabeça isso. Não, primeiro eu pensei que ela 
ia adotar uma criança branca, porque eu acho que os problemas dele todo é 
de cor. 
Gizele: Você acha? 
Guita: Eu acho que essa turma que ele pegou é negra. 
Gizele: Mas para sua filha foi um problema ele ser de cor? Você acha? 
Guita: Não, não acho. 
Gizele: Pro Roberto foi um problema? 
Guita: Não, não foi. 
Gizele: O problema foi o entorno? [a comunidade judaica]. 
Guita: O entorno. 
Gizele: Dentro da família com os tios, com os primos, como foi o Gabriel 
quando ele chegou assim? 
Guita: Ele não é um menino sociável assim. Ele, graças deus, ele tem vindo 
ao Shabat, mas graças a mamãe aqui, empurra. 
122 
 
 
Apesar de todas estas dificuldades, a adoção é vista como uma possibilidade 
positiva por Guita, tanto que ela fez essa sugestão para outra filha que só conseguiu 
ter um filho biológico: 
 
Guita: (A Yasmin) teve um menino, que ela queria ter mais filhos (...) resolveu 
fazer parto natural. Ai, esse parto natural estragou um pouco a vida dela 
porque passou da hora do menino nascer, ela teve uma porção de 
complicações (...). Ela estava doida para ter filhos, acabou fazendo 
inseminação (...) 
Gizele: Ela tentou depois de ter esse filho? 
Guita: É, mas não conseguiu. Eu até falei para ela, adota. Mas não adotaram 
não. Ficaram só com esse menino. 
 
Antes de finalizar é interessante esclarecer que, em várias famílias, só tive 
conhecimento de como eram as crianças fisicamente ao ver as suas fotos (por vezes 
no final da entrevista), e o tema das possíveis diferenças fenotípicas entre seus 
membros não surgiu na conversa, me impedindo de estender, e entender, o assunto 
para com todos os avós. 
Guimarães (2003) assinala justamente que os pesquisadores precisam estar 
atentos aos discursos que os atravessam, bem como aos seus também são 
entrevistados porque “(...) qualquer categoria só faz sentido no interior de um discurso, 
no nosso caso, racial; quando nos deparamos com uma resposta sobre identidade, 
temos que investigar qual o discurso que está orientando as respostas.” 
(GUIMARÃES, 2003, p. 106). Fios que ficaram ainda pouco desfiados, a espera de 
novas investidas. 
123 
 
4 FIOS FAMILIARES: ENTRE RELIGIÃO, CULTURA E AFETO 
 
Transmitir identidade judaica a um filho adotivo significa torná-lo 
parte de uma genealogia e imprimi-lo em uma memória coletiva 
(..). 
Sophie Nizard 
 
Como vimos até aqui, falar de família é contar histórias: densas e intensas. O 
tema deste trabalho une fios, de antes e de depois, do encontro dessas crianças e 
desses adultos, através da adoção, formando famílias. 
Para construir as relações com filhos e netos, os avós se reportam às suas 
próprias histórias, de infância e juventude, muitas vezes, norteadas pelo judaísmo 
como fio condutor. As famílias de origem dos entrevistados estiveram bastante 
presentes nos relatos: comentários a respeito de pais, avós e família extensa vieram 
atreladas a temas como filhos, festas, conquistas pessoais e profissionais, 
dificuldades diversas e judaísmo. Um contraste que aponta, de certa forma, para uma 
oposição de valores entre os diferentes passados, como se a história de vida dos avós 
fosse imprescindível para adensar o ser-família, e a dos netos, não. Valorizar a família 
de origem, e/ou as instituições por onde as crianças passaram, parece ameaçar o 
objetivo principal, que é viver (n)a família atual. 
 
4.1 Continuidade e tradição 
 
Malka: Meus pais imigraram da România trazidos por um tio meu. Sabe, as 
famílias faziam assim: vinha um, veio um irmão da mamãe casado (...). 
Ganhavam um dinheirinho. A preocupação deles era só ter para a comida e 
ter dinheiro para trazer um familiar. Então este tio trouxe meus pais e a mim, 
com um aninho. E a gente convivia assim conhecendo os avós paternos e 
maternos através de cartas e o que os pais contavam para a gente, ne? 
Gizele: Para a Sra. o que é família? 
 
Sarah: Família é isso. É isso que a gente tem. Todos lutando para o bem 
comum. Ajudando o que precisa, o que precisa ajuda o outro, em termos, ne, 
vamos ver, tomara que seja, ne, assim: quando um precisa, a gente ajuda. 
 
Um aspecto marcante das famílias judiasentrevistadas é justamente a 
importância da família como rede de apoio, sustento, cooperação, que não somente 
no século passado, mas também hoje, mantém seu valor. Apesar das mudanças nos 
padrões de relacionamento, estabelecidas pelas melhores condições 
124 
 
socioeconômicas, distancia geografia, maior individualidade, entre outros, hoje ainda 
é possível perceber a valorização, em algumas famílias, da residência próxima, do 
trabalho conjunto numa empresa familiar, ou da permanência/continuidade numa 
mesma profissão. 
 
A transmissão é parte fundamental da função parental. Todos os pais 
desejam transmitir a seus filhos aquilo que eles acreditam, seus valores, suas 
práticas e ainda mais uma parte de si mesmo. Como parte de si, eles 
transmitem também uma inscrição numa genealogia familiar, eles transmitem 
uma memória. Eles constroem uma continuidade (...). (NIZARD, 2011b, 
p.179-180)76 
 
O desejo de continuidade e proximidade que atravessa gerações inclui a 
preservação e partilha de determinadas memórias. Os avós falaram de suas próprias 
famílias, de seus pais, avós e até de familiares mais antigos, que muitos nem 
conheceram pessoalmente devido à distância ou às guerras. Ouvi relatos sobre a 
motivação de vir para o Brasil, as dificuldades do deslocamento e da chegada, as 
perdas materiais e as famílias deixadas além-mar. A geração, nascida ou criada aqui, 
foi descrita como um trunfo, fruto da liberdade, de (re)construção familiar e sucesso 
profissional, com realizações de diversas ordens. 
 
Todos nós, imigrantes e filhos de imigrantes, temos uma memória que se 
estende além de nossas próprias vivências. É a Memória das experiências 
ouvidas, narradas por aqueles com quem convivemos. Nossa vida é 
acrescida de outras emoções, tensores, esperanças (...). Observei que 
pessoas de origens nacionais distintas trouxeram na bagagem outros 
costumes, valores, sofrimentos, alegrias, parentescos, antigos e visões 
políticas. Contudo, uma experiência era comum a todos: pobreza e 
perseguição. (BLAY, 2008, p.26). 
 
Tais descrições, sobre a história da família e dos antepassados, estão 
fortemente atreladas à herança de um modo de ser família: que coopera, que se junta, 
que se encontra, que convive de forma estreita, com valores que estão conectados a 
um estilo de vida, com respeito, união e ajuda mútua. Os avós falaram de tensões e 
desentendimentos também: muitos relataram histórias difíceis de decepções, brigas e 
rupturas familiares. Em toda esta coleção de memórias, o que importa são os valores 
 
76 No original : « La transmission fait fondamentalment paartie de la fonction parentale. Tout parent 
souhaite transmettre à ses enfants ce en qoi il croit, ses valeurs, ses practiques, plus encore une 
parte de soi. Avec cette part de soi, il transmet aussi une inscription dans une généalogie familiale, il 
transmet une mémoire. Il construit de la continuité (...). ». 
125 
 
que são transmitidos em cada passagem, seja ela edificante, alegre, triste ou 
catastrófica77. 
 
Lea: Acho que [família] é tudo. Acho que é. Eu nunca parei para pensar. Mas 
eu acho que é uma vida. É uma, não sei se é porque eu presenciei isso na 
casa dos meus pais, na casa dos pais dele, é uma continuidade. 
 
Isac: Moral da história: quero mostrar para você o sentimento, o negócio de 
família. E aqui meu pai fazia questão. (...). Então esse espirito de família. 
(...). Então meu pai tinha muito este espirito na família, ele aglutinava, mesmo 
na Argentina. 
Gizele: Que é o que vocês fazem hoje, ne? [Me referindo ao grupo de 
mensagens do WhatsApp que ele me mostrou]. 
Isac: É o que a gente faz, aglutina. (...). Então aquele negócio de família. 
Estou provando a você que existe um berço. O meu pai também tinha e todos 
os outros têm. (...). Então esse núcleo família existe. E eles estão mantendo, 
entendeu? 
 
Gizele: O que que é família para você? 
Miriam: Como eu eduquei, como eu acredito, né: é um faz pelo outro, todos 
somos um pelo outro, sem distinção. As festas judaicas o que eu mais sinto 
falta é uma mesa cheia. Por isso que a Anat quando fazia as festas, botava 
20 pessoas, porque ela sabia o quanto era importante para mim isso. 
Basicamente é isso: um dá para outro, estar lá para o outro. 
 
Gizele: O que que é família para você, Debora? 
Debora: Eu acho que é uma coisa importante, eu sempre tive uma família 
muito [inaudível], eu tive uma avó, que eu me lembro que eu morava, quando 
eu nasci morava no subúrbio. 
Gizele: Aonde? 
Debora: Todos os Santos, Méier, morava na rua Jacob Bonifácio, Todos os 
Santos. É uma estação depois do Méier. E eu ia todo final de semana para 
casa da minha avó. Isso eu não vou me esquecer. Eu era pequena. 
 
Malka: Sabe? E também esqueci de te contar. Quando meus pais imigraram, 
vê se hoje você entende isso? Três casais com filhos morando na mesma 
casa, daí essa minha...(...). Imagina, cunhadas convivendo. Eu não me 
lembro de grandes alterações de comunicações, assim, vamos dizer que a 
gente chama brigas, não. Grandes, não. Mas claro que tinham opiniões 
diferentes. As vezes a gente dizia: pai, por que você está gritando com o tio. 
Sabe? Chamando a atenção do outro. Essas lembranças eu tenho. 
 
Gizele: (...). O que que é família para você? 
Agatha: Ah, superimportante, a família era muito pequena, ao contrário dele, 
e a gente vivia numa família nuclear, no sentido que dependíamos um do 
outro (...). Como qualquer família tinha tensões (...). Então, família para mim 
é muito importante. E ser judia neste sentido é um sentido judaico, de 
preservação. 
 
77 O judeu também tem fama de ser muito dramático, principalmente, as famosas mães judias, então 
segue uma piada: 
Jacó telefona para sua mãe. Ela atende. 
- Quem fala? 
- Sou eu, mamãe. Você está bem? 
- Estou ótima, meu filho. 
- Como? Está mesmo bem? 
- Sim, estou. 
- Desculpe, madame, deve ser engano. A senhora não pode ser a minha mãe. 
126 
 
Os avós descrevem um tempo em que as relações familiares não estavam tão 
restritas à família nuclear, como são mais comuns hoje em dia, em nossa vida urbana 
e acelerada, possivelmente porque eram imigrantes, numa terra desconhecida, ainda 
com poucos contatos sociais. E também porque os meios de comunicação eram mais 
caros e escassos, tornando os encontros pessoais mais constantes e significantes. 
 
Sarah: Eu morava no Leme. Aí ficamos lá até o Davi completar uns 10 anos. 
Ai a gente veio para cá. A mamãe foi para lá que era menor. (...). Minha mãe 
me ajudava muito. 
Gizele: Com as crianças? 
Sarah: Com as crianças, ela vinha aqui sempre, para dar uma olhada, vinha 
aqui sempre. Ficava com eles também. 
Gizele: Era uma avó presente? 
Sarah: É, minha mãe era muito presente. E também ajudou muito a minha 
irmã. 
 
Isac: Família é família. (Eu rio). É o conjunto que faz você crescer. 
 
Lea: É convivência, é amor, é carinho, é respeito. 
 
A família foi descrita, principalmente, pelos seus aspectos positivos, seja 
quando falavam do passado ou do presente. Roudinesco (2003) afirma que apesar de 
todas as mudanças ocorridas nos últimos anos, a família continua a ser reivindicada 
como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Segundo a autora, a 
família “(...) é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas 
as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.” (ROUDINESCO, 
2003, p.198). 
 
Gizele: E assim, a família, o que que é família para você? 
Guita: A família, no momento, é tudo, ne. (...). E eu agora estou numa fase, 
por isso que eu digo que família é importante que eu pretendo viajar só com 
os meus filhos. (...) Pensei, eu, todo ano, no meu aniversário, eu comemoro 
com, eu levo meus filhos para algum lugar (...). Vai todo mundo. 
 
Gizele: O que que é família para vocês? 
Luna: Difícil responder assim com poucas palavras 
Vicente: Não tem definição nenhumanão. Negócio tão instintivo que não tem 
definição. (Rindo). 
Luna: É. Sei lá. Não sei. 
Gizele: Não sabe? 
Luna: É um carinho que a gente sente um pelo outro, os filhos. Essa história 
toda que eu te contei aí, foram nascendo os filhos e eu procuro sempre juntar, 
sempre juntar. Porque eu também acho que quando a gente não tiver mais 
aí, eles não vão ter tanta chance de se encontrar 
Vicente: Nem quem faça o imposto de renda (...). 
Luna: Eu sei, estou consciente já: há anos que eu faço isso, que eu planto 
neles coisa para eles terem lembranças, da família, de como havia reuniões, 
não só os filhos, como os netos também. E eu acho isso muito bom. E eu 
acho muito gostoso, quando eu lembro da casa (...). E a mãe dele também 
que reunia. 
 
127 
 
Gizele: Hoje o que é família para a senhora? 
Rebeca: Família? Ah, da família é muito importante. Família é essa coisa (...) 
Família, eu sento com ela e começo a falar do avô, da avó que ela não 
conheceu. Como é que era, como que não era. É uma ligação, com as 
meninas, família quando junta. Está vendo este apartamento? Eu tinha mesa 
lá no Flamengo para 12, 14 pessoas, essa aqui mal dá seis. Mas vem todo 
mundo para cá. É uma bagunça (...) 
Gizele: Família então é ligação, é festa? 
Rebeca: É ligação, é festa, é ajuda, é participar da cabecinha de cada um, 
ne? Problemas de cada um. 
 
Para os avós, ser família é, principalmente, cuidar e se preocupar com o outro, 
manter uma relação de afeto e ajuda, para o crescimento e a realização mútua. 
Família é ter, e manter, espaços para se encontrar, se reunir, compartilhar histórias, 
semear valores. Os encontros familiares tornaram-se menos frequentes por múltiplas 
razões: as pessoas têm menos tempo, moram mais longe, podem se comunicar por 
outras vias. E, talvez, por isso, estes encontros, quando acontecem, tenham se 
transformado no cerne da vida da família extensa. Uma espécie de pilar. 
 
Os encontros são menos frequentes, temos mais prazer com eles. As 
atividades realizadas em família estão mudadas. Os atos da vida cotidiana 
eram realizados em conjunto. Hoje se organiza atividades centradas nos 
reencontros. (SCHNEIDER; MIETKIEWICZ; BOUYER, 2005, p.12-13)78. 
 
Lea: O meu sobrinho de Israel esteve aqui com a família. Então eu fiz um 
jantar. 
Isac: Um lanche. 
Lea: Um lanche, então, veio todo mundo, ele [o neto adotado] pinta e borda. 
Ele e o Bruno, o menor da Miriam. 
Isac: Ele idolatra o pequeno. 
Lea: Eles tiram todas as almofadas. 
Isac: Como era na casa da minha mãe: quando eu era pequeno, briga de 
travesseiros. 
Lea: Briga de travesseiros. Eles se sentem. 
Isac: Eu digo, Lea, deixa, que é isso que vai ficar. 
 
Debora: Para mim família é uma coisa muito importante, eu acho que é uma 
coisa muito bacana, não sei se... Eu fui criada em família. Eu tive uma avó, a 
mãe da minha mãe, e ela reunia a família todo sábado. Todo mundo ia para 
casa dela: filhos, netos, as irmãs, os genros, tudo, cunhados, todo mundo ela 
reunia. Não pensa que era banquete não. Eu sempre digo isso para os meus 
filhos. Era café com leite, pão, manteiga, queijo, bolo. (...), mas eu nunca 
esqueço a minha avó e ela reunia a família inteira. Eu era muito ligada e os 
primos todos moravam ali em volta da minha avó. 
 
Agatha: (...) eu digo que a minha religião é gastronômica (eu rio), porque 
minha mãe, minha mãe trouxe toda a tradição, e eram judeus da Sibéria, 
muito pegados à religião. Minha avó era muito, muito religiosa, ortodoxa, e 
faziam comidas, todas as comidas judaicas, principalmente para os grandes 
feriados. 
 
 
78 No original: « Les rencontres, si elles sont moins fréquents, sont moins contraintes; on y prend plus 
de plaisir. Les activités réalisés en famille sont transformées. On efectuait naguère les actes de la 
vie quotidienne ensemble; on organise aujourd´hui des activités centreés sur la reencontre. ». 
128 
 
Nesta manutenção/exaltação dos personagens do passado, pode se perceber 
o destaque que é atribuído às avós. Elas servem de exemplo para um modelo que se 
quer perpetuar, que abarca cuidado, amor, e, principalmente, a responsabilidade a 
respeito dos encontros familiares, onde as relações se atualizam, se mantêm, e fios 
de afetos, novos ou antigos, são tecidos. Sem falar na possibilidade de a casa da avó 
ser um terreno que se propõe mais “neutro”, quando há diferenças, discórdias ou 
rupturas. 
 
Lembrar dos avós quando se abrem para falar de si mesmos como avós é o 
momento da integração de dois pedaços de um ciclo de vida. Eles esperam 
repetir um modelo fundado nas ideias de transmissão de valores, abrindo 
espaço para que um pouco de si próprios sobreviva em seus netos, assim 
como eles carregam consigo as marcas de seus avós. (BARROS, 1989, 
p.36). 
 
Julien, Bureau e Brumath (2005) apontam várias pesquisas, de diferentes 
países, que demonstram que as avós têm maior presença que os avôs, não somente 
no auxílio, mas também no apoio emocional. Elas também mantem uma relação mais 
afetuosa com os netos - as marcas do cuidado com as relações se mantêm, em nossa 
sociedade, atreladas ao feminino. 
Cuidado que também se traduz pela comida preparada com esmero. A refeição 
familiar é uma constante na memória das famílias. Para nós, judeus, ela é uma marca 
indelével, pelos pratos típicos de cada festividade, pela abundância, pelas 
recordações que suscitam: costumes, rezas, músicas, melodias, piadas, anedotas, 
embates, entes queridos, lugares perdidos no tempo – enfim, afetos, traduzidos em 
imagens, cheiros e gostos. 
 
Isac: E não só, e a minha mãe e o meu pai, eles não me ensinaram ídiche, 
religião, mas a casa era judaica. 
Lea: Exatamente: casa judaica. 
Gizele: Quer dizer uma casa que tem festas, que faz Shabat. Vocês fazem 
Shabat? 
Lea: A mãe dele fazia e depois ela parou. 
Isac: A minha mãe fazia. A gente acende as velas, comemora. 
 
Gizele: Qual o legado que a Sra. acha que está deixando? Que quer deixar 
para esses netos todos? 
Sarah: Olha, fico feliz de eles terem continuado a religião judaica. Todos os 
três fazem Shabat. Ninguém é religioso. 
Gizele: As três famílias? 
Sarah: As três famílias fazem Shabat. Na casa de um, na casa de outro. O 
Marcelinho também faz questão de fazer lá. Eu gosto de ver. 
 
Além da importância do encontro, símbolo da união familiar, para os avós, ser 
família é estar ligado à tradição e à cultura judaica, é passar adiante valores culturais 
129 
 
que receberam e que desejam transmitir. É dar continuidade aos costumes. Quitutes 
e lembranças que remetem aos antepassados, e formam um baú de memórias, de 
onde se é possível sentir os cheiros, lembrar os gostos, ouvir as vozes, os risos ou os 
silêncios, como me aconteceu, algumas vezes, ao ouvi-los e me lembrar da minha 
própria vida, minhas histórias, minha família. Assim, estar à mesa é estar em família. 
Ou estar em família é, muitas vezes, estar à mesa. 
 
Finalmente, no momento atual, chamado por alguns de pós-modernidade, 
mudanças radicais nos estilos identitários seculares vêm ocorrendo. (...) que, 
aliás, não ocorre exclusivamente entre judeus, de recuperação e recriação da 
tradição, (...) estas manifestações aparecem hoje como parte de um passado 
idealizado. Cultivar ligações com o judaísmo significa, na atualidade, 
consumir um ou outro produto cultural de um vasto cardápio de bens 
simbólicos. Estes podem se expressar, por exemplo, na participação em 
festas e rituais religiosos; no consumo habitual de comida judaica adquirida 
em delicatessen da moda (...). (SORJ, 2008, p.59, grifo do autor) 
 
Portanto, em muitas famílias as práticas religiosas deram lugar a tradições de 
como fazer: onde jantar, o que comer, como se vestir, várias delas advindas das 
restrições alimentares de cada data, ou do simbolismo ligado à cada comemoração. 
Mantiveram-se algumas regras e alimentos, mesmo quando os motivos se 
descolaram, e se afastaram, dos preceitos religiosos. No Shabat,chalot79 e velas; no 
Ano Novo, bolo de mel e roupa branca; em Pessach, matza80; ... Alimentos, melodias 
ou tradições, encontrados nas mesas das famílias judias ao redor do mundo, e no 
transcorrer dos tempos. Traços de memória. 
 
A memória - o retorno da memória oferece à identidade judia novos meios de 
expressão. Investir nisso aparece como uma compensação para o vazio 
deixado pelo abandono das formas tradicionais da vida judia. Esse novo 
interesse por tudo o que é “reconstituição da memória” quer ser testemunho 
e afirmação, por outras vias, da fidelidade ao judaísmo e sua herança. 
(AZRIA, 2000, p. 208, grifos da autora). 
 
Importante frisar que as famílias entrevistadas possuem formas distintas de 
participação cultural ou religiosa na comunidade. Muitas frequentam sinagogas, mas 
não todas; muitas fazem Shabat, mas não todas, muitas conhecem as tradições, mas 
não todas. No entanto, todas manifestaram que através da vida judaica, seja lá o que 
isto queira dizer para cada uma, a família se mantém como família, principalmente 
através dos encontros e celebrações. 
 
79 Pão em forma de tranças que se costuma comer no Shabat, geralmente acompanhado de uma 
reza que agradece pelos alimentos. 
80 Espécie de bolacha, sem fermento. 
130 
 
Portanto, seja religioso, ateu, tradicional, cultural ou o que for, contar histórias, 
transmitir valores, repetir costumes faz parte do ser família, e principalmente do ser-
judeu para as famílias entrevistadas, e muitas outras, eu diria. Percebo um movimento 
que ocorre como um zoom, às avessas: que parte de uma pessoa, para uma família 
nuclear, para sua família extensa, ascendência, segmento de uma comunidade, 
componente de um povo, elemento da humanidade. 
 
Chamamos de tradição (...) o conjunto de representações, imagens, saberes 
teóricos e práticos, comportamentos, atitudes e etc. que um grupo ou uma 
sociedade aceita em nome da continuidade necessária entre o presente e o 
passado. (HERVIEU-LÉGER, 1993, p.127, grifos da autora)81. 
 
Dinah: Não. Nunca foi. Eu nunca... eu sou uma pessoa light. Eu sou judia, 
mas não sou fanática. Frequento a sinagoga sim, só nos Iom tov82. Não sou 
de sinagoga. 
Gizele: Aonde a senhora vai? Quando a senhora vai aonde a senhora vai? 
Dinah: Eu vou no mais perto. (...). Eu comemoro. Eu sou tradicional, eu não 
sou religiosa. Eu sou, eu acho, eu tenho a consciência que eu sou obrigada 
a comemorar por causa dos meus netos. A minha família é uma família (...), 
agora, tem um parêntese. Eu venho de uma família tradicional religiosa. Eu 
tive um sogro morando comigo mais de 10 anos, religioso. (...). E depois que 
eles se foram, acabou. Eles levaram a religião com eles, mas eu faço questão. 
E as minhas noras são muito inteligentes, são pessoas muito compreensivas. 
(...). Na casa dos meus filhos não tem religião, nenhum dos dois. E te digo 
uma coisa, não por causa das minhas noras, por causa dos meus filhos. Meus 
filhos mesmo (...) 
 
Dinah afirma a importância da transmissão judaica aos netos - o cerne de uma 
cultura que sempre valorizou a transmissão oral. O judaísmo é constituído pela 
memória de gerações, em que os mais velhos têm a obrigação de transmitir os 
conhecimentos para os mais novos, o que demonstra a importância que se atribui ao 
ensino e a educação83. 
Nizard (2017) assinala que no Talmude84 a pessoa que cuida, educa e ensina 
as antigas escrituras a um órfão está lhe oferecendo um novo nascimento, 
promovendo a transmissão de saberes ao posto de engendramento. A autora conclui 
 
81 No original: “On appellera tradition, dans cette perspective, l’ensemble des représentations, images, 
savoirs théoriques et pratiques, comportements, attitudes etc. Qu’on groupe ou une societé accepte 
au nom de la continuité nécessaire entre le passé et le présent. ». 
82 Iom Tov, literalmente dia bom, refere-se aos dias do Ano Novo e do Perdão, feriados considerados 
de maior importância na prática religiosa por muitos judeus, mesmo os não praticantes. 
83 Numa série israelense, disponível atualmente no Netflix, chamada Shtisel, um avô ortodoxo é 
processado, num tribunal rabínico, por sua filha com quem rompeu relações quando do seu 
casamento com um homem de outra linha religiosa ortodoxa, por sua ausência na obrigação como 
avó de transmitir aos netos os ensinamentos religiosos. 
84 Talmude é uma coletânea de livros que apresenta discussões rabínicas relativas às leis, à ética, 
aos costumes judaicos. 
 
131 
 
que adotar, pela passagem mencionada (SANHEDRIN 19b), “(...) é criar não uma 
filiação, mas uma afiliação.” (2010, p.2)85, através do ensino do judaísmo. E ainda 
salienta que, deste ponto de vista, tanto o pai por adoção, quanto a mãe por adoção, 
são igualmente dotados do poder de transmitir seu judaísmo, realizando uma 
igualdade de gêneros. 
Por ser uma tradição de transmissão oral, debater e discordar é uma presença 
na vida judia por diferentes aspectos. Uma das práticas religiosas rotineiras é o estudo 
dos trechos bíblicos, realizados semanalmente durante os serviços religiosos 
matutinos do sábado. Nas escolas rabínicas, o estudo é sempre realizado, ao menos, 
em duplas, na busca constante dos diferentes olhares e interpretações; bem como um 
sistema de aulas dialético, de perguntas e respostas entre professores e alunos. 
Assim, estar em família é também discordar, debater. É criar bons embates. Há 
várias anedotas que dizem respeito ao gosto muitos de nós, judeus, pelas 
controvérsias e discussões, como: “dois judeus, três opiniões”86, o que aponta para 
complexidade do ser comunidade, em sua diversidade, mas também para uma 
tradição que valoriza o debate. 
A frase de Dinah também é interessante, pois ela se preocupa com a 
continuidade na geração dos netos, como se a dos filhos já tenha se dado por 
cumprida, com sucesso ou não. Dinah parece tirar proveito do fato que a relação entre 
avós e netos, uma geração alternada, tem como marca ser uma relação mais jocosa 
(RADCLIFFE-BROWN, 2013), onde imperam brincadeiras e descontração. E, eu 
acrescentaria, bolos, biscoitos... “(...) com os da segunda geração ascendente, avós 
e parentes colaterais, pode haver, e em geral há, um relacionamento de simples 
amistosidade e relativamente isento de restrições.” (RADCLIFFE-BROWN, 2013, 
p.90). 
O importante, dizem os entrevistados, é que a transmissão do judaísmo e seus 
valores aconteça: mesmo que pule gerações, mesmo que seja pelas festas, pelas 
comidas, numa fase mais tardia da vida dos netos... Para Hervieu-Léger (1993), a 
transmissão da memória coletiva define a modalidade através da qual o passado 
 
85 No original : (...). c’est créer non une filiation mais une affiliation. ». 
86 O que me faz lembrar a piada do náufrago judeu que, após dez anos desaparecido, é encontrado 
numa ilha deserta por um navio. O capitão encanta-se com as suas estratégias de sobrevivência, 
que incluíam a construção de uma casa, a confecção de redes de pesca e arpões e, para sua 
surpresa, duas sinagogas. “Duas sinagogas?”, pergunta o capitão, “Para que construir duas 
sinagogas se você está sozinho na ilha?”. “Muito simples”, responde o náufrago. “Uma é onde eu 
vou, na outra eu nunca colocarei os meus pés!” 
132 
 
convoca a comunidade a encarar o presente e o futuro, através de um conjunto de 
representações e práticas do grupo. Então ao realizar os encontros, comemorar as 
festas, fazer o Shabat, os avós estão apontando uma direção a seguir, aberta às 
mudanças e passível de oscilações. 
 
Isac: (...). Eu aprendi na minha vida que educar é dar exemplo. Não adianta 
dizer não fuma se eu continuo a fumar. Não adianta eu dizer não tenha 
amantes, se eu tenho. Não adianta eu ser bandido e careta, cheque sem 
fundo, se eu sou assim. Não adianta. Então é aquela história. Eu recebi, ela 
recebeu.Menos até. Mas sua mãe também fazia. 
Lea: O quê? 
Isac: Festas, jantares. 
Lea: Sempre fez. 
Isac: Não de religiosidade. 
Gizele: Não, de cultura. 
Isac: Tradition. Tradição. Minha mãe e meu pai que eu estava dizendo, 
faziam. 
Lea: E isso os três [os filhos] fazem. 
Isac: Os três fazem. 
 
Nicky: (...). Sobre a questão do judaísmo, sei que família, o conceito de família 
é muito importante para ela, eu acho que ela tem que conhecer o que é família 
para nós. E família para nós é a marca judaica. 
 
Gizele: (...) a Lilian, é criada como judia ou sem religião? 
Dinah: Na casa dos meus filhos não existe religião. (...). Agora, elas têm 
consciência da religião do pai. E tem orgulho. Eu vou te contar um caso. A 
Helena, ela está estudando naquela escola [cita uma escola católica 
tradicional] (...). Aí ela pedia os símbolos para mostrar em turma, no maior 
orgulho. A única judia e que tinha em casa. Um dia cheguei em casa: vó, me 
empresta o candelabro, vó, me empresta a Torah, eu emprestava, ne. E ela 
levava em sala e se achava a maior, ne(rindo) 
Gizele: Mas ela se considera judia (a Helena, neta adotada)? 
Dinah: Não. Os meus filhos não se consideram 
Gizele: A senhora considera ela judia? Também não? 
Dinah: Não. 
Gizele: Não. A Lilian também não? 
Dinah: Não. 
Gizele: A Ana também não? 
Dinah: Não. Quando elas eram pequenas, os meus filhos até levavam elas 
no kol nidrei87, mas agora não levam mais 
 
A força do judaísmo, atrelado ao conceito de família e de convivência, 
explicitada pelos avós, seja em suas famílias de origem, seja nas famílias de hoje, de 
certa forma me surpreenderam pela sua intensidade e constância. Acredito que isto 
me aconteceu porque eu, desde o início, me pretendia uma pesquisadora de famílias, 
não uma pesquisadora de famílias judias, apesar da restrição do campo. Eu pretendia 
alcançar com a pesquisa sentidos comuns, para além da minha comunidade, que 
atingissem este campo de estudos do qual me sinto parte. E também porque, de 
 
87 Reza da primeira noite do Dia do Perdão. 
133 
 
alguma forma, não acredito que haja tantas diferenças entre as famílias judias e 
muitas outras, mas sim peculiaridades, muitas. 
 
A implicação do pesquisador, por sua vez, é um dos mais valiosos 
dispositivos de trabalho no campo, pois é a partir de sua subjetividade que 
fluxos irrompem, agenciamentos ganham expressão, sentidos são dados, e 
algo é produzido. (ROMAGNOLI, 2014, p.49) 
 
Acredito também que, neste quesito, meu pertencimento ocasiona certa 
invisibilidade das forças que me atravessam. Muitas vezes é mais fácil perceber aquilo 
que não é tão familiar. Na minha trajetória como judia, aprendi a valorizar o 
crescimento num lar judaico e a vivência nos espaços comunitários, através da escola, 
do movimento juvenil e da participação em congregação religiosa, sem me considerar 
religiosa. Teci uma vida, ligada à comunidade, às tradições e à cultura, sem me 
manter restrita ou circunscrita a ela, já que tenho inúmeras amizades e relações 
profissionais distantes deste meio. Mas, sem dúvida, sou, e me sinto, enredada pelo 
judaísmo. 
Assim, para os avós desta pesquisa, um dos aspectos fortes do ser família é a 
criação de um elo entre passado, presente e futuro, não com linearidade, mas com 
flexibilidade, como fluxo, onde, apesar das transformações, encontram-se 
possibilidade de confluências. O afeto que sentem pelos filhos e netos, a felicidade de 
ver a continuidade familiar, de perceber que alcançaram pontos de vida almejados, 
muda a perspectiva sobre a vida e transforma os possíveis obstáculos em novas 
posições. 
 
Na perspectiva genealógica a história não é constituída por uma sucessão de 
fatos cronológicos, que denotam progresso ou linearidade. A história é 
marcada por descontinuidades, caracterizadas por mudanças e 
transformações dos saberes e das práticas ali articulados. (ZAMBENEDETTI; 
SILVA, 2011, p.456). 
 
Ao enfatizar a importância do passado, os avós apontam que é possível 
construir uma gênese familiar também com os netos por adoção, onde a 
descontinuidade sanguínea não implica uma ruptura, mas cria um novo diagrama de 
forças. A transmissão de uma memória familiar “(...) não está em oposição a um 
reconhecimento da história da criança antes da sua chegada em sua nova família”. 
(NIZARD, 2004, p.128)88. 
 
88 No original : « (...) n’etre pas en opposition avec une reconnaissance de l’histoire de l’enfant avant 
son arrivée au sein de sa nouvelle famille. ». 
134 
 
As tradições familiares e culturais oferecem, no meu entender, uma conexão, 
uma possibilidade de passagem, onde não somente os netos por adoção, mas todos 
os familiares podem se vincular ou reafirmar seu pertencimento; que também 
contemplam atalhos, retornos, bifurcações, novas conexões. “O judaísmo não é 
apenas uma questão de compromisso individual. Por mais pessoal que possa ser o 
envolvimento pessoal de alguém, o judaísmo sempre provoca uma ligação com o 
passado e com as gerações futuras.” (YISRAEL, 1994, p.90). 
 
Pais adotivos não rompem com a crença ocidental de que o vínculo biológico 
é elemento constituinte dos laços de filiação, do contrário, a maioria deles não 
se empenharia tanto em imitar a biologia. Mas a vivência da adoção e o 
amadurecimento acerca das experiências vividas os levam a enfatizar outras 
formas de vinculação que propiciam o fortalecimento de solidariedades 
duradouras inerentes à família. A união, o amor, a amizade, a disponibilidade 
afetiva de uns para com os outros, o apoio, a intimidade, a proximidade, o 
estar junto nos momentos de dificuldade são o que fazem um lar e uma 
família. (VIEIRA, 2004b, p. 154). 
 
4.2 Religião, cultura e povo 
 
Uma das ideias semente desta pesquisa era saber se os avós consideravam 
seus netos por adoção judeus, porque considero-a fundamental para acionar a 
possível tensão provocada pela ausência de “sangue judeu”; e, assim, melhor 
compreender a tessitura desses novos laços. É uma questão que articula o 
cruzamento familiar e social, mas que também procura saber se há fios nesta trama 
familiar que possuem maior força: Os avós destacam alguns fios? Algumas conexões 
são mais fortes? Onde ancoram os argumentos? Eles flutuam? São plurais? 
Na minha trajetória pessoal, nunca questionei a condição de judeus dos meus 
filhos biológicos, o que demonstra que também carrego uma valorização da 
transmissão por laços de sangue - um tipo de filiação que é incontestável em nossa 
sociedade, considerada como natural. Embora eu não esteja, como família, somente 
atrelada a este aspecto, mas, especialmente, à convivência e à construção dos afetos, 
sua valorização me atravessa fortemente. E, diferente de um filho por adoção, que 
possui uma história, em parte distinta, a dos meus filhos biológicos se confunde com 
a minha desde sempre, o que justifica, parcialmente, o meu não questionamento. 
É preciso ressaltar que o fato de eu considerar e criar meus filhos como judeus 
certamente não impede que eles tenham um futuro religioso/cultural diferente, como 
135 
 
a sobrinha de Debora ao abraçar outra religião, o neto de Vicente e Luna, o filho de 
Rebeca, os filhos de Dinah ao se afastarem do judaísmo. 
 
Gizele: A senhora alguma vez pensou que a Maria não era judia? 
Sarah: Não, de jeito nenhum. Acho que a educação ne? O papel da gente 
(...). Acho que a parte educacional que é a mais importante, ne? 
Gizele: Que torna a pessoa? 
Sarah: Que torna a pessoa de um círculo, de um círculo familiar, né? Acho 
que é a educação. Ela foi educada dentro da comunidade judaica. 
 
Gizele: Não tem problema. Como você vê assim: eles são judeus? Como 
você considera o judaísmo deles? 
Miriam: Completamente. É impressionante porque eles vieram sem nada. 
Não sabe o que que era Jesus, não sabiam o que que era catolicismo, nada. 
Porque lá não havia religião. O que haviaé, de noite, Deus, me proteja, tinha 
uma reza, que até eles esqueceram, muito bonitinha, que até escutei uma 
vez eles, antes de dormir, falando, mas não era, nunca foram a igreja, 
sinagoga, nada. E a primeira vez que nós fomos para ambas, isso até me 
chamou atenção. Fomos para aquela sinagoga, primeira sinagoga em 
Pernambuco, e saímos de lá fomos conhecer porque eu adoro arte, essas 
coisas. Quando saímos da igreja, Noé falou: “poxa, que diferença!”, e olha 
que ele estava conosco dois meses, “eu sou judeu e notei que na sinagoga 
não tem uma imagem, não tem estatua, não tem nada. E os católicos está 
cheio de estátuas, e tem um homem que está sofrendo e sangrando e não 
sei o que.”. Tinha dois meses conosco. 
 
A maior parte dos avós mostrou certa surpresa diante do meu questionamento 
da condição de judeus de seus netos por adoção, como se não houvesse dúvida sobre 
isso, ou como se não tivessem nunca se interrogado sobre este aspecto. Alguns 
tiveram respostas rápidas que, quando tensionadas, era preciso buscar as 
justificativas embutidas, não tão fáceis de acionar. Outros demonstraram precisar de 
um tempo maior para refletir. Portanto, não era algo que sabiam, mas que sentiam a 
respeito de seus netos. 
Apesar de certa hesitação, ou de não fazer muito sentido a minha pergunta, a 
maioria dos avós respondeu de forma afirmativa. E, foram em busca de respostas 
mais precisas para demonstrar a certeza de que seus netos eram judeus: são criados 
num lar judaico, numa família judia, que se reúnem nas festas, por vezes, fazem 
Shabat; e além disso, vários frequentam (ou frequentaram) as escolas judaicas e/ou 
os movimentos juvenis e/ou as sinagogas. Justamente assim como eu frequentei e 
frequento! E/ou porque tinham uma família judia, assim como meus filhos! 
 
Estamos, portanto, diante de duas concepções simultâneas de linhagem: 
uma linhagem genealógica que passa pela filiação como princípio biológico, 
136 
 
uma linhagem simbólica que passa pelo conhecimento, o estudo, o ensino e 
a transmissão das leis. (NIZARD, 2010) 89 
 
Com suas certezas, os avós apontam que não há dúvidas no que é considerado 
mais importante: os laços construídos pelos afetos, a convivência marcada pela 
transmissão de valores, o acesso ao patrimônio judaico. Um pertencimento à família, 
um pertencimento ao judaísmo. Nizard (2017) justamente comenta, em sua pesquisa, 
que os pais das crianças por adoção estão convencidos de que elas, ao se tornarem 
seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são parte de si, mesmo que este fato 
não seja reafirmado pela lei religiosa mais restrita. 
Com exceção de Sofia, neta de Nicholas e Agatha, todos os netos por adoção 
passaram pelas cerimonias religiosas, embora a maior parte dos avós desconhecesse 
as leis judaicas a respeito da adoção. O que estava em jogo, ao sentirem-se contentes 
(e realizados) que seus netos passaram pelos rituais judaicos, era o apoio aos filhos 
e a participação na formação de suas próprias famílias. E, consequentemente, receber 
o neto, inclui-lo nesse novo grupo, num novo registro, de uma nova história. Radcliffe-
Brown (2013) sugere que para se compreender uma religião, é preciso concentrar 
atenção maior nos ritos que nas crenças, pois eles são os elementos mais estáveis e 
duradouros. 
Na pesquisa de Nizard (2011a), a maioria dos pais por adoção segue os passos 
da conversão90 dos filhos, mesmo os que consideravam que não tinham muito de 
judaísmo para repassar, mas desejam ser reconhecidos, juntamente com seus filhos, 
como judeus. A conversão (NIZARD, 2004), que é originalmente um ato religioso, se 
torna uma forma de reforçar a adoção, ligando a criança a um passado e construindo 
uma segurança para seu futuro. 
 
Miriam: (...). Eles são de mãe judia, pela religião o fato de serem educados 
por uma mãe judia, estar num colégio judaico, praticar as tradições basta. 
Eles são judeus. (...). A gente frequentava todas as sinagogas sem... 
Gizele: Vocês nunca tiveram? 
Miriam: Uma linha? Não. Linha religiosidade, entendeu? (...). 
Gizele: Eles não fizeram cerimônia de dar o nome? Na sinagoga? 
Miriam: Não deu tempo, não deu tempo. E como já vieram com nomes em 
hebraico: Noé e Noah 
Gizele: É incrível isso (rindo). 
 
Gizele: Para a senhora ele é judeu? 
 
89 No original : « On est donc face à deux conceptions simultanées de la lignée : une lignée 
généalogique qui passe par la filiation comme principe biologique, une lignée symbolique qui passe 
par la connaissance, l’étude, l’enseignement, la transmission de la loi. » . 
90 Somente para frisar que, como exposto no capitulo1, a passagem pelos rituais, no caso de criança 
adotada, funciona como um ato de conversão. 
137 
 
Malka: É 
Gizele: Por que? 
Malka: Porque ele fez a circuncisão, ele fez o Barmitzva, eu enxergo ele como 
judeu. E enxergo ele com todo amor, com todo carinho, que ele foi criado com 
dois judeus. Ele compõe toda a família judia. 
Gizele: Para a senhora isso dá conta dele ser judeu? 
Malka: Para mim, olha, para mim, o convertido não é considerado judeu? Por 
que que ele não vai ser considerado judeu? Ele passou o Britmilah e passou 
um Barmitzva. 
 
Gizele: E o que a senhora pensa sobre a Carolina, assim, a Carolina é judia? 
Rebeca: (...) Olha, Gisela, uma coisa que me espanta muito, a Carolina (...) 
tem paixão pelo judaísmo. Ela conhece o judaísmo. Estudou história judaica. 
Ela fala com qualquer adulto que entenda. Ela sabe muito mais do que eu. 
Ela me dá aulas. Ela ama, ela ama ser judia. É uma coisa assim fora do 
comum. 
Gizele: E para a senhora ela é judia? 
Rebeca: É, para mim ela é. Você pergunta assim. O Marcio não é religioso. 
Mas ele sempre foi às datas que se comemoram, sempre levou a Carolina 
(...). Mas ela tem um judaísmo, uma coisa fora do comum. 
Gizele: Então para a senhora ela é judia porquê ... 
Rebeca: É. 
Gizele: Qual motivo que você me daria, assim? 
Rebeca: Não, Gisela, você sabe que para mim ela seria o que ela quisesse. 
Não tem essa coisa. 
Gizele: Então ela é judia porque ela quer, na sua cabeça? 
Rebeca: Totalmente porque ela quer. 
 
Gizele: E você considera o Hugo judeu? 
Luna: Olha, ainda não. Ele fez o Britmilah. Ela fez questão. 
Gizele: Aonde? 
Luna: Na casa dela. (...). 
Gizele: Mas teve algum apoio de alguma sinagoga? Alguma coisa? Não? 
Luna: Não, ela não dá a menor bola para isso, e nós também não. 
Gizele: Mas quis circuncisar? (Com certo riso irônico). 
Luna: Ah, sim, quis. (...) o Leandro ainda não tinha pensado em adotá-lo, 
então a decisão era só dela. 
Gizele: Era só dela; e ela queria circuncisar ele? 
Luna: É, queria. 
Gizele: Quer dizer ela queria, ela quer que ele seja judeu? 
Luna: Quer, quer (...) 
Gizele: E você disse para mim que ainda não é judeu? Por quê? 
Luna: Não, não sei, não porquê.... nunca tinha pensado nisso. (eu rio). 
 
A reticência de Luna indica, como ela mesma explica, nunca ter pensado ou se 
preocupado com o assunto. Não se trata de contradição ou incoerência, e sim de algo 
que fica embutido numa forma de ser família, que não requer muita explicação, apesar 
de Miriam, Malka e Rebeca levantarem pontos chaves: ter uma mãe judia, passar por 
uma determinada educação, frequentar espaços comunitários/religiosos, sentir 
orgulho, conhecer o judaísmo, e, mais do que tudo, querer ser parte. Manter tradições, 
que com suas festas, comidas, melodias – magia e alegria - unem as famílias – este 
sim o mais forte dos sentidos. 
 
138 
 
Luna: Para mim isto não é fundamental não, sinceramente. Meus pais nunca 
foram religiosos, nós íamos, casados já, a Iom kipur. Hoje em dia nem vou 
mais. Meus filhos fizeram Barmitzva e uma festinha, mas não, eu sempre fui 
contra aquela coisa uau. (...). 
Gizele: Seus filhos também não são ligados? 
Luna: Não, não são ligados, mas Pessach, Rosh Hashana e Chanuka tem 
sempre um almoço aqui, a gente sempre fala de alguma coisa, a gente faz 
um pequeno... 
Gizele:Vem todo mundo? 
Luna: Vem todo mundo. Até há pouco tempo, até algum tempo atrás, eu fazia 
quase todo sábado um almoço. (...). Eu sempre tive muito prazer nisso, mas 
as forças vão diminuindo. (...). 
Gizele: De vez em quando você faz? 
Luna: Ah, faço, de vez em quando faço. Agora mesmo teve a última vez, 
última não, a mais recente, além do Chanuka. (...). 
Gizele: Você considera eles judeus? (Eu incluo os outros netos também que 
não tem conexão com a vida judaica, segundo me relatou) 
Luna: Olha eu não sei, está muito acima disso. O que eu acho deles está 
muito acima disso. (...). Não é importante para mim. Eu me sinto judia e acho 
isso importante, mas não com rituais. Eu quero que eles sejam judeus na 
ética e no comportamento, acompanhem os avós, o avô. 
Gizele: Mas você disse que gosta dessas coisas das tradições. 
Luna: Eu gosto, eu gosto da tradição, da tradição. 
Gizele: Isso você gostaria que mantivesse na família? 
Luna: Gostaria, gostaria muito, mas eu não sei se vai continuar depois de 
mim não, mas eu quero deixar marcado na cabeça deles isso. É uma intenção 
mesmo. 
Gizele: O Hugo, então, você disse que não sabe ainda, vai depender da 
trajetória dele? 
Luna: Olha, eu não sei, eu acho que eu respondi muito precipitadamente, 
porque (rindo) ele chega da escola cantando aquelas músicas (eu rio), 
Chanuka e Pessach. 
 
Gizele: Vou voltar uma pergunta, que eu fiz para ela lá atrás, que é uma 
pergunta importante na minha pesquisa: você acha que o Hugo é judeu? 
Vicente: Com certeza. 
Luna: Que bonitinho! (Rindo) 
Vicente: Eita! Não tenho a menor dúvida! (rindo) 
Gizele: É? 
Vicente: Claro! 
Gizele: Por quê? 
Vicente: Primeiro porque ele está na escola ídiche, então ele sabe o que que 
é isso e tudo; e ele se considera judeu, esse que é o negócio todo. Dos meus 
netos, ele se considera judeu e só tem um que não se considera judeu. 
 
A complexidade do ser judeu – cultura, religião ou povo - também se reflete na 
vida das pessoas. Em tramas. E há algo forte que se encontra na esfera de um 
sentimento pessoal de pertencimento, muitas vezes, intraduzível em palavras, mesmo 
que haja boas justificativas. É um “sentir-se judeu!” Possivelmente seu sentido maior, 
para muitos de nós, está atrelado a experiencia do familiar, como bem disse Nicholas: 
“(...) família para nós é a marca judaica.”. 
As cerimônias religiosas funcionam como os encontros familiares, conectando 
o passado do povo, de seus próprios pais, avós ou bisavós, à família de hoje - mesmo 
139 
 
quando se percebe afastada do judaísmo como religião - fortalecendo os afetos, 
costurando os fios e celebrando a vida. 
Portanto, compreendo que, pelo olhar dos avós não são os rituais que tornam 
os netos judeus, mas por serem judeus devem passar pelos rituais. “Como toda 
cultura, o judaísmo ritualiza as etapas da vida.” (AZRIA, 2000, p. 89). Esta inversão, 
se podemos chamar assim, é uma potente pista para entender o que vem se 
configurando, nesta pesquisa, como uma família judia. 
Sophie Nizard (2011b) afirma que a entrada da criança na memória da família 
por adoção é um ponto fundamental. A família ao receber a criança tem desejo de 
incorporá-la a sua história e aos seus costumes. O que não me parece que é diferente 
do que acontece com um filho biológico, mas pode ser que a importância desse 
“mergulho” nas histórias91 e herança familiar ocorram de forma mais intensa. 
 
Quando os pais por adoção são judeus, as questões de integração ao seio 
da família são somadas à integração ao seio do grupo, do povo. A 
transmissão familiar se acompanha, então, de uma transmissão de uma 
memória judaica. Mas como transmitir essa memória que não é do seu meio 
biológico? Nomear, circuncisar, converter, recontar histórias da família, recitar 
os ritos de seu povo, fotografar e colocar em cena a imagem da família, 
reforçando na casa da criança e nas casas dos parentes o sentimento de 
pertencimento a uma família por adoção e ao povo judeu. (NIZARD, 2011a, 
p.83)92. 
 
A adesão aos rituais, de forma naturalizada, encarando-o como tradição e não 
necessariamente atos religiosos, como etapas da vida a serem cumpridas, não são 
exclusivos às famílias por adoção: são comuns em grande parte das famílias não 
praticantes da comunidade. São momentos que, por funcionarem como atos públicos, 
justificam e afirmam o pertencimento. 
 
Isac: Mas quando ele [o neto] saiu do hospital, Felipe foi para o Marcel [o 
rabino] e diz: “eu quero saber qual o nome eu dou em hebraico para ele” (...). 
Aí o Marcel veio e disse: “Esse menino veio de força e o Marcel deu um nome 
 
91 Aqui lembro-me de uma passagem de minha vida pessoal onde meu filho folheava um álbum com 
fotografias de um gato que tivemos, e choramingava de saudades, sendo que ele tinha apenas 6 
meses de idade quando o mesmo deixou nossa casa. Mas as histórias de como o gato reagiu 
enciumado à sua chegada à família faziam parte do enredo familiar. Entendo que ele sentia 
nostalgia por algo vivido e contado por seus pais, que fazia parte de sua história e já estava 
incorporado às suas lembranças. 
92 No original: “Quand le parents adoptifs sont juifs, les questions d’integration au sein de la famille se 
doublent de celle de l’integration au sein du groupe, du peuple. La transmition familiale s’acopagne 
alors de la trasnmission d’une memorie juive. Mais comment transmettre cette mémoire à um enfant 
qui n’est pas biologiquement le sien? Nommer, circoncire, convertir, raconter l’histoire de la famille, 
faire le récit de celle du peuple notamment à l’occasion des rites, photographier et mettre en scéne 
l’imagerie familiale. Renforcent, chez l’enfant comme chez des preches, le sentiment de son 
appartenance à la famille adoptive et au peuple juife.». 
140 
 
lá em hebraico”.93 (...) Marcel disse: “Vamos esperar. Deixa passar”. Aí 
marcou. Ele fez Britmilah. 
Gizele: Que lindo, ne? 
Isac: Fez, fez Britmilah. 
Lea: Deu nome. 
Isa: Piscina, mikve e foi na torah, e deu o nome. 
Lea: E deu o nome. 
Gizele: Vocês foram nesta cerimônia? 
Isac: Toda a família inteira. 
Lea: A família inteira. 
Isac: Ele faz parte da família. 
Lea: Ele faz parte. 
Gizele: Aproveitando, depois a gente continua, qual o significado para vocês 
do Carlos estar inserido na comunidade judaica, ter feito brit? 
Isac: Eu não sei. 
Gizele: O que significa para vocês? 
Isac: Só o futuro que vai dizer. Que que você quer? Casa judeu com judia, 
dois meses depois estão separados. 
Lea: E eu vou te dizer, Gizele, nós nunca falamos: Felipe, ele tem que ser 
judeu. 
Isac: Foi dele. 
Gizele: Mas quando o Felipe tomou essa decisão o que que significou para 
vocês? 
Lea: Nada, normal. 
Isac: Normal. 
Gizele: Se ele não decidisse? 
Isac: Se ele dissesse... 
Lea: Ia ficar a mesma coisa. 
 
Lea: Que ele levou o menino para fazer brtiz, levou para o mikva, deu nome 
Isac: A gente fica. 
Lea: Para a gente fica, que sabe que vai seguir 
Isac: Se vai seguir... 
Gizele: Mas para vocês foi importante? 
Isac: Não. 
Gizele: Não foi decisivo, mas foi importante? 
Isac: Se ele chegasse e dissesse não vou fazer nada. 
Lea: Eu ia aceitar numa boa. 
Isac: Porque a gente não tem esse vínculo. 
Lea: Eu não ia questionar. Nós não temos esse vínculo religioso. 
Gizele: Mas a Lea trabalha e frequenta a sinagoga! 
Isac: Não é sobre o ponto de vista religioso. É serviço comunitário. Trabalhar 
com a pessoa especial. 
 
Gizele: E para vocês o Carlos é judeu? A partir disso? 
Isac: É. 
Lea: É. Ele foi aceito pelo Felipe. 
Isac: O que que é ser judeu? 
Gizele: Eu que estou perguntando! 
 
Isac e Lea relatam que partiu de Felipe, o movimento e o desejo da inserção 
de seu filho na religião, assim que ele sai do hospital, após longo período internado. 
 
93 Neste momento cito alguns nomes para saber qual foi o escolhido, movida pela minha curiosidade. 
Acham que é um dos mencionados. Porem após ouvir a entrevista,Felipe me envia um e-mail 
retificando a informação: o nome do Carlos em hebraico é Chaim Ariel, onde Chaim é vida, Ariel, o 
forte leão de Judá, símbolo de deus e de força. A neta de Sarah tem um lindo nome – igual em 
português e hebraico - que remete justamente a ela ter vindo de outro local, mas que não foi 
explorado aqui para que o sigilo fosse mantido. 
141 
 
É possível que aqui, a rapidez do gesto possa estar atrelada a uma questão de fé, já 
que a criança passou por risco de vida. Lea e Isac contaram justamente, noutra 
passagem que, anos antes, começaram a frequentar uma sinagoga em busca de 
apoio espiritual e emocional perante uma grave doença do filho mais velho, Marcio, 
que marcou a família. Apoio que estavam recebendo, à época da entrevista, por conta 
da doença de Isac. Porem, Isac, faz questão de marcar que o vínculo não é religioso, 
e sim comunitário. 
Lea, por sua vez, explicita algo bastante interessante: o fato de Felipe tê-lo 
escolhido como filho é suficiente para que os avós não questionem, somente apoiem. 
Compreendo que, de alguma forma, todos os avós dizem, implícita ou explicitamente, 
sobre este ponto: a partir da decisão dos filhos pela adoção, o que importa é ver a 
realização de seus projetos de vida, de tornarem-se pais e/ou mães e formarem, 
felizes, suas próprias famílias. E, uma vez netos, preferencialmente, judeus. 
Continuidade. Pertencimento. 
 
Gizele: Debora, me diz uma coisa, no teu ponto de vista o Eduardo é judeu? 
Debora: Claro que é 
Gizele: Por que? O que que faz dele? 
Debora: Porque eu acho que ele foi criado nisso, quer dizer, eu acho, ne, a 
gente nunca sabe 
Gizele: Sim, para você, tua opinião 
Debora: Eu acho que ele foi criado disso, estudou em escola judaica. Não sei, 
eu sinto ele, mas 
Gizele: Você sente ele judeu? 
Debora: É 
Gizele: Ele se considera judeu também? 
Debora: Considera 
Gizele: Você se lembra se ele fez alguma coisa na época na sinagoga, 
alguma cerimônia? 
Debora: Não, ele fez Barmitzva 
Gizele: E pequeninho, fez circuncisão? 
Debora: Fez, fez 
Gizele: Deu o nome, provavelmente? 
Debora: Deu 
Gizele: Aonde? Lembra? Em que sinagoga foi isso? 
Debora: Não sei, você me fez uma boa pergunta. (...). 
Gizele: Mas para você ele é judeu porque ele frequentou a escola judaica 
Debora: Eu acho que ele se considera judeu 
Gizele: Você considera ele judeu? 
Debora: Eu, sim. Todos os meus netos. O Marcelo é casado com uma não 
judia, e o Tulio também 
Gizele: E elas se converteram? (Somos interrompidas pela empregada). 
Gizele: Você estava falando que suas noras não são judias, se converteram 
ou não? 
Debora: Não 
Gizele: E as crianças estão sendo criadas como judeus? Como não judeus? 
Debora: Olha filha, todos os feriados judaicos 
Gizele: Você faz? 
Debora: Eu faço, acho que sim, ne? 
142 
 
Gizele: Elas frequentam escolas judias? 
Debora: Não. Só o Eduardo. 
Gizele: Só o Eduardo. Interessante, ne? 
Debora: Só o Eduardo. 
Gizele: Mas você não sabe como o Marcelo encara, por exemplo, se as filhas 
são judias ou não 
Debora: Nunca perguntei. (...). Mas eu acho que elas se consideram. 
Gizele: Judias? As do Tulio também 
Debora: Eu acho que sim 
 
Para Debora, a transmissão do judaísmo pode ocorrer pela herança de seus 
filhos, pais dos netos, que não nasceram em “ventre judeu”, não frequentaram escolas 
judias, mas pertencem à família, participam das festas e reuniões em sua casa. Não 
são netos por adoção, mas como as mães não são judias, a situação guarda 
semelhanças e nos ajuda a perceber as tramas. Os encontros familiares, a identidade 
dos pais e, certamente, os afetos são elevados ao posto de engendramento. E ainda, 
ela deduz, sente, não é um assunto que ela comente ou discuta, também semelhante 
ao que, por vezes, ocorre com a adoção. 
 
Dinah: E as minhas noras [não judias] são muito inteligentes, são pessoas 
muito compreensivas. A mulher do Julio, o pessach é na casa dela que ela 
faz questão de fazer o pessach, como manda o figurino porque o Julio (...) 
sabe reger um pessach como meu pai fazia. E o Vitor não. Não sei se é por 
causa da profissão e tal. O Vitor é liberal, mas respeita. A mulher dele 
também. Na casa dos meus filhos não tem religião, nenhum dos dois. E te 
digo uma coisa, não por causa das minhas noras, por causa dos meus filhos. 
Meus filhos mesmo. 
 
Dinah não considera suas netas por adoção judias porque seus próprios filhos, 
pais delas, já não o são. Porém, em algumas passagens mostra o quanto de confuso 
e incoerente pode ser viver numa comunidade onde religião, cultura e tradição se 
atravessam. Ela diz que as netas sabem e sentem orgulho da religião dos pais. Qual 
seria se afirma que em suas casas não tem religião? E, ainda, acrescenta, 
orgulhosamente, que o filho, não mais judeu, faz um completo Seder94 de Pessach 
em sua casa, sinalizando o quanto essas fronteiras, já apresentadas, se misturam e 
dizem respeito à discussão sobre identidade judaica: o que é ser judeu? O que é se 
considerar judeu? O que é ser reconhecido como judeu? Por quem?95 
 
94 Seder, literalmente, ordem, diz respeito ao jantar festivo do Pessach, que possui uma grande 
liturgia com relato de histórias, músicas e pratos típicos. 
95 Segue uma piada para não perder o costume: 
Jacob pega o ônibus em São Paulo e vai visitar sua mãe no interior do estado. Quando o vê, a 
senhora dia: 
 - Fico muito feliz com sua visita, mas cadê seu livro de rezas? 
- Mamãe, na cidade grande não se anda com o livro. 
- Mas, e sua kipá (solidéu), meu filho? 
- Na cidade grande só se usa kipá na sinagoga. 
143 
 
Importante frisar que minha intenção nunca foi discutir os aspectos e as normas 
religiosas (por mais que me sentisse atraída nessa direção), mas sim compreender 
toda esta tessitura que a adoção torna mais proeminente. 
Guita foi a avó que teve uma posição bem diferente das demais. Ela não 
considera o neto, Gabriel, judeu, pois na sua percepção, ele não se identifica como 
tal. No entanto, ao falar da namorada do neto mais velho, Henry, diz que ela será a 
primeira goy96 da família. Assim, de alguma forma, não contabiliza a esposa do 
Gabriel, nem ele como não judeus. 
 
Gizele: E você acha que ele se considera judeu, o Gabriel? 
Guita: Não acho. 
Gizele: Você considera ele judeu, Guita? 
Guita: Também não. 
Gizele: Não? Por que? 
Guita: Porque ele nunca frequentou nada, nunca quis frequentar nada, 
diferente do Henry. (...). O Henry também nunca foi criado num ambiente 
judaico (...). Quer dizer e já aconteceu, embora ele esteja namorando uma 
garota evangélica, ele vir visitar os pais aqui no Rio, uma vez aconteceu, que 
ele queria ir na sinagoga. Quer dizer, eu considero ele apesar de estar com 
uma menina goy, ele tem alguma coisa com a gente, o Gabriel não. (...). 
Gizele: Você acha que ele [Gabriel] não se considera judeu? E a família 
também de alguma forma vê ele como não judeu? 
Guita: Não. A minha família não é assim muito ligada. Bom, claro que tem a 
Beatriz. mas o meu núcleo familiar tem alguma coisa de judaísmo, mas assim, 
os meus irmãos nunca tiveram nada a ver com religião, entendeu, nunca. Não 
sei dentro do nosso núcleo. 
Gizele: Se o Gabriel chegasse para você dissesse que é judeu, ne, que ele 
se considera judeu, em algum momento da vida isso acontecesse, você 
ficaria surpresa? 
Guita: Eu ia ficar surpresa e feliz. 
 
Compreendo que, como em Debora, o fato de Gabriel, a esposa e seu filho Saul 
serem próximos, estarem presente no cotidiano, participar do Shabat, nas festividades 
judaicas, embaralha e esfumaça essas fronteiras. A mãe de Saul não é judia, tem 
poucos familiares e vivem todos na casa de Beatriz e Roberto. Interessante que 
mesmo assim, é através dos encontros do Shabat, um ritual judaico, que a família se 
reúne e que os laços continuam a ser tecidos entre todos, indistintamente. 
Apesar da difícil adaptação de Gabriel na comunidade e a sua presumível não 
identificação,ele escolhe um nome judeu, de um antepassado de Guita, para seu filho, 
aceita que o mesmo seja circuncisado para agradar aos próprios pais, e o coloca numa 
 
- Está bem, Jacob, eu compreendo, novos tempos, não podemos ficar presos no passado; mas, me 
esclareça apenas uma última duvida de sua velha mãe: você ainda é circuncisado? - 
96 Não judeu. 
144 
 
creche da comunidade judaica – o que aponta novamente o quanto o cruzamento 
entre cultura, religião e povo é superposto e complexo. 
 
Gizele: O Saul foi circuncisado? 
Guita: Foi, pois é, ah, deixa eu contar. 
Gizele: (rindo) Tem uma contradição, um paradoxo? 
Guita: É, não é contradição. É uma coisa dos pais. A Beatriz é muito judia, 
ele também. Todos. Então eles falaram com o Gabriel, ele vai ser 
circuncisado, ele não se opôs. Então a gente foi, eu fui no consultório, (...). 
Ele fez uma cerimônia. Ele chamou o casal primeiro, explicou tudo da religião, 
e tal, como é que era. E depois nós entramos e ele fez a circuncisão, serviram 
bolo. Muito bonitinha. E a Beatriz, ligou para o [rabino] e pediu se ele poderia 
fazer, como se diz, torná-lo judeu, mas fazer alguma coisa para introduzir ele. 
Aí sabe o que o rabino fez? (...). aí o Gabriel não quis entrar na mikve, aí o 
próprio rabino entrou, tu acredita? Segurando o menino e fez o batizado. (...). 
Quer dizer, o garoto por enquanto é judeu (...). 
 
A insistência de Beatriz e Roberto na circuncisão do neto parece seguir os 
requisitos que tem sido apontado por outros avós: afeto, convivência, pertencimento, 
desejo de continuidade, importância do ser judeu. Difícil saber como eles pensam o 
judaísmo de Gabriel, e parece que não são, novamente, assuntos abordados em 
família, mas que Guita demonstrou especial interesse e confiança em compartilhar 
comigo. À mesa do Shabat é o momento em que eles se reúnem como família, 
frequentemente, como o fazem muitas outras - pela possibilidade do encontro, da 
costura familiar, dos fios que se trançam através do judaísmo. 
 
Nesses rituais de conversão, o lugar do corpo é central. Ele é que é 
ritualizado. Pelo corpo biológico que passam as inscrições materiais e 
simbólicas da criança dentro do corpo social, estabelecendo verdadeiros ritos 
de passagem de um status a outro. (NIZARD, 2004, p.126)97.98 
 
Gabriel vive numa família judia, frequentou a escola comunitária, passou pelos 
ritos, pertence a trama de afetos, mas não se sente judeu, o que aponta novamente 
para a dimensão pessoal envolvida neste engendramento. 
 
A transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes situa a família como 
o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e ao mesmo 
tempo o veículo da preservação dos valores familiares. Em torno dessa idéia 
de transmissão de valores está presente a noção de um tempo que se repete, 
de um tempo cíclico. (BARROS, 1989, p.36). 
 
 
97 No original: “ Dans ces rituels de conversion, la place du corps est centrale. C’ est lui qui est 
ritualisé, c’est par le corps biologique que passent les inscriptions matérielles et symboliques de 
l’enfant dans les corps scoial, instituant des véritables rites de passage d’un statut a l’autre. ». 
98 O tema do corpo como algo central nos ritos e tradições (RADCLIFFE-BROWN, 2013), como 
também da sua importância na gestão dos corpos (FOUCAULT, 2007), apesar de muito 
interessante, não será explorado neta tese. 
145 
 
Nicholas e Agatha são a família mais diferente quanto às circunstancias da 
adoção nesta pesquisa, já que a neta recém chegou, tem 13 anos e vinha recebendo 
uma formação cristã. Sua mãe já ofereceu para que ela continue sua vida religiosa 
numa igreja perto de casa, pois era parte importante de sua vida quando estava no 
abrigo. Os avós apoiam e compreende o valor deste pertencimento, mas não 
diminuem a relevância da transmissão judaica, entremeada na vida familiar, pois já 
estão criando estratégias com a intenção de que os valores judaicos possam ser por 
ela conhecidos e agregados. 
 
Nicky: (...). E essa família tem pessoas, tem tradição, então aquilo que ela 
conhece. Eu não imagino que ela vai adotar e fazer parte. E não me importo 
se ela é cristã ou judia, mas eu acho que ela tem que conhecer quem somos, 
para poder fazer parte. 
 
Nicky: Meu interesse é ela conhecer algo do judaísmo, é totalmente secular, 
e ligado à família. 
 
O desejo pela continuidade da religião e da cultura não se restringe a netos por 
adoção, nem a essas famílias. As mais diversas comunidades judias espalhadas pelo 
mundo sempre tiveram atenção a manutenção e a continuidade de suas tradições. 
Num livro com um interessante e significativo título “Teremos netos judeus?”, o rabino 
Jonathan Sacks (2002) aponta a preocupação que o número de crianças nascidas ou 
criadas como judeus na Inglaterra e nos EUA estejam diminuindo drasticamente. 
 
Conforme Falcke e Wagner (2005) 99, é possível identificar a força do legado 
familiar na transmissão de seus valores, crenças, normas e mitos de geração 
a geração nas mais diversas culturas. Esse processo baseia-se no 
pressuposto de que todo indivíduo se insere em uma história que já existe 
antes mesmo de ele nascer, à qual deve adaptar-se e corresponder. Por 
serem as relações familiares tão marcantes e influentes na vida do sujeito, 
elas acabam por representar a base do comportamento futuro sem que o 
sujeito se dê conta da força que ela supõe em suas escolhas e decisões. 
(STAUDT; WAGNER, 2008, p. 177). 
 
A presença e continuidade de uma vida judaica foi um dos critérios 
mencionados pelos avós para avaliar suas trajetórias e falar de seus legados. Eles, 
que já são avós ou bisavós - momento de vida que sugere uma avaliação – a 
qualificam através do que miram, não mais em seus caminhos, mas nos percursos 
realizados por seus filhos e netos. Bons projetos pessoais e profissionais, com valores 
humanos e judaicos, mostram aos avós que sua jornada foi fértil. 
 
99 FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. A dinâmica familiar e o fenômeno da transgeracionalidade: 
definição de conceitos. In: WAGNER, Adriana. (Org.). Como se perpetua a família? A transmissão 
dos modelos familiares. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. 
146 
 
 
Gizele: Qual o legado que a Sra. acha que está deixando? Que quer deixar 
para esses netos todos? 
Sarah: Olha, fico feliz deles terem continuado a religião judaica. Todos os três 
fazem Shabat. Ninguém é religioso. 
Gizele: As três famílias? 
Sarah: As três famílias fazem Shabat. Na casa de um, na casa de outro. O 
Marcelinho também faz questão de fazer lá. Eu gosto de ver. 
 
Lea: Eu posso dizer eu, nós, dever cumprido, entendeu? Três filhos 
maravilhosos, netos maravilhosos, bem-criados, honestos (...). Formaram 
famílias também maravilhosas. Então, o que que você quer mais na vida? 
(...). Eu hoje posso morrer feliz (...). Dever cumprido. 
 
Debora: Eu acho que o legado de gostar de trabalhar, de estar bem, eu acho 
que sim, ne? 
 
Para os “meus” avós da pesquisa, todos os laços familiares são trançados na 
convivência, no afeto e nos cuidados. Embalados e fortalecidos pelas tradições de 
nosso povo, nossos costumes e valores. Movimentos e ações do familiar - familiar 
verbo, que significa estar em família. “Consanguinidade e afinidade em geral tentam 
resumir os laços familiares, mas não esgotam a diversidade de composições que hoje 
habitam este campo.” (UZIEL, 2004, p. 29). 
Enfim, sentados à mesa, comendo beigales, bagunçando os sofás, contando 
piadas, ouvindo os silêncios, discutindo religião, mas, especialmente, sempre, 
tecendo fios de afeto. 
147 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Olhar o outro, olhar o entorno, olhar para si. Olhar o que se fez 
e deixou de fazer, as linhas e entrelinhas, o visto e não visto. 
Andrea Vieira Zanella 
 
Minha pesquisa com os avós judeus com netos por adoção teve a pretensãode alcançar alguns sentidos do ser-família, em nossa sociedade, neste tempo da 
contemporaneidade. A família é uma instituição em contínua mudança que, apesar de 
conhecer diferentes nuances, em cada época, mantem sua força e centralidade na 
vida social. 
A adoção é uma prática antiga que, como a família, em cada tempo e lugar 
assume diferentes desenhos, mas que tem alcançado, felizmente, maior presença nos 
mais diversos grupos. Credito estas mudanças, nas camadas médias, das quais trato 
aqui, ao trabalho das Varas de justiça responsáveis, bem como dos grupos de apoio, 
na fomentação de uma forte e presente cultura da adoção; mas especialmente às 
famílias homoparentais e monoparentais que, em busca da realização de tecer suas 
tramas familiares, fora dos modelos hegemônicos, têm derrubado os muros dos 
preconceitos e permitido visibilidade aos filhos por adoção. 
 
Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas 
associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, 
na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos 
desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. 
A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da 
indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, 
por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade 
social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas 
associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a 
subjetividade não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, 
quantidade social, potência psíquica e política. (PELBART, 2002). 
 
Diversos autores (ARIÈS, 1978; TARDUCCI, 2013) indicam que o que 
permanece bastante imutável é a centralidade das crianças nos processos de 
agrupamento social, sejam famílias ou não, ou mesmo quando as famílias passam 
por diferentes transformações, como nos divórcios ou recasamentos. 
 
Na noção de família moderna, o primado do afeto tornou a separação 
conjugal algo natural: quando termina o amor, termina a relação. O mesmo 
primado, expresso em teorias de psicologia infantil, decretou a 
irrevogabilidade da relação filial. (FONSECA, 2008, p.772). 
148 
 
No Brasil, há muitos anos, a discussão sobre adoção está enlaçada pela 
questão religiosa: seja pelos entendimentos divinos dos encontros entre pais/mães e 
filhos/filhas, seja pelos abrigos mantidos por instituições religiosas, das mais diversas 
religiões. 
Ao cruzar com o judaísmo, no entanto, a intensão não era promover uma 
discussão religiosa, mas sim acionar importantes forças que ora se entrelaçam, ora 
se superpõem: sangue, cultura, relações, herança, pertencimento, família, povo, 
identidade, comunidade, entre outros. O propósito era pensar como no cruzamento 
entre adoção, religião e família, os avós se deslocam, descolam ou recolocam os fios 
da trama familiar. 
Buscar o olhar dos avós pareceu bem interessante porque, além de afastados 
do processo decisório, são pessoas que já viveram a maior parte de suas vidas e, 
agora, encontram-se, ao menos nas camadas médias, em um momento em que não 
são mais os protagonistas, mas sim, coadjuvantes em diversas outras. Sem 
protagonismo, mas com demasiada importância, como visto neste estudo. 
Os avós mostram-se fundamentais na montagem da trama familiar – em 
determinados contextos e valores - porque são eles os responsáveis pelos 
reencontros familiares, à mesa, na continuidade das tradições, ou simplesmente, na 
costura dos afetos. Eles são os guardiões das memórias, desfiando os fios que vêm 
se entremeando desde seus próprios avós, bisavós, e, hoje, enlaçam netos e bisnetos. 
Exercer seu lugar é tarefa imprescindível. E, nesta pesquisa, apesar de em menor 
número, os avôs se mostraram tão comprometidos quando as avós na tarefa de 
manter as relações afetivas e as reuniões familiares, diferente da literatura do campo. 
Na maioria das famílias entrevistadas, a adoção foi alternativa à infertilidade, 
como é relatado na literatura. A possibilidade de ver o filho/filha alcançar seu projeto 
de parentalidade é o motivo que torna a adoção bem vista pelos avós. “O desejo por 
um filho biológico e o desejo de adoção não são, a priori, incompatíveis: eles se unem, 
de fato, no desejo de parentalidade, qualquer que seja o modo de acesso a essa 
parentalidade.” (NIZARD, 2009, p.61)100. Assim, constituir uma família com filhos é o 
valor, que fica acima da imposição ou desejo de gerá-los biologicamente. Ter netos é 
ter continuidade. Ter netos é dar continuidade. 
 
100 No original: «Le désir d’un enfant biologique et le désir d’adoption n’étant pas a priori 
incompatibles, ils se rejoignent en effet dans le désir de parentalité, quel que soit le mode 
d’accession à cette parentalité.» 
149 
 
 
A adoção se tornou, em alguns anos um modo "normalizado", no entanto, 
"normal" de acesso à parentalidade. Ela veio bagunçar as representações 
tradicionais da família, dissociando reprodução e filiação. Ela somente pode 
se desenvolver de forma duradoura em sociedades abertas à diversidade das 
origens, mas ela age mutuamente nesta abertura, fazendo e aceitando o 
distante como próximo. (NIZARD, 2009, p.60)101 
 
As marcas do segredo, tão enredadas no tema da adoção até recentemente, 
parecem ter finalmente desfeito o nó. As famílias entrevistadas variam no modo como 
lidam com a história dos netos anteriores à adoção, com um passado que também 
precisa ser incluído e valorizado, mesmo que seja ainda difícil para alguns avós, pois 
geralmente traz marcas de sofrimento, abandono e miséria. 
Há importantes transformações, especialmente percebidas nas famílias com 
laços por adoção realizados mais recentemente, que manejam essas singularidades 
incluindo-as nas vidas com maior facilidade e flexibilidade. O que fica evidenciado no 
aceite dos avós em participar da pesquisa, conhecendo o tema de antemão. 
As diferenças físicas, por vezes, bem marcadas, também têm sido definidas 
como parte da singularidade das famílias por adoção, e manejadas para não se 
tornarem um obstáculo na vida da criança, ao menos, nas famílias onde a adoção não 
é vivenciada pela aura do segredo ou do falso encobrimento. Mesmo que o 
enfrentamento das diferenças raciais possa ainda ocorrer na sociedade mais ampla. 
O afeto e a convivência são os principais fios presentes na tessitura de das 
tramas familiares das famílias pesquisadas, independentemente da natureza dos 
laços. E para atingir estas condições, as regras são viver e conviver. Estes sim, fios 
determinantes na costura que se realiza entre os familiares. 
 Quase a totalidade dos avós da pesquisa têm netos por laços de sangue, mas 
nenhuma diferença nas relações foi apontada sob este aspecto. Aliás, em muitos 
casos, são justamente os netos por adoção que mantém com os avós uma relação 
mais estreita, apegada e frequente. Porque se juntavam, ao menos dois aspectos 
importantes: ser neto e ser o menor, ser neto e ter sido o primeiro, ser neto e estar 
mais por perto, ser neto e precisar de apoio, ser neto e ser o caçula, ser neto com 
afinidades em comum, ser o único e esperado neto! Então, as condições de apego 
 
101 No original: “L’adoption est devenue en quelques années un mode certes « normalisé » mais « 
normal » d’accession à la parentalité. Elle vient bouleverser les représentations traditionnelles de la 
famille en dissociant procréation et filiation. Elle ne peut se développer durablement que dans des 
sociétés ouvertes sur la diversité des origines, mais elle agit réciproquement sur cette ouverture en 
faisant accepter le lointain comme proche.». 
150 
 
podem variar no tempo, na distância, mas, novamente, não estão atreladas à natureza 
dos laços. 
As conversas em torno dos temas família, adoção e religião tiveram, de forma 
mais marcante,um tom positivo por parte dos entrevistados. Mas, em seus relatos, 
eles também incluíram situações de tensões, conflitos, decepções e rupturas, que são 
presentes nos relacionamentos entre pessoas. Família é festa, mas não somente! 
Algumas falas dos avós soaram estanques e pré-estabelecidas, repetindo 
frases que habitam o senso comum e ideias simplistas sobre amor, ajuda, respeito. 
Mas pensando bem, são valores que produzem um ser-família, baseado em posturas 
éticas, citadas como um padrão que receberam de seus pais, transmitiram para os 
filhos e desejam perceber nos netos. como o conceito de família comentado no início 
da tese, simples porque complexo. 
 Assim, desde os antepassados dos avós, seus próprios pais e avós, o principal 
fio condutor são os afetos que circulam entre seus membros, tecidos na convivência, 
que mesmo não sendo diária, pois estamos falando de família extensa e camadas 
médias, em uma cidade grande, acontecem, e se renovam nos encontros familiares, 
muitas vezes. Encontros esses principalmente realizados na casa dos avós, onde há 
um terreno fértil para costurar toda essa emaranhada tessitura. 
E o judaísmo é um fio que adensa a experiência do viver e conviver. Ele se 
entremeia na costura por meio de uma herança que vem através dos anos, sendo 
cultivada, ampliada e transformada, mas que mantém a importância das histórias 
pessoais, das lembranças, dos costumes que dão fortes sensações de continuidade 
e pertencimento. 
Saber se os netos eram judeus pelo olhar dos avós, ou se eles mesmos se 
consideravam judeus, não era o mais importante, apesar de ter sido a pergunta 
semente da pesquisa. O importante, ficou claro desde as primeiras entrevistas, 
passou a ser observar a trama que se construía quando contavam as histórias de suas 
famílias, e que tinham no neto por adoção parte destacada pois sabiam que era um 
ponto que me interpelava. 
E assim, muitas vezes, as repostas foram simples e diretas. Outras vezes, 
saíram em busca de justificativas ou explicações mais concretas na tentativa de dar 
corpo ao que diziam, já que falavam de algo que sentiam, da experiência do viver e 
do cotidiano, dos afetos tramados. 
151 
 
A discussão deste tópico me mostrou que a importância da tradição judaica, e 
de sua manutenção, se por um lado não era determinante, por outro atravessava os 
afetos tecidos na convivência. Sua força parece dizer mais respeito à possibilidade de 
gerar encontro, comunhão e dar continuidade a um estilo de ser-família. 
O pertencimento ao judaísmo se promove de diferentes formas: pela educação, 
pelas práticas religiosas, pela inserção comunitária, ou simplesmente pela casa. Este 
debate também confirmou o complexo e intricado mundo da identidade judaica, onde 
religião e cultura, povo e família, se atravessam fortemente. A todo tempo, me senti 
atraída em discutir todo este conjunto que torna o ser judeu difícil e fascinante, mas 
tive que me conter em meus próprios devaneios. 
Os avós desejam, mas não impõem que seus netos por adoção sejam judeus, 
nem os outros, mas, tenho a impressão que, se for de sua escolha, preferem que 
todos os seus familiares sejam judeus! Porque valorizam o judaísmo, seus princípios, 
costumes e o pertencimento que ele provoca entre seus membros. Sem uma forma 
prescrita porque, como mostrado neste estudo, no judaísmo o que se tem, 
intensamente, é uma palheta de possibilidades. 
A restrição do campo empírico às famílias judias não estava no meu projeto 
inicial, apesar de o judaísmo sempre ter sido algo muito presente e importante em 
minha vida. Todavia, agora, faz todo o sentido que possa ser eu a encaminhar esta 
discussão no campo dos estudos de família. 
Também me apercebi, sempre, defendendo que a pesquisa não se tornasse 
somente sobre famílias judias. Sobre famílias judias, sim, mas não apenas, por 
entender que muitas das questões que surgiram são questões de família. Não 
universais, mas famílias de camadas médias, urbanas, com avós na faixa entre os 70-
90 anos. Um exercício constante de ajustar a lente, ampliar, focar, transgredir. 
No entanto, compreendo, agora, que foi fundamental ser parte, ter esta 
conexão com meus entrevistados para a construção de boas conversas e deliciosos 
encontros. Além de certa facilidade de constituir o campo, o mais importante foi a 
possibilidade de estar junto com eles, de falar de coisas em comum, com proximidade. 
De alcançar, com rapidez, um espaço de intimidade e cumplicidade, por não sermos 
estranhos – pertencemos à mesma família/comunidade. 
Ter circunscrito este universo empírico às famílias judias trouxe a necessidade 
de traduzir e expressar sentidos que já estão colados no meu cotidiano e na cultura 
que me envolve. Uma tentativa de explicar as práticas e as instituições, mas também 
152 
 
facilitar a imersão do leitor neste mundo de peculiaridades, piadas, quitutes e 
costumes diversos. Espero ter sido feliz nesta difícil tarefa! 
É possível supor que justamente por serem famílias que incorporaram bem a 
adoção, que mesmo com dificuldades que apareceram no passado ou que se 
constituem agora, as crianças foram bem recebidas; que entendem a adoção como 
forma possível de chegada da criança na família, foram elas que se dispuseram a falar 
comigo. Talvez as com vivencias negativas tivessem experiências muito diferentes 
dessas. O que não desvaloriza seus depoimentos, a meu ver, ao contrário, os torna 
pungentes e importantes. 
Relembrando as minhas inquietações iniciais sobre o respeito à criança e à 
legítima inclusão dela numa nova religião, acredito, agora, que seja um olhar de 
alguém que não vive esta experiência de forma direta e porta ideias e sentimentos 
contaminados pelos preconceitos das últimas décadas; pois não percebi qualquer 
desconforto ou preocupação das famílias entrevistadas nestes quesitos, estejam seus 
netos seguindo ou não o judaísmo. 
Minha grande preocupação com o sigilo e o resguardar das histórias narradas 
foram abrandadas conforme percebi, justamente, que os avós não se aquietaram com 
seus destinos e não vivem suas vidas sob o signo do segredo, medo ou preconceito. 
Tentei ser cuidadosa e respeitosa, dentro do limite que não prejudicasse a 
apresentação deste estudo. 
 Os laços por adoção foram o cerne das conversas, mas não seu limite. 
Abrangeram diversos outros personagens e histórias das famílias. Descobri muitas 
vidas em cada uma dessas. 
Importante salientar a responsabilidade que tenho eu, e outros agentes da 
esfera “psi”, para com a renovação deste tema, provocando uma virada de enfoque 
nos trabalhos acadêmicos, para que a adoção possa ser descrita, lida, compreendida 
e aceita pelo viés do afeto, cuidado, segurança, apoio, sem romantismo, mas de 
acordo com tantas experiências felizes e bem sucedidas – o que não descarta as 
dificuldades. Importante incrementar um olhar que desmistifique a experiência da 
adoção em seu cotidiano. 
E o que será que dar este testemunho, percorrer nossa conversa marcou os 
avós? Penso que servi de testemunha - alguém a quem desde fora é permitido olhar, 
admirar, e confirmar o que vivem em suas famílias. Muitos conheciam a mim, meus 
familiares e partes de minha história, que também tem caminhos que se bifurcaram, 
153 
 
com rupturas e obstáculos, como o divórcio de meus pais, em tempos ainda tão 
conservadores. Será que isto me tornou uma interlocutora mais confiável no sentido 
de saber que família é também buscar e percorrer novos e outros caminhos, nem 
sempre previstos ou desejados? Além de, claro, um carimbo de psicóloga em 
doutoramento, títulos bastante valorizados na comunidade. 
Sarti (2003, p.26, grifo da autora) sugere pensar a “família como uma “categoria 
nativa”, ou seja, de acordo com o sentido a ela atribuído por quem a vive, 
considerando-o como um ponto de vista.”. A proximidade entre os posicionamentos 
dos avós e das crianças entrevistadas na pesquisado Mestrado foi diversas vezes 
apontada: ambos se esforçaram para relacionar as forças socialmente vigentes com 
as que provêm de suas próprias experiências. Interessante pensar que, apesar da 
grande distância de idade entre essas gerações, parecem viver um mesmo tempo de 
movimento, de diversificação e de alargamento das fronteiras do que significa ser 
família. 
Mas, a despeito de ter encontrado, na pesquisa, uma ideia bem uniforme do 
que é ser família, elas são sempre verbo, ação, mudança. Não é possível, nem 
desejado, se restringir ou prescrever um modelo estanque, duro, que deve ser 
seguido, e sim valorizar e compreender o que é vivido por cada um em seu meio. Não 
há como totalizar esta experiência numa única e simples definição. 
Assim novamente compreendo que há muitas famílias na palavra família. Seria 
ótimo encontrar outro e novo termo para abranger toda a diversidade possível nesta 
experiência. Mas reconheço que esse é um desejo difícil, já que é uma noção muito 
arraigada na sociedade e na vida cotidiana. 
Então o que há dentro da palavra famílias para os avós judeus por adoção? 
Afeto, Aceitação, Cotidiano, Convivência Continuidade, Comunidade, Comida, 
Cultura, Encontro, Proximidade, Religião, Tradição, União, Valores. Parece muito, 
mas pode se resumir num cheiro gostoso, num som (re)conhecido, num gesto 
caloroso, num baú cheio de memorias, antigas, novas, vividas ou inventadas. 
A pesquisa me balançou em muitos sentidos: também me descobri uma 
pesquisadora que gosta e sabe conversar com pessoas de mais idade, algo com o 
qual não tinha familiaridade. Absorvi prazerosamente cada um dos momentos que 
estive com meus entrevistados. E acreditei em todas as verdades que preencheram 
nossas conversas, porque o importante era estar com eles, sentar em suas salas e 
ouvir o que queriam dizer. 
154 
 
A atmosfera do local, os móveis e as fotos tornaram-se parte da cartografia 
destas vidas, bem como os cheiros e os gostos, as lágrimas e os risos, as palavras e 
os silêncios, e especialmente os afetos que circularam entre nós. Os familiares, saídos 
das imagens e das falas, tornaram-se personagens vivos das histórias, preenchendo 
os cenários da vida. 
Provocou em mim uma importante transformação: encontrei famílias menos 
preconceituosas do que imaginara, e felizes em viver suas tramas. “(...) as marcas 
são os estados vividos em nosso corpo no encontro com outros corpos, a diferença 
que nos arranca de nós mesmos e nos torna outro.” (ROLNIK, 1993, p.5). 
Escrever é uma parte difícil porque parece nunca atingir a gama de sensações, 
de experiências, de (des)caminhos que se percorreu. Ainda mais que havia tanto a 
ser dito e contado: cada frase abrangia tantas minúcias que montar o fluxo dos 
capítulos pareceu, muitas vezes, um difícil quebra-cabeça onde uma peça pode ser 
encaixada em diversos outros lugares. Uma trama com múltiplos fios, emaranhada, 
porque diversa, divertida, dura, duradoura. 
Os diários foram parte fundamental deste caminho, além de colocar neles toda 
a experiencia e as nuances, me permitiram também criar um atalho de volta a cada 
um desses encontros. Eu me sentia de novo diante sentada naqueles sofás, ouvindo 
aquelas vozes, usufruindo das lições de vida e da circulação de afetos. Mas eles, os 
diários, aprendi: não são estanques e sempre que os relia, os reescrevia, como aqui, 
até o último momento - peças vivas, portais, que quase por magia permitem o acesso 
a um fluxo contínuo de afetos e pensamentos. Um encontro que nunca fecha, que 
sempre acontece novamente e permite novos olhares e outras escutas. Um recontar 
de muitas e infinitas histórias. 
Escrever também parece que só termina porque há prazos a cumprir: cada 
leitura provoca novas miradas, percebe-se novas brechas e algumas derrapadas. Me 
sinto em dívida porque, certamente, há muito mais a ser dito e articulado. Muito ainda 
a descobrir. 
O tema das lembranças que estão sempre presentes nos testemunhos orais, 
que produzem um significativo tipo de verdade, também me aconteceu: recordações 
que foram rompendo, aos poucos: meu avô adotivo, os biscoitos de minha avó, seu 
nome, a sala da casa deles e as famílias (re)conhecidas por adoção. Eu também tive 
minha vida e memórias abaladas a todo instante. (Re)ouvi também minhas próprias 
histórias. 
155 
 
 
Toda narrativa articula alguns elementos, como: quem narra, o quê narra, por 
que narra, como narra, para quem narra, quando narra... (...). Toda narrativa, 
no entanto, possui uma dose, maior ou menor, de criação, invenção, 
fabulação, isto é: uma dose de ficção. (...) Memória e imaginação não se 
opõem, como quer o senso comum; antes completam-se, pois possuem a 
mesma origem, natureza, poderes. (AMADO, 1995, p.133-134) 
 
Por fim, ou por agora, sobre o cruzamento da pesquisa com minha vida pessoal, 
em algum momento, numa palestra, no meio deste caminho, descobri que, no Brasil, 
o Dia Nacional da Adoção ocorre justamente no meu aniversário, 25 de maio. Destino? 
Mistério? Piada pronta? Quem sabe? Me considero uma pessoa cética, mas não pude 
deixar de me assombrar com alguns detalhes vividos pelo caminho. 
Termino aqui, sem totalizar as experiências, mantendo os desafios que o 
estudo somente adensou, já que famílias são sempre verbo, ação, mudança. E assim, 
aqui, reafirmo que para os avós desta pesquisa que vivem a experiência de adoção 
em suas vidas, os laços familiares são tecidos na convivência e no afeto, embalados 
e intensificados pelas tradições de suas famílias, seus costumes e, principalmente, 
seus valores. Le Chaim! Um brinde à vida e à sua continuidade! 
 
 
156 
 
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