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Mergulho no texto U ni da de 1 5 147 Por que meu aluno não lê? “Os meus alunos não gostam de ler” é, sem dúvida, a queixa mais comumente ouvida entre professores. É um dos primeiros comentários a serem feitos quando, ao terminar uma palestra sobre leitura, abre-se a sessão para perguntas ou esclarecimentos. Por que essa realidade? Essa é a questão a ser explorada neste capítulo, focalizando os aspectos relativos ao funcionamento de sala de aula que podem contribuir para o problema. Aspectos macroestruturais que também influem no fracasso da escola quanto à formação de leitores não serão aqui discutidos. Referimo-nos, por exemplo, ao lugar cada vez menor que a leitura tem no cotidiano do brasileiro, à pobreza no seu ambiente de letramento (o material escrito com o qual ele entra em contato, tanto dentro como fora da escola), ou ainda, à própria formação precária de um grande número de profissionais da escrita que não são leitores, tendo, no entanto, que ensinar a ler e a gostar de ler. Para formar leitores, devemos ter paixão pela leitura. Concordamos com o autor francês Bellenger (um leitor apaixonado de um país de leitores apaixonados), que a leitura se baseia no desejo e no prazer: Em que se baseia a leitura? No desejo. Esta resposta é uma opção. É tanto o resultado de uma observação como de uma intuição vivida. Ler é identificar-se com o apaixonado ou com o místico. É ser um pouco clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se para uma ficção, abrir o parêntese do imaginário. Ler é muitas vezes trancar- se (no sentido próprio e figurado). É manter uma ligação através do tato, do olhar, até mesmo do ouvido (as palavras ressoam). As pessoas lêem com seus corpos. Ler é também sair transformado de uma experiência de vida, um apelo, uma ocasião de amar sem a certeza de que se vai amar. Pouco a pouco o desejo desaparece sob o prazer. BELLENGER, Lionel. Os métodos de leitura. p.17 A atividade árida e tortuosa de decifração de palavras que é chamada de leitura em sala de aula não tem nada a ver com a atividade prazerosa descrita por Bellenger. E, de fato, não é leitura, por maior que esteja legitimada pela tradição escolar. Ninguém gosta de fazer aquilo que é difícil demais, nem aquilo do qual não consegue extrair o sentido. Essa é uma boa caracterização da tarefa de ler em sala de aula: para uma grande maioria dos alunos ela é difícil demais, justamente porque ela não faz sentido. Devemos lembrar que, para a maioria, a leitura não é aquela atividade no aconchego do lar, no canto preferido, que nos permite nos isolarmos, sonhar, esque- cer, entrar em muitos mundos, e que tem suas primeiras associações nas estórias que a nossa mãe nos lia antes de dormir. Pelo contrário, para a maioria, as primeiras lembranças dessa atividade são a cópia maçante, até a mão doer, de palavras da família do, “Dói o dedo do Didu”; a procura cansativa, até os olhos arderem, das palavras com o dígrafo que deverá ser sublinhado naquele dia; a correria desespera- da até o dono do bar que compra o jornal aos domingos, para a família achar as palavras coma letra J. Letras, sílabas, dígrafos, encontros consonantais, encontros TP4 - Leitura e Processos de Escrita I - Parte I 148 ILUSTRAÇÃO vocálicos, “dificuldades” imaginadas e reais substituem o aconchego e o amor para essas crianças, entravando assim o caminho até o prazer. Após esse primeiro e desapontado contato com a palavra escrita, a desilusão conti- nua, e o fracasso se instala como uma constante na relação com o livro. Muitas das práticas do professor nesse período após a alfabetização sedimentam as imagens negati- vas sobre o livro e a leitura desse aluno, que logo passa a ser mais um não-leitor em formação. São algumas dessas práticas as que serão objeto de discussão neste capítulo. As práticas desmotivadoras, perversas até, pelas conseqüências nefastas que tra- zem, provêm, basicamente, de concepções erradas sobre a natureza do texto e da leitura, e, portanto, da linguagem. Elas são práticas sustentadas por um entendimento limitado e incoerente do que seja ensinar português, entendimento este tradicionalmente legitimado tanto dentro como fora da escola. É dessa legitimidade que se deriva um dos aspectos mais nefastos das práticas limitadoras que discutiremos: elas são perpetuadas não só dentro da escola, o que seria de se esperar, mas também funcionam como o mecanismo mais poderoso para a exclusão fora da escola. Os diversos concursos para os cargos públicos e para vagas em colégios e universidades, sejam estes a nível federal, estadual ou municipal, ou do setor privado, exigem do candidato o conhecimento frag- mentado e mecânico sobre a gramática da língua decorrente de uma abordagem de ensino que é ativamente contrária a uma abordagem global, significativa, baseada no uso da língua. É por isso que uma das primeiras barreiras que o professor tem que negociar para poder ensinar a ler é a resistência do próprio aluno, ou dos pais do aluno quando este é uma criança mais nova. Já ouvimos um aluno de terceiro colegial dizer “Eu não quero trabalhar textos, eu quero aprender português”, expressando o mesmo pré-conceito de um adulto analfabeto em curso supletivo de alfabetização que nos disse: “Eu não quero trabalhar textos, eu quero aprender a ler.” Essas convicções estão baseadas numa con- cepção de saber lingüístico desvinculada do uso da linguagem: no primeiro caso, o aluno está reivindicando a regra gramatical tradicional, que não faz sentido, que deve ser memorizada só para a prova, mas que será a que determinará sua inclusão ou exclusão no banco, na repartição pública, na faculdade; no segundo caso, o aluno reivindica a decifração e cópia de letras e sílabas, como um fim em si, sem perceber que essas atividades são apenas prelúdio para a atividade de leitura, porque nunca ninguém des- vendou para ele o verdadeiro significado da atividade. É justamente essa resistência a que é usada pelo burocrata (que pode ser o diretor da escola, outros professores), para efetivamente impedir uma prática alternativa. E en- contramos, na maioria dos casos e muito rapidamente o professor novo (recém-chegado ou recém-formado e com uma proposta renovadora e inovadora) que desiste, em parte pelo fato de ele se encontrar dentro de uma estrutura de poder na escola, no degrau mais baixo, e também, pelo fato de sua proposta estar baseada apenas numa convicção de necessidade de mudança, mas sem a formação necessária para essa mudança. Por isso, acreditamos na formação teórica do professor na área de leitura. KLEIMAN, A. Oficina de Leitura: Teoria e Prática. Campinas, SP: Pontes, 2002. p.15-17. Mergulho no texto U ni da de 1 5 149 2- Depois de ler o texto, sua expectativa quanto às questões que abordaria foi satisfeita? Justifique. 3- No segundo parágrafo, a autora informa as questões que ela não vai abordar. A) Quais são elas? B) Podemos dizer que, no final do texto, aparece, em síntese, a razão pela qual a autora optou por trabalhar outras questões. Qual é essa razão? 4- A que tipo de texto o trecho de Bellenger parece referir-se especialmente? Justifique. 5- Por que, na opinião da autora, a leitura em sala de aula não tem relação com o que descreveu Bellenger? 6- O texto apresenta, implicitamente, a mesma idéia que vimos desenvolvendo sobre a função dos textos, no trabalho de ensino e aprendizagem da língua. Qual é? TP4 - Leitura e Processos de Escrita I - Parte I 150 7- Você concorda com a opinião expressa pela autora, no último parágrafo, quanto à resistência às práticas alternativas? Justifique.