Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 1/39 Democracia agonística Prof. Rafael Morais Descrição Você verá o conceito de democracia agonística, projetado a partir de críticas a outros modelos propostos e fundamentalmente preocupado com a adequação da complexidade e da pluralidade das sociedades contemporâneas a um regime democrático. Propósito Discutir o conceito de democracia agonística, bem como compreender os fundamentos centrais da democracia contemporânea, suas contradições e seus principais aportes teóricos. Objetivos 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 2/39 Introdução A democracia é um conceito polissêmico. Isso significa que não se esgota em apenas uma definição, mas múltiplas. Neste conteúdo, discutiremos as principais dimensões conceituais da democracia contemporânea, que geram profundos embates teóricos entre muitos autores. Veremos em amplitude histórica o desenrolar desses conceitos e as principais críticas e debates em torno deles, de modo a compreender os fundamentos, os dilemas e os desafios da democracia. 1 - Introdução à teoria da democracia: história e conceitos importantes Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car os conceitos elementares da teoria democrática. Liberalismo e direitos civis Compreenda neste vídeo como o liberalismo e os direitos civis se relacionam com a formulação da democracia moderna. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 3/39 As ideias liberais emergiram no século XVII, na Inglaterra, em oposição violenta ao absolutismo. Pautavam-se, basicamente, na ideia de que o indivíduo é possuidor de direitos naturais que antecedem o Estado e, que, portanto, deveria ter sua constituição orientada, em primeiro lugar, pela garantia desses direitos. O Estado absolutista, hobbesiano — cuja única obrigação no contrato social é a segurança coletiva dos indivíduos que cedem sua soberania e, assim, constituem a soberania do Estado — é retratado na capa da obra de Hobbes, Leviatã, como um homem constituído por indivíduos, ou seja: a soberania do Estado é constituída pelas soberanias individuais cedidas pelo contrato, que funda o soberano. Este tem, segundo o modelo absolutista, plenos poderes para governar, poder de vida e morte sobre seus súditos, e governa por direito de sucessão hereditária. Frontispício da edição original do livro Leviatã,1651. John Locke, escrevendo algumas décadas depois de Hobbes, fará o movimento de ruptura com o absolutismo ao publicar sua principal obra, Segundo tratado sobre o governo civil. A obra é ao mesmo tempo o produto das disputas entre o Parlamento e o Rei na Inglaterra, vencidas pelo primeiro, que representa a burguesia inglesa em franca ascensão. Locke subscreverá as necessidades burguesas de mais espaço e direitos civis para escapar das amarras do poder régio a fim de expandir seus negócios e sua participação nos lucros e nos dividendos da atividade econômica expansiva da Inglaterra do século XVII. O século XVII marcou a Inglaterra com dois ciclos de guerras civis que, juntos, promoveram a primeira revolução burguesa e liberal. O primeiro foi encerrado com a subida ao poder de Oliver Cromwell, em 1651, mesmo ano de lançamento de Leviatã. O governo despótico de Cromwell, uma espécie de fase jacobina da revolução inglesa, implementou uma das mais importantes políticas públicas inglesas para alavancar a Inglaterra como a maior potência do mundo: o Ato de Navegação, ou Leis de Navegação, que instituíam o monopólio do transporte das mercadorias vitais para a economia inglesa. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 4/39 Oliver Cromwell. Marcado por muitos conflitos e despotismo, o governo de Cromwell chegou ao fim com sua morte, a qual se seguiu seu filho, que não foi capaz de sustentar o legado do pai. A restauração da monarquia teve lugar sob o compromisso de menos despotismo, que, descumprido, inaugurou a etapa derradeira do processo revolucionário: a Revolução Gloriosa. A Inglaterra entrou no século XVIII como uma monarquia constitucional, algo que não mudou até hoje. Em sua obra Segundo tratado sobre o governo civil (1994), Locke apresenta os fundamentos do individualismo liberal, advogando por mais mediação entre o poder e os indivíduos, segundo ele, dotados de direitos e anteriores ao Estado. Sendo, portanto, intocáveis por ele. A obra de Locke rompe com a de Hobbes, a partir de uma perspectiva diferente do estado de natureza. Vejamos: Hobbes A fase pré-contratual da humanidade é marcada por pessimismo. Locke A fase pré-contratual da humanidade se dá em relativa harmonia. Os homens vivem em cooperação justamente pelo entendimento mútuo quanto à insustentabilidade de viverem em permanente ameaça, desconfiança e, consequentemente, guerra (de todos contra todos) — apesar de estarem de fato sujeitos a ameaças contra a propriedade, como reconhece Locke, ainda que não o tipo de ameaça permanente e urgente de Hobbes. Por isso, a importância do Estado como ente garantidor, por meio das leis e do aparato de segurança, dos direitos naturais do ser humano. Locke formula seu conceito de propriedade, pedra angular do Liberalismo, desta forma: A propriedade é, em primeiro lugar, constituída pela vida, seguida pela liberdade e pelos bens. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 5/39 A partir de seu entendimento sobre os direitos naturais, Locke argumentou que o Estado não deve ter poder absoluto sobre os indivíduos, como defendia Hobbes, mas deve ter seus poderes limitados pela defesa dos direitos naturais do homem. John Locke, considerado o pai do Liberalismo político. É dessa lógica que Locke desenvolve o direito de resistência, compreendido como o direito (e o dever) do cidadão de resistir a uma tirania (o exercício do despotismo), ou a qualquer ameaça vinda do Estado contra qualquer um de seus direitos (naturais), pois um Estado que não protege tais direitos perde a sua legitimidade. O exercício da tirania, nessa acepção, consiste na violação da propriedade pelo governo, o que coloca o Estado em guerra com a sociedade. Essas ideias se articulavam com o papel de um poder legislativo forte e atuante. Em Locke, os homens pactuam trocando liberdade por segurança para fundar um poder centralizado que possa garantir seus direitos naturais, então pela lei convertidos no advento dos direitos civis, promovendo a transição de súditos para cidadãos e quebrando com a premissa, antes inquestionável, do poder absoluto dos soberanos. Do conceito de propriedade em Locke surge a noção de uma sociedade liberal que deverá ser conduzida por um Estado liberal. O consentimento expresso dos governados é a única fonte de poder legítimo (LOCKE, 1998). Segundo Bobbio (2017), a obra de Locke constitui “a primeira e mais completa formulação do Estado liberal”. Toda essa estrutura teórica e A ordem não é axiomática: é preciso estar vivo para ser livre, e é preciso ser livre para ter direito a bens, então classificados como o fruto de qualquer trabalho aplicado sobre uma matéria da natureza. O trabalho é a única fonte de riqueza, noção que será a base da economia política. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 6/39 racional foi de fundamental importância para o processo revolucionário que ganhou corpo no século XVII e abriu a porta para a superação do Antigo Regime. A Revolução Gloriosa foi a marca do triunfo do liberalismo na Inglaterra, e a primeira de uma onda que atravessaria gerações pelo velho continente e até aportaria no novo mundo, em 1776, nos EUA.A proclamação do Bill of Rights, uma carta de direitos civis, em 1689, proclamou o fim do absolutismo na Inglaterra, substituído por uma monarquia constitucional, vigente até hoje. Direitos humanos e sociais Confira neste vídeo os primeiros debates sobre a humanidade, os direitos do homem e as liberdades e práticas sociais que influenciam os debates sobre a democracia. Em 14 de julho de 1789, uma década após a declaração de independência dos EUA, a França mergulhou no caos social, e a data é celebrada até hoje como um marco de independência. Nesse dia, os franceses, revoltados com as péssimas condições sociais pelas quais passavam, invadiram a Bastilha (uma masmorra que servia como arsenal do exército) e tomaram as armas, dando início à Revolução Francesa. Prise de la Bastille (queda da Bastilha) por Jean-Pierre Houël. A Revolução Francesa marcou a história por ter instituído os direitos sociais e as liberdades individuais com grau de impacto maior do que a experiência insulada na Inglaterra. O Estado francês, muito endividado por guerras, aumentava a taxação sobre o seu povo ao mesmo tempo que a grave crise econômica gerava desabastecimento. A fome avançava entre os franceses, enquanto a monarquia vivia mergulhada em desperdício e opulência. Devido a essa grave situação econômica e social, a participação ativa do povo resultou em um processo 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 7/39 revolucionário especialmente violento. A revolta contra a monarquia levou a saques, assassinatos e muita destruição. Era o direito de resistência de Locke, concebido um século antes, em forma viva e o começo do fim do absolutismo no continente europeu. Saiba mais Segundo Hobsbawm (1995), o Estado francês gastava cerca de 20% a mais do que deveria no fim da década de 1780, à beira da revolução, e usava aproximadamente 50% do seu orçamento para pagar dívidas contraídas, sobretudo em guerras, o que resultou em elevada inflação. A demanda por reformas era tão urgente quanto ignorada pelas classes dominantes, indispostas a renunciar a seus privilégios. Governada pelos Bourbons, sob Luís XVI, a França era uma sociedade típica do Antigo Regime em seu estado ideal. A organização social, herdada do feudalismo, dividia-se em três estados (castas) sociais: O terceiro e mais heterogêneo estado social, o povo, era composto essencialmente por: Camadas rurais Ligadas ao trabalho na terra sob a propriedade das duas castas superiores (as classes proprietárias). Burguesia Classe em ascensão, fundamental para o fortalecimento dos Clero Nobreza Povo 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 8/39 Estados durante o mercantilismo. Para tentar debelar a crise econômica, foi convocada a Assembleia dos Estados Gerais, cuja função era reunir a sociedade francesa, na figura dos seus três estados, em momentos de crise. No entanto, a reunião não foi capaz de debelar a revolta, pois a estrutura da deliberação correspondia à sociedade estamental, reservando mínimo peso para o voto do terceiro estado. Após discordar das elaborações da Assembleia Nacional, o rei determinou o seu fechamento, culminando com a revolta contra a monarquia, em 14 de julho de 1789, data considerada o marco de origem do processo revolucionário que conseguiu a abolição dos privilégios feudais em agosto de 1789 (um mês após o episódio da Bastilha) e, em setembro, logrou a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que determinava que todos os homens eram iguais perante a lei, rompendo com a sociedade estamental. Em 1790, a Assembleia Nacional aprovou a Constituição Civil do Clero, que eliminava privilégios eclesiásticos e visava subordinar a Igreja ao Estado. Representação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão por Jean-Jacques-François Le Barbier. Em 1792, a Assembleia Nacional também ratificou o estado de guerra contra outras monarquias europeias. As classes poderosas francesas, destituídas de seus privilégios pela revolução, deram início a um processo contrarrevolucionário com a ajuda de outros Estados europeus, interessados em conter o “germe” revolucionário. O estado de guerra abriu caminho para a radicalização da violência interna, pois, com a ameaça da guerra batendo às portas da França, a urgência pela pacificação se impunha. Saiba mais A revolução passou por diversas fases, assumindo tom mais conservador durante o período napoleônico, em função da necessidade de segurança. Não obstante, Napoleão consolidou e promoveu diversos avanços da revolução — e revogou outros, como o fim da escravidão nas colônias, suscitando uma rebelião no Haiti que culminaria na independência desse país. Desde a Revolução Francesa, os direitos humanos têm sido objeto de lutas políticas, inclusive das lutas pela descolonização que tinham como 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 9/39 alvo a própria França, detentora, até meados da segunda metade do século XX, de um imenso império colonial. Nos dias atuais, o mundo ainda convive com diversos lugares em que violações sistemáticas de direitos humanos ocorrem diariamente, inclusive nos países centrais, como os EUA, onde o racismo estrutural ainda leva a abusos policiais e a pobreza cresce, confrontando cidadãos norte-americanos com condições de vida cada vez mais difíceis. Um exemplo recente que gerou protestos no mundo todo foi o caso George Floyd, um homem afro-americano brutalmente assassinado em maio de 2020 durante uma abordagem policial. Marcha contra a violência policial nos EUA organizada pelo Movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) em 2020. Nos países periféricos, tais situações e condições são sistêmicas, além de ser possível observar um sensível agravamento nas últimas décadas. Dica Para entender melhor o movimento Vidas Negras Importam, leia a matéria: Como três mulheres criaram o movimento global Black Lives Matter a partir de uma hashtag, publicada pelo G1 em 20/12/2020. A conjuntura da democracia contemporânea Acompanhe neste vídeo a democracia e suas transformações ao longo do século XX, tais como: valor durante a Guerra, bem-estar social e princípio neoliberal. As origens teórico epistemológicas da transformação dos direitos liberais e por consequência dos fundamentos democráticos, o que na 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 10/39 década de 1970 seria chamado de neoliberalismo, remontam à década de 1930, quando liberais se dividiam para tentar propor alternativas à crise do liberalismo que se arrastava desde a última década do século XIX. A ascensão dos EUA e da Alemanha ao topo do poder industrial, em fins daquele século, levou as economias do restante do mundo a intensas rodadas protecionistas para concorrer com as muito bem protegidas economias norte-americana e alemã. Impulsionados, respectivamente, pelas ideias de Alexander Hamilton e Friedrich List, os modelos econômicos dos EUA e da Alemanha eram intensamente protecionistas e caminhavam para a formação de grandes monopólios. Somado a isso, o contexto da corrida armamentista que levou à Primeira Guerra Mundial também colaborou para o fechamento das economias e para o abandono das ideias liberais. Com o fim da guerra, alguma recuperação foi notada, mas logo foi interrompida pela crise de 1929, que pôs um freio à tendência financista que o capital vinha assumindo em decorrência do modelo monopolista que vigorava desde o fim do século XIX. Produção de munição em fábrica de armas e bombas na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. A crise de 1929 solapou economias no mundo todo, sobretudo na Europa, que se recuperava da Primeira Guerra Mundial. São amplamente conhecidos os impactosdessa crise na economia alemã, que já lutava para lidar com as pesadas imposições do Tratado de Versalhes. A crise de 1929 jogou mais lenha na fogueira da crise do liberalismo, consolidando a ascensão dos regimes nazifascistas. Venda de selos e cartões postais da previdência para acesso ao auxílio emergencial alemão durante a Grande Depressão, 1929. No fim da década de 1930, liberais reuniam-se em associações — os embriões dos modernos think thanks —, a fim de discutir alternativas para o sistema liberal de ideias. Desses debates, emergiram alguns modelos que viriam a caracterizar o neoliberalismo, no entanto levaria décadas até serem efetivamente implementados, em função da hegemonia dos modelos keynesianos desde a crise de 1929 e do pós- Segunda Guerra Mundial, que contemplavam uma economia com base reformista para produzir um estado de bem-estar social. Esse modelo 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 11/39 foi o responsável pelo período apelidado pelos historiadores de era de ouro do capitalismo, que corresponde às décadas de 1950 e de 1960. A crise da década de 1970 — uma combinação entre a queda da taxa de lucros e o choque do petróleo que se seguiu à desindexação do dólar em relação ao ouro, rompendo com o acordo de Bretton Woods — levou à queda do modelo keynesiano e ao começo do fim do welfare state, processo que segue em curso. Fila de carros para abastecer em posto de gasolina na cidade de São Paulo durante a crise do petróleo no Brasil, 1979. A partir da década de 1980, principalmente, o mundo passaria à consolidação de uma hegemonia neoliberal nas políticas econômicas, que preconizavam máxima abertura e desregulamentação como respostas à queda das taxas de crescimento, problema que era atribuído, pelos neoliberais, ao custo do Estado de bem-estar social. Comentário Após o colapso da União Soviética, a tendência neoliberal foi ainda mais favorecida, agora politicamente, uma vez que o equilíbrio de forças observou um desequilíbrio nas relações entre o capital e o trabalho. Na atual conjuntura, observamos os impactos sistêmicos das políticas e dos modelos neoliberais que levaram à degradação dos direitos sociais e trabalhistas e à desindustrialização nas poucas nações periféricas que lograram desenvolver um parque industrial durante o século XX, como o Brasil, e também nas nações centrais, como os EUA. País no qual a transferência de diversas indústrias do setor chamado medium and low tech, amplamente responsável pelos bons empregos, tem levado ao empobrecimento da classe média norte-americana, segundo diversos estudos. Essas fábricas, outrora instaladas no meio-oeste norte-americano, agora estão na Ásia, onde encontraram mão de obra mais barata e outros incentivos diversos. Nos países periféricos, a situação é ainda pior, dadas as vulnerabilidades sociais pré-existentes. Na Europa, apesar da presença do welfare state, que atenua os efeitos dessas políticas, a situação já atinge níveis alarmantes devido ao avanço da pobreza e às reformas voltadas para aumentar a idade de aposentadoria e a flexibilização de leis trabalhistas, gerando intensos protestos e instabilidade política. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 12/39 Manifestação contra a proposta do governo de reforma da previdência em Paris, 2023. Dica Assista ao documentário de curta-metragem Unravel da diretora e produtora indiana Meghna Gupta (13:35m), disponível legendado na plataforma Vimeo. O filme mostra trabalhadores de fábricas de reciclagem de roupas na Índia e expõe aspectos do consumo ocidental e a política neoliberal aplicada às indústrias têxteis. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 13/39 2 - Democracia liberal Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer as características da democracia liberal. Democracia agregativa Entenda neste vídeo o conceito de democracia agregativa e os teóricos que contribuíram para essa formulação. “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.” A frase de Winston Churchill (apud PRZEWORSKI, 2019) traduz um pensamento conservador que antagoniza com a democracia, mas não deixa de expor um problema concreto: como garantir estabilidade e funcionalidade à democracia confiando o poder ao povo, que, presumivelmente, não está capacitado dos amplos conhecimentos necessários para tomar decisões políticas complexas, típicas de sociedades pós-industriais, com milhões de habitantes e incontáveis problemas de difícil solução? 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 14/39 A questão é séria, perturba filósofos e teóricos políticos há milênios, e nos leva a uma primeira conclusão: a democracia só é possível vinculada à educação para a democracia e, principalmente, a uma prática democrática em microescalas. É importante pensar que a democracia é uma prática, não um estado, e ela só pode ser realizada a partir de um aprendizado e prática cotidianos que aproximem as pessoas da política. Das dificuldades em promover a educação para a democracia em sentido amplo, bem como dos anseios elitistas das classes dirigentes que buscavam excluir as camadas populares de uma maior participação, nasceu o modelo agregativo, cujo mote central é a representação. Max Weber, embora não tenha abordado o tema de forma específica, o tangenciou diversas vezes, sendo um autor importante para entender os elementos do elitismo democrático. Weber concebia a democracia como um instrumento de contingenciamento do poder do kaiser e da burocracia — um dos temas centrais de sua obra —, e entendia o parlamento como um progresso, sendo um instrumento mediador ante o perigo do autoritarismo. Comentário Weber analisa o capitalismo dentro da órbita do progresso da humanidade, e, nesse sentido, a democracia burguesa seria um ideal de regime político porque impõe um freio à escalada das tensões. A ideia de desencantamento do mundo, que vê na razão o fundamento central da sociedade moderna, compõe, na obra weberiana, uma interpretação racional e sistemática dessa sociedade, sendo o regime democrático liberal a expressão dessa racionalidade como forma de regime político. Para dar conta da complexidade da sociedade emergente da revolução industrial — que observa o surgimento do proletariado como uma nova classe social que rapidamente reconfigura as cidades e opera uma profunda transformação social a partir do intenso conflito entre capital e trabalho —, Weber vê a consolidação da democracia como necessária. Mas não segundo o modelo clássico, da Grécia Antiga, onde a participação era o objetivo, e sim a partir do viés liberal promovido pela burguesia agora na condição de classe dominante. O modelo liberal, posteriormente chamado de agregativo, seria necessário para, sobre bases procedimentais bem institucionalizadas, servir como mecanismo de promoção dos valores fundamentais da nova sociedade (burguesa), tais como a competição e a liberdade de escolha. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 15/39 Max Weber. A preocupação de Weber e de outros autores do mesmo período é com a necessidade de neutralizar o conflito social, escalando naquele momento a partir das tensões sociais produzidas pela revolução industrial. Nessa acepção de ordem social, a heterogeneidade é encarada como um fator de desagregação social, devendo ser combatida. Daí a ideia de afastar a participação, de modo que a sociedade possa ser governada por instituições racionais que, necessariamente, devem ser comandadas por sujeitos racionais —o que presume um dado tipo de sujeito: educado, erudito e, logo, da elite. Qualquer ideia de democracia direta é abandonada por esse raciocínio por não haver nela nenhum mecanismo confiável para balancear o conflito político entre as facções. Na prática, essas interpretações da democracia revelam preocupações conservadoras com a contenção do processo revolucionário, que deveria cessar na ascensão da burguesia, numa parceria com a aristocracia sobrevivente à queda do Antigo Regime, para barrar as demandas das classes populares que poriam em risco a propriedade privada. Em defesa da conservação daquele status quo, Weber argumenta que a expropriação do trabalho — denominada por Marx de mais-valia — consiste em um elemento presente em todas as organizações burocráticas, sendo parte inevitável no processo de centralização. Nessa toada, os indivíduos que se encontram em escalas inferiores da hierarquia burocrática perdem controle (poder) sobre o próprio trabalho, uma vez que as burocracias tendem a se tornar forças impessoais que ignoram as necessidades particulares dos indivíduos; um preço a ser pago para desfrutarmos da sociedade moderna. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 16/39 Karl Marx. Essa percepção naturaliza a exploração do trabalho segundo uma racionalização que fundamenta a própria sociedade moderna, além de legitimar a dominação política da burguesia, justificando um modelo de regime político que seja capaz de conter os conflitos sem resolver suas causas, pois estas estão dadas. Weber pensa a importância do parlamento para as discussões dos problemas de interesse público — então tutelados pelos representantes esclarecidos — no sentido de se opor tanto ao autoritarismo do kaiser quanto ao do povo, segundo a ideia, amplamente difundida no século XIX a partir das obras de Tocqueville e Rousseau, de tirania da maioria sobre a minoria. A discussão parlamentar seria o laboratório, na teoria weberiana, de formação dos grandes líderes políticos capazes de deter o autoritarismo. O modelo teórico agregativo, desenvolvido a partir do pós-Segunda Guerra principalmente por Schumpeter (1961), postulava um sistema representativo no qual as pessoas podem aceitar ou rejeitar seus líderes em processos eleitorais competitivos. Os interesses e as preferências do povo deveriam, então, ser a base da organização político-partidária. Schumpeter descarta quaisquer potenciais argumentativos de um modelo de democracia mais popular na era da sociedade de massas, manifesta um repúdio à participação do homem comum na política e compara a democracia ao mercado. Joseph Schumpeter. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 17/39 Schumpeter definiu a democracia moderna como um arranjo institucional no qual os únicos meios de participação abertos ao cidadão seriam o voto e a discussão. A democracia seria um método, não um fim, e seria necessário evitar que a massa tivesse mais influência no processo de tomada de decisão. Essa visão consagra o princípio do homo economicus, segundo o qual os seres humanos são agentes racionais dotados de um cálculo de custo/benefício em suas decisões. Berelson (1952) assume posições semelhantes às de Schumpeter, a partir do consenso de que há demandas para a democracia funcionar que não correspondem aos atributos do cidadão médio, que normalmente é desinteressado das questões políticas — ou não tem tempo para abordá-las. Já para Dahl (2001), a questão central está no controle que os cidadãos comuns podem exercer sobre seus representantes eleitos, tendo como arma de negociação o voto, enquanto Sartori (1994) reafirma esse mesmo argumento, enfatizando os problemas inerentes à participação, com destaque também para a falta de interesse e conhecimento sobre os assuntos políticos por parte do cidadão comum. Robert Dahl. Por último, Eckstein (2015) classifica a democracia como um regime no qual a disputa se dá entre os representantes eleitos, ou seja, sua definição não inclui uma maior participação além do voto. Essa revisão teórica informa algo muito substancial sobre a teoria de democracia: ela não é descritiva, mas normativa, e de inspiração nas experiências anglo-saxônicas, ou seja, datada historicamente. Atenção! A democracia liberal — produto histórico desse modelo — aparece como única possibilidade num movimento que, em certa medida, naturaliza a experiência da democracia segundo o viés liberal, contrapondo-se apenas às formas de autoritarismo. Em outras palavras, a escolha estaria apenas entre a democracia liberal e a ditadura. O medo das massas marca o contexto dos debates sobre a democracia em sua fase inicial. A Revolução Industrial produziu uma nova classe, a classe operária, e mudou radicalmente a configuração da vida urbana. Ortega Y Gasset (1962), em A rebelião das massas, trata da emergência do “homem médio que hoje se vai apoderando de tudo” (GASSET, 1962, p. 38). A massa precisa ser contida, pois con�gura uma ameaça aos valores da civilização. A resistência das elites — incluindo a emergente burguesia — para admitir o povo em seu projeto se insere em uma confusão comum. A 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 18/39 discussão sobre a democracia liberal se confunde, por vezes, com a do republicanismo que encampou a luta contra o Antigo Regime. Segundo Starling (2018), durante a conjuração mineira, no Brasil Colônia, os republicanos na capitania das Minas Gerais — subversivos à ordem da época — discutiam o problema da liberdade, porém não sem externar imensas reservas com a questão da inclusão dos negros e das massas mais incautas nos processos políticos então elaborados no âmbito da conjuração, que visavam substituir a ordem da Coroa. Exemplo O padre Carlos Correia de Toledo e Melo, influente nas Minas Gerais do século XVIII, era favorável a estender a igualdade legal a todos os moradores da capitania. Ao mesmo tempo, “considerava a extensão da igualdade de poder uma completa irresponsabilidade”, porque, segundo a autora, “no final do século XVIII, a questão da liberdade e demais direitos, que corroía o Antigo Regime, habitava um paradoxo com a escravidão, base pouco questionada da economia moderna então se expandindo.” (STARLING, 2018, p. 142). Monteiro Lobato e Alcibíades Pizza argumentaram, em um manifesto contra a universalização do voto em 1924, que o voto obrigatório conduzia massas incautas para o processo eleitoral, “distorcendo e viciando os resultados do pleito, já que os votos da maioria ignorante esmagam os votos da minoria pensante” (COSTA, 2008, p. 45). Monteiro Lobato. A participação, portanto, tem sido encarada como um problema de difícil solução por diversos teóricos desde a constituição das primeiras experiências democráticas, ainda muito ligadas a repúblicas conduzidas por elites aristocráticas/burguesas. Ideia de representação. Na prática, as revoluções liberais foram desaceleradas pela percepção comum entre a alta burguesia e a nobreza/aristocracia — inimigas no processo de derrubada do Antigo Regime — de que era necessário conter o processo revolucionário antes que ele prosperasse demandas das classes populares. É assim que a burguesia passa, rapidamente, em termos históricos, de classe revolucionária a classe conservadora. Essa é a discussão de 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 19/39 fundo sobre o problema da representação: uma relação de poder. Democracia deliberativa Confira neste vídeo o conceito de democracia deliberativa e os teóricos que contribuíram para essa formulação. Deliberar, etimologicamente, pode significar tanto ponderar quanto decidir, razão pela qual podemos acentuar pelo menos dois empregos dotermo na teoria da democracia: Schumpeter e Rawls Momento da tomada de decisão em si. Habermas e Cohen Processo pelo qual dois ou mais agentes avaliam e discutem os termos de determinada questão. A ideia de que a democracia deve ser orientada por um processo de ampla deliberação entre os cidadãos é antiga, e data dos primórdios democráticos na antiga polisgrega, durante o século V a.C. Podemos dizer que a democracia deliberativa constitui um modelo que advoga por ampliação da participação da sociedade para além das esferas representativas institucionalizadas. Teorizado principalmente a partir das obras de John Rawls e Jurgen Habermas, esse modelo apregoa que as decisões políticas devem ser tomadas por meio de um processo de deliberação entre livres e iguais. A pretensão da democracia deliberativa é a possibilidade, graças a procedimentos adequados de deliberação, de alcançar formas de acordos que satisfaçam: Legitimidade democrática Entendida como a soberania popular (a vontade do povo). Racionalidade Entendida como os direitos liberais. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 20/39 Esses direitos pressupõem a constituição de uma densa esfera pública na qual se realiza o exercício coletivo da política, tecido em que se desenrola a deliberação. A partir daí, Rawls e outros teóricos dessa corrente enfatizam os princípios de justiça, que sempre requerem uma posição de neutralidade. Em suma, esse modelo é entendido como um sistema de arranjos sociais e políticos capaz de ligar o exercício do poder ao exercício da razão entre iguais. Consenso é a palavra-chave e a governança figura como um exercício em busca da harmonia dos interesses sociais. O modelo deliberativo propõe, portanto, a transcendência dos limites impostos pela representação, e tem suas fundações conceituais na teoria de Rousseau (a vontade geral, 1973), que se baseia na participação individual pautada por um modelo capaz de gerar interdependência entre os cidadãos e a coletividade por meio de instituições mediadoras. Segundo essa corrente, a participação teria um impacto psicológico sobre os indivíduos, levando-os à preservação do sistema participativo, uma vez que suas propostas requerem um mínimo quórum para prosperar. Jean-Jacques Rousseau. Nenhum cidadão seria capaz de realizar qualquer coisa sozinho, pois precisa dos demais, o que o levaria a pensar no bem comum na formulação de suas propostas. A “vontade geral” é justa de acordo com Rousseau, uma vez que os interesses individuais estão sempre guarnecidos e articulados pelo interesse público. Para garantir esse sistema, seria necessário um mínimo de igualdade política, por isso existe a necessidade de garantir a propriedade individual, de modo que haja um equilíbrio socioeconômico. Dentro dessa lógica, o indivíduo teria garantida também a sua liberdade, pois, para Rousseau, a sensação de liberdade aumenta quando ele participa do processo de tomada de decisão. O que Benjamin Constant classificou de liberdade dos antigos, ou seja, a liberdade pré-moderna, antes do liberalismo e das noções privadas de indivíduo, uma liberdade que corresponde à participação política. A relação entre a autoridade das instituições e a educação dos indivíduos para a vida pública é, a rigor, bastante necessária para o funcionamento desse sistema. John Stuart Mill (2015) também enfatiza esse ponto. Para ele, o bom governo depende da promoção de certas características nos indivíduos que possam compor um todo social capaz de garantir a estabilidade, e essa educação se daria pela prática institucional. Assim, o sujeito deve ser educado para o interesse público, pois, caso se volte exclusivamente para seus interesses privados (como ganhar dinheiro), se tornará alienado do público e não será capaz de preservar a sociedade que, em última análise, abriga os seus interesses privados. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 21/39 John Stuart Mill. A história demonstra que, em qualquer sociedade organizada em larga escala, alguma forma de representação se faz presente como uma necessidade. Por isso, a preocupação central de Mill era como garantir que o poder estivesse nas mãos de uma elite educada. Além disso, seria necessário um mínimo de igualdade econômica para fazer valer a igualdade política. O modelo agregador interpreta a democracia como um processo em que as preferências dos cidadãos são agregadas nas suas escolhas de políticas e de representantes públicos, cujo objetivo é decidir quais líderes, regras e políticas corresponderão melhor às diversas preferências. Em uma democracia que funciona bem, são livres as expressões e as competições entre as preferências, com métodos confiáveis e justos para somá-las e obter resultado. Esse modelo tem muitos problemas, oferecendo apenas uma fraca base motivacional para aceitação dos resultados de um processo democrático como legítimo (YOUNG, 2000, p. 64). Se mesmo no seu melhor a democracia seria simplesmente um mecanismo agregador de preferências que podem ser subjetivas, e o resultado justo reflete quais preferências são mais fortes ou amplas, então não haveria razão para que aqueles que não têm essas preferências sigam as regras dos seus resultados. Eles, simplesmente, acatariam por falta de opção, por serem a minoria, mas sempre estariam dispostos a desrespeitá-las. Resumindo O processo não produz consenso e, portanto, tem a instabilidade como seu fator mais genuíno. A conexão entre democracia e justiça aparenta ser circular, mas Young explica que nenhuma democracia é absolutamente justa. Inequidades estruturais de riqueza e de poder reforçam os procedimentos democráticos, marginalizando as vozes e os interesses menos privilegiados. A questão da inclusão assume o protagonismo no debate deliberativo, no qual a democracia aparece significada por uma horizontalidade. O fator inclusão pode ser usado para quebrar o círculo em que a desigualdade política produzida pela inequidade social e econômica 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 22/39 reforça tal desigualdade — precisamente, a cena contemporânea, em termos globais. Deliberative Democracy Now (Democracia Deliberativa Agora): manifestantes pedem mais participação no processo, EUA. A política é a ferramenta de ação para produzir inclusão e reduzir as inequidades, o que, por sua vez, reforçará o processo de inclusão, constituindo um círculo virtuoso. Por mais estrutural que seja um quadro social desigual e violento, não importa o grau de complexidade, ele está sujeito a soluções políticas e não há caminho fora delas. Compreender a história é, necessariamente, desviar de respostas fatalistas e simplistas, e entender que a humanidade é ampla e diversa e se reinventa sempre que as necessidades demandam. Existem duas formas de exclusão política: Externa É aquela que mantém alguns indivíduos ou grupos fisicamente distantes dos processos de tomada de decisão. Interna É aquela cuja interação privilegia tipos específicos de expressão e a participação de determinadas pessoas é dispensada. As desigualdades de poder e de recursos frequentemente conduzem a essas exclusões, nas quais alguns cidadãos com igualdade de direitos formais têm pouco ou nenhum acesso aos procedimentos e ao fórum de decisões por meio dos quais poderiam exercer influência sobre os destinos da sociedade. Situações de comunicação política, em que os participantes reconhecem explicitamente os outros participantes, são substancialmente mais inclusivas do que aquelas em que não há esse reconhecimento. No caso de líderes comunitários, por exemplo, o lugar de fala pode servir para deslegitimar as suas demandas e a sua própria fala. Uma das principais formas de exclusão política é a negação da fala. Osindivíduos não dotados de educação formal sofrem esse tipo de exclusão, tendo sua fala deslegitimada antes mesmo de ser concluída ou até iniciada. Exemplo É emblemático o caso do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que por muito tempo encontrou enorme resistência dos círculos mais abastados por ter origem pobre e fala simples, fora da norma culta. Em um país com acesso tão restrito à educação formal, esse tipo de exclusão assume papel determinante para a concentração dos recursos políticos em disputa. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 23/39 No contexto das complexas políticas da sociedade de massas, uma reclamação comum quanto à exclusão invoca normas de representação e muitas pessoas argumentam que os grupos sociais em que estão inseridas não são adequadamente representados em discussões influentes ou em órgãos de tomada de decisão. O conceito de sociedade civil vai além dos movimentos de oposição aos governos autoritários — como apregoa a teoria liberal de Locke sobre o direito de resistência —, e possui muitas reivindicações para um papel central da sociedade na promoção da democracia e do bem-estar social sob regimes constitucionais livres. Manifestantes em protesto pela democracia e igualdade racial em oposição ao governo durante a pandemia de covid-19 em 2020. Uma sociedade civil vibrante, constituída por cidadãos educados para a política e para a vida pública, promove confiança, escolhas e virtudes democráticas, e permite que os setores sociais se expressem. A vida política permite que os cidadãos exponham as injustiças, tornando mais confiável o exercício de poder, e aproximando Estado e sociedade. Os cidadãos podem influenciar as políticas de Estado e as instituições corporativas, ou catalisar mudanças práticas dentro da própria sociedade civil a partir da discussão pública. É assim que, por meio do encorajamento plural das atividades associativas, as democracias representativas podem ser mais participativas, segundo o modelo deliberativo. Ato em defesa do Estado Democrático de Direito e contra o vandalismo aos palácios da Praça dos Três Poderes após a posse do presidente eleito. São Paulo, 2023. É preciso afirmar, também, que a sociedade civil não se apresenta como alternativa preferível ao Estado como promotora da democracia e da justiça social, uma vez que as instituições do Estado têm capacidades únicas para coordenação, regulação e administração em larga escala. Portanto, ainda que a sociedade civil sofra tensões com as instituições estatais, é necessário reforçar ambos os lados para aprofundar a democracia e corrigir a injustiça, especialmente aquela que advém da concentração do poder econômico. A vida associativa da sociedade civil pode fazer muito na promoção da autodeterminação, mas, por conta da sua pluralidade e da sua relativa falta de coordenação, a sociedade civil só pode avançar minimamente 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 24/39 nos valores de autodesenvolvimento. As instituições estatais são necessárias porque diminuem a opressão e promovem o autodesenvolvimento. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 25/39 3 - Democracia agonística Ao �nal deste módulo, você será capaz de analisar os pilares do conceito de democracia agonística. Crítica aos modelos agregativo e deliberativo Confira as críticas aos modelos e as características mais importantes dos modelos agregativo e deliberativo. Modelo agregativo Baseia-se na representação, constituindo a experiência democrática a partir da participação do cidadão em eleições competitivas e sob voto universal. Contudo, possui a limitação de afastar o eleitor do processo de tomada de decisão, marcando a relação entre povo e política exclusivamente pelo voto. Por mais importante que o voto seja (e ele é fruto de muitos processos de luta, por diversas vezes sangrentos), os críticos do modelo agregativo salientam que votar não deveria ser a única forma de participação, uma vez que o voto apenas garante o acesso de um candidato (representante) ao poder político, e isso, por si só, não garante que tipo de conduta ou que tipos de decisões ele irá tomar. Inclinações políticas podem mudar, interesses também são intercambiáveis e qualquer político está sujeito à influência de poderosos lobbies. Além disso, posto de forma simples, pessoas mentem. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 26/39 Simulação de voto na urna eletrônica. O voto constitui uma porta de entrada para um representante na esfera dos poderes políticos do Estado, onde a vida das pessoas é decidida por meio de múltiplas decisões. No entanto, mesmo sendo um instrumento imprescindível para a experiência democrática moderna — que observa alguma necessidade de representação, restando a questão sobre qual é a medida dessa representação —, o voto sozinho não garante uma democracia equilibrada e justa. O modelo agregativo/representativo, portanto, oferece ao cidadão a oportunidade de decidir quem acessa o poder político em seu nome, mas não oferece mecanismos ulteriores de controlar a conduta desses representantes, de modo que a relação entre representantes e representados submerge à dinâmica da vida cotidiana, que sobrecarrega os cidadãos com seus problemas privados (trabalho, família) e os afasta de qualquer relação de accountability com os políticos que elegeu. Ainda que o cidadão busque estreitar a relação, ele não dispõe, nesse modelo, de mecanismos eficazes para exigir que seu representante permaneça orientado pelos compromissos de campanha. O único poder do eleitor é, então, o próprio voto, que ele pode negar ao representante que não o agrade em uma próxima eleição, para o mesmo cargo (reeleição) ou para outro. Democracy is not for sale (A democracia não está à venda): manifestantes protestam em frente à Casa Branca nos EUA (2016) contra o sistema de financiamento de campanha que favorece a classe dominante. Diversos estudos demonstram o quanto os políticos pautam suas ações a partir de suas preocupações com certas expectativas do eleitorado, em função de não perderem votos no processo eleitoral. Entretanto, esse poder do eleitor não garante uma participação mais direta e acarreta um afastamento entre representantes e representados, na medida em que a representação se insere em um contexto no qual os cidadãos se afastam da participação política, uma vez que ela não lhes é exigida. Como vimos, a prática da democracia no cotidiano, como defendem os teóricos do modelo deliberativo, seria pedagógica no sentido de formar os cidadãos para a participação na vida pública. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 27/39 Modelo deliberativo Também chamado de democracia direta por alguns autores, ela se estrutura na ideia de que o modelo agregativo é insuficiente para garantir a experiência democrática, e tende, no limite, a corromper e desintegrar a própria democracia. Isso se daria pelo afastamento entre o povo e os representantes, ontológico ao modelo, o que leva à corrupção da classe política por interesses poderosos, representados pelos lobbies. Esses, por sua vez, tendem a deteriorar o interesse público gradativamente em prol do interesse privado, gerando consequências que inevitavelmente piorarão a qualidade de vida da maioria da população. Comentário A piora na qualidade de vida produz um quadro perigoso de ressentimentos e de frustrações que contribuem para desgastar as instituições democráticas junto ao povo, que passa a não ver vantagens no modelo por se sentir cada vez menos representado.O modelo deliberativo propõe, a partir da crítica ao modelo agregativo, formas de participação mais amplas, para além do voto. Inspirado no conceito de vontade geral de Rousseau, esse modelo parte da premissa de que os cidadãos, dotados de razão, são capazes de deliberar seus interesses e chegar a um consenso. Esse consenso, sendo racional, não poderia jamais atentar contra o interesse público, pois todos os cidadãos entendem, empiricamente, que dependem da comunidade para atingir seus próprios interesses privados. Embora esse raciocínio faça sentido em uma primeira análise racional, há problemas nele. Seus críticos apontam que, em primeiro lugar, a razão não existe de forma pura, mas sofre contingências históricas, de modo que os interesses em jogo em qualquer sociedade, em qualquer momento de sua trajetória, implicam necessariamente em conflitos, e muitos deles inegociáveis. O consenso não seria, segundo essa perspectiva crítica, almejável de maneira universal e apriorística. Ao contrário, seria possível apenas em circunstâncias muito específicas e de divergências tênues. Estudantes de universidades públicas de São Paulo protestam contra cortes no orçamento da Educação, 2022. Para os críticos do modelo deliberativo, ele se assemelha a uma perspectiva autoritária porque contempla a sociedade como um coletivo que tende à harmonia que, nessa acepção, corresponde à ausência de conflitos. Essa configuração social supõe uma ordem rígida, na medida em que nega a pluralidade e a complexidade dos interesses humanos, que estão sempre sujeitos ao conflito. O desafio da democracia não seria eliminar o conflito, mas saber mediá- lo, transformar inimigos em adversários, jamais negando a essência agonística da sociedade. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 28/39 Para exemplificar o que queremos dizer com autoritarismo, basta mencionar o aspecto central da ordem idealizada pela Doutrina de Segurança Nacional, produzida pela Escola Superior de Guerra e pautada em uma compreensão de sociedade diretamente formulada pelas elites militares. Segundo a doutrina, o projeto de sociedade que o Brasil deve concretizar objetiva uma sociedade harmônica e sem tensões sociais, vistas pela caserna como sinônimo de desordem. A Segurança Nacional seria ampla e daria conta de cuidar de todos os interesses e vontades nacionais, definidos nos objetivos nacionais. Militares brasileiros. Argumenta-se que a ideologia de segurança nacional defendida pelos militares é inalienável do período autoritário, sendo incompatível com a ordem almejada por uma sociedade democrática — uma ordem necessariamente plural e repleta de contradições. Comentário Os objetivos nacionais pensados pelos militares correspondem a uma noção abstrata, homogênea e simplificada de ordem, cujo objetivo é estabelecer o controle social e, autoritariamente, o modelo militar como padrão social. Porém, a Constituição nada mais é do que um pacto de convivência da nação e da sociedade, que coexistem “sob o signo do conflito da contradição, do jogo de interesse e do conflito entre capital e trabalho, entre o professor e o aluno, entre o homem da livre iniciativa e o homem do trabalho público” (BACKES, 2009, p. 266). A ordem almejada pelos militares tratava com desprezo as contradições e os conflitos inerentes a uma nação complexa e diversificada; contradições previstas no regime democrático. E o modelo deliberativo, paradoxalmente, se aproxima de uma concepção de ordem similar, baseada na ausência de contradições. A experiência histórica sugere que tal ordem só poderia resultar de um governo autoritário. Fora dessa possibilidade (concreta, histórica), a democracia deliberativa tal qual idealizada seria platônica, ideal e inviável pelo equívoco de suas premissas. Democracia plural e agonística Confira neste vídeo o conceito de democracia agonística e veja alguns exemplos que ajudam no entendimento. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 29/39 A noção de pluralismo agonístico, base da ideia de democracia agonística, encampada principalmente por Chantal Mouffe, decorre de um diagnóstico crítico a respeito das teorias liberais sobre a democracia, até então hegemônicas na literatura. Tanto o modelo agregativo quanto o deliberativo, como vimos, partem de premissas liberais sobre o mundo, que são, em sua ontologia, determinantes para a crise da democracia liberal que podemos atestar ao redor do globo. A discussão sobre a democracia agonística toma por base a análise desses modelos: Modelo agregativo Tem como principal problema uma perspectiva elitista, que distancia demais a participação popular da política ao estabelecer o voto como único meio/instrumento de participação. Modelo deliberativo Propõe uma mudança radical do agregativo ao defender a ampla participação popular nos processos de tomada de decisão na esfera pública, porém comete um equívoco ao promover a ideia de deliberação pelo consenso sem considerar o conflito natural da diversidade presente nas sociedades. Será impossível produzir uma teoria democrática que possa respaldar um modelo aplicável sem considerar a realidade em todas as suas dimensões. E uma dimensão elementar dela é o conflito, que tem produzido cada vez mais antagonismos. Em uma definição básica, a política pode ser considerada um conjunto de práticas que visam organizar e administrar os conflitos e as tensões sociais pela via de instituições. No limite, como escreveram diversos autores da teoria política, tais como Clausewitz (1996) e Schmitt (2018), a política passa à guerra — outra dimensão do mundo político, não outra forma de relação em si. Pensar a guerra como política é particularmente necessário porque nos leva a — como propôs Foucault, invertendo a famosa máxima de Clausewitz — pensar a política como guerra. Se ambas constituem um continuum, como a melhor literatura e experiência registrada indica, o que as integra? O que unifica a natureza de ambas? O conflito, o antagonismo. E o que as separa? As formas de mediar o conflito. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 30/39 Na guerra A mediação se dá pela violência e pela busca da erradicação do outro. Na política A mediação se dá pela assimilação do outro como adversário, não como inimigo. Para Carl Schmitt (2018), o que denota a natureza do político é a relação amigo/inimigo, que flerta com a guerra. O antagonismo seria a essência da política, dimensão continuada com a guerra quando falham os dispositivos diplomáticos de mediação. Carl Schmitt. De acordo com esse autor, podemos dizer que o político, a partir da lógica de nós contra eles e de amigo e inimigo, está sempre relacionado a formas coletivas de identificação, grupos, alguma coletividade constituindo uma dimensão antagonista. Essa constatação é particularmente importante para a análise ontológica da política, porque 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 31/39 afasta a possibilidade de um consenso racional, como apregoam os defensores do modelo deliberativo. As últimas décadas marcam uma hegemonia da democracia liberal e, mais do que isso, de uma cosmovisão neoliberal, cuja marca é o aprofundamento de um modelo concorrencial e mercantilizado para todas as dimensões da vida humana. Uma das características desse modelo é a ideia de que a razão consiste numa ferramenta capaz de moldar a realidade e produzir um tempo sem conflito, o “fim da história” de Fukuyama. A teoria liberal está profundamente marcada por uma percepção histórica da sociedade, regida por modelos abstratos pautados no poder das ideias sobre as relações humanas, colocando em segunda ordem relações de poder e estruturas sociaisde hegemonia historicamente produzidas. Tal visão consiste em um raciocínio teleológico que se forma a partir da ideia de que a humanidade evolui progressivamente até um estágio final, racionalmente elaborado e capaz de apresentar uma solução final para os conflitos, que seriam datados de etapas anteriores. Esse destino seria a democracia liberal, o fim da história, e sua maior bonança seria a harmonia proporcionada por uma sociedade regulada pelas leis do mercado. O problema com o modelo racional é que ele escanteia a política. A perspectiva liberal concebe uma sociedade que pode equacionar perfeitamente seus interesses segundo a lógica do mercado, o que exige pensar as coletividades humanas fora da política. Os defensores do modelo agonístico alegam que os interesses humanos, coletivos e individuais, não se pautam por uma quadra exclusivamente racional, mas mobilizam também sentimentos e afetos; e, portanto, exigem alguma forma de identificação para serem conduzidos politicamente. Essa característica permanente e substancial das coletividades humanas que constituem a sociedade impõe a política também como elemento constitutivo da sociedade, a partir da presença incontornável de antagonismos, pois a sociedade se constitui de pluralidades além da equação racional proposta pela teoria liberal. Marcha das mulheres em defesa da democracia. São Paulo, 2023. No texto The returnal of the political, publicado em 1993, Mouffe enuncia que o conflito é inerradicável ao político, e que o desafio da política democrática é transformar os antagonismos inerentes à política em agonismos. A política refere-se ao nível ôntico (MOUFFE, 2015), como conjunto de práticas, discursos e instituições por meio das quais uma ordem é moldada para organizar a coexistência humana sob as contingências específicas de um dado momento histórico. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 32/39 Atualmente, no neoliberalismo, a falta de compreensão sobre o político (e a política) estaria por trás da incapacidade de se pensar em soluções institucionais para as crises que estão ocorrendo, marcadas por crescentes antagonismos que não encontram expressão institucional. Como resultado, a democracia liberal está sendo colocada sob tensão. Para essa corrente, o político se define pela forma como a sociedade é fundada, a partir da ideia de que o antagonismo — tensões, divergências de interesses e identidades — é constitutivo das sociedades humanas. A principal deficiência das teorias liberais — orientadas pelo racionalismo e pelo individualismo — é a negação do caráter irredutível do antagonismo. Segundo Mouffe (1993, p. 1), seria “a incapacidade do pensamento liberal para compreender a sua natureza e o caráter irredutível do antagonismo que explica a impotência da maioria dos teorizadores políticos na situação atual”. Chantal Mouffe. Mouffe resgata Carl Schmitt, um teórico político profundamente antiliberal, para pensar o antagonismo. Apesar da aparente contradição — por se tratar de um autor oposto à tradição teórica democrática —, seu resgate se justifica porque o antagonismo é uma dimensão central para pensar a política, independentemente do rumo que se queira seguir: autoritarismo ou democracia. De acordo com Schmitt, a teoria liberal é incompatível com uma concepção política, porque concebe o antagonismo como circunstancial. Para o autor (2018, p. 51), “a diferenciação especificamente política, a qual se podem reconduzir as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo”, e “o fenômeno do político só pode se conceber através da referência à possibilidade real do agrupamento amigo-inimigo, independentemente do que daí se segue para a valoração religiosa, moral, estética, econômica do político” (p. 67). Assim, inferimos que o político parte da lógica do amigo e inimigo (nós contra eles). É essa a constatação que afastaria a possibilidade de um consenso racional. Portanto, o projeto liberal, que consiste na erradicação do antagonismo seria também a erradicação da política, o que seria impossível de concretizar. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 33/39 Vidas Negras Importam: manifestantes protestam a favor da democracia e contra a discriminação racial. São Paulo, 2020. Mouffe afirma que não se deve buscar a superação da oposição nós/eles, mas formular essa distinção de forma compatível com o pluralismo imanente das sociedades. A partir daí, a autora apresenta este conceito de exterioridade constitutiva: Se aceitarmos que todas as identidades são relacionais e que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação de um ‘outro’ que desempenhará o papel de ‘elemento externo constitutivo’, torna-se possível compreender a forma como surgem os antagonismos. (MOUFFE, 1993, p. 2) E ainda: “A solução autoritária não é uma consequência lógica necessária de tal postulado ontológico; (…) ao distinguir entre 'antagonismo' e 'agonismo', é possível visualizar uma forma de democracia que não nega a negatividade radical” (MOUFFE, 2013, p. 8). Contrariando as correntes liberais que têm pautado o centro do debate, não existe uma pacificação para as tensões sociais em disputa, pois isso equivaleria à extinção da política. Em outras palavras, não seria possível chegar a este destino final de reconciliação na política, como vislumbra o racionalismo liberal, pois toda sociedade corresponde a alguma forma de ordem hegemônica politicamente construída e sustentada sobre contingências históricas e interesses divergentes. Para cada hegemonia há movimentos e interesses contra-hegemônicos, e essa articulação antagonista demanda instrumentos de mediação para transformar o conflito em um debate construtivo (de antagonismo para agonismo). De acordo com Laclau e Mouffe (2015, p. 46): “É vital à política democrática reconhecer que toda forma de consenso é o resultado de uma articulação hegemônica, a qual sempre tem um ‘exterior’ que impede a sua plena realização”. Dito de outra forma, qualquer ordem social “é a articulação temporária e precária de práticas contingentes” (MOUFFE, 2015, p. 17), uma vez que alguma ordem diferente é sempre possível. As sociedades são determinadas por relações de poder historicamente constituídas. Isso significa que modelos abstratos pautados pela estabilização do conflito são incompatíveis com a realidade tal qual se 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 34/39 apresenta na história. O ser é movimento e esse movimento é constituído pelas contradições imanentes do ser. Manifestação em São Paulo, 2018. Dessas contradições ganha vida a política, dimensão constitutiva das sociedades humanas, por meio da qual ordens são instituídas, poderes e estruturas de dominação são erguidos, contestados e derrubados — vide as revoluções liberais. Qualquer percepção diferente disso, tomando a visão agonística, seria alimentar a ilusão de que poderíamos nos libertar do poder. O objetivo principal de uma política/teoria democrática seria reconhecer a dimensão política que habita o social, compreendendo que a política deve ser encarada como um meio de domesticar as tensões e as hostilidades incontornáveis das relações humanas. Segundo Mouffe, portanto, a questão crucial da democracia seria definir o nós/eles de modo que “seja compatível com a democracia pluralista” (MOUFFE, 2000, p. 101). Prossegue a autora: “Depois de aceitarmos a necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos, será necessário encarar a forma como, nessas condições, poderemos criar ou manter uma ordem democrática pluralista” (MOUFFE, 1993, p. 4). A ordem democrática pluralista seria baseada, então, numa nova distinção entre inimigo e adversário, de modo que, paraser aceito como legítimo, o conflito precisa assumir uma forma que “não destrua o ente político”, e permita a existência de algum vínculo entre as partes em conflito para que elas não se tratem como inimigas que devem buscar a erradicação recíproca, mas como adversárias. Atenção! Domesticar os antagonismos e convertê-los em agonismos sob o prisma da disputa entre adversários, não inimigos, não significa converter as disputas sociais em concorrência de mercado, segundo a lógica liberal criticada antes, porque, dessa forma, elimina-se a dimensão antagonista e recai-se na linha liberal do consenso racional (MOUFFE, 2000, p. 102). Na visão agonística, a categoria inimigo é deslocada, e “continua a ser pertinente em relação àqueles que não aceitam as ‘regras do jogo’ democrático e que, dessa forma, se excluem da comunidade política” (MOUFFE, 1993, p. 4). A ideia é que o modelo adversarial, ao viabilizar que as vozes dissonantes se organizem e se manifestem, diminui a probabilidade de que conflitos mais violentos e inconciliáveis (antagonismos) surjam. Assim, a indisposição para reconhecer o caráter agonístico da sociedade abre margem para a emergência de interesses coletivos que podem não compartilhar dos ideais mínimos que sustentam a democracia — algo que a história contemporânea tem demonstrado. Segundo Mouffe, foi a ênfase no consenso racional que levou à exclusão da dimensão afetiva e identitária, inalienável da política, ou seja: “Para agir politicamente, as pessoas precisam ser capazes de se 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 35/39 identificar com uma identidade coletiva que ofereça uma ideia de si próprias que elas possam valorizar” (MOUFFE, 2015, p. 24). São justamente esses afetos que têm sido mobilizados por partidos e grupos radicais e populistas, a maioria de extrema direita, que prometem reconectar o povo com o poder após décadas de hegemonia de instituições liberais pautadas no distanciamento pela representação típica dos modelos liberal e neoliberal. Manifestantes protestam em frente a quartel contra a eleição democrática. São Paulo, 2022. Eis o dilema posto, dentro da órbita da democracia liberal contemporânea: representação afastada x participação predatória. A saída para esse dilema seria o reconhecimento do agonismo para, então, se criar práticas que possam resolver estes dois problemas profundamente relacionados: Aproximar as pessoas da política Preservar a democracia Concebida como está, pelo debate liberal, a democracia encontra-se ameaçada pelo incremento da participação, pois esta não se promove equacionada com o conflito, mas armada por ele, que se torna uma força antidemocrática. O reconhecimento do conflito implica no reconhecimento da pluralidade. Só assim será possível conceber um modelo de democracia coerente com o que nos revela o processo histórico: a história é movimento, e o movimento da história impede qualquer projeto que consista em esterilizar a política, uma vez que é a contradição que constitui o movimento das sociedades e, portanto, da própria história. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 36/39 Considerações �nais A democracia, hoje hegemônica segundo o modelo liberal, sofre com a tendência à oligarquização nas rédeas do grande capital. Na prática, o poder do dinheiro compromete seriamente, quando não anula, o processo democrático, tornando-o inacessível às camadas populares. Como a democracia é um regime baseado sobretudo no acesso, esse distanciamento tende, no longo prazo, a produzir a erosão das próprias instituições democráticas, que perdem a legitimidade junto ao povo quando este sente-se encurralado pelo avanço do grande capital que domina aquelas instituições. A conta fecha, dramaticamente, a favor de saídas autoritárias, como a realidade contemporânea tem sinalizado perigosamente. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 37/39 Uma vez que a democracia consiste numa prática, isso significa uma construção permanente, portanto não existe democracia consolidada. A democracia é frágil e corre sempre muito perigo, pois não está respaldada por nenhuma teleologia histórica, como o quiseram muitos teóricos liberais (ou neoliberais) no afã do pós-Guerra Fria. O mote da teoria agonística é fundamentar uma democracia pautada pela transformação do antagonismo em agonismo, dentro de um conjunto de práticas institucionais que radicalizem a democracia para salvá-la do desgaste inerente ao afastamento gerado entre as instituições e o povo pela democracia agregativa, ou das ilusões presentes no modelo deliberativo, que se baseia numa impossível racionalidade em busca do intangível consenso. A pluralidade das sociedades requer dispositivos institucionais de mediação que civilizem o conflito (irredutível) e que sejam capazes de proteger a democracia, muito vulnerável às contradições que escalam em meio à conjuntura de intensa acumulação do neoliberalismo. E essa discussão remonta necessariamente ao problema da justiça social, sem a qual a horizontalidade indispensável ao processo democrático não pode ser garantida. Podcast Ouça agora os principais pontos abordados, desde a construção do conceito de democracia até às novas formulações do pensamento democrático. 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 38/39 15/09/2023, 21:07 Democracia agonística https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/07285/index.html#imprimir 39/39
Compartilhar