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DO ROMANCE DE FORMAÇÃO À FILOSOFIA DE FORMAÇÃO O cuidado de si pela escrita de si (Parte 4) Escri

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5th November 2012
 Filosofia de Formação
Leandro Nunes 
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As tecnologias de si
 Segundo Foucault, mesmo que a primeira grande teoria do cuidado de si esteja
presente no diálogo Alcebíades, a exigência de ocupar-se consigo mesmo e o conjunto de
práticas pelas quais o cuidado de si se manifesta, em realidade, originaram-se “em práticas muito
antigas, maneiras de fazer, tipos e modalidades de experiência que constituíram o seu suporte
histórico, e isto bem antes de Platão, bem antes de Sócrates” (Idem, p. 59).
 Nas práticas de si – na antiguidade – acreditava-se que a verdade e, até mesmo, o
acesso à verdade, condicionava-se por alguma coisa que complementava o sujeito; algo que agia
sobre o indivíduo e que o transformava: “um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo,
jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse [...] consumado por certa transformação do
sujeito, não do indivíduo, mas no próprio sujeito no seu ser de sujeito” (Idem, p. 21). Em suma, na
antiguidade, as práticas que davam acesso à verdade e as práticas espirituais, sempre estiveram
intimamente ligadas:
Que a verdade não possa ser atingida sem certa prática ou certo conjunto de práticas
totalmente especificadas que transformam o modo de ser do sujeito, modificam-no tal
como está posto, qualificam-no transfigurando-o, é um tem pré-filosófico que deu lugar
a numerosos procedimentos mais ou menos ritualizados. Havia, se quisermos, muito
antes de Platão, muito antes do texto do Alcebíades, muito antes de Sócrates, toda
uma tecnologia de si que estava em relação com o saber, quer se tratasse de
conhecimentos particulares, quer do acesso global à própria verdade (Idem, p. 59).
DO ROMANCE DE FORMAÇÃO À FILOSOFIA DE
FORMAÇÃO: O cuidado de si pela escrita de si (Parte 4)
http://escrileiturasjardimeuropa.blogspot.com/2012/11/do-romance-de-formacao-filosofia-de_4083.html
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 A concepção de que o acesso à verdade estaria condicionado a uma necessidade “de
pôr em exercício uma tecnologia de si [...] é uma ideia manifesta na Grécia arcaica e, de resto,
em uma série de civilizações, senão em todas” (Idem, p. 59). Dentre estas práticas, Foucault cita
os ritos de purificação, os ritos de concentração da alma, as técnicas de retiro e, por fim, as
práticas de resistência:
Primeiro os ritos de purificação: não podemos ter acesso aos deuses, praticar
sacrifícios, ouvir o oráculo e compreender o que ele disse, não podemos nos beneficiar
de um sonho capaz de esclarecer porque fornece sinais ambíguos mas decifráveis,
nada disto podemos fazer se antes não nos tivermos purificado. A prática da
purificação, enquanto rito necessário e prévio ao contato não apenas com os deuses
mas [com] aquilo que os deuses podem nos dizer como verdadeiro, é um tema
extremamente corrente, conhecido e atestado desde muito já na Grécia clássica, na
Grécia Helenística e, finalmente, em todo o mundo romano. [...] Outras técnicas [...] são
as de concentração da alma. A alma é algo de móvel. A alma, o sopro, é algo que pode
ser agitado, atingível pelo exterior. E é preciso evitar que a alma, este sopro [...] se
disperse. É preciso evitar que se exponha ao perigo exterior. Que alguma coisa ou
alguém do exterior o atinja. É preciso evitar que no momento da morte ele seja assim
dispersado. É preciso, pois, [...] fazê-lo refluir sobre si mesmo a fim de conferir-lhe um
modo de existência. [...] uma outra técnica, outro procedimento pertinente as
tecnologias de si é a técnica do retiro [...] o retiro, compreendido nestas técnicas de si
arcaicas, é uma certa maneira de desligar-se, de ausentar-se [...] do mundo no qual se
está situado: cortar de certo modo, o contato com o mundo exterior [...] trata-se da
técnica, se quisermos, de uma ausência visível. [...] quarto exemplo [...] a prática de
resistência que, de resto, está vinculada a esta concentração da alma e a este retiro em
si mesmo, e faz com que se consiga suportar as provações dolorosas e difíceis, ou
ainda, resistir às tentações que possam advir (Idem, p. 59-60).
 As práticas citadas por Foucault já existiam na Grécia arcaica, sendo que, muitas delas
compunham “um movimento espiritual, religioso ou filosófico muito conhecido, que é o
pitagorismo com seus componentes ascéticos” (Idem, p. 60). Para demonstrar isso, Foucault
toma dois exemplos das tecnologias de si nessa escola filosófica, quais sejam: a preparação
purificadora para o sonho e as técnicas de provação. O primeiro exemplo era uma técnica muito
comum entre os pitagóricos, pois, para eles, “sonhar enquanto se dorme é estar em contato com
um mundo divino, o da imortalidade, o do além morte, que é também o da verdade, devemos nos
preparar para o sonho” (Idem, p. 61). Para tanto, segundo Foucault, antes do sono, os adeptos
dessa doutrina faziam rituais para purificar a alma a fim de capacitá-la para o contato com o
mundo divino. Pois, somente com a alma purificada o homem poderia entender as verdades
reveladas durante o sonho. O segundo exemplo consistia em uma organização em torno de si
mesmo, ou seja, buscar algo que o tente e provar-se com o intuito de tornar-se resistente a esta
tentação.
 Foucault usa destes exemplos para tentar mostrar que mesmo antes da emergência
do cuidado de si em Platão/Sócrates, as tecnologias de si estavam presentes em muitas outras
culturas e doutrinas, especialmente nos pitagóricos. Não obstante, em todas essas filosofias,
inclusive no Alcebíades, o cuidado de si se resumia ao conhecimento de si. 
***
 Nas práticas de si, mais precisamente, no período helenístico e romano, a figura do
outro é essencial para que se atinja o “eu” que é visado. O outro é o espelho do indivíduo na
medida em que demarca os contornos de si. Segundo Foucault, na carta de Sêneca para Lucílio,
encontramos uma importante definição para o papel do outro no cuidado de si na definição do
conceito stultia. O indivíduo sem reflexo encontra-se em stultitia, entendendo stultitia como
alguma coisa que a nada se fixa e que em nada se apraz, ou seja, em um estado patológico,
mórbido, sendo o outro que põe o indivíduo stulto em movimento:
Entre a vontade e o eu há uma desconexão, uma não-conexão, um não pertencimento
que é característico da stultitia, [...] Sair da stultitia, na medida mesma em que ela se
define por esta não-relação consigo, não pode ser feito pelo próprio indivíduo. A
constituição de si como objeto suscetível de polarizar a vontade, de apresentar-se
como objeto, finalidade livre, absoluta e permanente da vontade, só pode fazer-se por
intermédio de outro. Entre o indivíduo stultus (aberto ao mundo exterior na medida em
que deixa as representações de certo modo misturar-se no interior de seu próprio
espírito, sem a capacidade de distinção entre o conteúdo destas representações e os
elementos subjetivos), e o indivíduo sapiens (sábio), é necessário o outro (Idem, p. 164
– 165).
 O outro é o mestre, o filósofo, o direcionador de consciência, aquele que retira o indivíduo
de seu stultus:
Quanto mais se precisa de um conselheiro para si próprio, mais se precisa [...] de
recorrer ao Outro, mais se afirma consequentemente, a necessidade da filosofia, mais
também a função propriamente filosófica do filósofo, [...] a saber: a prática da direção
de consciência, fora do campo profissional dos filósofos, como forma de relação entre
quaisquer indivíduos (Idem, p. 176).
 O direcionamento de consciência é uma tecnologia de si enraizada na amizade; amizade
entendida como relação, relação de si para consigo e de si para com outro. Tal relação, segundo
Foucault, “não é exatamente umarelação de Um com Outro, não é a comunicação imediata entre
dois indivíduos, trata-se de uma estrutura social da amizade que gira em torno de um indivíduo”
(Idem p. 188). O aprendizado se dá nessa relação de mestre e discípulo, no guiar a alma para um
estado de makariótes:
A sabedoria se cerca de amigos na medida em que, tendo a sabedoria por objetivo
estabelecer a alma em um estado de makariótes – em um estado, pois, que depende
da ataraxia, isto é, da ausência de perturbação –, encontramos nestes amigos e na
confiança que temos na sua amizade uma das garantias desta ataraxia e desta
ausência de perturbação. Portanto, nesta concepção da amizade epicurista, mantêm-se
ao extremo o princípio segundo o qual na amizade nada se busca se não a si mesmo
ou a própria felicidade. A amizade nada mais é que uma das formas que se dá ao
cuidado de si. Todo homem que tem realmente cuidado de si deve fazer amigos. Estes
amigos chegam ocasionalmente no interior da rede de trocas sociais e da utilidade. A
utilidade, que é ocasião de amizade, não deve ser abolida. É preciso mantê-la até o
fim. Mas o que dará função à utilidade no interior da felicidade é a confiança que
dedicamos aos nossos amigos que são, para conosco, capazes de reciprocidade. E é a
reciprocidade destes comportamentos que faz figurar a amizade como um dos
elementos da sabedoria e da felicidade. Vemos, pois, a complexa articulação entre
utilidade e desejabilidade, entre a reciprocidade da amizade e a singularidade da
felicidade e da tranquilidade que me está assegurada. Vemos que a amizade é
inteiramente da ordem do cuidado de si e que é pelo cuidado de si que se deve ter
amigos (Idem, p. 239-240).
 
 A direção de consciência pode ser observada na análise que Foucault faz sobre as
correspondências entre Marco Aurélio e Frontão. Frontão era o mestre de retórica de Marco
Aurélio. O outro/mestre nessa relação é caracterizado como um indivíduo de franqueza em
oposição à hipocrisia e à lisonja. A afeição e a amizade são o suporte para a relação em mestre e
discípulo. O teor das cartas enviadas por Marco Aurélio é, em suma, um relato minucioso de si
através do relato dos acontecimentos do dia, do despertar ao adormecer. Tudo o que é retratado
na carta, segundo Foucault, poder ser dividido em três categorias:
Em primeiro lugar, os detalhes sobre saúde, os detalhes sobre regime. A começar pelas
pequenas agitações. [...] sono, despertar, alimentação, banho, exercícios, e depois,
bem entendido, desde Hipócrates, são considerados como os elementos do regime, do
regime médico, do regime dietético. Ele presta contas, pois, de seu regime médico. Em
segundo lugar, presta conta de seus deveres familiares e religiosos. [...] é este, se
quisermos, o aspecto da vida econômica no sentido em que Xenofonte empregava
esse termo, ou seja: as relações familiares, a atividade do dono da casa que tem de
ocupar-se com os que o cercam, com os seus, com seus bens, com seus serviçais, etc.
Esta paisagem toda é reutilizada, mas, repito, para fins de exercício pessoal. O terceiro
aspecto mencionado na carta consiste, certamente, nos elementos concernentes ao
amor. [...] trata-se de uma espécie de questão individual bastante estranha, em que se
compara intensidade, o valor, a forma deste amo [...] de dois homens (Frontão e Marco
Aurélio) e o amor de duas mulheres (a mãe de Marco Aurélio e Gratia) (Idem, p. 197-
199).
 Em suma, no período helenístico vemos uma atualização das práticas de si que pode
ser resumida desta maneira: “o corpo, os familiares e a casa, o amor. Dietética, econômica,
erótica” (Idem, p. 199). Segundo Foucault, estes são os três domínios em que se atualizam as
tecnologias de si, incluindo, ainda, uma remissão de um a outro. A dietética, a econômica e a
erótica são os grandes domínios da prática de si presentes nos helenísticos.
 
A escrita e o cuidado de si
 Nessa era, o que vemos é que as práticas de si estão ligadas às escolas, a
instituições. E, assim sendo, ao aprendizado, a formação de homens. E é na constituição de si
que vemos surgir na época de ouro do cuidado de si o problema da escrita e da leitura. A prática
da leitura é uma técnica presente na antiguidade, Foucault afirma “que os princípios da leitura
filosófica retomam, mas sem modificá-los no essencial” (Idem, p. 427). Em suma, estas práticas
que muito interessam em nossa proposta se resumem a conselhos:
Primeiro, ler poucos autores; ler poucas obras; ler, nestas obras, poucos trechos;
escolher algumas passagens consideradas importantes e suficientes. Daí, aliás, todas
aquelas práticas bem conhecidas, como a de resumo de obras. De tal modo esta
prática foi difundida que é graças a ela, muitas vezes, que tantas obras nos foram
felizmente conservadas. As explanações de Epicuro só ficaram conhecidas
praticamente por resumos feitos por seus alunos depois de sua morte, e por algumas
proposições consideradas importantes e suficientes pelos que se iniciavam e pelos
que, já iniciados, necessitavam reatualizar e [rememorar] os princípios fundamentais de
uma doutrina a ser não apenas conhecida, mas também assimilada e da qual, de certo
modo, era preciso ter-se tornado o sujeito que fala (Idem, p. 427-428).
 O primeiro exemplo é uma prática de resumo. Prática que, segundo Foucault, foi a
responsável pela conservação de várias obras de importantes pensadores. O que é realçado é
que a prática de leitura filosófica não objetivava o aprendizado da obra de um filósofo ou
enriquecer a sua doutrina, tratava-se de propiciar uma ocasião de meditação.
 O efeito que se espera do exercício de leitura como tecnologia de si não é a
compreensão do autor, “mas a constituição para si de um equipamento de proposições
verdadeiras, que seja efetivamente seu” (Idem, p. 431). Trata-se de constituir para si um leque de
conhecimento que valha como prescrições, ou seja, discursos verdadeiros que correspondam a
princípios de comportamento. Para tanto, a prática de leitura encontra-se intimamente ligada ao
exercício da escrita de si.
 A escrita assume um papel central nessa cultura, assim como será na filosofia de
formação que estamos querendo constituir. O que vemos é uma grande relevância da prática de
escrita pessoal e individual. O que Foucault revela em seus estudos, é que nos séculos I e II a
escrita se tornara um elemento do exercício de si. É uma ativação de um exercício contido nos
antigos, uma junção mais acurada das práticas de leitura com as práticas de escrita: “a leitura se
prolonga, reforça-se, reativa-se pela escrita, escrita que, também ela, é um exercício, um
elemento da meditação” (Idem, p. 431).
 Nas cartas de Sêneca, citadas por Foucault, vemos uma clara correlação entre a
escrita e a leitura. Para ele, ambas devem estar ligadas, pois constituem um mesmo exercício,
um exercício de corpo e de alma que se configura na assimilação do discurso verdadeiro. A
leitura recolhe o logos e a escrita dá um corpo para aquilo que foi recolhido. Encontramos na
cultura de si, nas práticas de si “e nas regras da prática de si, a obrigação de escrever, o conselho
para escrever” (Idem, p. 431). Em Epicteto, por exemplo, encontramos conselhos referentes à
meditação, a escrita e o treino:
Encontramos em Epicteto [...] o seguinte conselho: é preciso meditar (meletân),
escrever (grapheîn) e treinar (gymnázein). Exercício de pensamento frequentemente
sustentado por um texto que se lê; gráphein, escrever; e gymnázein, isto é, treinar na
realidade, tentar vencer a prova ou o teste do real. [...] a escrita é, assim, um elemento
de exercício, e um elemento de exercício que traz a vantagem de ter dois usos
possíveis e simultâneos. Uso em certo sentido, para nós mesmos. É escrevendo,
precisamente, que assimilamos a própria coisa na qual se pensa (Idem, p. 431-432).
 A escrita era um elemento constituinte do exercício sobre si. Era hábito recomendado
escrever tudoo que se tivesse lido, “e uma vez escrito, reler aquilo que se tivesse escrito, e relê-
lo necessariamente em voz alta” (Idem, p. 432). Tal procedimento também se deve porque nas
antigas escritas latina e grega, as palavras não eram escritas separadamente, portanto, havia
uma grande dificuldade na prática da leitura, daí ser recomendado que a leitura fosse
pronunciada: 
 
O exercício de leitura não era fácil: não se tratava de ler simplesmente com os olhos.
Para se chegar a destacar as palavras como convinha, era-se obrigado a pronunciá-las
[...] de sorte que o exercício de ler, escrever, reler o que se tinha escrito e as anotações
feitas, constituía um exercício quase físico de assimilação da verdade e do logos a se
reter (Idem, p. 432).
 Epicteto recomendava guardar os pensamentos em escrito para se poder tê-los
sempre à disposição para a leitura, isto porque a leitura era entendida como o reconhecimento da
palavra pronunciada. Em suma, as práticas de leitura, escrita e releitura eram base para a ascese
estóica: “escrevemos após a leitura a fim de podermos reler, reler para nós mesmos e assim
incorporarmos o discurso verdadeiro que ouvimos da boca de um outro ou que lemos sob o nome
de um outro” (Idem, p. 433). Para além do uso para si, a escrita era essencialmente um uso para
os outros. 
 A escrita era constituinte da cultura estóica; era ferramenta de correspondência de
indivíduo a indivíduo. A escrita objetivava dar notícias sobre a esfera política, assim como para
dar notícia de si mesmo aos outros e vice-versa. Portanto, a prática da escrita tornara-se uma
atividade extremamente importante na cultura de si.
A escrita de si
 
 A escrita de si mesmo possui uma relação próxima e de completude com a noção de
anacorese[1] [file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftn1] , pois atenua os perigos da solidão
dando ao que se viu ou se pensou um olhar possível, uma direção. Não obstante, a escrita de si
desempenha o papel de um amigo, de um companheiro, pois, promove o respeito e a vergonha,
como podemos verificar nas palavras de Foucault:
file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftn1
Uma primeira analogia: aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, sê-
lo-á o caderno de notas para o solitário. Mas, simultaneamente, uma segunda analogia
se coloca, referente à prática da ascese como trabalho não apenas sobre os atos mas,
mais precisamente, sobre o pensamento: o constrangimento que a presença alheia
exerce sobre a ordem da conduta, exercê-lo-á a escrita na ordem dos movimentos
internos da alma; neste sentido, ela tem um papel muito próximo do da confissão ao
diretor, do qual Cassiano dirá, na linha da espiritualidade avagriana, que deve revelar,
sem exceção, todos os movimentos da alma (omnes cogitationes). Por fim, a escrita
dos movimentos interiores surge também, segundo o texto de Atanásio, como uma
arma do combate espiritual: uma vez que o demônio é um poder que engana e que faz
com que nos enganemos sobre nós mesmos [...], a escrita constitui uma prova e como
que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a
sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo (FOUCAULT, 1992, p. 131-132).
 Segundo Foucault, o texto referido é um dos “mais antigos que a literatura cristã nos
terá deixado sobre este assunto da escrita espiritual – está longe de esgotar todas as
significações e formas que esta mais tarde irá adquirir” (Idem, p. 132). Assim sendo, tal texto
pode revelar muitos traços da cultura filosófica de si na época imediatamente anterior ao
cristianismo. Sendo que, tais características permitem analisar detalhadamente o papel central da
escrita na cultura de si e na relação de amizade entre mestre e discípulo, característica
importante nos primeiros séculos de nossa era.
 O que verificamos na idade de ouro da cultura de si – e que servirá como base para
nossa proposta de uma filosofia de formação – é uma indicação para que se escreva sobre si,
pois, segundo Foucault, “escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de
comunicar mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por vergonha de os
termos conhecido” (Idem, p. 130). A escrita de si era recomendada para que tomasse o lugar dos
companheiros de ascese: “de tanto enrubescermos por escrever como por sermos vistos,
abstenhamo-nos de todo o mau pensamento” (Ibidem). Dessa maneira, através da escrita, nos
disciplinamos e reduzimos os perigos em fronte às astúcias do inimigo.
***
 Para a constituição de nossa proposta de uma filosofia de formação é necessário
compreender, com Foucault, que nenhum indivíduo pode se constituir como tal sem um exercício
sobre si; uma vez que ninguém “pode aprender a arte de viver, a tekne tou biou, sem uma
askesis, que é preciso entender como um adestramento de si por si mesmo” (Idem, p. 132). Esse
princípio já era encontrado, desde há muito tempo, nos Pitagóricos, Socráticos e Cínicos. Em tais
filosofias, a prática da escrita desempenhava um papel considerável na cultura de si. No entanto,
somente nos primeiros séculos da era romana que a escrita centralizou-se como suporte
necessário para a constituição de si:
É Epicteto, que todavia não ministrou senão um ensino oral, insiste repetidas vezes no
papel da escrita como exercício pessoal: deve-se "meditar" (meletan), escrever
(graphein), treinar (gymnazein); “possa a morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo,
leio”. Ou ainda: “Mantém estes pensamentos noite e dia à disposição (procheiron); põe-
nos por escrito, faz-lhes a leitura; que eles sejam o objeto das conversas contigo
mesmo, com um outro... se te suceder um daqueles episódios que chamamos
indesejáveis, logo encontrarás alívio no pensamento de que não era inesperado”.
Nestes textos de Epicteto, a escrita aparece regularmente associada à “meditação”, a
esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reativa o que ele sabe, se faz
presente um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se
prepara assim para enfrentar o real (Idem, p. 133).
 O que fica claro é que a escrita coloca-se como suporte para o exercício do
pensamento; todavia, e principalmente, a escrita de si torna-se uma importante e potente
ferramenta para o exercício do pensamento sobre si, isto é, para a constituição de si; o que,
segundo Foucault, pode ser verificado sob dois aspectos:
Uma toma a forma de uma série “linear”; vai da meditação à atividade da escrita e
desta ao gymnazein, quer dizer, ao treino em situação real e à prova: trabalho de
pensamento, trabalho pela escrita, trabalho em realidade. A outra é circular: a
meditação precede as notas, as quais permitem a releitura que, por sua vez, relança a
meditação. De qualquer modo, seja qual for o ciclo de exercício em que tome lugar, a
escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis: a
saber, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em
princípios racionais de ação (Idem, p. 133-134).
 Na filosofia de formação que queremos propor, assim como na idade de ouro da
cultura de si, a escrita deve ser um elemento constituinte do próprio treino de si. Os estudos
acerca do último Foucault servem como base para pensar uma escrita de si que seja potente e
formativa. Pois, entendemos que a escrita possa ser o processo mais potente pelo qual o homem
se constitui como tal. Para tanto, encontramos em Foucault uma indicação que pode ser
relacionada com o que pensamos como filosofia de formação, a saber: os livros de vida.
O livro de vida
 
 O livro de vida – os hypomnemata[2] [file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftn2] –
era um guia de conduta que tornou-se algo corrente na cultura de si nos helenísticos. Esse livro
continha “citações, fragmentos de obras, exemplos e ações de que se tinha sido testemunha ou
cujo relato se tinha lido, reflexõesou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à
memória” (Idem, p. 135). O livro da vida constituía um acervo, “uma memória material das coisas
lidas, ouvidas ou pensadas; ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à
meditação ulterior” (Idem, p. 135). Foucault cita Plutarco como exemplo:
Deste modo, quando Fulano lhe pede conselho para combater as aflições da alma,
Plutarco, que nesse momento não dispõe de tempo para compor um tratado em boa e
file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftn2
devida forma, irá pois enviar-lhe, por retocar, os hypomnemata que ele próprio tinha
redigido sobre o tema da tranquilidade da alma: pelo menos é assim que apresenta o
texto do Peri Euthymias. Falsa modéstia? Sem dúvida que isso era uma maneira de
desculpar o carácter algo descosido do texto; mas também se deve ver aqui uma
indicação daquilo que eram esses cadernos de notas – assim como do uso a fazer do
próprio tratado, que conservava um pouco da sua forma original (Idem, p. 135-136).
 Essa escrita da vida, não era simples memórias materiais organizadas em um
“armário de recordações, mas profundamente implantados na alma, ‘gravados nela’, diz Séneca,
e que desse modo façam parte de nós próprios: em suma, que a alma os faça não apenas seus,
mas si própria” (Idem, p. 137). Assim, a prática da escrita em forma de livro de vida tornou-se um
potente processo de subjetivação do discurso.
 Para Foucault, os cadernos de vida são uma narrativa de si mesmo: “trata-se, não de
perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito;
reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a
constituição de si” (Idem, p. 137). Entre os helenísticos, os cadernos de vida tornaram-se
uma prática comum, pois, objetivavam ser um meio para uma relação de si para consigo próprio a
mais completa quanto fosse possível:
A escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade
contrastiva; ou, mais precisamente, uma maneira refletida de combinar a autoridade
tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a
particularidade das circunstâncias que determinam o seu uso (Idem, p. 141).
 Tal prática pode ser distinguida em dois processos, quais sejam: primeiramente, trata-
se de uma tentativa de junção de fragmentos da vida escrita “por intermédio da sua subjetivação
no exercício da escrita pessoal” (Idem, p. 142). Por conseguinte, trata-se de entender o papel da
escrita, a saber: constituir um "corpo"; um corpo entendido “como o próprio corpo daquele que, ao
transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita
transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”” (Idem, p. 143).
 Nessa perspectiva, o escritor constitui a sua própria identidade mediante a escrita
daquilo que foi dito. No entanto, não se trata de constituir uma escrita para que o autor seja
reconhecido por quem lê-la: “não se trata de constituir, nas notas que se tomam e no modo em
que se restitui por escrito aquilo que se leu, uma série de ‘retratos’ reconhecíveis, mas ‘mortos’”
(Idem, p. 144). Para tanto, o exercício da escrita na filosofia de formação deve ser entendido,
assim como nos helenísticos, como os traços que constituem a alma:
É a própria alma que há que constituir naquilo que se escreve; todavia, tal como um
homem traz no rosto a semelhança natural com os seus antepassados, assim é bom
que se possa aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficaram
gravados na sua alma. Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora, deve
tornar-se possível formar para si próprio uma identidade através da qual se lê uma
genealogia espiritual inteira. Num mesmo coração há vozes altas, baixas e medianas,
timbres de homem e de mulher: “Nenhuma voz individual se pode aí distinguir; só o
conjunto se impõe ao ouvido... Assim quero eu que seja com a nossa alma, que ela
faça boa provisão de conhecimentos, de preceitos, de exemplos tirados de mais do que
uma época, mas convergentes numa unidade” (Idem, p. 144-145).
 
A correspondência de si para si e de si para os outros
 O livro de vida se constitui de cadernos de notas; cadernos que “em si mesmos,
constituem exercícios de escrita pessoal, podem servir de matéria prima para textos que se
enviam aos outros” (Idem, p. 145). Um belo exemplo disso são as cartas de Sêneca. Tais cartas
eram exercícios de escrita pelos quais ele exercitava-se a si próprio:
Aí faz uma boa caracterização da maneira como ocupa a sua aposentação da vida
pública com o duplo trabalho que simultaneamente efetua sobre o seu correspondente
e sobre si próprio: recolher-se em si mesmo tanto quanto é possível; dedicar-se
àqueles que são susceptíveis de ter sobre si um efeito benéfico; abrir a sua porta
àqueles a quem se tem esperança de tornar melhores; são préstimos recíprocos. Quem
ensina instrui-se (Idem, p. 146-147).
 Quando se trocam correspondências com alguém a fim de instruí-lo, o ato da escrita
torna-se um treino de si; pois, como um soldado que se exercita no maneja de armas quando o
tempo é de paz, “também os conselhos que são dados aos outros na medida da urgência da sua
situação constituem uma maneira de se preparar a si próprio para eventualidade semelhante”
(Idem, p. 147).
 O exercício de instrução via correspondência – o serviço de alma prestado pelo
escritor – era uma prática comum nos primeiros séculos de nossa era. Sendo que, tal exercício
tinha como premissa que o remetente fosse retribuído com um conselho equitativo, pois, “à
medida que progride, aquele que é orientado vai-se tornando cada vez mais capaz de, por seu
turno, dar conselhos, exortar e consolar aquele que tomou a iniciativa de o auxiliar” (Idem, p.
148). Em suma, trata-se de um exercício de direcionamento de consciência que objetiva uma
troca igualitária entre mestre e discípulo. Não obstante, o que Foucault deixa claro é que a
correspondência não era um prolongamento da prática do livro de vida; pelo contrário, a troca de
cartas objetivava simplesmente uma certa maneira de cada um se manifestar a si próprio e aos
outros:
A carta faz o escritor “presente” àquele a quem a dirige. E presente não apenas pelas
informações que lhe dá acerca da sua vida, das suas atividades, dos seus sucessos e
fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença
imediata e quase física. “Escreves-me com frequência, o que me é grato, pois assim te
mostras a mim (te mihi ostendis) pelo único meio de que dispões. De cada vez que me
chega carta tua, eis-me de imediato juntos. Se ficamos felizes por possuir os retratos
dos nossos amigos ausentes... quanto mais nos não alegra uma carta, pois traz vivas
marcas do ausente, o cunho autêntico da sua pessoa. O traço de uma mão amiga,
impressa nas páginas, proporciona o que há de mais doce na presença: reconhecer”
(Idem, p. 149-150).
 
A prática da escrita via correspondência é o modo pelo qual o indivíduo mostra-se, a
forma pela qual se põe em evidência junto ao outro. Por tal motivo, a carta era entendida como o
olhar posto no destinatário que revelava a constituição do próprio remetente: “no caso da
narrativa epistolar de si próprio, trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e aquele que se volve
para si próprio quando se aferem as ações quotidianas às regras de uma técnica de vida” (Idem,
p. 160).
A constituição de si pela escrita
 Como já afirmado, o “eu” está para ser inventado, criado, construído. Assim sendo, a
partir das experiências da idade de ouro da cultura de si e do papel central que a atividade da
escrita exerce na constituição de si – compreendendo que a escrita contém em si a leitura – é que
tentaremos pensar uma possível filosofia de formação, ou pelo menos traçar os primeiros
contornos.O indivíduo coloca-se em processo de formação quando volta-se para si e põe-se em
movimento; sendo a escrita, em nosso entendimento, o processo pelo qual o voltar-se para si
acontece; a escrita torna-se o espelho da alma refletida em enunciados: “sou palavras, estou feito
de palavras, mas as palavras não me dizem” (LARROSA, 2001, p. 25).
 A escrita de si mesmo é, essencialmente, um processo formativo, ou seja, o sujeito se
constitui como sujeito pela escrita que faz de si mesmo. Assim sendo, torna-se forçoso que o
estilo de escrita de um escritor seja também um estilo de vida; uma vida em formação por uma
escrita formativa:
O estilo de um escritor é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo
pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência. É
curioso como os filósofos são entendidos como homens que não têm estilo, ou que
escrevam mal. Deve ser porque não se os lê (DELEUZE, 2010, p. 130).
 Segundo Jorge Larrosa, só lendo ou escutando é que o indivíduo pode se tornar
consciente de si mesmo; e só escrevendo ou falando que alguém pode constituir um “eu”: “ler e
escrever (escutar e falar) é colocar-se em movimento, é sair sempre para além de si mesmo, é
manter sempre aberta a interrogação acerca do que se é” (LARROSA, 2001, p. 40). Na escrita, o
indivíduo põe-se em frente a si; em cada traço, em cada palavra, em cada frase, em cada
enunciado ele constrói-se como homem. Em suma, na filosofia de formação, a escrita pessoal
pode ser definida como a vida sendo vivida.
 
Na leitura e na escrita, o eu não deixa de se fazer, de se desfazer e de se refazer. Ao
final, já não existe um eu substancial a ser descoberto e ao qual ser fiel, mas apenas
um conjunto de palavras para compor e decompor e recompor. No entanto, essa nova
consciência impulsionada no sentido de uma nova aventura que exige também a sua
própria felicidade, o seu próprio heroísmo. Tem de se estar à altura das palavras que
digo e que me dizem (Idem, p. 40).
 É entre as palavras ditas e as palavras não ditas que surge a possibilidade de criação
de si, de novos horizontes, ou seja, é na escrita que o indivíduo encontra a possibilidade de ser
um outro. É preciso ser fiel às palavras, pois, é dessa maneira que se constrói o “eu” do si
mesmo; é o estabelecimento de uma relação do “eu” do si mesmo com o “eu” do outro:
A fidelidade às palavras é a fidelidade a isso que arranca o eu de si mesmo [...] a
fidelidade às palavras é manter a contradição, deixar chegar o imprevisto e o estranho,
o que vem de fora, o que desestabiliza e põe em questão o sentido estabelecido
daquilo que se é. A fidelidade às palavras é não deixar que as palavras se solidifiquem
e nos solidifiquem, é manter aberto o espaço líquido da metamorfose. A fidelidade às
palavras é reaprender continuamente a ler e a escrever (Idem, p. 40).
 A escrita de si é justamente um “espaço líquido de metamorfose”, é esperar o que vem
de fora, é esperar a novidade. É pelas palavras que constituímos o eu daquilo que se cuida, o eu
de si; pois, somente dessa maneira é que podemos escapar “à captura social da subjetividade, a
essa captura que funciona nos obrigando a ler-nos e escrevermo-nos de uma maneira fixa, com
um padrão estável” (Idem, p. 40). É pela escrita de si que escapamos da solidez que nos é
imposta.
 É na busca por si que o indivíduo descobre a sua própria existência. É a constatação
de que “todo destino se inventa sobre a ausência de destino” (Idem, p. 40). Assim sendo, a
filosofia de formação acaba se tornando um não lugar: é “um aí onde não poderá nunca se
estabelecer, um aí onde encontrará para sempre o gosto ácido do devir, da metamorfose” (Idem,
p. 40). É na busca pela invenção do eu, do si mesmo, que se encontram os limites de sua
identidade, mesmo que seja uma identidade narrativa, aberta e desestabilizadora; uma identidade
em devir construída por uma escrita em movimento. Escrita que pelas diversas razões
apresentadas até então, torna-se o cerne da filosofia de formação.
Homem em formação – escrita em formação
 Pela escrita, o “indivíduo” se faz se desfazendo, é o desconhecido tendo um novo começo. Em resumo,
podemos afirmar que o homem constitui-se ao se dizer (escrita de si) para em seguida apagar o que foi dito, e,
assim, manter a página sempre aberta a possíveis retoques, aberta para a novidade. A escrita tem a capacidade de
revelar as formas pelas quais os homens se constituem como homens, pois, ela exerce um papel capaz de
esquadrinhar os caminhos e processos pelos quais o “eu” é produzido:
[...] a própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo
histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do
sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas
quais se constitui sua própria interioridade (LARROSA, 1994, p. 43).
 A escrita de si, aparentemente, não pode ser feita sem significar aquilo que realiza; é uma relação da
mão que traça com as linhas que se prolongam: escrever é traçar os contornos nos processos pelos quais se
produzem o “eu”; pois, a escrita carrega em si mesma uma potência de significação múltipla e anônima, uma
significação da alma.
A filosofia de formação para além do romance de formação
 No romance de formação, o herói precisa passar por vários obstáculos durante seus
anos de aprendizado. É a narração do decurso de seu crescimento e desenvolvimento como
indivíduo, como nos casos tratados nesse estudo: Wilhelm Meister e Hans Castorp. Nossos
heróis são descritos em suas trajetórias existenciais; nas vivências decisivas em suas jornadas de
autoconhecimento. Em suma, o romance de formação pode ser definido como a narração das
angústias e anseios que permeiam o processo de aprendizagem e amadurecimento de um
determinado personagem. São obras que trabalham e mostram a chegada de um jovem no
mundo:
O devir de um jovem que chega ao mundo, procura almas aparentadas, encontra
amizades e amor, entra em conflito com a realidade do mundo, amadurece sob a
diversidade de suas experiências, encontra a si mesmo e toma consciência de sua
tarefa no mundo. O herói é rebelde no começo. O realismo ao seu redor se opõe a seu
idealismo ingênuo; sua alma cheia de arroubos bate a cara na porta do mundo real. Só
o amadurecimento permitirá o entendimento final, a reconciliação e – na melhor das
hipóteses – a convivência harmônica entre o herói e o mundo (BACKES, 2007, p.49).
 
 O romance de formação é caracterizado pela apresentação das consequências de
eventos ligados ao herói. É uma narrativa que registra as transformações psicológicas e
emocionais na personalidade do protagonista. Em resumo, o romance de formação pode ser
definido como uma literatura que narra o desenvolvimento interior de um personagem/indivíduo
decorrente de sua interação com o mundo que o circunda.
 Não obstante, esta literatura é caracterizada decisivamente por uma intenção
pedagógica, pois, possui uma função quase didática que objetiva contribuir para a formação de
seu leitor. Dentre os aspectos narrados nesse gênero literário, podemos destacar a evidente
focalização na infância e adolescência do herói; assim como, os conflitos amorosos, o interesse
pelas artes e o egresso em questões políticas. É uma literatura que se torna convergente à
filosofia, uma vez que, busca oferecer alternativas para problemas concernentes ao seu tempo.
No entanto, é uma narrativa fictícia que usualmente funciona somente nas condições das quais
surgira, ou seja, raramente pode ser atualizada. E é a partir dessa aparente limitação que
pretendemos criar a filosofia de formação.
***
 Por sua vez, a filosofia de formação pode ser descrita como uma escrita de si; um exercício de leitura e
escrita pelo qual o indivíduo conta a si mesmo a sua própria história enquanto constitui-se como“eu”. São modos
de vida em construção; é uma maneira de ser aberta a possibilidade de ser de outra maneira. É uma aventura, do
futuro até a infância e vice-versa:
Recorda-te de teu futuro e caminha até a tua infância. E não pergunte quem é
aquele que sabe a resposta, nem mesmo a essa parte de ti mesmo que sabe a
resposta, porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o que se
agita nessa intensidade. Sê tu mesmo a pergunta (LARROSA, 2001, p. 41).
 
 A escrita formativa é a materialidade do “voltado para si mesmo”. É uma tensão potencializada ao
máximo, uma tensão focalizada sobre o “si” para o qual se volta. A filosofia de formação é uma escrita silenciosa
que se concentra no estar voltado para si mesmo. Em suma, a escrita formativa que serve de base para a filosofia
de formação pode ser definida como a materialidade dos processos formativos pelos quais o indivíduo se constitui
como “eu”:
Quando alguém começa a dizer o que pensa ou o que lhe parece, é como se a
qualidade da experiência se modificasse completamente: como se a promessa do
que essa experiência pudesse ter de sentido ficasse cancelada por essa forma de
consciência já solidificada que somos nós mesmos enquanto indivíduos pessoais
(Idem, p. 48).
 É uma forma de escrita que abre o mundo, “que chama a atenção sobre a paisagem, que estimula o
olhar, que dá corpo e perfis novos à experiência, que faz com que as coisas e as pessoas intensifiquem suas
próprias cores” (Idem, p. 50). É uma escrita que interpreta o sentido do mundo e o faz visível e legível. Assim
sendo, o escritor em formação é alguém que ao escrever de coração aberto, volta-se para si mesmo e encontra
sua maneira própria de ser; “esse voltar-se para si mesmo é o efeito da melhor arte e constitui, talvez, o núcleo e a
grandeza da experiência estética” (Idem, p. 51). Em resumo, a filosofia de formação é um voltar-se para o “eu”
criado e descrito pela escrita de si:
Trata-se de uma relação interior com a matéria de estudo, de uma experiência com
a matéria de estudo, na qual o aprender forma ou transforma o sujeito. Na formação
humanística, como na experiência estética, [...] alguém se volta para si mesmo,
alguém é levado para si mesmo. E isso não é feito por imitação, mas por algo assim
como por ressonância. Porquê se alguém lê ou escuta ou olha com o coração
aberto, aquilo que lê, escuta ou olha ressoa nele; ressoa no silêncio que é ele, e
assim o silêncio penetrado pela forma se faz fecundo. E assim, alguém vai sendo
levado à sua própria forma (Idem, p. 52).
 A filosofia de formação é “a narrativa de como alguém pergunta sobre o que há nele mesmo, sobre o
que ele tem em si como experiência do mundo e, nesse perguntar, descobre-se a si mesmo, converte-se naquilo
que é” (Idem, p. 57-58). E, por tais razões, a escrita de si na filosofia de formação pode ser definida como um
movimento de voltar-se sobre os rastros do passado, um movimento que dispara ressonâncias em direção ao
presente e ao futuro, é um recomeçar.
***
 A filosofia de formação objetiva criar as condições necessárias para a produção de
novos modos de vida. Por tal razão, é que fizemos uma minuciosa análise da cultura de si
presente nos antigos através da obra de Foucault. Assim sendo, acreditamos que seja no
processo da escrita de si que o indivíduo põe-se em frente daquilo que o expressa, ou seja, dos
processos que o constituem. Em suma, é forçoso concluir, que na filosofia de formação, o
“indivíduo” se constitui em seu próprio discurso, na escrita de si. Pois, a filosofia de formação é
também uma espécie de interpretação dos processos de construção e desconstrução efetuados
pela escrita de si.
 Em última instância, o que se manifesta na escrita de si é o direito a memória; direito
ao passado que torna-se critério para transformações e criações; direito ao passado que produz
como efeito a projeção de um direito ao futuro. Na filosofia de formação, a escrita de si é o
suporte pelo qual constrói-se a identidade do “eu” que se cria.
O que move/comove como ponto de partida para a filosofia de formação
 
Entendemos que os processos formativos passam por uma forma de discurso, um discurso que por si só é uma
técnica formativa. Formar é definir, é marcar limites; formar é uma descrição dos afetos que movem o espírito, pois,
entendemos que a formação pessoal é um exercício da alma, um exercício que deve ser descrito, uma descrição
“de tudo que se apresenta ao espírito.” (FOUCAULT, 2006, p. 355). Na filosofia de formação, a escrita é uma forma
de ver e pensar – no sentido de criar – a existência, é uma forma de aprendizado, uma técnica de formação
pessoal. A escrita é um modo pelo qual o homem compreende e constitui sua existência, sua subjetividade.
Um “indivíduo” em formação por uma escrita formativa, essa é a base daquilo que nomeamos de filosofia de
formação. Uma vez que, entendemos que na filosofia de formação o que é narrado é apagado pelo que é lido,
deixando apenas uma mancha de sentido, uma tentativa de determinar todo um orbe por meio de qualidades
próprias; é um negar-se ao afirmar-se; é um atuar por meio de cortes e desvios, de reescritas, de atualizações, de
incompletudes. A filosofia de formação é envolta por um tipo de escrita em que a narração não deve ser
compreendida como uma simples rasura ou um simples esboço de memórias, mas como resultado da fabricação
de si tecida através das memórias e dos efeitos que dele advém.
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e A Montanha Mágica são o ponto de partida desse projeto. Mas, ao
contrário do romance de formação, que narra a representação do drama de um homem em formação de uma
perspectiva histórica, a filosofia de formação busca ir para além desse ponto, em uma significação escrita que
começa com a leitura e culmina em uma escrita formativa. Em suma, podemos entender a filosofia de formação
como uma espécie de escrita móvel, uma escrita que está sempre se rompendo aqui e ali, uma escrita que se
reescreve constantemente.
CONCLUSÃO
 A nossa proposta para uma filosofia de formação pode ser compreendida como uma
abertura para pensarmos quais são os nossos modos de nos constituirmos como si; na qual, a
escrita ocupa um papel central, uma vez que, entendemos, que é pela escrita de si que o homem
cria o si do qual se cuida; ou ainda, é pela escrita de si que nos pomos em frente ao objeto do
qual cuidamos, ou seja, nós mesmos.
 Em nosso entendimento, a necessidade de uma filosofia de formação está contida na
compreensão da existência, uma compreensão subjetiva e não essencial, reflexiva e profunda,
uma compreensão de técnicas de si, de processos de subjetivação. O que propomos como
filosofia de formação está centrado a partir das técnicas do cuidado de si; técnicas, que por sua
vez, são norteadas pela escrita e para a escrita. Na filosofia de formação a criação de si é
pensada em um contexto aberto, inacabado e em movimento.
 Muito dessa abertura inerente à ideia de uma filosofia de formação advém da influência
exercida pelo projeto intitulado Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, projeto
vinculado ao Observatório da Educação (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS).
O Escrileituras é um projeto que objetiva criar as condições necessárias para que, através do
exercício da escrita e da leitura, possamos criar nossos modos de vida. E é justamente, nessa
junção entre escrita e leitura que entendemos que a filosofia de formação pode estabelecer seus
alicerces. Pois, assim como Deleuze, entendemos que a escrita pode ser pensada como uma
questão de devir, sempre inacabada.
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[1] [file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftnref1] Essa ideia de anacorese, ação expressa em grego,
empregada pelo verbo anakhoreîn, designa o ato de se afastar, se refugiar, se retirar para o deserto. Perspectiva
advinda das práticas cristãs dos eremitas dos primeiros séculos e documentada por Atanásio no século IV. Com a
apologia da fuga, o retirante (anacoreta) “adquire sua constituição como alguém que é injustamente perseguido por seus
inimigos, heréticos ou idólatras, e que justificadamente se retira.” (JÚNIOR, 2008, p. 103). Segundo Michel Foucault, a
anacorese se dá, entre outras coisas, pelo fato de que a presença alheia provoca um constrangimento no indivíduo, que,
por sua vez expressará seus sentimentos e angústias por intermédio da escrita (hypomnemata), se desenvolve num
momento de recolhimento interior, seguido pelo contato com o outro. Esse último aspecto é de extrema importância nos
escritos de Foucault, pois o cuidado de si não é visto como uma atividade solitária. Frédéric Gros, ao abordar a
importância do outro na obra de Michel Foucault, diz que essa interação é uma forma de intensificar a relação social:
“Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular de outro modo esta relação com os outros pelo
cuidado de si” (GROS, 2006, p. 132).
[2] [file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftnref2] “Os hypomnemata não deveriam ser encarados como um
simples auxiliar de memória, que poderiam consultar-se de vez em quando, se a ocasião se oferecesse. Não são
destinados a substituir-se à recordação porventura desvanecida. Antes constituem um material e um enquadramento
para exercícios a efetuar frequentemente: ler, reler, meditar, entreter-se a sós ou com outros, etc. E isto com o objetivo
de os ter, segundo uma expressão que reaparece com frequência, procheiron, ad manum, in promptu. “À mão”, portanto,
não apenas no sentido de poderem ser trazidos à consciência, mas no sentido de que se deve poder utilizá-los, logo que
necessário, na ação. Trata-se de constituir para si próprio um logos boethikos, um equipamento de discursos a que se
pode recorrer, susceptíveis – como diz Plutarco – de erguerem eles próprios a voz e de fazerem calar as paixões, como
o dono que, com uma só palavra, sossega o alarido dos cães” (FOUCAULT, 1992, p. 136).
Postado há 5th November 2012 por Escrileituras CEJE
 
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file:///D:/Monografia%20-%20Leandro%20(2).doc#_ftnref2
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