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Pensamento Político O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Américo Soares da Silva Revisão Textual: Profa. Ms. Rosemary Toffoli 5 • O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Nossa recomendação a você estudante é dividir seus estudos em etapas: primeiro, faça uma leitura atenta do texto, neste momento não é tão importante fazer marcações, busque uma compreensão de conjunto. No segundo momento, retorne ao texto, mas, desta vez, você já conhece o final da história, não é mesmo? Então, ao retornar você o fará com um olhar de investigador(a); busque pelos pontos principais: quem são os personagens mais relevantes dessa “história”? Que ideias cada um deles defendia? Por quê? Outras questões são colocadas ao longo do texto para sua reflexão? Quais são elas? E, finalmente, é sempre bom estar atendo ao vocabulário, não somente aquele já indicado no texto, mas, além disso, sempre procure o significado das palavras quando surgir alguma dúvida. · Iremos abordar, nesta unidade, o desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga. Começamos mencionando a antiga Atenas e sua versão para a democracia. Lá estava presente a figura de Sócrates, filósofo, importante para o desenvolvimento da filosofia como também – por suas ações – deixou algumas contribuições para o pensamento político. Nunca é demais lembrar que a antiga sabedoria grega incluía não só a tentativa de entender a natureza, mas, também a de entender o mundo humano, sua moral, sua justiça e sua política. O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga 6 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Contextualização 7 O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Ao iniciarmos um diálogo sobre política inevitavelmente, devemos voltar ao início. Mas, ao início do quê? Em qual lugar? Se tivéssemos uma janela mágica que nos permitisse ver qualquer lugar, em qualquer época, qual o melhor lugar para dar uma “espiadela”? O lugar e o tempo que melhor poderia indicar o desenvolvimento da política? Certamente, não existe um lugar único e definitivo para olharmos, mas, sem dúvida, para o propósito aqui buscado, podemos estabelecer um ponto de partida. As primeiras aglomerações humanas na Pré-história? Muito distante. A declaração universal de direitos fundamentais, já no início da segunda metade do século XX? Muito perto. Aceita uma sugestão, Leitor(a)? Então, me permita... Você Sabia ? Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia das Nações Unidas aprova a resolução que adota a declaração universal dos direitos humanos, que é um marco na proteção da pessoa humana, reconhecendo que independente de credo, etnia ou religião alguns direitos são fundamentais e como tais devem ser respeitados e preservados no mundo todo. (confira trecho da declaração na íntegra: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm) Voltemos para a antiga cidade de Atenas, por volta do século V a.C., é lá, nesse período de intensas transformações, que os atenienses fizeram inúmeras contribuições que deixaram marcas profundas na cultura ocidental. É com os antigos gregos que surge a ideia de democracia. Você Sabia ? Você sabia que democracia significa poder do povo? A junção da palavra demos que os gregos usavam para designar genericamente o povo; e, kratia que se deriva de kratos, cujo sentido remete à “autoridade”, “poder” obtém-se a palavra democracia, que descreve uma situação política em que o poder de governar pertence ao conjunto dos cidadãos. Assim leitor(a), é necessário colocar esse evento histórico sob uma lente de aumento, focar nos principais personagens dessa trama. O primeiro deles é considerado por muitos como o pai da filosofia - ao ponto de se dividir o período da história do pensamento como antes e depois dele - estamos falando de Sócrates. Seus antecessores ainda manteriam preocupações voltadas para o entendimento do Mundo e da natureza das coisas, não que Sócrates fosse alheio totalmente a essas preocupações, mas a sua busca pela Verdade passava, constantemente, pelas discussões sobre a política e a ética. http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm 8 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Glossário (Verdade) Alétheia: Palavra composta pelo prefixo negativo a e pelo substantivo léthe (esquecimento). Trata-se, assim, do não-oculto, do lembrado, aquilo que se torna visível, evidência. (adaptado de: CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. I – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 494. Política, do grego pólis, que significa “cidade”. O regime democrático ateniense antigo contava com uma assembleia, e é no espaço dessa assembleia que aconteciam importantes discussões sobre os rumos tomados pela pólis. Atenção a esse ponto, Leitor(a)! Ao se permitir a discussão com ela vinha acompanhada a divergência de ideias; esse inclusive era um dos diretos básicos do cidadão ateniense daquele tempo: isegoria, liberdade de falar frente aos demais. É neste espaço que o desenvolvimento da Filosofia ganha impulso, costuma-se dizer inclusive que “a filosofia é filha da cidade” e neste caso podemos acrescentar que a política grega é sua irmã. E o que tudo isso têm haver com o velho Sócrates? Calma Leitor(a), chegaremos lá, antes disso, também é importante mencionar que Sócrates fazia parte de um privilegiado grupo de homens atenienses que gozava de cidadania. A cidadania era permitida apenas aos homens adultos nascidos em Atenas. As mulheres dos atenienses não gozavam dos mesmos direitos políticos dos homens; todos os estrangeiros - e não estamos falando de outros povos, mas de gregos cuja origem é outra cidade-estado - tantos esses como suas esposas também não tinham direitos políticos; mesmo os jovens atenienses também ficavam de fora dos processos de decisões; e, é necessário que se mencione, a sociedade grega antiga, assim como outras civilizações, também era escravocrata, e obviamente, Leitor(a) que os escravos não dispunham de nenhum direito. Mas Sócrates era ateniense nato e junto aos demais homens adultos participava das decisões políticas da cidade. A figura de Sócrates era envolta em uma aura de idiossincrasias: embora fosse reconhecido por muitos como um sábio, e muitas vezes privasse da companhia de atenienses considerados bastante prósperos, ele era tido como negligente em relação aos próprios negócios, nem por isso deixava de se importar vivamente com os acontecimentos que afligiam a cidade - é preciso levar em conta também que nessa democracia insipiente, na antiga Atenas, considerava-se as funções públicas dos cidadãos como um dever cívico. Na sua busca por conhecimento, Sócrates tivera contato com outros pensadores que iniciaram sua busca pela sabedoria antes dele, de qualquer modo, suas andanças o levaram até o oráculo de Delfos, e lá lhe teria sido dito que ele, Sócrates, era “o mais sábio entre os homens”. Não foi algo que fizesse Sócrates se gabar, ao contrário, inconformado com essa sentença, ele retornou a Atenas e passou a trilhar o caminho de busca pela Verdade através do diálogo com seus contemporâneos. Assinale-se, Leitor(a), que tudo o que sabemos a respeito do pensamento socrático chegou até nossos dias graças aos trabalhos de Platão, seu discípulo - de quem falaremos mais a frente - , uma vez que, o próprio Sócrates não nos legou nada por escrito. 9 Uma característica marcante no pensamento de Sócrates é a ironia, aquilo que mais tarde ficaria conhecido como a ironia socrática, esta chamada de maiêutica (Ei Leitor(a)! não deixe de consultar o vocabulário!), de acordo com esse método, Sócrates abordava seu interlocutor com algumas perguntas, tais como: o que é virtude? O que é coragem? Ou o que é justiça? etc. ... Diante das primeiras respostas, novas questões eramcolocadas o que forçava o interlocutor a refletir sobre as suas respostas e não deter seu pensamento apenas em uma definição pronta que esse interlocutor teria assimilado como senso comum. Na prática os questionamentos socráticos “encurralavam” o interlocutor, este era forçado a reconhecer que não tinha conhecimento sobre aquilo que antes afirmava saber, não à toa que Sócrates mesmo costumava alegar: “Só sei que nada sei”. Esse método dialético impressionava muitos os jovens da cidade que se reuniam na Ágora, para ouvir o velho Sócrates. Contudo a admiração dispensada por alguns não livrou o sábio de criar inimizades; muitos dos homens influentes da cidade não eram partidários de admirar a afiada prosa socrática. Neste ínterim, havia um grupo de sábios que competiam com a influência exercida pela sabedoria socrática, a saber, os sofistas. O retrato que chegou a nós desse grupo também se deveu muito a influência da narrativa platônica, o que durante muito tempo revestiu o grupo com manto nada elogiável, ao ponto de serem associados com verdadeiros charlatães e oportunistas. Hoje historiadores da filosofia reconhecem que, primeiramente, não eram um grupo homogêneo, em segundo lugar, que poderíamos encontrar uma reflexão bastantes interessante sobre o relativismo da Verdade. Glossário Maiêutica (Maieutiké): “Arte de realizar um parto. A palavra maieútria, parteira...Platão criou a palavra maieutiké para referi-se ao ‘parto das ideias’ ou ‘parto das almas’ realizado pelo método socrático. A mãe de Sócrates era parteira.” ( confira: CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. I – São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 505. E o aspecto político, Leitor(a)? Como dissemos antes, Sócrates preocupava-se principalmente com os rumos da sua cidade, o que levaria sua maiêutica no encalço da Verdade, mas essa verdade deveria “revelar” ideias definitivas sobre questões como justiça e virtude, no entanto, o que os sábios estrangeiros faziam era exatamente o contrário, observando a dinâmica da democracia ateniense, eles perceberam que a Verdade poderia ser algo relativo, principalmente no território político. Atenção neste aspecto, Leitor(a)! As deliberações na democracia ateniense eram feitas por votação na assembleia que lidava com todos os assuntos, fossem civis ou militares, aos seus participantes - cidadãos atenienses - estava assegurada à isonomia (pela igualdade no peso do voto) e a isegoria (direito de falar), seria muito difícil de imaginar que neste contexto o discurso teria um papel de extrema relevância? Que uma comunicação mais eficiente, mais convincente poderia vencer um litígio? Abrir caminho para se aprovar ou revogar uma lei? Certa vez um filósofo contemporâneo associou a ideia de força e de política na democracia da seguinte forma: 10 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga “... Se, numa democracia, um partido tem peso político, é porque tem força para mobilizar um certo número de eleitores. Se um sindicato tem peso político, é porque tem força para deflagrar uma greve. Assim, força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção, mas de meios que me permitam influir no comportamento de outra pessoa...”(LEBRUN, 1981, p. 11-12) Embora Lebrun tivesse em mente as democracias modernas ao dar a sua exemplificação de força no sentido político, podemos, sem dificuldade, aplicá-la em nossa reflexão acerca da política na Grécia antiga (no caso da democracia ateniense). O que fizeram os sofistas ao perceber essa conexão entre “discursar bem”, “convencimento” e “influência política”? Tornaram-se instrutores de retórica, como não participavam diretamente da assembleia ateniense, afinal eles eram oriundos de outras cidades-Estados e, portanto, estrangeiros, limitaram-se a instruir, a quem pagasse, técnicas para a elaboração de argumentações mais eloquentes, tendo em vista que em seu entendimento a “Verdade” seria àquela que obtivesse a adesão necessária para prevalecer sobre “outras Verdades”. Essa aceitação pura do jogo de força política deixou Sócrates indignado. Para Sócrates, o conhecimento da Verdade era essencial para o aprimoramento da cultura e da vida dos próprios atenienses; buscar por um conceito de justiça que não fosse relativo, era buscar por uma certeza de estar fazendo o melhor ou da melhor maneira em todas ocasiões, abrir mão disso seria ceder a forma enfeitada do discurso que não teria ganho duradouro, mas apenas a vitória momentânea, o que inclusive abriria espaço para preconceitos com os quais se contaminariam tomadas de decisão. Por outro lado, os ensinamentos de Sócrates (suas interlocuções) aconteciam no espaço público da Ágora, não havia distinção entre quem quisesse participar, o conhecimento era aberto a todos. Pode-se disser, então, que “aulas de retórica” pagas poderiam também corroer a isonomia, entre os participantes da assembleia? Uma vez que os homens que melhores condições poderiam polir sua isegoria, ao passo que os mais humildes não poderiam? Isto Leitor(a), abre espaço para uma reflexão sobre um tema muito importante: “Qual a relação entre a ética e a política?” Em tempos contemporâneos, quando surge um clamor, um chamado à responsabilidade; tem se propagado a ideia de um reencontro entre a ética e a política. Vale destacar que para os atenienses daquele período essa separação não era nítida; a postura de um cidadão naquilo que se referia aos seus negócios em particular e o que era dese esperado em relação aos negócios públicos tenderia a não ser diferente - essa diferenciação será discutida na unidade II desta disciplina - autores como Platão e Aristóteles, cujo pensamento político discutiremos um pouco mais a frente, também se engajariam na manutenção articulação entre ética pública e ética privada. A preocupação socrática apontaria para a possibilidade de um uso malicioso dessas técnicas de convencimento, alimentado pela ambição, impressionasse espíritos menos preparados, deixando, assim, as questões ligadas à justiça em segundo plano, nesse sentido prejudicando o conjunto da cidade. 11 Por uma cruel ironia, isso veio a se materializar contra o próprio Sócrates. Em meio a uma crise política e econômica (Uma dica Leitor(a): pesquise a Guerra do Peloponeso). Sócrates foi acusado de corromper os jovens da cidade com sua filosofia, levando-os a se afastar dos deuses da cidade. Como fora dito, Sócrates tinha admiradores e desafetos; acusá-lo injustamente poderia servir para acalmar e desviar a atenção de ânimos exaltados com a situação do momento. O fato é que a dupla insinuação: de ateísmo e de levar outros pela mesma via, era algo considerado grave o bastante pelas leis atenienses para resultar em pena de morte. Como ditavam os costumes da época, Sócrates compareceu diante dos juízes na assembleia para confrontar seus acusadores... O relato do julgamento chega até nós através do texto de Platão: Apologia a Sócrates descreve a disputa de Sócrates, que interroga habilmente seus acusadores, que faz uma defesa da sabedoria como instrumento político, e o faz com muita altivez. Ao final, quando a sentença de culpado já pesava sobre sua cabeça, Sócrates não dava qualquer sinal de abatimento: “...Não estou indignado, ó homens de Atenas, por terdes me condenado, e isso por muitas razões , entre as quais o fato de vossa decisão não ter constituído uma surpresa para mim. O que mais me surpreendeu, de fato, foi o número de votos a favor e contra essa condenação, pois não pensava que a decisão fosse através de tão poucos votos, mas através de uma grande quantidade deles. Tal como se apresenta o caso, a mudança de apenas trinta votos teria causado a minha absolvição...” (Platão, 2011, p. 76). Como o júri seria composto por 501 atenienses, afirmar que apenas 30 votos mudaria a sentença, isso mostra o quanto o resultado pela condenação foi apertado. Mais do que isso Leitor(a), a sentençapoderia ter sido convertida em penalidade financeira; no entanto, Sócrates, que contava com alguns aliados com boas posses que se ofereceram para pagar a multa que seria imposta, recusou-se. E qual o motivo? Vaidade? Arrogância? Convicção extremada? O fato é que o final trágico causou uma profunda impressão no desenvolvimento do pensamento filosófico, principalmente, quando este se voltava a abordar o tema da política. A sentença deveria ser executada na manhã seguinte, falou-se até em uma fuga armada para salvar o sábio, contudo, novamente ele recusou. Recusou qualquer tipo de tratamento diferenciado à aquilo que fora condenado, recusou contradizer anos de serviços públicos prestados à cidade, na elaboração e na defesa de suas leis (não esqueçamos Leitor(a), o filósofo era cidadão ativo de Atenas), talvez, o mais importante, recusou contradizer a si próprio, as convicções que o levaram a ser quem ele era. Na manhã seguinte, recebeu de um guarda a sicuta, o veneno produzido à base de certas plantas, que levava à paralisia progressiva e, posteriormente, à morte. Sem demonstração de embaraço, Sócrates ingere o veneno e deita-se para deixar o mundo dos vivos... O velho sábio não havia passado a última noite sozinho, alguns de seus amigos mais próximos ficaram com ele em vigília, aguardando a hora final; entre esses, estava presente um jovem chamado Aristócles, mas que devida a sua compleição robusta, era sempre conhecido como Platão. 12 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga O jovem Platão passará o restante da vida dedicando-se não só a sabedoria; - sua filosofia buscaria compreender também a natureza do universo, aspecto negligenciado por seu mestre - mas, articulada àquela, uma procura por um modelo de política que fosse mais justo. Essa preocupação cívica conduziria Platão na busca de uma forma de governo capaz de ir além da democracia. No seu entendimento, o governo democrático de Atenas havia revelado sua face obscura sobre os efeitos da demagogia. Glossário Demagogia: Do grego demos (povo) e de agogós (conduzir), seria portanto algo como “conduzir o povo”, mas no contexto da discussão esse “conduzir” tem conotações de maledicência, é muito mais “manipular o povo ou a audiência”. Discursos cuja forma ocultava conteúdo malicioso seriam capazes de manipular espíritos menos preparados e induzir a assembleia democrática aos extremos de injustiça como condenar inocentes. No entendimento platônico, a finalidade da política não seria promover a infelicidade dos cidadãos, ao contrário, deveria, sim, assegurar essa felicidade através de um governo justo. Assim sendo, Leitor(a), ficam perguntas no ar tais como: Como governar? Quem deveria governar? Como evitar que a ambição e o interesse particular fizesse uso de demagogia e a tudo contaminasse? Para se alcançar um caminho que possa responder essas questões sob a ótica platônica, é necessário procurar pela ideia de Platão sobre Justiça. Esse entendimento pode ser melhor obtido recorrendo-se a uma das alegorias pelas quais o pensamento platônico ficaria mais famoso: O mito da Caverna. Quando você Leitor(a) se debruçar sobre o texto de Platão, encontrará uma reflexão toda articulada na forma de diálogos, mas, licença literária a parte, o que procuramos em seu mito é a articulação entre sabedoria, justiça e política. De forma mais compacta, o mito da caverna descreve um cenário em que homens aprisionados no fundo de uma caverna, sendo que, os cativos são mantidos acorrentados a um muro e seus pescoços também imobilizados só os permite observar a parede do fundo da caverna que, por sua vez, recebe uma fraca luz que veem por cima do muro. Do outro lado do muro, trabalhadores carregam objetos, como vários objetos ultrapassam a altura do muro a luz fraca - vinda de uma tocha no centro da caverna - projeta sombras sobre o muro no fundo da caverna. Lá os prisioneiros, que só podem olhar para essa parede, tendem a crer que aquele “teatro de sombras” corresponde à realidade. Seria Leitor(a), uma versão mais dramática daquela brincadeira de crianças, em quê a criança brinca de projetar formas na parede utilizando a luz de uma lanterna ou de uma vela. Questões de verossimilhança, de como os prisioneiros foram parar lá ou de como é possível permanecerem imobilizados o tempo todo, não vem ao caso. Assim como não vem ao caso de como alguns deles conseguem escapar das correntes e fugir de seu cativeiro. 13 Durante a fuga, percebem que a luz emana de uma tocha no centro da caverna e que as sombras que viam eram um tanto quanto diferentes dos objetos carregados próximo ao muro; como se não bastasse, ao fugir para o mundo exterior, deparam-se com uma luz cegante, que poderia deixá-los aflitos e confusos, todavia, tão logo se acostumam com essa realidade já conseguem divisar formas nunca antes vistas, cores nunca antes sonhadas, ou seja, Leitor(a), eles estariam diante da verdadeira realidade, realidade que ultrapassaria imensamente o simples teatro de sombras ao qual estavam acostumados. Em síntese, e com alguma liberdade descritiva de nossa parte, esse seria o célebre mito da caverna, descrito no capítulo VII do livro A República de Platão. Tal imagem é extremamente rica de simbologias, entretanto, devemos nos manter ancorados no tema da nossa discussão. Das muitas interpretações possíveis, Leitor(a), vamos considerar a seguinte: a) Que os prisioneiros no fundo da caverna sejam os homens comuns. b) As correntes que os prendem são o produto de sua própria ignorância, a qual também limita seus movimentos. c) Encarcerados como estão, as sombras em movimento do fundo da caverna lhes parece como sendo reais. d) Libertar-se poderia ser produto de um feliz acaso, mas, como veremos a frente, seguindo a linha de raciocínio platônico, tratar-se-ia muito mais de um lampejo de genialidade, permitindo que o indivíduo desconfiasse da sua realidade e da sua própria ignorância o que afrouxaria as correntes. e) Ao fugir, veria uma “estrutura” funcionando sem que ele prisioneiro soubesse (as pessoas trabalhando do outro lado do muro) e que nada fizeram para libertá-lo. f) Finalmente, o mundo exterior, representaria o conhecimento mais amplo da realidade, o que permitiria ao agora ex-prisioneiro ter uma vivência que iria além daquilo que antes poderia imaginar. A todos esses fatores, Leitor(a), faltou um que havíamos deixado propositadamente de fora, a saber, o retorno. Sim, Leitor(a), os ex-prisioneiros, por compaixão, solidariedade, ou por simples indignação, tentam retornar à caverna, com a finalidade de levar a boa nova aos seus antigos camaradas de cárcere, quiçá, também libertá-los. Infelizmente, segundo o próprio Platão, eles não seriam bem recebidos, ao contrário, poderiam ser mesmo hostilizados, justamente por tentar desmentir a “realidade” a qual esses prisioneiros se encontram acorrentados. O que leva a um último item: h) Ao tentar libertar os cativos, os ex-prisioneiros sofreriam grande rejeição dos antigos companheiros, podendo mesmo ser agredidos por tentar arrancá-los das sombras. 14 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Atingimos um ponto especialmente importante aqui, Leitor(a); para Platão, o conhecimento ou a sabedoria é algo difícil de atingir, deve ser buscado e, ainda assim, nem todos são capazes de atingi-los, ou, pelo menos, capazes de fazer isso imediatamente. Outro aspecto muito importante é Platão compreender que a sabedoria permite alcançar o mundo ideal, o lugar em que estão as ideias perfeitas, os conceitos imutáveis, que têm essa característica justamente por serem verdadeiros (Começando a associar isso com a “saída da caverna” Leitor(a)?). De qualquer maneira, o pensamento platônico identifica como meta a busca pelo Bem Supremo o qual se identifica com a Verdade sobre todas as coisas, pois bem, Leitor(a), imaginem agora de qual mundo seria derivada a verdadeira Justiça? Do mundo imperfeito- o teatro de sombras - ou do mundo perfeito da luz e da sabedoria? Se você, Leitor(a), respondeu “da sabedoria” está correto. Mas a pergunta que ressurge pertinentemente é: “e a política”? Como isso tudo está ligado ao pensamento político platônico? Lembremos: como contemporâneo ao julgamento de Sócrates, o então jovem Platão também pautaria sua reflexão por uma busca de uma forma de governo, uma política mais justa que fosse melhor que a democracia. Ao alinhar sabedoria e justiça - Platão abre espaço para uma solução que parece simples na essência, mas bastante desafiadora para sua implementação. Ora, se a busca é por um governo mais justo, e se a justiça caminha lado a lado com a sabedoria, então, um governo de “sábio” seria um governo justo, e qual a melhor maneira de assegurar essa “sabedoria” por parte daqueles que viessem a governar a cidade? Resposta platônica: colocando sábios para governar. E daqui, Leitor(a), que Platão tira a sua famosa ideia de que “os rei devem se tornar filósofos ou os filósofos devem se tornar reis”. É bastante provável que, neste ponto, você venha a considerar, até com muito bom senso, que a ideia é “colocar alguém sábio no poder”. À primeira vista, não chega se contrapor a espíritos mais modernos, acostumados com modelos mais complexos e mais sofisticados de democracia. Outra vez lembremos, por um lado, da desconfiança platônica em relação à democracia que, em seu entender, era presa fácil para demagogos; por outro, como na alegoria da caverna, não seriam todos que conseguiriam se livrar das correntes e ascender para fora da penumbra; alguns só estariam prontos para isso muito tempo depois de libertos ou sequer poderiam sair da caverna algum dia. De qualquer forma, seria necessário pensar em um grupo seleto de homens e mulheres – sim, Leitor(a), Platão acreditava que as mulheres deveriam participar do processo - que estariam em condições de obter a sabedoria necessária para governar. Então, como localizá-los? Como assegurar que os integrantes desse grupo venham a governar a cidade? Entramos, finalmente, na proposta direta de Platão para a construção de uma cidade ideal, adentramos no terreno da Utopia. Glossário Utopia: Do grego outopos significa “em nunhum lugar”, portanto, lugar ou algo que não existe, contudo, isso não quer dizer que não possa vir a existir. 15 Mas se um lugar “não existe” para quê ele nos serve? Um lugar que não existe pode apontar a direção, o sonho daquilo que possa um dia vir a existir. A proposta platônica tem essa característica: a possibilidade. De que maneira ela se desenvolveria? Como Platão partia do princípio de que a natureza dotara as pessoas de diferentes capacidades (outra vez a caverna: uns conseguem sair mais facilmente, outros não), o mais sensato era distribuí-las de acordo com essas mesmas capacidades. Platão relaciona três principais “perfis” presentes na natureza humana e que corresponderiam aos postos a serem ocupados dentro da cidade ideal. O primeiro: são aqueles cujo desejo e o apetite domina o comportamento, segundo Platão, teriam melhor aproveitamento fazendo as funções de trabalhadores braçais – agricultores, artesões e comerciantes. O segundo: são aqueles que, tendo temperamento colérico, poderiam canalizar a sua fúria para a guerra, seriam protetores os soldados necessários para a proteção da cidade. O terceiro: caberia aos mais dotados de racionalidade que demonstrassem aptidão para a sabedoria e com ela se colocariam em condições de exercer as funções de magistrados, caberia a este grupo legislar e guiar a cidade para um cenário de justiça e felicidade. Todo o problema, Leitor(a), é identificá-los, trazer a tona cada uma dessas habilidades. Qual o caminho? Resposta: a educação. A ele interessava que os mais sábios atingissem a condição de líderes da cidade, tendo a função de magistrados. Não importava a origem social desse futuro magistrado; Platão, inclusive, surpreende ao incluir a possibilidade das mulheres participarem do processo de tal forma a ocuparem cargos, fosse no exército, fosse no governo. Porém, Platão bem sabia que a diferença da riqueza das famílias poderia influenciar e distorcer o processo de preparação e seleção. Ora, Leitor(a), é tão difícil de crer que famílias mais abastadas poderiam oferecer o que há de melhor em termos de preparação, enquanto os filhos dos mais humildes teriam mais dificuldades em uma seleção para qual não foram devidamente preparados? O que dizer então de possíveis “pressões” geradas a partir de cargos de influência? Não, Leitor(a), Platão não queria à frente de sua cidade ideal uma elite de pseudo-sábios, formada mais por seus privilégios anteriores e menos por sua verdadeiras capacidades intelectuais. Assim sendo, o filósofo propõe um processo educacional a ser ministrado pelo Estado (cidade) de maneira a assegurar seu objetivo final: governantes sábios. É importante assinalar, Leitor(a), que o processo dessa educação especial seria longa e severa. Tudo se iniciaria já no estágio da educação básica, crianças com idades a partir dos três anos já seriam submetidas a jogos educativos – ressalte-se, ainda, que Platão propunha que as crianças fossem educadas por amas, para não haver no início nenhum favorecimento. 16 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Ao alcançarem a idade de 20 anos, esses jovens já estariam em condições de serem submetidos a testes – outro detalhe relevante: nessa idade, Leitor(a), os jovens já deveriam ter sido iniciados no treinamento militar. Haveria rigorosas provas sobre tudo que aprenderam até aquele momento, a falha, revelariam aqueles que – na terminologia platônica – teriam alma de bronze, isso equivaleria às almas mais inclinadas para o prazer e o desejo. A estes caberia aprimorar a virtude da temperança e, assim, colocarem –se a cargo da economia e da subsistência da cidade. Sim, Leitor(a), esse seria o grupo que cuidaria do comércio, da agricultura e do artesanato. O grupo que foi aprovado nesta fase deve continuar seus estudos e treinamento, por mais quanto tempo? Mais 10 anos. Os outrora jovens, seriam adultos. E a estes, estaria reservada uma segunda seleção, desta vez, aqueles que não foram aprovados revelariam a condição de alma de prata, a falha nesta segunda fase deveria relevar a condição colérica da alma, algo a ser cultivado com a virtude da coragem. Se tal for feito, obtém-se desse segundo grupo a classe dos guardiões, pois toda cidade precisa de defesa, e guerreiros – e guerreiras – treinados, ao longo de uma vida, além de mesclar alguma sabedoria à força do combate, certamente seriam os mais indicados para a função. Finalmente, o último grupo, que tem grande importância, depois de passado por muitas provações, seriam os portadores de alma de ouro, o grupo que deveria, segundo o mestre Platão, buscar o conhecimento filosófico através da dialética (veja a definição de dialética). Da arte do pensar permitiria que, quando atingissem 50 anos – isso mesmo, Leitor(a), 50 anos – estariam prontos para assumir a magistratura e governar a cidade. Glossário Dialética: Arte do diálogo e da discussão, segundo Platão, serve para recuar de conceitos em conceitos até chegarmos aos conceitos mais gerais, aos princípios (verbete adaptado de: LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia; trad. Fátima Sá Correia...et al. – São Paulo: Martins Fontes, 1993. Seriam estes magistrados mais justos? Para Platão, seria a única possibilidade de, pois esses sábios conheceriam a justiça, lembremos, Leitor(a): para Platão, sabedoria equivaleria à justiça, portanto, aqueles que por toda uma vida trilharam o caminho da justiça, estariam andando também sobre o caminho da sabedoria. Ao final de tão laborioso processo, Platão esperava encontrar uma cidade que fosse mais virtuosa, mais justa, na qual não aconteceriam coisas parecidas com o julgamento de Sócrates. Por trás dessa “aristocracia de sábios”, quetambém pode ser chamada de sofocracia, está a desconfiança de Platão em relação a pura e simples participação democrática, essa ideia, Leitor(a): de atribuir o poder apenas a quem esteja capacitado a exercê-lo, até hoje desperta discussões apaixonadas, afinal, qual o critério para se reconhecer essa capacidade? Como garantir que o critério não seja uma farsa para justificar a presença de determinados grupos da esfera de poder? 17 Essas continuarão se reapresentando muito tempo depois, das propostas platônicas terem vindo à luz. Cabe aqui, Leitor(a), uma digressão sobre a ideia de “Utopia”; “o não-lugar” de Platão, sua Calipólis, “cidade bela” – pois a filosofia platônica nivela sabedoria, justiça e beleza – nunca chegou a ser colocada em prática. A história nos conta que Platão viajou a Siracusa, até então, colônia grega no sul da Itália (hoje região da Sicília), e chegou a propor ao tirano da cidade que implementasse o seu modelo de cidade ideal. Após fortes desavenças, o tirano ficou tão furioso que ameaçou Platão com a escravidão da qual só escapou graças a um rico armador, seu conhecido. O velho filósofo jamais viu seu sonho de uma cidade perfeita se concretizar. O ponto em questão, Leitor(a), não é o movimento do pensar que no caso da política ajuda a configurar uma Utopia, mas o maior desafio tende a ser materializá-la. Aquilo que parece funcionar tão bem no plano do pensamento, é duramente desafiado pela prática. Quando se trata de poder, os obstáculos para as transformações são sempre muito grandes. E não nos apressemos em acreditar que a força – agora também entendida como coação – pudesse por si só abrir caminho para uma Utopia. Se Platão tivesse nascido rei, teria ele proposto algo que muito provavelmente impediria seus descendentes de herdar seu trono? Essa resposta pode variar conforme maior ou menor simpatia pelo velho filósofo da academia. É muito complicado articular respostas no plano do “se”; as possibilidades daquilo que não foi realizado são praticamente infinitas. Deixemos essa unidade não com uma resposta, mas, com uma questão: “Se para realizarmos uma Utopia – aqui podemos pensar como um projeto de algo – temos que alterar o mundo o para atingir o estágio buscado, como podemos superar os problemas que aparecem na transição entre a velha e a nova ordem?” Você Sabia ? Você sabia que Platão fundou uma escola de filosofia chamada Academia? No ano de 387 a.C, Platão funda, na cidade de Atenas, uma escola de filosofia que recebeu de seu mestre o nome de “Academia”. Difundiu-se uma lenda que haveria uma inscrição na entrada com dizeres como: “não passará daqui aquele que não souber geometria” 18 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Material Complementar Para você se inteirar mais sobre o assunto, sugiro a leitura da seguinte bibliografia. • ARANHA, M.L. de Arruda, MARTINS, M.H.P. Filosofando: Introdução à Filosofia. – 4ªed. – São Paulo: Moderna, 2009. • DE CICCO, Cláudio, GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. - 4ª ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. • LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1989. • PLATÃO. A República; Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. – 9 ed. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001. • ________. Apologia de Sócrates; Tradução, apresentação e notas Edson Bini. – 1 ed. – São Paulo: Edipro, 2011. • REALE, Giovanni, ANTESERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. – São Paulo: Paulus, 1990. • Vídeo recomendado: http://www.youtube.com/watch?v=PfO3tAtHYsA http://www.youtube.com/watch?v=PfO3tAtHYsA 19 Referências LEBRUN, Gérard. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1981 PLATÃO. A República; Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. – 9 ed. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001. ________. Apologia de Sócrates; Tradução, apresentação e notas Edson Bini. – 1 ed. – São Paulo: Edipro, 2011. LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1989. 20 Unidade: O desenvolvimento da filosofia política na Grécia antiga Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000 http://www.cruzeirodosulvirtual.com.br
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