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diálogos e convergências 2018 Régia Agostinho da Silva Marcus Vinícius Baccega (Organizadores) diálogos e convergências São Luís Copyright © 2018 by Régia Agostinho da Silva; Marcus Vinícius Baccega Editoração: Café & Lápis Revisão: Claunísio Amorim Carvalho Diagramação: Germana Costa Queiroz Carvalho Capa: Marísio Amorim Carvalho Ilustração da capa: Dom Quixote lendo romances de cavalaria (desenho de Gregorio Valle; fotogravura de F. González). Retirada do livro El romanceiro del Quijote, de Federico Lafuente, Madrid: Libreria de Fernando Fé, 1916, p. 11. Dados da Catalogação Anglo-American Cataloguing Rules Marcelo Diniz - Bibliotecário CRB 2/1533 _________________________________________________________________ L645 Letras e veredas da História: diálogos e convergências. / Régia Agostinho da Silva, Marcus Vinícius Baccega (organizadores). – São Luís: Café & Lápis; Edufma, 2018. 286 p. Coletânea ISBN 978-85-62485-76-3 (Café & Lápis) ISBN 978-85-7862-724-9 (EDUFMA) 1. Literatura e História. 2. Coletânea de textos. I. Silva, Régia Agostinho da. II. Baccega, Marcus Vinícius. CDD 800 CDU 82+94 (081.1) _______________________________________________________________ Índices de catálogo sistemático: 1. Literatura e História 2. Coletânea de textos Livro publicado com recursos provenientes do Edital n.o 021/2016 - Literatura. Programa de Apoio à Publicação APUB/FAPEMA. - 2018 - CASA EDITORIAL QUEIROZ CARVALHO LTDA. CNPJ 10630734/0001-08 - Inscrição Estadual n.º 12311705-4 E-mail: cafelapis.editora@gmail.com São Luís - MA Telefone: (98) 3181-5720 Letras e Veredas da História 223. 1 Não foram poucas as vezes em que, ao procurar um livro nas estantes duma livraria, aborreci-me por não o encontrar onde deveria estar; depois, surpreendendo-me por encontrá-lo onde eu cria não ser possível. Malgrado a incompetência do responsável por organizar os sempre observei, curioso, o fato de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg, teimar em sair da prateleira de história e ir ter com livros de Guerra e Paz, ladeado por livros de história. É óbvio que esses prosaicos equívocos não trazem matéria algo bem mais denso. Contudo, servem para levantar a questão de que impõem mutuamente há pelo menos duzentos anos – ou, se quisermos, há mais de dois mil anos. Nos períodos de predominância ou de crise por que passou a história enquanto produção de conhecimento, do século XVIII para também a literatura passou por momentos em que tributava pesadas somas à realidade, encontrando na história, ou melhor, na fórmula histórica senda segura, embora dela – da história – sempre quisesse se desvencilhar ou mesmo subsumi-la ao campo maior da narrativa Desse modo, história e literatura – esta como discurso estético 1 - cial. Algumas partes foram suprimidas e outras acrescentadas para comportar o forma- to de capítulo desta coletânea. Essas questões foram também expostas no III Congreso Internacional de Historia y Literatura Latinoamericana y Caribeña, realizado em São Paulo, em novembro de 2016, como parte do III Coloquio Internacional de la ADHILAC-Brasil. HISTÓRIA E LITERATURA: questões de epistemologia e método1 Fabiano Mendes Fabiano Mendes224 . interligadas por ambas serem discurso, por ambas serem verdade, por enfrentarem o real, por quererem sempre encontrar o humano em suas Uma não é a outra e vice-versa, nunca o foram, nunca o serão. Uma está na outra e vice-versa, sempre estiveram, sempre estarão. Mas isso diz tão pouco quanto saber que oxigênio é vital – só quando submersos após alguns minutos é que esse truísmo passa a ser o que separa a vida da morte. Diante da questão incontornável – como se opera a relação história/literatura –, e mais, quando nela se quer mesmo mergulhar, só há uma maneira de se portar: rever a questão e, se possível, contribuir nas discussões que ainda agitam a relação história/literatura a partir dos estudos que envolvem a cultura letrada. Pesavento chamou essa questão de “velha-nova história”, por- que o que se diz sobre ela “tem um sabor de déjà vu, impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se está ‘rein- ventando a roda’”.2 Essa impressão não é falsa nem desabona aquele que tenta redizer algo que hoje ainda parece aborrecer, eriçar ou no mínimo pôr em alerta historiadores que se sentem ameaçados por ainda crerem fazer história de forma anti-interdisciplinar; e para os quais a narrativa, tida por antisséptica, provém de uma conduta cética quanto outro lado, esse redizer é igualmente importante porque lembra que a história não é poesia, não é literatura na sua forma mais imediatamente reconhecida. Se esta última não é sinonímia de mentira, e se a história (mesmo já tendo sido chamada de romance, ou por isso mesmo) não é necessariamente o mesmo que verdade historicamente experimentadas por ambas no trato das realidades passadas aponta para o diferencial do “desejo de verdade” que numa sobreviveu mais que noutra. ... porque ainda é preciso, já que impreciso sempre é São dois os pontos que talvez toquem mais fundo as discussões sobre história e literatura enquanto formas de conhecimento que se 2 PESAVENTO, Sandra J. História e literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, Clélia B. da; MACHADO, Maria C. Tomaz (orgs.). Literatura e história: identidades e fronteiras. Uberlândia-MG: EDUFU, 2006, p. 11. Letras e Veredas da História 225. apartaram (?). Esses pontos são: a relação com o passado e o real perdido esta- belecida a partir da memória e a relação com o presente e a construção do real esta- belecida a partir da narrativa. Assim, memória e narrativa formam a zona pelo lidar com o tempo e com os homens. Antes, porém, de prosseguirmos com o desenvolvimento da discussão sobre os pontos acima listados, creio ser necessário algum esclarecimento sobre o termo literatura. Literatura será tomada aqui como um todo – , o que ainda assim diz pouco sobre o termo –, não havendo maior preocupação em separar gêneros narrativos de gêneros líricos. Esse esforço a menor não deve supor de modo algum desleixo pelas questões internas dos estudos literários; parte. Assim, uma discussão de interesse tanto da história quanto da história literária nos parece ser incontornável. Em recente artigo, cujo tom é de balanço do enfrentamento das questões que atravessam sua ao objeto prioritário desse conhecimento: A matéria-prima do historiador literário é tudo o que se escreveu e que pode ser considerado representativo de uma certa cultura? seu amplo sentido de material escrito sobre uma grande variedade de temas. Ou a sua matéria é o texto literário em sentido estrito, o à comédia, ao drama, em suma, aos gêneros textuais em que predomina a imaginação ou o sentimento, sem relação obrigatória com a verdade atestável dos atos representados? Note-se que este dilema já estava formulado na oposição que Croce fazia entre poesia e não-poesia, englobando nesta última todos os elementos estrutura cultural de uma obra, mas não lhe dariam a identidade poética e artística constituída da síntese de imagem e sentimento, intuição e afetividade (grifo em itálico, do autor; grifo sublinhado, meu).3 A preocupação de Bosi está intimamente ligada às nuances pelas quais o termo literatura passou durante sua construção histórica: do termo de amplo alcance que designava – e de certo modo ainda 3 BOSI, Alfredo. Caminhos entre a literatura e a história. Estudos avançados. São Paulo, v. 19, n. 55, set./dez., 2005, p. 321. Fabiano Mendes226 . qual seja, a “escrita imaginativa”.4 Assim, literatura, quando não usada para designar o conjunto escrito sobre assunto de determinada área a hanseníase) para efeito de estudos que a tomam por objeto e não somente por fonte, o termo vem ao longo do tempo deixando de se confortavelmente no primeiro, e com isso arrastando o olhar do pesquisador que sobre ele se debruça para lançar seus esforços nesse universodas letras imaginativas. Notemos, contudo, que a situação à qual Bosi se refere é bipartida: de um lado, a literatura aparece como um bloco imenso de textos que diante da possibilidade de ser tomado por inteiro estaria muito mais a serviço de uma história da intelligentsia (ou das ideias de longa diacronia) do que mesmo de uma história literá- ria do modo como esta vem se portando; de outro lado, já partindo do pressuposto de que a escolha não tenha sido pelo grande bloco, tem- apenas uma amostra de sua “estrutura cultural”, um transvazar que no cuja preponderância é a da “imaginação” e do “sentimento” e impera o descompromisso com a “verdade atestável dos atos representados” – e isso tudo orquestrado pela alteridade da forma. Imaginação e sentimento versus realidade e verdade. Parece ser mesmo esse jogo de duplas o que fornece as bases para uma rígida e isso parece óbvio. Mas se ela nos aparece como perfeitamente clara, por que então volta e meia literatura e história ombreiam-se no terreno da representação? A questão da memória não desaparece nessa disputa, ao contrário, deixa-a ainda mais complexa à medida que rivaliza também com a própria literatura na qualidade de narrativa testemunhal, e, sendo matriz da história sem ser história – muito embora seja a mais imediata forma de arrostar o tempo – assume papel de mediadora entre o ato e o narrado. 4 Para ver a construção histórica do complexo termo “literatura” e suas derivações, ver: WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 254-259. Letras e Veredas da História 227. Questão epistemológica: memória e narrativa Mas detenhamo-nos aos pontos da questão história/literatura. No verbete “memória”, de História e Memória, Jacques Le Goff conta resumidamente da relação mítica estabelecida entre os homens e os deuses, que tem como mãe Mnemosine (memória): Mnemosine. É a mãe das nove musas, que ela procriou no decurso de nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e de seus altos feitos, preside a poesia lírica. O poeta é, pois, um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro. É a testemunha inspirada dos “tempos antigos”, da Idade Heróica, e por isso da idade das origens.5 Seguindo de perto a exposição de Le Goff, a divinização da memória a teria colocado fora do tempo e transportado a poesia, a ela revelados, para os “mistérios do além”. Esse movimento da memória, “do plano da cosmologia para o da escatologia”, “pode conduzir à história ou distanciar-se dela”.6 Ainda segundo Le Goff: memória e a história. Se, em Platão e em Aristóteles, a memória é uma componente da alma, não se manifesta, contudo, ao nível da sua parte intelectual, mas unicamente de sua parte sensível. E acrescenta, citando Vernant: Para Aristóteles – que distingue a memória propriamente dita, a mnemê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a mamnesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado –, a memória, dessacralizada, laicizada, está “agora incluída no tempo, mas num tempo que permanece, também para Aristóteles, rebelde à inteligibilidade”. 7 5 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. B. Leitão. 5 ed. Campinas-SP: Ed. Unicamp, 2003, p. 433. 6 Id. Ibid., p. 434. 7 Id. Ibid., p. 435. Fabiano Mendes228 . Esse processo cognitivo desenhado em painel por Le Goff desemboca na apropriação dos textos de Aristóteles pelos mestres da escolástica medieval, sobretudo De memoria et reminiscentia, (mneme e anamnesis), indo até a cristianização da memória e de seu uso através de uma retórica católica que ora poderia se afastar da história, ora poderia aproximar-se dela ao ponto de contato com o cotidiano há pouco perdido, como ocorria nas “orações pelos mortos”. De certo modo, esse longo exercício medieval fechava o longuíssimo e complexo processo da passagem da memória oral para a memória escrita, iniciado, segundo Le Goff, na nova técnica de memória: a mnemotecnia (ou mnemônica), desenvolvida pelos gregos a partir da combinação da memória laicizada com a invenção da escrita. poderíamos chamar de segundo processo surgido a partir da moder- nidade renascentista, convém explorar mais detidamente a questão da de todas as variações de direção e diagnóstico que a questão tomou ao longo desses mais de dois mil anos, suas implicações ainda habitam as discussões atuais.8 O legado aristotélico, segundo Le Goff, mais possibilitou a fu- tura aproximação entre memória e história pelo exercício da retórica do que mesmo a efetuou. No entanto, como sugere Paul Ricœur, a mais importante “herança grega” não teria sido propriamente o resultado advindo da relação entre história e memória – caminho seguido por Le na valorização da memória a reforçar a valorização da própria história com a demonstração da intrincada relação entre ambas a partir da conjugação dos tempos. Para o historiador, “a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”.9 A investigação de Ricœur não aponta necessariamente para di- 8 Basta lembrar toda a movimentação provocada por um Roland Barthes, na via linguístico-estruturalista da crítica da verdade histórica, bem como por um Hayden White, cuja perspectiva estética de uma crítica epistemológica da história ao mesmo tempo em que a punha na larga planície da literatura, constrangia-a no estreito canal de um gênero sem força própria. Mais adiante voltaremos a essa discussão. 9 LE GOFF, Op. Cit., p. 471. Letras e Veredas da História 229. rantir que algo ocorreu antes de formarmos sua lembrança”. E tal sen- último da memória continua sendo o passado”.10 Isso provavelmente comum acordo. Contudo, Ricœur traz elementos que não podem ser ignorados pelos historiadores e que estariam no início da formulação ocidental sobre as faculdades de registrar o passado. Para ele, a base socrática, da qual nem Platão nem Aristóteles se desvencilharam, leva ao esmiuçar da questão memória a partir da relação desta com a imaginação. A diferença básica entre Platão e Aristóteles seria que, enquanto aquele fala de memória como “representação presente de uma coisa ausente” e “advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória pela da imaginação”, este último, além de estar “centrado no tema da representação de uma coisa anteriormente percebida, adquirida ou apreendida, preconiza a inclusão da problemática da imagem na da lembrança”, fazendo com que a memória encontre sua indissociável relação com o tempo a partir da vontade e da linguagem.11 Embora Aristóteles avance em relação ao entendimento do papel fundamental do tempo nos mecanismos da memória, a herança platônica foi fundamental para o desenvolvimento de uma outra questão: a da imagem, que não pode ser dissociada da discussão sobre impressão, sobre marca. Acompanhando de perto a explicação de Ricœur, vemos o esforço de captar a ação de marcar que se apresenta de três maneiras: a marca na alma, “marca primeira”; a marca corporal, impressão cerebral; e o rastro escrito num suporte. Das duas primeiras sobressai a associação imediata de passividade diante dos fatos, sofre- 10 RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François; et al. Campinas - SP: Ed. Unicamp, 2007, p. 26. 11 Id. Ibid., p. 27. Esse volteio estabelecido, agora cercando história e memória com outros elementos como imaginação e linguagem, serve para percebermos que do lado de cá, o lado da história, não é a melhor saída simplesmente ignorar as questões que estão na base da disputa entre história e literatura. E o elemento que aglutina toda essa mesmo que apressadamente, estas questões estabelecidas tanto por Le Goff, en passant, quanto por Ricœur, mais profundamente. Claro que a questão já foi e ainda é o mesmo tema comporta importantes nomes:Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, Hayden White, Roger Chartier, Raymond Williams, Luiz Costa Lima etc. Fabiano Mendes230 . se a ação da marca feita no tempo. A terceira, que também não foge de todo a essa conexão, lembra-nos mais a ideia de “recordação en- quanto busca”, portanto uma postura mais ativa diante do reviver o passado. Para Aristóteles, seria essa a base distintiva entre lembrança e recordação. E o caminho que une uma à outra é o intervalo temporal. “E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que a recordação percorre. Nesse sentido, o tempo continua sendo a aposta comum à memória-paixão e à recordação-ação”. Mas pensar a recordação enquanto busca não prescinde o ato de vontade e, mais importante, um “poder buscar”. E essa busca precisa, por sua vez, da linguagem para efetivar o processo. Assim, o movimento que parte da “marca temporal”, “promovida a linguagem”, depende do que Ricœur chama de “memória declarativa”.12 Antes de prosseguirmos, vale a pena chamar a atenção para o que está por trás desse escrutínio feito por Ricœur sobre a memória. Ele está a perseguir o funcionamento dos elementos que garantem a “dimensão veritativa da memória e, acrescentemos, da história”. As marcas, brevemente citadas acima, são uma das bases para a problemá- tica que Ricœur lança sobre a veracidade da memória e da história. O Teeteto, estabelece, para a história, um problema equivalente ao que a marca é para a memória, dos textos clássicos, a relação entre (cópia) e tupos (impressão) e impressão [e aqui impressão deve ser compreendida como impressão na alma] é tida como mais primitiva do que a relação de semelhança com a arte mimética”. E prosseguindo, demonstra a ideia platônica de colocar a arte mimética no lugar menor de imitação da imitação: “há mimética verídica ou mentirosa porque há, entre a e a impressão, uma dialética de acomodação, de harmonização, de ajustamento que pode ser bem sucedida ou fracassar”.13 12 Id. Ibid., p. 34-40. 13 Id. Ibid., p. 32. No Livro III d’A República, Platão desenvolve essa ideia numa discus- são sobre a aceitação ou não do poeta na cidade. Sendo ele um imitador da coisa real, que por sua vez é já cópia do perfeito inalcançável, o poeta, e também o prosador, hesitante em admitir uma narrativa mais simples e direta, portanto o mais livre pos- sível da imitação empobrecida, seria mandado para outra cidade: “Por nossa conta, visando a utilidade, recorreremos ao poeta e ao narrador mais austero e menos agra- dável, que imitirá para nós o tom do homem honrado e obedecerá, na sua linguagem, Letras e Veredas da História 231. Continuemos na questão da impressão e da cópia acompanhan- do o salto que Aristóteles dá em relação a Platão. Lembremos ainda que Aristóteles valoriza o tempo e, para completar, a imaginação.14 Em todo esse sistema, podemos inferir, há a forte presença do movimento. Para Ricœur o salto aristotélico está na associação feita entre alma e corpo, com um movimento que conduz o que sente a alma (afecção) à elaboração de uma “espécie de pintura”, a memória. É esse movimento que faz a questão da “ausência, como o outro da presença”, cara a Platão, ganhar, a partir da noção aristotélica de inscrição, um importante elemento que, creio, está na base de toda representação e toda mimese, qual seja, a “referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal”. Isso inclui de modo incontornável necessidade e capacidade de dizer. Esse intricado esquema de termos que se sobrepõem e se Ricœur lança à visão aristotélica para, logo em seguida, expor como nos conduzir pelas questões da memória e do tempo. Cito mais uma vez Ricœur: ... de que nos lembramos então? Da afecção ou da coisa de que ela procede? Se é da afecção, não é de uma coisa ausente que nos lembramos; se é da coisa, como, mesmo percebendo a impressão, poderíamos lembrar-nos da coisa ausente que não estamos percebendo? Em outras palavras: como podemos, ao perceber uma imagem, lembrar-nos de alguma coisa distinta dela? A solução é: animal. Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo quer em si mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma (...). É possível, porque a inscrição consiste nas duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa (allou phantasma); aqui, o vocabulário de Aristóteles é preciso: ele reserva o termo phantasma à inscrição enquanto ela às regras que estabelecemos logo no início, quando empreendíamos a educação dos nossos guerreiros.” Cf. PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 75-90. 14 A base da distinção estabelecida entre história e literatura é, sobretudo, aristotélica – principalmente a partir da Arte Poética e da Arte Retórica. Fabiano Mendes232 . mesma, e o termo para a referência a outra coisa que não a inscrição.15 É desse modo que Aristóteles entende a operação da me- mória a partir de dois elementos que merecem destaque: o tempo e a referencialidade. Se tal salto não resolveu de todo as aporias da me- mória, como demonstra Ricœur, as questões e os caminhos seguidos por Aristóteles não mais saíram da pauta dos estudos sobre memória e sobre história. Pode-se inferir então que sentimento, visto de uma perspectiva ampla que vai do patético ao sensorial, passando pelo que é intrigante e estimulante; e movimento, que compreende a ação sofrida ou a realização digna de nota mais a ação de lembrar – que é fazer a dança do tempo num esforço de entendimento e ordenamento ainda talvez improduti- esforço que surge do resultado do esforço de lembrar entendendo e de fazer com que aquele que não lembra entenda o que não viveu –, constituem os caracteres comuns entre história e memória, embora cada uma dessas etapas (nem independentes ou estanques) funcionem em ambas de maneira distinta e desemboquem na seara da narrativa: em última instância construção de imagens onde se encontram as várias formas de literatura. Assim, reencontramos aquele jogo de duplas exposto por Bosi. Sentimento e imaginação como base tanto da história como da literatura são elementos vitais da memória. Falta-nos a outra dupla, realidade e verdade, que para agora poderemos transportar para a questão da narra- crita. Questões epistemológicas Recentemente, na lição inaugural n.º 195 do Collège de France, Roger Chartier escreveu que a atual obrigação do historiador é “entender” e “aceitar” que “já não tem mais o monopólio das representações do passado”, e apontou as “insurreições da memória” tange a dizer o real, descritiva e/ou analiticamente.16 Na mesma época, 15 RICŒUR, Op. Cit., p. 36. 16 CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos avançados. São Paulo, v. 24, n. 69, maio/ago., 2010, p. 12. Letras e Veredas da História 233. Chartier escreveu um texto conciso, uma espécie de balanço dos trinta anos de suas publicações em terras brasileiras, que trazia na discussão sobre a instituição histórica justamente as disputas com a memória e a diante da memória, Chartier estabelece suas diferenças com a história, arrostando, inclusive, algumas questões que trabalhamos acima; já diante e para o ganho de espaço da primeira nesta concorrência, quais sejam, o forte poder de representação; a apropriação de fontes e métodos da história; a reescrita do passado pela literatura diante da emergência de novos grupos sociais, o que põe em xeque a credibilidade, por exemplo, das histórias nacionais.17 Para Clio parece ser mais difícil ter sua imagem dissociada da irmã Calíope que mesmo da mãe, Mnemosine. Nesse sentido, “entender” parece ser mais proveitoso que mesmo “aceitar”, já que, como veremos adiante, não se trata necessariamente de uma novidade a literatura exercer o papel de interpretação do pretérito enquanto dialoga com as expectativas do presente. Nossa discussão tem apontado até agora para as diferenças e semelhanças entre história e literatura como intuito de encontrar meios para que a primeira extraia o máximo e o melhor possível da segunda. Há nessas páginas uma forte respiração de interdisciplinaridade; nela buscamos encontrar a vocação do historiador da cultura: adentrar o universo da forma para dele sair mais apto a entender a penetração do social em determinada arte e a penetração de determinada arte no social. Precisamos, contudo, no trato da literatura, saber o papel que a narrativa tem no próprio conhecimento histórico. E nessa busca não nos será possível simplesmente ignorar a ideia de concorrência ou competição. Como esclarece Ginzburg: [...] a noção de narrativa em história tem se moldado nos romances do século XIX, mas se pensarmos em romances do século XX, dizendo: “serei historiador do século XIX”. E então, depois dele, 17 Id. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 17-31. Fabiano Mendes234 . 18 Discutimos acima que a memória se entrelaça às passadas da Clio e Calíope empunham pergaminhos ou tabuletas como símbolo de seu domínio. E se desde Arte Poética, de Aristóteles, a diferença básica entre uma e outra repousa no compromisso assumido pela história de deitar atenção ao acontecido – traço que chega até historiadores recentes e polêmicos, como Paul Veyne –, enquanto à poética (literatura) coube voos, inclusive, no campo do possível, ambas, literatura e história, divi- dem a missão de representar o passado através da palavra escrita.19 Mas isso diz pouco, pois munidas de diferentes meios para rea- lizar essa missão comum, elas simplesmente não caminham paralela- mente; e como lembrou Ginzburg, uma invade constantemente o campo da outra. medieval avançando na repartição do tempo, na importância dada à cronologia e ao estabelecimento das fontes, enquanto a narrativa 18 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história – nove que aponta a ambição de Balzac como um ponto importante do confronto entre a literatura realista, pulsante e sensível, e a história política e universal, uniforme e distante (ou monótona, como queria Ranke), remete a uma iluminadora postura to- mada por Engels diante do autor de Ilusões Perdidas. Através de carta à amiga Margaret Harkness, Engels, em 1888, vê na obra de Balzac, para ele um legitimista, rica fonte para o entendimento da sociedade burguesa europeia: “Balzac, que considero de longe o maior mestre do realismo de todos os Zolas do passado, presente ou futuro, proporciona-nos na sua Comédie Humaine, uma história maravilhosamente realista da ‘sociedade’ francesa, descrevendo, no estilo de crônica, quase ano por ano, de 1816 a 1848, a pressão crescente da ascensão da burguesia sobre a sociedade de nobres que se estabeleceu a partir de 1815 e voltou a instalar, na medida do possível, (tant bien que mal), o padrão da vieille politesse française (velha delicadeza francesa). [...] E em torno desta imagem central o autor tece uma história completa da sociedade francesa, com a qual, mesmo em pormenores econômicos (como, por exemplo, a redistribuição da propriedade real e a privada após a Revolução Francesa), aprendi mais do que com K.; ENGELS, F. Sobre literatura e arte. 3 ed. São Paulo: Global, 1986, p. 71. 19 ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 43; VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história / Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4 ed. Brasília: Editora UnB, 1998, p. 25. Letras e Veredas da História 235. dessa história ainda a conduzia para o campo da moral e da teologia, ou seja, a sistematização de práticas arquivísticas e eruditas não ga- rantiam à história a saída da ampla compreensão de literatura. Essa estreitamento das relações com a erudição e o desenvolvimento do humanista garantia essa unidade do conhecimento literário, embora, como aponta Le Goff, alguns historiadores, sobretudo juristas, já “anunciam a história dos do século XVIII”. Essa história, que vence certa apatia na relação com a erudição durante o século XVII, desdobra-se em história universal a partir do século XVIII, imperando quando atualiza-se o “método crítico”, estabelece-se a união entre história e erudição, cria-se uma cadeia de ensino de história e implanta- se como sinal de modernidade e de construção nacional os arquivos e os institutos;20 mas uma das maiores e mais importantes tarefas era discurso literário é mais e maior que ele. Mas voltando ao ponto, essa tarefa é o que Luiz Costa Lima denominou “controle do imaginário”.21 A compreensão do necessário apartamento desses discursos siameses por parte da história passa pelo reconhecimento do avanço da literatura que, por seu turno, engendrava o que Ginzburg chamou de “a primeira grande revolução da Idade Moderna”. O historiador italiano aponta As Aventuras de Robinson Crusoé (1719), de Defoe, “a primeira obra-prima do romance burguês”, como o passo inicial da apropriação 20 LE GOFF, Op. Cit., p. 105-126. 21 LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. O crítico literário desen- volve nesse trabalho a ascensão do discurso histórico e sua complexa relação com a literatura. Dessa trajetória vale destacar que, segundo Costa Lima, a história só quebra o paralelismo e, mais, a transversalidade em relação a literatura quando os rumos da como ciência, surgindo, sob sua auto-imagem, a face escarninha, debochada, inescru- pulosa da arte. Aí, submersa, recalcada, ela [a arte] como que se vinga, fazendo-se per- versa. Onde a indesejada seja reconhecida, será para o desprezo de seu praticante”. e da razão, depois foi a literatura, salvo a via do realismo, que segundo Costa Lima com a história se “mantém em osmose”. Fabiano Mendes236 . acuidade no manejo dos pormenores etc.; com o intuito de trazer a história o mais próximo do leitor, o que acabou por gerar a necessidade constante de “dilatação do tempo narrativo” que encontrou no Ulisses (1922), de Joyce, seu ponto extremo; uma empreitada tipicamente modernista.22 Tal empreitada trazia, no entanto, a força narrativa dos romances realistas e dos romances históricos do XIX, como também nos lembrou Ginzburg, citado há pouco – na verdade uma linha não necessariamente declarada ou mesmo contínua que, com o máximo de clareza nas descrições e o máximo de suporte verossímil para o que está de fazer o real. Continuando com Ginzburg, depois ele desenvolveria essa questão recuando mais ainda no tempo, os dois séculos que separam Robinson Crusoé de Utopia, de Thomas More. O livro de 1516 é pretexto para Ginzburg sintetizar observações feitas em livros anteriores. A base fantástica de um livro como Utopia sustenta toda a maquinaria do convencimento funcionando a partir da enargeia (vividez) pulsante nas ekphrasis ainda mais o “efeito de realidade”, More utilizou-se de um expediente provas documentais que provêm diretamente da ilha de Utopia”.23 E toda essa prática provém, por sua vez, do campo jurídico, que tanto a história quanto a literatura ultrapassam porque a demanda é mesmo outra, sendo que na história a enargeia, pelo menos para Ginzburg, e creio que para boa parte dos historiadores, foi superada pela citação – esta última, menos afeita ao efeito retórico esclarece, de saída, que a relação com o passado é incompleta e indireta. Mas um traço permaneceu. A necessidade de narrar e de con- vencer enquanto discurso que tem como meta aproximar os homens no tempo implica o uso e o reconhecimento de elementos literários. O extremo desse reconhecimento é a tese de Hayden White sustentada na história como sendo um artefato literário, com o historiador manipulando os tipos de enredo, pulando de uma visão cômica para uma visão trágica da mesma situação como um fotógrafo que altera 22 GINZBURG, Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989, p. 188-189. 23 Id. Nenhuma ilha é uma ilha: quatrovisões da literatura inglesa. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 23. Letras e Veredas da História 237. a luz incidida sobre um modelo.24 Utilizarei dois pontos de vista para o diálogo com White menos como antídotos (pois não se trata de o reconhecimento de outros traços que permaneceram e fazem parte do éthos de Natalie Zemon Davies, para quem White ao mesmo tempo em que presta o valioso serviço de apontar as formas literárias que afetam o modo de se escrever história, vê na escrita da história apenas essa face, esquecendo-se dos “esforços que os historiadores fazem e as regras da evidência que seguem para provar seus argumentos”, dentre elas, as notas.25 O outro ponto de vista é de Koselleck. Reconhecendo a porção literária na narrativa histórica, na qual o historiador equilibra-se entre a sujeição aos “testemunhos da realidade passada” e a interpretação dos eventos, o historiador alemão chama atenção para um traço mais profundo ainda, o “pressuposto teórico”,26 impossível de ser arredado de qualquer enredo histórico, e não necessariamente habitué dos textos Diante dessas questões fundamentais, nenhuma isolada em si mesma, três exemplos nos ajudam a entender essa região de fronteira explicitada na virada do século XIX para o XX, que deu origem ao historiador cultural de hoje: Leon Tolstoi, Os Annales e Walter Benjamin, anti-história política. A ideia de interdisciplinaridade e, portanto, do projeto de uma história viva e total, com carne humana, é facilmente percebível nos Annales. Tolstoi foi um crítico ferrenho do que chamava “história das nações que tentava explicar a força condutora do “movimento dos povos” a partir da renovação da força divina, agora representada pelos “Napoleões e Luízes” – e em “história cultural” – na verdade uma história intelectual que unia à ação dos grandes nomes políticos, os escritores como formadores de mentalidades. Sobressai como núcleo da crítica de Tolstoi ataque ao caráter fantasmagórico desse tipo de história, que supõe: 24 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franco Neto. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 97-116. 25 PALLARES-BURKE, Op. Cit., p. 107. 26 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006, p. 141. Fabiano Mendes238 . ser ela por si mesma evidente e de todos sabida. Não obstante, porém, o maior desejo de a reconhecer como tal, quem ler um extenso número de obras históricas involuntàriamente porá em dúvida que essa nova força, diversamente interpretada pelos pró- prios historiadores, haja sido de todos plenamente reconhecida.27 Assim, menos interessado em apontar um caminho do que pôr em xeque as pretensões desse tipo de história, por sinal dominante, “arbítrios humanos” que se realizam de “modo contínuo”, o ponto contraditório e arbitrário da história moderna alvo de suas críticas.28 Já para Walter Benjamin, “o cronista que narra os acontecimen- tos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. 2929 E mais, “o conhecimento histórico é conhe- cimento do atual que, em uma fantástica abreviação de experiências esparsas do passado, estabelece relações entre fragmentos somente in- teligíveis à luz do presente”.30 História e história literária: questão de método Quando um historiador escolhe como objeto de pesquisa um elemento do universo literário, surgem-lhe logo perguntadores (alguns ingênuos, outros maliciosos, uns poucos ocupados em realmente en- tender): trata-se de uma pesquisa cuja fonte é a literatura ou ela é o objeto? Você pretende provar que determinado livro está “correto” em invencionices? Você conseguirá cotejar todas as informações com ou- tros documentos? Sem precisar ir aos arquivos, deve ser mais fácil fazer esse tipo de pesquisa, não? E a pior de todas: por que você não vai fazer sua pesquisa no curso de literatura? 27 GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História. Trad. Vítor M. e Sá. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 208. 28 Id. Ibid., p. 211. 29 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: ____. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223. 30 MATOS, Olgária Chaim Féres. A Rosa de Paracelso. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 244. Letras e Veredas da História 239. Acredito que não se pesquisa “literatura” na amplitude do ter- mo e do tema, assim como não acredito que se pesquise “direito”, “poder”, “violência”, “cultura” pura, simples e amplamente – a não ser quando a pesquisa é de caráter estritamente teórico, o que não só certo abstracionismo que acaba por exigir o estudo dirigido, o objeto palpável, o caso. Assim, as perguntas que já ouvi mais de uma vez de alguns historiadores revelam não só o desconhecimento do tipo de pesquisa que se desenvolve já há algumas décadas em contato com o campo literário, como também certo dissabor diante do direcionamento que a história está tomando rumo aos estudos culturais. Nessa tomada de rumo um fenômeno nada novo acontece: a “invasão” dos historiadores em áreas já sedimentadas e em questões que já tinham a consagração de algumas respostas com seus desdobramentos dentro do campo mesmo no qual foram formuladas. Assim aconteceu com a economia política quando da revolução materialista da história, Annales, como a chamou Peter Burke, com a antropologia quando da revolução inglesa da história social. Essa visitação muitas vezes indesejada não traz garantias de sucesso ao historiador, obrigado a manejar conceitos e objetos às vezes estranhos ou com dinâmica pouca previsível que o colocam na frágil, e talvez mesmo necessária, posição sobre o humano e o social, em maior ou menor grau, utilizam-se da lo- calização temporal e da diacronia, muito embora a crítica literária tenha celebrado o formalismo durante considerável período. No caso da relação com a literatura, a imagem da história esteve muito associada à reviravolta linguística, o que foi tomado mais de uma vez como um verdadeiro e perigoso tiro no próprio pé. Felizmente, poucas são as mortes neste tipo acidente, e as sequelas e cicatrizes, bem, elas fazem muitos pés, e, no entanto, de uma única coluna: seus métodos e normas,31 adaptáveis sim aos objetos de estudos, mas nucleares quanto carne tão valiosa que servia e serve de matéria para nossa disciplina, 31 Para Koselleck, “a história como ciência não tem um objeto de estudo que seja exclusivamente seu; ela tem de dividi-los com todas as ciências humanas e sociais. A história como ciência distingue-se apenas pelos seus métodos e pelas normas, com cujo auxílio ela conduz a resultados comprováveis”. KOSELLECK, Op. Cit., p. 120. Fabiano Mendes240 . manifesta-se também quando o papel ainda está em branco, quando as bifurcações aparecem diante do historiador e ele escolhe uma via, quando há o reconhecimento que a escrita da história possui sim um papel social etc. Essa carne, no entanto, deve domesticar as dores e os prazeres quando está diante da objetividade do conhecimento que tem de produzir. A objetividade, não confundida aqui com neutralidade e imaculabilidade, é objeto de perseguição do historiador, acostumado O campo dos estudos literários também possui seus vários pés. Não quero e não consigo mesmo traçar um panorama de suas possibilidades e de suas disputas internas. Mas creio ser ainda hoje o confronto entre a perspectiva formalista e a histórica o que move os debates nesta área. Na história, por seu turno, três grandes dimensões, tória social, a história cultural e a história política, que retorna ora dia- logando mais detidamente com a primeira, ora com a segunda. Meu interesse aqui não seria estabelecer o ponto de contatoentre cada uma dessas dimensões da história com o campo dos estudos literários, até gere modos exclusivos de contato. Acontece que do lado dos estudos literários o movimento contrário, ou seja, a nada passiva relação com a história parecer ser, segundo Ligia Chiappini, fruto da superação dos que há, no fundo, é uma reaproximação dos estudos literários com a história, ou que ela realmente nunca tenha deixado de existir, e isso é bastante precioso para o historiador que deles se aproxima. Ligia Chiappini, há mais de dez anos, num balanço da situação até então, e que creio ainda ser válido na atualidade, pôs a questão da relação estudos literários/estudos históricos de modo preciso, inclusive dis- cutindo também a posição dos historiadores: Os historiadores passam a utilizar os textos literários não como fontes de feitos militares ou políticos, nem mesmo de outros fatos, pois a própria noção de fato histórico é posta em discussão, mais como uma espécie de “registro dos afetos”, lendo aí vestígios de sensibilidades ou do quotidiano dos agentes anônimos da história.32 32 CHIAPPINI, Ligia. Literatura e história: notas sobre as relações entre os estudos Literatura e Sociedade, n. 5. São Paulo: FFLCH/USP, 2000, p. 19. Letras e Veredas da História 241. A posição dos historiadores diante do material literário, vai até a ampliação da noção de documento, passa pela discussão do que é fato e chega à importante abertura temática que exige toda uma atu- alização teórico-metodológica, e isso não só não é pouco como é quase tudo. No entanto, só vejo como preciso o diagnóstico da situação porque o que se colheu dela foi o que se espera dos historiadores diante da literatura: passar pelo texto e dele extrair equivalentes no contexto. E repito: isso não é pouco. Acontece que as críticas a certas posturas dos historiadores frente à literatura que aparecem no decorrer do texto, como o utilitarismo característico, só devem ser apontadas para os historiadores que não se sensibilizaram às mudanças ocorridas no olhar lançado à própria história enquanto escrita, ou seja, se o historiador não acompanha as discussões sobre o papel da narrativa em história, da sua porção, vamos dizer, literária e imaginativa, como esperar que ele se detenha de modo satisfatório aos aspectos retóricos e estéticos do texto literário que lhe está posto como fonte e/ou objeto? A posição de George Duby frente aos textos literários, como a destaca Chiappini, de reconhecer a existência de um “algo mais” que “ultrapassa o documento e a faz antecipar o caráter problemático do real”,33 não o coloca no isolamento. Visão semelhante é a de Asa Briggs: Nunca acreditei que a história só ocupasse lugar nas ciências sociais, pois penso que o historiador deve usar tanto a evidência social quanto a literária. E devo dizer que já há muito tempo cheguei a algumas conclusões em relação às evidências literárias. Em primeiro lugar, nunca se deve usar a literatura simplesmente como ilustração do que se está fazendo. (...) No meu entender a literatura pode fazer três coisas. Pode nos dar acesso a experiências revelar experiências individuais e relacioná-las com as comuns; e tratar de questões universais da vida humana.34 E a de Carlo Ginzburg: O autor é, no meu entender, alguém capaz de nos tornar conscientes de certas dimensões da realidade. Há, por assim dizer, algo kafkiano na realidade, especialmente do século XX, que 33 Id. Ibid., p. 24. 34 PALLARES-BURKE, Op. Cit., p. 68. Fabiano Mendes242 . Kafka foi capaz de nos revelar. Esse lado cognitivo da literatura me é muito importante...35 Acumulemos às observações desses dois historiadores as de Antonio Candido, crítico literário e historiador da literatura, que criticou desde o início a via da exclusividade formalista como enfrentamento do texto literário: Uma das condições de perfeição de um romance é o fato de conter certos aspectos fundamentais da sua época. É Stendhal dando forma à luta do mérito contra os privilégios da Restauração; é Balzac espelhando a agitação humana, a mobilidade horizontal e vertical que recompunha e deslocava as classes na primeira metade do século XIX; são Dostoievski e Tolstoi expondo a problemática do homem russo e o sentido da sua história.36 Nós historiadores não temos condições de detectar o que seria perfeito ou não numa obra literária enquanto obra literária, mas percebe- se nessa passagem de Candido que o texto literário deve atingir aquilo que Ginzburg denominou de “lado cognitivo” e Briggs de “experiências comuns”, “experiências individuais” e “questões universais”. Isso não coloca historiadores que se debruçam sobre textos literários e his- toriadores literários, bem como os críticos literários num mesmo e serve de guia no labirinto: nós historiadores atravessando o labirinto para dele sair; eles, estudiosos da literatura atravessando o labirinto para nele entrar. Fatalmente nos encontraremos e nos ajudaremos já que conhecemos as armadilhas da metade percorrida. Para terminar, creio que duas questões merecem destaque: a questão do recorte temporal e da história literária e a questão do mé- pela primeira questão. A fragmentação da história proveniente, entre outras razões, da crise das teorias globais que sustentavam grandes narrativas, felizmente não impede que atualmente, mesmo diante de certo exagero de espe- tos a estruturas temporais mais amplas que os comporta, permitindo, 35 Id. Ibid., p. 280. 36 CANDIDO, Antonio. Brigada Ligeira. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004, p. 23. Letras e Veredas da História 243. inclusive, o movimento inverso.37 Este expediente, que no fundo faz parte da natureza dos estudos históricos, não foi sempre conduzido de uma mesma maneira: a relação cronológica mecânica e sucessorial da história positivista, assim como a análise dialética dos processos his- tóricos, as concepções temporais de curta, média e longa duração que orientaram rigidamente a segunda fase dos Annales, mais a perspectiva mo celebrado nas últimas décadas e que de certo modo recuou um pouco diante de sopros de retorno ao sentido narrativo da história, menos global e mais estrutural, todas essas maneiras de relacionar diacronia e sincronia tiveram de rivalizar entre si em algum momento da hoje é o reconhecimento de que “eventos e estruturas têm, portanto, no campo da experiência do movimento histórico, diferentes extensões temporais, que são problematizadas exclusivamente pela história como ciência”. E arremata: “a forma mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa”.38 Dois autores dos estudos literários, Leyla Perrone-Moisés e Franco Moretti, com seus respectivos problemas a resolver diante da posição da crítica na história literária, partem do reconhecimento ex- posto acima de que os estudos literários, tanto os de eventos isolados – livros tomados como fatos literários (mas também históricos) – quanto de estruturas – o estudo de escolas, de gêneros de grupos de autores ou de um recorte temporal cuja sincronia tonaliza o ajuntamento de disparidades aglutinando-as numa proposta temática enxergada e defendida pelo pesquisador, não podem e não devem prescindir dessa perspectiva histórica. Essa posição, contudo, não é passiva em nenhum dos dois autores, como creio não deva ser em nenhum crítico ou historiador literário mais atento às fronteiras de sua disciplina. Perrone-Moisés, a partir do propósito de discutir a crise da crí- tica e as possibilidades da história literária a partir de escritores-críti- cos (escritores que também fazem crítica) pinça como ponto nevrálgico da questão o afunilamento da importância da história literária e da própria literatura como ações humanas: 37 KOSELLECK, Op. Cit., p. 133-145. 38 Id. Ibid., p. 137; 139. Fabiano Mendes244 . Se nós acreditarmos que a literatura tem a alta utilidade de esclarecer, alargar e valorizarnossa experiência do mundo, admitiremos que a história do conjunto de suas relações maximiza o proveito que podemos tirar do contato com cada realização particular. [...] E se a fruição da literatura, no seu mais alto sentido de conhecimento e valorização da experiência humana, é o nosso objetivo, seremos levados a defender um certo tipo de história literária: aquela que otimiza a fruição das obras.39 A tarefa deste tipo de história literária defendida por Perrone- Moisés refuta a diacronia refém da cronologia, na qual os acontecimen- tos se sucedem mecanicamente. A história literária, que de certa forma égide da história geral positivista” e é “condicionada por essa lógica de sucessão”; o tipo de crítica que esses escritores-críticos (Eliot, Paz, pertinência e/ou conveniência de uma história literária diacrônica e linear”. Franco Moretti, mais interessado na otimização de uma his- tória literária que parta da referência aos gêneros e a acompanhe, pro- recentemente como combate ao estudo do evento puro ordenado me- canicamente numa grade cronológica. Segundo Moretti, a “historiogra- histoire évenementielle, na qual os ‘eventos’ são grandes obras ou grandes indivíduos”. E continua, agora alertando, que a postura contrária, menos afeita ao evento literário e mais ao gênero, portanto num movimento que parta do estudo formal, não deve se restringir a esses princípios, que levaria este tipo de história a congelar-se não somente no plano diacrônico, “como em parte já acontece”, como também no plano sincrônico, pois “em todas as épocas, fórmulas simbólicas de difusão e duração históricas diferentes”. Moretti quer que a história literária saiba extrair o melhor das duas posições extremadas que o jovem Lukács tomou diante da forma: a forma é social e a criação é o isolamento, sem que o historiador e o crítico literário se prendam a nenhuma delas. Para tanto, sugere que para o realizador do estudo literário quanto mais “conseguir ‘esquecer’ os propósitos tradicionais da 39 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 21-22. Letras e Veredas da História 245. histó pelo estudo de uma forma ou de um grupo de formas correlatas, à história da sociedade, muito melhor avançará o trabalho”. Mas só são produtos históricos organizados segundo critérios retóricos” e a partir daí “elaborar um sistema de conceitos que seja ao mesmo tempo 40 Assim, de certo modo a questão do tempo retorna, pois pelo lado do estudo formal a obra de arte, que é possuidora de certa dura- bilidade e enfrenta as várias interpretações e intervenções ao longo do tempo, manteria um núcleo que lhe é próprio e num certo sentido driblaria a historicidade; já pelo lado do estudo histórico, a obra de arte pode ganhar a roupagem de um evento que se esgota em si mesmo numa dada temporalidade que a explica, portanto, um evento datado. Recorro a Ligia Chiappini para resolver tal impasse, e das palavras dela fazer as minhas: Se opomos a durabilidade da literatura à sua historicidade, arris- camos a congelar a História, condenada a uma singularidade de morte, e a literatura, condenada a uma eternidade sem vida. Seria melhor considerar o que dura na história, pelo simples fato de mudar e o que muda na literatura pelo simples fato de durar. Ou, então, poder-se-ia dizer, retomando Walter Benjamin, que a literatura seria “ao mesmo tempo profundamente histórica e trans- na História, assinala o valor universal da permanência, pois busca antes de mais nada a verdade.41 Agora a segunda questão. Se na primeira foi pertinente iniciar a discussão em torno da história literária em sua relação de uso para categorização temporal em seus estudos – a partir das observações de um historiador, é igualmente importante iniciarmos esta segunda questão – que deita atenção ao posicionamento dos historiadores frente ao texto literário – com um crítico literário apontando que o centro gravitacional de todo e qualquer enfrentamento do texto literário é a interpretação. 40 MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 22-32. 41 CHIAPPINI, Op. Cit., p. 27. Fabiano Mendes246 . Num valioso ensaio sobre o trato dos textos literários no âmbito da crítica, que creio possa e deva ser estendida às outras disciplinas das ciências sociais e humanas quando seus realizadores se deparam com esse tipo de fonte/objeto possuidora do “algo mais” do qual falou Duby, Alfredo Bosi mostra a complexa operação interpretativa a partir de seus momentos e caminhos, funcionando menos com uma fórmula e mais como estímulo42 – diante da fórmula nos tornamos um mecanismo igual a ela mesma, diante do estímulo somos obrigados a exercer a liberdade da criação e da adaptação. Bosi chama a atenção primeiramente para as componentes do texto literário organizadas em duplas complementares, que de um modo geral oferecem-se ao reconhecimento tanto das pulsões vitais: o núcleo que nem sempre se manifesta na superfície do texto, quanto das “correntes culturais não menos ativas que orientam os valores ideo- lógicos, os padrões de gosto e os modelos de desempenho formal”. Começa, por “evento e forma”, com o primeiro sendo mais que o acontecimento, pois carrega em si, além do acontecido na obra, a “sub- jetividade radical” de um alguém ou mesmo das coisas, o que chama de “fatos-verbos” e “coisas-nomes”. Opera ainda com a instância espa- çotemporal na perspectiva do constante aqui e agora, mesmo que se reporte ao acontecido longe e antes. Forma, apesar da estreita relação com fôrma, é o que organiza toda a obra num compromisso consigo, é, portanto, a provocadora da leitura que quer que seja feita. Dela, o intérprete não pode descurar. Ao desconstruí-la, na tentativa de propor um “sentido inteligível” para um grupo “ideal de leitores”, não pode leticamente do outro”. Em seguida, as observações de “perspectiva e tom” corres- pondem ao olhar lançado à exterioridade da obra, de um modo resu- mido, às interferências e interações (perspectiva), e também à busca pelo ethos da obra, ou seja, “mediante a perspectiva, a trama da cultura entra na escrita. Pelo tom é o sujeito que se revela e faz a letra falar”. A terceira dupla, “série e círculo”, não se refere necessariamente aos componentes da obra, e sim à crítica da divisão rígida do trabalho de interpretação em etapas: a tarefa do analista (a dissecação dos elementos do texto) e a do intérprete, exposta anteriormente. Em substituição à série mecânica, Bosi sugere a ideia de círculo, na qual 42 BOSI, A. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 461-479. Letras e Veredas da História 247. análise e interpretação se complementam num movimento de ir-e-vir de todas as partes do estudo. terpretativo: Os homens podem compreender o fruto de suas ações e a gesta dos seus antepassados. A obra, o que foi feito (factum), converte-se em conceito e em verdade. Verum et factum convertuntur. O “verdadeiro” e o que foi produzido ao longo dos séculos alimentam-se recipro- camente. O conhecimento da palavra histórica, a , se trans- forma em compreensão do agir e do pensar dos homens, . Os testemunhos pedem a crítica; a crítica remete aos testemunhos. e é hermenêutico. A análise mostra efeitos de realidade, cuja verdade só se desvenda pela interpretação. começa pelo reconhecimento da ação humana no tempo (história) e culmina num amálgama de elementos de disciplinas diversas que concorrem para o sucesso da interpretação. Muito provavelmente a maioria dos historiadores não chegue tão fundo na interpretação de obras literárias. A explicação, creio, passa pela iluminadora observação de Michel de Certeau quanto ao lugar de produção do conhecimento. Para o historiador francês, localizada e produz somenteum discurso particularizado. Ela alcança a sociedade, portanto, na medida em que explicita seus limites, ao articular seu campo próprio com outros absolutamente opostos.43 Assim, não se trata simplesmente de transplantar o processo da crítica literária exposto acima para os interesses – por sinal, diversos – da história. É preciso observar as possibilidades. Tomemos alguns exemplos. A perspectiva de Faoro, por exemplo, aponta para o confronto do texto literário com a realidade: a sociedade diante do espelho. Apoi- ado em Mannheim e em Weber, Faoro toma a literatura como fonte seu trabalho, Machado Assis e o Segundo Reinado. De Mannheim, e 43 DE CERTEAU. Michel. A cultura no plural. Campinas - SP: Papirus, 1995, p. 222. Fabiano Mendes248 . pode-se acrescentar de Goldmann, vem a base do entendimento da convergência entre “a corte imaginária das personagens” e a “legião dos homens que frequentam as ruas” encontrada na realidade mesma que alimenta essas duas formas de ver o mundo. Assim, para Faoro, “o boneco de tinta cumpre um papel social como o boneco de carne e sangue, representando ambos suas frustrações na fantasmagoria de um mundo criado coletivamente”.44 Posição semelhante tem Bronislaw Geremek, que persegue a disposição social encravada na obra, e assim como Faoro, acaba por Conceitos como ‘burguês’, ‘rico’, ‘mendigo’, ‘patrício’, ’plebeu’ são construções teóricas que o ajudam a ordenar os fatos, elaborar imagens sintéticas, penetrar nas divisões e ligações estruturais da sociedade analisada. As obras literárias permitem confrontar essas construções históricas com o quadro que funcionava na consciência social da época examinada. A tipologização usada como um procedimento literário, mesmo sendo o resultado de fornece imagens sociais estereotipadas, que surgem do concreto da realidade pesquisada pelo historiador.45 é nem o estudo da obra nem sua localização na realidade, é a própria sociedade analisada. Quase toda a metodologia da interpretação do texto literário não se aplica a esse tipo de propósito para o qual a literatura funciona mais como um sintoma da realidade do que como um seu componente. Esses estudos do social através da luminescência que a literatura lança as mais diversas realidades têm enorme importância para que cheguemos ao entendimento de aspectos da trama social que fogem a outros tipos de documentação. No entanto, a literatura se relaciona com o social de outra forma, ela mesma é uma manifestação social, ela mesma é historiografável, logo, ela é objeto da história. Como nos lembra Pomian, o interesse dos historiadores, no trato com a literatura, deve se voltar para “as obras com seus autores individuais ou coletivos 44 FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4 ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 531. 45 GEREMEK, Bronislaw. : vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400-1700). São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.16. Letras e Veredas da História 249. e os comportamentos dos grupos humanos a que pertencem, que criar o seu sentimento de identidade”.46 Aqui o matiz já é outro, pensa-se no campo literário, histo- ricamente. Mas se o texto literário não deve ser mais reconhecido como o fruto de uma observação privilegiada, porém apartada da sociedade que respira em suas linhas, a literatura não deve ser olhada como um corpo que se autoexplica. É obvio que os historiadores, ao tratarem de literatura, não podem prescindir do todo do universo literário que produz o texto. Mas não podem prescindir, sobretudo, do texto. É ele a ação do escritor e da escritora – “escritora” talvez tenha sida grafado pela primeira vez neste estudo e neste momento numa tentativa de ver a diferença que pode levar o texto para esta ou aquela direção e que só compreensão do texto passa, contudo, por outros fatores externos que vão além da comunidade literária: O objeto fundamental de uma história que visa reconhecer a maneira pela qual os atores sociais dão sentido às suas práticas e aos seus enunciados situa-se, portanto, na tensão entre, de um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, do outro, as restrições e as convenções que limitam – com mais ou menos força segundo as posições que ocupam nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, dizer e fazer. A constatação vale para as obras eruditas e as criações estéticas, sempre inscritas nas heranças e nas referências que as tornam concebíveis, comunicáveis e compreensíveis. Vale, igualmente, para todas as práticas vulgares, disseminadas, silenciosas, que inventam o quotidiano.47 Chartier amplia a visão anteriormente exposta ao acrescentar as “relações de dominação” que constrangem e ao mesmo tempo acabam vez insisto que os fatores externos, imprescindíveis para chegar ao entendimento desse jogo de dominação, acomodação e rebeldia, não podem ser exclusivos. A interpretação dos textos é o caminho mais 46 POMIAN, Krzysztof. História cultural, história dos semióforos. In: RIOUX, Jean- Pierre; SIRINELLI, Jean-François (orgs.). Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 71. 47 CHARTIER, Roger. A “nova” história cultural existe?.In: LOPES, Antonio H.; VELLOSO, Mônica P.; PESAVENTO, Sandra J. (orgs.). História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 39. Fabiano Mendes250 . completo rumo ao entendimento do que o texto literário ou o conjunto de textos literários representa num dado contexto. E a lição talvez venha do mais antigo dos ensaios expostos até aqui: A análise interna, tal como se pratica num estudo de texto, não impede que se considerem os dados externos. Por um efeito que nada tem de paradoxal, a escolha de um texto, ao fazer existir uma região intratextual, determina, ao mesmo tempo, a existência de um mundo que lhe é exterior. Ninguém poderá contentar-se em buscar a lei que reina no interior de um texto; explorando um mundo interior, necessário será perceber todas as contribuições, todos os ecos externos. Há uma incitação ao ir e vir. A atenção que se presta no interior nos traz ao exterior.48 Jean Starobinski nos mostra que é só através do enfrentamento interpretativo do texto que todos esses fatores externos e até mesmo o que se quer tirar de demonstrativo do social via fonte literária podem aparecer como manifestações históricas prenhes de vida. como a apreensão dos “fatos literários”49 numa dimensão material, como quer Raymond Williams, compõem um aspecto dos estudos literários subsumidos na gama dos estudos culturais em perspectiva duma sociologia histórica da cultura. Ou ainda o enfrentamento do texto literário numa perspectiva ideológica. Tudo isso, e ainda o que não sei, podem e devem continuar ocupando o historiador que olha sem medo para a literatura, dela buscando o entendimento da vida vivida que seguiu em forma de memória, narrativa e tempo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2006. BENJAMIN, Walter. 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