Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2013 Literatura infantojuveniL Prof. Abraão Junior Cabral e Santos Prof.ªJackeline Maria Beber Possamai Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Copyright © UNIASSELVI 2013 Elaboração: Prof. Abraão Junior Cabral e Santos Prof.ªJackeline Maria Beber Possamai Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 028.5 S237l Santos, Abraão Junior Cabral e Literatura infantojuvenil / Abraão Junior Cabral e Santos; Jackeline Maria Beber Possamai; Joseni Terezinha Frainer Pasqualini. Indaial : Uniasselvi, 2013. 175 p. : il ISBN 978-85-7830-710-3 1. Literatura infantojuvenil. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. Impresso por: III apresentação Caro(a) acadêmico(a)! Neste Caderno de Estudos, esperamos mediar o encontro da literatura com questões que possam auxiliar sua prática pedagógica, bem como fixar, aprofundar, estabelecer relações e dar continuidade aos estudos iniciados com a disciplina de Teoria Literária e, principalmente, que, ao término dessa disciplina, você possa perceber a importância da literatura na sala de aula e na vida do indivíduo. A literatura é conhecimento produzido historicamente, objeto de interrogação, dúvida e pesquisa. Civiliza, educa e “humaniza”, na medida em que sugere melhores formas de vida e se constitui como exercício de liberdade, inquietação, crescimento e perplexidade. Neste Caderno de Estudos chamamos a atenção para o fato de que, muitas vezes, a literatura é metodicamente submetida a rotinas padronizadas, perdendo seu sentido mais profundo. Torna-se mera soma de palavras e frases, concebida como um sentido preestabelecido, ou seja, os alunos leem somente para transcrever recursos estilísticos, para estudar análise sintática, procurar palavras no dicionário, estudar normas gramaticais e aprender modelos de conduta moral. Esta última, muito enfatizada na escola, sobretudo na literatura infantil, apresenta textos somente com o intuito de que as crianças assimilem padrões de conduta adequada à ordem social. Essas práticas podem ser fator decisivo e determinante para o distanciamento da literatura. A literatura infantojuvenil é um aparato facilitador para despertar o prazer da leitura e deveria ocupar lugar de destaque no cotidiano escolar e familiar. O desafio é incentivar a dimensão prazerosa, lúdica e estética da literatura e, ainda, por meio dela, proporcionar que o leitor se depare com sentidos e identificações do lido, explorando-os, aprendendo sobre os medos, angústias, lutas, coragem, amor e o mundo que o cerca. Para tanto, é imperativo que o professor avalie e reflita entendendo sua intenção primeira: suscitar e despertar o gosto pela leitura. A necessidade da literatura em sala de aula é algo incontestável. Em especial, neste espaço privilegiado pela possibilidade de apresentação e interação do texto literário, pois contribui para a ampliação de conhecimentos, permite a interpretação do mundo como um texto universal e a percepção de sua complexidade. Ainda nessa perspectiva, expande e reforça a ideia de que cada indivíduo é sujeito e agente de sua própria história. Na sala de aula deve existir muita leitura, de vários gêneros literários, a fim de que o aluno possa melhor refletir, compreender, problematizar IV e questionar os textos lidos, fazendo uso de sua criticidade e, também, da habilidade em lidar com as regras estabelecidas para a leitura. Ler significa aprender a produzir sentidos inseridos em um tempo e em um espaço, tornando o exercício de leitura ativo. Não temos a pretensão, caro(a) acadêmico(a), de esgotar as reflexões sobre a literatura infantojuvenil, mas esperamos colaborar para apontar questões teóricas e práticas, o que, sem dúvida alguma, contribuirá para sua postura frente à literatura em sala de aula. Bons estudos e sucesso em sua vida acadêmica! Prof. Abraão Junior Cabral e Santos Prof.a Jackeline Maria Beber Possamai Prof.a Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! UNI V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA .......................................................... 1 TÓPICO 1 – O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? ...................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA .................................................................. 4 3 O PENSAMENTO FELIZ: ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO ..................................................... 9 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 16 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 17 TÓPICO 2 – A LITERATURA ENTRA NO JOGO ............................................................................ 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19 2 A ARTE E A PALAVRA ........................................................................................................................ 19 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA ................................................................. 24 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 31 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................32 TÓPICO 3 – CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA ............................................ 33 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 33 2 O LITERÁRIO: ASPECTOS QUE O DEFINEM ............................................................................. 33 3 O TEXTO LITERÁRIO E O TEXTO NÃO LITERÁRIO ................................................................ 37 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 41 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 42 UNIDADE 2 - A LITERATURA INFANTIL: FONTE DE EMOÇÕES ........................................... 43 TÓPICO 1 – ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL ................................................................. 45 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 45 2 OS TEXTOS DESTINADOS AO JOVEM LEITOR ........................................................................ 46 3 A LITERATURA INFANTIL – UM POUCO DE HISTÓRIA ....................................................... 47 3.1 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA ..................................................... 51 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 57 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 58 TÓPICO 2 – GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I ..................................................... 61 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 61 2 AS NARRATIVAS E O ESTILO ......................................................................................................... 61 3 NARRATIVAS: O CONTO ................................................................................................................ 64 3.1 OS CONTOS DE FADA .................................................................................................................. 65 4 O PODER DOS CONTOS NA CONTEMPORANEIDADE ....................................................... 68 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 72 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 74 sumário VIII TÓPICO 3 – GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II .................................................... 77 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 77 2 A COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS ............................................................................ 77 2.1 A AÇÃO ............................................................................................................................................ 79 2.2 AS FALAS NA NARRATIVA ......................................................................................................... 80 2.3 O ESPAÇO ......................................................................................................................................... 84 2.4 O TEMPO .......................................................................................................................................... 85 3 A PERSONAGEM E SEUS ASPECTOS ........................................................................................... 85 3.1 A FÁBULA ....................................................................................................................................... 89 3.2 A LENDA ......................................................................................................................................... 90 3.3 A PARÁBOLA .................................................................................................................................. 92 3.4 A PARLENDA ................................................................................................................................. 92 3.5 O ROMANCE ................................................................................................................................... 94 4 LEITURA E A DIMENSÃO COGNITIVA ....................................................................................... 95 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 98 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 102 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 104 UNIDADE 3 - O PAPEL DA ESCOLA ............................................................................................... 105 TÓPICO 1 – O DIVERTIDO PRAZER DE LER ................................................................................. 107 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 107 2 A SALA DE AULA: QUE TEXTOS ESCOLHER? ........................................................................... 107 3 INVERTENDO A TRADIÇÃO ......................................................................................................... 112 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 114 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 115 TÓPICO 2 – A RELAÇÃO: LIVRO E A CRIANÇA ........................................................................... 117 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 117 2 A RECEPÇÃO DO LIVRO INFANTIL ............................................................................................. 117 3 A IMAGEM: LUGAR ESPECIAL ....................................................................................................... 122 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 131 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 132 TÓPICO 3 – EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS ................................................................ 133 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 133 2 LEITURA DO MUNDO: A LITERATURA .................................................................................... 134 3 A DESCOBERTA DA POESIA .......................................................................................................... 144 3.1 O TEATRO ........................................................................................................................................ 149 4 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ............................................................................................... 156 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 159 RESUMO DO TÓPICO 3 .......................................................................................................................162 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 163 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 165 1 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • refletir sobre a assimetria entre o adulto e a criança; • identificar possíveis conceitos atribuídos à literatura; • diferenciar um texto literário de um texto não literário; • refletir sobre as funções da literatura; Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados. TÓPICO 1 – O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? TÓPICO 2 – A LITERATURA ENTRA NO JOGO TÓPICO 3 – CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 1 INTRODUÇÃO Prezado(a) acadêmico(a), nesse tópico você entrará em contato com algumas teorias e discussões, em torno das quais importantes relações se estabelecem entre arte e infância. Para tanto, não só o presente texto, quanto os demais tópicos desta unidade, estão construídos de modo a possibilitar-lhe não apenas tecer considerações acerca da temática em questão, como também em ajudá-lo(a) a colher implicações que, em alguma medida, possam auxiliá-lo(a) a melhor observar, refletir e posteriormente opinar sobre a realidade da literatura infantojuvenil no contexto atual das instituições de ensino. Assim, observaremos primeiro o quanto a construção da nossa civilização “escolarizada” se deveu ao aprisionamento de nossa gestualidade espontânea, que em sua origem marcava não um divórcio, mas uma identidade entre o lúdico e os afazeres cotidianos, que acabaria sendo amordaçada pelo pensamento racional, o qual, ao fazer prevalecer os pontos de vista do adulto, acabaria por normatizar diversas instituições sociais, como a escola e a literatura destinada à criança. Em seguida, verificaremos o lugar do pensamento lúdico na atualidade, seja a partir da relação assimétrica que socialmente se constrói entre a magia infantil e a lógica do indivíduo adulto, seja segundo a aparente evolução da consciência mítica em direção à racionalidade pragmática, que, nesse percurso, desfaz-se do caráter mágico inerente ao lúdico. Ora, há de se constatar que essa aparente “evolução” da racionalidade rumo a formas de expressão mais refinadas não deveria descartar o poder “mágico” presente nas manifestações literárias, já que elas surgem como formas artísticas calcadas no pensamento mítico e em atividades lúdicas praticadas desde o aparecimento de nossa espécie e até hoje consolidadas como formas significativas de revelação do real. UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 4 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA Quando guri, eu tinha de me calar à mesa; só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem (QUINTANA, 1979, p. 28) Você se lembra de como, no tempo em que você era pequenininho, seus pais ou parentes mais próximos reagiam às brincadeiras ou às “traquinagens” das crianças de sua geração? Lembra, ademais, que tipo de expressões ou formas de linguagem eles utilizavam em tais momentos, quer fosse para elogiar essas mesmas ações, quer fosse para censurá-las ou, no pior dos casos, para reprimi-las? Nessas situações, você também deve lembrar que, de modo semelhante à maneira como os adultos de antigamente nos tratavam, nós – não porque verdadeiramente o sejamos, mas tão somente porque agora ocupamos o lugar destinado a quem deve ser “o mais sábio” ou “o mais forte” –, diante da criança em geral, sentenciamos: “escute a voz da razão”, “você precisa aprender a crescer”, “tenha juízo”, “siga quem tem mais experiência do que você” etc.; expressões que demarcam claramente o lugar de quem manda e, em contrapartida, o lugar destinado a quem deve obedecer. Caro acadêmico(a), para aprofundarmos essa reflexão sobre as relações entre maturidade e infância, seria interessante você parar por alguns instantes e fazer um pequeno exercício de memória. Primeiro, tente identificar quais expressões eram utilizadas pelos adultos no tempo em que você era criança e que ainda lhe soam familiares; em seguida, observe as expressões que você emprega hoje em dia ao tratar com as crianças da atual geração. Caso tenha conseguido identificá-las, anote algumas dessas expressões no diagrama a seguir e, em sala de aula, troque suas experiências com as dos colegas: Ora, uma das possíveis consequências de tal exercício é que, a partir da experiência pessoal, podemos constatar que essas expressões não só revelam, mas simultaneamente contrapõem dois modos distintos de se perceber e experimentar a existência, a saber: um primeiro modo, geralmente considerado irracional, por vezes pueril e inerente a quase todo indivíduo que se encontre na fase “transitória” TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 5 da infância; e, em um segundo modo, considerado harmônico, equilibrado e característico não apenas do indivíduo adulto, mas através dele se estabelecendo como parâmetro ou modelo para pautar a existência e as atitudes de qualquer ser humano, independente da faixa etária em que ele se encontre. Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o vocábulo “Assimetria” refere-se a um substantivo feminino, enquanto a palavra “Assimétrico” refere-se a um adjetivo, ambos os termos designando: ausência de simetria; que não tem simetria; dessimetria; dissimétrico. UNI É o que também sustenta Bettelheim (2007, p. 9), quando, “ao valer-se de um viés do discurso psicanalítico, busca compreender quais práticas culturais ou ações educativas seriam mais adequadas a operar a passagem da fase infantil para a fase adulta”. Assim, ao defender a utilização do repertório dos contos de fadas tradicionais como modelo predominante na educação familiar, acaba depondo em favor da hierarquia assimétrica que tem predominado nas relações entre maturidade e infância: Somente na idade adulta uma compreensão inteligente do significado de nossa existência neste mundo pode ser obtida de nossa experiência nele. Infelizmente, muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas – como se uma compreensão madura de nós mesmos e do mundo e nossas ideias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes. Hoje, como no passado, a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida. (BETTELHEIM, 2007, p. 10, grifo nosso). Dessa forma, ainda que o autor reconheça o “encontrar significado para a vida” como um dos eixos da condição existencial de qualquer indivíduo, não importa em que faixa etária este se encontre, Bettelheim não deixa de corroborar com a existência de dois pontos de vista assimétricos, dos quais acaba por optar, ainda que implicitamente, pela perspectiva do adulto, cujo equilíbrio e maturidade deve progressivamente orientar o olhar “equivocado e fantasioso” da criança: A criança, à medida que se desenvolve, deve aprender passo a passo a se entender melhor; com isso, torna-se mais capaz de entender os outros e, eventualmente, pode se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e significativa. (...) Com respeito a essa tarefa, nada é mais importante que o impacto dos pais e das outras pessoas que cuidam da criança; em segundo lugar vem a nossa herança cultural, quando transmitida à criança de maneira correta. (BETTELHEIM, 2007, p. 10, grifo nosso). UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 6 Mais adiante, constatará Magalhães (1984 apud ZILBERMAN, 1984), essa transmissão idealizada de normas, propalada tanto pelas instituições tradicionais quanto pelos comportamentose atitudes “maduras” dos adultos, visaria transformar a criança em um “adulto pacificado”, ou, melhor dizendo, em um indivíduo capaz não apenas de conter, por meio de ponderações racionais, suas inquietações, como também de responder a eventos imprevistos de uma maneira educada e lógica: E aqui se situa a contradição da preocupação educativa na transmissão de normas: o objeto das tarefas pedagógicas é um sujeito ideal, membro de uma sociedade que se espera construir um dia, graças à transmissão de padrões vigentes que não conseguiram concretizar a ordem social almejada. À caça do sonho, todos os conceitos pedagógicos estão voltados para a criança no sentido de dizer no que ela deve se tornar. O objetivo da pedagogia só será atingido se ela conseguir realizar um sujeito senhor de sua própria linguagem e de seus atos, dirigido pela razão e pela lógica, sujeito do consciente e destituído de conflito. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 43). A partir das observações anotadas até aqui, você consegue imaginar o quanto esse modo assimétrico de relação, que se estabelece entre a criança e o adulto, pode ir muito além da relação familiar, adentrando quase todas as esferas de convívio social? Percebe também que, como uma regra geral, quase sempre se dá a primazia do segundo modo de existência sobre o primeiro, fazendo predominar os valores e os pontos de vista dos adultos? IMPORTANT E Portanto, não havia nada de acidental no fato de Platão (1999) conceber em sua “República” ideal – que ademais serviria de modelo para se pensar, dentro dos padrões da civilização ocidental – a arte, pois o processo adequado de aquisição e transmissão do conhecimento deveria se pautar prioritariamente pelo pensamento racional, o que implicava reconhecer que os sentimentos, as emoções, as experiências lúdicas e as formas míticas de compreensão do mundo – que são inerentes tanto ao saber artístico quanto à infância – se firmariam sobre as aparências das coisas e, consequentemente, só poderiam fornecer um saber equivocado da realidade. Ora, sabemos que, desde a Grécia antiga, o único espaço em que se conseguiu fazer convergir essas duas ordens aparentemente antagônicas – a saber: o pensamento lúcido e racional do adulto, e o pensamento lúdico e espontâneo da criança – foi, não propriamente a escola, mas sim a obra de arte. Esta, onde quer que seja pensada (como mais adiante veremos no caso da literatura infantojuvenil), vincula-se a formas de compreensão da realidade que não se pretendem absolutamente “verdadeiras” ou universais, tal como o fazem os saberes científicos e a especulação filosófica, mas, ao contrário, por admitir sua própria parcialidade, acaba comportando pontos de vista particulares, subjetivos, guardando assim um estreito parentesco com as formas como as crianças, movidas pela admiração e pela fantasia, lidam, nomeiam e inventam a sua realidade presente. TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 7 Para Platão, haveria dois mundos intercomunicáveis através da mímesis (cópia ou representação): o mundo das ideias, perfeito, habitado pelos deuses e onde residiria a verdade, e, em contrapartida, o mundo sensível, material, precário e imperfeito da existência humana. A tarefa do filósofo consistia em desvendar o mundo sensível, aparente e falso, em proveito da inteligibilidade do mundo das ideias. Assim, no capítulo X do livro A República, o filósofo, através da metáfora da cama e do pintor, desqualifica o artista e a obra de arte: primeiro haveria a cama idealizada, possível no mundo das ideias, e portanto perfeita; depois, a cama feita pelo marceneiro, que seria uma cópia precária da cama ideal do mundo das ideias; por último, teríamos a cama do pintor, que imita a cama do marceneiro, que, por sua vez, já havia imitado a cama do mundo das ideias, portanto uma cópia de uma outra cópia. Dessa forma, a cama pintada pelo artista seria a imitação mais falsa de todas e, por esse motivo, através da hierarquia mimética, o artista e seu falso saber não deveriam participar da República. UNI Você deve concordar que, ainda nos dias atuais, é a escola, e não a obra de arte, o principal espaço encarregado de transmitir e redimensionar a herança cultural entre gerações. Se assim o for, também poderemos concordar que a sua evolução na história se daria conforme a escola, na contramão do pensamento platônico, não mais recusasse o saber apreendido pelas sensações, pelas emoções e pela imaginação, e passasse a adquirir características de uma obra de arte, desfazendo-se, portanto, dos modelos ideológicos vigentes que mantinham a compreensão equivocada de que a infância fosse apenas uma fase aberta a toda sorte de fantasia, crença no maravilhoso e em distorções da realidade palpável. Antes de prosseguirmos nessa linha de raciocínio, que tal fazermos uma pequena reflexão? Pense: após tanto tempo inseridos nesse paradigma cultural advindo do platonismo, que inicialmente se baseava na abstração da existência corporal e no pensamento racional, e que foi posteriormente acrescido de valores econômicos e burgueses, como o pragmatismo e a utilidade – e que enfim afetariam os modos de se pensar a educação e as concepções formais e informais de ensino por vários séculos, você acredita que esse modelo já estaria superado? Façamos, então, um breve exercício: vamos ler um dos excertos literários de Mário Quintana, O velho e o acaso, que versa sobre a temática em questão para, em seguida, opinar: O velho mendigo que neste momento acaba de encontrar num monte de sucata a lâmpada de Aladino – tão amassada, tão enferrujada e de feitio tão esquisito –, eis que ele a abandona e leva, em vez dela, uma útil chaleira. Uma chaleira sem tampa, digo eu, para os que gostam de pormenores. E não é esta a primeira vez que o acaso, inocentemente, assim estraga uma bela história (QUINTANA, 1979, p. 5). UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 8 AGORA PENSE E RESPONDA: Para você, o mendigo em questão teria agido coerentemente? Dito de outro modo: em seu lugar você também teria optado pela chaleira ao invés da lamparina? Por quê? ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________. Vivemos de tal maneira enraizados no universo lógico do adulto que em nada nos estranharia – se pensarmos a partir da parábola literária de Quintana – se algum de nós, mesmo que se tratasse de um mendigo, decidisse recolher a velha chaleira sem tampa – posto nela ainda haver alguma serventia –, mas jamais uma “inútil lamparina” largada em um amontoado de lixo; e se esta fosse a opção frequentemente tomada, então ela nos levaria a reconhecer que tal atitude referendaria o socialmente aceito, quer dizer: a maneira como vivemos, o que já está consagrado pelo senso comum. Assim, em um gesto aparentemente banal como esse, de modo consciente ou não, mostramo-nos sempre aptos a referendar atitudes orientadas pelo paradigma racional da utilidade e, em contrapartida – caso alguma escolha repousasse sobre a velha lamparina –, essa outra atitude, já que imprevisível, seria provavelmente considerada infantil, delírio de um sonhador, ou até mesmo taxada como sintoma de desequilíbrio emocional. De certa forma, tal constatação levar-nos-ia a reconhecer que somente na infância – e, nesse sentido, deve-se estender o conceito de infância para além de uma mera etapa cronológica, ou seja, para toda criança que permanece viva em nós –, por ainda nos sentirmos capazes de magia, seríamos capazes de recolher, em sua face dupla, a lâmpada encantadade Aladim. FIGURA 1 - RETRATO III, JOAN MIRÓ FONTE: Disponível em: <http:\\www.bibliofiliaentreparentesis. blogspot.com>. Acesso em: 10 ago. 2012. TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 9 Dito de outro modo – e eis um lance de dados da esperança –, há uma infância que se mantém viva, independente da faixa etária em que nos encontremos, como bem se exemplifica no trabalho singular do artista, tal como se vê na parábola literária de Mário Quintana, ou na feliz conjunção de infância e maturidade, visualmente presente na tela de Joan Miró, mais acima. 3 O PENSAMENTO FELIZ: ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO Li há tempos que num desses exóticos países do Oriente (...) [que] um engenheiro inglês queria convencer o respectivo xá, ou qualquer título que tivesse, que, em nome do progresso, era urgente a construção de uma estrada de ferro. E findou assim seu arrazoado: – A estrada de ferro fará com que, em vez de trinta dias a lombo de camelo, a viagem da capital à fronteira seja apenas de um dia. – Mas - objetou o soberano - o que é que vamos fazer dos vinte e nove dias que sobram? (QUINTANA, 1979, p. 1). Uma vez que pudemos constatar a presença marcante de uma relação assimétrica entre a infância e a maturidade, inicialmente gestada no convívio familiar, para depois desdobrar-se em outras esferas sociais, resta-nos refinar tanto um referencial teórico quanto estratégias pedagógicas que ajudassem a minimizar, mais especificamente a partir de um ponto de vista literário, os efeitos dessa tradição cultural assentada sobre a diferença hierárquica do adulto sobre a criança que, sem nos darmos conta, atravessa nossos gestos mais banais e cotidianos. Em geral, observa-se que o conhecimento mítico da realidade – particularmente característico do imaginário infantil e assaz presente no trabalho dos artistas –, por não manter o pensamento congelado em ideias explicativas, passa a ser encarado não como uma fonte possível de verdade, que tivesse uma “lógica” própria, mas, ao contrário, passa a ser visto como etapa transitória em direção a formas mais elevadas de reflexão, que no mundo ocidental, desde o ideal da “república platônica”, deveriam levar aos ditames da consciência racional: Platão – que talvez tenha compreendido aquilo que forma a mente humana melhor do que alguns de nossos contemporâneos que querem suas crianças expostas apenas a pessoas “reais” e a acontecimentos do dia a dia – sabia o quanto as experiências intelectuais contribuem para a verdadeira humanidade. Ele sugeriu que os futuros cidadãos de sua república ideal começassem a educação literária com a narração de mitos, em lugar de meros fatos ou dos assim chamados ensinamentos racionais. (BETTELHEIM, 2007, p. 51). Ora, se o próprio Platão chegaria a admitir a “narração de mitos” – tão necessária à criança e tão característica do fazer literário – como um modo, ainda que provisório, de compreensão da realidade, é porque ele também estava reconhecendo que a abordagem mítica da existência – que acessa o real por meio UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 10 do lúdico e da fantasia, mantendo-se aberto a um jogo de significações incessantes – conteria um modo de consciência não apenas provisório, mas também imprescindível à elaboração do próprio real. É assim que, antes de desenvolvermos a capacidade intelectual de expressar conhecimento por meio da ordem, do cálculo e do que pode ser demonstrado com clareza – que prioritariamente caracterizam a razão científica e a especulação filosófica –, a primeira forma de racionalidade que nos aparece está ainda fortemente impregnada por uma compreensão mágica e sobrenatural dos fenômenos, a qual, por não poder ser logicamente comprovada, expressaria, para uma cultura extremamente racional como a nossa, apenas visões comunitárias primitivas, ou formas arcaizantes de compreensão da realidade. Você consegue se lembrar de alguns relatos não científicos que os adultos costumam dar às crianças para explicar determinados fenômenos da natureza? Por exemplo, que na tradição cristã as chuvas e os trovões seriam causados por uma faxina que São Pedro estaria fazendo no céu? A chuva corresponderia ao momento em que ele joga a água no chão do céu, e o trovão derivaria de algum tropeço, como quando o santo arrastasse ou derrubasse alguma cadeira? Lembra- se de histórias similares a esta, que apresentam uma forma mítica de compreensão da realidade? Anote-as no diagrama a seguir: Ora, mas é justamente nessa forma “infantil” de racionalidade, ou seja, a consciência mítica que se expressa muito mais do que uma incoerência ou falta metodológica, pois é dela que pode advir um saber, portanto, inacessível à racionalidade lógica: seja através de narrativas ficcionais que revelam mundos paralelos, seja por intermédio de ritos que apreendem manifestações provisórias da existência dos seres – a sutil passagem entre o humano e o não humano. Esses saberes, de certo modo inapreensíveis à consciência racional, estão presentes na arte e no pensamento infantil através da consciência mítica que, de modo exemplar, frequenta as histórias ficcionais e a invenção do maravilhoso, aí se revelando não só como formas de compensação às verdades dolorosas atestadas pela racionalidade – compensação que Aristóteles, no livro Poética, nomearia como a “catarse” promovida pela obra de arte, que nos faz experimentar, por instantes, “fingindo ser verdade”, o que de fato um dia será, tal como a consciência paralisante de nossa morte –, mas sobretudo perpetuando um poder mágico que razão nenhuma até agora conseguiu desmontar. TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 11 Caro(a) acadêmico(a), você já estudou sobre a “catarse” aristotélica no caderno de Teoria da Literatura. Entretanto, vale a pena observar as acepções deste termo retiradas do Dicionário Houaiss: substantivo feminino 1 na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe. 2 Rubrica: estética, teatro. purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões, esp. dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico. 3 Rubrica: medicina. evacuação dos intestinos. 4 Rubrica: psicanálise. operação de trazer à consciência estados afetivos e lembranças recalcadas no inconsciente, liberando o paciente de sintomas e neuroses associadas a este bloqueio. 5 Rubrica: psicologia. liberação de emoções ou tensões reprimidas, comparável a uma ab-reação. 6 Rubrica: psicologia. efeito liberador produzido pela encenação de certas ações, esp. as que fazem apelo ao medo e à raiva. FONTE: HOUASSIS; VILLAR, 2009, p. 422) UNI Ademais, se essa forma de racionalidade “primitiva”, que nunca desaparece completamente, se desenvolve em direção a formas mais elaboradas da consciência, portanto mais afastadas de nossa gestualidade espontânea, da compreensão da realidade através dos jogos, da experimentação infantil, do lúdico enfim, é porque ela se faz como ponte entre o que em nós é ainda “natureza” e nossa outra forma de natureza, mais sofisticada, cultural. FIGURA 2 - A DANÇA, HENRI MATISSE FONTE: Disponível em: <http:\\henrimatisse.ladanse.firstversion.jpg>. Acesso em: 20 ago. 2012. UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 12 De modo geral, o mundo adulto confere ao lúdico apenas uma importância parcial, secundária e temporalmente localizada em determinada etapa do desenvolvimento infantil. Assim, embora ela seja admitida como atividade necessária ao crescimento saudável da criança, a atividade lúdica acaba por ser reduzida ao formato útil de brincadeiras e jogos destinados a promover a necessária – esta sim uma função importante – internalização de regras, padrões e comportamentos sociais: Dessa forma, [se] estabelece uma relação do jogo com os demais fenômenos da vida, ao mesmo tempo em que o marginaliza pornão se inserir no conjunto de atividades práticas. Eis por que o jogo é aceito como atividade infantil e, como tal, é estimulado, contanto que não haja necessidade de a criança participar da manutenção da família. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 26). Visto dessa maneira, o jogo, que, de um modo quase unânime é compreendido como a forma mais expressiva do ludismo infantil, acaba por demonstrar a visão excludente que, de modo exemplar, a sociedade adulta – sempre voltada para o que é útil e pragmático, desde a ascensão burguesa do capitalismo – mantém com a infância: Com frequência [o jogo] é reconhecido como tendo uma função importante na vida infantil, mas se espera que, ao longo do processo de desenvolvimento, a criança se afaste do jogo e o substitua por atividades úteis, só retornando ao comportamento lúdico de forma ocasional, como uma pausa recreativa. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 26). O termo lúdico advém do latim, mais especificamente da palavra ludus, que inicialmente significava jogo e que se associava, dessa forma, a movimento espontâneo, à brincadeira ou ao ato simples de jogar. Entretanto, com a evolução da sociedade burguesa, a expressão paulatinamente ampliaria sua conotação semântica, de certo modo expandindo seu sentido inicial, vinculado à espontaneidade, em proveito do sentido de necessidade, isto é, como lazer compensatório em relação às atividades laborais diárias. UNI Há de se concluir que o jogo, tanto em sua modalidade corporal, mais característica de brincadeiras marcadas ora por uma gestualidade rítmica incessante (corridas, competições, jogos de esconder etc.), ora por enleios ou formas mais serenas de diversão (brincadeiras de casinha, jogos com bonecas, passar o anel etc.), quanto em sua modalidade linguística (como nos conhecidos jogos com palavras, trava-língua etc.), o jogo, ou o lúdico enfim – afora cumprirem a tarefa ordeira de facilitar a internalização de regras sociais pela criança – acabam geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos: TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 13 Há, porém, uma característica que, apesar da ausência de uniformidade, distingue qualquer tipo de jogo, enquadrando-o num determinado comportamento: o jogo se coloca como uma atividade marginal perante atividades como comer e trabalhar, porque não é gerado por uma necessidade biológica, nem por um interesse pragmático. Não é uma obrigação, nasce da ociosidade e, com esse caráter, se opõe ao que se chama de atividades sérias. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 26). Assim, muito mais do que atestar o lugar do jogo e do brinquedo de criança como espécies de “gestualidades pueris”, destinadas exclusivamente a preencher uma ociosidade gratuita e vazia, esse modo “adulto” de compreender o lúdico como ímpeto sem direcionamento objetivo ou qualquer uso prático, demarca, entretanto, o lugar que o lúdico reserva ao próprio adulto, isto é, como o lugar do lazer, do descanso, ou como repositor das energias consumidas em atividades úteis como o trabalho e outros compromissos sociais: “O adulto confere ao jogo um valor muito limitado. Reconhece sua eficácia na restauração das energias gastas no trabalho e acredita no seu valor terapêutico, quando a tensão do empenho produtivo se tornou excessiva” (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 25). Você, acadêmico(a), consegue lembrar dos jogos e brincadeiras praticados na infância ou que outras crianças praticavam? _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________. Você recorda também de que modo esses jogos eram vistos, isto é, que valor lhes eram atribuídos pelas próprias crianças e pelos adultos daquela época? _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________. A partir do ponto de vista do jogo, encontramos um saber comum tanto à infância quanto à verdadeira especulação filosófica. Enfim, muito mais do que compreender o lúdico como lugar de passagem entre a consciência mítica e a consciência racional, trata-se de apontar seu poder de restituição de uma atmosfera mágica – capacidade de admiração, de espanto diante da realidade – que se faz presente no simples ato de viver, no ato de admirar-se com as coisas que está na raiz de toda sorte de filosofia; isto é, na compreensão dos dados existenciais. Ademais, é de importância capital assinalar a permanência do lúdico tanto na concepção quanto na fruição da obra de arte, posto que ela – regra geral – tende a quebrar a “seriedade” da compreensão lógica, abrindo, ao menos por virtude de semelhança com o real, possibilidades de se chegar a outras formas de verdade, a saber: não planejadas, surpreendentes, por vezes mágicas. Vamos ler o texto Magia e Felicidade. Sublinhe o que você considerou mais importante. Pense na relação jogo, ludicidade, criança e felicidade. UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 14 LEITURA COMPLEMENTAR MAGIA E FELICIDADE Giorgio Agamben Benjamin disse, certa vez, que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de magia”. A afirmação, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo. Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: “Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem alguma magia, certamente não me tocará. Para isso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural”. As crianças, como os personagens das fábulas, sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa, guardar em casa o burrinho-faz-dinheiro [asino cacabaiocchi] ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as ocasiões, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso. Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te-sésamo”, então, e só então, pode realmente considerar-se bem aventurado. Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer, a moral colocou sempre sua objeção. E o fez com as palavras do filósofo que, menos do que qualquer outro, compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz. “O que em ti tende ardorosamente para a felicidade”, escreve Kant, “é a inclinação, o que depois submete tal inclinação à condição de que deves primeiro ser digno da felicidade é tua razão”. Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito! Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma éticasuperior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz. Quem sente prazer de algo por encanto escapa da hybris implícita na consciência da TÓPICO 1 | O ADULTO VERSUS A CRIANÇA: QUAL O MODELO? 15 felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido não é sua. Assim, Júpiter, que se une à bela Alcmena, assumindo as feições do consorte Anfitrião, não sente prazer com ela como Júpiter. Nem sequer, apesar das aparências, como Anfitrião. Sua alegria pertence totalmente ao encanto, e se sente prazer, consciente e puramente, só com o que obteve pelos caminhos tortuosos da magia. Só o encantado pode dizer sorrindo: “eu”, e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida. Essa é a razão última do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crer no divino e não aspirar a alcançá-lo (uma variável irônica é, em conversa de Kafka com Janouch, a afirmação de que há esperança, mas não para nós). Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós. Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros (felicidade significa, precisamente: para nós), mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada, não era para nós. Ou seja, por magia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com o gesto com que afastamos, de uma vez por todas, a tristeza infantil. Se for assim, se não houver felicidade a não ser sentindo-nos capazes de magia, então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”. Tal definição está de acordo com a antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Disso nascem as intermináveis listas de nomes – diabólicos ou angélicos – com as quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz. Há, porém, outra e mais luminosa tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago, quanto, sobretudo, o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden, e, ao pronunciá-lo, os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços. Por isso, a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria. Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos, mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto. Logo que o consegue, logo que inventa um novo nome, ela ostentará entre as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome, assim como a magia. Livre de nome, bem-aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos. FONTE: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 23-25. 16 Neste tópico você viu que: • Algumas relações se estabelecem entre arte e infância com o intuito de questionar em que medida essas mesmas relações podem estar influenciando a postura social dos adultos e, mais especificamente, repercutindo na postura didática dos professores em sala de aula. • Pôde observar a condição assimétrica que se estabelece entre a magia infantil e a lógica do adulto, ou seja, no quanto essa forma de relação tem afetado a motivação e o desempenho escolar dos alunos. • Pôde refletir que para uma concepção diferenciada de escola faz-se necessária a distância de pontos de vista exclusivamente lógicos e racionais e, tal qual uma obra de arte literária, a escola passe a incorporar referenciais lúdicos em todas as dimensões do ensino. • A presença de uma relação paradoxal entre a vida em sua forma espontânea e o desenvolvimento regrado da criança, na medida em que à pretendida “evolução social” têm correspondido restrições da espontaneidade e da expressão dos indivíduos, seja pelo aprisionamento de sua gestualidade lúdica, seja pela limitação da expressividade infantil, que poderiam reencontrar seu solo expressivo não só através de brincadeiras, mas também por meio de um uso estético, literário, da linguagem. • Pôde compreender o lúdico como algo que possui um poder de restituição de uma atmosfera mágica, da capacidade de admiração e de espanto diante da realidade. • O que comumente acontece em nossa sociedade e, consequentemente, na escola, é a percepção do jogo, ou o lúdico como facilitador para a internalização de regras sociais pela criança, geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos. RESUMO DO TÓPICO 1 17 Prezado(a) acadêmico(a), após ter completado a leitura do presente tópico, reflita sobre as questões elencadas a seguir: 1 Você consegue observar que, independente dos meios, ou mídias – impressa, cinematográfica, web etc. – em que é veiculada a transmissão de saberes entre gerações, persistem relações assimétricas entre o universo adulto e o mundo da criança? 3 Como você proporia uma atividade em sala de aula que estabelecesse um diálogo fora da via tradicional “professor-aluno”, mas que considerasse em condições de igualdade os universos de sua geração e a de seus alunos? AUTOATIVIDADE 2 Você concordaria que, ao considerarmos a argumentação do presente Caderno de Estudos, há uma relação evidente entre a infelicidade adulta e a perda da inocência infantil? 18 19 TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico buscaremos estabelecer uma aliança mais profícua entre a literatura e a palavra a partir de uma breve fundamentação teórica acerca dos modos de compreensão do objeto literário, para depois estabelecermos algumas diferenças entre o literário e o não literário. Assim, começaremos por mapear as características principais que definem um texto literário, discorrendo sobre alguns dos elementos estruturais que o definem – tema que será aprofundado na sequência desses estudos –, refletindo especialmente sobre os repertórios voltados para a criança que, como vimos, geralmente evidenciam uma tradição pedagógica baseada na transmissão de valores do universo adulto. 2 A ARTE E A PALAVRA Certo autor famoso dividiu um livro seu em duas partes: na primeira, contos reais; na segunda, contos fantásticos. Resultado: tem-se a frustrada impressão de que ficou cada uma das partes amputada da outra, quando na realidade os dois mundos convivem. Por que chamar de invisível ou fantástico a esse mundo que por enquanto não conseguimos apreender, em contraposição a este mundo que está na cara (...)? (QUINTANA, 1979, p. 73). De um modo geral, podemos entender a literatura como uma forma de compreensão da realidade que, por não ter um compromisso direto com a verdade instituída pela ciência, pela moral vigente ou pela racionalidade lógica, pode valer-se de uma forma de discurso – ao qual chamamos de discurso ficcional – que consegue reelaborar o real de um ponto de vista inusitado, e, na maior parte das vezes, por saber fazê-lo de uma maneira prazerosa, tem a virtude de promover, através de um ponto de vista diferenciado, um certo nível de instrução e conhecimento, ao mesmo tempo em que diverte o leitor.UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 20 FIGURA 3 - MENINAS, PABLO PICASSO FONTE: Disponível em: <http:\\www.coligacopoetica.blogspot. om> Acesso em: 10 ago. 2012. Caro(a) acadêmico(a), observe que João Cabral de Melo Neto (1997, p. 287), por meio de um poema transcrito a seguir, define a essência da arte e, de modo especial, de sua própria literatura. UNI “Miró sentia a mão direita demasiado sábia e que de saber tanto já não podia inventar nada. Quis então que desaprendesse o muito que aprendera a fim de encontrar a linha ainda fresca da esquerda. Pois que ela não pôde, ele pôs-se a desenhar com esta até que, se operando, no braço direito ele a enxerta. A esquerda (se não é canhoto) é mão sem habilidade: reaprende a cada linha, cada instante, a recomeçar-se.” TÓPICO 2 | A LITERATURA ENTRA NO JOGO 21 É assim que o autor, no poema citado, ao tentar apreender algumas das essências que perpassam a pintura do artista plástico Joan Miró, acaba capturando os modos de fazer e de fruição comuns a qualquer obra de arte, inclusive à literatura. Mais do que isso, o poeta-teórico demonstra o que viria a ser não apenas uma ação autêntica, válida como modelo de composição de obras pictóricas ou literárias, mas também sugere, de modo sutil, em que consistiria uma postura inovadora diante da vida, a saber: a de reaprender a “cada instante, a recomeçar-se”. Façamos uma outra reflexão: você já observou o quanto é raro, no dia a dia, utilizarmos uma via inesperada, fora do comum, de nossa rotina habitual? Pense, por exemplo, no percurso que você faz de casa para o trabalho, do trabalho para a universidade, ou vice-versa... Não é fato que geralmente repetimos o caminho mais fácil, rápido e usual? Percebe que raramente nos questionamos sobre isso? É como se, quem é canhoto, raramente experimentasse a mão direita; ou a esquerda, para quem é destro. Dando continuidade às reflexões, se possível, rememore algumas ações que surpreenderam a você mesmo(a). Anote-as aqui: ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ Anotou? Então, continuemos... Nesse sentido, uma autêntica aparição da infância independeria da idade cronológica ou da faixa etária em que se encontre o indivíduo, pois a ela corresponderia toda ação mediada pela “mão esquerda”, isto é, por uma atitude que se põe fora do alcance tanto das formas de conhecimento previsíveis, quanto dos modos de construção da realidade realizados a partir da lógica usual. Fazendo uma analogia com o poema citado, significa dizer que a infância decorreria de uma postura de distanciamento das verdades dogmáticas, metaforicamente produzidas pelos usos modelares da “mão direita”. Seguindo essa linha de raciocínio, interessa mais à literatura, enquanto forma de arte ligada à palavra, não por descrever os fatos como eles são e dessa forma conduzi-lo, pela ação de uma “mão direita”, para legitimar alguma hipótese científica ou para dar veracidade a alguma especulação filosófica; mas, ao contrário, à literatura interessam os fatos como eles deveriam ou poderiam vir a ser, fiel apenas ao critério da “verossimilhança”, isto é, de alguma verdade postulada não como real, mas como possível: A literatura é chamada de ficção, isto é, imaginação de algo que não existe particularizado na realidade, mas no espírito de seu criador. O objeto da criação poética não pode, portanto, ser submetido à verificação extratextual. A literatura cria o seu próprio universo, semanticamente UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 22 autônomo em relação ao mundo em que vive o autor, com seus seres ficcionais, seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade: pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores incríveis, situações paradoxais, sentimentos contraditórios etc. Mesmo a literatura mais realista é fruto de imaginação, pois o caráter ficcional é uma prerrogativa indeclinável da obra literária. (D’ONOFRIO, 2006 p. 19). Uma das consequências de a literatura ser uma forma de tratamento artístico da palavra que age por verossimilhança, portanto descomprometida com as verdades factuais, é que ao estabelecermos uma analogia comparativa entre a ficção literária e a realidade tal qual a compreendemos, aquela acaba por mostrar-se muitas vezes mais eficaz e autêntica do que os relatos presos a descrições objetivas da vida diária, o que particularmente se verifica nos relatos destinados à criança: A cultura dominante deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado obscuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista. (...) [Em contrapartida] essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma variada: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que, se a pessoa não se intimida e se defronta resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas, dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa. (BETTELHEIM, 2007, p. 15). Assim, enquanto na vida real não nos é possível explicitar nossas emoções mais baixas ou indesejáveis, que de fato sentimos em relação aos outros, a exemplo do fingimento, que passa a ser, também, uma das características mais marcantes de nossa existência cotidiana, em uma história ficcional, por sua vez, as personagens podem se expressar inteiramente, revelando suas raivas, baixezas, temores e, dessa forma, agem de um modo mais autêntico do que o fazemos na vida real. Então, da relação entre a literatura e a vida, ou entre o ficcional e a realidade, arma-se um paradoxo evidente, a saber: enquanto na vida real – que não é fingimento – estamos continuamente fingindo, portanto fazendo dela uma mentira, na literatura, por outro lado – que, por verossimilhança, deve ser fingimento –, as personagens, por não necessitarem fingir, acabam sendo mais reais do que as pessoas que encontramos fora dos livros. TÓPICO 2 | A LITERATURA ENTRA NO JOGO 23 Conceito de verossimilhança: a obra de arte, por não estar diretamente relacionada com o mundo exterior, não é verdadeira em si mesma, entretanto possui equivalência de verdade, ou seja, a ela se assemelha. Morfologicamente, a palavra verossimilhança pode desmembrar-se em dois morfemas que nos revelam diretamente o seu sentido, a saber: vero, de “verdadeiro”, e similhança, de “semelhante a”. Assim, a partir de sua raiz etimológica encontramos seu significado: o de ser semelhante à verdade. Foi com o conceito de verossimilhança que Aristóteles corrigiu a compreensão errônea da filosofia platônica que condenava a obra de arte como falsa e inadequada à sociedade por aquela não ser reveladora da verdade. Para Aristóteles, bem ao contrário, dizer a verdade era atributo exclusivo da racionalidade filosófica, e não da arte, a qual deveria “fingir” ou ser “semelhante à verdade” para poder deleitar, agradar e envolver o público ou o receptor da obra. UNI Eis, portanto, uma das razões pelas quais a arte é tão necessária ao homem: embora ela esteja constantemente variando de modo de expressão, seja na pintura, na literatura, no cinema etc., ela acaba por ser uma fonte autêntica – e, talvez, uma das mais seguras – de compreensão da realidade. A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com essas questões e amadurecer com segurança. As histórias “seguras” não mencionam nem a morte, nem o envelhecimento – os limites à nossa existência –, nem tampouco o desejo de vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confrontaa criança honestamente com as dificuldades humanas básicas. (BETTELHEIM, 2007, p. 15). Assim, a um certo momento, essa virtude da arte seria não só reconhecida, mas em larga medida traduzida para uma outra finalidade, qual seja: a de converter, através da escola e em nome da ordem vigente, a liberdade artística em uma moralidade adequada à formação da criança, cabendo à educação o papel de garantir a permanência da organização social através da transmissão de regras a um sujeito reconhecido, apenas, na sua reflexividade, a escola se torna o lugar da consagração do sistema e a criança se transforma em aluno: aquele que deve aprender as regras transmitidas. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 46). Pensar sobre a literatura é também abrir espaço para discussões a respeito da função que ela exerce na sociedade. É discorrer sobre a arte no espaço escolar. Vejamos, caro(a) acadêmico(a), a importância da literatura na sociedade. UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 24 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA A literatura (e aqui incluímos também outras manifestações artísticas) atende, como discutimos anteriormente, ao mundo da imaginação, propicia um projetar-se para o mundo dos sonhos, para o lúdico, para a fruição, essenciais à vida do homem. A partir dela poderemos compreender, interpretar, modificar ou eternizar relações sociais. Azevedo (2007) afirma que, embora não faça sentido discorrer sobre a função da literatura, sua importância é indiscutível, pois é por intermédio dela que entramos em contato com os temas humanos como a paixão, a amizade, o autoconhecimento, a angústia, o ciúme, a mentira, a existência de diferentes pontos de vista sobre determinado assunto. Além disso, para o autor, o contato com temas da vida concreta e com vozes diferentes das nossas pode, por meio da identificação, constituir um extraordinário recurso de humanização e sociabilização. Em tempos de consumismo sem limites, individualismo doentio e coisificação do homem – com efeitos nefastos numa sociedade desequilibrada como a nossa –, a leitura de ficção e poesia pode ter um papel regenerador e insubstituível. (AZEVEDO, 2007, p. 66). Podemos afirmar que para a literatura são atribuídas natureza e funções distintas, de acordo com a realidade cultural e social de cada época. Antonio Candido assinala três funções para a literatura. Vejamos. Você já fantasiou observando as estrelas, o mar ou as pessoas? Já fantasiou sobre o amor? Sobre uma cena de novela? Ouvindo uma música? Nós possuímos – mesmo que, como vimos, por vezes tolhida – a capacidade de fantasiar e, para Candido, essa modalidade, possibilitada também por meio da ficção, é muito rica. É o que ele nomeia de função psicológica. Ainda segundo o autor, a fantasia tem uma estreita relação com a realidade, e é por meio dessa ligação com o real que a literatura passa a exercer outra função: a formadora, que atua como instrumento de formação e educação do ser humano, por exprimir realidades permeadas pelas ideologias. Nas palavras de Candido (2002, p. 85), a literatura “[...] não corrompe nem edifica, mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Ainda, continua o autor, a literatura possui outra propriedade, qual seja, uma força humanizadora, “não como sistema de obras, mas como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem. E, dentre esta capacidade, a de [...] confirmar a humanidade ao homem” (CANDIDO, 2002, p. 80) comporta uma expressividade que corrobora por educar o gosto visual, serve à exploração das formas, expressa a natureza e reflete a complexidade do ser humano. TÓPICO 2 | A LITERATURA ENTRA NO JOGO 25 Há que se considerar que a literatura se vale da língua, fonte de manifestação de dimensões, padrões e momentos culturais. Umberto Eco (2003) explicita essa questão quando afirma que a língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura. Sem Dante não haveria um italiano unificado. Quando Dante, em vulgari eloquentia, analisa e condena os vários dialetos italianos e se propõe a forjar um novo vulgar ilustre, ninguém apostaria em semelhante ato de soberba, e no entanto ele ganhou, com a Comédia, a sua partida. (ECO, 2003, p. 10-11). Por intermédio dela – a literatura – “são reconhecidos os valores da humanidade, pois surge como um mundo aberto, um convite à liberdade de interpretação e à criatividade” (ECO 2003, p. 21). Assim, a literatura, desde as origens, está vinculada à função de: atuar sobre as mentes, onde se decidem as vontades ou as ações; e sobre os espíritos, onde se expandem as emoções, paixões, desejos, sentimentos de toda ordem... No encontro com a Literatura (ou com a Arte em geral), os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida, em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade. (COELHO, 2000, p. 29). “A literatura e a formação do homem”, de Antonio Candido, é o texto de uma conferência pronunciada na XXIV Reunião Anual da SBPC (São Paulo, julho de 1972). NOTA No entanto, para entender literatura dessa forma, é necessário que se estabeleça um exercício de diálogo com o texto. Somente assim a literatura se mostrará como uma oportunidade de compreensão do homem, e de tudo o que o cerca. A literatura opera sobre o pensamento. É um fenômeno de criatividade e, enquanto atividade cognitiva, contribui para a ampliação do processo perceptivo do leitor. Daí a necessidade da presença do livro literário em sala de aula, fonte inesgotável de conhecimentos e descobertas. O exame dos elementos formativos em textos destinados à criança coloca uma questão que transcende o gênero da literatura infantil, abrangendo o problema da função social da arte. (...) Portanto, toda arte desempenha um papel na formação da sociedade e, nesse sentido, é educativa. O critério perante essa característica inerente à obra é a distinção entre aquelas obras que são apenas eco de lugares- comuns estéticos e ideológicos e aquelas que não apenas conservam experiências adquiridas, mas conduzem ao questionamento dos convencionalismos de interpretação e comportamento pela apresentação UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 26 de novas perspectivas. A obra emancipatória é prospectiva, porque pela amostragem de novas possibilidades propicia experiências futuras; a obra convencional é retrospectiva, porque valida experiências passadas sem redimensioná-las criticamente. (MAGALHÃES In: ZILBERMAN, 1984, p. 54). Significa dizer que a escola deve proporcionar aos jovens contato com as mais variadas produções literárias, favorecendo uma atitude de curiosidade, de interesse pela descoberta, com vistas à formação de um leitor capaz de dialogar com textos e neles reconhecer-se e distinguir expressões estéticas e artísticas. Umberto Eco enfatiza que a literatura possui e mantém a língua como patrimônio coletivo e contribui para a sua formação, na medida em que intensifica um modo de expressão de um grupo. UNI Caro(a) acadêmico(a), continuaremos refletindo sobre a palavra literária que assume vida própria, com novas significações que diferem daquelas usualmente utilizadas nos textos não literários, mas antes veja como Ítalo Calvino concebe os clássicos. Por que ler os clássicos Comecemos com algumas propostas de definição. 1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...". Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro. O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranquilizá-los, bastará observar que, por maiores que possamser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu. [...] Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) TÓPICO 2 | A LITERATURA ENTRA NO JOGO 27 muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição: 2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los. De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será: 3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Segundo Calvino, deveria existir um tempo na vida adulta específico para reler as leituras feitas na juventude, pois nós mudamos o foco ou os focos serão novos, outros. Portanto, conforme o autor: usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer: 4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta: 6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como: 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). UNIDADE 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 28 Calvino argumenta sobre o poder que a leitura de um clássico possui. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendem saber mais do que ele. Podemos concluir que: 8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber), mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo: 9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Essa possibilidade advém do fato de a leitura de um clássico favorecer o estabelecimento de uma relação pessoal com quem o lê. Assim, Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. [...] 10. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. Com esta definição nos aproximamos da ideia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo, não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi, portanto: 11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de TÓPICO 2 | A LITERATURA ENTRA NO JOGO 29 todas essas acepções do termo, consulte-se o exausto verbete "Clássico" de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa comunidade cultural. Poderíamos dizer: 12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia. A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de concentrar- nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?" e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?". É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, O Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem- aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster- se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante. Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo,
Compartilhar