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História sobre a causalidade em epidemiologia Priscila Bastos de Souza 1. INTRODUÇÃO A investigação da causalidade em estudos epidemiológicos desempenha um papel crucial, uma vez que busca estabelecer relações de causa e efeito entre exposições e desfechos relevantes para a saúde. Por várias décadas, os critérios para avaliar a causalidade têm sido uma ferramenta poderosa tanto na pesquisa acadêmica quanto na prática clínica e profissional (GENELETTI et al., 2011). A causalidade pode ser dividida em duas eras distintas ao longo da história. A primeira era é caracterizada pela revolução "microbiológica", na qual predominava um conceito de unicausalidade, influenciado pelo pensamento aristotélico. Nesse contexto, a causa necessária é aquela que, na ausência dela, a doença não se desenvolve. Isso implica na ideia de que a causa pode ser definida e é facilmente identificada, bem como a doença pode ser definida de maneira clara e não ambígua. Esse paradigma, conhecido como abordagem "Pasteur-Koch" da causalidade, ainda é discutido como um paradigma universal na medicina (VINEIS; KRIEBEL, 2006). A segunda era da causalidade emerge com o estudo de doenças crônicas, como câncer e doenças cardiovasculares. Nesses casos, o conceito de causa "necessária" raramente é aplicável. Não há uma única causa necessária conhecida para o câncer, exceto possivelmente o vírus do papiloma humano para o câncer cervical. Em vez disso, foi introduzida e amplamente aplicada a ideia de uma "rede causal". Essa perspectiva reconhece que várias exposições ou condições podem interagir para induzir a doença, sem que nenhuma delas seja necessariamente suficiente por si só. Essa abordagem implica que, embora a doença possa ser bem definida do ponto de vista clínico (por exemplo, câncer de pulmão), a perspectiva etiológica é mais complexa, uma vez que diferentes casos de câncer podem compartilhar múltiplas causas (VINEIS; KRIEBEL, 2006). A maioria das doenças possui uma patogênese com múltiplos fatores, porém a maneira como sua causalidade é conceituada varia de acordo com a disciplina. Nesse contexto, muitas vezes não é apropriado procurar uma causa ou causas isoladas para uma doença, mas sim identificar um conjunto complexo de fatores inter-relacionados e frequentemente interativos que influenciam o risco de doença. Isso torna a avaliação da causalidade mais complicada (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). A maioria das pesquisas epidemiológicas não é experimental e a qualidade da medição da exposição e do estado de saúde geralmente é inferior em comparação com ensaios clínicos ou estudos realizados em laboratório (erro de medição). Além disso, existem potenciais variáveis de confusão que estão estatisticamente associadas à variável de exposição de interesse, enquanto também são preditivas do resultado de saúde por si mesmas, e essas covariáveis devem ser controladas. Além disso, a amostra de pessoas estudadas pode não fornecer informações verdadeiras sobre a relação entre exposição e efeito na população de origem, sobre a relação que a amostra realmente demonstra (viés de seleção) ou aparenta demonstrar (viés de classificação) (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Quando estudos são realizados adequadamente, limitando o erro aleatório, o erro sistemático (viés) e o erro lógico (confusão), então a natureza causal das associações observadas pode ser avaliada de forma razoável. No entanto, é importante observar que a causalidade é uma interpretação e não uma entidade concreta, não devendo ser tratada como tal. Portanto, nunca podemos afirmar com absoluta certeza que a exposição X causa a doença Y. Não há prova definitiva de causalidade; é apenas uma inferência baseada na observação conjunta de duas variáveis (exposição e estado de saúde) ao longo do tempo e do espaço. Essa limitação da lógica indutiva se aplica tanto à pesquisa experimental quanto à não experimental (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Diversos autores têm contribuído para o desenvolvimento desses estudos, sendo dois dos mais renomados Bradford Hill e Rothman, cujas teorias e abordagens têm sido amplamente utilizadas na pesquisa epidemiológica. Neste texto, será abordado a importância desses autores e sua influência na compreensão da causalidade em estudos epidemiológicos. 2. DESENVOLVIMENTO ● Bradford Hill Sir Austin Bradford Hill, um renomado epidemiologista britânico, fez contribuições significativas para a compreensão dos critérios de causalidade. Em seu clássico artigo intitulado "Ambiente e Doença: Associação ou Causalidade", Hill apresentou uma lista de critérios que poderiam ser utilizados para avaliar se uma relação observada entre uma exposição e um desfecho é causal (1965). Publicados pela primeira vez há mais de 50 anos, os "critérios de Bradford Hill" rapidamente se tornaram relevantes para a pesquisa epidemiológica e passaram a ser amplamente utilizados em livros e interpretação de dados epidemiológicos (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Segundo Geneletti et al., a abordagem de Hill baseia-se em nove critérios (2011): 1) Força da associação; 2) Consistência; 3) Especificidade da associação; 4) Temporalidade; 5) Gradiente biológico (relação dose-resposta); 6) Plausibilidade biológica; 7) Coerência; 8) Evidência experimental (por exemplo, reprodutibilidade em modelos animais); e 9) Analogia. Esses critérios causais fornecem diretrizes que ajudam a avaliar quais associações observadas podem ser consideradas potencialmente causais. Eles foram inicialmente introduzidos no debate sobre o papel do tabagismo na etiologia do câncer de pulmão. Embora tenham sido desenvolvidos para estudos observacionais, muitos desses critérios podem ser aplicados a outros tipos de estudos, como estudos genéticos (GENELETTI et al., 2011). Embora a significância estatística não tenha sido incluída na lista, Hill a discute separadamente. Uma crítica importante à abordagem de Hill é que ela considera um fator causal de cada vez e não lida com relações e interações complexas. No entanto, mesmo em situações complexas, é possível decompor os elementos constituintes em situações mais simples, onde os critérios de Hill podem ser aplicados com sucesso (GENELETTI et al., 2011) Um desafio significativo ao fazer inferências causais em pesquisas clínicas e epidemiológicas é que a maioria dos dados são observacionais. Nessas circunstâncias, é crucial distinguir relações causais de associações resultantes de vieses não observados ou de acaso. É necessário encontrar outras maneiras de avaliar se uma associação específica é causal e não resultante de confusão ou outros vieses, bem como determinar a direção dessa associação. Novamente, a questão é como distinguir uma associação causal de uma associação estatística quando apenas dados observacionais estão disponíveis (GENELETTI et al., 2011). Ao invés de estabelecer critérios absolutos, Bradford Hill considerou esses aspectos como elementos da associação entre uma exposição e um resultado que devem ser cuidadosamente examinados antes de se concluir que a interpretação mais provável é a causalidade. Bradford Hill reconheceu a importância de ir além da simples associação e estabelecer o vínculo de causalidade como um passo necessário para tomar medidas preventivas contra as causas ambientais das doenças. No entanto, há questionamentos sobre a aplicabilidade universal de seus critérios clássicos. Até que ponto eles são válidos na avaliação da causalidade em situações multifatoriais? (LUCAS; MCMICHAEL,, 2005) ● Rothamn Um autor de destaque nessa área é Kenneth J. Rothman, um epidemiologista americano renomado por seu trabalho sobre causalidade em epidemiologia. Rothman defende uma abordagem mais quantitativa na avaliação da causalidade, diferentemente da abordagem mais qualitativa de Bradford Hill. Em seu livro "Epidemiology: An Introduction", Rothman oferece uma visão abrangente dos métodos utilizados para avaliar a causalidade em estudos epidemiológicos (2002). Rothmanintroduziu um modelo de causalidade que enfatiza a natureza multifatorial da patogênese das doenças, com vários componentes ou fatores que aumentam o risco e diversas vias causais. Ele identificou elementos necessários e combinações de exposições suficientes para o desenvolvimento da doença. Nessa abordagem, a inferência causal se concentra em quão bem os resultados dos estudos epidemiológicos se encaixam nesse modelo (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). O autor destaca a importância de estudos de coorte e caso-controle bem projetados, além de enfatizar a necessidade de análises estatísticas adequadas para controlar possíveis vieses e confusões. Rothman também propõe o conceito de "causalidade suficiente", em que uma exposição é considerada causal se for capaz de produzir o desfecho em pelo menos uma situação (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Outro conceito relevante é de Rothman e Greenland, que desenvolveram os "critérios de causalidade de Hill modificados". Esses critérios são uma adaptação dos critérios originais propostos por Bradford Hill e foram formulados para abordar questões específicas na epidemiologia contemporânea. Os critérios modificados levam em consideração a presença de viéses, confundimentos e interações entre variáveis, permitindo uma avaliação mais abrangente da causalidade em estudos epidemiológicos atuais (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Rothman e Greenland ressaltam que nenhum dos critérios de Bradford Hill, por si só, é suficiente para estabelecer a causalidade. Para cada critério, existem situações em que a falta de cumprimento do critério pode ser causal e situações em que o cumprimento do critério pode não ser causal. No entanto, a temporalidade, ou seja, a exigência de que a exposição ocorra antes do efeito, é o único critério necessário para estabelecer uma relação causal entre uma exposição e um resultado (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). Um modelo causal amplamente utilizado pelos epidemiologistas atualmente é o modelo de "tortas" de Rothman. Nesse modelo, um complexo de causa suficiente (uma torta) é representada pela combinação de várias causas componentes (fatias da torta). Essa visão mais complexa, em que múltiplos fatores contribuem para diferentes tortas, é respaldada por evidências epidemiológicas na maioria das doenças crônicas (VINEIS; KRIEBEL, 2006). É importante ressaltar que diferentes critérios de causalidade devem ser aplicados ao considerar as causas das doenças em níveis individuais ou populacionais. No contexto de doenças crônicas, o modelo de causas complexas com componentes necessários é válido em nível populacional (VINEIS; KRIEBEL, 2006). Tanto Bradford Hill quanto Rothman fizeram contribuições significativas para o campo da causalidade em estudos epidemiológicos. Enquanto Hill enfatizava a importância de critérios qualitativos e senso comum, Rothman trouxe uma abordagem mais quantitativa e estatística. Essas abordagens complementares ajudam os pesquisadores a avaliar a causalidade de maneira mais abrangente (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). A natureza observacional dos estudos epidemiológicos impede a manipulação direta das exposições, o que dificulta a determinação de relações causais com certeza absoluta. No entanto, a aplicação de critérios de causalidade propostos por autores como Bradford Hill e Rothman, juntamente com uma análise cuidadosa dos dados e a consideração de conhecimentos biológicos e plausibilidade, pode fornecer evidências convincentes para inferir a causalidade (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). ● Pearl Outros pesquisadores também contribuíram para o campo da causalidade em estudos epidemiológicos, além de Bradford Hill e Rothman. Um exemplo é Judea Pearl, um conhecido estatístico e cientista da computação, que propôs a abordagem causal baseada em grafos, chamada inferência causal. Essa abordagem permite identificar relações de causa e efeito por meio de modelos estatísticos e análise de dados. A inferência causal de Pearl oferece uma estrutura formal para investigar a causalidade, considerando não apenas a associação entre exposição e resultado, mas também outras variáveis que possam estar envolvidas no processo causal (LUCAS; MCMICHAEL, 2005). De acordo com Pearl, um grafo de causalidade é um grafo acíclico direcionado (DAG) em que os nós do grafo representam variáveis e as setas representam efeitos causais diretos. O objetivo principal dos DAGs é separar a associação estatística da causalidade, tornando esta última explícita de forma gráfica. (VINEIS; KRIEBEL, 2006). Os efeitos da exposição podem ser muito diferentes quando a exposição atua em uma população cujos membros estão em estágios diferentes ao longo de um caminho causal, e esses estágios podem não ser conhecidos pelo pesquisador. Isso pode resultar em heterogeneidade na suscetibilidade quando a incidência momentânea é observada estaticamente em um único ponto no tempo, como quando os epidemiologistas determinam a incidência e comparam as histórias de exposição dos indivíduos do estudo. Portanto, é importante compreender como fatores genéticos e ambientais podem contribuir para as mesmas causas suficientes, ou de forma mais geral, como eles interagem (VINEIS; KRIEBEL, 2006). Ao quantificar a interação e atribuir frações a diferentes causas necessárias em nível populacional, surgem incertezas adicionais devido à falta de conhecimento sobre os componentes da causa suficiente (LUCAS; MCMICHAEL, 2005) Recomenda-se que os epidemiologistas analisem exposições que podem induzir suscetibilidade adquirida a doenças, considerem mais detalhadamente a importância das exposições múltiplas e sua sequência na determinação de doenças crônicas, e observem que a interação não é apenas um conceito estatístico, mas está profundamente enraizado em modelos de causalidade biológica (VINEIS; KRIEBEL, 2006). 3. CONCLUSÃO É relevante mencionar que a questão da causalidade em estudos epidemiológicos é um processo contínuo e repetitivo. Constantemente, estão sendo desenvolvidas novas abordagens e métodos para aprimorar a compreensão e a avaliação da causalidade. Além disso, a colaboração entre profissionais de epidemiologia, estatística, ciências biológicas e outras áreas é essencial para melhorar a investigação causal. É importante destacar que a causalidade em estudos epidemiológicos vai além da identificação de fatores de risco para doenças. Também envolve a avaliação de intervenções e políticas de saúde, com o objetivo de determinar se uma determinada intervenção causa um impacto positivo ou negativo em um resultado de saúde específico. Autores renomados, como Bradford Hill e Rothman, estabeleceram bases teóricas sólidas e abordagens metodológicas amplamente utilizadas até hoje. No entanto, é necessário reconhecer que a investigação causal é um processo em constante evolução, com novas perspectivas e metodologias emergindo constantemente. A colaboração entre especialistas de diversas áreas é essencial para avançar no campo da causalidade em estudos epidemiológicos e fornecer evidências sólidas para orientar a prática clínica, as políticas de saúde e a promoção do bem-estar da população. Resumidamente, a causalidade em estudos epidemiológicos é um campo complexo e desafiador, porém fundamental para compreender as relações entre exposições e resultados de interesse em saúde. 4. REFERÊNCIAS GENELETTI, Sara et al. Assessing causal relationships in genomics: from bradford-hill criteria to complex gene-environment interactions and directed acyclic graphs. Emerging Themes In Epidemiology, Londres, v. 8, n. 1, p. 1-18, 9 jun. 2011. Springer Science and Business Media LLC. http://dx.doi.org/10.1186/1742-7622-8-5. HILL, Austin Bradford. The Environment and Disease: association or causation?. Proceedings Of The Royal Society Of Medicine, London, v. 58, n. 5, p. 295-300, jan. 1965. LUCAS, Robyn M.; MCMICHAEL2, Anthony J.. Association or causation: evaluating links between “environment and disease”. Public Health Classics,Canberra, v. 10, n. 83, p. 792-795, out. 2005. ROTHMAN, Kenneth J.. Epidemiology: An Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2002. ROTHMAN KJ, GREENLAND S. Causation and causal inference in epidemiology. Am J Publ Health 2005;95:S144–50. VINEIS, Paolo; KRIEBEL, David. Causal models in epidemiology: past inheritance and genetic future. Environmental Health, Londres, v. 5, n. 1, p. http://dx.doi.org/10.1186/1742-7622-8-5 1-10, 21 jul. 2006. Springer Science and Business Media LLC. http://dx.doi.org/10.1186/1476-069x-5-21.
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