Buscar

MODULO 3 ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL; CLIENTELA E FREGUESIA

Prévia do material em texto

1 ESTABELECIMENTO
A empresa é conceito jurídico que expressa a ideia de atuação econômica organizada. Opõe-se, via de consequência, à ideia de trabalho desestruturado, assistemático. Dessa forma, não é a produção em si de riquezas que permite compreendê-la; um jurista que, em sua biblioteca, trabalha na confecção de um parecer, pelo qual será remunerado, não é uma empresa; o garimpeiro que, sozinho com sua bateia, recolhe preciosos diamantes, vendendo-os por valores altíssimos, não atua empresarialmente. Fica claro, portanto, que não é a produção e circulação onerosa de bens ou a prestação de serviços que dá a caracterização da empresa, embora seja um dos seus elementos componentes. Na empresa, essa produção, circulação ou prestação se conformam numa arquitetura maior, definida em termos conceituais (perspectiva estática) e práticos (perspectiva dinâmica), que é o empreendimento não eventual, desenvolvido para que sejam auferidas vantagens pecuniárias (ou traduzíveis em pecúnia), a bem de seu titular: o empresário ou a sociedade empresária, ainda que, nesta última hipótese, esteja implícita a ideia da distribuição das vantagens, a título de lucro, entre sócios ou acionistas.
Essa compreensão do instituto permite, por certo, análises diversas, compostas a partir de ângulos diversos. Pode-se encará-la pelos resultados: a consideração do lucro, em sua qualidade de remuneração do capital investido, dos valores com expressividade econômica que foram alocados com a finalidade específica de se multiplicarem, de produzirem mais pecúnia. Igualmente, pode-se focá-la pelo ângulo dos procedimentos, do complexo de atos humanos, ainda que com o auxílio de instrumentos mecânicos ou eletrônicos, que se envolvem, direta ou indiretamente, na concretização do objeto econômico. Pode-se encará-la por sua escrituração, o que será feito à frente, ou por outros ângulos, alguns certamente inusitados.
Pensando a empresa como organismo, com partes com funções específicas, estruturadas e voltadas para a consecução otimizada do objetivo empresarial (individual ou social), afirmam-se valores de ordem diversa, muitos dos quais passíveis de individualização física (coisas – res –, bens materiais) e/ou jurídica (bens imateriais, ou seja, direitos patrimoniais com expressão pecuniária, passíveis de negociação). Sob esse ângulo, a empresa é considerada por sua apresentação objetiva e não pela atuação de seu titular (apresentação subjetiva); como visto, pode-se, por tal prisma, conceituar a empresa como coletividade de bens jurídicos, enfeixados e organizados para a concretização do objetivo empresarial. Essa coletividade de bens, esse patrimônio especificado para os fins empresariais, seja por uma secção escritural no patrimônio da pessoa natural (o empresário individual) ou dotada como capital social da pessoa jurídica (sociedade empresária), deve-se estruturar de forma a garantir o estabelecimento físico (material e social) da empresa.
Coloca-se, assim, o conceito de estabelecimento empresarial: segundo o artigo 1.142 do Código Civil, o estabelecimento é o complexo organizado de bens, estruturado para o exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária. Sob tal ângulo específico, a empresa é enfocada como realidade tangível, concreta: trata-se de uma composição de bens; há bens materiais (res, coisas), a exemplo dos imóveis de uso (ou imóveis de utilização, empregados diretamente na atividade empresarial), coisas móveis do ativo permanente, isto é, não destinadas à negociação, como bens de equipamento ou de serviço, ou coisas (imóveis ou móveis) destinadas à negociação, escrituradas no ativo circulante; há, ademais, bens imateriais, a exemplo das marcas e das patentes, escrituradas, também, no ativo permanente da empresa, destinando-se diretamente à consecução de suas atividades.
O estabelecimento é, portanto, uma universitas bonorum e uma universitas iuris, na forma como antevista pelos artigos 90 e 91 do Código Civil, vale dizer, como “pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária”, e como “complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”. Tais disposições se harmonizam com o artigo 1.143 do mesmo Código Civil, inscrito no âmbito específico do livro destinado ao Direito de Empresa, segundo o qual o estabelecimento pode ser objeto unitário de direitos, bem como de negócios jurídicos, sejam eles translativos ou constitutivos, desde que sejam compatíveis com sua natureza. Como universalidade de fato, isto é, conjunto de bens singulares que têm destinação unitária, admite-se, a teor do artigo 90, parágrafo único, do Código Civil, o estabelecimento de relações jurídicas próprias, tomando um ou mais bens por sua singularidade. Pode-se, por exemplo, hipotecar um imóvel, mesmo de uso, ou empenhar determinada máquina ou certo conjunto maquinário, a marca ou uma patente. Mas pode haver, simultaneamente, a negociação da universitas iuris em si, ou seja, de seu estabelecimento, da coletividade dos bens que se enfeixam na empresa.
2 INDIVIDUALIZAÇÃO DO ESTABELECIMENTO
Embora seja o estabelecimento empresarial um patrimônio especificado, empregado para a consecução da atividade empresarial, ele não se confunde com o patrimônio do empresário ou da sociedade empresária. Em primeiro lugar, pois o empresário, pessoa natural, pode ter bens que não constem do patrimônio especificado da empresa. Em segundo lugar, pois o empresário, no âmbito do patrimônio especificado, e mesmo a sociedade empresária podem ter bens que não constem deste complexo organizado para o exercício da empresa, a exemplo dos bens que estejam no ativo como investimento; basta recordar que no balanço patrimonial uma das rubricas do ativo permanente é, justamente, investimentos, sendo nela anotados, segundo o artigo 179, III, da Lei 6.404/76, ações ou quotas de outras sociedades e direitos de qualquer natureza, não classificáveis no ativo circulante e que não se destinem à manutenção da atividade da empresa: imóveis (incluindo os destinados a aluguel), móveis e direitos (a exemplo de marcas e patentes) que não sejam empregados na atividade empresarial. São parte do patrimônio do empresário ou sociedade empresária, constam de seu ativo, mas não compõem seu estabelecimento, isto é, não compõem o complexo organizado de bens para o exercício da empresa.
Como se não bastasse, o patrimônio empresarial que é empregado no exercício da atividade pode estar dividido em diversos estabelecimentos. A unidade jurídica de cada um desses estabelecimentos, afirmados como subdivisão do estabelecimento global da empresa (o artigo 140, I, da Lei 11.101/05, que regula a falência e a recuperação judicial ou extrajudicial da empresa, fala em estabelecimentos em bloco) pode ser afirmada por dois ângulos e, destarte, fixar-se em dois planos diversos. Num primeiro plano, afirmar-se como unidades de fato, ou seja, cada estabelecimento define-se como situação de fato, sem que haja uma correspondente expressão formal. Mas pode afirmar-se, igualmente, como unidade formal, afirmada a partir de elementos como número de inscrição em cadastro de contribuintes (a exemplo da inscrição estadual dos contribuintes do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS) e/ou referência escritural própria, que, ademais, pode dar qualificação aos diversos elementos do patrimônio empresarial, além de registrar a movimentação pecuniária que está subjacente ao desenvolvimento das atividades empresariais. Melhor seria que a cada estabelecimento correspondesse uma escrituração autônoma, individualizada, dando uma dimensão mais específica à ideia de entidade na escrituração contábil, sem prejuízo da adoção de escriturações conjuntas das unidades maiores, como a escrituração de um conjunto específico de estabelecimentos interdependentes ou, em plano maior, a escrituração geral de todos os estabelecimentos (mesmo distintos, como lojas, depósitos etc.) de uma sociedade empresarial. A lei permite a adoção de uma só contabilidade, na matriz,para todos os estabelecimentos; ainda assim, a cada qual corresponde uma unidade escritural, a exigir, por exemplo, a contabilização da transferência de mercadorias entre os estabelecimentos. Foi esse o elemento central da discussão travada no Recurso Especial 12.681/DF. A Corte reconheceu ser correta a tese da empresa de não haver incidência de ICMS na simples transferência de mercadorias do estabelecimento matriz para um estabelecimento secundário (filial), mas considerou que a escrituração faltou para permitir um julgamento favorável do recurso, pois impunha-se à empresa demonstrar tal simples transferência, “mediante a apresentação da competente escritura contábil”. A empresa argumentou adotar contabilidade centralizada na matriz, não havendo livro diário na filial; o acórdão reconheceu a legitimidade da contabilidade centralizada, mas insistiu que a simples transferência, por ter-se operado entre estabelecimentos, deveria ter sido contabilizada e que tais lançamentos deveriam ter sido apresentados ao juízo.
No entanto, a ideia de complexo organizado de bens para o exercício da empresa, presente no artigo 1.142 do Código Civil como qualificadora do estabelecimento, permite sejam focados diferentes conjuntos no âmbito da totalidade dos bens pertencentes ao empresário ou sociedade empresário, enfoques esses, aliás, que foram aproveitados pelo artigo 140 da Lei 11.101/05, que permite a realização dos ativos: (1) a empresa, tomada por seus estabelecimentos em bloco ou (2) a empresa, tomada por suas filiais ou unidades produtivas isoladas; mesmo (3) blocos de bens que compõem um estabelecimento podem ser agrupados no interesse da massa. Com efeito, a importância da escrituração para a especialização patrimonial do estabelecimento – e, via de consequência – da empresa, fica extremamente clara quando se contempla a figura do empresário individual. Em fato, mesmo com o registro de uma firma empresarial, não se estabelece uma dualidade de personalidades jurídicas: há apenas uma pessoa, a pessoa natural do empresário. É certo que, para fins tributários, concede-se um registro à empresa no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ); essa concessão, contudo, se faz pela extensão excepcional do regime fiscal das pessoas jurídicas para a empresa titularizada pela pessoa natural, garantindo, assim, que uma tributação diferenciada impedisse condições iguais para concorrência no exercício da mercancia. Essa extensão de regime, todavia, não traduz personificação da empresa, a traduzir duplicidade de personalidades (e de pessoas): há uma única pessoa, o empresário, pessoa natural. E a essa pessoa natural corresponde, por óbvio, um patrimônio jurídico (conjunto de seus direitos, faculdades, e deveres, obrigações). Nesse universo de direitos e deveres que é o patrimônio da pessoa jurídica, a contabilidade empresarial garante a unidade e a especialização do patrimônio para a empresa. Assim, é possível destacar – de fato e de direito – o estabelecimento do restante do patrimônio, para os fins do artigo 1.143 do Código Civil, embora esse destaque não caracterize uma separação estanque, no molde da limitação de responsabilidade entre sócios ou acionistas e a sociedade, como se vê nas sociedades anônimas, sociedades limitadas e, para alguns, nas sociedades em comandita, simples ou por ações.
Essa realidade não é privilégio dos empresários (pessoas naturais); alcança igualmente as sociedades empresárias (pessoas jurídicas), nas quais, igualmente, não há uma identificação entre o patrimônio da sociedade e o estabelecimento, em sua qualidade de patrimônio especificado. A sociedade empresária pode ter, fora da atividade empresarial desempenhada (e do estabelecimento ou estabelecimentos que a concretizam), bens de crédito (escriturados no ativo permanente): bens materiais – móveis e imóveis – e imateriais (a incluir patentes, marcas, ações de outras sociedades), cujo objetivo seja a produção de renda, não compondo, portanto, o estabelecimento (o fundo de comércio ou aviamento). A sociedade pode ser titular, ainda, de bens meramente patrimoniais, não empregados na atividade empresarial (e não compondo o estabelecimento que lhe corresponde), mas tomando parte no ativo imobilizado da sociedade empresária, ou mesmo em seu ativo realizável, como títulos a receber que não sejam fruto da atividade empresária. É nitidamente o que se passa, por exemplo, com o chamado ativo morto, por bens (coisas e direitos) que não estejam envolvidos na atividade empresarial – na produção de lucros –, como um terreno que se comprou e se conserva sem utilização.
Note-se que o conceito de estabelecimento dá margem a uma dicotomia em seu emprego, uma vez que é possível utilizá-lo para referir-se à totalidade da estrutura física, conceitual e humana da empresa, a incluir unidades autônomas (filiais, sucursais e agências), da mesma forma como é possível usá-lo para aludir a uma unidade em especial, destacada da totalidade da empresa e de seu respectivo estabelecimento. É o que se passa com o estabelecimento secundário, por exemplo. Coerentemente, é possível estabelecer negócios que considerem o estabelecimento nos dois níveis: em sua totalidade ou por uma de suas partes autônomas, sempre tomando por referência a identificação escritural.
Aliás, a escrituração própria, especializada, permite a distinção de estabelecimentos diversos, independentes ou não entre si, que sejam titularizados pela mesma pessoa, natural (empresário) ou jurídica (sociedade empresária), podendo, inclusive, ser objeto de relações jurídicas próprias, seguindo a lógica do artigo 1.143 do Código Civil. Imagine-se um empreendedor ou capitalista que queira desenvolver diversas iniciativas para a obtenção de vantagens econômicas (pecuniárias). Ele pode simplesmente unir-se a outrem (uma ou mais pessoas, naturais ou jurídicas) e constituir uma sociedade empresária para cada uma dessas atividades; teremos pessoas diferentes, empresas diferentes e estabelecimentos diferentes. Para transferir o negócio, pode vender o estabelecimento, conservando sua posição na sociedade, ou transferir suas quotas ou ações e, assim, o controle da sociedade. É muito comum, como também o é uma única pessoa que, multiplicando seus esforços numa mesma atividade, constitui vários estabelecimentos secundários que, de forma uniforme, exercem a mercancia sobre um mesmo título; é o que se passa com a Lojas Americanas S/A (sociedade empresarial) e seus vários estabelecimentos intitulados Lojas Americanas.
Mas importa observar a possibilidade de um mesmo empresário ou sociedade empresária manter estabelecimentos distintos, independentes (até o limite da própria contabilidade do titular, empresário ou sociedade empresarial, em que toda a contabilidade obrigatoriamente se unificará), cada qual compreendido como coletividade de bens, cuja unidade e especificidade são garantidas por uma escrituração individualizada, por meio de livros auxiliares, um para cada estabelecimento. Imagine-se, para exemplificar, uma sociedade denominada Antônio Francisco Lisboa Engenharia e Comércio Ltda., que desempenhe suas atividades em setores diversos e para públicos diversos: Construtora Barroco, Depósito de Materiais Vila Rica, Loja de Artes do Aleijadinho, Profeta Projetos Arquitetônicos. Obviamente, poder-se-ia criar uma sociedade empresária para cada uma dessas atividades; mas é juridicamente possível que todas essas atividades sejam desempenhadas pela mesma pessoa jurídica (a mesma sociedade empresarial), cada qual constituindo um estabelecimento empresarial com contabilidade e patrimônio individualizado. Sob o ponto de vista fiscal, para além de um mesmo CNPJ, ou seja, número no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, pode-se ter estabelecimentos com inscrição estadual, pois suas atividades são tributadas pelo ICMS (Depósito de Materiais Vila Rica e Loja de Artes do Aleijadinho), estabelecimentos com inscrição municipal, pois suas atividades são tributadas pelo ISS (Profeta Projetos Arquitetônicos) e estabelecimentos que cumuleminscrição estadual e municipal, por serem variadas suas atividades, podendo ser tributadas pelo ICMS ou pelo ISS. A distinção de estabelecimento, com contabilidade própria, é, em muitas oportunidades, uma solução particularmente interessante para gozar de benefícios fiscais de regime especial, distinguindo, numa mesma atividade, aquelas que sejam tributadas em situação mais vantajosa.
3 OBJETIVAÇÃO JURÍDICA DO ESTABELECIMENTO
A possibilidade jurídica de se compreender o estabelecimento como objeto unitário de direitos e deveres, tal como anotada no artigo 1.143 do Código Civil, permite a constituição de relações jurídicas que digam respeito à totalidade, compreendida como unidade e não como mera coletividade. Dessa forma, o estabelecimento, abstraindo-se a pluralidade de elementos materiais e imateriais, pode ser objeto de relações jurídicas próprias, o que permite apreender-lhe a excelência do conjunto. Pode-se, portanto, alienar o estabelecimento e, com isso, alienar todos os bens que o componham, sem a necessidade de os especificar; pode-se, igualmente, locá-lo ou ceder o seu uso gratuito. Aceitam-se negócios jurídicos translativos ou constitutivos; translativos são os negócios cujo efeito é a transferência, a transmissão de um direito, implicando uma sucessão subjetiva; há sucessão jurídica sempre que se tem a manutenção de uma relação jurídica, embora se verifique uma alteração entre os respectivos titulares (sucessão subjetiva), ou mesmo substituição do objeto do Direito (sucessão real, ou seja, sucessão da coisa). É o que se passa, por exemplo, na morte do empresário com um único sucessor hereditário que, inscrevendo-se como empresário na Junta Comercial, recebe o estabelecimento; se não se inscreve, ou transfere o estabelecimento para outrem (empresário ou sociedade empresária) ou liquida a empresa, recebendo os bens resultantes da apuração de haveres, se resulta em saldo positivo (ou seja, se sobram créditos).
O Código Civil também se refere a negócios constitutivos, referindo-se àqueles que constituem uma relação jurídica na qual o estabelecimento é o objeto; é o que se passa no penhor de estabelecimento empresarial, sendo constituído um vínculo real entre a sua titularidade e uma obrigação cujo adimplemento passa a ser por ele garantida. Também é negócio constitutivo a dotação do estabelecimento para a consecução de uma das atividades listadas no artigo 62 e parágrafo único, instituindo-se uma fundação, ou seja, personificando o patrimônio (ato que se completa com o registro, conforme previsão anotada no artigo 45 do Código Civil); uma sociedade empresarial dedicada, por exemplo, à educação ou à prestação de serviços de assistência médica pode destinar o estabelecimento para a constituição de uma fundação educacional ou de assistência médica, respectivamente; com a dotação, obviamente, perder-se-á a possibilidade de apropriação de lucros, passando o estabelecimento a gerir-se pela lógica das fundações. O limite para a celebração de negócios, translativos ou constitutivos, que tenham o estabelecimento por objeto é a lei e, especificamente, a compatibilidade do negócio com a natureza jurídica do estabelecimento.
Nada impede que a negociação do estabelecimento (por sua totalidade ou determinada unidade autônoma), ou de estabelecimentos (mais de uma unidade autônoma, mas não a totalidade do patrimônio do empresário ou da sociedade empresária), se faça considerando-se a universalidade de fato e de Direito, para dela destacar um ou outro elemento. A negociação é extremamente comum: uma empresa, titular de uma rede de lojas (estabelecimentos com autonomia escritural), negocia certo número de estabelecimentos com outra sociedade empresária, mas sem transferir o título do estabelecimento ou a marca, operando o adquirente com seu próprio título e/ou marca.
Foi assim que, em 2016, o Banco Citibank S/A decidiu alienar suas operações de varejo e cartões no Brasil, Argentina e Colômbia. Só no Brasil, os ativos da companhia totalizavam, em 2015, R$ 76 bilhões, segundo dados do Banco Central. A oferta foi aberta: o banco divulgou seu interesse de desfazer-se dos ativos e permitiu aos interessados formularem ofertas como preferissem, indicando quais ativos pretendiam adquirir, valor e forma de pagamento.
4 AVIAMENTO
Há mais no conceito e na realidade do estabelecimento do que um mero ajuntamento de bens e, destarte, uma especialização de patrimônio. Não se pode jamais olvidar que a reunião e a organização desse complexo de bens se faz a bem do exercício da empresa. Essa finalidade empresária marca inexoravelmente o estabelecimento, ou seja, marca o complexo organizado de bens, da mesma forma que marca a sociedade empresária, bem como a condição de empresário. Daí a tradição clássica, constituída fora do âmbito do Código Civil de 2002, de se referir a um fundo de comércio, do qual não fariam parte apenas elementos patrimoniais, tangíveis ou intangíveis, ou seja, materiais (móveis e imóveis) e imaterias (direitos pessoais com expressividade patrimonial econômica, como as patentes), mas igualmente elementos não patrimoniais, como a clientela. A teoria da empresa resolve o problema de forma diversa, todavia. A empresa é, por si só, essa reunião de um aspecto estático (patrimonial) e de um aspecto dinâmico: o conjunto das atividades empresárias e o valor que o mercado lhes dá. Por isso, não se pode considerar o estabelecimento empresarial sem atentar-se para a atividade empresária e, assim, somando ao complexo organizado de bens a ideia e a prática de empresa. Trata-se de um plus, um algo mais: sua estrutura, sua lógica (e logística), seu funcionamento adequado: o jeito como as coisas são feitas na empresa. Há, portanto, o reconhecimento de que a organização – as características dinâmicas dos bens especializados para a empresa – pode definir um sobrevalor (e, mesmo, um subvalor, em alguns casos), fruto da agregação de elementos humanos, conceituais ou comportamentais; a percepção desse plus ou minor, esse algo a mais ou algo a menos, levou à consideração de seu valor jurídico e, destarte, à determinação de uma proteção jurídica correspondente: mais do que o agrupamento estático dos bens singulares, é preciso considerar a empresa, que constitui uma unidade própria, com a respectiva identidade: é, a seu modo, um objeto de direito.
É, indubitavelmente, o engenho humano (pensamento e ato) que marca a especialidade do estabelecimento. Isso pode ser proporcionado por um ser humano, um grupo no universo da organização ou, mesmo, por todos os que a compõem; uma química que justifica os estudos das ciências da administração de empresas, buscando compreender – e ensinar – como se empregam recursos materiais, conceituais e humanos a bem do sucesso na atividade empresarial. Entregue as mesmas condições materiais para vários empreendedores e verá algumas empresas vingarem, outras não; entre as que vingarem, uma ou outra será um sucesso. As expressões fundo de comércio e estabelecimento, infelizmente, não traduzem adequadamente essa importante dimensão humana da empresa, compreendida como um certo jeito de fazer; não expressam a arquitetura e engenharia dos elementos materiais, conceituais e comportamentais necessários para o sucesso. Em fato, a quantificação patrimonial do estabelecimento (ou do fundo de comércio), ou seja, o inventário, pode simplesmente não conseguir captar esse plus empresarial, esse sobrevalor percebido pelo mercado. Não é raro assistir-se a aquisições empresárias nas quais o valor pago pelo estabelecimento e/ou pela atividade negocial supera, e muito, o seu valor meramente patrimonial.
Melhor, creio, é o conceito de aviamento (avviamento); aviar é fazer, concretizar, concluir. Os elementos materiais (bens imóveis e móveis) e conceituais (bens imateriais: direitos pessoais com expressividade patrimonial econômica, a exemplo da marca) e os recursos humanos, aviados para o bem fazer, para o sucesso empresarial. Igualmente eloquente é a ideia goodwill of trade (benefício – ou vantagem – de mercado).O mercado tem enraizado em si, principalmente nesses tempos de economia mais dinâmica, a ideia e a prática do estabelecimento, mesmo quando não se faz uso do conceito técnico. Muitos, que pretendem atuar em determinadas áreas da economia, não optam por montar uma empresa; preferem simplesmente se aproveitar dos benefícios do que está estabelecido, vale dizer, adquirir o estabelecimento de outrem. Tais elementos, por certo, justificam uma proteção legal que se dá não apenas ao estabelecimento, mas também ao estabelecimento considerado como parte da empresa e como ambiente da empresa. Há um valor econômico que transcende o valor dos bens, não sendo lícito reduzi-lo, em benefício do devedor, ao simples valor dos bens. O Direito percebeu a importância da preservação jurídica dessa dimensão maior do complexo organizado de bens, atendendo não só a interesses do empresário ou sociedade empresária, mas também do mercado, preservando os valores maiores que qualificam, por disposição constitucional, a ordem econômica e financeira nacional.
Por ocasião do Recurso Especial 704.726/RS, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça examinou uma ação de desapropriação movida pela União, autorizada pela Lei 7.315/85 e determinada pelo Decreto 91.290/85, tendo por objeto a totalidade das ações das empresas SUL BRASILEIRO S.A. – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) – e SUL BRASILEIRO – Crédito, Financiamento e Investimentos S.A. (CFI). Os acionistas da sociedade empresária insurgiram-se contra o valor indenizatório, argumentando que em seu cálculo deveriam ser incluídos os aspectos intangíveis da empresa, entendimento que foi reconhecido pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região, em acórdão assentado sobre as seguintes premissas: (a) o justo preço é aquele suficiente para habilitar o expropriado a adquirir outro bem equivalente ao que lhe foi retirado; (b) no cálculo da indenização devem ser computados o valor dos bens incorpóreos e o aviamento do estabelecimento comercial; (c) os juros compensatórios são de 12% (doze por cento) e incidem a partir do desapossamento; (d) os juros moratórios incidem sobre todas as parcelas, a partir do trânsito em julgado. Em face da interposição de embargos declaratórios, o Tribunal sulista esclareceu que, como o elemento fundamental na desapropriação é a contrapartida, consubstanciada na justa indenização, não têm valia disposições que pretendam minimizar ou excluir o valor da indenização; dessa forma, o fundo de comércio compõe o valor da indenização. O Superior Tribunal de Justiça não discordou: “(1) A jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido de incluir na indenização de empresa expropriada o valor do fundo de comércio. (2) O fundo de comércio é considerado patrimônio incorpóreo, sendo composto de bens como nome comercial, ponto comercial e aviamento, entendendo-se como tal a aptidão que tem a empresa de produzir lucros. (3) A empresa que esteja temporariamente paralisada ou com problemas fiscais, tal como intervenção estatal, não está despida do seu patrimônio incorpóreo, o qual oscila de valor, a depender do estágio de sua credibilidade no mercado. Situação devidamente sopesada pelo Tribunal de origem que adotou o arbitramento feito pelo perito, estimando o fundo de comércio em 1/3 (um terço) do patrimônio líquido ajustado a 31/05/1985.” Note-se que o precedente toma por base o Código Comercial de 1850, que adotara a Teoria do Ato de Comércio, de origem francesa, referindo-se a fundo de comércio (fonds de commerce); no âmbito da Teoria da Empresa, de origem italiana e chancelada pelo Código Civil de 2002, melhor será falar em empresa: o valor da empresa, que é o somatório do estabelecimento (aspecto estático) e do aviamento empresarial (aspecto dinâmico).
4.1Expressão isolada do aviamento ou benefício de mercado
Olhando por um ângulo, o aviamento não é um bem jurídico em sentido estrito, ou seja, nos moldes dos artigos 79 a 103 do Código Civil: não é uma coisa (res), nem é um direito pessoal com expressividade econômica, passível de compor o patrimônio econômico de uma pessoa, sendo transferível ao patrimônio de outrem. Somente nos termos dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil – sem excluir outros – pode-se afirmar tratar-se de um bem, mas no sentido de valor juridicamente protegido, a exemplo da honra, dignidade etc. O aviamento é uma qualidade do estabelecimento, dos bens materiais e imateriais que compõem o patrimônio econômico – e não o patrimônio moral – da empresa (empresário ou sociedade empresária): um jeito, um modo, uma cultura, uma habilidade. “O goodwill não é separável do negócio todo e, consequentemente, não é um ativo como caixa, bancos, clientes etc. Em outras palavras, o goodwill não pode ser vendido sem que ocorra a venda do negócio.”
O fato de não poder ser destacado permite afirmar – e com razão – que o aviamento não é individualizável; ele se afere na empresa, no seu modo de fazer as coisas, na sua boa capacidade de produzir lucros. Se o patrimônio empresarial for separado em partes, não se encontrará o aviamento; o aviamento é a vida, ou, ainda melhor: a alma da empresa, não sobrevivendo ao seu fim. Dividir a empresa é dela perder o aviamento, da mesma forma que o esquartejamento do corpo implica a perda da vida (ou da alma).
O mercado, porém, rapidamente assimilou a ideia e a prática do aviamento, deixando claro haver uma grande diferença entre o valor do patrimônio líquido de uma empresa e o valor da empresa em si, como visto há pouco. Essa diferença não seria fruto de uma percepção de que o patrimônio líquido escriturado estaria sub ou sobrevalorizado – o que também pode ocorrer, como fruto do mau gerenciamento da escrituração, como na falta de lançamento das depreciações do ativo permanente. A diferença entre o valor da empresa e o valor de seu patrimônio líquido seria fruto da percepção de as possibilidades de lucro serem ali melhores ou piores. Aliás, não apenas a percepção positiva do aviamento, como do aviamento negativo, ou seja, a percepção de que a empresa em si vale menos do que o seu patrimônio líquido, que é inábil para produzir os resultados positivos que dela se esperam.
 Como se só não bastasse, rapidamente surgiu a necessidade de dar tratamento contábil ao tema, principalmente para justificar a existência de ágio ou deságio nas transações com empresas, com justificativas, respectivamente, de existência de aviamento positivo (alta capacidade ou potencialidade para gerar lucros) ou aviamento negativo (baixa capacidade ou potencialidade para gerar lucros). Isso levou à busca de métodos para mensurar o aviamento (goodwill of trade): método Lawrence R. Dicksee, método New York, método de Hatfield, método do valor atual dos superlucros, método de custo de reposição ou custo corrente, método do valor econômico, método do valor de realização.
4.2 Outros tratamentos isolados do aviamento
A importância humana no estabelecimento merece ser destacada, já que surgem questões interessantes na jurisprudência, a exigir um tratamento renovado do tema. Entre elas deve-se listar a possibilidade de individualização jurídica do aviamento ou benefício do mercado, no âmbito de relações contratuais. No exame do Conflito de Competência 30.087-SP, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça tomou conhecimento de uma ação que fora proposta na Justiça comum, “na qual se busca o recebimento da verba denominada goodwill e participação nos resultados de uma empresa no mesmo exercício de sua aquisição pela ré, [...] em virtude da participação do autor nas tratativas que antecederam à assinatura do contrato e na condição de continuidade das atividades da empresa adquirida no mercado”. A empresa ré, em sua contestação, arguiu tratar-se de “verbas prescritas de natureza trabalhista, vinculadas à relação que o autor,” que seria diretor da empresa adquirida, mantinha com ela.
O Ministro Aldir Passarinho Junior, relator do conflito de competência, destacou, logo de início, relatar a inicial que, com a transferência da empresa, ajustou-se“a permanência dos seus principais colaboradores, de modo a assegurar a continuidade das atividades da empresa no mercado”. Fixou-se o goodwill (benefício) em US$ 1.500.000, com pagamento vinculado à permanência de sete executivos, um dos quais o autor, ao qual caberia US$ 360.000, mais participação nos resultados da empresa no ano de 1992. Ajuizaram a ação sob o argumento de que o benefício contratado não foi pago. A partir dessa base fática (quaestio facti), o Ministro Aldir Passarinho Junior percebeu que o fundamento da ação era a identificação do aviamento, da vantagem [empresarial] de mercado, com a atuação daqueles sete executivos. Assim, essa vantagem, que seria própria do titular da empresa, “teria sido, segundo se deduz do relato posto na inicial, aparentemente – e aparentemente porque a alegação é apenas do autor – repassada diretamente aos executivos da empresa alienada, para que, continuando a prestar seus serviços à nova dona, dela recebessem aquela verba individualizadamente”.
Por via contratual, vê-se, o núcleo humano do estabelecimento (aquela arquitetura e engenharia que fazem a empresa funcionar de determinado jeito) teria sido transferido, no todo ou em parte, para um grupo de executivos. Não seriam, portanto, remunerados por seu trabalho, mas fariam jus ao pagamento pelas vantagens organizacionais do estabelecimento, destacadas, ao menos em parte, dos bens empresariais (coisas e direitos patrimoniais com expressividade econômica). Completou o Ministro Aldir Passarinho Junior: “Tenho, que, efetivamente, com relação a tal pedido de goodwill, não se cuida de direito trabalhista, por ser oriundo, se for ele existente, de uma relação de direito comercial, constituída ainda antes da vinculação do autor à empresa adquirente, embora condicionada à sua permanência na empresa adquirida após a venda à nova proprietária. Ademais, a natureza da verba é distinta, posto que constitui-se, do aviamento, elemento incorpóreo, materializado, simplesmente, na integração e continuidade de colaboração dos executivos com experiência já adquirida na empresa adquirida. Essa espécie de ‘capital’, de natureza pessoal, reflete, é certo, no exercício da atividade, mas foi, na hipótese, determinado antes, quando da transferência para a empresa ré, de sorte que, uma vez individualizado preteritamente a qualquer vínculo obreiro, e por ser um dos elementos destacados do antigo fundo de comércio vendido, a apreciação judicial compete à Justiça comum estadual.”
Note-se que, quanto ao pedido de participação nos resultados da empresa, entendeu o magistrado que “o fato de o empregado receber por lucros obtidos no resultado de uma empresa não desnatura o contrato de trabalho, como se depreende do disposto no art. 63, da Consolidação das Leis do Trabalho. [...] O autor era empregado da empresa adquirida e assim continuou até o seu desligamento e no Termo de Rescisão do contrato de trabalho constou ressalva quanto ainda ter direito a ‘participação nos resultados operacionais do exercício de 1992, após a apuração formal dos mesmos e consequente da decisão da sua distribuição por parte da Diretoria do Grupo Controlador da Empresa’. Tenho que, no particular, a verba é de natureza trabalhista, como resultante, já aí, do desempenho profissional na empresa sob subordinação jurídica da empregadora no período após a sua passagem ao novo controle. [...] Em conclusão, no tocante ao pedido de goodwill, ele é estranho ao contrato de trabalho, porém com referência à participação nos resultados de 1992, cuida-se de pretensão de natureza obreira”.
5 TRESPASSE
Chama-se de trespasse a transferência onerosa do estabelecimento empresarial. Como estabelecimento empresarial é um complexo de bens ao qual se atribui certa organização, é variável o objeto da cessão (trespasse). Nos casos mais simples, é a loja: a livraria, o restaurante, o supermercado. Mas pode haver o trespasse de várias unidades, enfeixadas numa só; por exemplo, uma instituição financeira estrangeira que deixa de atuar no Brasil pode trespassar toda a sua operação (agências, postos de atendimento bancário, centrais de compensação etc.) para outra instituição financeira. Uma sociedade que explora diversas atividades negociais pode abandonar uma delas, trespassando os estabelecimentos por ela responsáveis; ilustro: uma indústria de alimentos, que não se interesse mais pelo setor de atomatados (extrato de tomate, molho, ketchup etc.), pode trespassar as unidades responsáveis para uma outra sociedade. A dinamicidade do mercado demanda atenção do jurista para qualificar cada situação, certo que alguns desafiam uma compreensão clássica do conceito. É o que se passa com a prática de ceder a carteira de clientes (contratos de trato sucessivo) em sociedades nas quais as instalações físicas tenham menos importância, a exemplo de planos de saúde e afins.
Se o estabelecimento é transferido, há sucessão subjetiva, vale dizer, sucessão de sujeito: o estabelecimento passará a ter um novo titular. Em fato, caracteriza-se sucessão jurídica sempre que haja: (1) a existência de uma relação jurídica; (2) uma alteração em um dos polos subjetivos (a substituição de uma pessoa por outra, em qualquer dos polos da relação) ou, na sucessão real, de um objeto por outro, que ocupe o seu lugar e função na respectiva relação jurídica; (3) a permanência da relação jurídica, não obstante a alteração experimentada; e (4) a existência de um vínculo de causalidade entre as situações anterior e posterior à sucessão, permitindo certificar-se de que se trata da mesma relação jurídica. Note-se que, na relação de titularidade do estabelecimento, o polo ativo é ocupado pelo empresário ou sociedade empresarial, sendo o polo passivo ocupado pelo restante da sociedade, tratando-se de relação jurídica válida erga omnes.
A dinamicidade jurídica das atividades empresariais recomenda redobrado cuidado com a sucessão de direitos e deveres, bem como com a constituição de relações jurídicas (mormente ônus) sobre o estabelecimento, sempre com a preocupação de preservar o interesse de eventuais credores, entre os quais se podem listar, exemplificativamente, titulares de créditos acidentários, de créditos trabalhistas, o Estado, por créditos fiscais e parafiscais, fornecedores, instituições financeiras com as quais tenham sido estabelecidas relações creditícias (mútuo), consumidores – pelos direitos decorrentes de relações contratuais, a exemplo da garantia de manutenção concedida, além de ilícitos contratuais –, bem como terceiros, eventualmente titulares do direito à reparação de perdas e danos por ilícitos extracontratuais. Com essa preocupação, o artigo 1.144 do Código Civil exigiu que o contrato cujo objeto seja a alienação, a constituição de usufruto ou mesmo o arrendamento do estabelecimento só produza efeitos em relação aos terceiros após terem sido levados a registro, sendo averbado à margem da inscrição do empresário ou sociedade empresarial (a permitir certificação do ato pela Junta Comercial), devendo, ademais, ser publicado na imprensa oficial.
O registro e a publicação não são, porém, pressupostos de validade do ato ou negócio jurídico, mas de eficácia perante terceiros, tendo sido tecnicamente cuidadoso o legislador quando usou a locução só produzirá efeitos quanto a terceiros após registro e publicação na imprensa. Mesmo sem o registro e/ou a publicação, o ato ou negócio é plenamente válido, vinculando as partes, desde que atenda aos requisitos legais para a sua constituição. O ato ineficaz é aquele que não tem atributos para produzir os efeitos jurídicos que dele se esperam; a distinção está na origem, pois um ato pode ser válido, mas ineficaz, ou seja, pode ter sido constituído segundo as normas jurídicas, atendendo aos requisitos genéricos fixados para a sua constituição válida, mas não se prestar para os fins para os quais foi concretizado. No caso, criaram-se requisitos específicos para a produção de direitos junto a terceiros, o que não afetará a validade do ato, mas implicará a faculdade jurídica dedesconsiderar a sucessão ou o direito constituído. Entre as partes, no entanto, o negócio é válido e eficaz, mesmo diante da iniciativa de um terceiro, que pretenda não se submeter aos seus efeitos diante da previsão do artigo 1.144 do Código Civil, salvo estipulação em contrário.
Duas são as razões específicas da estipulação: (1a) proteção às relações jurídicas anteriores à transferência do estabelecimento ou constituição do ônus sobre o estabelecimento; (2a) proteção às relações jurídicas posteriores à transferência do estabelecimento ou constituição do ônus sobre o estabelecimento. No segundo caso, de mais fácil compreensão, protege-se aquele que se supõe estar negociando com uma pessoa, ou ter sua relação garantida pelo patrimônio de uma certa pessoa (natural ou jurídica), mas, na verdade, ou está negociando com outra pessoa (sucessor do estabelecimento), ou negocia tendo contra si uma diminuição da segurança jurídica do adimplemento, em face do ônus constituído tanto sobre o patrimônio empresarial, como constituído sobre o estabelecimento. Preserva-se, nessa hipótese, a boa-fé nas relações jurídicas, razão pela qual a sua aplicação às relações jurídicas que sejam celebradas após a transferência do estabelecimento ou constituição de ônus sobre o direito ao estabelecimento pressupõe desconhecimento do ato jurídico, não se aplicando àqueles que, por outros meios, saibam do ato translativo ou constitutivo. Para tal hipótese, a ineficácia da transferência se traduz tanto no (a) direito de desconsiderar a transferência, podendo exigir que a obrigação seja satisfeita pelo sucessor ou pelo sucedido, embora o negócio, estabelecido após a sucessão, tenha por principal obrigado o sucessor. Também expressa-se no (b) direito de satisfazer o seu crédito na integridade do estabelecimento (do patrimônio especificado), já que o ônus, mesmo tendo sido constituído antes do novo vínculo jurídico, não fora tornado público e, destarte, não produz efeitos em relação aos terceiros. De outra face, a disposição tem por fim a proteção daqueles que titularizem direitos contra o empresário ou sociedade empresária, fruto de relações anteriores à transferência ou constituição do ônus, como crédito, direito de preferência etc., podendo opor-se à transferência ou constituição de direito, a partir da respectiva publicização do ato. De qualquer sorte, sem interesse jurídico em concreto, a norma não pode ser aproveitada a qualquer um.
O estabelecimento empresarial é garantia genérica, não especializada, das obrigações assumidas, ex voluntate ou ex legibus, no desempenho das atividades empresariais. Se com aquele que transfere o estabelecimento não restam bens suficientes para solver o seu passivo, ou seja, para atender às obrigações empresariais, a alienação só será considerada plenamente eficaz se todos os credores forem pagos, ou se consentirem na transferência. Fica claro, portanto, haver uma afirmação legal de que o estabelecimento desempenha o papel de garante genérico das obrigações empresariais, expressando princípio que poderia ser extraído do conjunto normativo, como princípio, independentemente da positivação. Mesmo transferido ao patrimônio de outrem (o sucessor), o estabelecimento mantém-se vinculado ao cumprimento das obrigações empresariais que precedem a sucessão, ou seja, à transferência, registro e publicização. Falar-se, aqui, em solidariedade passiva entre sucedido e sucessor, pelas referidas obrigações, seria incorreto, pois não há um vínculo subjetivo (entre pessoas, sujeitos), mas um vínculo objetivo: é o patrimônio especificado da empresa – e apenas ele – que, não obstante titularizado por outrem (o sucessor), mantém-se vinculado por previsão legal (ex legibus) àquelas obrigações, numa situação análoga ao penhor legal; análoga, apenas, já que não estão presentes todos os elementos que permitam a caracterização apropriada, técnica, do penhor legal.
Essa proteção genérica às obrigações não solvidas, anteriores à sucessão, conhece uma ampliação no artigo 1.146 do Código Civil, que cria – aqui sim – uma ampla solidariedade subjetiva, entre sucessor (o adquirente do estabelecimento) e sucedido, pelas obrigações que estejam regularmente contabilizadas. Por força da estipulação, tais obrigações são transferidas para o sucessor, embora, pelo prazo de um ano, a contar quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento, o devedor primitivo continue solidariamente obrigado a solvê-las. Nos demais casos, as obrigações não contabilizadas não implicam solidariedade subjetiva, mas mero vínculo objetivo, nos moldes há pouco analisados, preservando-se a boa-fé do adquirente (se existente; não existindo, afirma-se uma ampla solidariedade subjetiva).
O consentimento do credor, tal como previsto no artigo 1.145 do Código Civil, caracteriza renúncia à proteção legal de seu crédito, que deixa de estar vinculado ao patrimônio especificado da empresa, mesmo após a sua transferência a outrem; renúncia, portanto, ao direito de pedir a constrição do estabelecimento, como um todo, ou de qualquer dos bens que o componham, em particular, para satisfação do crédito. A lei aceita o consentimento expresso ou tácito, pressupondo este em face do silêncio que decorra da notificação do credor, pelo prazo de 30 dias. Em qualquer hipótese, a renúncia pressupõe cuidar-se de direito disponível, não alcançando créditos de outra ordem, como o alimentar, fiscal, previdenciário, entre outros. Aliás, a Consolidação das Leis Trabalhistas deixa clara essa vinculação em seu artigo 448, da mesma forma que o Código Tributário Nacional o faz no artigo 133. Ilustra o entendimento o julgamento do Recurso Especial 330.683/SC, pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual o Ministro Paulo Medina examinou hipótese na qual “o crédito tributário objeto da execução fora definitivamente constituído em 26.7.91, e em 31.12.93 houve sucessão por empresa que manteve a mesma atividade comercial de posto de gasolina, situado no mesmo local em que estava instalada a executada. Em 20.3.95 ocorreu a baixa da empresa. Desta forma, in casu, aplica-se o disposto no artigo 133, I, do Código Tributário Nacional, no sentido de que, já ocorrido o lançamento definitivo na época da sucessão, o sucessor deverá responder integralmente pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade”. Havendo prosseguimento na atividade, informa o acórdão, há responsabilidade subsidiária ou supletiva do alienante.
5.1 Contratos no trespasse
Esses aspectos até aqui examinados, a dizer respeito à condição do passivo empresarial e sua situação em face do trespasse, possuem um revés: a consideração do ativo empresarial, isto é, o tratamento jurídico das faculdades titularizadas pelo trespassante que se referem ao estabelecimento trespassado. São duas as situações a serem examinadas: os contratos, dos quais cuida o artigo 1.148 do Código Civil, e os créditos, com previsão no artigo seguinte, 1.149.
Não havendo expressa disposição em contrário no contrato de trespasse, a transferência do estabelecimento incluirá os contratos que digam respeito à sua exploração, nos quais se sub-rogará o trespassatário (adquirente do estabelecimento empresarial). Sub-rogação é instituto jurídico por meio do qual assiste-se, no âmbito de uma relação jurídica, à substituição de uma pessoa por outra ou de um objeto de direito por outro. Subrogareé colocar alguém ou algo no lugar de outrem ou de outra coisa, mantendo o elo, a relação anteriormente havida; a previsão de sub-rogação contratual, portanto, traduz a ideia de sucessão num dos polos da relação contratual que, dizendo respeito ao estabelecimento, fora estabelecida pelo trespassante e passará ao patrimônio do trespassatário junto com o estabelecimento. Note-se, porém, que o artigo 1.148 do Código Civil limita tal previsão aos ajustes estipulados para exploração do estabelecimento; fica clara, portanto, aaplicabilidade da previsão aos contratos de fornecimento de energia elétrica, fornecimento de água e de esgoto, prestação de serviços de telefonia (com direito sobre o mesmo número que faz conexão com o estabelecimento real ou que permite operações de venda a distância – telemarketing), entre outros. O mesmo se passa com contratos de fornecimento de insumos (matéria-prima, embalagens etc.), designadamente os de trato continuado.
É preciso atentar para o fato de que a previsão é genérica e pode submeter-se a regras legais, regulamentares ou contratuais específicas de cada ajuste. Como exemplos, no plano legal, podem ser citadas as condições específicas que são exigidas para os contratos locatícios. Mas pode haver limitações ou especificações dispostas em normas regulamentares (decretos, portarias etc.) ou que sejam fruto da contratação estabelecida entre contratante e trespassante. De qualquer sorte, para que sejam atendidos os princípios gerais que orientam os negócios jurídicos e, destacadamente, a teoria geral do contrato, é fundamental que todos esses elementos próprios das contratações sejam colocados à disposição daquele que estuda a aquisição do estabelecimento, permitindo-lhe formar adequadamente o seu convencimento e, assim, expressar conscientemente a vontade, criando o vínculo jurídico – destacando-se o papel do direito à compreensão exata do contrato (do negócio) para o consentimento, elemento subjetivo para a criação do vínculo jurídico obrigacional, isto é, para a assunção da obrigação jurídica. Sem que tais informações sejam franqueadas – ou, pior, quando sejam omitidas ou falseadas – estar-se-á, conforme o caso, diante de erro ou dolo, defeitos que permitem a anulação do negócio, se essencial, o abatimento proporcional do preço ou a indenização dos prejuízos, se acidental.
Excetuam-se da regra os contratos que tenham caráter pessoal, ou seja, aqueles que tenham sido ajustados tendo por referência a pessoa do trespassante, por sua individuação personalíssima, ou de seus sócios, na hipótese de sociedade empresária. Observe-se que a mãe do empresário ou do sócio majoritário da sociedade empresária podia emprestar a sua imagem, gratuitamente, em anúncios comerciais, fazendo-o para beneficiar o filho; o trespassatário não lhe poderá exigir uma sub-rogação no contrato.
O mesmo artigo 1.148 do Código Civil inclui a possibilidade genérica de rescisão contratual, pelo terceiro, recusando, portanto, a sub-rogação do trespassatário no ajuste. O prazo para tal denúncia contratual é de 90 dias, contados da publicação da transferência, mas exige a ocorrência de justa causa. A previsão da necessidade de justa causa conduz-nos à necessidade de denúncia motivada, bem como à possibilidade jurídica de discussão judicial dos motivos que foram apresentados. Três situações são possíveis: (1a) existência de justa causa, sem que o trespassante possa ser responsabilizado por isso, hipótese em que há rescisão contratual, sem direito de indenização. O contrato de trabalho é o grande exemplo, não se podendo obrigar o empregado a trabalhar para o trespassatário e, simultaneamente, não se podendo responsabilizar o trespassante por tal recusa; (2a) existência de justa causa, podendo responsabilizar-se o trespassante por sua ocorrência, mormente quando a sub-rogação naquele ajuste foi objeto do contrato de trespasse ou mesmo de suas tratativas. Nessa hipótese, há rescisão contratual, sem que o trespassatário ou o trespassante possam voltar-se contra o terceiro contratante. Todavia, afirma-se o direito de o trespassatário, conforme o caso, anular o trespasse ou buscar o ressarcimento dos prejuízos em ação de indenização contra o trespassante; (3a) se não há justa causa, há denúncia imotivada, conduzindo à aplicação das sanções contratuais e/ou legais contra o denunciante, das quais será o trespassante devedor solidário, por expressa disposição da parte final do artigo.
Observa Modesto Carvalhosa que a compreensão correta do artigo 1.148 do Código Civil exige que o contrato esteja em curso de execução; se já houve execução da prestação devida por uma das partes e aguarda-se a execução devida pela parte contrária, não há falar em sub-rogação no contrato, mas no débito ou no crédito respectivo, aplicando-se, no primeiro caso, os artigos 1.145 e 1.146 do Código Civil e, no segundo, o artigo 1.149, que será estudado na sequência.
5.2 Créditos no trespasse
Conforme o que tenha sido ajustado entre as partes no contrato de trespasse, poderá haver cessão dos créditos relativos às atividades empresariais relativas ao estabelecimento transferido. Há, aqui também, uma sucessão jurídica subjetiva, havida no polo ativo da relação de crédito/débito, ou, visto por um ângulo, sub-rogação na condição de credor.
Aplicam-se aqui, a toda evidência, os artigos 286 a 298 do Código Civil. Em primeiro lugar, não pode haver cessão de crédito, mesmo em conjunto com o trespasse do estabelecimento empresarial, se a isso se opuser a natureza da obrigação ou a lei; a regra, disposta no artigo 286, inclui ainda a vedação contratual, desde que constante do respectivo instrumento, sem o que não pode a proibição ser oposta ao cessionário de boa-fé. Nos demais casos, de acordo com o artigo 1.149 do Código Civil, a cessão produzirá efeito em relação aos respectivos devedores, desde o momento da publicação da transferência, previsão que, para a hipótese específica do trespasse, atende às exigências do artigo 288 do mesmo Código. Essa publicação não vincula o devedor, se não foi notificado da cessão, nos moldes dos artigos 290 e 291 do Código Civil, motivo pelo qual o próprio artigo 1.149 dispõe que o devedor ficará exonerado se de boa-fé pagar ao cedente. A regra, por óbvio, não se aplica aos títulos de crédito – como se vê no volume terceiro desta coleção – pois se trata de títulos de apresentação: são transferíveis por mero endosso e o seu pagamento se faz, obrigatoriamente, à vista do título, que deve ser entregue ao devedor.
Com a cessão transferem-se todos os acessórios da relação jurídica, como previsto no artigo 287 do Código Civil, permitindo, inclusive, que o cessionário do crédito (no caso, o trespassatário), se hipotecário, averbe a cessão no registro do imóvel (artigo 290) ou exerça os atos de conservação do direito cedido, independentemente do conhecimento da cessão pelo devedor (artigo 293). Pelo lado oposto, o devedor – estipula o artigo 294 – poderá opor ao trespassatário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o trespassante. O trespassante é juridicamente responsável pela existência dos créditos cedidos, ao tempo da cessão, como estipulado pelo artigo 295, mas não é responsável pela solvência do devedor, se a tanto não se obrigou expressamente, como prevê o artigo 296.
5.3 Restabelecimento
Chama-se de restabelecimento o ato de o titular do estabelecimento, que o trespassou, vir a constituir um novo estabelecimento empresarial (reestabelecer-se), atuando no mesmo ramo econômico, com o que passa a concorrer com o trespassatário. O artigo 1.147 do Código Civil estabelece, como regra geral, uma vedação do restabelecimento, estabelecendo que, nos cinco anos subsequentes à transferência, o alienante do estabelecimento (trespassante) não poderá fazer concorrência ao adquirente (trespassatário). Como dito, o artigo 1.147 do Código Civil dispõe de uma regra geral, aplicável no silêncio das partes. Não se trata, portanto, de norma imperativa, obrigando o respeito àquele prazo; note-se que o dispositivo principia pela ressalva não havendo autorização expressa, o que deixa claro não se tratar de direito indisponível para qualquer das partes, trespassante ou trespassatário que, assim, podem ajustar outro período, menor ou maior que o legalmente estabelecido; podem, até, ajustar que não haverá qualquer restrição ao restabelecimento, o que caracteriza renúncia do trespassatário à proteção legal contra aquilo que o legislador concluiu ser ato de concorrência desleal: restabelecer-seno mesmo ramo de atividade, o que poderia implicar esvaziamento da clientela do estabelecimento trespassado. A proteção legal do sucessor, ademais, alcança as hipóteses de mera cessão do uso e gozo (locação ou arrendamento, usufruto), desde que onerosa, o que leva à exclusão do comodato. Nesses casos, a proibição de reestabelecimento persiste por todo o prazo da cessão.
O excepcionamento convencional da regra geral disposta no artigo citado, autorizando o trespassante a, de imediato ou em prazo inferior aos cinco anos subsequentes à transferência, concorrer com o trespassatário – vale dizer, autorizando-o a restabelecer-se – deve ser expresso, por se tratar de renúncia, ato que se interpreta restritivamente, como se extrai do artigo 114 do Código Civil. Indispensável, portanto, a utilização de instrumento firmado pelas partes, ou seja, a redução a termo da autorização, com a assinatura do trespassatário, dispensado o instrumento público. A mesma exigência formal alcança as hipóteses de ampliação do prazo quinquenal, embora seja preciso, aqui, redobrada atenção.
Antes de mais nada, é preciso ter em vista que a Constituição da República estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito a livre iniciativa e como princípio que orienta a Ordem Econômica e Financeira Nacional, a livre concorrência. É o que está estabelecido, no tocante à livre iniciativa, no artigo 1o, IV, da Carta Política. Reconhece o nosso legislador constituinte que é do interesse do Estado Brasileiro, para benefício do país, que as pessoas tenham amplas possibilidades de ação econômica, elevando a possibilidade de concretizar empreendimentos os mais diversos, desde que legais, à condição de base do sistema jurídico e econômico no qual se baseia a República. O artigo 170 do Texto Maior repete a referência, sendo complementado pelo inciso IV, que soma à liberdade de agir economicamente – de iniciar empreendimentos econômicos – uma liberdade de concorrer com os demais agentes econômicos. No plano infraconstitucional, pode-se citar a Lei 8.884/94 que, em seu art. 20, I, diz que constitui “infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: (I) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”.
A previsão do artigo 1.147 do Código Civil, todavia, não reflete limitação à liberdade de concorrência, mas, pelo contrário, expressão de um dever de concorrência leal. Em fato, um dos elementos incorpóreos do estabelecimento empresarial é justamente a sua clientela, uma das formas de expressão da capacidade de bem administrar o empreendimento, uma expressão do benefício de mercado ou aviamento. O reestabelecimento, dessa forma, constitui – ao menos potencialmente – uma redução nas vantagens do trespasse, o que só é admitido como expressão da liberdade de contrato e renúncia do trespassatário. O que o artigo 1.147 do Código Civil está fazendo, portanto, é estabelecer um período para composição de condições adequadas para a existência de concorrência livre e leal. O trespassatário, no gozo dessa vantagem, poderá mostrar à clientela (um dos elementos intangíveis do estabelecimento empresarial) que pode bem servi-la. Assim, com o restabelecimento do trespassatário, os clientes poderão escolher entre os concorrentes. Sem esse período, romper-se-iam as condições para a concorrência, já que o trespassante poderia simplesmente esvaziar o estabelecimento trespassado de sua clientela, levando o trespassatário à falência.
A disposição, contudo, dá limites precisos à proibição de reestabelecimento. Em primeiro lugar, limite temporal: salvo a existência de autorização expressa, veda-se o reestabelecimento pelo prazo de cinco anos, tendo havido alienação do estabelecimento; sendo hipótese de cessão onerosa do uso e do gozo, durante o prazo de vigência do contrato, podendo haver, também aqui, autorização para pronto restabelecimento. Em fato, reitero, tais limites são referências legais, nada impedindo que as partes ajustem prazo menor, já que a própria lei reconhece como legítima a renúncia à vedação de trespasse. Por outro lado, afirma-se um limite conceitual: o artigo veda a concorrência e não meramente o reestabelecimento, que se compreende como vedado desde que haja efetiva possibilidade de competição entre as empresas e, destarte, de esvaziamento das vantagens de mercado que deveriam acompanhar o estabelecimento. Duas balizas se firmam: atividade de concorrência e território de concorrência, ambas não atendendo a critérios absolutos, deve-se frisar, mas respondendo às particularidades de cada caso. Em primeiro lugar, não se veda ao trespassante o exercício de atividade empresarial, mas apenas se proíbe a concorrência; nada impede, portanto, que venha a se estabelecer em outro ramo, atuando em atividade que em nada cerceie o gozo da clientela pelo trespassatário. Aquele que trespassou um açougue pode constituir, bem ao lado, uma empresa dedicada à confecção e/ou venda de roupas (uma boutique); mas é possível questionar se aquele que transferiu uma boate não irá oferecer concorrência se constituir um bar, o que deverá ser investigado nos elementos que se apurar no caso.
Igualmente relativo a cada situação dada em concreto está o problema da limitação territorial, ou seja, a investigação do território de concorrência, não sendo igualmente possível estabelecer um critério objetivo, absoluto, variando a solução conforme as particularidades do estabelecimento, da empresa e da atividade. Quem aliena uma sapataria em Imperatriz (MA) não concorre com o trespassatário se passa a explorar a mesma atividade em Uruguaiana (RS); mas em se tratando de uma fábrica de sapato, que fornece para o mercado nacional, haverá concorrência. O trespassante de um restaurante na Pampulha, bairro de Belo Horizonte, pode ou não, dependendo das circunstâncias, concorrer com o trespassatário ao se reestabelecer no Mangabeiras, bairro situado no extremo oposto da cidade. O trespassante de um estabelecimento editorial situado em São Paulo (SP) pode concorrer diretamente com o trespassatário, mesmo reestabelecendo-se em Manaus (AM). Não se trata, portanto, de uma questão territorial, mas da aferição, em concreto, da concorrência fruto do reestabelecimento que, se verificada – e não autorizada pelo trespassatário – deverá ser proibida ex vi legibus.
5.4 Nome empresarial no trespasse
Obviamente, é lícito – e até comum – que o trespasse do estabelecimento compreenda o título do estabelecimento, já que se constitui num dos seus elementos, atuando como sinal de identificação para o mercado. Nem sempre, é bom afirmar, o título do estabelecimento é apropriado para o uso do trespassatário, sendo possível – e até comum – que esse utilize um título próprio, mas se aproprie do título anterior para evitar que seja utilizado pelo trespassante ou por outrem, o que poderia ser um elemento de estorvo na fruição à clientela que, ao menos presumivelmente, espera-se ser transferida com o restante do estabelecimento.
A transferência do título do estabelecimento e, eventualmente, até mesmo de uma marca registrada em nada se confunde com a transferência do nome empresarial, já que o artigo 1.164 do Código Civil veda, expressamente, a possibilidade de sua alienação. Trata-se, como visto, de uma posição que mantém coerência com a compreensão do nome da pessoa jurídica como expressão de um Direito da Personalidade (ou personalíssimo), subsumindo-se à regra geral de intransmissibilidade, tal como se encontra disposta no artigo 11 do Código Civil.
No âmbito do Direito Empresarial, contudo, a matéria assume um contorno próprio, a refletir um aspecto preciso do princípio da veracidade: a informação, a bem do empresário, da existência do trespasse e, com ela, da sucessão jurídica no estabelecimento. Justamente por isso, o parágrafo único do artigo 1.164 do Código Civil reconhece ao trespassatário – adquirente do e sucessor noestabelecimento – a faculdade de usar o nome do trespassante, precedido do seu próprio, com a qualificação de sucessor, desde que o contrato o permita. Assim, por exemplo, se Sérgio Valias(empresário individual) adquire o estabelecimento empresarial de Raimundo Oliveira – livreiro, poderá adotar o nome de Sérgio Valias – livreiro, sucessor de Raimundo Oliveira (razão empresarial); essa será a sua firma e sobre ela aporá a assinatura correspondente. Igualmente se poderia ter Al Hassib Comécio de Alimentos Ltda. – sucessor de As Sabur. A norma se refere apenas à possibilidade de sucessão entre vivos; mas não torna ilícita a utilização do recurso na sucessão causa mortis; parece-me, portanto, que a alternativa também se aplica – e com mais razão – na hipótese de sucessão hereditária.
6 PENHOR DO ESTABELECIMENTO
É possível ao titular do estabelecimento empenhá-lo, ou seja, oferecê-lo como garantia de uma obrigação. Essa possibilidade afirma-se tanto se o considerarmos por sua porção material (as coisas que compõem o estabelecimento: maquinário, mobiliário, estoque etc.), quanto por sua porção imaterial; recorde-se, a propósito, que o artigo 1.451 do Código Civil permite que sejam objeto de penhor direitos sobre coisas móveis, suscetíveis de cessão, licenciando a constituição de gravame sobre direitos patrimoniais com expressividade econômica – ou seja, traduzíveis em pecúnia. Se o estabelecimento inclui a propriedade do imóvel, contudo, deve fazer-se por meio de hipoteca, aplicando-se os artigos 1.473 ss do Código Civil; o mesmo se passa no gravame constituído sobre estabelecimento ferroviário (estrada de ferro), minerário (concessão de lavra) ou dedicado à geração de energia elétrica, por força dos incisos IV e V do mesmo artigo 1.473 do Código Civil.
Assim, é possível constituir um vínculo real – isto é, submetido ao regime dos Direitos Reais – entre uma obrigação jurídica e a titularidade do estabelecimento empresarial; assim, se o devedor da obrigação garantida torna-se inadimplente, o credor poderá excutir a garantia, ou seja, exigir a sua realização: levar o bem (no caso concreto, o estabelecimento) à venda e, com o produto apurado, pagar-se. Esse vínculo, por ter natureza real, adere à relação de titularidade do estabelecimento, alcançando mesmo o trespassatário – na hipótese de transferência – em face do direito de sequela que socorre o credor pignoratício; em fato, com a constituição de uma garantia real, importa a coisa, que garante a obrigação, e não o seu titular.
Note-se que a sujeição do bem dado em garantia, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação, tal como previsto no artigo 1.419 do Código Civil, nos remete ao fenômeno da especialidade da garantia, caracterizado pela individualização e determinação de um bem para responder preferencialmente por determinada dívida. O bem dado em garantia (no caso, o estabelecimento) é como que separado juridicamente das demais obrigações eventualmente existentes, apenas lhes servindo se, uma vez satisfeita a dívida garantida, sobram valores que, como se verá, retornarão ao patrimônio do devedor ou do proprietário que titulariza o bem gravado de ônus real, na hipótese de ter sido regularmente transferido para outrem. Esse excesso (superfluum) no valor obtido pelo bem ou bens dados em garantia apura-se levando em conta o principal da dívida e seus acessórios legais e convencionais, incluindo verbas moratórias. Aliás, em função da especialidade, todo o estabelecimento – conforme se apure na constituição do penhor – estará vinculado ao cumprimento da obrigação, e não apenas uma hipotética parte que fosse pretensamente suficiente para a satisfação do débito; é o princípio totum in toto et qualibet parte, isto é, “tudo no todo e em cada uma das partes”. Somente com a satisfação voluntária ou forçada (execução) do débito, o saldo eventualmente apurado será devolvido ao patrimônio do titular do estabelecimento, seja o próprio devedor, seja um terceiro.
A excussão do penhor exige, obrigatoriamente, alienação do bem empenhado, sendo nula – e não apenas por anulável – a cláusula comissória, isto é, a que autoriza o credor pignoratício a ficar com o estabelecimento empresarial se a dívida não for paga no vencimento, como estatuído no artigo 1.428 do Código Civil. A proibição deve prevalecer mesmo diante de operações negociais complexas cujo resultado final seja aquele considerado nulo pela lei: que o credor, em face do inadimplemento da dívida, possa apropriar-se do bem, passando à sua titularidade. Não se pode esquecer de que o artigo 167 do Código Civil estabelece ser nulo o negócio jurídico simulado, como tal entendido, esclarece seu § 1o, incisos I e II, tanto aquele que aparente conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem, e/ou quanto aquele que contiver declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira. Destarte, declara-se a nulidade da cláusula ou negócio simulado e, afastada essa, afere-se o negócio efetivamente havido entre as partes; sendo cláusula comissória, declara-se a nulidade dessa. O defeito jurídico (nulidade) do ajuste não é a simulação, mas o pacto comissório que está por trás do negócio simulado, afastada a validade jurídica deste. Note-se, todavia, que o parágrafo único anotado no artigo 1.428 do novo Código Civil permite que o bem empenhado seja dado em pagamento (datio in solutio).
É indispensável que a garantia real seja validamente constituída para que o vínculo real previsto no artigo 1.419 do Código Civil seja efetivamente estabelecido, vinculando a terceiros, estranhos à relação havida entre credor e devedor. Em primeiro lugar, somente pode empenhar aquele que pode alienar o estabelecimento, ou seja, o seu titular; mas não se faz necessário que a garantia seja dada à obrigação que seja própria da atividade empresarial; é perfeitamente lícito ao empresário empenhar um estabelecimento em proveito de obrigação que não é sua, sem que se faça necessário, para tanto, qualquer relação – direta ou indireta – com tal obrigação, com o negócio de base ou mesmo com o devedor ou o credor. Essa possibilidade é reconhecida pelo legislador, de forma indireta, no artigo 1.427 do Código Civil, segundo o qual, “salvo cláusula expressa, o terceiro que presta garantia real por dívida alheia não fica obrigado a substituí-la, ou reforçá-la, quando, sem culpa sua, se perca, deteriore, ou desvalorize”. Obviamente, se o estabelecimento é excutido para o pagamento de dívida de terceiro (do trespassante ou doutrem), nasce para o seu titular um direito de ação contra o devedor para ver-se indenizado dos prejuízos que sofreu.
Exige-se, ademais, para a validade do penhor, que o instrumento em que é instituído atenda aos requisitos do artigo 1.424 do Código Civil, declarando (1) o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo; (2) o prazo fixado para pagamento; (3) a taxa dos juros, se houver; e (4) o bem dado em garantia com as suas especificações. Ademais, atendendo aos artigos 1.432 e 1.452 do mesmo Código Civil, o instrumento do penhor deverá ser levado a registro, por qualquer dos contratantes; no caso, registro no Cartório de Títulos e Documentos da circunscrição na qual esteja o estabelecimento. Embora o legislador não se tenha referido especificamente à hipótese, parece-me indispensável haver a averbação da constituição do penhor sobre o direito no registro específico correspondente, quando exista. Neste sentido, lê-se no artigo 62 da Lei 9.279/96 (Lei de Patentes, Marcas e Direitos Conexos) que “o contrato de licença [de patente] deverá ser averbado no INPI para que produza efeitos em relação a terceiros”, esclarecendo o § 1o que “a averbação produzirá efeitos, em relação a terceiros, a partir da data de sua publicação”. No que diz respeito à licença de uso de marca, o artigo 140 da mesma lei diz que “o contrato de licença deverá ser averbado no INPI para que produza efeitos em relação a terceiros”, repetindo o seu § 1o que “a averbação produzirá efeitos, em relação a terceiros,a partir da data de sua publicação”.  O mesmo ocorre quando é dado em penhor estabelecimento empresarial, no todo ou em parte específica, hipótese na qual se deverá levar o gravame a registro na Junta Comercial. Em fato, a averbação, em tais hipóteses, atende à necessidade de proteção aos terceiros de boa-fé que, sabidamente, conferem o registro específico, sempre que desejam saber sobre a situação do bem que lhes interessa.
É preciso deixar claro que, conforme a natureza do estabelecimento, estar-se-á diante de penhor rural (agrícola ou pecuário), mercantil (a incluir estabelecimentos constituídos para exportação) ou industrial, não se aplicando a previsão de transferência da posse do bem empenhado para o credor, tal como previsto no caput do artigo 1.431 do Código Civil, mas a exceção anotada em seu parágrafo único. Isso implica o dever de o titular do estabelecimento sujeitar-se a vistorias do credor ou terceiro por ele credenciado, como previsto nos artigos 1.441 e 1.450 do Código Civil.
6.1 Anticrese do estabelecimento empresarial
Quer se esteja diante da propriedade do imóvel no qual funciona o estabelecimento, sendo, portanto, hipotecável, quer se esteja diante de imóvel locado, dando azo ao penhor do estabelecimento, nos moldes há pouco estudados, é igualmente possível ao titular do estabelecimento o entregá-lo em anticrese. Na hipótese de propriedade imóvel, em função da previsão constante do artigo 1.506 do Código Civil, prescindindo da constituição simultânea de hipoteca. Na hipótese de bens móveis, em virtude da combinação dos artigos 1.433, V, e 1.435, III, do Código Civil, embora sendo indispensável o empenho. Tais dispositivos têm por efeito prático a criação de uma situação análoga à anticrese: a conservação do bem empenhado na posse do credor, que tem o direito de apropriar-se dos seus frutos (artigo 1.433, V), devendo imputar o valor respectivo nas despesas de guarda e conservação, nos juros e no capital da obrigação garantida, sucessivamente (1.435, III). O entendimento é reforçado pelo artigo 1.506, § 2o, do mesmo Código Civil, pois transforma a entrega de bem imóvel em mera hipótese, ali posta como condição para a possibilidade de ser o bem dado em anticrese objeto de hipoteca: “quando a anticrese recair sobre bem imóvel [...]”, diz o texto.
Anticrese é palavra que vem do grego antichrese, que significa empréstimo. É, destarte, um meio que se opõe ao do empréstimo, portanto, um meio para o seu pagamento; um ato de cessão – de entrega – que não é do credor para o devedor, mas do devedor para o credor, como forma de permitir o pagamento do que se lhe emprestou. Embora se trate de um instituto desprestigiado pela doutrina e na prática das relações havidas em concreto, é opção negocial que oferece possibilidades interessantes, para as quais o mercado não atentou, infelizmente. Sua virtude é a preservação de um meio pelo qual o credor tem a certeza de uma via para o pagamento de seu crédito: os frutos naturais, industriais ou rendimentos do estabelecimento que lhe é transferido em anticrese; ademais, a concomitância da hipoteca ou do penhor amplia essa segurança.
Por múltiplas formas se pode concretizar a anticrese, desde que respeitado o núcleo conceitual do instituto: a cessão do direito de uso e do direito de fruição para que haja pagamento de juros e do principal da dívida. Mantida essa base e afastados abusos e ilegalidades, as partes têm liberdade para ajustar o negócio jurídico, podendo-se listar algumas dessas formas.
(1a) O estabelecimento é entregue ao credor para que esse o explore, diretamente, fruindo seus frutos ou produtos, pagando-se, nos juros e no principal da dívida, com o resultado da exploração. É a hipótese clássica, disposta no caput do artigo 1.507 do Código Civil, exigindo-se que o credor anticrético, anualmente, apresente um balanço, exato e fiel, de sua administração, no qual deverão ficar bem claros – e comprovados – os ingressos aferidos com os frutos ou produtos, os valores gastos com a manutenção do bem (a exemplo de energia elétrica, trabalhadores etc.) e, enfim, o saldo verificado. O saldo, por seu turno, será utilizado no abatimento dos juros e, eventualmente, do principal. Essa fórmula, contudo, comporta variações. Podem as partes perfeitamente estipular uma meta mensal ou anual (mínima ou certa) para a anticrese, o que não é vedado pela lei, evitando-se controvérsias sobre o balanço anual. Somente será necessário que a contratação seja lícita, equilibrada, agindo as partes de forma honesta e de boa-fé, como exigido pelo artigo 422 do Código Civil.
(2a) O devedor entrega o bem ao credor para que esse o arrende e se pague com o produto do arrendamento (fruto civil). É a hipótese prevista no artigo 1.507, § 2o, que prevê tal possibilidade como regra geral que pode ser excepcionada por pacto em sentido contrário, estabelecido entre as partes. O dispositivo, contudo, deixa claro que a relação negocial estabelecida entre o credor pignoratício e o arrendador não vincula o devedor, quando, finda a anticrese, a posse do imóvel lhe é devolvida, excetuada, por óbvio, a hipótese de o devedor anticrético ter participado do ajuste e assumido o vínculo jurídico, ainda que futuro, com o arrendante. A norma, porém, ao privilegiar a hipótese de arrendamento, com pagamento de aluguel, induz o exegeta a uma postura mesquinha, que reduz as possibilidades do instituto. Não há impedimento legal para o estabelecimento de formas negociais mais ousadas e, para algumas hipóteses, mais eficazes. Pode-se estipular que o terceiro remunerará ao credor pagando-lhe percentual sobre o faturamento (aluguel percentual, como é comum nos contratos estabelecidos por shopping centers).
(3a) Deve-se compreender ainda como válida a cláusula por meio da qual devedor e credor anticrético ajustam a entrega a terceiro, administrador profissional, que tenha sido contratado especificamente para administrar e explorar o bem anticrético (o estabelecimento dado em anticrese), pagando as despesas (entre as quais se incluirá a taxa de administração, em valor fixo ou percentual sobre o faturamento ou lucro) e transferindo o saldo aferido para o credor, a título de pagamento de juros e, sucessivamente, do principal da dívida. Na mesma linha, podem ser estabelecidos outros ajustes, como o contrato de parceria, prenotando-se a parte do parceiro como despesa e o restante como pagamento da dívida anticrética. Entre outros, é preciso dizer, para não limitar.
Na hipótese de terem as partes ajustado que a exploração do bem anticrético se fará pelo credor, apropriando-se dos frutos e utilidades, apresentando balanço anual, exato e fiel, de sua administração, e compensando o saldo verificado com juros e principal da dívida, permite-se ao devedor impugnar o balanço apresentado. Obviamente, a hipótese legal se refere à assunção da administração pelo próprio credor ou por terceiro à sua conta, não alcançando as hipóteses de arrendamento do bem, com valor certo ou exploração do bem com estipulação do valor (fixo ou em percentual sobre a dívida) mensal de abatimento sobre juros ou sobre o capital emprestado. Não alcançará, igualmente, a hipótese de se ter ajustado a exploração por terceiro (administrador profissional ou não), de cuja escolha tenha participado o devedor, pois a impugnação, nesta hipótese, terá por réu o terceiro, não o credor anticrético, exceto provando-se má-fé deste, a agir em conluio com aquele. Ao devedor faculta-se impugnar não apenas o balanço, mas mesmo a administração que está sendo conduzida, imputando-a ruinosa. São duas hipóteses, portanto. Em primeiro lugar, a possibilidade de impugnar apenas o balanço, alegando que ele não corresponde à realidade (por ser inexato). A via judicial para tanto será, a meu ver, a ação de prestação de contas, combinando-se o artigo 1.507 do Código Civil com o artigo 550 do novo Código de Processo Civil. O devedor anticrético, que tem o direito de exigir a prestação de contas, as recusará na petição inicial, afirmando-as inexatas ou, até, afirmando que não

Continue navegando