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1 PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E BENS CULTURAIS 1 SUMÁRIO SUMÁRIO .................................................................................................... 1 NOSSA HISTÓRIA ...................................................................................... 2 a. INTRODUÇÃO ................................................................................ 3 1.1- METODOLOGIA .......................................................................... 5 b. HISTÓRIA CULTURAL: RETROSPECTIVA ................................... 6 c. A REALIDADE CONSTRUÍDA E VIVIDA: AS REPRESENTAÇÕES 12 d. AS ACEPÇÕES DO PATRIMÔNIO CULTURAL ........................... 17 e. A INFLAÇÃO PATRIMONIAL, TRANSCURSO DO TEMPO ......... 26 f. PATRIMÔNIO E HISTORICIDADE DAS POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO NO BRASIL .......................................................................... 31 g. CULTURA, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA ....................................... 47 h. AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ................................................................................................ 52 i. FERRAMENTAS EM PROL DOS BENS CULTURAIS E NATURAIS 56 j. A REABILITAÇÃO DOS CENTROS HISTÓRICOS BRASILEIROS . 60 k. A HISTÓRIA ORAL ....................................................................... 70 l. A IMPORTÂNCIA DAS RAÍZES CULTURAIS PARA A IDENTIDADE CULTURAL DO INDIVIDUO ............................................................................. 77 m. SABER MAIS ................................................................................ 81 n. CONCLUSÃO ................................................................................ 82 o. REFERÊNCIAS ............................................................................. 84 2 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 a. INTRODUÇÃO Nos dias de hoje tornou-se muito comum, no âmbito acadêmico, deparar-se com expressões do tipo: “cultura da pobreza, “cultura do medo”, “cultura das armas”, “cultura do corpo”, “cultura dos adolescentes” e tantas outras. O termo “cultura”, pode-se afirmar que ocupa atualmente o lugar que outrora fora destinado a “sociedade” e “civilização”. Entretanto, o termo cultura é mais do que um conceito, sugere um campo histórico de disputa em torno de sua função social. No decorrer de seu estudo a palavra “cultura” atingiu vários significados, desde o cultivo agrícola em oposição ao crescimento natural, passando por desenvolvimento mental, modo de vida até alcançar práticas de atividade intelectual. Alguns historiadores, dentre eles Raymond Williams, contestam a apropriação de um só uso para o termo cultura, sugerindo nesse sentido: um conceito de cultura que englobe não apenas “um modo de vida” ou “ produtos artísticos”, mas na experiência que sua forma constitui. O interesse pelos aspectos culturais da sociedade encontra profícua acolhida de 1970 até os dias de hoje, quando houve uma considerável virada teórica e metodológica em determinadas disciplinas como: Geografia, Antropologia, Economia, Psicologia, Ciência Política, Estudos Culturais e História, que passaram a dar mais atenção aos aspectos culturais nos seus estudos, permitindo dessa forma o surgimento de um nova História, denominada “Nova História Cultural”. Para entender um pouco mais sobre alguns aspectos teóricos e metodológicos da Historia Cultural e da Nova História Cultural, os estudiosos brasileiros podem contar com a obra O que é História Cultural?, do historiador britânico Peter Burke, traduzido por Sergio Góes de Paula e publicado recentemente pela editora Jorge Zahar. A relevância desse trabalho está na capacidade de síntese e análise do autor, que em 191 páginas, conseguiu apresentar com clareza e profundidade a História da História Cultural. Essa obra, sem sombra de dúvidas, tem uma grande contribuição a dar aos estudiosos da História Cultural, não somente pelo fato de ela ser um compêndio da trajetória dessa História, mas também por apresentar seus problemas e paradoxos ao longo de duzentos anos de sua existência. 4 As críticas mais agravantes ao período clássico da História Cultural vieram dos historiadores marxistas, que, além de salientarem a falta de análise cuidadosa das fontes, evidenciaram também a pouca análise social e econômica, e a homogeneização cultural ausente de conflitos. O principal expoente desses críticos foi o historiador E. P. Thompson, designando o conceito “termo desajeitado” para a prática de alguns historiadores culturais que não deram tanta importância às distinções culturais presentes nas sociedades. A Formação da Classe Operária Inglesa (1963), obra basilar da “Nova História Cultural”, considerado um marco na Nova História Cultural Britânica, foi duramente criticado por alguns marxistas, colegas de Tompson. As críticas focaram a pouca ênfase nas realidades econômicas, sociais e políticas e por privilegiar em excesso as experiências e as idéias. Entretanto, a tensão entre culturalismo e ecominicismo apresentou-se bastante profícua, pois permitiu aos estudiosos refletirem sobre essas questões. Os problemas continuam. Por um lado, um marxismo que dispensa as noções complementares de base e superestrutura corre o risco de perder suas qualidades distintivas. Por outro, crítica de Thompson às “noções holísticas” parece tornar impossível a história cultural ou, pelo menos, parece reduzi-la a fragmentos. Por mais diferentes que fossem os dois estudiosos, Thompson parecia estar apontando para a mesma direção que Gombrich, quando este rejeitava as “fundamentações hegelianas” das sínteses de Burckhardt e Huizinga. Tais críticas levantam uma questão fundamental: é possível estudar as culturas como um todo, sem fazer falsas suposições sobre homogeneidade cultural? (p. 38). Na primeira metade do século XX, a história “abriu-se” para as demais ciências, com uma proposta de diálogo interdisciplinar. O campo historiográfico, então, sofreu mudança significativa, obrigando os historiadores a reconsiderar o conceito de fontes, para além daquelas predominantemente documentais, na pesquisa em história. Sobre essas fontes de pesquisa incidem a reflexão, considerando-se a contribuição que os avanços tecnológicos trazem à coleta de dados, em particular, na história oral. Do ponto de vista metodológico, trata-se de estudo de caso, com caráter bibliográfico, que traça uma retrospectiva da história cultural, enfatizando as possibilidades de uso da história oral. Como aportes teóricos foram consultados estudos d e Ribeiro (2003), Pesavento (2005) e Alberti (2005). Os resultados apontam para possibilidades de utilização da história oral na pesquisa em história cultural. 5 1.1- METODOLOGIA Paraa construção deste material, foi utilizada a metodologia utilizada de pesquisa bibliográfica, com o intuito de proporcionar um levantamento de maior conteúdo teórico a respeito dos assuntos abordados. Segundo Gil, a pesquisa bibliográfica consiste em um levantamento de informações e conhecimentos acerca de um tema a partir de diferentes materiais bibliográficos já publicados, colocando em diálogo diferentes autores e dados. Entende-se por pesquisa bibliográfica a revisão da literatura sobre as principais teorias que norteiam o trabalho científico. Essa revisão é o que chamamos de levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode ser realizada em livros, periódicos, artigo de jornais, sites da Internet entre outras fontes. Outro método utilizado foi à metodologia de ensino Waldorf, esta metodologia é uma abordagem desenvolvida pelo filósofo Rudolf Steiner. Ele acreditava que a educação deve permitir o desenvolvimento harmônico do aluno, estimulando nele a clareza do raciocínio, equilíbrio emocional e a proatividade. O ensino deve contemplar aspectos físicos, emocionais e intelectuais do estudante. Ainda para a construção deste, foi utilizado a etnometodologia, pela fenomenologia e pelo legado de Wittgenstein, além de alguns elementos marxistas e outros pensamentos mais contemporâneos, como os desenvolvidos por Pierre Bourdieu e Anthony Giddens. Segundo Nicolini, Gherardi e Yanow (2003) a noção de prática, na sua essência filosófica, está baseada em quatro grandes áreas do saber - na tradição marxista, na fenomenologia, no interacionismo simbólico e no legado de Wittgenstein -, das quais podem ser citados fenômenos como: conhecimento, significado, atividade humana, poder, linguagem, organizações, transformações históricas e tecnológicas, que assumem lugar e são componentes do campo das práticas para aqueles que delas compartilham. Com tudo, o intuito deste modelo é possibilitar os estudos e contribuir para a aprendizagem de forma eficaz, clara e objetiva. 6 b. HISTÓRIA CULTURAL: RETROSPECTIVA A história, tradicionalmente, “ocupa - se, de um lado, com as bases materiais e sociais da existência humana, e de outro, com as idéias mediante as quais os homens representam essa existência”, afirma Castanho (200 6, p. 139 ). Como construção moderna, consolida-se como disciplina científica no século XIX. As mudanças mais representativas em sua historiografia, porém, ocorrem no decorrer do século XX. Para que se possa perceber o alcance das mudanças no campo da história e da historiografia no decorrer do século XX, em especial no período que corresponde aos anos (30/70) é necessário, contudo, que se estabeleça contraste com o século XIX. É nesse período que se registra o abandono das concepções relativas à investigação e à escr ita da história que constituíam a tradição europeia, com a convergência, por parte das diversas escolas e correntes historiográficas do século XX, para que a história recuperasse seu sentido antigo de investigação. No decorrer da primeira metade do século XIX, os historiadores preocupavam-se em escrever histórias nacionais, recuperando os heróis e seus grandes feitos, no objetivo de construir os Estados nacionais e estimular o surgimento da identidade nacional. Jules Michelet (1798 - 1874), historiador franc ês, autor da “História da França”, chama a atenção dos historiadores contemporâneos por identificar um agente sem rosto, o povo e as massas, como personagens da história. Esse trabalho de Michelet não o coloca, todavia, como precursor da história cultural, mas significa uma nova postura de trabalhar a história, como bem esclarece Pesavento (2005), de pensar temas e problemas pertinentes ao imaginário, como forma de construção da realidade histórica. Podem ser considerados precursores da história cultural Ja cob Burckhardt, cuja obra “A civilização da Renascença na Itália” (1860) apresenta uma história em que os acontecimentos se diluíam diante da exposição do clima de uma época, das formas de pensar e das mentalidades; Leopold Von Ranke, que buscava um método científico para a história, avançando para fórmulas científicas que influenciaram gerações de historiadores na Alemanha e na França, mas que afirmava a descontinuidade da história, as múltiplas temporalidades e a historicização dos significados; e Johann Gustav Droysen, que se opunha a Ranke, mas entendia que a realidade do passado era inatingível (CHARTIER, 1990). 7 É, portanto, no século XIX, segundo Bourdé e Martin (1990), apud Castanho (2006, p. 140), que a história se instituirá como ciência autônoma, c om objetivo específico e método próprio. Nos seus últimos trinta anos, auge do cientificismo, articularam-se o pensamento burguês, nas vertentes do positivismo e do darwinismo social, e o seu contrário dialético, na obra revolucionária de Marx e Engels. No s domínios da e tnologia e da a ntropologia, Marcel Mauss e Émile Durkheim, com suas pesquisas sobre povos primitivos contemporâneos, davam destaque às representações, propiciando uma aproximação do campo da história com o da antropologia cultural. Em outros contextos, ensaios isolados apontavam para novos caminhos que desembocariam neste novo campo que denominamos história cultural. Assim, é no século XX que a história cultural desabrocha, quer como história das ideias, quer como história intelectual ou aind a como história cultural propriamente dita. Relembra Pesavento (2005) que, nos anos 30, dois grandes intelectuais tiveram a ousadia da mudança no pensar, em momento tão conturbado pela emergência dos fascismos e da eclosão da guerra mundial: “Walter Benjam in, na Alemanha, e Antonio Gramsci, na Itália, de dentro do pensamento marxista, trilharam outros caminhos de análise”. É certo que, embora não tivessem se conhecido, repensaram suas matrizes de pensamento, interessando-se pela área cultural, que passar ia doravante a interessar ao pensamento marxista. Gramsci, ao dar continuidade à tradição marxista, elaborou uma teoria ampliada de Estado, entendendo a sociedade como uma organização constituída de instituições complexas, públicas e privadas, articuladas en tre si, na busca da garantia da hegemonia de seus interesses (GRAMSCI, 1991). Propôs, assim, uma concepção da cultura e dos intelectuais, interpretando a cultura como conjunto de valores construídos, socializados, legitimados e operacionalizados, a partir de um grupo específico, o dos intelectuais, abrindo espaço para a superestrutura, que se liberta das amarras que mantinha com a infraestrutura, em termos de determinação (GRAMSCI, 1982). 8 Benjamin, cuja meta era realizar uma espécie de arqueologia da cultura do século XX, por sua vez, trabalhou com o imaginário social de uma época, com imagens que faziam crer, que se substituíam ao real, fazendo os homens viverem no mundo das representações. Outros pensadores, entre tantos que contribuíram para a mudança no discurso historiográfico, foram Paul Ricoeur (1994), que discutia a possibilidade de obtenção da verdade histórica e de sua finalidade; Roland Barthes, que indagava sobre os traços que distinguiam a narrativa histórica da ficcional; Edward P. Thompson (198 7), historiador inglês que alargou o conceito de classe social, entendendo - a em seu mundo cultural e resgatando a dimensão do empírico na pesquisa histórica; Norbert Elias (2001), que estudou a confluência entre a sociogênese e a psicogênese, incluindo a formação do sentimento; Ernst Gombrich (1994) e Erwin Panofsky (1991), que trabalharam as imagens pictóricas vendo nelas vida, sentimentos, valores. Esta relação se refere aos autores mais conhecidos no Brasil, cujas obras foram sendo traduzidas e estudadas pelos intelectuais que participavam do processo de abertura política do país, décadas depois. No mesmo período, o panorama historiográficofrancês passava por desdobramentos que iam da revista “Les Annales d’Histoire Économique et Sociale”, fundada em 19 29, por Marc Bloch e Lucien Febvre, à história das mentalidades, p ela qual se chegaria à história cultural francesa contemporânea, segundo explica Vainfas (1997). 9 Em sua crítica à historiografia tradicional, Bloch e Febvre tinham por objetivo substituí-la por uma história que contemplasse todas as atividades humanas e atingisse outras áreas do conhecimento. Mais preocupada com os aspectos estruturais do que com os narrativos, a nova história buscava novos objetos de pesquisa.Segundo Constantino ( 2004, p. 49), o objeto da ciência histórica deix ava de “ ser simplesmente alcançado pelas fontes para ser construído pelo historiador, a partir das demandas do seu presente”, modificando a relação do historiador com o passado. A constituição da história das mentalidades, que se conformou no primeiro período das “Annales”, sua perspectiva globalizante com Fernand Braudel e o terceiro período da escola, caracterizado pela recusa aos referenciais marxistas, substituído pela busca dos arquivos e pela coleta sistemática d e dados, são descritas por Cardoso e Vainfas em sua obra “Domínios da história” (1997), cuja análise, no momento, foge à proposta deste trabalho. Vale mencionar, no entanto, que para estes autores, além da amplitude dos objetos, a nova história enfatizou “ [...] a reivindicação do individual, do subjetivo, do simbólico como dimensões necessárias e legítimas da análise histórica” (CARDOSO e VAINFAS, 1997, p. 22). Peter Burke (200 8 ), em “O que é história cultural?”, trata da relevância da grande diáspora para a estruturação e ascensão da história cultural na Europa, destacando que a id e ia de “cultura popular” ou Volkskultur, originada na Alemanha, no final do século XVIII, só na década de 1960 é que foi retomada pelos historiadores acadêmicos alemães. No último quartel do século XX, marcada por uma incrível pluralidade de denominações e de ênfases, a história cultural enfrentava novos desafios. Era evidente uma linha de tensão entre os historiadores que de algum modo relacionavam o universo das ideias com o de sociedade e aqueles que trabalhavam as ideias a partir do conceito de mentalidade e das representações. Os primeiros, referindo-se às ideias contextualizadas; os segundos, voltados para o texto que servia de suporte. Tal situação tornou difícil o diálogo entre a história cultural e o marxismo. Cientes disso, autores como Goldmann (1967) e Jameson (1992), passaram a se preocupar com essa interlocução. Em área ambígua entre o textualismo e o contextualismo, situam-se Chartier (1990) e Bourdieu (1987), 10 ambos c om tendência a dar primazia ao texto, que, em 1997, com Foucault, se expande. De acordo com a nova tendência, voltada à história como narrativa, firmava- se a ideia de que tudo poderia ser história, que surgia como o resultado de uma interrogação feita pelo historiador, misturando-se com a ficção. Na segunda metade dos anos 90, comenta Pesavento (2005, p. 37), “o campo da História já se achava afetado por questionamentos tão profundos que se podia falar, verdadeiramente, de uma busca de novos paradigmas exp licativos da realidade”. De um lado, a história moderna, com método e procedimentos sólidos de investigação nos arquivos. De outro, a história pós - moderna, sem nenhum referencial teórico de análise, sem racionalidade. A história havia se transformado em uma disciplina com campo de abrangência muito vasto, abrangendo: [...] a história da cultura material e do mundo das emoções, dos sentimentos e do imaginário, assim como o das representações e imagens mentais, da cultura da elite ou dos grandes pensadores - história intelectual em sentido estrito -, e a da cultura popular, a da mente humana como produto sócioistórico - no sentido vigotskiano - e a dos sistemas de significados compartilhados - no sentido geertziano -, ou outros objetos culturais produzidos por essa mesma mente e, entre eles, - por que não? - a linguagem e as formações discursivas criadoras de sujeitos e realidades sociais. Tudo isso, ademais, não a partir de uma perspectiva fragmentada, mas conectada e integrada (VIÑAO FRAGO, 1995, pp. 64 - 65 ). Na visão de Lombardi et al . (2006), porém, é Ronaldo Vainfas (1997) quem consegue melhor identificar três maneiras distintas de tratar a história cultural. Para tanto, Vainfas parte da recusa de um conceito vago, ambíguo e impreciso de mentalidades, val orizando o cotidiano, a micro - história ; da predileção pelo informal e pelo popular, distanciando-se da história dos “grandes pensadores”; da preocupação em resgatar o papel das classes sociais e do conflito social; e da possibilidade de a história cultural apresentar caminhos alternativos para a investigação histórica. Apresenta, então, as maneiras pelas quais a história cultural poderia ser tratada: 1. A história da cultura praticada pelo italiano Carlo Ginzburg, notadamente suas noções de cultura popular e de circularidade cultural presentes quer 11 em trabalhos de reflexão teórica, quer nas suas pesquisas sobre religiosidade, feitiçaria e heresia na Europa quinhentista. 2. A história cultural de Roger Chartier, historiador vinculado, por origem e vocação, à histo riografia francesa - particularmente os conceitos de representação e de apropriação expostos em seus estudos sobre ‘ leituras e leitores na França do Antigo Regime ’ . 3. A história da cultura produzida pelo inglês Edward Thompson, especialmente na sua obra sobr e movimentos sociais e cotidiano das ‘ classes populares ’, na Inglaterra do século XVIII (VAINFAS, 1997, p. 148). Como se percebe, a história cultural envolve historiadores com posturas tão diferentes como Thompson (1987), Chartier (1990) e Ginzburg (1991), numa reviravolta em termos de abordagem cujos frutos serão colhidos mais tarde. A questão epistemológica da história cultural estaria centrada no conceito de cultura como objeto de investigação, no estudo das representações sociais, das práticas culturai s e do processo de apropriação. As representações construídas sobre o mundo não só se colocariam no lugar do mundo, como fariam com que os homens percebessem a realidade e a partir delas pautassem sua existência. Seriam elas as geradoras de condutas e práticas culturais e sociais. Caberia à história cultural resgatar representações, construindo uma representação sobre o que já foi representado. A esse conceito, outro seria anexado: o de imaginário, como “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 43). 12 O imaginário comportaria as crenças, mitos, ideologias, valores, construindo identidades e exclusões, hierarquizando, dividindo, apontando semelha nças e diferenças sociais, organizando o mundo, produzindo a coesão ou o conflito. Partindo dessas reflexões, a metodologia de pesquisa que mais se adequaria à história cultural seria a fenomenologia, à qual incumbiria descrever, e não explicar nem analisa r (TRIVIÑOS, 2006, p. 43). Não haveria interesse em colocar em relevo a historicidade dos fenômenos, desde que estes, submetidos à redução fenomenológica, se manifestassem em toda sua pureza. O importante, na opção de pesquisa, é que o pesquisador mantenha coerência entre sua concepção de mundo e o quadro teórico que lhe serve de apoio. O prefácio da “Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais”, de Augusto N. S. Triviños é elucidativo a respeito: Devemos ser claros, porém, que a necessidade de colocar nossos pontos de vista neste livro deve - se, primordialmente, a uma realidade que muitas vezes constatamos: a confusão, a mistura, o ecletismo, que guiam muitas das pesquisas que repousam nasprateleiras das bibliotecas do ensino superior, e que fazem delas um co njunto de idéias sem a amarra de conceitos centrais orientadores (TRIVIÑOS, 2006, p. 13). Com base nos conceitos centrais orientadores da história cultural, a memória de um indivíduo comum “pode ser investigada como se fosse um microcosmo de uma camada so cial inteira em um determinado período histórico”, como ensina Ginzburg (1991, p. 22). c. A REALIDADE CONSTRUÍDA E VIVIDA: AS REPRESENTAÇÕES Ao lermos as concepções e considerações de Peter Burke, Roger Chatier e Sandra Pesavento, observamos que o conceito de História Cultural se faz em torno dos significados construídos pelo homem, pois é a partir da leitura dos mesmos que o historiador cultural pode apreender o modo de viver e pensar de uma sociedade, de um grupo ou mesmo de um indivíduo, como Carlo Ginzburg mostrou em O Queijo e os Vermes, ao contar a história de Menocchio. 13 A palavra significado remete-nos ao signo que, linguisticamente, é formado de significante e significado, os quais são ligados de maneira arbitrária e conjetural a partir de uma convenção social partilhada por todos os membros que compõem essa sociedade. Como menciona Foucault (2000), o signo deve encontrar seu espaço no interior do conhecimento e só existe a partir do momento em que seja conhecida por todos do grupo a possibilidade de relação de substituição entre dois elementos já conhecidos. Servir-se de signos é tentar descobrir seu caráter arbitrário, o qual autoriza sua existência numa determinada época e numa dada sociedade; é tentar analisar as leis que regem sua composição e existência. A História Cultural serve-se de signos, símbolos, marcas e representações para compreender uma dada época e sociedade. A representação nada mais é do que um signo, e seu conceito tem acompanhado as concepções acerca da História Cultural e delineado seu campo de investigação. Roger Chartier (1988) afirma que os esquemas intelectuais criam as representações que conferem um sentido ao mundo e que possibilitam decifrarmos como, historicamente, os homens expressaram a si próprios e o mundo, pois as representações são matrizes de condutas e constituintes de práticas de uma sociedade. Essa nova maneira de trabalhar com a cultura e a história traz aos historiadores culturais também maneiras diferentes de se olhar para as fontes e os documentos, que agoram passam a ser vistos também como representações do passado, materiais passíveis de perguntas. Dessa forma, o historiador da cultura, segundo Pesavento (2005), visa construir as representações do passado por meio de documentos e fontes que representam esse passado. A História Cultural é uma narrativa de representações do passado, pois formula versões, compreensíves e plausíveis sobre as experiências vividas pelos homens em outro tempo. (PESAVENTO, 2005). 14 Peter Burke (1992), ao comentar em seu texto sobre o problema das fontes históricas, vivenciado pelos novos historiadores, salienta a necessidade do historiador ler as entrelinhas dos documentos, e ter a consciência de que todo documento, imagem ou objeto são produções humanas; portanto, representações da realidade. Desse modo, as fontes não falam por si somente, elas exigem a análise cuidadosa do historiador, com a finalidade de apreender tanto as falas quanto os silenciamentos presentes nelas, conforme as palavras de Pesavento (2005, p.41): As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. Roger Chartier (1988) reforça a não existência de uma neutralidade nas representações, mostrando que as mesmas devem ser tomadas como construções históricas surgidas por relações de lutas, disputas e conflitos. As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam (CHARTIER, 1998, p. 17). O papel do historiador cultural volta-se, então, para o deciframento das fontes que lhe são apresentadas. Ele é um decifrador que se vale de provas, de 15 indícios cuidadosamente pesquisados, selecionados e combinados para revelar os significados de uma época (PESAVENTO, 2005). E nesse momento é que o historiador deve contar com sensibilidade e intuição de Sherlock Holmes, Giovanni Morelli ou Sigmund Freud, mencionados por Ginzburg (1989) ao explicar sobre o novo método epistemológico, o paradigma indiciário. O paradigma indiciário emergiu como modelo epistemolódico no final do século XIX, no âmbito das ciências humanas. Na arte, na literatura, na psicologia, na semiótica médica podemos encontrar exemplos e utilização desse método que se volta para análise de dados particulares, insignificantes, negligenciáveis e imperceptíveis, na tentativa de revelação de fenômenos mais gerais. Giovanni Morelli utilizava-se desse método para distinguir as cópias de quadros pintados por grandes pintores, baseando-se em pormenores da pintura que revelavam o estilo próprio do pintor, menos influenciados pelas características da escola à qual pertencia e, portanto, mais difíceis de serem imitados. Na literatura, Conan Doyle constrói seu mais famoso personagem, o detetive Sherlock Holmes, que aplica o método para descobrir autores de crimes baseando- se em indícios imperceptíveis para a maioria. A partir de gestos inconscientes das pessoas o caráter pode ser revelado. Na psicologia, temos Sigmundo Freud, considerado o pai da psicanálise, que revela ter recebido influências de Giovanni Morelli, a partir da leitura de seus livros. O método interpretativo, centrado nos indícios e nos dados marginais, é considerado revelador e serve para fazer emergir os produtos mais elevados do espírito humano, objetos da psicologia. Ginzburg (1989, p. 151) encontra um ponto de encontro entre os 3 casos - a semiótica médica -, que consiste na “disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo”. No entanto, as raízes do paradigma indiciário são bem mais antigas, originam-se de um saber venatório, o saber relativo à caça, no qual o caçador reconstrói as formas e movimentos de suas presas invisíveis por intermédio das pegadas deixadas pela floresta, dos ramos quebrados, do esterco, do tufo de pelos e dos odores. A partir desses indícios, sinais, o caçador lê as pistas deixadas pelos animais e encontra sua presa. 16 As pegadas, os tufos de pelos, os odores tornam-se significantes passíveis de um significado relevante ao caçador: são signos a serem decifrados, pois trazem com eles um conhecimento sobre a caça. Para Ginzburg (1989), as disciplinas que têm por objeto casos, situações e documentos individuais, como a medicina, a filologia e a história, são consideradas disciplinas indiciárias. Conforme já mencionamos, apoiados nas concepções de Pesavento (2005), a História Cultural constrói uma representação sobre o representado. O conhecimento histórico por ela produzido é considerado um conhecimento indireto, indiciário e conjetural; por esta razão o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989) pode ser considerado um método que muito contribui para o perfil da investigação na qual o historiador cultural mergulha. Movido pela suspeita, pelas perguntas que levanta sobre o passado, o historiador reúne dados, organiza-os, compara-os, classifica-os a partir das pistas, dos indícios que esses dados lhe apresentam. São pormenores, particularidades, silêncios, falas, contextos que formam um conjunto de significados expostos à sensibilidade e intuição do historiador,pois “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (GINZBURG, 1989, p. 177). O passado não se mostra por inteiro nas fontes de pesquisa, apenas reflete nuances de como o mundo se apresentava e era representado por uma época. Cabe 78 ao historiador decifrar essas nuances, na tentativa de compreender aquilo que já foi vivido e experimentado pela existência humana. A intuição delineia um rigor flexível ao paradigma indiciário, muito desejável, segundo Ginzburg (1989), para formas de saber mais ligadas à experiência cotidiana, como é o caso da história. Por meio da sua intuição, o historiador constrói uma quebra-cabeça com os traços e registros do passado que são capazes de produzir um sentido. E deve ir mais além, deve construir esse quebra-cabeça a partir do contexto no qual o seu objeto de pesquisa se insere (PESAVENTO, 2005). Assim, cuidado e atenção dados às fontes, a utilização de um método estratégico e flexível, mas que lhe dará mais chances de se aproximar da realidade construída pelo homem em seu tempo, a intuição e o rigor científico darão autoridade da fala ao historiador cultural, para validar a representação que 17 construiu do passado, a partir de sua pesquisa, como algo plausível de ter acontecido, pois como diz Pesavento (2005, p. 119): A História Cultural pressupõe um método, trabalhoso e meticuloso, para fazer revelar os significados perdidos do passado. Pressupõe ainda uma carga de leitura ou bagagem acumulada, para potencializar a interpretação por meio da construção do maior número de relações possível entre os dados. Como resultado, propõe versões possíveis para o acontecido, e certezas provisórias. d. AS ACEPÇÕES DO PATRIMÔNIO CULTURAL Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, o patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto dos saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à história, à memória e à identidade desse povo. O patrimônio cultural de uma sociedade é também fruto de uma escolha, que, no caso das políticas públicas, tem a participação do Estado por meio de leis, instituições e políticas específicas. Essa escolha é feita a partir daquilo que as pessoas consideram ser mais importante, mais representativo da sua identidade, da sua história, da sua cultura, ou seja, são os valores, os significados atribuídos pelas pessoas a objetos, lugares ou práticas culturais que os tornam patrimônio de uma coletividade (ou patrimônio coletivo). De acordo com o Art. 216 da Constituição Federal Brasileira constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. São eles: As formas de expressão; Os modos de criar, fazer e viver; As criações científicas, artísticas e tecnológicas; As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 18 A Lei nº 4.741 de 17 de dezembro 1985, que dispõe sobre o tombamento de Bens para integração no Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Estado de Alagoas, afirma que patrimônio cultural consiste nos bens de interesse cultural e consequentemente suscetíveis da proteção e vigilância do Poder Público estadual todos aqueles que, móveis ou imóveis, atuais ou futuros, existentes no território alagoano, por seu valor histórico, artístico, arqueológico, etnográfico, paisagístico, folclórico ou bibliográfico, mereçam ser preservados de destruição ou de utilização inadequada. O patrimônio cultural pode ser classificado quanto à sua natureza, que pode ser material ou imaterial. O patrimônio material consiste, segundo o Decreto-Lei nº 25/1937, no conjunto de bens culturais móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Já o patrimônio imaterial, por sua vez, é definido pela UNESCO como as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. 19 A noção de patrimônio advém etimologicamente da concepção de "herança paterna". Esse termo nas línguas românicas, segundo Pedro Paulo Funari, deriva do latim patrimonium e faz alusão à "propriedade herdada do pai ou dos antepassados" ou "aos monumentos herdados das gerações anteriores". Para o referido historiador e arqueólogo, essas expressões fazem menção a moneo, que em latim significa "levar a pensar". Portanto, as noções de patrimônio cultural mantêm-se vinculadas às de lembrança e de memória — uma categoria basal na esfera das ações patrimonialistas, uma vez que os bens culturais são preservados em função dos sentidos que despertam e dos vínculos que mantêm com as identidades culturais. Nos recônditos da memória residem aspectos que a população de uma dada localidade reconhece como elementos próprios da sua história, da tipologia do espaço onde vive, das paisagens naturais ou construídas. A memória, do ponto de vista de Jaques Le Goff, estabelece um "vínculo" entre as gerações humanas e o "tempo histórico que as acompanha". Tal vínculo, além de constituir um "elo afetivo" que possibilita aos cidadãos perceberem-se como "sujeitos da história", plenos de direitos e deveres, os torna cônscios dos embates sociais que envolvem a própria paisagem, os lugares onde vivem, os espaços de produção e cultura. Sob essa ótica, Le Goff destaca que a "identidade cultural de um país, estado, cidade ou comunidade se faz com a memória individual e coletiva"; a partir do momento em que a sociedade se dispõe a "preservar e divulgar os seus bens culturais" dá-se início ao processo denominado pelo autor como a "construção do ethos cultural e de sua cidadania". 20 O ethos cultural, em essência, tangencia tudo aquilo que distingue a existência dos grupos sociais no interior de uma sociedade. Observado isoladamente, o vocábulo cultura, advindo de colere, denota o sentido de cultivar, originalmente circunscrito ao labor agrícola, mas o termo ainda contempla a educação, a polidez, a civilidade do indivíduo. Sem dúvida, a cultura apreendida como "formas de organização simbólica do gênero humano remete a um conjunto de valores, formações ideológicas e sistemas de significação" que norteiam os "estilos de vida das populações humanas no processo de assimilação e transformação da natureza". No âmbito do patrimônio, o restabelecimento da acepção antropológica da cultura como "todo conhecimento que uma sociedade tem de si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre sua própria existência" provocou a ampliação do conceito. Este passou a abarcar também as maneiras de o ser humano existir, pensar e se expressar, bem como as manifestações simbólicas dos seus saberes, práticas artísticas e cerimoniais, sistemas de valores e tradições. Essa noção de cultura, fomentada desde o início da década de 1980 nas convenções internacionais promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura — Unesco, adquiriu maior magnitude em 1985, por ocasião da "Declaração do México". 21 A caracterização ampliada da cultura, apresentada nesse documento, definiu o patrimônio como produções de "artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios", "criaçõesanônimas surgidas da alma popular" e "valores que dão sentido à vida". Nessa linha argumentativa, a referida declaração frisou a importância da preservação de "obras materiais e não materiais que expressassem a criatividade de um povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas". E também salientou que a "preservação" e o "apreço" pelo patrimônio cultural permitem aos povos a "defesa da sua soberania e independência". Há que se admitir que embora a definição de patrimônio cultural busque contemplar as mais diversas formas de expressão dos bens da humanidade, tradicionalmente o referido conceito continua sendo apresentado de maneira fragmentada, associado às distintas áreas do conhecimento científico que o definem como patrimônio cultural, natural, paisagístico, arqueológico e assim por diante. Contudo, nos últimos anos do século XX e início do século XXI, já se depreende que essas áreas se inter-relacionam e que, independentemente das suas respectivas categorias, todo o patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e o meio. Sem dúvida, hoje se reconhece que a cultura é construída historicamente, de forma dinâmica e ininterrupta, alterando-se e ampliando seu cabedal de geração em geração, a partir do contato com saberes ou grupos distintos. A emergência de uma "consciência preservacionista" na esfera ambiental se consolidou na década de 1980, mas essa mobilização não partiu do Estado como ocorreu com o patrimônio histórico durante a Revolução Francesa, no século XVIII. Pelo contrário, o movimento em prol do direito e da proteção ao meio ambiente se irradiou através da comunidade científica e acabou difundido entre organizações não-governamentais que passaram a reivindicar melhor "qualidade de vida" no planeta. Entretanto, a questão da preservação do patrimônio natural vem suscitando polêmicas desde longa data. Para as correntes naturalistas do século XIX, a maneira mais adequada de garantir a proteção das áreas naturais residia em afastá-las do homem. Esse entendimento, por sua vez, consistia em uma reação à 22 corrente culturalista, segundo a qual a natureza representava uma ameaça de volta à condição "selvagem" do homem. Em meados do século XIX, a concepção de wilderness (ou mundo selvagem) favoreceu a criação de parques e estações ecológicas americanas e a edificação de uma imagem incompatível entre a existência humana e a conservação da natureza — o que implicou a defesa do uso restrito (ou sua total supressão) das áreas de proteção ambiental. No século XXI, o reconhecimento das chamadas populações tradicionais e da sua possível contribuição para a conservação e manutenção da diversidade biológica apontou o surgimento de um ecologismo diferenciado daquele emergente nos países industrializados que sacralizavam o mito da "natureza intocada", dois séculos antes. A acepção do "equilíbrio dos ecossistemas" e do "novo naturalismo", manifestos por meio de movimentos sociais, primou pela diversidade cultural e pela união entre o homem e a natureza de modo a garantir a gestão democrática dos espaços territoriais e o adequado manejo das áreas de proteção ambiental. Ainda assim, faz-se necessário atentar para as armadilhas decorrentes das visões simplistas que, por um lado, apostam na possibilidade de a tecnologia moderna reverter qualquer impacto das atividades humanas sobre a natureza, e por outro, defendem que as populações tradicionais figuram como "conservacionistas natos" ou profundos conhecedores da dinâmica do mundo natural. Talvez, as saídas para esses impasses se delineiem mediante o investimento em pesquisas sobre as possibilidades de se relativizar a manutenção da diversidade biológica e a conservação da pluralidade cultural. Noutro extremo, não se pode negligenciar a complexidade adquirida pela temática do patrimônio natural, quando esta se articula à noção de paisagem, uma vez que ela incorpora as relações do homem com o meio, e ainda sugere que os "modos" ou "gêneros" do viver humano produzem "paisagens culturais". As singularidades relacionais entre as culturas e o meio ambiente definem, conforme os fundamentos da geografia cultural, os traços da própria paisagem e a distinguem de outros espaços, determinando o seu geni'us loci, ou seja, a "alma do lugar". Nesse âmbito, torna-se possível apreender por que Augustin Berque afirma que a "paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização" e, ao mesmo tempo, "participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação — ou seja, da 23 cultura — que canalizam, em certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza". Sob esse enfoque o conceito de patrimônio ambiental adquire dimensões sociais, cujo significado aponta a materialização dos sentidos atribuídos no decorrer do processo histórico e lhe imprime uma perspectiva dinâmica, uma conotação que fomenta a consciência do uso comum do meio e, principalmente, a responsabilidade coletiva pelo espaço. As demandas da modernização imputam às elites políticas e intelectuais latino-americanas a necessidade de normatizar as formas de apropriação dos territórios. No decorrer do século XX, a noção de patrimônio ambiental urbano amplia-se e também passa a ser considerada fator de reconhecimento dos núcleos históricos. Aliás, a natureza não raro referendou representações de memórias coletivas e, como bem o lembram Gilmar Arruda e Zélia Lopes da Silva, cristalizou elementos fundantes das construções identitárias de distintas sociedades, inclusive da brasileira. Mas, entre 1932 e 1937, os efeitos do desmatamento e da "descarga" de dejetos residenciais e resíduos industriais nos mananciais urbanos passaram a constituir alvo de matérias veiculadas por meio do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e a serem debatidos em associações como a "Academia Brasileira de Ciências", a "Sociedade Amigos das Árvores" e a "Sociedade Amigos de Alberto Torres". A ampliação das interpretações sobre a natureza alcança os debates entre os constituintes e a redação da Carta Magna de 1937 chega a referir-se aos bens naturais como "monumentos" da nação brasileira. A defesa efetiva dos bens naturais e culturais do país acabou sendo implementada através do Decreto-Lei no 25/1937, referente ao tombamento, porém os termos dessa proteção se restringiram, conforme o artigo primeiro da lei, aos 24 valores paisagísticos e estéticos referentes aos "sítios e paisagens" distinguidos "pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana". Passados 51 anos, os bens enumerados no artigo no 216 da Carta Constitucional do país (1988) mantiveram-se articulados às noções de patrimônio ambiental circunscritas aos "conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico". Nessa direção, se reconhece que o tombamento ainda persiste como o instrumento mais eficaz para a proteção dos bens naturais e culturais. Os critérios de promoção de certos bens à condição de patrimônio têm se vinculado à imputação de valores culturalmente defensáveis. Desde a instituição da "Convenção do Patrimônio Mundial", em 1972, a definição dos parâmetros para identificação dos bens de interesse universal tem oscilado entre critérios como raridade, urgência, autenticidade, integridade e universalidade. Hoje, os critérios de autenticidade e universalidade têm sido tomados como balizas definidoras dos bens integrados à Lista do Patrimônio da Humanidade. Cabe ressaltar que a par da importância atribuída aos bens, perfilham-se os seus significados afetivos, culturais, estéticos, sociais, históricos, econômicos e técnicos. Por essa razão o francês Hugues de Varine-Bohan argumentou, há mais de36 anos, que o patrimônio cultural deveria ser abordado da perspectiva de três vetores básicos: o do conhecimento, o dos bens culturais e o do meio ambiente. Sob esse prisma, definia o "patrimônio do conhecimento" como os "costumes", as "crenças" e o "saber fazer" capaz de viabilizar a sobrevivência do homem no meio ambiente onde vivia, e delimitava o "patrimônio dos bens culturais" como conjunto de artefatos e tudo o mais que derivava do uso do patrimônio ambiental. Este último contemplava os elementos inerentes à natureza, como o próprio meio e os recursos naturais. Talvez a maior releva ncia da abordagem de Varine-Bohan deva-se ao fato de que tais acepções do patrimônio coadunam-se às noções de bens naturais e culturais, concatenadas mediante as articulações entre natureza e cultura, haja vista que a própria cultura parece ser conc ebi da pelo autor como a "natureza transformada pelo trabalho humano". Ora, na medida em que os bens culturais parecem entendidos como resultado da transformação da natureza, se reconhece que as constantes alterações do meio decorrem das novas necessidades que surgem ao longo da existência humana. Interpretada dessa maneira, a referida 25 definição do patrimônio ambiental inclui não somente os "recursos naturais" ou "a natureza não apropriada pelo trabalho", mas também os subsídios da construção cultural, quais sejam, os ambientes urbanos percebidos como lócus da materialização das relações sociais. Esse ponto de vista permite ainda a incorporação do conceito de territorialidade à questão do patrimônio, pois, como bem o lembra Milton Santos, os territórios se delineiam a partir de "sua utilidade atual, passada e futura", derivam do uso que lhes é atribuído "pelos grupos humanos que os criaram ou que os herdaram das gerações anteriores". Essa assertiva descortina as múltiplas facetas da problemática patrimonial, libertando-a da clausura inerente às definições isoladas, sem dissociá-la das referências culturais e do espaço geográfico. Assim, se depreende que a interpretação do patrimônio cultural ou do patrimônio ambiental não pode ser abstraída dialeticamente das ações historicamente responsáveis por sua construção, nem tampouco do sentido de pertencimento. Exposto isso, vale lembrar que a instituição do tombamento para fins de proteção do patrimônio também se engendrou no contexto da Modernidade. Curiosamente, a proteção de ecossistemas, paisagens naturais, conjuntos arquitetônicos, centros urbanos, monumentos, sítios arqueológicos, peças móveis, manifestações culturais e artísticas prefigurou-se, por algum tempo, como um movimento anacrônico devotado a refrear as trajetórias progressivas do desenvolvimento e a domesticação da natureza. Em meio às contínuas transformações advindas da modernização, a defesa do meio ambiente e das tradições culturais foi dotada do sentido de afiançar a imortalidade dos signos da identidade nacional, cultural e ecológica. Portanto, somente nos últimos anos do século passado a preservação dos bens naturais e culturais passou a ser admitida como uma atitude positiva e inteligível. Nesse contexto, como tem sido tratado o patrimônio cultural latino- americano? Quais as implicações da preservação num continente territorialmente vasto e culturalmente diversificado? As várias nações latino-americanas têm características pluriculturais oriundas de suas inúmeras etnias. Essa riqueza cultural se inscreve num processo dinâmico que se reorganiza, se renova e se transmite de geração em geração. Trata-se de um processo contínuo, apontado pelos especialistas como um sistema capaz de reafirmar a identidade do povo 26 latino-americano e de promover o seu desenvolvimento. Mas, a complexidade da proteção de uma coleção tão extensa de bens culturais dispersos em tão imenso território tem implicado a adoção de ações pontuais no campo das políticas públicas devotadas à defesa do patrimônio e do turismo. Estas têm sido respaldadas pela implantação de cursos de Educação Patrimonial e Educação Ambiental, tomadas como instrumentos para a construção da cidadania, do progresso econômico e da preservação dos bens culturais e sócio-ambientais. Assim, cabe indagar de início quais as práticas preservacionistas adotadas na América Latina, e depois, investigar de que maneira o Brasil tem enfrentado o desafio de associar a preservação do patrimônio cultural material e imaterial, a recuperação da memória social, o desenvolvimento e o crescimento urbano. e. A INFLAÇÃO PATRIMONIAL, TRANSCURSO DO TEMPO Observamos o termo “patrimônio” adentrar o século XXI como uma espécie de cruzada ocidental, conduzida pelo seu poder de evocação (POULOT, 2009), até tornar-se, com o seu correlato “conservação”, o novo imperativo a operar sobre os deslocamentos das sensibilidades temporais (HARTOG, 2006). Os sentidos múltiplos atribuídos à palavra patrimônio dotaram-na de uma complexidade conceitual que vozes simultâneas, entrelaçadas e distintas repertoriam os diversos usos da palavra para dizer coisas muitas vezes diferentes e nem sempre harmoniosas entre si. É a batalha semântica a qual nos reporta Kosellek para interpretarmos a polissemia que palavras e conceitos compartilham em sua vinculação com o presente. Os conceitos são, portanto, vocábulos nos quais se concentra uma multiciplicidade de significados. O significado e o significante de uma palavra podem ser pensados separadamente. No conceito, significado e significante coincidem na mesma medida em que a multiciplicidade da realidade e da experiência histórica se agrega à capacidade de plurissignificação de uma palavra, de forma que seu significado só possa ser conservado e compreendido por meio dessa palavra. Uma palavra contém possibilidades de significado, um conceito reúne em si diferente totalidades de sentidos (KOSELLECK, 2006, p. 108-109). 27 Em sintonia com o “boom da memória”, a onda universalizante do patrimônio, em sua versão ampliada e rotinizada, tem convergido para a vulgarização da ideia de que tudo é patrimônio ou, potencialmente, poderia vir a ser. Vivemos uma obsessão pelo patrimônio. Cada vez mais o vocábulo tem figurado os empreendimentos de toda ordem – seja político, social, econômico e/ou simbólico – e mobilizado diferentes ações de preservação com vistas aos interesses das comunidades em escalas locais, nacionais e internacionais. Mas se, por um lado, é notório que a palavra patrimônio distanciou-se de sua concepção original de monumento histórico, por outro lado, passou a designar, simultaneamente, o conjunto das manifestações culturais em sua diversidade de suporte material, natural e intangível. Na condição de uma categoria aberta, tem assimilado novos conteúdos e significados como as crenças, o artesanato, a culinária, a música, a dança, o teatro, as festas, a paisagem, as tradições oral e escrita, as práticas sociais, as técnicas, etc.; ao mesmo tempo, tem resignificado outros já consagrados como a arquitetura (erudita, vernácula, corrente) (CHOAY, 2005). Segundo François Hartog (2006, p. 272), “seria ilusório nos fixarmos sobre uma acepção única do termo”: O patrimônio é uma maneira de viver as rupturas, de reconhecê-las e reduzi-las, referindo-se a elas, elegendo-as, produzindo semióforos. Inscrito na longa duração da história ocidental, a noção conheceu diversos estados, sempre correlatos com tempos fortes de questionamento da ordem do tempo. O patrimônio é um recurso para o tempo de crise. Se há assim momentos do patrimônio, seria ilusório nos fixarmos sobre uma acepção única do termo. Na assertiva de Hartog (2006, p. 272), os diversos sentidos do patrimônio foram se configurando “sempre correlatos com tempos fortes de questionamento da ordem do tempo”. Em par com a memória, constitui-se palavra-chave de nossa experiência temporal contemporânea. Ambos representamum mesmo movimento: ao mesmo tempo em que são sintomas e traduzem o que somos hoje, cumprem uma função de proteção e refreamento ao mal-estar causado “pela nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudanças e um contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e espaço” (HUYSSEN, 2000, p. 28). 28 Ao relacionar patrimônio e memória como testemunhos de um tempo de crise, Hartog opera com um novo “regime de historicidade” que o Ocidente vive desde a Queda do Muro de Berlim (1989). Esta noção possibilitou compreendermos a complexidade do tempo tanto no sentido de “como uma sociedade trata o seu passado” quanto “a mobilidade de si de uma comunidade”, ou seja, “maneiras de ser no tempo” (HARTOG, 2006, p. 262-263). Tal constatação emerge da observação do autor em relação ao crescimento rápido da categoria do presente, que se impôs como evidência de um tempo presente onipresente, nomeado por ele de “presentismo”, onde se vive entre a amnésia e vontade de nada esquecer. O fenômeno da patrimonialização que marcou as três últimas décadas do século XX trouxe, associados à logica do conservar e destruir, os conceitos de identidade e memória como palavras de ordem do processo de representação de uma retórica da perda (GONÇALVES, 1996). Nesse contexto, a função social atribuída ao recurso identitário conferido ao patrimônio se impôs como um reconhecimento de sua necessidade (JEDY, 1990). De lá para cá, o que se observou foi uma busca desenfreada pelo passado consubstanciada pelos movimentos de defesa da diversidade cultural e pelo desejo de transformar nossas histórias, monumentos e manifestações culturais em patrimônio (LOWENTHAL apud TAMASO, 2006). É o momento de uma virada em que a questão do patrimônio se transforma em dever de memória – “traço distintivo do momento que nós vivemos ou acabamos de viver: uma certa relação ao presente e uma manifestação do presentismo” (HARTOG, 2006, p. 271) operado pela obsessão em tudo preservar. 29 Pierre Nora (1993) identifica essa pulsão compensatória de tudo guardar e preservar em seu refinado diagnóstico da aceleração da história, objetivado pelo conceito de “lugares de memória”. Segundo o historiador, perdida a memória como elo de continuidade e preservação do social, seriam, os lugares de memória, a última fronteira na tentativa de restabelecer a continuidade entre presente e passado. Nascem como forma de compensar a perda, ainda que irreparável, da memória como experiência coletiva, resultando, daí, o fenômeno da patrimonialização da história. A própria semântica do termo patrimônio se constrói em sua relação mediatizada com o tempo avalia Manoel Luiz Salgado Guimarães (2012, p. 99): “O termo patrimônio supõe, portanto, uma relação com o tempo e seu transcurso. Em outras palavras, refletir sobre o patrimônio significa, igualmente, pensar nas formas sociais de culturalização do tempo, próprias a toda e qualquer sociedade humana”. Por outro lado, se a evidência do patrimônio corresponde ao desejo e necessidade de passado plasmado por uma “ilusão de continuidade” (CANDAU, 2011, p. 159), diante das incertezas e angústias de um tempo saturado de presente, fracassaria a ideia de que o fenômeno da patrimonialização é sinal da obsessiva tentativa em domesticar o tempo: 30 De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica. O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Neste aspecto é que a história parece, com tamanha frequência, “morta”, no sentido corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é “vivo”, graças às profissões de fé e aos usos comemorativos que o acompanham (POULOT, 2009, p. 12). Interessante perceber a leitura de Dominique Poulot quando colocada em conexão com a perspectiva do “presentismo” postulado por Hartog. No novo regime de historicidade, marcado pela crise de futuro, observamos os patrimônios se multiplicarem e a memória se tornar plural “graças às profissões de fé” e aos “usos comemorativos” que os revestem em nome de um “investimento de identidade” a ser transmitido. Essa nova experiência do tempo fechado em si mesmo, onipresente – onde o passado e o futuro são cotidianamente fabricados segundo sua própria necessidade – foi, simultaneamente, desenvolvendo o medo da amnésia (coletiva e individual) e a vontade de nada esquecer. Seria esta a condição do patrimônio e da memória que tem orientado as políticas de preservação? Não estaria, neste movimento reativo, a emergência de uma consciência patrimonial que tem impulsionado diferentes sujeitos a ações preservacionistas face ao processo de mudanças estruturais decorrentes de uma mundialização da cultura, do consumo e do turismo? E o que dizer do desejo e a necessidade das pessoas de verem o seu passado se transformar em patrimônio? Os anos de 1980 foram marcados pelos debates em torno da memória e do patrimônio, mais especificamente sobre os deslocamentos conceituais de um e de outro em perspectiva com os anseios de novos sujeitos históricos que entraram em cena e forjaram a necessidade de se repensar os silêncios e os ocultamentos, assim como o que deve ser protegido, valorizado, repertoriado. A memória se tornou plural. Outras vozes, narrativas, apropriações e sentidos passaram a informar e a conformar a memória de si e a memória nacional. Proliferam museus, memoriais, centros de memória, arquivos, memórias de bairros, de partidos, de sindicatos, de 31 igrejas, de grupos sociais, de acervos digitais, etc. A moda “retrô” invadiu a produção de documentários e novelas de época. O retorno das biografias tem, cada vez mais, seduzido os historiadores e público em geral. E que dizer do crescimento das autobiografias que se impõem como forma recorrente de expressão de arte contemporânea? Também o conceito de patrimônio cultural se multiplicou e foi ganhando diferentes significados. Transcendendo os adjetivos que recebeu ao longo do tempo (histórico, artístico, móvel, imóvel, tangível, intangível, material, imaterial, paisagístico, genético, tesouro vivo, etc.), a ressemantização do conceito de patrimônio é, em si mesma, sinalizadora das concepções de tempo, lugar social de produção, perspectiva teórica e metodológica e sentido político. Nesta perspectiva, o conceito de patrimônio deve ser pensado em termos de uma prática social construída histórica e culturalmente em consonância com a busca de identidade e as demandas de “vontade de memória” no tempo presente. Com frequência, o termo patrimonialização tem sido empregado para designar todo o processo de constituição de patrimônios a partir da seleção e atribuição de valor de referência cultural a bens e práticas culturais de determinados grupos de identidade. O ato de patrimonializar refere-se, assim, à ação de identificar os valores culturais de um dado bem, de os reconhecer socialmente e assim constituir patrimônio. f. PATRIMÔNIO E HISTORICIDADE DAS POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO NO BRASIL Os estudos de Françoise Choay (2006, p. 10), colocados sob a ótica de uma abordagem semântica do patrimônio e das críticas às políticas de patrimonialização, têm sido referência necessária para compreendermos os deslocamentos conceituais do termo em sua intrínseca relação com o tempo. Debruçada sobre o Der Moderne Denkmalkultus (O Culto moderno dos monumentos), de Alois Riegl, a autora traz à luz a distinção entre monumento e monumento histórico. Praticando a etimologia da palavra “monumento”, encontra em seu sentido original, antropológico, o seu caráter de “universal cultural” manifestado em 32 praticamente todas culturas. Enquanto “uma arte da memória”, sua nítida intenção é nostocar a lembrança. Já “a invenção do monumento histórico é solidária daquela dos conceitos de arte e história” e de uma concepção de tempo histórico, linear e irreversível. A teoria dos valores formulada por Riegl, no início do século XX, apresenta-se de suma importância para superar a ideia de que os monumentos são constituídos de categorias fixas e imutáveis. Segundo Choay (2006, p. 10), ao “empreender o inventário dos valores não ditos e das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de monumento histórico”, Riegl encontrou, na Renascença, o distanciamento – que as culturas antiga e medieval ignoraram – para apreender a historicidade de tais valores em sintonia com as novas concepções de tempo e de espaço. Tal distanciamento, fundado na teoria dos valores, permitiu perceber os deslocamentos dos dispositivos mnemônicos em sua relação com o tempo. Se, no monumento, passado e presente estão entrelaçados em sua destinação memorial, no monumento histórico, as relações com a memória viva e a duração são determinadas pela emergência de um saber em estreita relação com formas diferenciadas de pensar historicamente. Ao ser considerado objeto de conhecimento, se insere numa concepção linear do tempo, uma vez que o valor cognitivo o reporta ao passado e à história em geral ou ainda à história da arte. Já na condição de objeto de arte, é o valor de sensibilidade que o torna “parte constitutiva do presente vivido, mas sem a mediação da memória e da história” (CHOAY, 2001, p. 26). São essas relações que se mantêm com o tempo, a memória e o saber, segundo Choay, é que vão determinar uma diferença maior quanto à conservação dos monumentos e dos monumentos históricos, respectivamente (CHOAY, 2001). Foi no contexto da Revolução Francesa e da construção das culturas nacionais que a ideia de nação veio conferir status ideológico ao conceito de patrimônio e assegurar, por meio da institucionalização de práticas específicas, a sua preservação. Se a possibilidade de conhecimento e o amor à arte não foram suficientes para garantir a sua preservação, o medo da destruição e da perda fez colocar no centro do debate a necessidade de sua preservação. Nessa perspectiva histórica, a constituição dos patrimônios tem seu momento fundador ligado à formação dos Estados modernos e à construção de uma identidade nacional. 33 No papel de testemunhos do passado, conformadores de um tempo nacional, consubstanciaram igualmente uma escrita da história política e ideologicamente comprometida com o projeto de construção da nação no século XIX. Neste contexto, a operação histórica (CERTEAU, 2000) se valeu dos adjetivos histórico, artístico e nacional como valores de testemunho, documentos de uma verdade que se buscava comprovar “tal como realmente aconteceu”, ou seja, monumentos, edificações e obras de arte passaram a ser sacralizados e preservados, investidos que estavam do poder de reificar a nação localizando-a no tempo e no espaço. Essa perspectiva francesa de patrimônio monumental fundada nos valores nacional, estético e didático passou a figurar como paradigma na constituição de políticas públicas de preservação do patrimônio no ocidente. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, em 1937, hoje, IPHAN e de seus congêneres em vários países da América Latina é exemplar. No Brasil, a ideia de uma singularidade nacional que norteou as narrativas sobre o passado caminhou em perspectivas distintas, mas complementares: a escrita da história e a institucionalização das práticas preservacionistas. De um lado, a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres regionais que, em conjunto com o Arquivo Nacional, ambos criados em 1838, iniciam o processo de institucionalização da memória nacional; de outro, as narrativas modernistas corroboraram para a fundamentação de um tempo nacional 34 tendo como um dos seus correspondentes ao projeto de construção da brasilidade a definição de uma noção de patrimônio cultural e a formulação de uma política de preservação. No projeto de consolidação do Estado Nacional, o duplo esforço de delinear a gênese da nação e garantir a consolidação de uma nova civilização nos trópicos foi acompanhado por uma escrita histórica peculiar ao IHGB. A concepção pragmática e exemplar de história assentada no tempo linear era a bússola padrão (GUIMARÃES, 1998). Assim, na perspectiva de forjar um lugar de memória e um modelo de história oficial, o IHGB pautava suas diretrizes centrais na coleta e publicação de documentos históricos sobre as diferentes regiões do Império. A fundamentação de um tempo nacional empreendido pelos modernistas dever ser entendida em consonância com as peculiaridades do movimento ensejado pelo desejo de inserção do Brasil no “concerto das nações civilizadas” (MORAES, 1978, p. 71). Passado o deslumbramento de renovação estética em sua primeira fase, todo o esforço do Modernismo foi direcionado para a construção de um projeto de cultura nacional assentado na dialética do local e do universal (CANDIDO, 2000). Na perspectiva de um nacionalismo universalista, foi-se delineando um passado a partir daquilo que nos individualiza e nos singulariza: a consciência do sentido de uma arte e de uma cultura nacionais levou os modernistas ao encontro dos testemunhos do passado colonial como signo do Brasil moderno. Nas representações da brasilidade procurada, o passado reelaborado é o tempo de origens da nação. Ali onde se encontra a tradição, os modernistas elegeram Minas Gerais e o barroco como berço da nação civilizada. Não é a toa que Mário de Andrade, já em 1919, fez sua primeira viagem às cidades históricas 35 do século XVIII, desconfiado estava que ali existiu uma primeira manifestação artisticamente brasileira. “É um fóssil, necessitando ainda de classificação, de que pouca gente ouviu falar e ninguém incomoda” (ANDRADE, 1972), declarou o poeta tomando para si essa missão. Já na companhia de outros modernistas que viajavam a Minas Gerais em 1924, é Malazarte quem relata: “Estávamos em busca de arte e de passado” (ANDRADE, 1972). Interessante observar que essas e outras viagens de descoberta do Brasil, representam a obsessiva tentativa do pai de Macunaíma de construção da nação. Aqui, o passado seria matéria-prima a ser resgatada como referencial. Não um passado que não existe mais, mas sim aquele que manifestado nas diferentes temporalidades confere sentidos às coisas mais comezinhas encontradas nas camadas sobrepostas do tecido social. A partir da experiência e aprendizado – de viajante e Diretor de Departamento de Cultura do Município de São Paulo –, Mário de Andrade organizou a Missão de Pesquisas Folclóricas (1936), de base etnográfica, e protagonizou uma de suas maiores contribuições para a história das práticas de preservação no Brasil materializada em seu “inventário dos sentidos” (NOGUEIRA, 2005). Foi justamente do reconhecimento dessa experiência e engajamento dos intelectuais modernistas, encabeçados por Mário de Andrade, que surgiu um movimento de defesa e proteção dos monumentos históricos e artísticos nacionais culminando, na década de 1930, no processo de institucionalização das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil em nível federal. Em 1936, a pedido do ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, Mário de Andrade elaborou o anteprojeto que serviu de base para o decreto-lei 25/37 de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Antes disso, entretanto, é preciso reconhecermos que outras iniciativas já vinham se processando na área do patrimônio cultural como é o caso da fundação do Museu Histórico Nacional (1922), da criação das Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos: Minas Gerais (1926), Bahia (1927) e Pernambuco (1928),até a criação da Inspetoria de Patrimônios Nacionais, em 1934, subordinada à direção do Museu Histórico Nacional, representada por Gustavo Barroso. Nesse processo, um marco 36 importante para a história do pensamento preservacionista no Brasil foi a promulgação do decreto 22.298, de 12 de julho de 1933. Realizada por Getúlio Vargas, tal ação significou a elevação de Ouro Preto à categoria de monumento nacional. Além de assegurar que aquele passado histórico e estético, sagrado e cívico fosse protegido, o documento revelou uma concepção de patrimônio que elegeu como nosso primeiro monumento o espaço/tempo da cidade, sacralizando o lugar fundador da nação civilizada. Ali, a ideia de nação civilizada manifestada no barroco colonial mineiro colocou, no centro do debate, a natureza mesma do “ser histórico” e os usos do passado na construção de um Brasil moderno. Ainda na década de 1930, a criação do SPHAN (1937) pode ser observada como parte de uma conjuntura política explicitada em várias ações que marcaram o projeto ideológico do Estado varguista como agente fundamental na construção simbólica da nação. Mesmo que o decreto-lei 25/37 tenha restringido a concepção de arte patrimonial de Mário de Andrade, que procurava abarcar todas as manifestações e expressões do povo brasileiro, incluindo nas oito categorias de arte, além dos bens móveis e imóveis de valor histórico e artístico, a arte arqueológica, a arte ameríndia e a arte popular, a vitória dos modernistas foi constituída por meio de lutas, conflitos e negociações no interior do próprio Estado e de sua concepção sobre política preservacionista. O referido decreto trouxe, junto com a concepção de patrimônio fundado nos valores de monumentalidade e excepcionalidade, o tombamento e o restauro como instrumentos de preservação. O inventário, embora constasse no decreto, ficou relegado a um segundo plano, como reconheceu o próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do SPHAN (1937-1967). O tombamento, por sua vez, ganhou centralidade e contribuiu para a construção de um conceito hegemônico de patrimônio nacional que marcou a chamada fase da “sacralização da memória em pedra e cal” (CHUVA, 2009; FONSECA, 1997; NOGUEIRA, 1995, 2005; RUBINO, 1991). Diante dos impasses que envolviam os bens móveis e imóveis patrimonializados na complexa relação entre público e privado, o tombamento se apresentou como solução normativa viável. Entretanto, para além de seu caráter 37 técnico e legal, é preciso percebê-lo como um dispositivo que tem o poder nomeador de construir uma representação da nação – a partir das escolhas e dos valores atribuídos a bens patrimonializados – fundada em um continuum temporal. Segundo Julia Wagner Pereira (2012, p. 166), “ao recontextualizar o bem, remetendo-o simbolicamente a um espaço-tempo histórico-mítico, o tombamento acrescenta-lhe novos significados, que permitem transcender sua existência comum, passando a pertencer concomitantemente ao passado e ao presente”. A conformação de um quadro simbólico de legitimação da nação foi se configurando, no interior da política de preservação do patrimônio cultural do SPHAN, à medida que o “rito do tombamento” (KERSTEN, 2000, p. 49-50) conferia, ao conjunto do patrimônio cultural selecionado, status de documentos da nação, passível, portanto, de uma releitura do passado em articulação com um futuro a ser construído. Nesse processo, o resgate do passado para lançar-se ao futuro aproximou-se do ideário estado novista. Conhecer o passado e a tradição passou a ser visto como determinante para o projeto de construção de uma nova consciência para o futuro (OLIVEIRA, 2008, p. 122). Na construção da representação da nação, concomitantemente, foram dispostos um repertório de bens de excepcional valor e os conceitos clássicos de história e de cultura – respectivamente a oficial e a erudita – que caracterizaram sobremaneira a “fase heróica” do SPHAN, a “sacralização da memória em pedra e cal” (NOGUEIRA, 1995). Nesse sentido, costurou-se uma perspectiva elitista e redutora desenhada pela herança europeia decorrente da seleção dos exemplares arquitetônicos e artísticos do período colonial. Enfim, era preciso “autenticar” o Brasil como forma de garantia da entrada do país na “história universal das civilizações” (CHUVA, 2009). Mesmo diante das alterações contundentes dos anos 1930 no âmbito das ciências humanas, em virtude das análises inclusivas de Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ou, mesmo antes, com os trabalhos do historiador cearense Capistrano de Abreu, não houve incorporação do legado cultural e histórico de múltiplas etnias. Assim, no novo desenho sobre a Nação, ficavam de fora as contribuições de índios e africanos, principalmente no que tange à nossa língua, costumes, religião, modos de morar, de cultivar, de comer, de festejar, etc. Na tradição preservacionista que vigorou até a década de 1970, também ficaram de 38 fora as contribuições dos imigrantes e a chamada tradição popular com suas festas e folguedos, de cunho religioso ou profano. Todo esse conjunto de manifestações foi alvo de interesse de folcloristas (Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB), etnólogos e antropólogos que, durante boa parte do século XX, foram aprimorando uma metodologia de inventário e registro, segundo as acepções diferenciadas do popular e do lugar institucional ao qual pertenciam. A partir da década de 1970, uma nova relação entre patrimônio cultural e identidades começou a se configurar. Se, como mostrou Hartog, esse é o momento de uma virada em que a questão do patrimônio se transformou em dever de memória; em termos globais, o tempo nacional, que fundamentava uma singularidade nacional, desdobrou-se numa pluralidade de singularidades locais, tangíveis e intangíveis, mas, ainda assim, em diálogo com o nacional. É o momento em que o campo do patrimônio se torna mais complexo “levado a refletir sobre novas possibilidades de fronteiras ou clivagens, motivadas por outras dimensões de pertencimento que não à nação” (CHUVA, 2012, p. 73). Os estudos de Sérgio Miceli (1984), Renato Ortiz (1994), Alexandre Barbalho (1998) e Lia Calabre (2009) têm sido de fundamental importância para compreender os novos domínios da cultura no contexto do regime militar brasileiro. A formulação do Plano Nacional da Cultura em par com as metas da política de desenvolvimento social integradas nos Planos de Nacionais de Desenvolvimento 39 (PNDs) vai incidir diretamente nos órgãos de preservação da cultura quais sejam: o IPHAN e a CDFB. Nessa trajetória de mudanças, os primeiros sintomas de uma nova orientação voltada para a identificação da diversidade e o registro do popular ocorrem com a criação do Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC (1975), posteriormente integrado à Fundação Nacional Pró-Memória (1979) por Aloisio Magalhães, portanto, um espaço fora do âmbito do Ministério da Educação e Cultura – MEC e da alçada do IPHAN. Mostrando-se ressonância do projeto andradino para o patrimônio, distingue- se deste à medida que opera com o conceito de bem cultural como dispositivo capaz de identificar toda a dinâmica cultural como patrimônio. Com o objetivo de proceder ao “referenciamento da dinâmica cultural brasileira”, vários inventários foram realizados com o propósito de catalisar a ideia de um “patrimônio não consagrado” consubstanciado na reelaboração da noção de cultura e, sobretudo, de cultura popular (FONSECA, 1997, 2008; MAGALHÃES, 1985). Segundo o discurso de Aloisio Magalhães, o atrelamento da cultura ao desenvolvimento do país passa pelo reconhecimento de uma cultura “viva”, um patrimônio ainda não reconhecido, mas importante indicador para uma opção interna de desenvolvimento. Com vistas à elaboração de “indicadores”
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