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A CLÍNICA DO TRAUMA AULA 4 Profª Giovana Fonseca Madrucci 2 CONVERSA INICIAL Na etapa anterior, falamos brevemente sobre uma forma de compreender o trauma, a qual está sendo cada vez mais revisitada e ganhando terreno na clínica contemporânea, que é a teoria do de Sàndor Ferenczi, que é conhecido por suas colocações com relação à proposição de uma elasticidade da técnica no que diz respeito aos casos difíceis (de núcleo traumático, principalmente) e por seu debate com Freud sobre essas questões. Vamos fazer uma pequena retomada do que aprendemos na etapa anterior? Ferenczi, com base na utilização da técnica ativa, pôde perceber aspectos transferenciais que foram de suma importância para o desenvolvimento de sua teoria do trauma. Ele visualiza, ao utilizar as proposições da técnica ativa (proibições, sugestões e até mesmo a imposição de uma data para o fim da análise) que, transferencialmente, os pacientes repetiam com a figura do analista as vivências traumatizantes, e muitas vezes o analista ficava na posição de alguém que gera uma espécie de retraumatismo para esse sujeito. Com essas observações, pôde inferir que o paciente faz um movimento de identificação com o analista, que o remete a uma identificação anterior com a figura de um agressor. Ferenczi desenvolve sua teoria do trauma tendo em vista os casos em que um abuso ou agressão real acontece com o sujeito, e esse é o centro de sua discussão com Freud. Assim, estabelece que um fator primordial para que ocorra o trauma é o desmentido, que seria como que a falta de acolhimento do adulto para com a criança abusada. Esse desmentido, que seria negar aquilo que a criança fala ou dar um estatuto de verdade absoluta que impede que a criança fale/elabore aquilo que foi vivenciado, deixando assim a criança jogada no desamparo e na angústia, que geraria o trauma. A defesa que essa criança utiliza diante da angústia é a identificação com o agressor. A introjeção do agressor no Eu e a consequente identificação com ele são defesas primitivas que a criança utiliza para gerenciar a angústia sentida devido ao abuso/agressão. Como consequência, ocorre a clivagem, e o Eu desse sujeito torna-se dividido. Para Ferenczi, a consequência do trauma é essa cisão egoica. Com isso, aponta a necessidade de um fazer clínico na qual a empatia e a hospitalidade são extremamente essenciais, de forma que a análise seja um espaço de elaboração do vivido e não gere retraumatismo. 3 Nesta etapa, trataremos das construções teóricas de um outro autor do campo psicanalítico cujas contribuições são de extrema importância para o entendimento do fazer clínico diante das situações relacionadas ao trauma, que é Jacques Lacan. Lacan faz uma brilhante releitura da teoria do trauma de Freud, e traz aprofundamentos bastante relevantes para a condução clínica dos casos de núcleo traumático, dentre os quais principalmente a noção de real. TEMA 1 – JACQUES LACAN E SEU RETORNO À TEORIA FREUDIANA DO TRAUMA Nesta etapa, trataremos das contribuições de Jacques Lacan para a compreensão do trauma estrutural. De acordo com Bastos (2015), seu percurso como psicanalista é instigante e polêmico. Formado em medicina e filosofia, desde muito cedo, antes mesmo de ingressar na faculdade, interessou-se por estudar grandes filósofos (como Espinosa e Nietzche). As questões trabalhadas em sua tese de doutorado – que tratava principalmente da questão da paranoia e da psicose – o levaram a uma aproximação cada vez maior da psicanálise freudiana, possibilitando que desenvolvesse uma leitura rigorosa da obra de Freud. Em 1938 Lacan passa a integrar a Sociedade Psicanalítica de Paris onde permaneceu participando da formação de psicanalistas e também atuando como supervisor. A partir de uma divergência em relação à proposta de Lacan sobre a utilização do tempo lógico das sessões, ao invés do tempo cronometrado pelo relógio, muitos questionamentos surgiram e instalou-se uma verdadeira polêmica que resultou em sua saída da instituição e seu ingresso na Sociedade Francesa de Psicanálise em 1953. (Bastos, 2015, p. 137) Nesta etapa, não é nosso objetivo o aprofundamento sobre quem foi Lacan, mas termos em mente que ele foi um grande releitor de Freud. Sendo assim, retornemos brevemente a Freud em O caso do homem dos lobos, que é um tanto quanto emblemático para o desenvolvimento de uma teoria do trauma estrutural e da atemporalidade do inconsciente. Assim, discutiremos a visão de Lacan sobre o caso do homem dos lobos, na qual, segundo Favero (2009), ele evidencia dois pontos: 1. A questão do trauma ocorrendo só-depois, ou melhor, em dois tempos: a experiência original infantil e retroativamente o trauma propriamente dito; 2. A importância que Freud deu ao retorno à cena traumática: 4 Na neurótica freudiana, um acontecimento patogênico e traumático era considerado como causa do sintoma (Freud, até 1897). A colocação em palavras de um episódio traumático pelo cliente era o que determinava a eliminação do sintoma. Assim, o relevo dado à subjetividade do trauma sexual faz do sintoma neurótico o resultado de um acidente na história. (Favero, 2009, p. 121) Assim, Favero (2009) ainda nos situa que, para Lacan, com base na leitura de O caso do homem dos lobos – cuja interpretação principal da cena traumática primária era que, quando bebê, ele havia presenciado os pais se relacionando sexualmente. Independentemente de a cena ter ocorrido ou não, ela estaria articulada na fantasia do sujeito – o trauma seria um acontecimento ocorrido em um só-depois, ou seja, o valor do trauma primário seria resultado de uma ressignificação. Portanto, a primeira experiência infantil cujo potencial é traumático, para Lacan (1953, p. 56), se torna o núcleo do recalque. Ou seja, a forma tomada pelo recalque será proveniente dessa primeira experiência traumática da infância. Favero (2006) cita o próprio Lacan: As formas que toma o recalque são atraídas por esse primeiro núcleo, que Freud atribui então a uma certa experiência, a que chama a experiência original do trauma. [...] retenham que o núcleo primitivo é de um nível diferente dos avatares do recalque. É o fundo e o suporte deles. (Lacan, 1953-1954) O Caso do homem dos lobos configura, portanto, em função da leitura feita por Lacan, que a experiência original do trauma está no núcleo de recalque, mas se diferencia dele, pois faz parte de uma história excluída do sujeito e que somente em análise ela pode ser reintegrada à história do sujeito. Dessa forma, Lacan, assim como fez Freud, reforça que “o passado deve ser em certa medida restituído: o que foi recalcado deve ser reevocado durante o tratamento analítico, apesar de nesse processo surgirem problemas e ambiguidades que o recalcado levanta quanto à sua natureza, função e definição” (Favero, 2009, p 122). O que fica claro aqui é que inicialmente, em sua obra, Lacan entende que o trauma tem uma função estrutural, de modo que a cena primária só é possível de ser reconstruída em análise com base em seu efeito traumático no sujeito. Em O caso do homem dos lobos, a repetição do sonho onde os lobos ficavam em sua janela olhando para ele não evocava diretamente a cena da relação sexual dos pais, mas o sonho apontava para uma primeira manifestação do trauma para o sujeito. Assim, uma noção clínica do trauma se faz desfazendo os nós do sintoma, trazendo suas nuances e seus fragmentos à tona. 5 Aqui devemos considerar que estamos tratando das contribuições de Jaques Lacan para a teoria do trauma como função estrutural, ou seja, a experiência infantil que se torna núcleo da forma do recalque. Nesse ponto, torna-se bastante importante retomar a concepção lacaniana de que “o sujeito do inconsciente não nasce nem se desenvolve; ele se constituie só pode ser concebido a partir do campo da linguagem” (Guzmán; Derzi, 2021, p. 7). TEMA 2 – O SUJEITO COMO EFEITO TRAUMÁTICO DA LINGUAGEM Para entendermos um dos aspectos importantes que Lacan nos traz acerca do trauma, precisamos entender que a constituição subjetiva em si, para esse autor, tem um fundo traumático. Isso devido ao fato de o sujeito se constituir no campo da linguagem, que traz por si só esse traço. Guzmán e Derzi (2021) nos situam que, em um primeiro momento, o bebê é um sujeito mítico da necessidade. Trata-se de um corpo que não possui marcas nem inscrições, parafraseando Lacan, “um pedaço de carne em sua estupida e inefável existência, em que impera uma necessidade biológica de sobrevivência que só pode ser expressa por meio do grito, meio pelo qual faz um apelo ao Outro” (Guzmán; Derzi, 2021, p. 7). A primeira experiência de satisfação desse bebê seria quando ele entra em contato com um objeto que satisfaz sua necessidade (aqui podemos falar da primeira mamada, por exemplo). Essas satisfações, como já havia nos ensinado Freud sobre “a primeira experiência de satisfação” no Projeto (1896), passam a fazer parte do repertório de registros psíquicos dessa criança: Assim, haverá uma conexão que estabelece uma relação entre a necessidade e o traço perceptivo do objeto que trouxe essa satisfação. É o Outro materno, o Outro provedor que satisfaz essa necessidade. Porém, é necessário que esse Outro dê uma significação ao grito. Assim, a mãe, ou quem for que faça a função materna, interpreta o choro do bebê ao seu modo, o que transformará a necessidade em uma demanda. (Guzmán; Derzi, 2021, p. 88) Concluímos aqui, portanto, que esse bebê será marcado por esse Outro materno, que é também o Outro tesouro dos significantes: como atribuir um significado a um enunciado (significante) que tem como função ser um representante linguístico que dá sustentação à representação do que é irrepresentável? A resposta que encontramos em Lacan é que a lógica do significante seria a constituição do processo de comunicação, endereçamento, 6 interpretação e nomeação daquilo que é da ordem da pulsão, do irrepresentável. Seria, portanto, o acesso do infans à língua e à linguagem (Guzmán; Derzi, 2021) O que temos aqui é que, no início da vida de um sujeito, o corpo se encontra à mercê da linguagem e do significante, que são transmitidos ao sujeito pelo Outro cuidador. É esse encontro entre corpo (fonte das pulsões) e linguagem que Lacan considera como “traumático”: O trauma é entendido como a entrada do sujeito no mundo simbólico. Ele não é um acidente, mas constitutivo da subjetividade. O trauma do sujeito é a exigência da linguagem e a dependência do sujeito ao significante. Devemos lembrar que o sujeito já é nomeado antes dele ter nascido, já se encontra implicado na lógica do Outro. É então crucial que o Outro materno faça a função de nomear e reconhecer o bebê como um sujeito e faça uma significação do seu grito que deve ser interpretado pelo Outro como uma demanda de satisfação. (Guzmán; Derzi, 2021, p. 8) Portanto, à medida que esse corpo vai sendo marcado pela linguagem ele perde a sua relação com a natureza e passa a ser um sujeito de linguagem. Esse Outro cuidador que responde ao apelo do bebê também lhe insere a pergunta fundamental: Che vuoi? (ou: que queres?). Com isso, o sujeito tem seu primeiro encontro com o desejo como sendo o desejo do Outro. Favero (2009, p. 124) nos situa que nessa articulação entre os processos inconscientes e os mecanismos da linguagem, “Lacan destaca que é impossível estabelecer uma distinção válida entre as fantasias inconscientes e o funcionamento da imaginação, se a fantasia inconsciente não for considerada desde sempre dominada e estruturada pelas condições do significante”. Nesse sentido, para Lacan, os objetos só podem existir quando significantizados. A autora ainda destaca que, nesse contexto, o Outro cuidador (a mãe ou quem faz a “função materna” na relação com o bebê) surge como o primeiro objeto passível de ser simbolizado para o sujeito, e faz dele não apenas satisfeito ou insatisfeito, mas desejado ou não desejado: “A ideia de ser desejado é, portanto, essencial, visto que a expressão criança desejada corresponde tanto à constituição da mãe como sede do desejo quanto à dialética da relação do filho com o desejo da mãe, que se concentra no símbolo da criança desejada” (Favero, 2009, p. 124). Dessa forma, o enigma do desejo do Outro, que psiquicamente surge como uma pergunta: “o que eu sou no desejo do Outro?” é da ordem de uma experiência traumática que colocará o sujeito, ao longo de toda a sua vida, a 7 tentar responder a essa questão. O sujeito surge, então, como o próprio sintoma do encontro traumático com o desejo do Outro. TEMA 3 – O TRAUMA COMO UMA EXPERIÊNCIA COM A FALTA Vimos até aqui que o trauma nos ensinos de Lacan, em primeiro lugar, ocupa uma função estrutural na constituição do sujeito: primeiramente, devido ao efeito traumático da linguagem na constituição desse sujeito e na experiência infantil primária na qual a cena traumática se torna o núcleo do recalque. Trata- se do recalque originário que só poderá ser construído em análise, com base em elementos fragmentados. O trauma também será apontado por Lacan, no encontro com o desejo do Outro, pelo qual o sujeito se posicionará ao longo de sua vida na tentativa de responder ao enigma do desejo: o que sou eu no desejo do Outro? Voltando para a condição desamparada do sujeito, deve-se ressaltar que o sujeito nasce na condição de objeto em relação à subjetividade materna e se encontra à mercê da tirania da mãe, como se se encontrasse na boca aberta de um jacaré. O sujeito então se vê obrigado a se tornar um ser falante (falasser) ou será engolido pelo capricho da mãe. (Guzmán; Derzi, 2021, p. 8) O que fica evidente aqui é que a falta é também necessária na constituição do sujeito; quando não há alguma inscrição de falta, não há como um sujeito se constituir. Favero (2009) nos situa que é também pela atribuição de um sentido à falha discursiva que o sujeito constitui o inconsciente, que, na teoria lacaniana, é estruturado como linguagem. Ou seja, o sujeito se constitui em função do significante. Guzmán e Derzi (2021, p. 9) nos situam que, para que o sujeito se constitua, deve passar pela alienação e pela separação: “O sujeito [...] somente é a partir da estabilização da relação com o Outro [...] Depois, [...] percebe que há uma falta no Outro, nem tudo pode ser colocado em significantes, algo nunca se diz completamente. [...] há algo que escapa, deixando um resto, o desejo”. Entretanto, é importante que abordemos o trauma sob uma nova perspectiva trazida por Lacan no Seminário 10, A angústia (1964). É o trauma com efeito patogênico, e não estruturante como falávamos anteriormente. Nele, Lacan aborda a relação do sujeito com o objeto causa de desejo – O objeto a. O Seminário 10 é uma releitura do texto freudiano Inibição, sintoma e angústia (1926), em que Freud declara que o trauma sexual está relacionado 8 à perda do objeto. Contudo, é um objeto desde sempre perdido, pois se trata de um objeto da fantasia que foi apreendido numa relação específica entre as representações da mãe e daquilo que daí o sujeito pode simbolizar. Dessa forma, o sujeito estará sempre em busca desse objeto fálico em sua relação com o outro, contudo. Esse encontro é sempre faltoso, pois algo do seu desejo sempre escapa, ou seja, não há um significante no outro que possa dar conta dessa falta. “Lembremos que o significante determina o sujeito, e é em posição de sujeição que ele será constituído pelo universo simbólico. Há sempre algo que fica de fora, que Lacan chama de real” (Gusmán; Derzi, 2021, p. 9) Assim, Lacan no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,de 1964, aponta nesse encontro faltoso o real, como uma inscrição psíquica que não cessa de não se inscrever. Ou seja, o sujeito repete e repete a mesma situação, mas o encontro com a falta é inevitável. Portanto, a repetição é tomada por Lacan, como sendo esse encontro traumático com a falta, pelo qual o sujeito repete na tentativa de encontrar o objeto fálico perdido, mas na medida que ele repete algo se satisfaz. Favero (2009, p. 128), para situar essa passagem em Lacan, cita Miller: A repetição está sempre ligada a um objeto perdido: ele é uma tentativa de reencontrá-lo e, no entanto, ao fazer isso, perdê-lo. [...] este objeto perdido [...] é ilustrado, na teoria analítica, pela mãe como objeto primário fundamental que, mediante a operação do Nome-do-Pai, é para sempre proibida e perdida. Lacan diz que a mãe é aquela Ding fundamental, a coisa sempre perdida e que a repetição tenta recuperar, perdendo sempre. Nesse ponto, Lacan conceitualiza o real da repetição como aquilo que retorna como uma insistência de signo, mas o sujeito não encontra nada lá. Mas nessa repetição, há uma pulsão que se satisfaz. Por exemplo: para entendermos o que estamos tentando apresentar, pensem no caso de pessoas com um vício (ou compulsão), que, mesmo tendo prejuízos em sua vida, retornam ao seu vício, pois há uma repetição numa busca por satisfação que escapa à simbolização do sujeito, ou seja, um impossível de dizer, pelo qual o sujeito só atua. Essa concepção é bastante importante na compreensão das patologias da ação e impulsividade tão presentes na clínica contemporânea. TEMA 4 – A PASSAGEM AO ATO E AS RELAÇÕES COM O TRAUMA Neste tópico, retornaremos à questão do ato em psicanálise. Calazans e Bastos (2010) nos situam que a questão do ato ganha atenção na literatura 9 psicanalítica ao levarmos em conta os atos sintomáticos, passíveis de interpretação no processo analítico. É na investigação sobre o sintoma que Freud passa também e se questionar acerca da importância do ato para na vida psíquica do sujeito. Todavia, mesmo que alguns atos fossem passíveis de serem interpretados, observaram-se atos que se opunham à interpretação (que aparecem na obra de Freud em 1914, no artigo “Recordar, repetir e elaborar”) com base na noção de acting-out. Além dessas duas dimensões do ato, o próprio Freud, no caso da “Jovem Homossexual”, aponta para uma terceira modalidade de ato que não é um acting-out e muito menos um sintoma analítico. Ora, uma modalidade de resposta do sujeito que não passe pela cifração do sintoma implica em uma dificuldade na análise, se não for situada em seu devido lugar. E esta modalidade de atuação é chamada por Jacques Lacan de passagem ao ato, de acordo com a tradição psiquiátrica. (Calazans; Bastos, 2010, p. 246) O que se pode concluir a partir daqui é que são três as dimensões, portanto, em que podemos considerar os atos no campo psicanalítico: o ato falho, o acting-out e passagem ao ato. • Ato falho: que fixa a determinação inconsciente e pulsional dos atos, isto é, aquilo que aparece na fala do sujeito como um tropeço e que em seguida o sujeito diz “não foi isso que eu queria dizer”; • Acting-out: nos indica algo que se deixa escapar à cadeia associativa do sujeito, mostrando-se em uma ação, ou seja, aquilo que o paciente não consegue lembrar ele atua sem saber que o faz. Portanto, trata-se de uma ação inconsciente que se incorpora na própria conduta do sujeito. • Passagem ao ato: esta é entendida como conduta imotivada e que nos ensina que a ação humana não obedece ao princípio do prazer, pois trata- se de uma ação que escapa a simbolização, é um ato onde o sujeito está ausente, apenas o seu ato. No Acting Out, haveria uma inscrição simbólica e no campo da palavra, bem como um direcionamento de demanda a um outro, na transferência. Birman (2014, p. 98) afirma que no Acting Out há, portanto, a existência de um sujeito: “Em contrapartida, na passagem ao ato a ação é rude e brutal, não revelando mais qualquer rastro de simbolização”. Lacan formulou o apagamento e o silenciamento do sujeito na passagem ao ato, a qual ocorre quando falham os recursos de simbolização e linguagem. Tais impossibilidades de representação e inscrição psíquica do vivido nos 10 remetem à teoria do trauma, visto que no trauma há também uma falta de recursos simbólicos que possibilitem o sujeito dar conta do acontecimento. Assim, a passagem ao ato e ol trauma estão intimamente ligados. Para um aprofundamento no que tange às distinções dos atos e sua relação com a teoria do trauma, retornemos à noção de repetição: na Primeira Tópica, a repetição adquire relevância na clínica; a atenção de Freud se volta para a interpretação do inconsciente: revelação do recalcado, decifração através dos sonhos, sintomas etc. Há uma preocupação em se precisar o momento da cena que gerou o sintoma e, portanto, a implicação do que se repete. Na Segunda Tópica, com a introdução do conceito de pulsão de morte, a repetição adquire caráter compulsivo por conta da dimensão irrepresentável desta pulsão. Agora o interesse de Freud é no sentido de um trabalho psíquico com fins de ligação de representações: diante da impossibilidade da recordação e/ou “localização” da cena traumática, a atenção se dá em relação a todos os eventos psíquicos que possam minimizar o caos gerado por afetos sem representação, e que ameaçam a estabilidade da vida psíquica, gerando sofrimento. (Barbosa Neto, 2010, p. 9) A repetição viria como uma espécie de efeito do trauma, uma tentativa de inscrever aquilo que ainda não possui inscrição psíquica, isto é, não foi simbolizado. A passagem ao ato, nesse contexto, viria como um tipo de consequência do traumático e da ação da pulsão de morte. Nesse ponto torna- se de grande importância trazermos à tona a noção de real e sua relevância no entendimento do trauma. TEMA 5 – O REAL E AQUILO QUE NÃO POSSUI INSCRIÇÃO PSÍQUICA Na obra de Jacques Lacan, a questão do trauma se aproxima muito da conceituação de Real. Favero (2009, p. 183) nos reitera que o conceito de real em Lacan sofreu mudanças ao longo de sua formalização/ensino: “Por meio da topologia do nó borromeano, proposta no início dos anos 1970, discutiu-se o Real no tratamento psicanalítico”. A autora ainda pontua que, para Lacan – e como dissemos anteriormente –, o trauma fundamental na teoria lacaniana seria o encontro com a linguagem: há algo da linguagem que escaparia à inscrição simbólica na cadeia significante e permanece no psiquismo sempre pronto para irromper (Favero, 2009). É importante ter em mente esta noção: o campo do real é aquele no qual falta a inscrição simbólica. Isso remete a algo? Quando falamos em trauma, falamos daquela experiência que não pôde ser elaborada e/ou inscrita 11 simbolicamente pelo psiquismo, devido ao seu caráter de excesso. Logo, nessa concepção trazida por Lacan, o registro do real e o trauma estão profundamente conectados. Para uma concepção que irá apontar cada vez mais para esse registro do real, pode-se dizer que onde há a falta de um objeto que supostamente traria a mítica completude perdida, o sujeito inventa um. Lacan chamou esse objeto de objeto “a”, o que, em termos freudianos, poderíamos aproximá-lo do Das ding. Este objeto resiste, portanto, a qualquer elaboração, uma vez que falta um elemento na cadeia significante que fosse capaz de nomeá-lo. Ou seja, o real e o traumático na teoria de Lacan estão o tempo todo impactando o sujeito. O corpo, por exemplo, é uma das sedes principais desse real, visto que há nele algo que sempre irá escapar ao simbólico e à linguagem. Clinicamente, aparece bastante e está bastante conectado às experiências traumáticas. Guzmán e Derzi (2021) nos apontam que, para Lacan, o real é algo que volta sempre ao mesmo lugar, o real não tem inscrição psíquica e não cessade tentar se inscrever, o que dá espaço para a repetição. O “real está para além do retorno e da insistência dos signos, aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. Tiquê seria o que está além da insistência dos signos, do autômaton, um encontro com o real contingente” (Guzmán; Derzi, 2021, p. 10). Já Berta (2012, p. 187) nos situa que o real não é o que retorna como signos, mas o que se repete como falta: “O que retorna ao mesmo lugar é esse encontro no qual os significantes hipernítidos perdem sua função de significar, perdem sua condição de ligar o aparelho”. Aqui, estamos tratando do trauma em si, mas gostaria de poder falar rapidamente de outro aspecto. Por outro lado, qual seriam os recursos possíveis para o enfrentamento desse real que não cessa de tentar se inscrever? A fantasia. Vitorello (2015) nos situa que a fantasia acaba sendo um tipo de “mentira” que o sujeito constrói para responder ao enigma do desejo do Outro. E como a pulsão é imperativa na busca por satisfação, ela acaba por encontrá-la por meio do derivado mais importante da fantasia: o sintoma. De acordo com Vitorello (2015, p. 99), “A fantasia, como uma espécie de matriz ou script, fixa a janela do sujeito para o real, de forma a determinar, por exemplo, suas relações e suas escolhas. A fantasia organiza, portanto, a relação do sujeito com uma realidade que a própria fantasia transforma”. Assim, quando 12 o sujeito é capaz de fantasiar, já estamos falando de uma possibilidade de inscrição simbólica do real. NA PRÁTICA Nesta etapa, pudemos brevemente compreender a visão de um autor bastante relevante para o campo psicanalítico: Jacques Lacan. Sua visão sobre o trauma passa pelo trauma como estrutural para a constituição do sujeito (o sujeito como efeito da linguagem) e pelo trauma na sua relação com a passagem ao ato e o campo do real (que não possui inscrição psíquica). Na atualidade, a questão da passagem ao ato é de grande relevância, pois é a forma pela qual se expressa o sofrimento na contemporaneidade, pela via da ação e da impulsividade. Quando falamos do real no campo do traumático, falamos daquele registro em que a fantasia e a linguagem não são suficientes para dar conta. Um bom exemplo que consigo pensar vem da minha prática enquanto psicóloga residente (e estagiária) no Hospital de Clínicas da UFPR. Os hospitais são locais na qual a lida com o traumático é diária. Durante a residência, trabalhei dentro da UTI Coronariana. A UCO, como chamamos, é o local para onde os pacientes recém-infartados são encaminhados para sua recuperação, seja após a realização de um cateterismo, seja para a recuperação de uma cirurgia de revascularização do miocárdio (ponte de safena). Os pacientes recém-infartados são tomados pela surpresa do que lhes aconteceu e pela experiência tão próxima com a morte. Não é incomum ouvi-los falar de medo de morrer, ouvi-los falar que não esperavam pelo que lhes aconteceu, que não conseguem entender o porquê de terem infartado, ou que estavam vivendo no “piloto automático” e que não sabem mais o que esperar daqui para a frente. É realmente um susto, um momento em que eles repensam várias coisas na sua vida e precisam lidar com a forma com que têm administrado suas questões. Nessa situação, a primeira coisa que sempre achei bastante importante fazer, inicialmente, é escutar esse medo e esses questionamentos. Perguntava ao paciente o que tinha acontecido para que ele estivesse ali, como ele estava se sentindo e o que sabia a respeito do ocorrido. Falar da parte prática (o que ele conversou com o médico, por exemplo, e o que sabe sobre o que lhe aconteceu) é uma forma de ajudar o paciente a se organizar e colocar em 13 palavras (mesmo que descrevendo) sua experiência. O infarto é, além de tudo, uma experiência vivenciada diretamente no corpo, e quando falamos de experiências hospitalares, esse real do corpo é bem importante de ser escutado. Oferecer a escuta em um momento como esse é de grande valia, pois é uma forma de proporcionar ao paciente uma oportunidade de colocar em palavras a sua experiência que foi vivida diretamente no corpo, e quando falamos em manejo clínico do trauma, a escuta empática e a possibilidade de trazer para o campo da linguagem a experiência vivida são de suma importância. Após o primeiro momento de acolhida dessa experiência mais prática, podem-se abrir questões para reflexão e trazer à tona a posição subjetiva desse sujeito, com isso a possibilidade de um trabalho de análise. FINALIZANDO Eis os conteúdos mais importantes abordados nesta etapa: 1. Jacques Lacan foi um grande releitor da obra de Freud, reafirmando, portanto, a importância do trauma em dois tempos e da importância da fantasia no que diz respeito ao trauma; 2. Lacan entende que o sujeito é efeito da linguagem, e com isso, segundo ele, a aquisição da linguagem tem um efeito traumatizante no psiquismo; 3. Há como um resto psíquico que fica da aquisição da linguagem, que Lacan denominará de real e tem efeito traumático no psiquismo; 4. O resto psíquico que a linguagem não dá conta de inscrever psiquicamente coloca o sujeito diante da falta, ou melhor, da incompletude, e esse encontro faltoso Lacan entende como traumatizante; 5. A passagem ao ato é uma manifestação do conteúdo traumático que não foi elaborado e não possui inscrição psíquica para o sujeito; 6. A repetição que aparece tanto na passagem ao ato como no sintoma é a tentativa do psiquismo de elaborar e inscrever o conteúdo traumático; 7. Um recurso de enfretamento ao real é a fantasia. O sujeito completa, pela via da fantasia aquilo que é vivenciado enquanto falta. Quando o sujeito é capaz de fantasiar, já estamos falando em um sujeito ou uma situação na qual se possui recursos simbólicos. 14 REFERÊNCIAS BASTOS, A. B. B. I. Jacques Lacan: uma trajetória instigante. Psicólogo inFormação, v. 19, p. 135-144, 2015. BERTA, S. L. Um estudo sobre o trauma de Freud a Lacan. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. CALAZANS, R.; BASTOS, A. Passagem ao ato e acting-out: duas respostas subjetivas. Fractal: Revista de Psicologia, v. 22, n. 2, p. 245-256, 2010. https://dx.doi.org/10.1590/S1984-02922010000800002 FAVERO, A. B. A noção de trauma em psicanálise. Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. GUZMÁN, M. C.; DERZI, C. A. M. (2021). O Trauma e seu Tratamento: Contribuições de Freud e Lacan. Revista Subjetividades, v. 21, n. 1, 20 mar. 2021. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e9254 BARBOSA NETO, E. Conceito de repetição na psicanálise freudiana: ressonâncias clínicas na re-elaboração simbólica do repetido. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2010. VITORELLO, D. M. Autenticidade: o psicanalista entre Ferenczi e Lacan. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
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