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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO João Vicente Alfaya dos Santos Do inorgânico ao social: uma crítica ontológica à filosofia de Humberto Maturana Florianópolis 2022 João Vicente Alfaya dos Santos Do inorgânico ao social: uma crítica ontológica à filosofia de Humberto Maturana Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Prof.ª Patricia Laura Torriglia, Dr.ª Florianópolis 2022 João Vicente Alfaya dos Santos Do inorgânico ao social: uma crítica ontológica à filosofia de Humberto Maturana O presente trabalho em nível de Doutorado foi avaliado e aprovado, em12 de setembro de2022, pela banca examinadora composta pelos seguintes membros: Prof. Charbel Niño El-Hani, Dr. Universidade Federal da Bahia Prof. Mauricio Vieira Martins, Dr. Universidade Federal Fluminense Prof. Sérgio Lessa Dr. Universidade Federal de Alagoas Prof. Maurício José Siewerdt, Dr. Universidade Federal da Fronteira Sul Prof. Vidalcir Ortigara, Dr. Universidade do Extremo Sul Catarinense Prof.ª Mariana Brasil Ramos, Dr.ª Universidade Federal de Santa Catarina Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de Doutor em Educação. ___________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação ____________________________ Prof.ª Patricia Laura Torriglia, Dr.ª Orientadora Florianópolis, 2022. Na dedicatória também transparece a contradição como princípio de automovimento do ser. Dedico este trabalho, com todo o amor que possuo, aos meus pais. Dedico também este trabalho, com toda minha indignação e revolta, às mais de 680 mil pessoas assassinadas na pandemia pelo capital e pela gestão do presidente da república em exercício no Brasil entre 2018 e 2022, em especial ao professor Mario Duayer. AGRADECIMENTOS Agradeço à professora Patricia Laura Torriglia pela orientação e ensinamentos. Aos membros da banca e qualificação pelas valiosas contribuições. Ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica (GEPOC – UFSC) pelos encontros e aprendizados. Um grupo especial, que se dedica ao estudo da ontologia crítica e ao campo de produção de conhecimento na educação há quase 20 anos. Além do espaço formativo para graduados, mestres e doutores, é também um projeto de extensão, que busca levar o pensamento crítico a todos aqueles que desejam a construção de uma sociedade emancipada. Aos muitos professores que tive durante este doutorado, destacando aqueles que se fizeram presenças virtuais durante o período mais difícil da pandemia. São muitos: A professora Mariana Gouvea, da UFRJ, que ministrou o curso Lendo o capital na quarentena; ao professor Nildo Ouriques pelos cursos O que ler para entender a América Latina e Leitura sistemática da Fenomenologia do Espírito de Hegel; ao professor Rodrigo Bischoff Belli, pelos vários cursos ministrados no projeto As armas da crítica; aos professores Davi Perez, Marlon Garcia da Silva e Claus Akira Horodynski-Matsushigue pelo grupo de estudos da Ontologia do ser social; ao professor Matheus Guarino Sant’Anna pelo curso Para ler os odiados: Freire; ao professor Natan Oliveira pelos cursos Para ler os odiados: Marx e Dialética da Natureza; ao professor Pedro Mandagará Ribeiro pelos diversos cursos de Marx em suas fontes; ao professor Fernando Marcondes pelo grupo de estudos Ontologia do ser social; ao professor Jean Menezes pelo curso O método em Marx; ao professor Paulo Tumolo, simplesmente porque sim. Agradecimento especial aos professores Gabriel Martins, Daniela Garcia e Matheus Garcia por todos os cursos do projeto de extensão da UFSC Estudos Marxistas. Vocês são maravilhosos! Aos queridos e excelentes professores da Educação de Jovens e Adultos, Unidade Centro 1, de Florianópolis, que me proporcionaram uma experiência incrível no primeiro semestre de 2022. José, Regina, Thais, Alexandre, André, Fernando, Gabriela, Gilberto, Luciene, Marilucia, Mauricio, Mychelle, Renata, Samantha e Maristela. Meu muito obrigado. Aos meus amigos especiais, cujas presenças foram extremamente importantes para mim, principalmente durante o isolamento da pandemia: Marcelo D’Aquino Rosa, Manoela Sezerino, Priscilla Stuart, Marcela Possato e Athenais Trindade. Amo vocês. Aos amigos que fiz durante o doutorado: André Oliveira, Vagner Luiz, Renata Flores, Bruno Dandolini, Fernanda, Elaine Eliane, Marcia Donzelli, Ismael Bernardes e Cláudia Telles. Aos meus pais, Elizabeth Alfaya dos Santos e Valdecir Avila dos Santos. A vocês, toda a minha vida. Aos trabalhadores que descobriram o princípio ativo do Donaren retard®, antidepressivo, ansiolítico e indutor do sono, fármaco sem o qual a finalização da tese não seria possível. Certamente há mais pessoas para agradecer e sei que cometi injustiças ao não mencionar todos que deveriam e que, de alguma forma, compuseram esta tese comigo. Peço que me perdoem. Exauri minhas capacidades de lembrança e de escrita ao finalizar a tese. Sintam-se abraçados. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro concedido com bolsa. O real resiste Autoritarismo não existe Sectarismo não existe Xenofobia não existe Fanatismo não existe Bruxa fantasma bicho papão O real resiste É só pesadelo, depois passa Na fumaça de um rojão É só ilusão, não, não Deve ser ilusão, não não É só ilusão, não, não Só pode ser ilusão Miliciano não existe Torturador não existe Fundamentalista não existe Terraplanista não existe Monstro vampiro assombração O real resiste É só pesadelo, depois passa Múmia zumbi medo depressão Não, não, não, não Não, não, não, não Não, não, não, não Trabalho escravo não existe Desmatamento não existe Homofobia não existe Extermínio não existe Mula sem cabeça demônio dragão O real resiste É só pesadelo, depois passa Como o estrondo de um trovão É só ilusão, não, não Deve ser ilusão, não não É só ilusão, não, não Só pode ser ilusão Esquadrão da morte não existe Ku Klux Klan não existe Neonazismo não existe O inferno não existe Tirania eleita pela multidão O real resiste É só pesadelo, depois passa Lobisomem horror opressão Não, não, não, não Não, não, não, não Não, não, não, não (ANTUNES, Arnaldo, 2020) https://www.youtube.com/watch?v=wx_Pd-rpEhc https://www.youtube.com/watch?v=wx_Pd-rpEhc Bluebird there's a bluebird in my heart that wants to get out but I'm too tough for him, I say, stay in there, I'm not going to let anybody see you. there's a bluebird in my heart that wants to get out but I pour whiskey on him and inhale cigarette smoke and the whores and the bartenders and the grocery clerks never know that he's in there. there's a bluebird in my heart that wants to get out but I'm too tough for him, I say, stay down, do you want to mess me up? you want to screw up the works? you want to blow my book sales in Europe? there's a bluebird in my heart that wants to get out but I'm too clever, I only let him out at night sometimes when everybody's asleep. I say, I know that you're there, so don't be sad. then I put him back, but he's singing a little in there, I haven't quite let him die and we sleep together like that with oursecret pact and it's nice enough to make a man weep, but I don't weep, do you? (BUKOWSKI, Charles) https://www.youtube.com/watch?v=UEcyz0Q6bs8 https://www.youtube.com/watch?v=UEcyz0Q6bs8 RESUMO A tese tem por objetivo realizar um estudo detalhado e crítico da filosofia do biólogo chileno Humberto Maturana. Tendo em vista a grande penetração que as ideias de Maturana têm na produção de conhecimento, sobretudo no campo da educação, propomo-nos a fazer uma análise imanente do pensamento do autor, que, embora tenha elaborado sua teoria inicialmente para caracterizar o ser vivo (autopoiese), afirmamos que as teses de Maturana não só permitem, como ele mesmo faz uso dessas formulações, para extrair conclusões ontológicas e explicar esferas da realidade para além do ser orgânico. Também pretendemos demonstrar como para a elaboração de uma teoria sobre o ser vivo, Maturana se guiou, desde o começo de suas investigações empíricas, de pressupostos epistemológicos que, conduzidos de forma consequente, restauram o idealismo subjetivo solipsista. Para realizar a crítica a essas ideias, temos como orientação filosófica a ontologia de György Lukács. Dividimos a tese em quatro capítulos. No primeiro expomos o arcabouço teórico de Maturana, destacando a teoria da autopoiese, a deriva natural e a biologia do conhecer. No segundo capítulo, apresentamos a caracterização do ser orgânico a partir de pressupostos materialistas, valendo- nos das contribuições de Alexandr Oparin e de Charles Darwin. Fazemos também uma breve discussão acerca da teleologia na biologia, em especial para a questão das funções biológicas. Apresentamos também a gênese do psiquismo e a propriedade do reflexo como constitutiva dos seres orgânicos. No terceiro capítulo expomos a concepção de ser humano, elaborada por Marx e Engels e refinada categorialmente por Lukács. Discorremos sobre o trabalho e os diferentes pores teleológicos, assim como a reprodução do ser social e o papel da educação nesse processo. No quarto capítulo, servindo-nos das contribuições dos dois capítulos precedentes, demonstramos o quão problemática são as teses de Maturana, não só para a caracterização do ser vivo, mas, principalmente, os desdobramentos para a prática humana, em especial, para a educação. Para tanto, fazemos uma crítica dos experimentos conduzidos por Maturana e uma defesa do trabalho como fundamento ontológico do ser social e a teoria do reflexo como a teoria do conhecimento correspondente e embasada para fundamentar a práxis. Palavras-chave: ontologia; materialismo; marxismo; vida; autopoiese; Humberto Maturana. ABSTRACT The thesis aims to perform a detailed and critical study of the philosophy of Chilean biologist Humberto Maturana. Considering the great penetration that Maturana's ideas have in the production of knowledge, especially in the field of education, we propose to make an immanent analysis of the author's thought that, although he has developed his theory initially to characterize the living being (autopoiesis), we claim that Maturana's theses not only allow, but he himself makes use of these formulations to draw ontological conclusions and explain spheres of reality beyond the organic being. We also intend to demonstrate how, in order to elaborate a theory about the living being, Maturana was guided, from the beginning of his empirical investigations, by epistemological assumptions that, conducted consistently, restore the solipsistic subjective idealism. To carry out the critique of these ideas, we take György Lukács' ontology as our philosophical orientation. We divide the thesis into four chapters. In the first, we expose Maturana's theoretical framework, highlighting the theory of autopoiesis, natural drift, and the biology of knowing. In the second chapter, we present the characterization of the organic being based on materialist assumptions, using the contributions of Alexandr Oparin and Charles Darwin. We also make a brief discussion about teleology in biology, in special to the question of biological functions. We also present the genesis of the psychism and the reflex property as constitutive of organic beings. In the third chapter we expose the conception of the human being, elaborated by Marx and Engels and refined categorically by Lukács. We discuss labor and its different teleological positions, as well as the reproduction of the social being and the role of education in this process. In the fourth chapter, using the contributions of the two preceding chapters, we demonstrate how problematic Maturana's theses are, not only for the characterization of the living being, but, mainly, the unfoldings for human practice, especially for education. To do so, we criticize the experiments conducted by Maturana and defend work as the ontological foundation of social being and the theory of reflexion as the corresponding and well grounded theory of knowledge to support praxis. Keywords: Ontology. Materialism. Marxism. Life. Autopoiesis. Humberto Maturana. RESUMEN La tesis pretende realizar un estudio detallado y crítico de la filosofía del biólogo chileno Humberto Maturana. Considerando la gran penetración que tienen las ideas de Maturana en la producción de conocimiento, especialmente en el campo de la educación, nos proponemos hacer un análisis inmanente del pensamiento del autor, que, si bien ha elaborado su teoría inicialmente para caracterizar al ser vivo (autopoiesis), afirmamos que las tesis de Maturana no sólo permiten, sino que él se sirve de estas formulaciones para extraer conclusiones ontológicas y explicar esferas de la realidad más allá del ser orgánico. También pretendemos demostrar cómo para la elaboración de una teoría sobre el ser vivo, Maturana se guió, desde el inicio de sus investigaciones empíricas, por supuestos epistemológicos que, conducidos de manera consecuente, restauran el idealismo subjetivo solipsista. Para llevar a cabo la crítica de estas ideas, tomamos como orientación filosófica la ontología de György Lukács. Dividimos la tesis en cuatro capítulos. En la primera, exponemos el marco teórico de Maturana, destacando la teoría de la autopoiesis, la deriva natural y la biología del conocimiento. En el segundo capítulo, presentamos la caracterización del ser orgánico desde los supuestos materialistas, basándonos en las aportaciones de Alexandr Oparin y Charles Darwin. También hacemos una breve discusión sobre la teleología en la biología, en especial a la cuestión de las funciones biológicas. También presentamos la génesis del psiquismo y la propiedad refleja como constitutiva de los seres orgánicos. En el tercer capítulo se expone la concepción del ser humano, elaborada por Marx y Engels y perfeccionada categóricamente por Lukács. Discutimos el trabajo y sus diferentes poros teleológicos, así como la reproducción del ser social y el papel de la educación en este proceso. En el cuarto capítulo, utilizando los aportes de los dos capítulos anteriores, demostramos lo problemático de las tesis de Maturana, no sólo para la caracterización del ser vivo, sino, principalmente, los desdoblamientos para la práctica humana, especialmente para la educación. Para ello, hacemos una crítica a los experimentos realizados por Maturana y una defensa del trabajo como fundamento ontológico del ser social y de la teoría de la reflexión como teoría del conocimiento correspondiente y fundamentada para fundamentar la praxis. Palavras clave: Ontología. Materialismo. Marxismo. Vida. Autopoiesis. Humberto Maturana. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – As sombras coloridas............................................................................................... 62 Figura 2 – A galeria de quadros ................................................................................................ 71 Figura 3 – Bonecas russas........................................................................................................ 74 Figura 4 – A odisseia epistemológica de Maturana e Varela: a teoria do conhecimento entre Caríbdes e Cila ......................................................................................................................... 75 Figura 5 – A deriva natural dos seres vivos vista pela metáfora das gotas de água ................. 83 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BCL - Biological Computer Laboratory BDTD - Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações DNA - Ácido desoxirribonucleico MIT - Massachusetts Institute of Technology RNAm - Ácido ribonucleico mensageiro TEP - Trabalho, Educação e Política UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina PPGECT - Programa de pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica ENPEC - Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências ENEBIO - Encontro Nacional de Ensino de Biologia SUMÁRIO PRÓLOGO .................................................................................................................. 18 1 A VIDA E O PENSAMENTO DE HUMBERTO MATURANA ................................ 35 1.1 A TRAJETÓRIA DE HUMBERTO MATURANA .................................................... 35 1.2 AUTOPOIESE .............................................................................................................. 41 1.3 A BIOLOGIA DO CONHECER .................................................................................. 57 1.4 O SISTEMA NERVOSO ............................................................................................. 71 1.5 DERIVA NATURAL ................................................................................................... 78 1.6 O SER HUMANO ........................................................................................................ 90 1.7 MATURANA E A EDUCAÇÃO ............................................................................... 101 2 O PRIMEIRO SALTO ONTOLÓGICO: DO SER INORGÂNICO AO SER ORGÂNICO .............................................................................................................. 111 2.1 UM LONGO CAMINHO ........................................................................................... 118 2.2 AS CONTRIBUIÇÕES DE ALEKSANDR OPARIN ............................................... 122 2.3 A EVOLUÇÃO DARWINISTA ................................................................................ 149 2.4 TELEOLOGIA NATURALIZADA ........................................................................... 166 2.4.1 Funções e teleologia em Biologia ............................................................................. 168 2.5 O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO ............................................................ 181 3 O SEGUNDO SALTO ONTOLÓGICO: DO SER ORGÂNICO AO SER SOCIAL ..................................................................................................................... 194 3.1 AS CONTRIBUIÇÕES DARWINISTAS .................................................................. 196 3.2 O HOMEM NA PERSPECTIVA DE MARX E LUKÁCS ....................................... 211 3.2.1 O trabalho e os pores-teleológicos ........................................................................... 214 3.3 A REPRODUÇÃO SOCIAL ...................................................................................... 247 3.4 SOBRE O COMPLEXO DA EDUCAÇÃO ............................................................... 254 4 POR UMA CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA VIDA E DO SER HUMANO .................................................................................................................................... 269 4.1 POR UMA INTERPRETAÇÃO MATERIALISTA DOS EXPERIMENTOS DE MATURANA ............................................................................................................. 278 4.2 SOBRE AUTOPOIESE E DERIVA NATURAL EM MATURANA ....................... 292 4.3 A BIOLOGIA DO CONHECER ................................................................................ 308 4.4 O SER SOCIAL E A TEORIA DO REFLEXO ......................................................... 319 EPÍLOGO .................................................................................................................. 332 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 341 APÊNDICE A – LISTA DE TESES E DISSERTAÇÕES .................................... 354 18 PRÓLOGO Em seu ensaio intitulado Marx e o problema da decadência ideológica, Lukács (2016) afirma que a burguesia não consegue levantar problemas fundamentalmente novos, e isso provém de uma necessidade social. Essa necessidade é caracterizada sobretudo, mas não apenas, por uma fuga da realidade. O período da decadência começa com a tomada do poder político pela burguesia, quando a luta de classes entre ela e o proletariado assume o proscênio da história, principalmente após 1848. De lá para cá, a burguesia se vê constantemente impelida a lançar “terceiros caminhos” teóricos (LUKÁCS, 1967), alternativas que procuram explicar a realidade, que não assumam, de um lado, o materialismo nem, de outro, o idealismo. A decadência ideológica não se limita apenas às ciências que tratam da história humana. Ela limita também o desenvolvimento das ciências naturais. Lukács (2016) constatou os efeitos ideológicos dessa decadência sobretudo no que se refere às apropriações das grandes conquistas sobre a ciência natural. Se no período de ascensão da burguesia, as descobertas de Copérnico a Darwin representaram progressos importantes em relação à consolidação da sociedade burguesa e para uma visão de mundo corretamente orientada para uma ontologia materialista, hoje os avanços das ciências dificilmente se validam sem passar por um filtro de filosofia reacionária. Uma das consequências é que Eles [os avanços das ciências naturais] são popularizados, penetram na consciência das massas, na medida em que sofrem uma distorção idealista- relativista. Relativismo, combate ao pensamento causal, substituição da causalidade pela probabilidade estática, “desaparecimento” da matéria – tudo isso é usado em larguíssima escala para disseminar um relativismo niilista, uma mística obscurantista. (LUKÁCS, 2016, p. 124). É possível que muitos desses elementos que compõem e caracterizam a decadência ideológica estejam presentes no autor Humberto Maturana, cuja obra analisamos nesta tese. Por se tratar de uma expressão cujo sentido pode ser entendido de maneira pejorativa, é preciso deixar claro que a decadência ideológica não constitui ataques endereçados pessoalmente a qualquer pensador ou cientista, mas constitui, antes disso, uma necessidade histórica da burguesia de formular aparatos ideológicos que encubram, de forma cada vez mais sofisticada, a essência do mundo, e portanto de como ele funciona. Podemos dizer que o irracionalismo no qual se fundam as teorias elaboradas para justificar uma realidade de 19 exploração ou para encobri-la em seus fundamentos é uma expressão da própria irracionalidade dessa forma de sociabilidade. Como diz Engels (2010, p. 79-80): [...] toda sociedade baseada na produção de mercadorias tem por característica que os produtores, em lugar de dominar suas mútuas relações sociais, são por elas dominados. Cada um produz com os meios de produção acidentais que pode ter à mão para suas necessidades individuais de troca. Há anarquia na produção social. Mas a produção de mercadorias, como qualquer outra forma de produção, possui suas leis próprias, que lhe são inerentes, e essas leis se afirmam, apesar da anarquia, na anarquia e pela anarquia. Afetam a única forma persistente do laço social:a troca; levantam- se diante dos produtores como leis coercitivas da concorrência. […] Impõem-se, pois, sem o concurso dos produtores e mesmo contra sua vontade; como a das leis da natureza, sua ação é cega e impiedosa. O produto domina o produtor. Engels, aliás, sem usar a expressão “decadência ideológica”, constatara esse fenômeno de limitação das ciências naturais em seu tempo. Pode-se dizer que, de forma geral, o projeto de escrever uma dialética da natureza se assentou sobre essa base. Era necessária uma reformulação teórica acerca das ciências naturais, primeiramente, para entender a natureza inteira como um processo histórico e, portanto, dinâmico; em segundo lugar, a insuficiência da divisão do estudo da natureza em disciplinas isoladas. Os avanços das ciências acabaram por mostrar que uma forma de energia se converte em outra, de modo que um quadro mais integrado da natureza se fazia necessário. A natureza seria a prova de que a dialética se impõe tanto como forma de conhecimento como uma legalidade constitutiva da própria natureza A natureza é a prova da dialética, e temos de afirmar a respeito da moderna ciência da natureza que ela forneceu para essa prova um material extremamente abundante e cada dia mais volumoso, comprovando, desse modo, que, na natureza, as coisas acontecem, em última instância, de maneira dialética, e não metafísica. (ENGELS, 2015, p. 51). Essas considerações foram importantes para situarmos os leitores desta tese sobre alguns pontos dos quais partimos, e de como eles, com o devido andor, se articularão com o pensamento do autor, cujas ideias pretendemos analisar detidamente, Humberto Maturana. O primeiro contato que tive1 com Maturana foi através do trabalho de Moreira (2004). Em um breve artigo, o autor afirma que Maturana, um cientista de formação, elaborou uma teoria do conhecimento tomando o sujeito cognoscente como um ser biológico e, portanto, 1 Ao longo da tese, predomina a forma plural de primeira pessoa do discurso sem, no entanto, dispensar a forma singular, que tem aqui a função de registrar pessoalidade, autoria e, principalmente, a tomada assumida de certas decisões e pontos de vista. 20 assumindo que para explicar o conhecimento seria necessário, primeiramente, explicar a biologia do sujeito que conhece. Sem tal fundamentação biológica, o conhecimento não poderia ser explicado. Particularmente o que me chamou a atenção e foi importante para o caminho a ser seguido na tese foi a afirmação de que, se assumirmos que o conhecimento só pode ser fundamentado com base na biologia do sujeito cognoscente, a existência de uma realidade independente desse sujeito não pode ser sustentada. À primeira vista, sendo Maturana um cientista que fazia investigações empíricas, tal afirmação pareceu completamente carente de sentido, afinal, ela negaria a existência do que ele próprio investigou. Diante dessa perplexidade e, confesso, um pouco cético quanto às afirmações de Moreira (2004) de que de fato Maturana estava defendendo tal posicionamento, propus-me a fazer uma investigação sobre o pensamento do cientista chileno. Visto que Moreira (2004) é um pesquisador com prestígio na área de Ensino de Ciências, não seria improvável que outros pesquisadores também estivessem valendo-se do pensamento de Maturana para suas investigações. A leitura do artigo de Moreira (2004) foi o mote para a pesquisa. Uma busca na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) com os termos “Maturana e educação”, “Maturana e ensino de ciências”, “Maturana, ontologia e educação” revelou um número expressivo de mestres e doutores que se valeram das ideias desse autor no traçado de seus respectivos objetos de pesquisa. Mas, de todas as teses e dissertações disponibilizadas no acervo digital, nenhuma delas se propôs a fazer uma análise crítica sobre o pensamento do pensador chileno. Todas, sem exceção, partiam das afirmações de Maturana, sem nenhuma crítica prévia, e aplicavam-nas aos seus objetos de estudo. Essa constatação consolida a relevância da presente pesquisa, tanto para a área de Educação quanto para a área de Ensino de Ciências e de Biologia. As dissertações e teses levantadas até novembro de 2019 estão listadas no Apêndice A desta tese. Algumas considerações prévias são importantes para o leitor desta tese. A primeira é de que ela se propõe a ser uma tese teórica que se debruçará sobre dois campos, a Filosofia e a Biologia. São os campos da minha formação inicial. Concluí a graduação em Ciências Biológicas em 2009 e a de Filosofia em 2017, ambas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A segunda consideração é quanto às bases teóricas: partimos de alguns princípios e orientações teóricas pautados pelo materialismo histórico. Autores como Karl Marx, Friedrich Engels, Vladmir Lênin e György Lukács serão balizadores desta investigação, em especial 21 Lukács, por ser considerado um renovador do pensamento marxista, ao formular uma interpretação ontológica do pensamento de Marx — embora o próprio Marx não tenha organizado as suas reflexões e investigações pensando em elaborar uma ontologia sistemática. A abordagem ontológica se mostra essencial para esta pesquisa porque, como afirma Duayer (2016), é pela crítica ontológica que orientamos nossas crenças e ações sobre o mundo e, o que nos interessa mais diretamente, é pela ontologia que as polêmicas relativas à ciência e suas teorias são resolvidas. Afinal, a ciência busca investigar o que é a realidade, o que são os seres em si mesmos, de modo que as polêmicas que surgem entre diferentes teorias são sempre, cedo ou tarde, decididas pela ontologia, por aquilo que o ser efetivamente é. A terceira consideração é sobre o que motiva uma tese teórica no campo da Educação, e da linha Trabalho, Educação e Política (TEP) em específico. Apesar de haver exímios defensores de uma proposta pedagógica orientada pela filosofia marxista, como Saviani (1986), Duarte (2008) e Saviani e Duarte (2012), em especial no que se refere ao trabalho como princípio educativo, há também muitas críticas em relação a uma pedagogia intencionada socialista sendo realizada em uma sociedade capitalista, como em Lessa (2011), Tonet (2012; 2013), Maceno (2019) e Tumolo (2005; 2011). Muitas dessas críticas assentam- se em questões como: se o trabalho seria um princípio educativo, se o conhecimento seria meio de produção e se, para a transformação da sociedade, ou seja, para superação do modo de produção da vida pautado pelo capitalismo, a educação formal, universitária ou escolar teria a contribuir para a classe interessada na transformação, a classe trabalhadora. Admitindo que muitas das críticas feitas às propostas pedagógicas que visam uma transformação social são pertinentes, vemos que isso coloca certos contornos para a pesquisa em Educação e em Ensino de Ciências. Esses contornos dizem respeito à seguinte afirmação de Marx (2008, p. 49): “O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Propostas educacionais que não levem em conta os fundamentos ontológicos do ser social na forma capitalista, e esses fundamentos são dados pelas relações de trabalho, estarão fadadas ao fracasso, a despeito de toda boa intencionalidade de seus agentes. Propostas assim são abundantes na pesquisa em Educação e em Ensino de Ciências. São propostas que visam construir uma sociedade mais humana, mais cidadã, democrática, com justiça social, crítica, e a lista de adjetivos pode ser estendida longamente. São pesquisas que variam da análise de materiais didáticos a políticas educacionais, passando por reformulação de currículos escolares e de propostas para a formação de professores. As 22ressalvas que os autores críticos a uma pedagogia marxista dentro da sociedade capitalista fizeram a essas propostas pedagógicas não buscam encontrar o seu fundamento dentro da própria pedagogia (ou da formação de professores, ou do currículo, ou da política educacional etc.), mas sim em uma análise científica sobre como funciona a sociedade regida por esse modo de produção. Poderíamos construir uma imagem sobre a diferença dessas abordagens. Aqueles que sustentam a transformação da sociedade por meio do processo de educação formal podem ser vistos como um centro do qual irradiariam essas forças transformadoras. Seria, portanto, um processo centrífugo, do centro para a periferia. Os que fazem a crítica a essas concepções partem do fundamento ontológico da sociedade, o trabalho, para, a partir dele, acrescentarem mediações e determinações até se chegar à escola ou à universidade, ou seja, aos processos formais de educação. O processo seria, portanto, centrípeto, das determinações mais gerais que constituem a sociedade até as mais específicas na esfera da Educação. As considerações feitas são fundamentais para justificar a importância de uma pesquisa teórica. Ganha-se mais avançando pouco na direção certa do que percorrendo longas distâncias por caminhos equivocados. Principalmente quando se tem um interesse político claro, o da emancipação humana. Com isso, apresento a quarta consideração sobre esta tese. Todo escrito é feito pensando em um público a quem se destina, e embora seja o movimento da história o que determinará quem serão os leitores desta tese, ela se dirige especialmente a pesquisadores das áreas da Educação, do Ensino de Ciências e da Filosofia e, nesse sentido, direciona-se principalmente, mas não unicamente, a pesquisadores e a futuros pesquisadores da área. Assim, apresentamos a proposta da tese: tendo em vista o número expressivo de produções intelectuais que se orientaram pela filosofia de Humberto Maturana, proponho-me a fazer uma análise das contribuições teóricas desse autor. Não qualquer análise, mas uma análise crítica. Não qualquer análise crítica, mas uma análise crítica de cunho ontológico. Assim procedendo, creio que conseguirei atingir um segundo objetivo, a saber, um tratamento ontológico para a pesquisa em Educação que tenha a Biologia como objeto de análise. Isso é algo inaudito na área de Educação, assim como na área de Ensino de Ciências. Toda esta última área se constituiu com base em uma analogia entre a filosofia da ciência desenvolvida no século XX e o ensino das diferentes ciências naturais, sobretudo filosofias caracterizadas como pós-positivistas, como vemos pelo trabalho de Villani (2001). Todas essas vertentes, por mais diferentes que possam parecer à primeira vista, são de cunho epistemológico, ou seja, tomam o sujeito como o polo regente do conhecimento. São todas, em maior ou menor grau, tributárias de uma concepção kantiana de conhecimento, uma vez que este filósofo, como já é 23 sabido, estabeleceu uma cisão entre a realidade em si (noumeno) e o conhecimento acerca dessa realidade (fenômeno). O que essas diferentes correntes da Filosofia da Ciência2 do século XX não levaram em consideração é que o conhecimento pode ser abordado de forma diferente. Ele pode ser abordado a partir de uma concepção ontológica. Nessa abordagem, o conhecimento tem o seu polo regente não no sujeito e nas suas faculdades cognitivas, mas no objeto. A abordagem ontológica busca apreender as determinações mais gerais e essenciais do ser de que trata. Assim, em uma abordagem ontológica, o que se pergunta primeiro não é o conhecer, mas o próprio ser. Kosik (1976, p. 43) enfatizou bem isso: O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explícita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a realidade? é sempre precedida por uma questão mais fundamental: que é a realidade? A partir dessa compreensão, e lendo os livros de Humberto Maturana, percebe- se que ele não economiza elogios ao falar de sua própria teoria. Em suas entrevistas feitas ao filósofo alemão Bernhard Pörksen e publicadas no livro Del ser al hacer (MATURANA; PÖRKSEN, 2008), o biólogo chileno afirma: De onde se quer saber que esta realidade absoluta existe, quando se parte precisamente da impossibilidade de conhecê-la? É um jogo intelectual sem sentido, justamente porque só se pode falar desta realidade supostamente independente em dependência da própria pessoa. Mas se enfatizo que todo o dito é dito por um observador, outra pergunta passa a ser chave e muda todo o sistema tradicional de fazer filosofia, da realidade, da verdade e da essência do ser […]. (MATURANA; PÖRKSEN, 2008, p. 36). Se estamos efetivamente diante de uma proposta filosófica capaz de alterar as noções de realidade, verdade e de essência do ser, então estamos diante de algo realmente grandioso, uma verdadeira “ruptura de paradigmas”. Isso, claro, se as afirmações do biólogo chileno estiverem corretas. E o conteúdo desta tese envolve precisamente essa “nova” filosofia que Maturana diz defender. Como ele parte da biologia do conhecer, também partiremos da biologia, mas de uma abordagem ontológica. Seguiremos a distinção proposta por Lukács (2014), para quem o ser é unitário, mas que se manifesta de três formas diferentes, a saber, ser 2 Pode parecer estranho, à primeira vista, que estejamos colocando juntas concepções que tradicionalmente receberam uma classificação e um tratamento muito diferentes, como, por exemplo, as visões de Popper, Kuhn, Feyerabend e Bachelard. Sem desprezar as diferenças existentes nessas filosofias, todas se assemelham pela ausência de tratamento ontológico. 24 inorgânico, ser orgânico e ser social. Entre cada forma do ser ocorre uma mudança qualitativa que o filósofo chamou de salto ontológico, de modo que o ser orgânico, a vida, se situa entre dois saltos, o salto do inorgânico para o orgânico, o qual corresponde ao surgimento da vida, e o salto do orgânico para o social, o aparecimento do ser humano. Essas distinções serão detalhadas ao longo da tese. O estudo que apresento consiste, como já dito, em uma análise crítica do pensamento de Maturana. Tendo em vista o número expressivo de teses e dissertações que buscaram no seu pensamento subsídio teórico, principalmente, mas não apenas, para pensar a educação, é de se esperar que em suas obras, além de questões relativas à biologia, encontrem-se, também, considerações sobre o ser humano, visto que qualquer referencial para pensar a educação deve, necessariamente, abarcar uma compreensão sobre o ser humano e a sociedade. Ademais, professores e pesquisadores de biologia devem, de forma igualmente necessária, nutrir uma concepção de vida. Se a compreensão a respeito da base, dos fundamentos daquilo que ensinam e pesquisam for algo problemático ou mistificador, é bastante provável que o ensino ou a pesquisa sobre aquilo que estejam realizando resulte problemático. Assim, além de analisarmos os fundamentos de Maturana, apresentamos, também, os fundamentos do que consideramos uma abordagem correta, em bases materialistas, tanto para a vida quanto para o ser humano. Há motivações especiais para a escolha do presente tema. Creio que seja importante explicitá-las, uma vez que elas servem como justificativa, subjetiva e objetivamente, do presente trabalho. É uma motivação pessoal poder redigir uma tese cujos temas, por distintos que sejam, como indiquei, compõem a minha formação acadêmica. Em minha pesquisa de mestrado3, antes de iniciar minha trajetória acadêmica na Filosofia, já havia trazido elementos da Filosofia da Biologia para a discussão do ensino. Agora, na tese, consegui juntar esses elementos (das Ciências Biológicas e da Filosofia) com mais rigor, mas sempre com a regência no polofilosófico. E isso é importante ser dito, pois embora inevitavelmente o estudo dedique atenção a questões relativas ao desenvolvimento científico, pode-se observar que não tivemos como meta elencar uma bibliografia acerca das últimas descobertas e discussões dentro dos campos científicos mais discutidos, a saber, o da origem da vida ou da química pré-biótica, e o da paleontologia/antropologia, relativos à origem do ser social. Nossa 3 ALFAYA-SANTOS, João Vicente. Concepções de progresso biológico em livros didáticos de biologia aprovados pelo PNLD 2012. 2013. 168 f. Dissertação (mestrado em Educação Científica e Tecnológica) – Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. 25 discussão é predominantemente filosófica, tomando como base descobertas/teorias científicas que consideramos inelimináveis para uma discussão aprofundada das questões relativas ao ser orgânico e ao ser social, para fazer o contraponto com as teses de Maturana. Por isso, por exemplo, na seção 2, autores como Charles Darwin e Aleksandr Oparin serão referências, não por tomarmos de maneira ingênua as suas teorias, sem as devidas mediações e sem ver os limites. A despeito, porém, dos limites do conhecimento científico da época dos autores, eles se tornam referências porque sem os elementos matriciais de suas teorias, consideramos que toda discussão acerca do tema origem da vida, por exemplo, perde o seu eixo explicativo de forma materialista. Com essa ressalva, esperamos estar protegidos contra possíveis críticas de que, ao discutir o assunto, pautamo-nos por autores “desatualizados”. Objetivamente, temos motivações bastante variadas. Não fosse suficiente a quantidade de teses e dissertações que se pautam pela teoria de Maturana na Educação, em outros campos também muitos autores não dispensam elogios às formulações do biólogo chileno. Por exemplo, Rabelo (1998), ao prefaciar o livro de Maturana Emoções e linguagem na educação e na política, diz que o século XXI poderá ser o século de Humberto Maturana, uma vez que A Biologia do Conhecimento, como o próprio Maturana costuma chamar o conjunto de suas ideias, parece-me ser a grande novidade científica da atualidade, pois permitiu a ultrapassagem da premissa básica do pensamento ocidental, aquele que sempre opôs o biológico ao não-biológico ou social, ou cultural. Essa mesma premissa dualista que reaparece sob formas várias e com vários nomes – corpo x mente, espírito x matéria, natureza x história, indivíduo x sociedade – foi uma pedra no caminho do pensamento crítico. A importância da reflexão de Humberto Maturana tem a ver, portanto, com a possibilidade já antevista por Lévi-Strauss e desejada por Jacques Derrida, dentro outros, de se estabelecer uma continuidade entre o biológico e o social ou cultural. (RABELO, 1998 p. 7). Nelson Vaz, reconhecido imunologista brasileiro, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, afirma que a parceria entre Maturana e Varela gerou ideias capazes de “[...] mudar todo o compasso do pensamento biológico contemporâneo, além de mudar a relevância da biologia para as chamadas ciências sociais” (VAZ, 1987, p. 17). Esse autor, inclusive, faz uso das ideias de Maturana no campo da imunologia, em elaborações teóricas sobre o funcionamento do sistema imune (VAZ, 2011). No campo da Biologia teórica não são poucos os autores que se valem da teoria de Maturana sobre autopoiese para explicar o que seja vida. Podemos destacar a renomada bióloga Lynn Margullis, em parceria com seu filho, Dorion Sagan (MARGULLIS; SAGAN, 1986; MARGULLIS; SAGAN, 2002). 26 No campo educacional, um dos focos desta tese, como era de se esperar, os elogios e exortações da teoria de Maturana não são menores. Moraes (2003), por exemplo, trata das mudanças que o mundo vem sofrendo e de como, diante de tais mudanças, ocasionadas pelas descobertas científicas, mas não apenas por elas, demandam uma teoria pedagógica engajada nesse “espírito do tempo”. Afirma a autora: Para poder navegar neste mundo de transição, necessitamos de novas ferramentas de aprendizagem, de novos instrumentos e de um posicionamento diferente do ser humano diante do mundo e da vida. Precisamos de novos referenciais, de um novo paradigma e de uma educação transformadora capaz de ajudar o sujeito a aprender a aprender, a conhecer como se aprende e a viver/conviver na mudança para que ele possa sobreviver às incertezas e ao inesperado, sem ficar à deriva em pleno mar. (MORAES, 2003, p. 26-27). Essa teoria pedagógica engajada deve estar em conformidade com as novas descobertas científicas. No rol dessas descobertas, figuram, entre outras, a teoria da autopoiese de Maturana. Continua a autora: Em função das novas descobertas científicas, já não podemos mais desconhecer que a realidade ao nosso redor é um reflexo de nossos pensamentos e de nossas ações, de nossas formas de viver/conviver em sociedade e do paradigma que norteia a ciência cujos reflexos podem ser observados em nossas ações educacionais e atitudes pessoais. (MORAES, 2003, p. 18). Aparentemente, essas novas descobertas científicas operaram uma inversão daquilo que é padrão para o conhecimento científico, a saber, a descrição da realidade independente do observador. Veremos, ao longo da tese, como as teorias de Maturana operam essa inversão. Outro fator que nos motiva e, ao mesmo tempo, é profundamente desafiador é a complexidade do tema, principalmente diante do engajamento filosófico do qual partimos, o marxismo. Como se sabe, as investigações sobre a natureza nunca foram o alvo principal de Marx, Engels e nem do autor marxista que serve como uma das principais referências desta tese, György Lukács. Engels, em especial, nos legou alguns escritos sobre o tema, sobretudo em A dialética da natureza (ENGELS, 1979) e no Anti-Dühring (ENGELS, 2015). Mas até mesmo Engels em seus grandes esforços cometeu equívocos ao interpretar a teoria da seleção de Darwin, como se vê a seguir: O erro de Darwin consiste precisamente em que confunde, como sendo uma só, duas coisas absolutamente diferentes: a seleção natural e a sobrevivência do mais apto: 1. Seleção devida à pressão da superpopulação; em que os 27 mais fortes sobrevivem, talvez em primeiro lugar, mas podendo sobreviver também os mais fracos em muitos sentidos. 2. Seleção devida a uma maior capacidade de adaptação a certas circunstâncias modificadas, em que os sobreviventes são mais apropriados a essas circunstâncias, mas em que essa adaptação pode significar, em conjunto, tanto um progresso como um retrocesso (por exemplo: a adaptação à vida parasitária é sempre um retrocesso). (ENGELS, 1979, p. 181, grifo nosso). Se Engels, no seu tempo, cometeu equívocos quanto à interpretação da teoria darwinista, equívocos de natureza ainda pior permanecem hoje entre autores marxistas, a exemplo de Nildo Viana, ao escrever o prefácio do livro de Anton Pannekoek intitulado Marxismo e Darwinismo (PANNEKOEK, 2019). Nesse prefácio, Viana (2019) afirma que a teoria darwinista tem uma imanência burguesa, pois as ideias do naturalista britânico foram elaboradas de acordo com uma episteme burguesa (VIANA, 2019, p. 19). Esse autor ainda impõe a Darwin a pecha de ter sido o primeiro darwinista social e afirma que “marxismo e darwinismo são como água e fogo” (VIANA, 2019, p. 20), o que tornaria errado distinguir entre darwinismo e darwinismo burguês, visto que o “[...] darwinismo burguês se aplica a Darwin em sua integralidade, tanto nos interesses de classe quanto no conteúdo de sua ideologia” (VIANA, 2019, p. 25). Para este autor, é necessária mesmo a transformação radical da sociedade para que uma teoria sobre a origem dos seres vivos possa se desenvolver: […] seria necessária […] uma transformaçãoradical e total para se desenvolver a episteme marxista e pesquisas sobre a natureza livre das determinações da sociedade capitalista (episteme burguesa, ideologias, pressão social, financiamento etc.) para poder avançar efetivamente na compreensão da gênese da humanidade e na evolução das espécies. (VIANA, 2019, p. 30). Trouxemos isso apenas a título de exemplo para ressaltar que, mesmo após quase dois séculos de publicação da teoria darwinista, ainda restam muitos problemas de compreensão dessa teoria, mesmo entre aqueles que se dizem materialistas, ou seja, que não apresentariam motivos de ordem moral ou “espiritual” para rechaçar a teoria evolutiva formulada por Darwin. Outra motivação que nos leva a empreender essa pesquisa é a grande importância que Marx e Engels atribuíram às ciências naturais, em especial à biologia. No seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Engels (2016) afirma que o próprio desenvolvimento das ciências naturais contribuiu para consolidar, acrescentamos nós, ainda que não de forma consciente, o método dialético de pensar. Se as ciências naturais do século XIX eram ciências predominantemente colecionadoras de objetos acabados e fixos, as 28 ciências naturais do século XIX eram essencialmente coordenadoras, ciências que estudam processos e a concatenação desses processos (ENGELS, 2016, p. 56). Segundo Engels (2016), três foram as descobertas que deram um impulso gigantesco no conhecimento sobre os encadeamentos dos processos naturais, a saber: a descoberta da célula e o desenvolvimento consequente da teoria celular; a transformação das diferentes formas de energia e a conversão de uma forma em outra; e, por fim, a descoberta de Darwin sobre a diferenciação de todos os seres vivos, incluindo o ser humano, como resultado de um longo processo evolutivo. Das três grandes descobertas destacadas por Engels, duas são no campo biológico. Podemos afirmar que essas descobertas ajudaram a consolidar o que Engels afirmou em o Anti-Dühring: que a natureza é a prova da dialética (ENGELS, 2015, p. 51) e que a unidade real do mundo consiste em sua materialidade, comprovada por um longo desenvolvimento da filosofia e da ciência natural (ENGELS, 2015, p. 74-75). Além da importância das ciências naturais em geral, a teoria evolutiva de Darwin teve destaque especial sobre a compreensão de mundo de Marx e Engels. Em suas trocas de correspondências, por exemplo, Engels afirma a Marx, em carta de dezembro de 1859: Permanecia ainda um aspecto em que a teleologia não havia sido demolida: agora já está. Ademais, nunca até o momento se havia empreendido uma tentativa de tamanha envergadura para demonstrar que na natureza há um desenvolvimento histórico, ao menos nunca com tanto êxito. (MARX; ENGELS, 1975, p. 21-22). Marx responde, em 1860, que em Darwin se encontra o “fundamento histórico social de nossa ideia” (MARX; ENGELS, 1975, p. 22). Até mesmo em sua obra principal, O Capital, Marx não deixou de estabelecer analogias entre o processo de divisão do trabalho e da adaptação das ferramentas a atividades específicas, correspondendo ao trabalho dos trabalhadores parciais na manufatura, e o processo biológico pelo qual um órgão pode se especializar e realizar uma função específica, fazendo mesmo uma citação literal do quinto capítulo de A origem das espécies, sobre órgãos que ainda não sofreram um alto grau de especialização e que, em virtude dessa não tão desenvolvida especialização, podem ser cooptados para funções diferentes das que exercem no tempo presente (MARX, 2017, p. 416). Por fim, mas não menos importante, acreditamos que esta tese, dentro dos modestíssimos objetivos a que se destina, cumpre um papel importante, não apenas academicamente, mas dentro de uma das direções da luta de classes, a saber, a luta teórica, como foi destacada por Engels (2010) e Lênin (2015). Não é de se estranhar que um teórico revolucionário como Trostky abordasse em seus Escritos filosóficos temas referentes às 29 ciências naturais, especialmente sobre o darwinismo, considerado por ele “a maior vitória da dialética em todo o terreno da matéria orgânica” (TROTSKY, 2015, p. 283). Cremos que com isso justificamos a relevância da tese, para além do ineditismo de um texto que faça uma crítica ontológica às teorias desenvolvidas por Maturana. Importa, ainda, destacar que quando se fala da pesquisa no campo das ciências naturais realizada por marxistas, em especial no caso da Biologia, apesar de exemplos notáveis como de Richard Lewontin (1929-2021) e Richard Levins (1930-2016), algumas dúvidas podem pairar e causar certo estranhamento. Brevemente pretendemos dissipar algumas que pensamos ser as mais recorrentes. É sabido pelo público leigo que o marxismo, como ciência e filosofia, sofreu deformações no período estalinista. Pode-se afirmar mesmo que boa parte do trabalho filosófico de Lukács se voltou para a superação da vulgata marxista do período estalinista, para aquilo que ele chamou de renascimento do marxismo. A deformação do marxismo em si já seria um problema enorme, o que infelizmente se tornou maior ainda pois tal deformação não se limitou à filosofia, atingindo parte das ciências naturais, e o exemplo da Biologia talvez seja o mais emblemático nesse caso. Referimo-nos aqui às teorias de Trofim Lysenko (1898-1976), biólogo e agrônomo soviético. Lysenko reconhecia o mérito de Darwin, mas atribuía a sua teoria da evolução por seleção natural, apesar do caráter indiscutivelmente materialista desta, o grave erro de conter componentes de uma filosofia reacionária, como a teoria malthusiana4. Em oposição ao que chamou de neodarwinismo, Lysenko sustentava uma teoria chamada de darwinismo soviético criador, a qual, entre outras coisas, defendia a ideia de que as características biológicas adquiridas por um ser vivo em virtude das condições ambientais nas quais ele se insere poderiam ser transmitidas geracionalmente. Tal concepção levou Lysenko a rejeitar grande parte da ainda incipiente ciência da genética. Maiores detalhamentos sobre o caso Lysenko podem ser encontrados em Sheehan (1993, p. 217-228). O exemplo de Lysenko é importante de ser mencionado porque o tema da tese com o qual estamos lidando é delicado. Em virtude da repercussão do caso Lysenko, quando um marxista resolve falar sobre ciências naturais é como se o espectro do lysenkoismo sempre estivesse rondando, como se as considerações acerca da realidade, no caso a realidade natural, 4 O malthusianismo, grosseiramente falando, consiste na doutrina demográfica de que o crescimento populacional é sempre superior ao crescimento de alimentos e outros recursos, de modo que uma parte da população, inevitavelmente ficará sem esses recursos, do que resulta, necessariamente, a morte de certa parcela da população. 30 tivessem de ser submetidas e validadas por considerações políticas, nos casos mais graves, ou se submeter a algumas leis eternas da dialética, como a lei da negação da negação5, nos casos menos graves. Felizmente, houve também cientistas marxistas cônscios desses problemas e se opuseram a essas interpretações simplificadoras, como Fataliev (1966) e Havemann (1967). Os problemas das Ciências Naturais não podem ser resolvidos pela citação de alguns princípios filosóficos gerais seguidos de uma afirmação, por exemplo, como a seguinte: “Bem, vejamos como o princípio da transformação da quantidade em qualidade se aplica ao meu problema”. Tal é uma concepção ingênua e inteiramente absurda da maneira pela qual a Filosofia pode ajudar na solução dos problemas das Ciências Naturais. É preciso partir da própria coisa, é preciso estudar a própria natureza, é preciso descobrir concretamente a sua dialética em sua singularidade, e não em sua generalidade […]. É preciso entrar diretamente no problema da colocação científicadas questões, mas não a partir da Filosofia. Somente a partir da ciência empírica é que se pode chegar à dialética que se encontra dentro das próprias coisas e que pode ser reproduzida na teoria. (HAVEMANN, 1967, p. 20, grifos no original). Trouxemos essas considerações porque a abordagem ontológica da qual partimos recusa toda e qualquer violência do real em nome de supostas categorias ou leis eternas. Como afirmou Marx (2009, p. 126), as categorias usadas para descrever o real são produtos históricos e transitórios. De imutável, há apenas a abstração do movimento. A abordagem ontológica, desenvolvida por Marx mas que ganha contornos muito maiores em Lukács, não procura justificar o real a partir do conhecimento ou do entendimento sobre ele, como se houvesse um plano preestabelecido de categorias que necessariamente vão esculpindo a realidade até que esta passe a caber naquelas. Pelo contrário. Como afirma categoricamente Lukács: “Nenhuma ontologia filosófica terá legitimidade para dominar a ciência e obrigá-la a deitar na cama de Procusto6 cognitiva de um sistema” (LUKÁCS, 2012, p. 138). E mais adiante na mesma obra: Uma das questões metodológicas mais importantes da ontologia é manter suas categorias afastadas de todas as determinações que brotam de tentativas do pensamento humano de dar conta do mundo. Porque a pergunta central da 5 Engels teve muitos méritos em suas formulações teóricas sobre a ciência natural, mas também erros consideráveis. Um desses erros consiste na afirmação de existência de leis dialéticas, formuladas por Hegel, que, embora sejam extraídas da natureza e da história humana, seriam leis universais, eternas, às quais todos os seres, sejam seres sociais ou naturais, estariam sujeitos. 6 Procusto também foi conhecido como o Esticador. “Ele tinha uma cama de ferro à qual costumava amarrar todos os viajantes que lhe caíssem nas mãos. Se fossem menores que a cama, esticava seus membros; se fossem mais compridos que a cama, cortava o que sobrava”. (BULFINCH, 2013, p. 237). 31 ontologia consiste justamente em afastar do acervo de categorias, da estrutura categorial etc., tudo que estiver vinculado, por mais solta que seja essa ligação, com os posicionamentos formulados sobre os objetos em conformidade com o pensamento, ou seja, tudo o que puder empanar a pura essência do ente-em-si, que é totalmente indiferente a todo e qualquer espelhamento, não sendo tangido por ele. (LUKÁCS, 2012, p. 142). Com isso, queremos nos blindar de possíveis acusações de que o marxismo, em geral, e esta tese, em particular, esteja querendo sujeitar os resultados das investigações científicas sobre a natureza a considerações de ordem política ou filosófica. Não pretendemos afirmar quais são as determinações do ser orgânico a partir do marxismo; antes, assumindo a existência independente que o ser orgânico tem em relação ao ser social, dentro dos limites da tese expusemos as legalidades que são imanentes dessa forma de ser. Ao expor as legalidades, tanto do ser orgânico quanto do ser social, pretendemos mostrar como as teorias de Maturana, eivadas de preconceitos epistemológicos, violentam e mistificam a realidade. O século XX, em termos de avanço das ciências, pode ser afirmado como o século da biologia. Os campos que se desenvolveram foram inúmeros, basta pensar na etologia, ecologia, genética, biologia molecular, biologia evolutiva, biologia do desenvolvimento, paleontologia. Assim como as técnicas em questões mais práticas envolvendo o estudo da vida, como transgenia, clonagem, desenvolvimento dos antibióticos e de técnicas de agricultura. Apesar desses grandes avanços, foram poucos os autores de viés marxista que se dedicaram a uma formulação teórica sistemática dos principais aspectos que envolvem a biologia. Dentre esses autores, podemos destacar Marcel Prenant (PRENANT, 1936) na França, J.B.S. Haldane (HALDANE, 1947) na Inglaterra, além das contribuições de Lewontin e Levins em disciplinas mais específicas. Espero que esta tese seja uma contribuição modesta para pensarmos a biologia e sua articulação com o marxismo em solo brasileiro. Buscamos, dentro do possível, seguir a orientação lukácsciana sobre a crítica filosófica das teorias. Não basta apenas investigar as legalidades específicas do objeto do qual trata, seus aspectos essenciais. É preciso, também, buscar a sua gênese e a função social que o desenvolvimento teórico cumpre. Pois, como diz o filósofo magiar “[...] não existe visão de mundo inocente”. (LUKÁCS, 2020, p. 10). Nesse contexto, e partir do explicitado, esta tese se estrutura em quatro seções. Na primeira seção tratei sobre a trajetória intelectual de Maturana, um pouco sobre sua história e os principais elementos de sua teoria. A seção 1 foi dividida da seguinte forma: 1) exposição sobre a trajetória de Maturana como cientista; 2) o conceito de autopoiese (vida); 3) a teoria do conhecimento de Maturana, a Biologia do conhecer; 4) sobre como Maturana entende o 32 sistema nervoso; 5) sobre evolução biológica (deriva natural); 6) sobre o ser humano; 7) algumas reflexões de Maturana e de autores inspirados por Maturana sobre a Educação. É importante frisar que todos esses tópicos são abordados conforme a teoria de Maturana, pois a intenção foi expô-la com o máximo de justiça possível, de modo fidedigno ao que é o pensamento do autor. Na segunda seção, apresento os aspectos relacionados ao primeiro salto ontológico, isto é, o surgimento da vida, tal como a conhecemos neste Planeta. São apresentadas a sua estrutura e principais propriedades. Autores fundamentais para a elaboração desse capítulo foram Aleksandr Oparin e Charles Darwin. Como um dos traços característicos da vida é a sua capacidade de transformação ao longo do tempo, em outros termos, a sua capacidade de evoluir, valemo-nos do pensamento de Charles Darwin para mostrar como a teoria evolutiva do naturalista britânico apresenta elementos e categorias decisivas para entender o ser orgânico em sua processualidade, o que, a meu ver, é ausente na teoria da Maturana sobre a evolução (deriva natural). Além das considerações sobre a teoria de Oparin, também apresento os aportes empíricos que enriqueceram sua proposta, sobretudo o experimento de Miller e Urey. Como forma também de enriquecer a caracterização do ser orgânico, exponho algumas considerações acerca da emergência, como um constituinte geral da matéria. Apresentaremos também um breve excurso sobre teleologia e sobre como ela se manifesta no ser orgânico. Essa afirmação, para alguém que se diz orientar pelo pensamento luckácsciano, pode parecer estranha à primeira vista. Afinal, como é sabido pelos estudiosos desse filósofo, em diversas oportunidades ao longo de suas obras, sobretudo em Para uma ontologia do ser social, Lukács expressou que a teleologia é uma categoria exclusiva do ser social. Não pretendemos estabelecer uma ruptura com o pensamento de Lukács nesse aspecto, mas apenas mostrar alguns limites e contribuir com determinações específicas do ser orgânico que foram analisadas no campo da Filosofia da Biologia, algo a que o filósofo húngaro não pôde se deter, dada a especificidade do assunto. Afirmamos que nenhuma ruptura será estabelecida, pois consideramos que a teleologia é uma característica marcante do ser social. Mas veremos que ela pode se expressar, com sentido diverso e plenamente materialista, no domínio do ser orgânico, especialmente, mas não apenas no que se refere às funções biológicas. Também é objeto desta seção uma breve exposição sobre o desenvolvimento do psiquismo a partir de uma abordagem materialista, visto que a análise do sistema nervoso é algo central no pensamento de Maturana. Na terceira seção, a transição do orgânico para o social, o surgimento do ser humano é descrito, tal como o entendemos pela filosofia de Marx e Lukács, comcontribuições de 33 estudos antropológicos, como os de Richard Leakey e Walter Neves, por exemplo. Destacaremos, em especial, as contribuições de Marx e Lukács para compreender o ser humano em seus fundamentos ontológicos, dando ênfase para o pôr teleológico e para a reprodução social, e o papel da educação na última. Nesta seção também apresentaremos uma abordagem genética do psiquismo humano, e para isso contaremos com as contribuições do psicólogo Alexis Leontiev. Na quarta e última seção é realizado um cotejamento entre aquilo que foi apresentado da filosofia de Humberto Maturana, na primeira seção, com os elementos trazidos na segunda e terceira seções. Essas duas seções são essenciais para vermos se as afirmações de Maturana se sustentam diante das investigações empíricas sobre a vida, sobre o sistema nervoso, sobre o ser humano e sobre a evolução. Trazemos, também, alguns elementos da história da filosofia com os quais confrontamos a teoria de Maturana, a fim de constatar se, realmente, o seu pensamento é tão inovador como ele mesmo diz ser. 34 Hamlet - Então é o fim do mundo. Mas suas novidades não são verdadeiras. Deixem-me interrogá-los mais de perto. O que, meus bons amigos, mereceram das mãos da fortuna que ela os mandasse aqui para a prisão? Guildenstern - Prisão, senhor? Hamlet - Uma grande prisão, onde há clausuras, celas e calabouços, sendo a Dinamarca uma das piores. Rosencrantz - Não julgamos assim, senhor. Hamlet - Ora, não será assim então para vocês; pois não existe nada de bom ou de mau que não seja assim pelo nosso pensamento. Para mim, é uma prisão. Rosencratz - Ora, então é a sua ambição que a faz assim; é estreita demais para o seu espírito. Hamlet - Oh Deus, eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir um rei de espaços infinitos, se não fossem os maus sonhos que tenho. William Shakespeare7 7 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 608 p. 35 1 A VIDA E O PENSAMENTO DE HUMBERTO MATURANA Começo esta seção apresentando alguns aspectos da trajetória de Humberto Maturana, com o fito único de contextualizar o leitor sobre o autor que é tema central desta tese. Essa contextualização tem caráter unicamente informativo e não tem pretensão alguma de sugerir uma possível associação mecânica e fatalista entre a trajetória de vida, os acontecimentos vivenciados e as ideias do autor. Aqui é sempre bom lembrar que a filosofia marxista, a partir da qual nos orientamos, desconhece qualquer fatalismo entre o desenvolvimento ideológico de indivíduos isolados e suas relações de classe etc. Em outras palavras, não queremos sugerir que, em virtude dos acontecimentos vivenciados por Maturana, se estabeleça uma relação causal com as ideias defendidas pelo autor. 1.1 A TRAJETÓRIA DE HUMBERTO MATURANA Maturana é um biólogo chileno nascido em 1928. Sua família era pobre, seus pais se separaram quando Maturana ainda era muito novo, de modo que ele foi criado basicamente por sua mãe, que trabalhava como assistente social e a quem Maturana sempre gosta de se referir como sua primeira influência. Um episódio que recorda de sua infância é o de que certa vez, quando estava brincando com seu irmão mais velho, sua mãe lhes disse que nada em si é bom ou mau, uma conduta pode ser adequada ou inadequada, correta ou equivocada e caberia a eles (Maturana e seu irmão) decidir sobre o que corresponde a cada vez. Quando perguntado por que esse episódio o marcou, Maturana responde que: “Se uma conduta não pode ser catalogada como intrinsecamente boa ou má, então – foi o que me ficou claro – é necessário observar a rede relacional em que está inserida, e decidir autonomamente por uma maneira de atuar” (MATURANA; PÖRKSEN, 2008, p. 161). Maturana contraiu tuberculose duas vezes em sua vida, a primeira vez quando tinha apenas onze anos de idade. Em 1948 começou a estudar medicina no Chile, mas depois de três meses de curso teve de ser internado por conta de uma segunda tuberculose. Permaneceu por dois anos acamado para seu restabelecimento, impedido de fazer qualquer esforço. Durante o período em que esteve internado, as leituras escondidas o acompanharam. Ele gosta de mencionar que Friedrich Nietzsche, com Assim falou Zaratustra, e Julian Huxley, com Evolução, uma síntese moderna, foram leituras que o marcaram naquele período (MATURANA, 1992, p. 19). 36 Regressando à faculdade de medicina, conheceu sua primeira esposa e, três anos depois, mudaram-se para a Inglaterra e logo depois para os Estados Unidos, onde Maturana doutorou-se pela universidade de Harvard, em 1959, com uma tese que abordava a anatomia do nervo óptico e do centro visual no cérebro de rãs. Trabalhou um tempo também no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), fazendo aí seu pós-doutorado sob orientação do neurofisiologista Jerry Lettvin. Em 1960, ainda no MIT, Maturana realiza um experimento no qual se assentam as primeiras raízes da teoria epistemológica que desenvolveria anos mais tarde, a biologia do conhecer. Tal experimento consistia na investigação sobre os diferentes tipos celulares das retinas de rãs e suas respectivas respostas fisiológicas. Em síntese, em suas investigações Maturana descobriu que havia dois tipos celulares distintos na retina de rãs: um tipo de cujo corpo celular saíam filamentos em todas as direções, e outro tipo e no qual os filamentos se estendiam em uma única direção. A hipótese de Maturana era de que a forma da célula retinal determinaria a reação do organismo. Ou seja, independentemente do estímulo que fosse dado, as células retinais reagiriam de maneira específica, conforme sua estrutura celular. Usemos as palavras de Maturana para descrever o experimento8: Limitei-me a mover minha mão diante dos olhos da rã e a registrar com um eletrodo os impulsos de uma célula isolada do nervo óptico. E de fato descobri uma célula que reagia independentemente da direção em que movia minha mão. Depois mudei um pouco a posição do eletrodo e descobri uma célula que reagia somente se movia minha mão em determinada direção. Ou seja, mostrava a reação unidirecional esperada. (MATURANA; PÖRKSEN, 2008, p. 168, tradução nossa). Outra passagem digna de destaque durante o período em que Maturana trabalhou no MIT é que próximo ao laboratório em que fazia seus estudos em neurofisiologia havia um laboratório de inteligência artificial liderado por Marvin Minsky9. Mesmo sem ter trabalhado nesse laboratório, Maturana ouvia as conversas dos pesquisadores, os quais diziam que sempre estavam criando modelos biológicos. Para Maturana, tal afirmação parecia completamente absurda (MATURANA; PÖRKSEN, 2008, p. 166), porque o que eles faziam “[...] não era modelar nem imitar fenômenos biológicos, senão imitar ou modelar a aparência destes no âmbito de sua visão como observadores” (MATURANA; VARELA, 1997, p. 13). Ou seja, para Maturana, a falha dos pesquisadores em inteligência artificial era não conseguir 8 Acredito ser importante o registro de certos experimentos na trajetória de Maturana, pois eles servirão de base quando tratarmos especificamente da teoria do conhecimento elaborada por ele. 9 Cientista norte-americano que atuou principalmente no campo da inteligência artificial. 37 distinguir entre o ser vivo em si mesmo e aquilo que eles, como observadores, afirmavam ser o ser vivo. Para Maturana, havia uma crença entre os biólogos do MIT de que os fenômenos biológicos seriam revelados se fosse descrita a função que se lhes atribuía. Eu pensava que não era adequado falar assim, nem mesmo metaforicamente, porque acreditava que essa maneira de falar ocultava conceitualmente o operar que dava origem ao fenômeno biológico que se desejava compreender. Para evitar esse ocultamento, comecei a diferenciar entre o queeu dizia como observador, segundo como eu via em meu espaço de distinções o ser vivo, do que eu dizia que acontecia com ele em seu operar, ao estar já constituído como tal. Quer dizer, comecei a descrever os dois domínios nos quais se estabelece a existência de um ser vivo: a) o domínio de seu operar como totalidade em seu espaço de interações como tal totalidade; e b) o domínio do operar de seus componentes em sua composição, sem fazer referência à totalidade de que se constituem, e que é onde se constitui, de fato, o ser vivo como sistema vivente. (MATURANA, 1997a, p. 13). Isso terá implicações para a epistemologia elaborada por Maturana, que será detalhada na subseção 1.2. Como o leitor poderá acompanhar ao longo desta tese, a cisão do ser vivo e até mesmo da realidade em diferentes domínios é algo que aparece com certa frequência no pensamento de Maturana. Maturana regressa ao Chile em 1960, após seis anos de estudos no exterior. Começa então a trabalhar como ajudante na cátedra de biologia do professor Gabriel Gasic, na Faculdade de Medicina da Universidade do Chile (MATURANA; VARELA, 1997, p. 10). Após uma longa conversa com o professor Gasic, Maturana convence-o a deixá-lo ministrar uma série de aulas a respeito da origem e da organização dos seres vivos, no final do ano letivo. Ao final da última aula, um aluno lhe fez uma pergunta que serviu como uma espécie de gatilho para diversas reflexões e investigações, as quais, de certo modo, acompanhariam Maturana ao longo de toda sua trajetória intelectual. Eis a pergunta: “Senhor, você diz que a vida se originou na Terra faz mais ou menos três mil e quinhentos milhões de anos. Que aconteceu quando se originou a vida? O que começou a iniciar a vida, de maneira que o senhor possa dizer agora que a vida começou nesse instante?” Ao escutar essa pergunta me dei conta que não tinha resposta; certamente tinha-me preparado para respondê-la, porém não podia, já que eu não a tinha formulado para mim nesses termos. O que se origina, e que se mantém, até agora, quando se originaram os seres vivos na Terra? foi a pergunta que escutei. (MATURANA; VARELA, 1997, p. 10). Como o próprio estudioso afirma, nos anos de 1960 aquela era uma pergunta sem resposta. Embora reconheça os esforços de Oparin e Haldane em suas investigações a respeito da origem da vida (MATURANA; VARELA, 1997, p. 11), para Maturana o que esses 38 cientistas se propunham fazer era uma investigação empírica/teórica sobre a origem a vida, mas não algo que pudesse servir como categorização do ser vivo. ‘Categorização’ é empregada, neste contexto, com o significado de ‘definição’10. Ou seja, faltava uma definição que pudesse caracterizar o ser vivo. Maturana pensava que “[...] o principal para explicar e compreender os seres vivos era levar em conta sua condição de entes separados, autônomos, que existem como unidades independentes” (MATURANA; VARELA, 1997, p. 11). Em 1968, Maturana sai do Chile novamente para trabalhar durante aproximadamente um ano com o cientista da cibernética Heinz von Foerster, no Biological Computer Laboratory (BCL), na universidade de Illinois. Enquanto trabalhava com Heinz von Foerster, Maturana participou de um congresso sobre cognição, Cognition: a multiple view. Nesse congresso estariam presentes cientistas de diferentes áreas, e Maturana gosta de destacar a participação de antropólogos no evento. A Maturana coube apresentar uma fala sobre neurofisiologia da cognição. Para tornar sua apresentação mais simples para um público não acostumado à terminologia específica da neurofisiologia, Maturana escreveu no quadro do congresso a seguinte frase: “Tudo o que é dito, é dito por um observador”. Vamos às palavras de Maturana: Já que havia decidido falar sobre o processo de conhecer, inevitavelmente aquele que conhece, como condição essencial do processo, passou ao primeiro plano. Queria enfatizar que é impossível separar o que se diz de quem o diz. Não há separação possível entre o falante e o falado. O observador necessariamente é a fonte de tudo. Foi uma evidência essencial para os antropólogos que participaram do congresso (MATURANA; PÖRKSEN, 2008, p. 182, tradução nossa, grifo nosso). Tal fala de Maturana pode aparentar que o autor simplesmente fizera a opção por um relativismo epistemológico, bastante presente na história da filosofia. No caso de Maturana, porém, a defesa do relativismo estaria sustentada por argumentos científicos, sustentada pelos resultados empíricos das pesquisas que ele realizara com células neuronais de diferentes organismos. Descreveremos esses experimentos na subseção 1.3, ao abordarmos a biologia do conhecer. Ainda tratando um pouco do percurso histórico de Maturana, é preciso ressaltar a parceria estabelecida com outro pesquisador chileno, Francisco Varela (1946–2001), que 10 Entre os significados da palavra “definição”, segundo o dicionário virtual Aulete, podemos destacar os seguintes: “1. Ação ou resultado de definir(-se); 2. Explicação do significado de uma palavra, expressão, frase ou conceito; 3. Capacidade de descrever (algo ou alguém), destacando suas características; 4. Delimitação precisa, exata”. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/defini%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 07 jan. 2021. http://www.aulete.com.br/definição 39 chegou ao laboratório de Maturana em 1966. Nas próprias palavras de Varela, assim teria sido o primeiro encontro entre os dois cientistas: “Ele [Maturana] me perguntou que área me interessava e, em meu entusiasmo dos vinte anos, lhe disse sem vacilo: ‘o psiquismo no universo!’ Humberto sorriu e disse: ‘Rapaz, chegaste ao lugar certo…’ (VARELA, 1997, p. 38). A parceria com Maturana foi profícua, e juntos escreveram os livros que mais se disseminaram acerca da teoria da autopoiese e interpretações dela decorrentes: A árvore do conhecimento, publicado pela primeira vez em 1984, e De máquinas e seres vivos, pulicado pela primeira vez em 1973. Varela também fez o seu doutorado em Harvard, em Biologia. Apesar de ter recebido convite de colegas para o cargo de pesquisador em Harvard, Varela declinou do convite, retornou ao Chile e assumiu como pesquisador na Faculdade de Ciências pela qual se graduara. Diferentemente de Maturana, Varela reconhece que, desde a sua graduação na Faculdade de Ciências, leituras filosóficas foram bastante marcantes em sua formação. Entre os autores que o cientista destaca estão Aristóteles, Ortega y Gasset, Sartre, Teilhard de Chardin, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Canguilhem, Bachelard e Kuhn (VARELA, 1997). É possível, e aqui apenas especulamos, que essa maior bagagem filosófica tenha feito com que Varela assumisse, ainda que de forma um tanto discreta, uma visão mais crítica em relação às apropriações da teoria da autopoiese em campos para os quais ela não fora pensada – exporemos isso quando falarmos sobre a autopoiese. Todavia, é importante frisar, mesmo com essa visão mais crítica e tendo seguido um caminho próprio e se distanciado de Maturana, Varela nunca abandonou a teoria da autopoiese, mas procurou ampliá-la e corrigi-la em alguns pontos, por meio de novos conceitos, como o de enacção11. Não deixa de ser curioso que, no curso das investigações empíricas e teóricas de Maturana e Varela, o último tenha ressaltado que as novas interpretações teóricas sobre o ser vivo (autopoiese) e sobre o sistema nervoso (clausura operacional, que será explicada na subseção 1.4) que estavam surgindo constituíam uma tarefa conscientemente “revolucionária e anti-ortodoxa” (VARELA, 1997, p. 45) e que tais interpretações não poderiam ser desligadas do momento político que o Chile estava atravessando, com a eleição de Salvador Allende em 1970. A despeito dessa suposta conexão entre uma nova teoria e o ambiente político do Chile da época, em 1973 veio o golpe militar que culminou na
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