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06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 1/62 Ética, direitos humanos e direitos não humanos Prof. Ronaldo Pelli Junior Descrição Os limites da liberdade, a liberdade de expressão e a busca por direitos que sejam universais: para humanos e não humanos. Propósito A discussão sobre ética, uma das mais antigas da filosofia, é essencial na tentativa de formular direitos humanos e estabelecer uma igualdade entre os homens, o que nos leva a olhar para outros seres, como animais e máquinas, a possuírem direitos similares aos dos homens. Objetivos 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 2/62 Módulo 1 Ética e liberdade de expressão Listar as diferentes formas de se pensar a ética e os limites impostos pela liberdade de expressão. Módulo 2 A trajetória dos direitos humanos Reconhecer a trajetória — com percalços — dos direitos humanos desde a Grécia Antiga até os dias atuais. Módulo 3 Os direitos dos seres não humanos Identificar a luta de outros seres, como os animais não humanos, para conseguir direitos e a preocupação de uma ética para máquinas inteligentes. Mesmo que seja um assunto discutido há séculos, raramente se chega a uma conclusão sobre como algo poderia ser considerado ético. A começar porque a própria noção de ética é controversa por si só: tanto pode ser vista como algo bom, certo e justo para um grupo; como pode ser considerada uma prescrição, como os códigos para categorias profissionais ou os mandamentos religiosos. Ainda, pode ser classificada como uma disciplina da própria filosofia que analisa os limites da ética. Ao longo da história, pensadores lutaram com força para ampliar suas vozes e fazer circular suas ideias, por vezes consideradas éticas; outras vezes, não. Recentemente, a luta por liberdade de expressão tem se convertido em argumento para o compartilhamento de notícias falsas (fake news) e discursos de ódio. Uma primeira tentativa de compreender a questão ética está na busca por criar um solo comum para todos os homens, isto é, uma ética universal. A Declaração dos Direitos Humanos, publicada pela ONU na metade do século XX — mas com raízes nos movimentos revolucionários do século XVIII ou mesmo na Grécia da Introdução 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 3/62 1 - Ética e liberdade de expressão Ao �nal deste módulo, você será capaz de listar as diferentes formas de se pensar a ética e os limites impostos pela liberdade de expressão. Antiguidade —, pode ser considerada uma tentativa ou o resultado da trajetória da discussão dos direitos humanos ao longo dos anos. Contemporaneamente, mas no mesmo sentido, chegam críticas de movimentos que veem um tipo de soberba no hábito de colocar o homem no centro da discussão político-social-legal em detrimento de outros seres. É necessário que haja debates éticos sobre inteligência artificial e como é possível, e até mesmo aconselhável, criar figuras jurídicas equivalentes aos direitos humanos para outros seres, como animais não humanos, máquinas e até a própria Terra. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 4/62 De�nição de ética Sem dúvida, a ética é um dos mais antigos temas da filosofia. Aparece nas obras filosóficas desde, pelo menos, os grandes nomes do período clássico grego: Sócrates, Platão e Aristóteles (todos nascidos entre os séculos V e o III AEC). Platão escreveu inúmeros diálogos e, na maioria deles, o seu já falecido mestre Sócrates — que nunca escreveu ele mesmo uma única linha e teve sua obra inteiramente registrada por seus alunos — era o protagonista. No mais famoso de todos os seus livros e também uma das obras mais importantes da história da filosofia, A república, o tema principal é a construção de uma cidade ideal, governada por cidadãos superespecializados que orientam suas ações através da ética. Monumentos na fachada da Academia de Atenas de Platão e Sócrates. Acima deles, estão os monumentos de Atenas, a deusa da sabedoria e Apolo, o deus da verdade, que representavam os propósitos da Academia, fundada por Platão por volta de 387 a.C. O método socrático-platônico das definições universais, que parte do princípio que sempre há uma caráter comum-universal que abrange toda multiplicidade das particularidades. Por exemplo, a noção comum-universal de árvore abrange toda e qualquer árvore no mundo. Tal projeto encontrou muitos críticos — a começar por Aristóteles, seu aluno mais notável da Academia —, não por Platão defender a ética, mas por, especialmente, defender a possibilidade uma ética comum-universal. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 5/62 Platão e Aristóteles são retratados no centro da obra Escola de Atenas (1509-1511), uma das mais famosas pinturas do renascentista italiano Rafael, e representa a Academia fundada por Platão por volta de 387 a.C. Por outro lado, de um ponto de vista bem específico, ninguém é aético: todo mundo obedece a uma ética própria e, se ninguém é aético, o que quer dizer, então, ética? Por que ela é tão importante assim? A palavra vem do grego antigo ethos, que significa algo como conjunto de hábitos, costumes e valores de um grupo social ou cultura. Os romanos traduziram tal expressão para os termos mos ou moris, que originaram o nosso termo moral. Dessa forma, ética seria os códigos visíveis ou invisíveis que determinam o que é o certo e o errado, o bom e o ruim, o verdadeiro e o falso para determinada sociedade. O problema é que, mudando de geografia, de grupo, de tempo, a ética, então, mudaria. Para ficar num exemplo banal, basta pensar nos talheres utilizados para se alimentar ao redor do planeta. Qual seria o instrumento “certo”: garfos, facas e colheres? Hashi (ou palitinhos)? As próprias mãos? Pode-se imaginar o quanto um japonês tradicional ficaria chocado com alguém cortando com garfo e faca um sashimi. Alguns indianos dizem que os talheres de metal dão gosto ruim para a comida — daí a escolha pelas mãos. E, seguindo ainda no tema culinária, há diversos vídeos na internet mostrando italianos agoniados porque alguém decidiu quebrar o espaguete para fazer caber em uma panela pequena. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 6/62 Se quisermos elevar um pouco a dificuldade do debate, basta lembrar a diferença de tratamento para grupos geralmente excluídos entre as diversas sociedades ou ao longo da história. Até cerca de 150 anos atrás, no Brasil, homens, mulheres e crianças de pele mais escura, africanos ou descendentes, poderiam ser considerados, por lei, propriedade de outras pessoas e eram escravizados. Em certos países, como a Arábia Saudita, as mulheres não compartilham dos mesmos direitos que os homens: até muito recentemente elas não podiam votar nem dirigir veículos. Atualmente, sob o controle dos talibãs, as mulheres afegãs sequer podem sair de casa sem a companhia de algum membro homem de sua família. Certos grupos religiosos, doutrinas ideológicas, ou mesmo países que abertamente consideram uma aberração qualquer tipo de comportamento sexual diferente do estritamente heterossexual, passível de punição ou, ao menos, de um processo de reeducação forçada. Os exemplos poderiam prosseguir. O argumento aqui é mostrar que as pessoas que defendem esses tipos de ações não se consideram “más” ou agindo contra a própria “ética”. Sempre houve e sempre haverá uma autojustificativa, mesmo para os mais atrozes comportamentos ou para muitos deles, aomenos. Dessa primeira forma de entender a ética, pode-se tirar uma segunda: ética pode ser vista também como um conjunto de regras prescritivas, que vão criar o fundamento para sabermos o que é certo ou errado antes de agirmos. Exemplo É o que acontece com a ética cristã ou estoica, ou, mais especificamente, com os códigos de ética de determinadas categorias profissionais, como advogados, médicos, psicólogos, enfermeiros e por aí vai. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 7/62 Entretanto, mesmo quando o código de ética está registrado em letra fria, há controvérsias e debates para se estabelecer a “verdadeira” interpretação do texto. Lembremo-nos das guerras ao longo da história entre diferentes grupos cristãos que leem a mesma Bíblia; ou os grandes debates entre advogados sobre determinadas passagens de códigos legislativos. Isso sem falar nas discussões eternas dentro da filosofia sobre o que um autor quis “verdadeiramente” dizer. Um caso ligeiramente diferente é o da autonomia médica, presente no código do Conselho Federal de Medicina. Que declara que o médico, entre diversos outros direitos e deveres, deve indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. O problema pode aparecer quando há casos de doenças desconhecidas, sem tratamento farmacológico reconhecido. Por fim, há ainda uma terceira forma de pensar a ética: as teorias e concepções da filosofia que tentam estabelecer os limites da própria ética, que buscam dentro da ética suas fronteiras e consequências. É uma espécie de ética da ética, ou metaética, como se diz em “filosofês”. É esse o principal foco filosófico: investigar se há uma “verdade” intrínseca nos valores, de caráter universal, aplicada a todas as situações. Algo que não mudaria tanto de um lugar para outro, nem de um tempo para outro. Ética e moral 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 8/62 Muita gente faz um esforço conceitual para diferenciar a ética da moral. A primeira teria uma ligação mais forte com um comportamento individual, “natural”, que estaria presente em todas as pessoas, independentemente do grupo social, da classe, das crenças e dos desejos que possuímos, e daria certa autonomia em relação às influências do exterior. Já a segunda funcionaria como o conjunto de leis desse agrupamento, que respeitaria as particularidades dessa comunidade. Há diversos problemas em ambos os casos. De início, como isolar essa nossa suposta “natureza”, a ponto de ela não ser persuadida pelas forças externas? Como dizer que há um mundo “interno”, intacto, sem influência do que acontece “lá fora”, com as outras pessoas, com as nossas relações cotidianas? No máximo, daria para dizer que a ética é o filtro “interior”, individual, para as regras exteriores, comunitárias — o âmbito da moral. Em seguida, há uma série de outras questões, por exemplo: Cada um teria uma ética diferente do outro? Seria possível dizer que há uma “essência” que perpassaria por todos, homens, mulheres e crianças do planeta inteiro? Haveria uma questão principal, fundamental, a partir da qual todas as outras poderiam se apoiar, se basear, para criar seus valores? Seria ela a defesa da vida? Mas será que todos os grupos humanos pensam a vida da mesma maneira? Como comparar a definição da vida das tradições cristãs com a de povos tradicionais, autóctones? 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 9/62 Responder a essas questões não é fácil! E você não encontra uma resposta unânime para elas. O importante é que você, a partir de nosso conteúdo estudado — e do aprofundamento esperado — possa tomar posição frente a elas, com certa fundamentação teórica. O pensador alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um dos maiores críticos do que chamou de moral. Ele associava essa moral a um conjunto de valores criados a partir do pensamento socrático-platônico, que se manteve vigente ao ser, posteriormente, adaptado pelo cristianismo . Nietzsche propôs filosofar com o martelo, como dizia, para explicitar sua intenção de destruir esses valores que, segundo ele, nos enfraqueciam, nos tornavam menos capazes de lidar com a própria vida e toda a sua variedade de possibilidades e surpresas. Friedrich Nietzsche. > Adaptado pelo cristianismo No prefácio de Além do bem e do mal, Nietzsche acusa o cristianismo de ser uma mera adaptação simplificada e, consequentemente, mais acessível do dogmatismo platônico para o povo comum; ou seja, um “platonismo para as massas”. Contudo, assim que “quebrou” a moral platônico-cristã, esse pensador, com ou sem intenção, logo colocou um outro tipo de proposta de valores, mais “fortes”, em que se encarava com coragem a aleatoriedade da vida, em que não haveria uma separação tão óbvia entre razão e emoção, entre bem e mal, entre verdadeiro e falso. Ou seja, 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 10/62 Nietzsche percebeu que não há vácuo moral: sempre outros valores assumem o posto deixado vazio. Mesmo que a moral seja associada a determinado grupo social, portanto perdendo a capacidade de universalização, percebe-se, de forma concomitante, que é impossível viver sem uma moral, mesmo que implícita. Isso porque precisamos recorrer à moral (ou à ética, dependendo de quem fala) quando estamos diante de um impasse, quando precisamos tomar uma grande decisão e não temos recursos próprios, imediatos, ou para saber qual é a melhor estrada para se pegar na hora da encruzilhada. Immanuel Kant. Immanuel Kant (1724-1804) foi outro filósofo que muito se debruçou sobre questões ético-morais, exatamente porque sabia que havia um limite para o racional e que não era possível saber qual é a regra na qual o outro sujeito está se baseando para agir. Tentando responder a essa demanda, ele formulou o chamado imperativo categórico, que pode ser sintetizado na seguinte frase: “Aja de tal forma que sua ação possa ser considerada lei universal”. Em outras palavras, aja do jeito que gostaria que agissem com você. Ainda: considere ética toda ação sua, desde que você aceite que façam a mesmíssima coisa consigo. A proposta de Kant não passou ilesa, entretanto. Entre outros apontamentos, seus críticos defendem que, às vezes, ser justo é tratar de maneira desigual os desiguais. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 11/62 Dito de outra forma: nem todas as pessoas têm as mesmas necessidades, desejos similares ou uma tábua de códigos que se equivalha. Por isso, achar que a “minha” percepção é a melhor para todos parece uma falta de conhecimento das subjetividades dos outros indivíduos — e no fundo até egoísmo. Uma das principais críticas à ética kantiana afirma que ele apenas atualizou o que foi o padrão ouro da moral durante quase todos os últimos 2 mil anos: o cristianismo. Desde os Dez Mandamentos até a categorização dos pecados, todo o sistema cristão funcionou para dar parâmetros que guiassem seus adeptos a saber o que era o certo e o errado, o que era verdade e o que era mentira, e como se poderia garantir uma vida boa no paraíso, após a morte. Com o passar do tempo, porém, o cristianismo perdeu a relevância que possuía há séculos. Mesmo que ainda haja muitos cristãos no mundo, outras forças (como a ciência) surgiram para colocar em dúvida as propostas sacerdotais. Antes mesmo da subida em definitivo da ciência ao altar dos valores morais, outros encontros já tinham afetado o monopólio cristão da leiprescritiva. Um caso exemplar foi a chegada dos europeus, nos séculos XV e XVI, nas terras que depois receberam o nome de América. A Primeira Missa no Brasil, quadro de Victor Meirelles que retrata o contato entre as populações nativas e os colonizadores europeus. Assim que encontraram populções nativas tão diferentes em seus comportamentos e valores, uma série de perguntas atravessou a cabeça dos europeus: 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 12/62 Como tratar os nativos americanos, que seguiam outras éticas que permitiam relacionamentos menos monogâmicos, que não tinham pudores excessivos com o corpo, que não veneravam o mesmo Deus, que queriam trabalhar apenas o necessário, sem conseguir compreender a pretensão europeia de acumular riquezas? Parecia claro que não era apenas o cristianismo que sabia lidar com o mundo. Outros modos de viver funcionavam tão ou melhor que o europeu e isso precisava ser levado em conta. Ou deveria ser. Ética e liberdade Em vários momentos da história, a ética (ou a moral) foi vista como aquilo que tentou controlar o que se pode ou não fazer. Há uma frase muito citada, mas que não aparece exatamente assim, de Os irmãos Karamazov, obra literária do russo Fiódor Dostoiévski, que resume bem a intenção: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Isto é, Deus (ou um ente que tivesse uma importância ética parecida) seria o tampão moral que nos impediria de cair no caos completo, na desordem total, no vale-tudo. Como se apenas uma mão pesada nos impedisse de nos destruir por completo. Fiódor Dostoiévski. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 13/62 Se não houvesse uma lei repressora, nós tenderíamos ao aniquilamento ou, no mínimo, à perda de certos traços que nos tornam diferentes de outros seres, a começar pelos outros animais. Nessa passagem do livro, o personagem de Dostoiévski dá alguns exemplos do que, para ele, seria o mais baixo que o homem poderia chegar: se não acreditarmos na imortalidade da alma, então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Considerando que este era um costume de certos grupos indígenas das Américas na época da invasão europeia, há mais de 500 anos, o contraste moral fica ainda mais gritante. Antropofagia Ato ritual religioso de comer uma ou várias partes do corpo de um ser humano como uma forma de se vingar por mortes ocorridas em conflitos anteriores e para adquirir as características de seus inimigos. Desenho datado de 1557 de uma cena antropofágica ocorrida no Brasil. Para um intelectual urbano russo do século XIX, talvez o ato de comer outros seres humanos fosse um dos pontos mais baixos que o homem chegaria. Mas, para um tupi da costa de Pindorama (nome que os indígenas dessa etnia davam para a terra que se chamou depois de Brasil), o ato tinha diversas conotações: espirituais, existenciais e até éticas. Como equiparar tais noções tão distantes? 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 14/62 O dilema ético aqui está exatamente em poder analisar a questão proposta da forma mais ampla possível. Aqui essas perguntas podem nos ajudar a refletir, mas não nos darão uma resposta pronta: a moral cristã, que eliminou o antropofagismo no Brasil, não deveria acontecer? Todos os aspectos culturais de um povo devem permanecer sempre intactos? É bastante provável que não sejamos assim tão dependentes de uma lei forte para nos organizar e reprimir nossas vontades mais egoístas, mas é notável como os limites impostos pela ética aparecem em todos os agrupamentos humanos — e são essenciais para a construção de uma sociedade. É preciso estabelecer o que se pode ou não fazer, para criar uma coesão e, assim, nos liberar para sermos livres no restante das ações. É preciso estabelecer o que se pode ou não fazer, para criar uma coesão e, assim, nos liberar para sermos livres no restante das ações. Jean-Jacques Rousseau. Muitos pensadores ao longo da história da filosofia, como o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), consideravam que o homem nasce livre, mas precisa se aclimatar à sociedade, diminuir seu ímpeto, se adaptar aos códigos impostos pela tradição. Esses pensadores foram empurrando a fronteira do que se podia fazer ou não — ou seja, da moral — a cada vez que um impedimento dogmático aparecia. Uma das questões primordiais do Iluminismo, por exemplo, foi a liberdade de expressão. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 15/62 Até o movimento europeu que teve como expoentes Kant, os franceses Voltaire, Diderot e Rousseau, e os ingleses Hume e Adam Smith, falar o que se pensava podia dar em prisão ou até em morte. Por isso, eles lutaram, escreveram, correram riscos para que todos pudessem expressar aquilo que tinham em mente, sem medo de serem exterminados por isso. A título de comparação do tamanho do risco do simples ato de opinar publicamente — algo banalizado em tempos de redes sociais —, lembre-se de como a imprensa foi perseguida na colônia portuguesa das Américas. Só se foi permitido ter jornais impressos com a vinda de D. João VI para o Brasil, em 1808. E, ainda assim, não era exatamente uma imprensa livre, mas profundamente censurada. Liberdade de expressão No Brasil, na segunda metade do século XX, estudantes, artistas, militantes, músicos, operários, escritores, em suma, críticos ao regime foram presos, torturados, condenados ao exílio e até mortos por discordarem com veemência dos ditadores. O assassinato do jornalista Vladimir Herzog é um dos casos mais famosos que representa quão violenta foi a repressão dos militares. Em 1975, Vlado, como era apelidado, se apresentou espontaneamente para prestar depoimentos ao DOI-CODI, órgão militar famoso por atacar dissidentes do regime. O jornalista foi preso na mesma hora e apareceu enforcado, em sua cela, apenas um dia depois. Vladimir Herzog morto no DOI-CODI de São Paulo. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 16/62 Segundo as informações declaradas pelos oficiais, ele teria se matado com um cinto de pano que prendia sua roupa. Havia, contudo, uma grosseira inconsistência na versão apresentada pelos militares: na foto divulgada, os joelhos do jornalista apareciam encostados no chão, o que impossibilitaria o suicídio. Desde o Iluminismo, portanto, a liberdade de expressão se tornou um dos pilares dos regimes que se propunham democráticos. Só é possível ter uma democracia se tal direito for respeitado. Recentemente, entretanto, o processo se inverteu: utilizando-se desse arcabouço legal, vários atores políticos começaram a propagar informações que não condizem com os fatos. Em termos atuais, passaram a divulgar fake news. A liberdade de expressão é tratada por quem divulga esses “fatos alternativos” de forma distorcida. Primeiro como um valor superior aos demais: nenhum outro direito poderia ser mais importante que este. Segundo: como uma desculpa para falar qualquer coisa, não importando se é verdade ou não. Sobreviventes do campo de concentração nazista Buchenwald, no leste da Alemanha, quando foram resgatados. Na Alemanha, por exemplo, é previsto como crime a negação do Shoá, também conhecido como Holocausto, o genocídio nazista que matou cerca de 6 milhões de pessoas, entre judeus, Testemunhas de Jeová, pessoas com deficiências, ciganos, comunistas, homossexuais e outros grupos discriminados pelos nazistas. Na Ucrânia, não só é proibido ocultar o Holodomor — o genocídio soviético da população ucraniana, com cerca de 12 milhõesde mortos pela fome —, como 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 17/62 também foi proibida a existência de partidos políticos comunistas e qualquer símbolo que remeta ao regime socialista soviético. Não importa que a liberdade de imprensa, análoga à de expressão nesse caso, esteja registrada na Constituição daquele país. Há valores maiores do que a possibilidade de opinar publicamente. Na realidade, mesmo em democracias bem mais consolidadas que a brasileira, a liberdade não é infinita e precisa ser tolhida quando há riscos reais. Mesmo nos EUA, cuja Primeira Emenda à Constituição, datada ainda de 1791, já defendia a expressão livre, não é um vale-tudo. Precisa ser tolhida Essa é outra questão pouco reconhecida como unânime. Nesse sentido, vale conferir os artigos e reportagens indicados no Explore +. Nenhum direito é absoluto e a liberdade de expressão não é soberana em relação aos demais direitos. O Estado não interfere em relação a toda e qualquer informação veiculada, mas caso haja um exemplar considerado perigoso (planejamento de ataques terroristas, por exemplo), pode haver interferências. Além disso, no momento histórico em que pouquíssimas empresas privadas controlam o tráfego de informação pelo mundo, a relação entre liberdade de expressão, democracia e censura mudou drasticamente. Exemplo Facebook, Twitter e Google são capazes de desviar o fluxo para certas postagens a partir do quanto se investe. Ou seja, não é exatamente um procedimento democrático, mas plutocrata, isto é, com prioridade para quem tem mais dinheiro. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 18/62 Por outro lado, tais empresas bilionárias também podem, de uma hora para outra, banir certos personagens ou conteúdos, como no caso do ex-presidente norte- americano Donald Trump, cuja conta no Twitter foi retirada do ar no início de 2021 sob acusação de incitar a violência, é um exemplo do poder dessas companhias. Por se tratarem de empresas privadas, que não precisam dar satisfação das suas ações para o público em geral, acabam por gerar desconfianças legítimas. Para alguns, as acusações ao então presidente dos EUA foram óbvios; para outros não! Então, sendo uma empresa privada, que não precisa dar satisfação das suas ações para o público em geral, sempre há uma desconfiança. E quando houver perseguição a certos personagens que forem contrários à empresa em questão (como alegou parte da Imprensa Americana, nesse mesmo caso)? Ou acontece o problema inverso: certos conteúdos, apesar de serem classificados como discurso de ódio ou como propagadores de informações falsas, muitas vezes são mantidos porque têm audiência. Enfretamento entre policiais e apoiadores do ex- presidente Trump durante a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em 2021. É o caso de canais de propagação de notícias inverídicas no Facebook ou no Youtube (do Google), por exemplo. Para tornar as coisas ainda mais difíceis, mesmo que uma rede de divulgação caia no Whatsapp, que é ligado ao Facebook, ela surge num outro aplicativo de comunicação instantânea. E o pior: em vários desses casos, apesar de essas grandes companhias terem códigos de ética, eles são ignorados – ou interpretados de forma “criativa” – em prol de outros interesses, como manter a audiência em crescimento, engajada, com interações". 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 19/62 Como insistido inúmeras vezes, não há unanimidade sobre algumas dessas temáticas. E é fundamental apresentar, quando possível, outras versões além daquela do "senso comum midiático". Assim, a partir desse admirável novo mundo que nos aparece, em que a liberdade de expressão já não é a mesma que foi defendida pelos iluministas, uma pergunta aparece com cada vez mais frequência: como estabelecer um limite, como propor uma ética para uma rede que é necessariamente ampla e tão multifacetada? Ou, para voltar à frase de Dostoiévski: se não há Deus — uma lei, um Estado, uma moral, uma ética — tudo é possível mesmo? Quem controla as agências de controle? Neste vídeo, vamos falar sobre os elementos que nos ajudam a perceber a importância e a complexidade de agências de controle das mídias digitais. Vamos lá! Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 20/62 Questão 1 Sabemos que definir o que é ética não é fácil, mas podemos partir de alguns fundamentos teóricos, desenvolvidos ao longo da história, a fim de podermos afirmar algo sobre a ética. Nesse sentido, avalie as afirmativas abaixo, que têm por objetivo caracterizá-la: I. Códigos visíveis ou invisíveis que determinam o que é o certo e o errado, o bom e o ruim, o verdadeiro e o falso para determinada sociedade. II. Conjunto de regras prescritivas, que vão criar o fundamento para sabermos o que é certo ou errado antes de agirmos. III. A lógica interna e obrigatória que força participantes de um grupo social a se comportarem de certa maneira. IV. Valores internos das pessoas, independentemente do tipo de ambiente inserido e da influência recebida. Está correto o que se afirma em A I somente. B III somente. C I, II e IV. D IV somente. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 21/62 Parabéns! A alternativa C está correta. Mesmo que a ética seja vista como uma lógica interna de determinado grupo, ela não tem um caráter obrigatório, mas optativo, de escolha: o homem é livre para escolher ser ético ou não. As demais afirmativas apresentam o quanto a ética pode ter sua concepção ampliada. Questão 2 Houve recentemente uma mudança significativa na maneira como a liberdade de expressão é entendida de forma geral. Entre as alternativas abaixo, assinale a que melhor explica essa transformação. E II, III e IV. A De um período em que a liberdade de expressão não tinha limites, hoje ela começou a ter, desrespeitando a democracia. B De um tempo em que era usada como forma a propagar qualquer informação, hoje se tornou o último bastião contra as censuras gerais. C De uma relação de trocas iguais, democráticas, em que não havia necessidade de a invocar, para um momento ainda mais tranquilo em que tal proposta quase é esquecida. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 22/62 Parabéns! A alternativa D está correta. Apesar de um histórico de lutas para ampliar a liberdade de expressão, tal direito não pode ser visto como superior aos demais, muito menos ser usado para divulgar notícias falsas. 2 - A trajetória dos direitos humanos D De um mecanismo iluminista contra as censuras, tal artifício serve hoje como justificativa para se divulgar fake news. E De um jeito de se expressar livremente, hoje se transformou numa forma de comunicação social. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 23/62 Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer a trajetória — com percalços — dos direitos humanos desde a Grécia Antiga até os dias atuais. De�nição de direitos humanos Talvez a pergunta “quando foram instituídos os direitos humanos?” só tenha uma concorrente na categoria dificuldade de responder: é a sua prima “o que são os direitos humanos?”. Eleanor Roosevelt, então 1ª dama do EUA, exibe a Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada em espanhol. Sabe-se, com certeza, que tal expressãoaparece na Declaração Universal da Organização das Nações Unidas, um documento proferido em 1948 — logo após o genocídio promovido por nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra Mundial — que delimita os direitos fundamentais do ser humano. Tal declaração, porém, não acabou com as controvérsias e contradições. Segundo o historiador e jurista norte-americano Samuel Moyn, que defende essa onda atual de direitos humanos como uma espécie de última utopia humana e aponta a década de 1970 como o momento em que a Europa buscou uma identidade fora dos termos da Guerra Fria, que separava o mundo entre países alinhados aos EUA capitalistas ou à URSS comunista. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 24/62 Além disso, depois da desastrosa saída do Vietnã, em 1975, a política externa dos EUA mudou para padrões mais liberais, a fim de manter relações mais igualitárias com outras nações. E, principalmente, foi a década em que a aventura colonialista dos países europeus na África se dissolveu, ocasionando a libertação de diversos povos que até hoje pagam a conta dessa longa dominação. Isso, claro, sem contar o rescaldo dos grandes movimentos populares do fim da década de 1960, que sacudiram os paralelepípedos das ruas de várias cidades do Norte Global, de Paris a Berkeley (EUA), passando por Praga, capital da então república socialista tchecoslovaca. Após tais protestos e modificações do tabuleiro mundial, não dava mais para se crer capitalista ou comunista de forma inocente. Grande protesto contra a guerra do Vietnã tomou as ruas de Amsterdã em 13 abril de 1968. Com a eleição de Margareth Thatcher no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan nos EUA, em 1981, os direitos humanos se transformaram em uma moeda imperialista. Exemplo Usando como desculpa o combate às ditaduras comunistas e o perigo do chamado avanço “vermelho”, EUA e Reino Unido intervinham diretamente na política interna e externa de países periféricos. Contraditoriamente, não se importavam com as violações dos mesmos direitos nesses mesmos países periféricos, que seguiam suas cartilhas subservientes e, na maioria dos casos, aderiam às suas políticas 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 25/62 econômicas neoliberais. Era o caso das ditaduras sul-americanas do período, tais quais as implantadas no Brasil, na Argentina e no Chile. Essa política de direitos humanos também não aconteceu de forma igual nem ao mesmo tempo em todos os países da Europa do oeste — basta lembrar que, paralelamente a esse período, toda a Península Ibérica continuava sob o domínio de ditaduras nacionalistas até metade da década de 1970: Portugal se liberta do salazarismo, iniciado em 1933, somente com a Revolução dos Cravos, em 1974. Já a Espanha se livraria do franquismo — imposto desde o fim da Guerra Civil Espanhola, em 1938 — apenas com a morte do “generalíssimo” Francisco Franco, em 1975. Demonstração franquista nas ruas de Salamanca, na Espanha, em 1 de janeiro de 1937. Mas, afinal, como definir o que são os direitos humanos? Para começarmos a entender esse assunto, é possível citar alguns procedimentos dentro do escopo dos direitos humanos: o direito à liberdade de culto e religião; o direito a um julgamento justo, quando se é acusado de algum crime; o direito a não ser torturado; e o direito à educação. É nesse sentido que, atualmente, os direitos humanos: Plurais e têm como �m acabar com a escravização no mundo Universais e inerentes a todos os seres humanos 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 26/62 Destacam que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, com o fim de acabar com a escravização no mundo e prevenir genocídios, através de direitos e liberdades fundamentais. Promovem o respeito e a observância aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano, como um ideal comum a ser atingido por todas as nações, independentemente das práticas, morais e leis específicas de seus países. Prioridades e sua violação é uma grave afronta à Justiça Esclarecem que o pleno reconhecimento e respeito aos direitos e liberdades fundamentais, para que toda e qualquer pessoa tenha direito a uma vida digna, é um requisito inerente à moral, à ordem pública e ao bem-estar de toda e qualquer nação democrática. Equiparados a estabilidade e a segurança nacional Enfatizam que o direito a uma renda justa e satisfatória, que assegure uma existência digna, está diretamente relacionado com a estabilidade, a segurança nacional, a autonomia individual e dos povos, bem como a prosperidade nacional e global. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, já em 1948, nos fornece um bom parâmetro para tentar entender o que são, afinal, os direitos humanos: são uma tentativa de criar uma moral — uma ética — compartilhada por “todos os membros da família humana”, como escreve a declaração das Nações Unidas publicada em 1948. Tais direitos são aquilo no qual todos deveríamos nos basear, por serem as condições fundamentais para uma vida digna de toda e qualquer pessoa, sem importar quem ela é ou o que ela faz. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 27/62 Direitos humanos e Iluminismo Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos) Livres, iguais e com espírito fraterno. Desde o seu primeiro artigo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não esconde sua principal influência: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Redigida logo no início da Revolução Francesa, em 1789, o icônico documento — cujo lema principal era “liberdade, igualdade e fraternidade” — não apenas ignorava o rei, como toda nobreza e a Igreja, atribuindo a soberania do país ou nação ao seu povo. Destacando que “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem” são a base de qualquer governo. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 28/62 O caráter universal dos direitos humanos também já aparecia na declaração de 1789, que se refere, ao longo de seu texto e de diversas formas, aos homens, sem fazer distinção da sua nacionalidade, com apenas uma menção ao povo francês. Seu artigo 1º, que ecoa no documento da ONU, quase dois séculos depois, já assegurava que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Era tanta liberdade, igualdade e propunha tanta fraternidade que teóricos e políticos anglófilos como Richard Price e Edmund Burke, que tinham apoiado a independência norte-americana, em 1776, foram contrários à Revolução Francesa, com medo de que ela acabasse provocando o caos. Foi contra ela que Burke escreveu Reflexões sobre a Revolução na França, e criou as bases para o conservadorismo moderno, que até aceita transformações, mas acredita que as revoltas são movimentos extremos demais. Aliás, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América é outro documento que historiadores, como a estadunidense Lynn Hunt, defendem como seminais no tema dos direitos humanos. A segunda linha do texto de 1776 já afirma: "Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade". Declaração de Independência dos Estados Unidos.06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 29/62 Mesmo que haja uma menção ao Criador, o Seu trabalho termina ali. O governo era dos homens e para os homens. Todos os homens. Há uma conexão estreita entre as duas famosas declarações do século XVIII: Thomas Jefferson, o autor da declaração americana, estava em Paris 13 anos depois, meses antes da queda da prisão da Bastilha, o evento que marca o início da Revolução Francesa. Thomas Jefferson era amigo e muito provavelmente influenciou o marquês de Lafayette, que foi um dos redatores do documento de 1789. Capa de O contrato social ou princípios do direito político, de 1762. Todas essas declarações revolucionárias respiraram os ares críticos e científicos do Iluminismo, que criou as bases estruturantes para a proposta da formação de uma sociedade, em tese, muito menos estratificada. A expressão “direitos do homem”, que ficou bastante associada à declaração francesa de 1789, já aparecia na obra O contrato social ou princípios do direito político, de 1762, do iluminista Jean- Jacques Rousseau. Em geral, os direitos humanos têm três condições características, devem ser: Naturais Inerentes aos seres humanos. Iguais Os mesmos direitos para todo mundo. Universais Aplicáveis por toda parte. Dito de outra forma: todos considerados humanos — mesmo as piores pessoas, mesmo os maiores genocidas, os bandidos mais detestáveis e aqueles sujeitos que 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 30/62 odiamos — devem usufruir desses direitos. Por isso, merecem não serem torturados bem como terem um julgamento e um tratamento justo, igualitário e digno. A ironia do processo é que parcelas consideráveis da população tanto dos EUA quanto da França — isso para não falar de periferias como o Brasil — não eram incluídas nesses direitos humanos. Isso se mantém, de certa forma, até hoje. Quando algum grupo é excluído na hora de votar, por exemplo. Pela lei brasileira, menores de 16 anos, os considerados loucos, presos que têm sentença transitada em julgado, indígenas vivendo em situação de isolamento, jovens prestando serviço militar obrigatório e estrangeiros não são autorizados a participar das eleições. Todos são impedidos por serem considerados dependentes, portanto, podendo ser influenciados por outras pessoas. Ainda no século XVIII, também eram colocados fora dos direitos “universais” aqueles sem propriedade, os escravizados, os negros livres, certas minorias religiosas (como os judeus) e, por último, mas não menos importante: as mulheres. Aos poucos, por vezes de forma lenta demais, esses segmentos da sociedade foram sendo incorporados à ideia de “universal” e começaram a usufruir dos direitos humanos. Manifestação pelo voto feminino em Nova York, 1912. O primeiro país a autorizar o voto feminino foi a Nova Zelândia, em 1893. No Brasil, as mulheres conquistam o direito de votar em 1932. Na revolucionária França, elas só foram às urnas em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial. A noção de quem pode ou não receber direitos vai se alargando, vai sendo modificada a partir das necessidades, condições e exigências da sociedade. O que é considerado razoável há 200, 300 anos, não é mais hoje em dia, um processo que tem bastante influência da moral. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 31/62 O próprio Jefferson, redator da declaração de independência norte-americana e terceiro presidente dos EUA, era um grande proprietário de escravos — o que causa um enorme constrangimento hoje em dia entre os seus compatriotas. Talvez no futuro tenhamos essa mesma vergonha de situações que hoje toleramos e, até mesmo, de certa forma, incentivamos, como a extrema desigualdade social. Direitos humanos e Grécia Essa aparente contradição para os olhos contemporâneos entre um discurso de universalização e uma prática que excluía certos grupos sociais é comum desde a época da democracia ateniense na Grécia Antiga, comumente considerada o berço da democracia ocidental. Pintura de Philipp Foltz que retrata um discurso público do célebre estadista ateniense, Péricles. Foi lá que o primeiro experimento democrático digno desse nome aconteceu, com a população — isto é, homens adultos livres — da cidade-estado de Atenas participando da organização da sociedade. Escravizados, mulheres e estrangeiros eram excluídos de todo o processo, entretanto. Na prática, os participantes ativos desse sistema atingiam no máximo 20% da população de Atenas. De qualquer forma, há quem enxergue também na Grécia de séculos antes de Cristo a origem dos direitos humanos. Sofistas e estoicos já tinham, no mínimo implicitamente, uma ideia de igualdade entre os homens. Os primeiros, com a sua 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 32/62 noção de que o homem é a medida para todas as coisas, e os segundos, colocando a razão para reger o mundo que, por sua vez, seria pensado de forma a priorizar o bem de todos. Outros teóricos enxergam ainda no poeta grego Hesíodo, que teria atuado entre 750 e 650 AEC, o passo inicial da caminhada que culminou no direito de todas as pessoas serem tratadas como iguais. Hesíodo. Se Homero — outro poeta grego do século VIII AEC — ainda colocava a vingança como fundamento da Justiça, o que, por isso, não leva em conta o valor da vida humana como igual, Hesíodo inclui o homem na equação. Em Hesíodo, sai o guerreiro, personagem dos épicos homéricos, e entra o agricultor, que quer apenas viver uma vida tranquila, uma existência justa, que seja regida por algum tipo de direito. O homem nos poemas de Hesíodo deveria seguir as leis que criavam a ordem universal sob pena de receber algum castigo de Zeus. Eram castigos ainda muito conectados com fatos da natureza, mas que mostravam, de alguma forma, a preocupação com a vida do próprio homem. A despeito de não se ter uma certidão de nascimento que seja indiscutível — e nunca haverá —, o que se pode entender é que todas as vezes que se pensa em direitos humanos se coloca a vida humana, em toda a sua dignidade, no centro da questão. Os direitos humanos foram resumidos pelo jurista inglês do século XVIII William Blackstone, que os chamou de a “liberdade natural da humanidade", isto é, os "direitos 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 33/62 absolutos do homem, considerado como um agente livre, dotado de discernimento para distinguir o bem do mal". Crítica aos direitos humanos Embora ninguém seja, de forma aberta, contra os direitos humanos — apesar de haver diversas deturpações do conceito que levam certos políticos de extrema-direita a reclamar de um enviesamento na sua prática —, a maneira como tais direitos foram estabelecidos e usados politicamente ao longo dos séculos fez deles um alvo. A começar pelo já mencionado uso de propaganda parcial por políticos reacionários da década de 1980 que queriam desestabilizar países comunistas. É fácil dizer que um país como Cuba, por exemplo, não respeita os direitos humanos, quando eles abertamente perseguiram homossexuais. O mais difícil é justificar o silêncio desses mesmos políticos diante das torturas, prisões e assassinatos dos opositores de ditadores como Augusto Pinochet, no Chile. O então presidente dos EUA, Jimmy Carter, sorrindo ao lado do ditador chileno Augusto Pinochet, em 1977. Ou o incentivo militar norte-americano ao massacre da população de El Salvador, que se opunha ao governo de direita. Ou o apoio do mesmo país ao grupo dos “Contra”, na Nicarágua, que tentavaacabar com a Revolução Sandinista, que tinha derrubado um ditador apoiado pelos EUA. Isso só para ficar em exemplos que ocorreram na América Latina na década de 1980. Mas as críticas não param aí. Teóricos de tradição marxista enxergam na Revolução Francesa um movimento que se utilizou da força das classes mais baixas para destronar os chamados primeiro e segundo Estado, isto é, a nobreza e o clero, e 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 34/62 instalar no poder não os pobres e necessitados, mas uma outra classe intocável: a burguesia. A mais icônica obra sobre a Revolução francesa, do pintor iluminista Eugène Delacroix, A Liberdade guiando o povo, de 1830. Banqueiros, grandes industriais e comerciantes assumiram as posições que antes eram dos nobres e dos padres. A camada mais desvalida, embora tenha tido participação ativa no movimento revolucionário, foi mais uma vez colocada para escanteio quando o processo se estabilizou. Há também quem associe os direitos humanos a apenas uma boa intenção que nunca foi concretizada de verdade, e a demora para que outros grupos além do segmento de sempre — os homens brancos ricos — participassem do jogo democrático corrobora esse tipo de raciocínio. Mesmo que hoje a grande maioria da população brasileira tenha acesso ao voto, para continuar no caso já mencionado, em outros temas relacionados aos direitos humanos, como a segurança, a liberdade e a igualdade, certos grupos — os de sempre — parecem ter mais direitos que outros. Para comprovar isso, basta ver a diferença de expectativa de vida entre brancos e negros no Brasil. Ou a cor de pele predominante na imensa maioria da população carcerária. Ou a gigantesca diferença de renda entre os muito ricos e o resto da população. Qualquer métrica social ou de direitos humanos que for utilizada vai mostrar esse abismo. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 35/62 Gráfico: Brasil: Taxa de Homicidios de Negros e de Não Negros a cada 100 mil Habitantes Dentro destes Grupos Populacionais (2009 a 2019) Extraído de: Diest/Ipea, FBSP e IJSN. Atlas da Violência, 2021, p. 50. Ademais, as críticas aos direitos humanos feitas por parte de figuras de extrema- direita, como se tal arcabouço fosse uma forma de proteger e incentivar meliantes, apenas disfarçam a tentativa de se manter esse tipo de distância entre quem já tem acesso a tais direitos e quem nunca teve. Ainda que seja uma árdua tarefa estabelecer valores éticos para um grupo tão heterogêneo quanto a espécie humana, os direitos humanos arriscam esse papel. O caráter universal desses direitos serve exatamente para criar o mínimo, aquilo que todos podem reivindicar e recorrer. A fim de que todas as sociedades humanas sejam mais justas e igualitárias. Se seguirmos os direitos humanos, podemos dizer que é ético que todas as pessoas nunca sejam torturadas na vida, mesmo que tenham cometido o pior dos crimes. É ético que ninguém seja discriminado por conta de sua cor de pele, sua crença, sua orientação sexual, sua identidade de gênero. É ético que todas as pessoas tenham as mesmas chances para prosperar na vida, sem importar o meio em que nasceu. É ético que se procure colocar em prática a liberdade, a igualdade e a fraternidade. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 36/62 Crítica marxista aos direitos humanoss Os marxistas também reclamam do caráter individualista que estaria implícito nos direitos humanos, como se tal categoria judicial não pensasse o todo da sociedade de uma vez, mas pulverizasse cada uma das perspectivas. Como estabelecer, por exemplo, o limite da liberdade de cada um? As discussões sobre liberdade de expressão, no módulo anterior, mostram como essa demarcação é complicada. De toda forma, por um lado é justa essa crítica marxista sobre o caráter individualista dos direitos humanos, uma vez que, ao se dividir cada um dos cidadãos em indivíduos, se perde força para exigir mais participação política, além de criar um problema acerca da linha que separa os direitos de um indivíduo do seu próximo; por outro, ela ignora o âmbito mais singular em que os direitos atuam. Quando alguém é torturado, é a sociedade como um todo que está sofrendo, já que precisou recorrer a um procedimento vil que ataca a dignidade de um dos seus cidadãos. No entanto, é um sujeito único que sente dor. Alguém que tem uma vida pregressa, que tem sonhos e que está recebendo na pele a carga dessa violência. Portanto, há sempre duas alçadas sendo entrelaçadas ao mesmo tempo: o indivíduo e a sociedade. E ambas devem ser respeitadas. Para sabermos o quão longe estamos dessa universalização dos direitos humanos, podemos recorrer a um teórico socialista utópico do fim do século XVIII e início do XIX chamado François-Marie Charles Fourier. Fourier, percebendo que as propostas de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa não foram assimiladas pela sociedade como um todo, propôs um medidor: “o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 37/62 pelo qual se mede a emancipação geral”. Poderíamos atualizar esse barômetro com a população negra e indígena, com as pessoas com deficiências, com as pessoas LGBTQIA+ e todos os grupos historicamente excluídos. Direitos Humanos e Regimes Político- econômicos Neste vídeo, Ronaldo Pelli mostra, com exemplos, que o tema dos direitos humanos está presente nos diversos regimes político-econômicos existentes, mantendo-se por meio de incoerências internas. Confira! Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Dentre as opções abaixo, assinale a que apresenta a melhor definição para direitos humanos. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 38/62 Parabéns! A alternativa B está correta. É difícil determinar com perfeição o que seriam os direitos humanos, mas há como estabelecer uma explicação mais genérica que fala sobre as garantias legais para a proteção dos indivíduos de violências cometidas em sociedades liberais. Questão 2 A Órgão governamental que tem por objetivo proteger todo cidadão de qualquer tipo de violência. B Normas que têm como fim proteger as pessoas de abusos, sejam políticos, legais ou mesmo sociais. C Arcabouço jurídico que acompanha o homem desde a época dos gregos na Antiguidade e que coloca o homem acima de todos os demais seres. D Procedimento legal utilizado em países da chamada Cortina de Ferro, que forneciam direitos sociais a todos os moradores. E Mecanismo de exclusão que cria uma separação entre homens e mulheres, ricos e pobres, brancos e negros etc. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 39/62 Sabemos que ao falar em direitos humanos estamos entrando em um terreno perigoso. Não porque, em sã consciência, alguém seria contrário ao fato de as pessoas deverem ter seus direitos protegidos; mas por conta de variadas interpretações. Assim, é importante que tenhamos claro quais são as três condições básicas dos Direitos Humanos: Parabéns! A alternativa A está correta. Para serem considerados direitos humanos, eles devem ser inerentes aos seres humanos, devem ser os mesmos para todo mundo e aplicáveis por toda parte. A serem naturais, iguais e universais. B serem livres, igualitários e fraternos. C serem franceses, norte-americanos e gregos. D serem uma forma de proteger apenas os bandidos mais detestáveis.E serem uma exceção que premia apenas humanos direitos. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 40/62 3 - Os direitos dos seres não humanos Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car a luta de outros seres, como os animais não humanos, para conseguir direitos e a preocupação de uma ética para máquinas inteligentes. Direito dos animais Se os direitos já são um tema complicado, cheio de interpretações e diferentes ângulos quando os contemplados são os humanos, imagine nas situações em que o “público-alvo” é formado por outros sujeitos além do humano? Para começar a dificuldade, a definição de humano não é unânime entre os diferentes grupos sociais ao redor do globo, com suas metafísicas, valores e éticas diversas. Povos que não seguem a tradição ocidental, como indígenas de todas as partes da 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 41/62 Terra, podem ter formas outras de categorizar o que seria o homem. E não é pouca gente. Segundo a ONU, há cerca de 370 a 500 milhões de indígenas no mundo, espalhados por 90 países, que vivem em todas as regiões geográficas e representam 5 mil culturas diferentes. Cada um com formas diferentes de entender sua posição no mundo, sua relação com outros seres, sua definição de homem, seu idioma. Para ter uma noção da diversidade, só na região onde está atualmente o estado de Rondônia, há 25 diferentes línguas, de famílias totalmente diferentes. Como forma de comparação, a União Europeia tem 24 línguas oficiais. Localização geográfica das terras indígenas localizadas no estado de Rondônia. Um exemplo sobre as diferentes visões do que é o humano: certos grupos indígenas amazônicos acreditam que animais que compartilham corpos semelhantes se veem como gente, enquanto os demais seres seriam animais. Tal perspectiva cria um jogo em que o animal que enxerga é “gente”, enquanto os demais, que são enxergados, são sempre “animais”, podendo ser o caçador ou a caça. Eduardo Viveiros de Castro. Dito de outra forma: para o homem, a onça é uma ameaça, o porco, uma presa. Para a onça, que se vê como gente, o homem é uma presa. Para o porco, o homem é a ameaça, e por aí adiante. Isso é, de maneira muito genérica e esquemática, o que os antropólogos brasileiros Tânia Stolze Lima e Eduardo 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 42/62 Viveiros de Castro conceituaram como perspectivismo ameríndio. Assim, fica demonstrada a dificuldade de se aplicar os direitos “humanos” indiscriminadamente para todo e qualquer grupo que consideramos “humanos”. No caso desses indígenas, deveríamos incluir na categoria “humanos” outros animais? Essa é uma questão que acompanha o pensamento filosófico há muito tempo. Como consequência prática, já existe um movimento antigo para criar direitos para seres outros que não os homens, a começar pelos animais não humanos. É possível afirmar que todos os humanos já tiveram ou terão algum contato com os animais não humanos, mas os tipos de contato variam enormemente. Enquanto certos animais são classificados como domésticos, criados sob o mesmo teto, com regalias dignas de pequenas altezas em certos casos, outros são considerados como matáveis, para serem transformados em alimento e vestimenta ou, até mesmo, por puro esporte. Cria-se, assim, uma hierarquia de importância entre os animais, uma hierarquia baseada em valores morais já solidificados que resvala, com frequência, em preconceitos. Para grande parte dos moradores de cidades ocidentais, é comum ver o boi e a vaca como comida, e o cachorro como um pet. Na Coreia, entretanto, é tradição usar cães também como alimento. E, antes que viremos o rosto, podemos imaginar o que os indianos hindus, que tratam vacas como sagradas, devem pensar sobre o nosso hábito de exterminá-las em matadouros industriais. Além do fato de que há outras formas de forçar uma relação de dominação por parte dos homens sobre os demais animais. O homem é chamado de animal racional, como se isso fosse um demérito para os outros, como se a razão fosse a única forma de inteligência possível. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 43/62 Um dos critérios técnicos para medir inteligência é o tamanho do cérebro, ou a quantidade de células nervosas versus a extensão do corpo. Por esse critério, polvos são considerados inteligentíssimos, já que têm a mesma quantidade de neurônios que cachorros e uma fração do tamanho deles. Polvos podem também usar ferramentas, como, aliás, corvos, chipanzés e outros animais — o que foi, durante um tempo, visto como exclusividade dos homens —, e são capazes de reconhecer rostos — procedimento comum a muitos outros animais. A lista para mostrar a inteligência de animais poderia continuar por longas linhas. Além disso, há também a dificuldade de definir o que seria inteligência. Aves de rapina, por exemplo, precisam de uma visão de longa de distância muito melhor que a do homem; primatas têm uma agilidade própria de quem salta de galho em galho. Determinado gambá norte-americano se finge de morto com tanta perfeição que os seus predadores, que não são comedores de carniça, desistem de atacá-lo. Especismo Novamente, os exemplos são muitos. Todos demonstram que cada animal desenvolveu o que precisou para melhor viver em determinado hábitat e isso não o faz necessariamente “melhor” nem mais ou menos “inteligente” que indivíduos de outra espécie. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 44/62 Esse tipo de hierarquia é chamado de especismo: um conceito desenvolvido, ainda no século XX, pelo filósofo britânico Richard Ryder, que trata do uso dos animais não humanos. Tal conceito mostra como é preconceituosa certa autoridade reivindicada pelos homens para poder usar, da forma como lhe aprouver, todo e qualquer outro ser, como se todos os demais seres existissem única e exclusivamente para servir ao homem. Richard D. Ryder. Especismo também serve para mostrar que, em momentos específicos, usamos certas espécies como o parâmetro que julgamos os demais. Acontece com frequência com o homem, num processo antropocêntrico, em que ele se julga superior aos outros. Por esse tipo de argumento, todo sacrifício de outras espécies é válido para que o homem continue a viver. Peter Singer. O filósofo australiano do século XX Peter Singer, famoso por suas obras sobre a relação ética entre humanos e animais, — seu livro, Libertação Animal é considerado como a obra fundadora dos Direitos dos animais — diz que o especismo é um preconceito de membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies. Defensores dos animais não humanos tentam, há tempos, criar legislações para tratá-los como sujeitos de direitos, para protegê-los de serem meros objetos para a vontade dos homens. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 45/62 Peter Singer Como já temos apresentado até aqui, essas questões são sempre muito complexas. Por exemplo, é do filósofo australiano o pensamento: “[...] bebês humanos não nascem com a noção de si próprios, ou capazes de perceber sua existência; eles não são pessoas. A vida de um recém-nascido vale menos que a de um porco, um cão ou um chipanzé; eles não têm senso da própria existência ao longo do tempo. Então, matar um recém- nascido nunca é equivalente a matar uma pessoa, isto é, um ser que deseja seguir vivendo" (Editorial Gazeta do Povo, 13/12/2014).Seria esse posicionamento fruto apenas da necessidade de defesa dos direitos dos animais não humanos!? O tema é forte desde o início da relação do homem com os outros animais — ou seja, desde muito tempo. Mas ficou mais forte ainda a partir das primeiras declarações sobre direitos humanos, no século XVIII. “Os sofrimentos de um animal nos parecem ruins, porque, sendo animais como eles, protestaríamos muito se nos fizessem a mesma coisa”, escreve o filósofo iluminista Voltaire, num de seus muitos textos sobre o não consumo de carne e o sofrimento causado aos animais. Recentemente, a preocupação com os animais tem crescido ainda mais. Segundo pesquisa encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira, 14% dos brasileiros em 2018 se declaravam vegetarianos ou parcialmente vegetarianos. Isso representava cerca de 30 milhões de brasileiros. Em 2012, esse percentual era de 8% apenas. Isto é, a questão animal está presente cotidianamente para uma parcela razoável da população. A alimentação é apenas um pedaço do problema. Uma das grandes preocupações dos defensores dos direitos dos animais não humanos é evitar ou, ao menos, criar parâmetros aceitáveis para o uso de cobaias em pesquisas científicas. Coelhos usados em testes de laboratório em caixas de 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 46/62 Em instituições sérias e preocupadas com o bem-estar desses animais, há uma série de protocolos para utilizá-los nesses testes, mas há quem argumenta que todo e qualquer uso é uma violência inaceitável. Ainda mais porque os bichos utilizados não ganham qualquer vantagem, nem para a espécie, muito menos individualmente. acrílico. Já foi comprovado que inúmeros animais, principalmente os que têm algum tipo de sistema nervoso, são sencientes: sentem dor, sensações, sentimentos de forma “consciente”. Então, ao matar um animal, estamos matando um ser que tem mais em comum conosco do que, muitas vezes, reparamos ou gostamos de lembrar. Direito das máquinas Em um evento de tecnologia de 2017, na Arábia Saudita, um robô com inteligência artificial chamado Sophia, que conversou com o apresentador do evento ao vivo, recebeu, ao fim da entrevista, a cidadania do país saudita, como se fosse um ser humano. Era uma ação publicitária para divulgar uma cidade tecnológica chamada Neom. Comandada por robôs e inteligências artificiais, tal cidade está sendo construída pela Arábia Saudita no meio do deserto. Não se sabe exatamente o que essa cidadania proporcionou para Sophia — ou se ela conseguiu direitos de homens ou de mulheres, muito diferentes nesse país do Oriente Médio extremamente machista — mas tal situação nos leva a pensar sobre a legislação por trás de produtos e tecnologias. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 47/62 Cientistas, engenheiros, filósofos, empresários e todos que pensam sobre as tecnologias se dividem em diferentes formas de encarar os problemas que o futuro, nesse âmbito, nos reserva. Há os que acreditam que vamos subir nossas consciências para computadores e encontrar uma espécie de vida eterna. Outros imaginam uma versão do porvir mais preocupante, com robôs parecidos com os saídos de filmes como O exterminador do futuro (direção de James Cameron, 1984). Há ainda aqueles que pensam mais cautelosamente, mas já veem vários problemas com o alcance da tecnologia atual. Talvez ainda esteja longe o dia em que um robô terá completa autonomia e não precisará de humanos para existir — e aí saberemos se a questão sobre seu estatuto legal será, de verdade, o nosso principal problema com as máquinas. Contudo, a partir de uma mirada filosófica ou ética, as inteligências artificiais (IA) estão, desde que apareceram, dando espaço para muitas discussões. A começar debates sobre quais valores serão inseridos nesses supercomputadores. O exemplo dos carros sem motorista é sempre mencionado para explicar esse paradigma. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 48/62 Um carro autônomo do Google em um cruzamento na cidade de Mountain View, na Califórnia, em março de 2016. Em uma eventual situação de acidente, o carro sem motorista respeita um protocolo já estabelecido anteriormente, mas não está claro quem estabelece esse protocolo. É o engenheiro que programou o carro? Pode ser personalizado para que cada dono do carro possa escolher a maneira como o seu automóvel vai se comportar? Tais problemas já acontecem atualmente com casos mais simples. Quando aplicativos de navegação sugerem determinadas rotas, mesmo que mais perigosas, com muito mais curvas ou mais sinais de trânsito, porque, numa situação ideal, tais caminhos são os que exigem menos tempo para percorrer a distância, já estamos vivendo um cenário parecido. Há um critério anterior (menor tempo) estabelecido para se chegar do ponto A ao ponto B e todos os demais parâmetros são colocados em segundo plano. Não é considerada a preferência do motorista (um caminho com menos curvas, por exemplo) ou mesmo sua segurança. Muitas vezes essa desconsideração acontece porque tais aplicativos são internacionais e não se adaptam às realidades locais. Outras simplesmente por ainda não haver uma tecnologia tão precisa assim ou, ainda, por não haver interesse para esse “detalhe”. Mesmo que tais aplicativos possam ser customizados, há sempre limites para a influência que exercemos sobre essas tecnologias. O melhor exemplo, nesse caso, é o das redes sociais. É elucidadora a maneira como os algoritmos priorizam certos conteúdos — geralmente mais polêmicos, que geram maior engajamento, mais discussões — em detrimento da antiquada e chata informação correta. Se a questão das redes sociais já está afetando diretamente a democracia e o comportamento das pessoas, bem como dividindo a sociedade num eterno nós contra eles, tal pensamento pode ainda 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 49/62 ter outras influências em diferentes segmentos. Se uma IA for programada para produzir o máximo possível numa indústria, ela o fará muitas vezes em detrimento do próprio homem. Há um conto do escritor americano de ficção científica Philip K. Dick que expõe bem esse aspecto. Autofac, publicado em 1955, mostra uma sociedade completamente arrasada após uma guerra nuclear. Nesse cenário, há uma fábrica operada por inteligências artificiais que precisa continuar produzindo, mesmo que não haja mais mercado consumidor. Não seria, por enquanto, possível “prever o imprevisível”. Se algo ocorrer fora do escopo da programação da máquina inteligente, ela não saberá se adaptar às novas condições. Já existem novas versões de computadores que são autoprogramáveis, que poderiam criar saídas para situações como essa — ou a propaganda quer, dessa forma, que nós acreditemos nas supermáquinas. Mas, nesse caso, ainda não teríamos uma solução para como uma inteligência artificial deveria se portar em relação ao humano. Teóricos sugerem que o nosso melhor “legado” para as máquinas seria o nosso humanismo. Pelo lado bom dessa interpretação, seria colocar o homem no centro das questões a ponto de impedir que uma máquina cause mortes por tentar atingir cegamente suas metas. Mas há diversos lados ruins dessa questão. A começar: que homem estaria no centro? Os habitantes de países pobres teriam o mesmo peso que os de países ricos? E os outros seres, como os animais não humanos, mencionados recentemente, continuariam vistos apenas como objetos para o uso humano? Por fim: estaríamos vivendo, atualmente, o melhor dos mundos possíveis, como disse certa vez o filósofo alemão do século XVII einício do XVIII G. W. Leibniz? Gottfried Wilhelm Leibniz. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 50/62 Será que no momento atual, com o aquecimento global, com a feroz concentração de riquezas nas mãos de pouquíssimas pessoas, com o aparecimento de pandemias assustadoras, não seria melhor pensar em um outro mundo, em que o homem não estivesse tão no centro assim? Em que ele compartilhasse essa centralidade ou simplesmente a entregasse para outros seres — para o planeta, por exemplo? Isso sem falar no custo — político, social, ambiental etc. — que tais inteligências artificiais arrastam consigo. Logo após o golpe de Estado na Bolívia em 2020, o multibilionário do ramo da tecnologia Elon Musk chegou a afirmar, de forma parcialmente irônica e parcialmente desafiadora, que se deveria dar um golpe em quem precisasse para que sua empresa continuasse a prosperar. Não deve ser coincidência que grande parte da reserva mundial de lítio, um mineral essencial para a construção de baterias de celulares e carros elétricos (ramo de uma das empresas de Musk), fica na Bolívia. Elon Musk. Se quisermos adaptar essa ideia de humanismo para outros modos, seria possível pensar que deveríamos determinar um código de ética para as máquinas, diretrizes que elas devem respeitar acima de quaisquer outros valores, códigos que não poderiam nunca ser quebrados. Mas quem determinaria tal constituição? Quais países teriam poder de influir sobre isso? As nações ricas dividiriam o poder com as pobres? E as empresas de tecnologia, cada vez mais poderosas e ricas, renunciariam o controle de suas próprias criações para deixar que um conselho plural determinasse como suas máquinas deveriam se comportar? E se essas determinações restringirem os lucros dessas empresas? 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 51/62 É difícil acreditar nisso, considerando que nem mesmo uma regulação externa é bem aceita por essas empresas, que logo dizem que estão sendo censuradas. O possível surgimento de máquinas mais inteligentes que os humanos coloca a própria humanidade a se olhar no espelho. Se a razão, como vimos também, é a forma como o homem sempre quis se identificar, encontrar outro ser que nos ultrapassa na nossa principal característica nos faz pensar que talvez não seja essa a nossa principal característica ou, se for, há outros seres mais “humanos” que nós mesmos. Direitos de diversos seres Uma das consequências diretas de se pensar o mundo colocando o homem no seu centro é o que está sendo chamado de Antropoceno: uma nova era geológica em que o principal fator de mudança (termodinâmica, geomorfológica, física, climática) não é mais um ente “natural”, mas o homem e suas criações. Uma das consequências mais imediatas é a crise ecológica com o aquecimento global e as drásticas deteriorações nas áreas habitáveis. Como visto, com o homem no centro do mundo, todos os demais entes são apenas matéria-prima para ele se utilizar. Os animais não humanos, já mencionados, se transformam em seres para o consumo, com pouco espaço para exercitarem suas vidas independentemente. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 52/62 Segundo o IBGE, em 2019, havia mais bois que homens no Brasil, todos para o corte ou para produção de laticínios, mas não são apenas eles que sofrem na mão humana. Também os minerais são tratados de maneira similar, como um estoque para servir a grandes empresas. As florestas são reserva de madeira e futura área de pasto. Monoculturas que provocam os esgotamentos nutricionais dos solos, que alimentarão outros animais, que, por sua vez, servirão de alimento para os humanos. Mesmo com outras opções, o fluxo das águas segue sendo canalizado para produzir energia. Nada tem espaço, menos ainda tempo, para se renovar na própria velocidade. São extraídos de forma violenta, retirados industrialmente de seus hábitats para atender o homem. Além disso, para alguns grupamentos humanos não ocidentais, certos usos do seu território são considerados um sacrilégio. Para dar um exemplo entre muitos: na Austrália, o povo Anangu acredita que todos os seres, inclusive os elementos da paisagem, foram criados por seres antigos, seus antepassados. Isso inclui a montanha Uluru, um monolito de arenito de 348 metros de altura, que é um dos pontos mais famosos da região. 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 53/62 Por conta do seu aspecto particular, um morro vermelho no meio de uma vasta planície, Uluru foi, por muitos anos, um ponto turístico que atraiu diversos escaladores. Ao longo dos anos, porém, houve vários acidentes, inclusive fatais, muitos deles provocados pela erosão de dejetos industriais deixados pelos turistas. O povo Anangu — povo que vivia ali por séculos e chegou a ser impedido de habitar o espaço — exigia que a montanha fosse fechada. O argumento é simples no discurso, complexo no subtexto: Uluru é sagrada e deve permanecer intocada. O problema é que o governo australiano, mesmo depois de devolver a terra para os Anangu, liberava as escaladas. Apenas em 2019, Uluru foi fechada por completo. Montanha Uluru, Austrália. Há casos ainda em que outros seres não humanos se tornaram sujeitos de direito. O caso mais anedótico aparece na Colômbia, para onde o traficante de drogas Pablo Escobar transportou hipopótamos africanos que, após sua morte, se reproduziram sem limites e invadiram as florestas tropicais. Esses hipopótamos, atualmente, são considerados uma praga, a maior espécie invasora do mundo. Não há qualquer predador ou animal do mesmo porte que dispute os territórios com eles. O governo colombiano estava estudando liberar o abate, para diminuir o número de indivíduos, que está em torno da centena, entretanto, em 2021, uma decisão judicial os considerou sujeitos de direitos, que não podem ser mortos. Ficou decidido, então, que serão utilizados dardos anticoncepcionais. Um caso mais paradigmático aconteceu em países vizinhos: Bolívia e Equador. Com a ascensão ao poder de presidentes ligados a movimentos indígenas em ambos os países, foi decidido que a constituição dessas nações deveria ser reescrita, para, entre 06/06/2023, 21:06 Ética, direitos humanos e direitos não humanos https://stecine.azureedge.net/repositorio/00212hu/03193/index.html#imprimir 54/62 outras questões, incluir a variedade dos povos da região. Foi o início do chamado novo constitucionalismo latino-americano. Cerimônia de celebração à Pachamama. Ambos os países viraram plurinacionais, mas as intervenções judiciárias não pararam aí. Tanto Bolívia quanto Equador incluíram em suas legislações as filosofias da Mãe Terra — Pachamama — e do bom viver, relacionadas com diversos grupos étnico-sociais que habitam aquelas áreas muito antes de o primeiro espanhol pisar em terras americanas. Na Bolívia, apesar de não aparecer na Carta Magna, foi criada uma lei específica para reconhecer o caráter jurídico da Mãe Terra como sujeito coletivo de interesse público. Identifica a interculturalidade como princípio para o exercício dos seus direitos, reafirmando a necessidade de diálogo e harmonia com a natureza. Um dos artigos da lei afirma que os bolivianos e as bolivianas são parte da Mãe Terra, não sujeitos que centralizam e se utilizam de todos os demais seres. Também foi criada uma defensoria pública para os interesses da Mãe Terra, que tem como fim zelar pelo cumprimento dos direitos de Pachamama. O Equador foi além: colocou o direito de Pachamama e do bom viver dentro da própria constituição. Seu artigo 10 fala que a natureza terá seus direitos
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