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Livro_J_LOVELOCK_A Vingança De Gaia_2006 (2)

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Prévia do material em texto

http://www.facebook.com/EditoraIntrinseca
http://twitter.com/intrinseca
http://www.youtube.com/user/intrinsecaeditora
http://www.instagram.com/intrinseca/
http://www.intrinseca.com.br
copyright © 2006 james lovelock
título original
the revenge of gaia: why the earth is fighting back, and how we can still save humanity
projeto gráfico capa e miolo
warrakloureiro
foto capa
michael lewis — getty images
tradução
ivo korytowski
preparação
leny cordeiro
revisão técnica
prof. dr. tércio ambrizzi
[departamento de ciências atmosféricas — usp]
revisão
isabel newlands
revisão de e-book
cristiane pacanowski | pipa conteúdos editoriais
geração de e-book
joana de conti
e-isbn
978-65-5560-019-3
edição digital: 2020
1a edição
todos os direitos reservados à
editora intrínseca
rua marquês de são vicente, 99, 3o andar
22451-041 – gávea
rio de janeiro – rj
tel./fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
http://www.intrinseca.com.br
dedico este livro à minha amada esposa sandy
sumário
[Avançar para o início do texto]
folha de rosto
mídias sociais
dedicatória
agradecimentos
prefácio de sir crispin tickell
o estado da terra
o que é gaia?
história da vida de gaia
previsões para o século xxi
fontes de energia
produtos químicos, alimentos e matérias-primas
tecnologia para uma retirada sustentável
uma visão pessoal do ambientalismo
além da estação final
glossário
leituras adicionais
créditos
notas
sobre o autor
conheça outro título do autor
leia também
agradecimentos
Tive a sorte de contar com amigos que leram os originais deste livro e fizeram comentários
úteis e valiosos, e sou especialmente grato a: Richard Betts, David Clemmow, Peter Cox,
John Dyson, John Gray, Stephan Harding, Peter e Jane Horton, Tim Lenton, Peter Liss,
Chris Rapley, John Ritch, Elaine Steel, sir Crispin Tickell, David Ward e Dave Wilkinson.
Agradeço também a Gaia, instituição beneficente registrada sob o no 327903,
www.daisyworld.org, o apoio durante a redação deste livro. A ela todos os direitos autorais
serão doados.
http://www.daisyworld.org
prefácio
Quem é Gaia? O que ela é? O “que” é a casca fina de terra e água entre o interior
incandescente da Terra e a atmosfera que a circunda. O “quem” é o tecido interagente de
organismos vivos que, por mais de 4 bilhões de anos, veio a habitá-la. A combinação do
“que” com o “quem”, bem como a forma como cada um continuamente afeta o outro, foi
apropriadamente chamada de “Gaia”. Trata-se, como diz James Lovelock, de uma metáfora
para a Terra viva. A deusa grega de quem o termo deriva deve estar orgulhosa da aplicação
dada ao seu nome.
A ideia de que a Terra está, nesse sentido metafórico, viva tem uma longa história.
Deuses e deusas eram vistos como corporificações de elementos específicos, variando do céu
à fonte mais próxima, e a ideia de que a própria Terra estava viva aflorou regularmente na
filosofia grega. Leonardo da Vinci viu o corpo humano como o microcosmo da Terra, e a
Terra como o macrocosmo do corpo humano. Ele não sabia como nós que o corpo humano
é um macrocosmo dos elementos minúsculos de vida — bactérias, parasitas, vírus —, muitas
vezes em guerra entre si, e juntos constituindo mais do que as células de nosso corpo.
Giordano Bruno foi queimado na fogueira, mais de quatrocentos anos atrás, por sustentar
que a Terra estava viva, e que outros planetas também poderiam estar. O geólogo James
Hutton viu a Terra como um sistema autorregulador, em 1785, e T. H. Huxley a percebeu
da mesma forma em 1877. Já Vladimir Ivanovitch Vernadsky viu o funcionamento da
biosfera como uma força geológica que cria um desequilíbrio dinâmico, que, por sua vez,
promove a diversidade da vida.
Mas foi James Lovelock quem reuniu essas ideias na hipótese de Gaia em 1972. Em seu
livro, ele as aperfeiçoa e amplia de maneiras novas e práticas. Olhando para trás, é estranho
como a ideia pareceu inaceitável, para os adeptos do pensamento convencional, quando
apresentada em sua forma atual, mais de um quarto de século atrás. Formas não familiares
de olhar o familiar tendem a despertar a oposição emocional bem além da discussão racional:
daí a oposição às ideias de evolução por seleção natural no século XIX, do movimento das
placas tectônicas no século XX e, mais recentemente, de Gaia. No início, alguns viajantes da
Nova Era embarcaram, e alguns cientistas normalmente sensatos caíram fora. Eles estão
voltando. A mudança foi bem sintetizada por uma declaração publicada após um congresso
de cientistas dos quatro grandes programas internacionais de pesquisa global, em 2001, que
dizia:
O sistema da Terra se comporta como um sistema único e autorregulador composto de
componentes físicos, químicos, biológicos e humanos. As interações e feedbacks entre os
componentes são complexos e exibem uma variabilidade temporal e espacial multiescala.
Essa realmente é Gaia.
A mensagem principal deste livro não é exatamente que a própria Gaia corra perigo (ela
é uma “mulher durona”, nas palavras de Lynn Margulis), mas que os seres humanos têm
infligido à sua configuração atual danos cada vez maiores. De qualquer modo, Gaia está
mudando, e pode estar menos robusta do que no passado. O calor do Sol sobre a Terra vem
gradualmente aumentando, e a autorregulação da qual depende toda a vida acabará correndo
perigo. Olhando o ecossistema global como um todo, vemos que o aumento da população
humana, a degradação das terras, o esgotamento dos recursos, o acúmulo de resíduos, todo
tipo de poluição, a mudança climática, os abusos da tecnologia e a destruição da
biodiversidade em todas as suas formas constituem juntos uma inédita ameaça ao bem-estar
humano, desconhecida pelas gerações anteriores. Como escreveu Lovelock em outro livro:
Crescemos em número a ponto de nossa presença estar perceptivelmente incapacitando
nosso planeta, como uma doença. À semelhança das doenças humanas, quatro são os
resultados possíveis: destruição dos organismos invasores da doença, infecção crônica,
destruição do hospedeiro ou simbiose — um relacionamento duradouro, beneficiando
mutuamente hospedeiro e invasor.
A questão é como alcançar essa simbiose. Estamos longe dela atualmente. Lovelock
examina, de forma eloquente, cada um dos problemas principais, a maioria decorrente dos
efeitos da revolução industrial, em particular o consumo de combustíveis fósseis e produtos
químicos, a agricultura e o espaço vital. Ele então sugere como poderíamos — enfim —
começar a enfrentar a questão. Diz com propriedade que o primeiro requisito é reconhecer
a existência dos problemas. O segundo é entendê-lo e extrair as conclusões certas. O terceiro
é tomar alguma providência. Atualmente estamos em algum ponto entre os estágios um e
dois.
Aplicado aos problemas da sociedade moderna, o conceito de Gaia pode ser estendido ao
pensamento atual sobre valores: a forma como encaramos e julgamos o mundo à nossa volta
e, acima de tudo, como nos comportamos. Isso tem uma aplicação especial ao campo da
economia, em que ilusões populares sobre a supremacia das forças do mercado estão tão
profundamente arraigadas, e a responsabilidade do governo de proteger o interesse público
é tantas vezes ignorada. É raro avaliarmos corretamente os custos: daí a confusão da política
atual de energia e transportes e a incapacidade de avaliar os impactos prováveis da mudança
do clima.
A principal diferença entre o passado e o presente é que nossos problemas são de fato
globais. Como observa Lovelock, estamos atualmente presos num círculo vicioso de feedback
positivo. O que acontece em certo lugar logo afetará os acontecimentos em outros lugares.
Somos perigosamente ignorantes de nossa própria ignorância, e poucas vezes tentamos ver
as coisas como um todo. Se quisermos alcançar uma sociedade humana em harmonia com a
natureza, devemos nos guiar por um respeito maior por ela. Não admira que algumas
pessoas quisessem fazer uma religião de Gaia, ou da vida como tal. Este livro é uma
maravilhosa introdução à ciência de como a nossa espécie deve fazer as pazes com o resto do
mundo em que vivemos.crispin tickell
o símbolo † indica que uma definição adicional é fornecida no glossário
guias cegos! que coais um mosquito, e engolis um camelo.
— mateus, 23:24
capítulo 1
o estado da terra
Como sempre, as notícias ruins ficam em primeiro plano, e, enquanto escrevo no conforto
de minha casa em Devon, a catástrofe de Nova Orleans enche as telas das televisões e as
primeiras páginas dos jornais. Por mais horrível que seja, ela nos faz esquecer o sofrimento
bem maior causado pelo tsunami em dezembro de 2004, que devastou a bacia do oceano
Índico. Aquele terrível evento revelou, de forma brutal, o poder da Terra de matar. Basta
um pequeno movimento do planeta em que vivemos para causar a morte de alguma fração
de milhão de pessoas. Mas isso não é nada comparado com o que poderá advir em breve:
estamos abusando tanto da Terra que ela poderá se insurgir e retornar ao estado quente de
55 milhões de anos atrás, e se isso acontecer, a maioria de nós e nossos descendentes
morreremos. É como se estivéssemos empenhados em reviver a lenda mítica de O anel dos
Nibelungos, de Wagner, e ver nosso Valhalla derreter de calor.
Mas ouço o leitor protestar: “Quê? Outro livro sobre aquecimento global? O que era um
medo não está se tornando um excesso?”. Se este livro não passasse de uma reiteração dos
argumentos e contra-argumentos você teria razão, e este seria mais um livro dentre tantos
outros. O que o torna diferente é que eu falo como um médico planetário cujo paciente, a
Terra viva, se queixa de febre. Vejo o declínio da saúde da Terra como a nossa preocupação
mais importante, nossas próprias vidas dependendo de uma Terra sadia. Nossa preocupação
com ela deve vir em primeiro lugar, porque o bem-estar das massas crescentes de seres
humanos exige um planeta sadio.
A essa altura, meus amigos e colegas farão uma cara feia e desejarão que eu pare de falar
de nosso planeta como uma forma de vida.† Entendo a preocupação deles, mas permaneço
irredutível: se de início eu não tivesse concebido a Terra dessa maneira, poderíamos todos
ter permanecido “cientificamente corretos”, mas sem a compreensão de sua verdadeira
natureza. Graças ao conceito de Gaia, vemos agora que nosso planeta é totalmente diferente
de seus irmãos mortos Marte e Vênus. Como um de nós, ele controla sua temperatura e
composição para estar sempre confortável, e vem fazendo isso desde que a vida começou,
mais de 3 bilhões de anos atrás. Em suma, planetas mortos são como estátuas de pedra, as
quais, se postas em um forno e aquecidas a 80ºC, permanecem inalteradas. Eu morreria, e
você também, se aquecidos a essa temperatura, bem como a Terra.
Somente quando pensamos em nosso lar planetário como se estivesse vivo conseguimos
ver, talvez pela primeira vez, por que a lavoura arranha o tecido vivo de sua pele e por que a
poluição é venenosa para ele, tanto quanto para nós. Níveis crescentes de dióxido de
carbono e gás metano na atmosfera têm consequências bem diferentes daquilo que ocorreria
em um planeta morto como Marte. A reação da Terra viva às nossas ações não dependerá
apenas do grau de nosso cultivo do solo e das poluições, mas também de seu estado de saúde
atual. A Terra, quando jovem e forte, resistia a mudanças adversas e a falhas em sua própria
regulação da temperatura; agora ela pode estar idosa e menos resistente.
O desenvolvimento sustentável, respaldado pelo consumo de energia renovável,† é a
atitude em voga na convivência com a Terra, constituindo a plataforma dos políticos dos
partidos verdes. Opõem-se a essa visão muitas pessoas, particularmente nos Estados Unidos,
que ainda consideram o aquecimento global uma ficção e acham que devemos deixar as
coisas como estão. Seu pensamento está bem expresso no recente romance de Michael
Crichton, Estado de medo, e por aquela mulher santa, madre Teresa, que em 1988 disse: “Por
que devemos cuidar da Terra, quando nosso dever é para com os pobres e enfermos entre
nós? Deus cuidará da Terra”. Na verdade, nem a fé em Deus, nem a confiança em deixar as
coisas como estão, nem mesmo o compromisso com o desenvolvimento sustentável
reconhecem nossa verdadeira dependência. Se deixarmos de cuidar da Terra, ela sem dúvida
cuidará de si, fazendo com que não sejamos mais bem-vindos. Aqueles com fé devem
reavaliar nosso lar terreno e vê-lo como um lugar sagrado, parte da criação divina, mas algo
que temos profanado. O livro de Anne Primavesi, Gaia’s gift, mostra o caminho para a
consiliência† entre a fé e Gaia.
Quando ouço a expressão “desenvolvimento sustentável”, recordo a definição dada por
Gisbert Glaser, o consultor sênior do International Council for Science, que declarou num
artigo opinativo para o boletim informativo do IGBP (International Geosphere-Biosphere
Programme — Programa Internacional da Geosfera-Biosfera):
O desenvolvimento sustentável é um alvo móvel. Representa o esforço constante em
equilibrar e integrar os três pilares do bem-estar social, prosperidade econômica e
proteção ambiental em benefício das gerações atual e futuras.
Muitos consideram esta política nobre moralmente superior ao laissez-faire de deixar as
coisas como estão. Infelizmente para nós, esses dois enfoques totalmente diferentes, um, a
expressão da decência internacional, o outro, das forças de mercado insensíveis, levam ao
mesmo resultado: a probabilidade de mudança global desastrosa. O erro que compartilham é
a crença de que mais desenvolvimento é possível e a Terra continuará mais ou menos como
agora pelo menos durante a primeira metade deste século. Duzentos anos atrás, quando a
mudança era lenta ou nem sequer existia, talvez tivéssemos tempo para estabelecer o
desenvolvimento sustentável, ou mesmo continuar por algum tempo deixando as coisas
como estão, mas agora é tarde: o dano foi cometido. Esperar que o desenvolvimento
sustentável ou a confiança em deixar as coisas como estão sejam políticas viáveis é como
esperar que uma vítima de câncer no pulmão seja curada parando de fumar. Ambas as
medidas negam a existência da doença da Terra, a febre acarretada por uma praga humana.
Apesar de suas diferenças, elas advêm de crenças religiosas e humanistas que acham que a
Terra existe para ser explorada em prol da humanidade. Quando éramos apenas 1 bilhão, em
1800, essas políticas ignorantes eram aceitáveis, porque causavam pouco dano. Agora,
percorrem duas estradas diferentes que logo se juntarão em um caminho rochoso rumo a
uma existência de Idade da Pedra em um planeta doente, onde poucos de nós sobreviverão
em meio aos escombros de nossa Terra outrora biodiversa.
*
Por que somos tão lentos, especialmente nos Estados Unidos, em enxergar os grandes
perigos que ameaçam a nós e a civilização? O que nos impede de perceber que a febre do
aquecimento global é real e mortal, e já pode ter fugido ao nosso controle e da Terra? Creio
que rejeitamos os sinais de que nosso mundo está mudando porque ainda somos, como nos
lembrou aquele biólogo maravilhosamente sábio chamado E. O. Wilson, carnívoros tribais.
Estamos programados por nossa herança a ver os outros seres vivos sobretudo como algo
comestível, e nos importamos mais com nossa tribo nacional do que com qualquer outra
coisa. Sacrificaremos até nossas vidas por ela e estamos dispostos a matar outros seres
humanos, com a maior crueldade, em benefício de nossa tribo. Ainda achamos estranho o
conceito de que nós e o restante da vida, das bactérias às baleias, fazemos parte da entidade
bem maior e mais diversa, a Terra viva.
Supõe-se que a ciência seja objetiva. Assim, por que não nos alertou mais cedo para esses
perigos? O aquecimento global foi ligeiramente discutido por vários autores em meados do
século XX, mas mesmo o grande climatologista Hubert Lamb, em seu livro de 1972 Climate:
Present, past and future, dedicou uma única página ao efeito estufa† em uma obra de
seiscentas páginas. O tema só se tornou público em torno de 1988. Antes, a maioria dos
cientistas da atmosfera estava tão absorvida pela intrigante ciência da redução do ozônio
estratosférico que sobravapouco tempo para outros problemas ambientais. Entre os valentes
pioneiros das questões mais amplas da mudança global estavam os cientistas americanos
Stephen Schneider e Jim Hansen. Conheci Schneider no final da década de 1970, durante
uma visita ao National Center for Atmospheric Research, um local de ciência encantador,
encarapitado numa encosta de montanha em Boulder, Colorado, e nossos caminhos pela
ciência se entrelaçaram desde então. Em seu livro com Randi Londer, The coevolution of
climate and life, publicado em 1984, ele adverte para as consequências prováveis de
continuarmos queimando combustíveis fósseis e recomenda a necessidade de um controle
estratégico das emissões, em vez de deixar as coisas ao sabor das forças do mercado. Jim
Hansen, do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, foi igualmente veemente em
suas advertências, e em 23 de junho de 1988 informou ao Senado norte-americano que a
Terra estava mais quente do que em qualquer época da história das medições com
instrumentos. Os melhores e mais completos relatos desse período estão no livro de John
Gribbin, Hothouse Earth and Gaia, publicado em 1990, no livro de Schneider de 1989, Global
warming, e no de Fred Pearce, O aquecimento global, publicado em 1989.
As palavras de Schneider e Hansen foram amplificadas por políticos tão díspares como Al
Gore e Margaret Thatcher, e suspeito que o mérito por sua transformação em ação prática
se deva ao climatologista e diplomata sir Crispin Tickell. Esses esforços consideráveis
levaram à formação, em 1989, pela Organização Meteorológica Mundial (WMO) e pelo
Programa Ambiental das Nações Unidas (Unep), sob a presidência do professor Bert Bolin,
do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). Este rapidamente iniciou o
longo processo de coleta de dados e construção de modelos que foi a base de previsões de
climas futuros. Mas de algum modo a sensação de premência quanto ao aquecimento global
enfraqueceu na década de 1990, e a bravura pioneira dos alertadores recebeu pouco apoio da
gestão mediana mentalmente lerda da ciência. Esta não foi totalmente culpada, pois a
própria ciência foi prejudicada, nos últimos dois séculos, por sua divisão em muitas
disciplinas diferentes, cada qual limitada a ver apenas uma faceta minúscula do planeta, sem
uma visão coesa da Terra. Os cientistas só reconheceram a Terra como entidade
autorreguladora na Declaração de Amsterdã, em 2001, e muitos ainda agem como se nosso
planeta fosse uma enorme propriedade pública que possuímos e compartilhamos. Eles se
aferram à sua visão dos séculos XIX e XX da Terra, ensinada na escola e universidade, de um
planeta constituído de rocha inerte e morta, com vida abundante a bordo: passageiros na
jornada desse planeta através do espaço e do tempo.
A ciência é um clube aconchegante e amigável de especialistas que seguem seus
numerosos astros diferentes. Orgulhosa e maravilhosamente produtiva, não é infalível e é
sempre obstruída pela persistência de visões de mundo incompletas. Os britânicos tiveram a
sorte de ver sua ciência liderada pelas figuras altaneiras de lorde May e sir David King, que
se valeram incansavelmente de sua força para alertar a nós e o governo dos enormes perigos
que espreitam à frente. A noção de Gaia, com sua implicação da Terra como um sistema em
evolução e, de certa forma, dotado de vida, só surgiu por volta de 1970. Como todas as
teorias novas, levou décadas até ser, ainda que parcialmente, aceita, porque teve de aguardar
por dados para confirmá-la ou negá-la. Sabemos agora que a Terra de fato se regula, mas
devido ao tempo decorrido para coletar os dados, descobrimos tarde demais que a regulação
estava falhando e o sistema da Terra rapidamente se aproximava do estado crítico em que
toda a sua vida corre perigo.
A ciência busca ser global e mais do que uma coleção dispersa de disciplinas separadas,
mas mesmo os que adotam uma abordagem sistêmica da ciência seriam os primeiros a
admitir que nossa compreensão do sistema da Terra não é muito superior à de um médico
do século XIX em relação ao seu paciente. Mas estamos bastante cientes da fisiologia da
Terra para perceber a gravidade de sua doença. Suspeitamos da existência de um limite,
fixado pela temperatura ou pelo nível de dióxido de carbono no ar. Uma vez ultrapassado,
nada que as nações do mundo façam alterará o resultado, e a Terra mudará
irreversivelmente para um novo estado quente. Estamos agora nos aproximando de um
desses pontos de virada, e nosso futuro é como o daqueles passageiros de um pequeno iate
que singra tranquilamente acima das cataratas de Niágara, sem saber que os motores estão
prestes a enguiçar.
*
As poucas coisas que sabemos sobre a reação da Terra à nossa presença são profundamente
perturbadoras. Ainda que cessássemos neste instante de arrebatar novas terras e águas de
Gaia para a produção de alimentos e combustíveis e parássemos de envenenar o ar, a Terra
levaria mais de mil anos para se recuperar do dano já infligido, e talvez seja tarde demais até
para essa medida drástica nos salvar. A recuperação, ou mesmo a redução das consequências
de nossos erros passados, demandará um extraordinário grau de esforço internacional e uma
sequência cuidadosamente planejada para substituir o carbono fóssil por fontes de energia
mais seguras. Como uma civilização, podemos nos comparar a um viciado que morrerá se
continuar consumindo a droga ou se tentar uma retirada brusca. Chegamos à nossa
desordem atual por meio de nossa inteligência e inventividade. O processo pode ter
começado até 100 mil anos atrás, quando começamos a atear fogo às florestas como uma
forma preguiçosa de caça. Havíamos deixado de ser apenas mais um animal e começado a
demolição da Terra. Somos uma espécie equivalente àquela dupla esquizoide do romance de
Stevenson O médico e o monstro. Temos a capacidade de destruição desastrosa, mas também o
potencial de edificar uma civilização magnífica. O monstro nos levou a usar mal a
tecnologia; abusamos da energia e superpovoamos a Terra, mas não é abandonando a
tecnologia que sustentaremos a civilização. Pelo contrário, temos de usá-la sabiamente,
como faria o médico, tendo em mira a saúde da Terra, não a de pessoas. Daí ser tarde
demais para o desenvolvimento sustentável; precisamos é de uma retirada sustentável.
Vivemos tão obcecados com a ideia de progresso e com o aperfeiçoamento da
humanidade que consideramos a retirada um palavrão, algo vergonhoso. O filósofo e
historiador das ideias John Gray observou, em seu livro Cachorros de palha, que só raramente
enxergamos além das necessidades da humanidade, e associou essa cegueira à nossa
infraestrutura cristã e humanista. Esta surgiu 2 mil anos atrás e era então benigna, e não
representávamos uma ameaça significativa a Gaia. Agora que somos mais de 6 bilhões de
indivíduos famintos e vorazes, todos aspirando a um estilo de vida de Primeiro Mundo,
nosso modo de vida urbano avança sobre o domínio da Terra viva. Consumimos tanto que
ela já não consegue sustentar o mundo familiar e confortável a que nos habituamos. Agora
ela está mudando, de acordo com suas próprias regras internas, para um estado em que já
não somos mais bem-vindos.
A humanidade, totalmente despreparada por suas tradições humanistas, enfrenta seu
maior teste. A aceleração da mudança climática agora em andamento abolirá o meio
ambiente familiar e acolhedor ao qual nos adaptamos. A mudança é algo normal na história
geológica. A mais recente foi a passagem da Terra do longo período de glaciação ao período
interglacial quente atual. O que é incomum na crise iminente é que somos a causa dela, e
nada tão grave aconteceu desde o longo período quente no início do Eoceno, 55 milhões de
anos atrás, quando a mudança foi maior que a ocorrida entre a era do gelo e o século XIX,
tendo durado 200 mil anos.
O grande sistema da Terra, Gaia, quando em um período interglacial, como agora, vê-se
aprisionado em um ciclo vicioso de feedback positivo,† e é isso que torna o aquecimento
global tão grave e tão premente.Calor extra de qualquer fonte — seja de gases de estufa, do
desaparecimento de gelo do Ártico e mudança da estrutura do oceano, ou da destruição de
florestas tropicais — é aumentado, e os efeitos são mais do que cumulativos. É quase como
se tivéssemos acendido a lareira para nos aquecermos e não percebêssemos, ao empilharmos
o combustível, que o fogo se descontrolou e a mobília se incendiou. Quando isso acontece,
sobra pouco tempo para apagar o fogo antes que ele consuma a própria casa. O aquecimento
global, como um incêndio, está se acelerando, e quase não resta mais tempo para reação.
A filósofa Mary Midgley, em seus esplêndidos livros Science and poetry e The essential
Mary Midgley, advertiu que o predomínio do pensamento atomístico e reducionista em
ciência nos últimos dois séculos levou a uma visão provinciana e limitada da Terra.
Costumamos dizer em ciência que a excelência é medida pelo período de tempo em que o
progresso é retardado pelas ideias de um cientista. Decorreram quase duzentos anos até a
visão do universo de Newton dar lugar à visão mais completa de Einstein. Por este indicador
de excelência, Descartes foi um pensador realmente grande. Sua separação entre mente e
corpo, necessária à época, e relegação de todos os seres vivos à interpretação mecanicista
encorajaram o pensamento reducionista. A redução é a dissecação analítica de um objeto em
suas partes componentes fundamentais, seguida pela regeneração mediante a remontagem
das partes. Ela sem dúvida levou a grandes triunfos em física e biologia nos dois últimos
séculos, mas só agora está assumindo seu lugar apropriado como apenas uma parte, e não a
totalidade, da ciência. Enfim, mas talvez tarde demais, começamos a ver que a visão holística
de cima para baixo, que vê um objeto de fora e interroga-o em funcionamento, é tão
importante quanto desmontar uma coisa e reconstituí-la de baixo para cima. Isso se aplica
em especial aos seres vivos, sistemas de grande porte e computadores.
Precisamos acima de tudo renovar aquele amor e empatia pela natureza que perdemos
quando começamos nosso namoro com a vida urbana. Sócrates provavelmente não foi o
primeiro a dizer que nada de interessante ocorre fora das muralhas da cidade, mas ele devia
estar familiarizado com o mundo natural lá fora. Mesmo à época de Shakespeare, as cidades
eram pequenas o suficiente para que ele passeasse até “um lugar onde floresce o tomilho
silvestre, onde prímulas e violetas oscilantes crescem”.1 Os ambientalistas pioneiros que
conheciam e realmente apreciavam a natureza — Wordsworth, Ruskin, Rousseau,
Humboldt, Thoreau e tantos outros — viveram grande parte de suas vidas em cidades
pequenas e compactas. Agora, a cidade é tão imensa que poucos chegam a conhecer o
campo; fica longe demais. Eu me pergunto: quantos de vocês sabem como é uma prímula ou
já viram uma?
Blake viu a ameaça de usinas satânicas e sombrias, mas tenho minhas dúvidas se mesmo
sua pior visão de pesadelo teria abrangido a realidade atual, a total industrialização da zona
rural que ele conhecia. Blake era londrino, mas de sua Londres podia ir a pé até uma perfeita
zona rural. Já não produzem feno no interior verde e agradável da Inglaterra; a agricultura é
dominada pelo agronegócio mecanizado. E, se deixarmos, o campo restante se transformará
em uma área industrial coalhada de enormes turbinas de vento, numa vã tentativa de suprir a
demanda de energia da vida urbana. A reforma com frequência assume a forma de
vandalismo organizado, tudo em nome da ideologia. Foi isso que arruinou o governo de
Cromwell, e constitui agora o lado negro da política verde europeia.
Claro que existem os céticos, entre eles o estatístico dinamarquês Björn Lomborg e o
cientista norte-americano Richard Lindzen. Ambos duvidam que a mudança global seja um
problema grave que requer providências imediatas. Esses pontos de vista contrários não
alteraram o consenso dos muitos cientistas do mundo inteiro que formam o IPCC.
Recentemente, ouvi pelo rádio uma palestra entusiasmada e comovente do cientista
norte-americano Patrick Michaels. Ele rejeitou, indignado, a afirmação de sir David King, o
principal consultor científico do Reino Unido, de que o aquecimento global era mais grave
do que a guerra travada contra o terrorismo. Para Michaels, e muitos outros, os atentados de
11 de setembro de 2001 em Nova York, de 2004 em Madri e de 2005 em Londres são bem
mais importantes do que previsões remotas de tempo ruim no século vindouro. Ao contrário
de muitos americanos, vivi a maior parte de minha vida sob a ameaça do terrorismo, advindo
na maior parte, mas não exclusivamente, do nacionalismo céltico. Compartilho a indignação
de Michaels e considero o terrorismo apenas um nível menos perverso do que o genocídio.
Tanto o terrorismo como o genocídio resultam de nossas naturezas tribais. O
comportamento tribal está certamente inscrito na linguagem de nosso código genético. Qual
outro motivo nos faria, como um grupo ou multidão, cometer ações que somente psicopatas
perpetrariam sozinhos? O genocídio e o terrorismo não são males próprios de nossos
inimigos; dado o sinal certo, qualquer um de nós é capaz de realizá-los, e a civilização apenas
abrandou ligeiramente essas tendências horríveis, em forma de guerra. O tribalismo não é de
todo ruim e pode ser mobilizado para fazer com que nós, seres humanos normalmente
egoístas, ajamos com bravura e até sacrifiquemos nossas vidas, em geral por pressentirmos
um perigo à nossa tribo, mas às vezes pelo bem da humanidade. Fazemos coisas visivelmente
boas com total desprendimento. Em tempo de guerra, aceitamos o racionamento de
alimentos e bens de consumo; trabalhamos voluntariamente além do expediente e
enfrentamos grandes perigos, alguns chegando a enfrentar, resolutos, a morte.
Por ser velho o bastante, posso notar uma forte semelhança entre as atitudes de mais de
sessenta anos atrás diante da ameaça de guerra e hoje em face da ameaça do aquecimento
global. A maioria acredita que algo desagradável poderá ocorrer em breve, mas estamos tão
confusos como em 1938 quanto à forma que assumirá e o que fazer a respeito. Nossa reação
até agora tem sido, como antes da Segunda Guerra Mundial, uma tentativa de
apaziguamento. O Protocolo de Kyoto foi assustadoramente parecido com o Acordo de
Munique, os políticos procurando mostrar que reagem, mas na verdade tentando ganhar
tempo. Por sermos animais tribais, a tribo não age unida enquanto não percebe um perigo
real e presente. Essa percepção ainda não ocorreu. Logo, como indivíduos, seguimos
caminhos separados, enquanto as forças inevitáveis de Gaia se mobilizam contra nós. A
batalha logo será travada, e o que enfrentamos agora é bem mais mortal do que qualquer
blitzkrieg. Ao alterar o meio ambiente, sem querer declaramos guerra contra Gaia e violamos
o meio ambiente de outras espécies. É como se, na esfera dos Estados-nações, tivéssemos
ocupado a terra de outras nações.
As perspectivas são sombrias, e, ainda que consigamos reagir com sucesso, passaremos
por tempos difíceis, como em qualquer guerra, que nos levarão ao limite. Somos resistentes,
e seria preciso mais do que a catástrofe climática prevista para eliminar todos os casais de
seres humanos em condições de procriar. O que está em risco é a civilização. Como animais
individuais, não somos tão especiais assim, e em certos aspectos a espécie humana é como
uma doença planetária. Mas pela civilização nos redimimos e nos tornamos um recurso
precioso para a Terra. Existe uma pequena chance de que os céticos estejam certos, ou de
que sejamos salvos por um evento inesperado, como uma série de erupções vulcânicas fortes
o bastante para bloquear a luz solar e, assim, esfriar a Terra. Mas só perdedores apostariam
suas vidas em chances tão remotas. Quaisquer que sejam as incertezas sobre o clima futuro,
não há dúvida de que tanto os gases de estufa como as temperaturas estão aumentando.
Acho triste e irônico que o Reino Unido, que lidera o mundo na qualidade de seus
cientistas da Terra e do clima, tenharejeitado suas advertências e conselhos. Preferimos até
agora ouvir os conselhos bem-intencionados, mas insensatos, daqueles que acreditam em
uma alternativa à ciência. Sou um verde, e seria classificado entre eles, mas acima de tudo
sou um cientista. Por isso, rogo aos meus amigos verdes que repensem sua crença ingênua
no desenvolvimento sustentável e na energia renovável, e que poupar energia é tudo que
precisa ser feito. Sobretudo, eles precisam abandonar sua objeção equivocada à energia
nuclear. Mesmo que tivessem razão sobre seus perigos — mas não têm —, seu uso como
fonte de energia segura e confiável representaria uma ameaça insignificante, comparada à
ameaça real de ondas de calor intoleráveis e letais e do aumento do nível do mar ameaçando
todas as cidades costeiras do mundo. Energia renovável soa bonito, mas até agora tem sido
ineficiente e cara. Ela tem um futuro, mas não dispomos de tempo agora para fazer
experiências com fontes de energia visionárias: a civilização corre perigo iminente e precisa
usar energia nuclear agora, se não quiser sofrer o castigo a ser infligido em breve por nosso
planeta indignado. Precisamos seguir o bom conselho dos verdes de poupar energia, e todos
temos de nos empenhar nisso, mas suspeito que — como acontece nas dietas — falar é mais
fácil do que fazer. Economias de energia vultosas advêm de projetos melhores, e estes levam
décadas para atingir a maioria dos usuários.
Não estou recomendando a energia da fissão nuclear como a panaceia de longo prazo
para nosso planeta doente ou como a solução de todos os nossos problemas. Vejo-a como o
único remédio eficaz de que dispomos agora. Quando alguém adquire diabetes na vida
adulta em consequência da comida em excesso e falta de exercícios, sabemos que os
remédios sozinhos não são suficientes: é preciso mudar todo o modo de vida. A energia
nuclear é apenas o remédio que sustenta uma fonte constante e segura de eletricidade, para
manter acesas as lâmpadas da civilização até que estejam disponíveis a fusão limpa e perene
— a energia que alimenta o Sol — e a energia renovável. Teremos que fazer muito mais do
que apenas recorrer à energia nuclear para evitar uma nova Idade das Trevas no final deste
século.
Precisamos vencer nossos temores e aceitar a energia nuclear como a fonte segura e
comprovada com o mínimo de consequências globais. Ela é agora tão confiável como
qualquer produto da engenharia humana e, dentre todas as fontes de energia de larga escala,
apresenta o melhor histórico de segurança. A França mostrou que ela pode tornar-se uma
importante fonte nacional de energia, mas os governos continuam temerosos em aceitar essa
tábua de salvação de uso imediato. Precisamos de um portfólio de fontes de energia, a
nuclear desempenhando um papel principal, ao menos até a energia da fusão se tornar uma
opção viável. Se as indústrias química e bioquímica conseguirem sintetizar alimentos a partir
de dióxido de carbono, água e nitrogênio, façamos isso para dar à Terra um descanso.
Paremos de nos preocupar com os riscos estatísticos minúsculos do câncer provocado por
produtos químicos ou radiação. Quase um terço das pessoas morrerá de câncer de uma
maneira ou de outra, até porque respiramos ar repleto do mais difundido dos carcinógenos:
o oxigênio. Se deixarmos de concentrar nossas mentes na ameaça real, que é o aquecimento
global, poderemos morrer ainda mais cedo, como aconteceu com mais de 30 mil vítimas do
calor na Europa no verão de 2003. Precisamos levar a sério a mudança global, e
imediatamente, e depois fazer o possível para reduzir as pegadas dos seres humanos sobre a
Terra. Nosso objetivo deve ser a cessação do consumo de combustível fóssil o mais rápido
possível, e destruições de habitat naturais não deveriam mais ocorrer em lugar nenhum. Ao
empregar o termo “natural”, não penso apenas nas florestas originais: incluo também os
reflorestamentos em antigas terras cultivadas, como aconteceu na Nova Inglaterra e outras
partes dos Estados Unidos. Essas florestas recriadas provavelmente desempenham suas
funções pró-Gaia tão bem quanto as originais, mas as vastas extensões de terras de
monocultura não substituem os ecossistemas naturais. Já estamos cultivando mais solo do
que a Terra pode suportar, e se tentarmos cultivar a Terra inteira para alimentar as pessoas,
mesmo com agricultura orgânica, seremos como marinheiros que queimam a madeira e
cordames do navio para se manter aquecidos. Os ecossistemas† naturais da Terra não
existem para serem transformados em terra cultivável, mas para conservar o clima e a
química do planeta.
Desfazer o mal já realizado requer um programa cuja escala supera grandemente, em
custo e tamanho, os programas espaciais e militares. Vivemos numa época em que emoções
e sentimentos contam mais do que a verdade, e existe uma grande ignorância sobre a ciência.
Permitimos que escritores de ficção e lobbies verdes explorassem o medo da energia nuclear
e de quase toda ciência nova, assim como as igrejas exploraram o medo do fogo do inferno
há não muito tempo. Somos como os passageiros de uma grande aeronave em travessia do
Atlântico, que, de repente, percebem quanto dióxido de carbono o avião está acrescentando
a um ar já poluído. Pedir ao piloto que desligue as turbinas e deixe o avião planar não
resolverá o problema. Desligar nossa civilização intensiva em energia e movida por
combustível fóssil resultará em desastre. Precisamos da aterrissagem suave com os motores
ligados.
*
O momento da mudança adversa e irreversível pode estar tão próximo que seria imprudente
aguardar um acordo internacional para salvar a civilização das consequências do
aquecimento global. A mudança climática constou da agenda da reunião do G8 na Escócia
em 2005, mas foi marginalizada quando Londres sofreu um terrível ataque terrorista. Não
podemos nos dar ao luxo de esperar por Godot. Sem perder de vista a escala global do
perigo, as nações individuais precisam pensar em maneiras de salvar a si mesmas, bem como
o mundo. Nós, no Reino Unido, estamos como em 1939 e poderemos em breve estar, num
grau considerável, sozinhos. Nossos suprimentos futuros de alimento e energia não podem
mais ser considerados garantidos em um mundo devastado pela mudança climática. O país
precisa tomar decisões com base nos interesses nacionais. Não se trata de chauvinismo nem
egoísmo: talvez seja a forma mais rápida de assegurar que cada vez mais países, movidos por
seus interesses próprios, atuem localmente sobre a mudança global. As grandes nações
emergentes, Índia e China, acharão difícil refrear o consumo de combustível fóssil, bem
como os Estados Unidos. Nós, britânicos, não devemos esperar por um acordo ou
instruções internacionais.
Em nosso pequeno país, precisamos agir agora como se estivéssemos prestes a ser
atacados por um inimigo poderoso. Primeiro temos que assegurar nossas defesas contra a
mudança climática, antes que o ataque comece. Os locais mais vulneráveis são as cidades
próximas do nível do mar agora, e entre estas estão Londres e Liverpool. Antes de tudo
temos de assegurar que estejam adequadamente defendidas para os estágios iniciais da
guerra climática e, depois, estar preparados para evacuá-las, de forma ordeira, quando as
enchentes avançarem. Uma vez que a Terra comece a passar rapidamente para seu novo
estado mais quente, a mudança climática por certo tumultuará o mundo político e comercial.
As importações de alimentos, combustível e matérias-primas ficarão cada vez mais difíceis, à
medida que os fornecedores em outras regiões forem assolados por secas e enchentes.
Precisamos planejar a síntese de alimentos a partir somente de ar, água e poucos minerais, o
que irá requerer uma fonte segura e abundante de energia. As terras altamente produtivas do
leste da Inglaterra estarão entre as primeiras áreas inundadas. As únicas fontes de energia
com que poderemos contar são carvão, o pouco que restar do petróleo e gás do mar do
Norte, energia nuclear e um pouquinho de energia renovável. A construção extravagante e
intrusivade estações eólicas em terra firme deve cessar imediatamente, e os recursos
liberados, aplicados em sistemas práticos de energia renovável, como a usina maré-motriz do
estuário do rio Severn. Essas medidas deverão garantir cinco a dez por cento das
necessidades de energia de nossa nação quando pararmos com o atual desperdício.
Precisamos, acima de tudo, daquela mudança de corações e mentes que ocorre nas nações
tribais quando pressentem o verdadeiro perigo. Somente então aceitaremos a provação do
racionamento de combustível e as firmes restrições impostas por uma defesa eficaz. Nossa
causa será a defesa da civilização para impedir o caos que, de outra forma, pode nos
dominar.
*
Os astronautas que tiveram a chance de olhar a Terra do espaço viram como nosso planeta é
incrivelmente bonito, e se referem a ele como um lar. Ponhamos de lado nossos temores e
nossa obsessão com os direitos pessoais e tribais e sejamos corajosos o bastante para ver que
a ameaça real provém do dano que infligimos à Terra viva, da qual fazemos parte e que
constitui nosso lar.
capítulo 2
o que é gaia?
Quase ninguém, incluindo eu próprio nos dez primeiros anos após o surgimento do
conceito, parece saber o que é Gaia. A maioria dos cientistas, quando pensa ou fala sobre a
parte viva da Terra, chama-a de biosfera,† embora estritamente falando a biosfera se limite à
região geográfica onde a vida existe, a bolha esférica fina na superfície da Terra. De modo
inconsciente, eles expandiram a definição de biosfera para algo maior do que uma região
geográfica, mas parecem vagos sobre onde ela começa e termina geograficamente e o que
faz.
Partindo do centro para fora, a Terra é quase totalmente constituída de rocha fundida e
metal. Gaia é um invólucro esférico fino de matéria que cerca o interior incandescente.
Começa onde as rochas crustais encontram o magma do interior quente da Terra, uns 160
quilômetros abaixo da superfície, e avança outros 160 quilômetros para fora através do
oceano e ar até a ainda mais quente termosfera, na fronteira com o espaço. Inclui a biosfera
e é um sistema fisiológico dinâmico que vem mantendo nosso planeta apto para a vida há
mais de 3 bilhões de anos. Chamo Gaia de um sistema fisiológico porque parece dotada do
objetivo inconsciente de regular o clima e a química em um estado confortável para a vida.
Seus objetivos não são pontos fixos, mas ajustáveis a qualquer meio ambiente atual e
adaptáveis às formas de vida que mantenha.
Temos de pensar em Gaia como o sistema completo de partes animadas e inanimadas. O
crescimento vertiginoso dos seres vivos possibilitado pela luz solar fortalece Gaia, mas essa
força caótica e selvagem é contida por limitações que moldam a entidade propositada que se
autorregula a favor da vida. Vejo o reconhecimento dessas limitações ao crescimento como
essenciais à compreensão intuitiva de Gaia. Importante para essa compreensão é que as
limitações afetam não apenas os organismos ou a biosfera, mas também o ambiente físico e
químico. É óbvio que este pode ser quente ou frio demais para a vida predominante, mas um
fato menos óbvio é que o oceano se torna um deserto quando a temperatura da superfície
ultrapassa cerca de 12ºC. Quando isso acontece, forma-se na superfície uma camada estável
de água morna que não se mistura com as águas mais frias, ricas em nutrientes, abaixo. Essa
propriedade puramente física da água do oceano nega nutrientes à vida na camada morna, e
logo a água oceânica superior iluminada pelo Sol vira um deserto. Esse é um dos motivos
por que o objetivo de Gaia parece ser manter a Terra resfriada.
Você observará que continuo empregando a metáfora da “Terra viva” para Gaia, mas
não pense que imagino a Terra viva de uma forma sensível, ou mesmo viva como um animal
ou uma bactéria. Está na hora de ampliarmos a definição um tanto dogmática e limitada de
vida como algo que se reproduz e corrige os erros da reprodução por seleção natural entre a
prole.
Achei útil conceber a Terra como parecida com um animal, talvez porque minha
primeira experiência séria em ciência, como estudante de pós-graduação, foi em fisiologia.
Mas isso nunca passou de uma metáfora — uma aide pensée, que não deve ser levada mais a
sério do que o marinheiro que se refere a seu navio como uma “mulher”. Até recentemente,
nenhum animal específico me vinha à mente, mas sempre algo grande, como um elefante ou
uma baleia. Há pouco tempo, ao me dar conta do aquecimento global, pensei na Terra mais
como um camelo. Os camelos, ao contrário da maioria dos animais, regulam a temperatura
corporal em dois estados diferentes, mas estáveis. Durante o dia no deserto, quando faz um
calor insuportável, os camelos a regulam perto de 40ºC, temperatura bem próxima daquela
do ar para não precisarem esfriar o corpo suando água preciosa. À noite o deserto é frio,
podendo até provocar geada. O camelo perderia muito calor se tentasse permanecer em
40ºC; assim, ele muda a regulação para uma temperatura mais adequada de 34ºC, que é
quente o bastante. Gaia, como o camelo, tem diversos estados estáveis, de modo a poder
acomodar-se ao ambiente interno e externo mutável. Na maior parte do tempo, as coisas
permanecem estáveis, como aconteceu nos últimos milhares de anos antes da virada para o
século XX. Quando o forçamento é forte demais, para o calor ou o frio, Gaia, à semelhança
de um camelo, passa para um novo estado estável mais fácil de manter. Ela está na iminência
de fazer isso agora.
A metáfora é importante porque, para lidar com a ameaça da mudança global, entendê-la
e até atenuá-la, precisamos conhecer a verdadeira natureza da Terra, imaginando-a como o
maior ser vivo do sistema solar, e não algo inanimado como a infame “Espaçonave Terra”.
Até que ocorra essa mudança de corações e mentes, não sentiremos instintivamente que
vivemos em um planeta vivo capaz de reagir às mudanças que efetuamos, quer anulando as
mudanças, quer anulando a nós. A não ser que vejamos a Terra como um planeta que se
comporta como se estivesse vivo, pelo menos a ponto de regular seu clima e química, faltará
a vontade de mudar nosso meio de vida e de entender que fizemos dele nosso pior inimigo.
É verdade que muitos cientistas, em especial os climatologistas, agora veem que o nosso
planeta tem a capacidade de regular seu clima e química, mas este ainda está longe de ser um
pensamento convencional. Não é fácil entender o conceito de Gaia, um planeta capaz de se
manter apto para a vida durante um terço do tempo de existência do universo, e até que o
IPCC soasse o alarme havia pouco interesse. Tentarei fornecer uma explicação que satisfaça
uma pessoa prática, como um médico. Uma explicação completa capaz de satisfazer um
cientista pode ser inacessível, mas a falta dela não é desculpa para a inércia.
Acho que explicar Gaia é como ensinar alguém a nadar ou andar de bicicleta: não dá para
dizer tudo em palavras. Para facilitar, começarei com uma pergunta básica que ilustra as
profundas diferenças entre duas formas igualmente importantes de pensar o mundo. A
primeira é a ciência dos sistemas, que lida com qualquer coisa viva, seja um organismo ou
um mecanismo da engenharia em funcionamento. A segunda é a ciência reducionista, o
pensamento de causa e efeito que vem dominando os últimos dois séculos de ciência. A
pergunta é: o que o ato de urinar tem a ver com o gene egoísta?
Quando jovem, eu me surpreendia com o número de eufemismos que existiam para a
prática simples, mas essencial, de liberar urina. Os médicos e enfermeiras pediam para você
“coletar uma amostra” e, muitas vezes, entregavam um recipiente pequeno para deixar claro
seu pedido. Na linguagem do dia a dia, a gente “fazia xixi”, “urinava”, “dava uma mijada”, e
íamos ao “mictório” ou “WC” ou “toalete”. Às vezes, a gente simplesmente “tirava água do
joelho”.
Talvez tudo não passasse de um remanescente da confusão do século XIX em torno do
sexo. Constituía tabu, na conversa educada, mencionar os genitais, inclusive seus usos
alternativos. Mas, como observou o notável biólogonorte-americano George Williams em
1996, que economia evolutiva estranha utilizar o mesmo órgão para o prazer, a reprodução e
a eliminação de refugo. Só recentemente comecei a me perguntar se não haveria algo mais
profundo por trás desse pequeno mistério. Por que fazemos xixi? A pergunta não é tão boba
quanto parece. A necessidade de se livrar do excesso de sal, ureia, creatinina e inúmeros
outros refugos do metabolismo é óbvia, mas apenas parte da resposta. Talvez façamos xixi
por razões altruístas. Se nós e outros animais não eliminássemos urina, parte da vida vegetal
da Terra morreria por falta de nitrogênio.
Será possível que, na evolução de Gaia, o grande sistema da Terra, os animais tenham
evoluído para excretar nitrogênio como ureia ou ácido úrico, em vez de nitrogênio gasoso?
Para nós, a excreção de ureia representa um grande desperdício de energia e água. Por que
teríamos desenvolvido algo desvantajoso, senão por razões altruístas? A ureia é o refugo do
metabolismo da carne, peixe, queijo e feijões que comemos, todos ricos em proteína, a base
da vida. Nós digerimos o que comemos, decompondo-o em seus componentes químicos.
Não utilizamos a proteína do músculo da carne em nossos próprios músculos.
Desenvolvemos ou substituímos nossos músculos e outros tecidos juntando os componentes
— os aminoácidos das proteínas — em nova proteína, de acordo com o plano de nosso DNA.
Usar a proteína da carne diretamente para formar nossos músculos seria como pegar as
peças de um trator para consertar uma máquina de lavar. O refugo dessa atividade de
construção e desconstrução acaba se tornando ureia, e parece que não temos outra opção
senão nos livrarmos dela como uma solução diluída em água: urina.
A ureia é uma substância química simples, uma combinação de amônia e dióxido de
carbono, ou, como diria um químico orgânico, a diamida de ácido carbônico: NH2CONH2.
Por que nós e outros mamíferos evoluímos para excretar dessa forma nosso nitrogênio? Por
que não decompor a ureia em dióxido de carbono, água e gás nitrogênio? Bem mais fácil
excretar nitrogênio via respiração, além de poupar a água necessária à excreção da ureia.
Oxidar a ureia acrescentaria até um pouco de água, além de fornecer mais energia.
Vejamos os números: 100 gramas de ureia correspondem metabolicamente a 90
quilocalorias ou, se preferir, 379 quilojoules. Mas, se em vez de consumidas são passadas
para a urina, mais de quatro litros de água são necessários para excretar os 100 gramas de
ureia em uma diluição não tóxica. Normalmente excretamos cerca de 40 gramas de ureia por
dia em cerca de 1,5 litro d’água. Nenhum problema, você deve pensar, mas imagine animais
que vivem em uma região desértica onde faltam comida e água. Se aparecesse um mutante
capaz de metabolizar ureia em nitrogênio, dióxido de carbono e água, desfrutaria de uma
boa vantagem e provavelmente conseguiria deixar mais prole que seu competidor excretor
de ureia. De acordo com uma interpretação simplista da teoria darwiniana, a seleção
favoreceria esse traço mutante, que se espalharia rapidamente até virar a norma.
A essa altura, um bioquímico cético dirá: “Você não percebe que os produtos da oxidação
da amônia ou ureia são todos venenosos, e por esse motivo excretamos nitrogênio como
ureia?”. Minha resposta seria: “Diga isso às bactérias que transformam compostos de
nitrogênio em gás nitrogênio e que são abundantes no solo e oceano”. Além disso, uma
simbiose com organismos desnitrificadores poderia ser tão boa quanto tentarmos
metabolizar ureia, ou até melhor.
Veja bem, a ureia é refugo para nós, e refugá-la desperdiça água e energia valiosas. Mas
se nós e outros animais, em vez de fazermos xixi, expirássemos nitrogênio, talvez existissem
menos plantas e, mais tarde, passaríamos fome. Como foi que evoluímos para ser tão
altruístas e ter um auto-interesse tão inteligente? Talvez haja sabedoria no funcionamento
de Gaia e na maneira como ela interpreta o gene egoísta.
Quando comecei a estudar Gaia, quarenta anos atrás, a ciência não constituía, como
agora, um empreendimento altamente organizado e, com frequência, corporativo. Quase
não havia planejamento prospectivo ou relatórios de andamento, e quase nunca havia
reuniões para planejar as etapas seguintes. Não havia burocracia de saúde e segurança —
esperava-se que fôssemos, como cientistas qualificados, responsáveis pela segurança nossa e
de nossos colegas. Diferente de hoje, a ciência era praticada com a mão na massa no
laboratório, não simulada numa tela de computador em um escritório ou cubículo. Nesse
ambiente idílico, era possível fazer um experimento para confirmar ou negar uma ideia. Às
vezes, a resposta era um simples certo ou errado, mas, em outras ocasiões, algo ambíguo.
Esses “não sei” eram o que levava, por felizes acasos, à revelação de algo totalmente
inesperado: uma descoberta real.
Isso poderia acontecer com a ideia da excreção da ureia. Pensando assim sobre o
nitrogênio, deparei com o problema complexo do oxigênio no período Carbonífero, cerca
de 300 milhões de anos atrás. Uma parte importante dos indícios pró-Gaia vem da
quantidade de gases atmosféricos, como oxigênio e dióxido de carbono, regulados em um
nível confortável para qualquer forma de vida predominante. Temos bons motivos
experimentais, bem como teóricos, para acreditar que a porcentagem atual de oxigênio na
atmosfera está aproximadamente certa. Mais de 21 por cento aumenta o risco de incêndio.
Com 25 por cento, a probabilidade de uma fagulha desencadear um fogo aumenta umas dez
vezes. Andrew Watson e Tim Lenton modelaram a regulação de oxigênio e descobriram
que o risco de incêndio da vegetação seca desempenhava um papel importante no
mecanismo de regulação do oxigênio. Abaixo de 13 por cento não ocorrem incêndios, e
acima de 25 por cento são tão fortes que parece impossível que as florestas atinjam a
maturidade. Imagine a nossa surpresa quando o eminente geoquímico Robert Berner propôs
que, no período Carbonífero, cerca de 300 milhões de anos atrás, o oxigênio compunha 35
por cento da atmosfera. Sua conclusão resultou de um modelo baseado em uma análise
minuciosa da composição de rochas cretáceas. Ele argumentou que, naquela época, tamanha
quantidade de carbono vinha sendo soterrada, grande parte do qual vemos agora como as
rochas carboníferas, que precisava haver muito mais oxigênio no ar para contrabalançar essa
taxa maior de soterramento de carbono.
Minha primeira reação foi que Berner tinha que estar errado. Eu sabia, com base nos
experimentos cuidadosos de meu colega Andrew Watson na década de 1970, que incêndios
em 35 por cento de oxigênio são quase tão violentos como no oxigênio puro. Não me deixei
impressionar por experimentos de laboratório que indicavam que ramos de árvores não
pegavam fogo prontamente em 35 por cento de oxigênio. Há uma grande diferença entre
uma simulação de laboratório e um incêndio de verdade na floresta, onde sua intensa
irradiação seca a madeira na rota do fogo e onde os ventos atraídos pelo fogo renovam o ar
rico em oxigênio. Tampouco me impressionei com argumentos de que as enormes libélulas
existentes naquele tempo não poderiam ter voado sem 35 por cento de oxigênio no ar. Sabe-
se agora que os insetos são extremamente vulneráveis ao envenenamento por oxigênio e que
as libélulas do Cretáceo não teriam nenhuma dificuldade em voar com nossos níveis atuais
de oxigênio. A discussão prosseguiu até que um amigo, Andrew Thomas, cientista estudioso
de acústica e também mergulhador, sugeriu que talvez ambos estivéssemos certos. Berner
estava certo ao afirmar que havia mais oxigênio, e eu estava certo ao sustentar que seu nível
não poderia ser maior que 25 por cento. Bastava haver mais nitrogênio no ar. Não é a
quantidade de oxigênio que determina a inflamabilidade, mas sua proporção na mistura com
nitrogênio.
Cerca de 40 por cento do nitrogênio da Terra está agora soterrado na crosta. Talvez no
Cretáceo aquele nitrogênio ainda não tivesse sido soterrado e existisse no ar, mantendo a
proporção de oxigêniomais segura para as árvores. Podemos também especular que a vida
microbiana do Pré-Cambriano, que precedeu o aparecimento das árvores e animais, não
conservava nitrogênio, de modo que este estaria presente sobretudo como gás no ar.
Esses pensamentos sobre nitrogênio são totalmente especulativos, mas os incluo para
ilustrar como a teoria de Gaia† se desenvolveu a partir de ideias inicialmente vagas ou de
erros proveitosos, que foram as sementes de uma explicação mais verdadeira.
Portanto, vamos mais fundo agora e tentemos sentir Gaia olhando para a Terra de fora,
como um planeta inteiro. Imagine uma espaçonave tripulada por alienígenas inteligentes que
estão observando o sistema solar lá do espaço. Os viajantes trariam a bordo da espaçonave
instrumentos bastante poderosos para revelar a composição química da atmosfera de cada
planeta. Com base nessa análise, e nada mais, seus instrumentos automatizados indicariam
que o único planeta com vida abundante era a Terra. Além disso, diriam que a forma de vida
se baseava em carbono, sendo avançada o bastante para ter criado uma civilização industrial.
O instrumento em si não tem nada de ficção científica: um telescópio pequeno com um
espectrômetro de infravermelho e um computador para controlá-los e analisar suas
observações daria conta do recado. Os extraterrestres veriam metano e oxigênio coexistindo
no ar superior da Terra, e o cientista da nave saberia que esses gases estavam reagindo na luz
solar brilhante e, portanto, algo no solo deveria estar produzindo grandes quantidades de
ambos. As chances de que isso acontecesse por química inorgânica aleatória são quase nulas.
Eles concluiriam que nosso planeta é um habitat rico para a vida, e a presença de CFCS
indicaria uma civilização insensata ao ponto de ter permitido sua liberação.
*
Na década de 1960, prestei serviços à Nasa, projetando instrumentos para a equipe de
exploração planetária, e pensamentos como esses me levaram a propor a análise atmosférica
planetária para detectar vida em Marte. Argumentei que, se Marte abrigasse vida, esta teria
que usar a atmosfera como fonte de matérias-primas e local de depósito de refugo. Isso
modificaria a composição atmosférica, tornando-a reconhecidamente diferente daquela de
um planeta morto. Eu via a Terra, rica em vida, como o planeta contrastante, e a análise
consagrada da biogeoquímica do eminente cientista G. E. Hutchinson serviu de fonte de
informações sobre as origens e os destinos dos gases do ar. Segundo essa análise, o metano e
o óxido nitroso eram produtos biológicos, e o nitrogênio, o oxigênio e o dióxido de carbono
sofriam fortes mudanças em abundância de organismos. Naquela época, nenhum de nós
sabia muita coisa sobre a composição da atmosfera de Marte, mas, em 1965, dados
infravermelhos obtidos na Terra revelaram que a atmosfera de Marte era composta quase
inteiramente de dióxido de carbono e estava próxima do equilíbrio químico. De acordo com
minha proposição, era bem possível que o planeta não tivesse vida — uma conclusão nada
popular para fornecer aos meus patrocinadores. Deixando de lado a detecção de vida, quis
saber o que poderia estar mantendo a nossa atmosfera, quimicamente instável, em um estado
estacionário dinâmico e a Terra ao que tudo indica sempre habitável. Além disso, a
continuidade da vida exige um clima tolerável, apesar de um aumento de 30 por cento da
luminosidade solar desde a formação da Terra. Juntos, esses pensamentos me levaram à
hipótese de que os organismos vivos regulam o clima e a química da atmosfera em seu
próprio interesse, e em 1969 o romancista William Golding propôs chamá-la de Gaia.
Alguns anos depois, comecei a colaborar com a eminente bióloga norte-americana Lynn
Margulis, e em nosso primeiro artigo conjunto afirmamos: a hipótese de Gaia vê a biosfera
como um sistema de controle ativo e adaptativo capaz de manter a Terra em homeostase.
Desde o seu início, na década de 1960, a ideia da autorregulação global do clima e da
química foi impopular entre os cientistas da Terra e os cientistas da vida. Na melhor das
hipóteses, eles a consideraram desnecessária como explicação dos fatos da vida e da Terra;
na pior, condenaram-na imediatamente nos termos mais desdenhosos. Os únicos cientistas a
receberem bem a ideia foram uns poucos meteorologistas e climatologistas. Alguns biólogos
logo desafiaram a hipótese, argumentando que uma biosfera autorreguladora jamais poderia
ter se desenvolvido, já que a unidade de seleção era o organismo, não a biosfera. Por sorte, o
ótimo e claro escritor Richard Dawkins foi o defensor da oposição darwiniana a Gaia.
Apesar de doloroso, com o tempo passei a concordar com ele que a evolução darwiniana,
como então entendida, era incompatível com a hipótese de Gaia.† Não duvidei de Darwin; o
que havia de errado, então, com a hipótese de Gaia? Eu sabia que a constância do clima e da
composição química do ar constituíam bons indícios de um planeta autorregulador. Além
disso, o conceito de Gaia é elucidativo, levando-me a descobrir os condutores moleculares
naturais dos elementos enxofre e iodo: dimetilsulfeto (DMS) e metiliodeto. Vários anos
depois, em 1986, ao colaborar com colegas de Seattle, fizemos a descoberta espantosa de que
o DMS das algas† oceânicas estava relacionado à formação de nuvens e ao clima. Comoveu-
nos aquele vislumbre de um dos mecanismos de regulação do clima de Gaia, e fomos gratos
à comunidade da ciência do clima, que nos levou tão a sério a ponto de conceder a nós
quatro — Robert Charlson, M. O. Andreae, Steven Warren e eu — seu Prêmio Norbert
Gerbier em 1988.
Retornando à discussão com os darwinistas, ocorreu-me em 1981 que Gaia era o sistema
inteiro — a união de organismos e meio ambiente material —, e era este sistema terrestre
imenso que desenvolvia a autorregulação, não a vida ou a biosfera sozinha. Para testar a
ideia, criei um modelo computadorizado de uma planta escura e outra clara competindo pelo
crescimento num planeta com aumento progressivo da luz solar. Aquilo não passou de uma
simulação do mundo, mas o programa, ao ser executado, mostrou o mundo imaginário
regulando sua temperatura perto da ideal para o crescimento das margaridas, e uma grande
variedade de perda de calor de sua estrela. Esse modelo, que chamei de Daisyworld (Mundo
das Margaridas), era incomum para um modelo evolutivo constituído de equações
diferenciais acopladas: estável, insensível às condições iniciais e resistente à perturbação.
Daisyworld é um modelo de planeta como a Terra, orbitando em torno de uma estrela
como o nosso Sol. Em Daisyworld só crescem duas espécies de plantas, ambas competindo
pelo espaço vital, como faria qualquer planta. Quando o Sol é jovem, gera menos calor e
dessa forma o planeta do modelo também está mais frio, e nesse período as margaridas
escuras florescem. Somente nos lugares mais quentes, perto do equador, se encontram
margaridas claras. O motivo é que as margaridas escuras absorvem luz solar e mantêm a si
mesmas, sua região e todo o planeta aquecidos. À medida que a estrela se aquece, as
margaridas escuras que vivem nos trópicos são desalojadas pelas margaridas claras, porque as
claras refletem a luz solar e, portanto, são mais frescas. Elas também resfriam sua região e o
planeta inteiro. À medida que a estrela continua se aquecendo, as margaridas claras
desalojam as escuras, e, através de sua competição por espaço, o planeta sempre permanece
perto da temperatura ideal para a vida. No final, a estrela fica tão quente que mesmo as
margaridas claras não conseguem mais sobreviver, e o planeta se torna uma bola de rocha
sem vida.
O modelo não passa de uma caricatura, mas imagine-o como aquele mapa esplêndido do
sistema de metrô de Londres. Ele não serve de guia das ruas de Londres, mas é ideal para
você se orientar no sistema de metrô daquela cidade agitada. Daisyworld foi inventado para
mostrar que a teoria da evolução com base na seleção natural de Darwin não se opõe à teoria
de Gaia, mas faz parte dela.
A principal reação dos biólogos e geólogosa Daisyworld foi, como bons cientistas, tentar
refutá-lo, o que tentaram várias vezes, cada vez mais irritados, mas sem sucesso. Em resposta
a algumas daquelas críticas, criei modelos bem mais ricos em espécies do que Daisyworld,
que incluíam vários tipos diferentes de plantas, coelhos para comê-las e raposas como
predadores. Esses modelos se mostraram tão estáveis e autorreguladores como Daisyworld.
Meu amigo Stephan Harding criou modelos de ecossistemas completos, com redes de
alimentos, para aumentar nossa compreensão da biodiversidade. A persistência dos críticos
me fez perceber que Gaia só seria considerada ciência séria quando cientistas famosos a
aprovassem em público. Em 1995, iniciei diálogos com John Maynard Smith e William
Hamilton, ambos preparados para discutir Gaia como um tema científico, mas nenhum
conseguindo ver como a autorregulação planetária poderia evoluir por seleção natural.
Mesmo assim, Maynard Smith deu apoio irrestrito ao meu amigo e colega Tim Lenton,
quando este escreveu um artigo seminal na Nature intitulado “Gaia e a seleção natural”.
Nele, Lenton descreveu as diversas formas como a Terra persegue seu objetivo de sustentar
a habitabilidade para quaisquer formas de vida que a habitem. Hamilton indagou, em artigo
conjunto com Lenton, com o título provocador “Spora2 e Gaia”, se a necessidade de
dispersão dos organismos seria o elo entre as algas oceânicas e o clima. Em 1999, Hamilton
afirmou, em um programa de televisão: “Assim como as observações de Copérnico
precisaram de um Newton para explicá-las, precisamos de outro Newton para explicar como
a evolução darwiniana leva a um planeta habitável”.
Então, pelo menos na Europa, o gelo começou a derreter, e numa conferência em
Amsterdã em 2001 — em que estavam representadas quatro grandes organizações voltadas
para a mudança global —, mais de mil delegados assinaram uma declaração que teve como
sua primeira afirmação importante: “O sistema da Terra se comporta como um sistema
único e autorregulador composto de componentes físicos, químicos, biológicos e humanos”.
Essas palavras marcaram uma transição abrupta de um pensamento convencional
anteriormente unânime em que os biólogos sustentavam que os organismos se adaptam aos
seus meios ambientes, mas sem modificá-los, e os cientistas da Terra sustentavam que as
forças geológicas sozinhas poderiam explicar a evolução da atmosfera, crosta e oceanos.
Podemos recordar, nesse ponto, as dificuldades do eminente biólogo Eugene Odum, que, na
década de 1960, concebeu um ecossistema como uma entidade semelhante a Gaia. Ao que
me consta, nenhum dos biólogos que rejeitaram com tanto alarde o conceito de Odum
admitiu seu erro.
A Declaração de Amsterdã representou um passo importante rumo à adoção da teoria de
Gaia como modelo de trabalho para a Terra. Contudo, divisões territoriais e dúvidas
persistentes impediram que os cientistas que assinaram a declaração enunciassem a meta da
Terra autorreguladora, que é, de acordo com a minha teoria, sustentar a habitabilidade. Essa
omissão permite aos cientistas se declararem partidários da Ciência do Sistema da Terra,†
ou Gaia, mas continuarem modelando e pesquisando isoladamente como antes. Essa
tendência natural e humana dos cientistas de resistir à mudança em condições normais seria
irrelevante: os cordões do hábito acabariam se rompendo, e os geoquímicos começariam a
pensar na biota como uma parte da Terra reativa e em evolução, e não como se a vida não
passasse de um reservatório passivo, igual aos sedimentos ou oceanos. No final, também os
biólogos acabariam entendendo o meio ambiente como algo que os organismos mudavam
ativamente, e não algo fixo ao qual se adaptavam. Mas infelizmente, enquanto os cientistas
vêm aos poucos mudando de ideia, nós, do mundo industrial, estamos ocupados mudando a
superfície e a atmosfera. Agora a humanidade e a Terra enfrentam um perigo mortal, com
pouco tempo para escapar. Se a gestão mediana da ciência tivesse sido um pouco menos
reacionária sobre Gaia, poderíamos ter tido vinte anos a mais para tomar as decisões
humanas e políticas, bem mais difíceis, sobre o nosso futuro.
como gaia funciona?
A chave para entender Gaia é lembrar que ela atua dentro de um conjunto de limitações.
Toda vida é incitada por seus genes egoístas a se reproduzir, e se as únicas limitações são a
competição e a predação, o resultado é uma flutuação caótica de populações. Todas as
tentativas de modelar ecossistemas naturais sem incluir limitações ambientais — do famoso
modelo dos coelhos e raposas do biofísico Alfred Lotka e seu colega Vito Volterra às
tentativas mais recentes usando a teoria da complexidade — deixam de produzir a
estabilidade sólida de um ecossistema natural. Lotka advertiu, já em 1925, que as equações
desses modelos simples demais careciam do ambiente físico limitador e seriam difíceis de
solucionar.
Apesar dessa advertência, a matemática abstrata da biologia da população vem fascinando
os biólogos acadêmicos há pelo menos setenta anos, mas dificilmente representa o mundo
real ou satisfaz seus colegas sensatos, os ecologistas de botas enlameadas. Examine qualquer
ecossistema natural de longo prazo em um dos poucos lugares ainda intocados da Terra.
Você descobrirá que ele é dinamicamente estável, tal como seu próprio corpo.
Muitos biólogos do século XX abordaram sua ciência com fé na infalibilidade de uma
descrição genética da vida. Sua fé era tão forte que eles não conseguiam conceber a evolução
de um ecossistema sem levar em conta os genes de suas espécies constituintes. Na verdade, a
evolução epigenética de ecossistemas e Gaia pode ocorrer simplesmente pela seleção de
espécies existentes. Quando um ecossistema experimenta distúrbios constantes, como calor
excessivo ou seca, as espécies tolerantes são selecionadas dentre o conjunto de genótipos
existentes e podem crescer até dominarem. A sintonia fina da evolução genética completa o
processo de adaptação. A evolução de ecossistemas e de Gaia envolve mais do que o gene
egoísta.
A matemática instável da competição e predação ilimitadas entre organismos vivos não
difere do comportamento dos grupos de desordeiros, muitas vezes bêbados, que se reúnem
nos centros das cidades à noite. A limitação de uma comunidade forte e confiante no seu
poder, respaldada por uma força policial eficaz, garantia outrora a calma e a estabilidade,
mas ela desapareceu, e muitas vezes o caos governa. A própria Gaia é firmemente limitada
por feedback do meio ambiente não vivo. Os darwinistas estão certos quando dizem que a
seleção favorece as espécies que deixam mais prole com vida, mas o crescimento vigoroso
ocorre em um espaço limitado, onde o feedback do meio ambiente permite a emergência de
autorregulação natural.
As consequências do crescimento exponencial ilimitado foram várias vezes calculadas e
usadas como exemplos do vigor da vida. Se uma única bactéria se dividisse e repetisse a
divisão a cada vinte minutos, contanto que não houvesse limitações ao crescimento e o
suprimento de alimento fosse ilimitado, em pouco mais de dois dias a prole total pesaria
tanto quanto a Terra. A predação e os limites ao suprimento de nutrientes constituem as
limitações locais, e antes de Gaia estas eram as únicas que os biólogos consideravam. Agora
sabemos que propriedades globais como a composição atmosférica e oceânica e o clima
impõem as limitações que trazem estabilidade.
Portanto, como funcionam essas limitações ambientais? Estas dependem da tolerância
dos próprios organismos. Todas as formas de vida têm uma temperatura mínima, máxima e
ótima para o crescimento, e o mesmo vale para a acidez, a salinidade e a quantidade de
oxigênio no ar e água. Consequentemente, os organismos têm de viver dentro dos limites
dessas propriedades de seus meios ambientes.
Afora alguns organismos altamente adaptados, os extremófilos, que vivem em fontes
quentes próximo do ponto de ebulição ou na salmoura saturada de lagos de água salgada ou
mesmo no ácido forte de nossos estômagos, quase todas as formasde vida são bem exigentes
quanto às suas condições de vida. As células individuais que constituem a vida demandam
exatamente a mistura certa de sais e nutrientes em seu ambiente interno e só tolerarão
mudanças pequenas na composição do mundo ao seu redor. Quando essas células se
agregam em bilhões para formar animais e plantas grandes, conseguem regular seu meio
interno a despeito da mudança ambiental: não somos prejudicados quando nadamos em água
salgada ou fazemos uma sauna. Mas as bactérias, algas e outros organismos unicelulares não
têm outra opção senão viver nas temperaturas e outras condições em que se encontram.
Resultado: eles se adaptaram a uma faixa considerável de temperaturas, salinidade e acidez.
Mas, mesmo para eles, a faixa de temperaturas está limitada entre -1,6ºC, quando a água do
mar congela, e 50ºC. Os seres humanos e a maioria dos mamíferos e aves optaram por se
regular perto dos 37ºC e são chamados homeotermos. Os répteis e invertebrados menos
exigentes são chamados pela curiosa palavra pecilotérmicos, ou, como diríamos
normalmente, de sangue frio. Nossos próprios corpos conseguem suportar uma temperatura
interna de 34 ou 41ºC por períodos curtos, mas nossa saúde não vai bem abaixo dos 36 ou
acima dos 39ºC. Quer vivamos como esquimós no Ártico ou bosquímanos no calor do
deserto de Kalahari, esses são nossos limites internos.
A vida predominante floresce melhor entre 25 e 35ºC, mas essa é apenas a parte
fisiológica da regulação. A vida também é influenciada pelas propriedades físicas das partes
essenciais da Terra. Acima de 4ºC a água se expande ao se aquecer, e se a superfície oceânica
é aquecida de cima pela luz solar, a camada superior absorve a maioria do calor do Sol e se
expande, tornando-se mais leve do que a água ainda mais fria embaixo. Essa camada de
superfície mais quente tem uma profundidade entre 30 e 100 metros. Ela se forma quando a
luz solar é forte o bastante para elevar a temperatura da superfície acima de uns 10ºC.
A camada de superfície morna é estável e, exceto em tempestades violentas, como
furacões, permanece intacta, sem se misturar às águas mais frias abaixo. A formação da
camada da superfície exerce uma poderosa limitação sobre a vida oceânica. Os produtores
primários que semeiam a camada morna recém-formada, no início da primavera, logo
passam por uma sucessão que consome quase todos os nutrientes da camada. Os corpos
mortos dessa florescência de primavera afundam até o solo do oceano, e logo, na camada da
superfície, só resta uma população limitada e faminta de algas. Daí as águas mornas tropicais
serem tão límpidas e azuis: elas são os desertos do oceano, e atualmente ocupam 80 por
cento da superfície de água do mundo. No Ártico e Antártida, as águas da superfície
permanecem abaixo dos 10ºC, de modo que estão bem misturadas do fundo até a superfície,
com nutrientes disponíveis por toda parte.
No início do século XX, as viagens intercontinentais eram marítimas. Os viajantes de
navio de Nova York para a Europa primeiro viam as águas mornas, azuis e claras da corrente
do Golfo. Subitamente, ao rumar para o norte e o leste passando pelo cabo Cod e entrando
na corrente fria do Labrador, a água se tornava escura, como uma sopa. A vida oceânica
pode gostar de estar aquecida, mas as propriedades da água impedem que desfrute um calor
muito superior a 10ºC, a não ser que esteja preparada para restringir sua quantidade e quase
morrer de fome. Esta é uma limitação global importante ao crescimento e um motivo por
que Gaia se sente melhor quando está mais fresco.
Existem oásis nos vastos desertos dos atuais oceanos do mundo, e eles se encontram nas
bordas dos continentes onde água fria rica em nutrientes jorra das profundezas. Os mares
defronte aos estuários de rios grandes, como o Mississippi, o Reno, o Indo e o Yang-Tsé,
são oásis artificiais, ricos em nutrientes, o escoamento da agricultura intensiva em terra
firme. Mas esses oásis, naturais e artificiais, desempenham apenas um papel reduzido.
Uma limitação semelhante e igualmente importante ao crescimento atua em terra firme.
Os organismos florescem à medida que ela se torna mais quente, até quase 40ºC. Porém, no
mundo natural, o acesso à água necessária à vida se torna difícil uma vez que a temperatura
se eleve muito acima de 20ºC. No inverno, quando chove e as temperaturas são inferiores a
10ºC, a água permanece por um bom tempo, e o solo se conserva úmido e adequado ao
crescimento. No verão, com temperaturas médias próximas de 20ºC, a chuva recém-
depositada logo evapora e deixa a superfície seca. O solo perde umidade, a não ser que a
chuva se repita com frequência. Em algum ponto acima de 25ºC, a evaporação é tão rápida
que, sem chuvas contínuas, o solo seca e a terra se torna um deserto. Assim como na camada
de superfície do oceano, os organismos podem gostar de calor, mas as propriedades da água
impõem um limite ao crescimento.
Richard Betts, do Hadley Centre, mostrou como as grandes florestas úmidas tropicais
superaram, em certo grau, essa limitação adaptando-se ao seu meio ambiente quente para
conseguir reciclar água. O ecossistema faz isso sustentando as nuvens e a chuva sobre a copa
da floresta, mas essa capacidade é limitada. Ele e Peter Cox afirmam que um aumento de 4ºC
da temperatura seria suficiente para arrasar a floresta amazônica, transformando-a em
cerrado ou deserto. Este aumento poderia decorrer em parte das consequências locais da
evaporação mais rápida da chuva, mas também de mudanças globais nos padrões de vento
em um mundo 4ºC mais quente.
A água pura congela a 0ºC, enquanto nos oceanos o sal da água reduz o ponto de
congelamento para -1,6ºC. A vida consegue adaptar-se a temperaturas abaixo do ponto de
congelamento — peixes nadam em águas ainda não congeladas, mas abaixo de 0ºC —, mas
vida ativa é impossível no estado congelado. Quando Sandy e eu visitamos os laboratórios do
British Antarctic Survey, em Cambridge, ficamos fascinados ao ver um peixe, num tanque
mantido a -1,6ºC, nadar animado em direção ao nosso anfitrião, Lloyd Peck, esperando
ganhar comida. Para o peixe, tratava-se obviamente de uma temperatura aceitável. Quando
água é retirada de um organismo para formar gelo ou como vapor d’água na secagem, os sais
dissolvidos no organismo são concentrados. Se a concentração de sais ultrapassa seis por
cento, a morte é imediata. Os organismos se adaptaram, até certo ponto, a esse problema. A
água do mar, por exemplo, tem seis por cento de sal e está próxima desse limite letal. A
seleção favoreceu os organismos capazes de produzir substâncias que neutralizam as
consequências danosas do aumento de sal. No oceano, eles produzem grandes quantidades
de dimetil sulfopropionato (DMSP) com essa finalidade. Na terra firme, insetos do Ártico
desenvolveram compostos químicos anticongelamento que impedem que o sal se acumule
em níveis letais quando eles congelam.
Essas limitações físicas impostas pelas propriedades da água exercem um feedback sobre o
crescimento e definem o relacionamento entre o crescimento e a temperatura e a
distribuição da vida na Terra. De um ponto de vista puramente humano, o estado
interglacial atual, pelo menos antes que começássemos a interferir nele, é preferível à
glaciação, talvez porque os seres humanos, mais influentes, vivem em regiões do hemisfério
Norte que estiveram cobertas por geleiras ou tundra durante a era glacial. Do ponto de vista
de Gaia, a glaciação foi um estado desejável, com muito menos água de superfície morna e,
portanto, vida oceânica abundante. A água retirada dos oceanos para formar as grandes
geleiras teria reduzido o nível do oceano em 120 metros, proporcionando uma área de terra
do tamanho da África para o crescimento de plantas. Como vimos, havia mais vida na Terra
mais fria, como mostra a pouca quantidade de dióxido de carbono naquele tempo. É preciso
muita vida para reduzi-lo a menos de 200 partes por milhão (ppm). Mais do que isso, o
núcleo de gelo da Antártida indica que a produção de dimetilsulfeto (DMS) era quase cinco

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