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TEORIA DA IMAGEM Mariana Araújo Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir o que é imaginário. � Compreender os processos de percepção e interpretação de conteúdo. � Reconhecer as intenções presentes na imagem. Introdução Como você sabe, há muitos aspectos envolvidos na apreensão de uma imagem. Dependendo da característica considerada ou do ponto de vista assumido, uma mesma referência pode adquirir conotações distintas. Neste capítulo, você vai ver como o imaginário — ou seja, os valores, como os históricos e afetivos, relacionados a determinados conceitos — é importante na construção de sentidos. Também vai estudar os processos de interpretação e percepção, que envolvem diferentes etapas. Por fim, vai verificar como a intenção do autor e a do receptor de determinada imagem se relacionam e dialogam. O que é imaginário? Ao ouvir a palavra “imaginário”, de quais ideias e conceitos você se lembra? Esse é um tema analisado por estudiosos de diversos campos do saber, tais como a psicanálise, a filosofia e a antropologia. Apesar do muito que já foi investigado, há sempre novos elementos a serem avaliados. Segundo François Laplantine e Liana Trindade (1997), o “imaginário” está no campo das representações, porém não é uma tradução reprodutora ou uma simples transposição de ima- gens. Para eles, “representação” indica a tradução de uma realidade exterior percebida e está ligada à abstração, à imagem que se tem de algo concreto ou abstrato. Já o imaginário se refere não apenas a conceitos conhecidos, mas também à história e a valores afetivos imbricados naquele contexto. Considere a universidade, por exemplo. A representação dessa instituição acadêmica refere-se às ideias em que se processam os conceitos a respeito dela. O “imaginário” está dentro desse âmbito também, mas além disso considera as narrativas históricas sobre a universidade, os sentimentos, os valores, as emoções e as expectativas relacionadas a ela. Outro aspecto interessante em relação ao imaginário é que ele é construído e expresso pelos “símbolos”. Por sua vez, os símbolos são constituídos por aspectos formais, os significantes, e por conteúdos, os significados. Esses são polissemânticos e, apesar de serem guiados pelos significantes, ultrapassam- -nos e ganham sentidos que vão além. Sendo assim, o imaginário consiste, forma e expressa símbolos. Já a imaginação científica tem outro sentido. Ela é limitada pela razão conceitual e é expressa em signos. Diferentemente dos símbolos, os signos estão ligados de forma direta ao significante, e os signi- ficados correspondentes estão dentro dos limites do campo da representação formal (LAPLANTINE; TRINDADE, 1997). É importante você notar que imaginário não quer dizer que não exista razão. Na verdade, o imaginário não responde a uma lógica de raciocínios demonstráveis e prováveis. Esse seria o caso da imaginação científica (LAPLANTINE; TRINDADE, 1997). A razão, no âmbito do imaginário, desafia a lógica formal: não contraria o real, mas o recria e reestrutura. Assim, cria uma outra lógica. O imaginário está comprometido com o real, não com a realidade, pois conceitualmente a realidade se refere às coisas em si, à natureza. Já o real indica interpretação, representação atribuída pelos homens às coisas e à natureza. Dessa forma, se o imaginário recria a realidade, está no campo da interpretação, no campo do real (LAPLANTINE; TRINDADE, 1997). Dentro das atividades do imaginário, distingue-se o universo da fantasia, em que se encontram o maravilhoso e o fantástico. A fantasia, além de propor uma nova realidade com as suas próprias regras e normas, também cria um Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem166 outro real, ultrapassando as representações da sociedade. Esse real possui uma lógica própria, que é compartilhada pelo coletivo e desafia a descrença relacionada à existência de seres extraordinários (LAPLANTINE; TRIN- DADE, 2003). Em relação à produção de deuses no imaginário, o real é dado pelas interpretações religiosas, assim como as atitudes de Dom Quixote, por exemplo, seguem os parâmetros das representações medievais. O conceito de “imaginário” é tratado por grandes nomes em diferentes áreas do conhecimento. De um lado, estão as diversas teorias funcionalistas, estruturalistas, hermenêuticas, fenomenológicas e cognitivistas que dão uma ênfase maior ao nível consciente em relação ao inconsciente. Nesses casos, imagem, imaginário e símbolo são diferentes de acordo com as relações que se estabelecem entre os termos. Os símbolos seriam então esquemas de ações intencionais criados nas interações entre as pessoas num dado contexto. De outro lado, está a escola antropológica e filosófica substancialista (com nomes como Gilbert Durand, Paul Ricouer e Mircea Eliade) e a psicologia analítica de Jung. Segundo essa perspectiva neoplatônica, imaginário e símbolo são sinônimos do simbólico, são provenientes do inconsciente universal e que não pode ser reduzido a significados históricos e culturais aplicados pelos seres humanos. Complexificando um pouco mais a discussão a esse respeito, é impor- tante que você conheça a perspectiva do filósofo francês Jean-Paul Sartre. O pensador escreveu Imaginação em 1936, obra que é considerada o primeiro trabalho que trata o imaginário como uma ruptura com o real. Mais tarde, em 1940, é publicada uma obra mais completa do autor intitulada Imaginário. Nessa publicação, Sartre trata com profundidade da consciência e investiga o processo de apreensão do real. Para ele, a consciência é um “reflexo refle- xivo”. O filósofo também aborda a questão da obra de arte, principalmente o fenômeno musical, buscando elucidar o modo como a consciência o integra (DUDOGNON, 2014). Para Sartre, existem três modalidades de consciência: a perceptiva, a reflexiva e a imaginante. Ele foca a atenção na consciência imaginante, pois é ela que oferece a possibilidade de imaginar. A consciência humana aplica às imagens uma forma de “afetividade” (DUDOGNON, 2014). Dessa forma, o ato da imaginação é particularmente regulado por certas “reações afetivas”. De acordo com o filósofo, a imagem é um ato da consciência imaginante, um produto de uma atividade consciente. A imagem é o modo como um objeto se oferece à consciência. Ela é também uma certeza, na perspectiva de que a pessoa conhece a imagem que imagina. O objeto surge para a consciência como uma ausência absoluta; o que nasce imediatamente na consciência é a imagem 167Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem do objeto. A imagem, então, está associada a conhecimentos adquiridos ante- riormente em referência ao objeto que é representado por ela (DUDOGNON, 2014). Dessa forma, segundo o pensador, a imagem não apreende elementos além dos que podem ser extraídos do objeto a que se refere. Sartre aborda também a questão da “ilusão da imanência”. Refere-se à crença de que o objeto imaginado está situado dentro da imagem. De acordo com ele, a imagem é apenas a ideia formada a partir do que surge no mundo exterior, dessa forma o objeto não existe por meio da imagem. Além disso, a imagem não contém nada que pertença unicamente ao real (DUDOGNON, 2014). Assim, segundo a perspectiva sartriana, não há como a ideia, que tem natureza intríseca, coincidir com o objeto que é extrínseco. Entre os objetos do real que são dados à consciência, Sartre se debruça sobre alguns, entre eles o signo, pois trata-se de um objeto com significação fundamental. Necessariamente, o signo precisa ser interpretado pela cons- ciência para alcançar a sua totalidade. Ele pode ser um pequeno traço num papel, mas corresponde a algo, pois para ser um signo é preciso que haja uma significação por trás dele. Mesmo se a significação de um signo não é conhecida, sabe-se quehá algo a ser dito ali. Um exemplo é uma nota musical que “quer” expressar determinado som (DUDOGNON, 2014). Figura 1. As notas musicais são exemplos de signos. Fonte: Shutterstock (ID da imagem: 615030032). Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem168 Sartre concebeu também a teoria de nadificação, que etmologicamente quer dizer “reduzir a nada”. No final das contas, para o filósofo francês a consciência é um nada, e o objeto não é um ser no mundo, um ser em si ou uma realidade exterior: torna-se um nada. A nadificação refere-se ao ato de colocar o ser como um fenômeno. Trata-se não de aniquilar o objeto, mas de retirá-lo de uma realidade de que ele não toma parte. Nadificação é então o processo pelo qual a consciência, exercendo o seu próprio modo de ser, toma para si o que é em si e dessa forma o anula. As imagens, segundo esse pensamento, não fazem parte do campo do real, não podem aparecer na realidade; uma imagem mental aparece já num espaço imaginário, que não existe e não está sujeito a uma marcação de tempo (DUDOGNON, 2014). A reprodução de um objeto na mente é imperfeita e irreal, é pessoal, e portanto está marcada pela subjetividade e ao mesmo tempo baseada na realidade (DUDOGNON, 2014). Na consciência imaginante, os objetos são representados de forma global e são vistos grosseiramente. Sartre se opôs a muitos dos seus antecessores — estes haviam promovido a ideia de que o mundo só tem sentido no momento em que ele existe na consciência. Para o filósofo francês, esse pensamento é falso, porque é a consciência que dá sentido ao mundo real (DUDOGNON, 2014). Como você deve imaginar, as concepções de Sartre sobre imaginá- rio não são unanimidade. O francês Gilbert Durand (1921–2012) dedicou grande parte dos seus trabalhos aos estudos sobre imaginário e mitologia. De acordo com ele (DURAND, 1989), Sartre, apesar de ter censurado a coisificação da imagem por parte de psicólogos clássicos e de utilizar o método fenomenológico, falhou ao não consultar a poesia e a morfologia das religiões que constituem o patrimônio imaginário da humanidade. Durand (1989) chama a atenção para o fato de que Sartre, ao final de sua obra, expressou a imagem como uma sombra de um objeto e também como um objeto fantasma. Para Durand (1989), ao concluir o seu trabalho, Sartre faz um retorno ao cartesianismo. Segundo Gilbert Durand (1989), imaginário é “O conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado do homo sapiens”. Trata-se 169Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem da capacidade, tanto do indivíduo quanto da coletividade, de dar sentido ao mundo; corresponde às imagens inter-relacionadas que dão significado às coisas que existem. Gaston Bachelard, de quem Durand foi aluno, elaborou quatro categorias do imaginário a partir da experiência humana com os elementos naturais: ar, fogo, água e terra. Já Durand (1989) se baseou na teoria reflexológica, investigada pelo psicólogo russo Vladimir Betcherev. Essa teoria identifica a dominante postural e a dominante de nutrição em recém-nascidos. Sendo assim, Durand (1989) tirou o foco da matéria enquanto fonte formadora do imaginário e associou o imaginário à questão da dinâmica corporal. Como você já sabe, o campo da psicanálise também se debruça sobre o tema do imaginário. Com o intuito de realizar uma interpretação psicanalítica dos três paradigmas da imagem, em Imagem — Cognição, Semiótica e Mídia, Lucia Santaella e Winfried Nöth (1998) fazem uma analogia do pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico (paradigmas da imagem) com o imaginário, o real e o simbólico (registros psicanalíticos da dimensão psíquica humana), respectivamente. Ao realizar uma releitura da obra de Freud, Jacques Lacan fez desses três registros, também chamados categorias conceituais, a base estrutural do funcionamento psíquico. O registro imaginário é o que mais se aproxima dos problemas na imagem. Ele corresponde ao ego (ao eu) do sujeito, cujo investimento libidinal foi chamado por Freud de narcisismo. O eu então pode ser comparado a Narciso (o autoadmirador da mitologia grega): ama a si mesmo e também a imagem de si mesmo que vê no outro; e essa imagem projetada é fonte de amor, paixão, desejo de reconhecimento, mas também de agressividade e competição (QUINET apud SANTAELLA; NÖTH, 1998). Freud (2010), na obra Introdução ao Narcisismo, explicou que o eu é cons- truído, pois não existe uma unidade compatível ao eu do indivíduo. Mais tarde, Lacan desdobrou o tema do desenvolvimento da função do eu no trabalho sobre o estágio do espelho. Lacan se utilizou do esquema óptico para introduzir, além da questão do eu, a questão do sujeito na relação especular (SANTAELLA; NÖTH, 1998). Nesse contexto, o estágio do espelho refere-se à fase da criança com idade entre seis e 18 meses de se olhar e começar a se reconhecer naquela imagem. Baseado na teoria de Bolk (o lactente humano seria um prematuro no nascimento do ponto de vista fisiológico), Lacan (apud SANTAELLA; NÖTH, 1998) explica esse interesse da criança. Para o psicanalista francês (LACAN apud SANTAELLA; NÖTH, 1998), se a criança exprime alegria ao se reconhecer no espelho é devido ao fato de que a completeza da forma se Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem170 antecipa em relação ao que quis atingir. A imagem captura a criança, que por sua vez se identifica com ela. Essa observação levou Lacan a refletir sobre a alienação imaginária: o ser humano se identifica com a imagem de outro, isso é constitutivo do eu; dessa forma, o desenvolvimento do ser humano está relacionado a identificações ideais. Sendo assim, o eu se constitui durante o “estágio do espelho”. A partir da imagem especular, se dá um jogo paradoxal de formação da identidade, uma referência ao eu e ao outro. Nessa perspectiva, o eu seria então senhor e servo do imaginário, pois ele se projeta nas imagens em que se espelha, no imaginário da natureza, do corpo, da mente e das relações sociais. A consciência acredita se encontrar no espelho e fica perdida naquilo que ela não é. Esse aspecto pode ser comparado à própria condição humana, que busca uma completude, que acredita poder ser alcançada; mas o que há são miragens encenando um sentido que na verdade não está ali (LACAN apud SANTAELLA; NÖTH, 1998). Por conceito, as imagens artesanais, representantes do paradigma pré- -fotográfico, são aquelas produzidas de forma artesanal e dependentes das habilidades manuais de alguém; podem ser desenhos, pinturas, gravuras ou esculturas. Sabendo disso, é possível traçar um paralelo entre o paradigma pré-fotográfico e o imaginário: as analogias estão expressas na relação entre a imagem artesanal e a natureza e o corpo. Como se trata de produção manual, o corpo está ali presente no olhar, na mão e nos gestos daquele objeto que é projetado numa superfície por meio do que o artista imagina. Essa imagem surge de um olhar transfigurador do objeto; existe então uma imagem de mundo que é configurada numa unidade ideal, num todo único (SANTAELLA; NÖTH, 1998). Trata-se de uma imagem criada pelo artista com o objetivo de capturar o imaginário do observador, já que o eu se projeta nas imagens em que se espelha. A imagem também provoca ilusão na medida em que pretende ser completa (SANTAELLA; NÖTH, 1998). Na Figura 2, você pode con- ferir uma cena cotidiana familiar na Europa do século XVII. Essa é uma imagem com a qual espectadores, como membros de suas famílias, podem se identificar. 171Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem Figura 2. Murillo (1617/18–1682). A Sagrada Família com o Passarinho, 1650 (Óleo sobre tela, 144 X 188 cm. Museo del Prado, Madrid, Espanha). Fonte: Kloeckner (c2018). Já o “real”, do ponto de vista dos trabalhos de Lacan, é tudo aquilo que não pode ser simbolizado, é o que resta, o que o simbólico não captura. Paraele, não há adequação entre o objeto e a sua imagem para o ser falante. A partir daí, questiona-se como a imaginação pode cumprir a sua função se ela existe em desordem; e ainda como são articulados o mundo imaginário e o mundo real na economia psíquica do ser falante. O paradigma fotográfico surge justamente nessa linha entre o imaginário e o real. A fotografia é sempre um recorte, uma fatia de espaço-tempo. Ao contrário do pintor, o fotógrafo faz o seu trabalho como se estivesse sempre com um cinzel ou mesmo uma navalha cortando o mundo que o cerca (DUBOIS apud SANTAELLA; NÖTH, 1998). Sendo assim, por ser um fragmento captado da natureza, a fotografia desfaz a ideia de unidade. Nesse sentido, quanto mais uma máquina fotográfica é aperfeiçoada para a captação de imagens de objetos, mais evidente é o fato de que aquela imagem não pode ser igual ao que deu origem ao registro. O ritmo do mundo e da capacidade de registro são distintos, e aquilo que não é capturado na imagem é o real. Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem172 O paradigma pós-fotográfico refere-se às imagens visualizadas em telas de vídeo, constituídas de números em pontos elementares (pixels). Essas imagens buscam uma simulação da realidade. Há a possibilidade de simular experiências sobre um objeto do real fora do tempo e do espaço. A partir disso, você deve saber também que o simbólico, na obra de Lacan, é a voz do Outro. Lacan (apud SANTAELLA; NÖTH, 1998) diferencia o sentido de “outro”, com letra minúscula, e “Outro”, com letra maiúscula. Para ele, o “Outro” refere-se ao discurso universal, àquilo que é tido como verdade, a um discurso que está além daquele a quem se dirige. Sendo assim, “[...] enquanto as formações imaginárias das imagens no paradigma pré-fotográfico esfu- mam as relações do sujeito com o grande Outro, na imagem pós-fotográfica, imagem numérica, simbólica por excelência, a dimensão da exterioridade do grande Outro põe em cena a posição excêntrica do sujeito.” (LACAN apud SANTAELLA; NÖTH, 1998). Percepção e interpretação de conteúdo Charles Sanders Peirce foi um filósofo, cientista, linguista e matemático americano. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à semiótica e a outros campos do saber. De acordo com Peirce, todo fenômeno pode ser classificado em três categorias, denominadas “primeiridade”, “secundidade” e “terceiridade”; elas fazem referência às três fases operativas do processo de percepção dos signos (MELO; MELO, 2014). A primeiridade é a percepção primária, está relacionada ao sentir. O signo é percebido pelos elementos vinculados à emoção, à sensação e ao sentimento, tais como as cores, formas e texturas. Além disso, a ideia de liberdade está associada à noção de primeira percepção, pois, se é a primeira, não há nada antes cerceando a liberdade. Quando um indivíduo contempla a natureza ou uma paisagem, por exemplo, percebe-se essa liberdade associada a essa primeira fase do processo de percepção dos signos. Afinal, o estado de des- lumbramento faz com que a mente fique centrada naquela paisagem, livre de pensamentos. O mesmo pode ocorrer quando um ser humano está diante de manifestações artísticas como a música, o teatro, a dança; e ainda diante de descobertas científicas (MELO; MELO, 2014). 173Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem Figura 3. A contemplação de uma paisagem está associada à liberdade da primeira fase do processo de percepção dos signos. Fonte: Anna Issakova/Shutterstock.com A secundidade é a percepção secundária, ocorre quando o signo é percebido como mensagem ao ser decomposto em relações e associações. Nessa fase, existe um conflito entre a consciência e o signo, pois ela busca entendê-lo. Você deve saber, portanto, que nesse momento se dá a materialidade da experiência. É que as qualidades típicas da primeiridade precisam estar constituídas numa matéria (MELO; MELO, 2014). A secundidade acontece depois do sentimento e antes do pensamento articulado. Por último, a terceiridade, terceira categoria, constitui a percepção final. Num contexto de várias significações possíveis, a leitura do signo é simbólica. Essa categoria está relacionada à ideia de mediação, isso porque há uma ponte entre a experiência de liberdade (primeiridade) e os acontecimentos e os fatos (secundidade); essa é a natureza do pensamento. Por meio da terceiridade, o mundo é representado e interpretado pelas pessoas. “Em resumo, a consciência da qualidade — sem qualquer relação ou análise — é a primeira; a consciência do outro — que reage — é a segunda; e a consciência sintetizadora — que aprende — é a terceira.” (GHIZZI apud MELO; MELO, 2014, p. 29). Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem174 Como você viu, a primeiridade (o sentir), meros sentimento e emoções, é tudo que se apresenta à consciência num determinado instante. Ela é composta pela variedade de qualidades de sentimentos de interioridade vivenciados em determinado momento. É espontânea e imediata, original e livre. A secundidade (o reagir) é a percepção, as ações e reações. É a reflexão envolvida nesse processo, quando surgem as referências que permitirão inferências que levarão a um terceiro. Por fim, a terceiridade (o pensar) são os discursos e pensamentos. É o que se segue ao sentimento e ao conflito, à resistência. É a “camada da inteligibilidade”, é a conceituação, a interpretação, a aprendizagem, a análise e o pensamento (MELO; MELO, 2014). Você já sabe que um signo representa uma outra coisa, um objeto. Quando o signo representa o objeto para um intérprete, este terá em sua mente alguma outra coisa que está relacionada àquele objeto. O objeto inicial não vai ser repetido de forma igual na mente do intérprete, a imagem na mente do intérprete já tem outra forma diferente da que a originou. Esse processo de significação é a “semiose”, denominação de Peirce (MELO; MELO, 2014). O signo é algo que se apresenta à mente e está ligado a um segundo elemento, aquilo a que ele se refere; e a um terceiro, o efeito interpretativo provocado no intérprete, chamado interpretante do signo. Percebe-se assim que existe um signo primeiro fundamental que não se remete diretamente ao objeto em questão, pois ele precisa do interpretante, ou seja, um terceiro. “Tomemos um grito, por exemplo, devido a propriedades ou qualidades que lhe são próprias [seu fundamento/momento primeiro] (um grito não é um murmúrio), ele representa algo que não é o próprio grito, isto é, indica que aquele que grita está, naquele exato momento, em apuros ou sofre alguma dor ou regozija-se na alegria (essas diferenças dependem da qualidade específica do grito). Isso que é representado pelo signo, quer dizer, ao que ele se refere, é chamado de seu objeto [momento segundo]. Ora, dependendo do tipo de referência do signo, se ele se refere ao apuro, ou ao sofrimento ou à alegria de alguém, provocará em um receptor um certo efeito interpretativo: correr para ajudar, ignorar, gritar junto, etc. Esse efeito é o interpretante [momento terceiro]” (SANTAELLA, 2002 apud MELO; MELO, 2014, p. 32). 175Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem Em resumo, o fundamento é tudo aquilo que faz o signo operar como tal. O objeto, por sua vez, é alguma coisa que está fora do signo, além dele; está ausente, mas se torna presente. Já o interpretante é um signo adicional e é resultado do que o signo produz numa mente que interpreta (SANTAELLA, 2001 apud MELO; MELO, 2014). As intenções presentes na imagem Uma das grandes interrogações a respeito de uma interpretação justa das imagens é: a interpretação corresponde ao que o autor intenciona? Ou deforma o que ele pretendia? Dessa forma, o problema da interpretação das imagens é posto em questão, assim como a natureza da interação entre autor, obra e público (JOLY, 2007). É sabido que uma imagem é produto da mente conscientee inconsciente do sujeito; que constitui uma obra concreta e que pode ser percebida; que a sua leitura a faz se perpetuar; e que mexe tanto com o consciente quanto com o inconsciente do espectador. Dificilmente esses momentos coincidem, mas não se pode deixar de interpretar uma determinada obra por não se saber quais são de fato as intenções do autor. É que sobre o que autor quis comunicar não se sabe (JOLY, 2007). O próprio autor não tem como dominar a significação da mensagem feita por ele, já que o espectador pode ser de outra época, outro país e ter expectativas distintas. Sendo assim, interpretar uma mensagem não é compreender a mente do autor, e sim entender quais são as possíveis significações dentro do contexto, separando o que é pessoal do que é coletivo. O interessante é observar e examinar a imagem, de forma a compreender o que ela suscita e comparar as diversas interpretações. O resultado desse confronto poderia então ser considerado uma interpretação razoável naquele dado momento, dado local, diante daquele contexto (JOLY, 2007). É muito importante, ao analisar uma imagem, saber em que posição se está — a da recepção. Assumir essa posição não implica invalidar a necessidade de se estudar a história do aparecimento e da recepção da mensagem. É interessante você observar que ainda existe uma resistência à analise de imagens das obras de arte. Isso porque o domínio da arte é considerado mais como resultado da expressão do que da comunicação. Além disso, existe uma imagem do artista reproduzida pela civilização. Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem176 “De uma maneira geral, podemos dizer que enquanto uma obra de arte ou uma imagem permaneceu como uma produção coletiva e anônima, tal indicava que a obra estava ao serviço de uma religião, de um rito ou, num sentido mais lato, de uma função mágica. A necessidade de nomear o artista manifesta uma visão da arte enquanto tal, isto é, como busca de um objetivo estético específico — ideia que a arte pela arte levou ao limite — e que se afirma no desejo crescente de ligar o nome do mestre à sua obra. Desde a Antiguidade grega que alguns textos nos revelam o nome de artistas (como Zêuxis ou Apeles) e inauguram uma tradição de biografias de artistas no Ocidente. Apesar de este fato permanecer ainda raro na Idade Média, a figura do artista, através da sua biografia, adquire um estatuto autônomo. A leitura destes textos (desde a Anti- guidade até aos nossos dias, passando pelo Renascimento) revela bem uma evolução histórica da imagem do artista que afasta, embora não suplante por completo, os antigos modelos do crescente respeito atribuído à criatividade do divino artista. Qualquer que seja o mundo marginal em que o artista se movimenta (da corte do príncipe à boemia), este não se encontra isolado: pertence à grande família dos gênios. A maior parte das vezes o artista caracteriza-se pela sua precocidade, pelo seu virtuosismo, pelo caráter enigmático ou pelos poderes quase mágicos.” (JOLY, 2007, p. 50) 177Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem DUDOGNON, A. O imaginário ou a nadificação do mundo por Jean-Paul Sartre. Per- formatus, ano 2, n. 8, jan. 2014. Disponível em: <https://performatus.net/traducoes/ jean-paul-sartre/>. Acesso em: 29 jan. 2018. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Presença, 1989. FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, S. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-50. JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Lisboa: 70, 2007. KLOECKNER, F. Bartolomé Esteban Perez MURILLO (1617/1618-1682). Porto Alegre: UFRGS, c2018. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/napead/repositorio/objetos/historia- -arte/idmod.php?p=murillo/>. Acesso em: 29 jan. 2018. LAPLANTINE, F.; TRINDADE, L. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997. (Coleção Primeiros Passos, 309). MELO, D. P.; MELO, V. P. O modo como os fenômenos se apresentam à mente. In: MELO, D. P.; MELO, V. P. Uma introdução à semiótica peirceana. Guarapuava: Unicentro, 2014. p. 25-29. SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. Leitura recomendada LIMA, G. D. Imaginário: a teoria do imaginário segundo Gilbert Durand. [S.l.]: Ima- ginário, 2011. Disponível em: <http://guiomardutralima.blogspot.com.br/>. Acesso em: 11 jan. 2018. 179Imaginário, percepção e interpretação: as intenções presentes na imagem
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