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InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento Maringá 2009 edItora da unIVersIdade estaduaL de marInGÁ Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé Diretor da Eduem: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini Editora-Chefe da Eduem: Profa. Dra. Terezinha Oliveira conseLho edItorIaL Presidente: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini Editores Científicos: Prof. Dr. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lar Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Profa. Dra. Cecília Edna Mareze da Costa Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Rafael Bruno Neto Prof. Dr. Raymundo de Lima Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves Prof. Dr. Sezinando Luis Menezes Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis equIpe tÉcnIca Fluxo Editorial: Cicília Conceição de Maria Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Projeto Gráfico e Design: Marcos Kazuyoshi Sassaka Artes Gráficas: Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing: Marcos Cipriano da Silva Comercialização: Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima copyrIGht © 2013 eduem Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2013 para a editora. eduem - edItora da unIV. estaduaL de marInGÁ Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br eduem@uem.br Iniciação à ciência e à pesquisa A Construção do Conhecimento 36 Maringá 2009 Ana Cristina Teodoro da Silva Luzia Marta Bellini (ORGANIZADORAS) FormAção de ProFessores - eAd coleção Formação de professores - ead Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Luciana de Araújo Nascimento Guaraldo Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos Edição e Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio Eliane Arruda Ilustração da Capa: Fragmentos da gravura “Répteis”, de Maurits Cornelis Escher Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2010 para o autor 1o Reimpressão 2013 - Revisada Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2009 para Eduem. Iniciação à ciência e à pesquisa a construção do conhecimento / Ana Cristina Teodoro da Silva, Luzia Marta Bellini, organizadoras. - Maringá: Eduem, 2009. 114 p. ; 21 cm. (Formação de Professores - EAD; v. 36). ISBN 978-85-7628-169-6 1. Educação – Ciência e pesquisa. 2. Trabalhos acadêmicos - Normalização. 3. Pesquisa - Ética. I. Silva, Ana Cristina Teodoro da. II. Bellini, Luzia Marta. III, orgs. CDD 21. ed. 001.42 I56 Endereço para correspondência: eduem - editora da universidade estadual de maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3261-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br 5 umários sobre os autores apresentação da coleção apresentação do livro capÍtuLo 1 senso comum e ciência: visões de mundo José de Arimathéia Cordeiro Custódio capÍtuLo 2 os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional Luzia Marta Bellini capÍtuLo 3 texto: o que é? Marilurdes Zanini capÍtuLo 4 produção de trabalhos acadêmico-científi cos fundamentais: fi chamento, resumo e resenha Jorge Cantos capÍtuLo 5 normas para apresentação de trabalhos acadêmicos Luzia Marta Bellini / Carlos Alberto Mororó Silva capÍtuLo 6 pesquisar com ética Raymundo de Lima > 7 > 9 > 11 > 13 > 25 > 39 > 53 > 69 > 89 7 obre os autoress JosÉ de arImathÉIa cordeIro custÓdIo Jornalista da universidade estadual de Londrina (ueL). Graduado em Jorna- lismo e direito (ueL). mestre em Letras (ueL). doutor em estudos da LIngua- gem (ueL). marILurdes ZanInI professora do departamento de Letras da universidade estadual de maringá (uem). mestre em Letras (unesp-assis). doutora em Letras (unesp-assis). JorGe cantos professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em estudos sociais (unisinos) e em ciências sociais (Fafi cla). mestre em educação (uem). doutor em Filosofi a (unicamp). LuZIa marta BeLLInI professora do departamento de Fundamentos da educação da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em ciências Biológicas (usp). mestre em educação (uFscar). doutora em psicologia social (usp). carLos aLBerto mororÓ sILVa professor do departamento de Fundamentos da educação da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em Filosofi a (uFpB). mestre em serviço social (uFpB). doutor em engenharia de produção (uFsc). raymundo de LIma professor do departamento de Fundamentos da educação da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em psicologia (uGF - rio de Janeiro). mestre em psicologia escolar (uGF - rio de Janeiro). doutor em educação (usp - são paulo). 9 A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em 2005, com 33 títulos fi nanciados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares. A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o fi nanciamento para esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB). A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi- dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB. Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de refl exão que foi pensado para uma disciplina específi ca do curso, mas em nenhum deles seus organizadores e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura, da refl exão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a formação do Pedagogo na atualidade. Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta- dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse processo. Neste sentido,agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti- tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta coleção. Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba- lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante presentação da coleçãoa InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 10 específi co, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o fi nanciamento desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De- partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu- desse ser criado ofi cialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma modifi cação signifi cativa da sistemática das atividades docentes. No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES) conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li- beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para aprovação, tendo em vista a ação direta e efi ciente de um número muito pequeno de pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação Geral de Articulação. Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB. Maria Luisa Furlan Costa Organizadora da Coleção 11 Por que, em um curso de Pedagogia, uma das primeiras disciplinas é Iniciação à Ciência e à Pesquisa? Há muitas respostas para essa pergunta, mas, sem dúvida, uma delas é: “Por que os saberes que constituem a Educação como campo de conheci- mento são, em boa parte, científi cos?”. Ou seja, muito do que vocês estudarão está fundamentado em pesquisas científi cas, em investigações que priorizam métodos para chegarem a conclusões. Muito, mas não tudo? Sim; muito, mas não tudo. Afi nal de contas, a Educação também compreende saberes oriundos de outras formas de conhecimento, tais como a arte, a fi losofi a e o senso comum. Com isso, já de partida, entendemos que há dife- rentes tipos de conhecimento, todos respeitáveis. As fronteiras entre eles nem sempre são rígidas, e o diálogo é bem-vindo. Durante o curso, o estudante de Pedagogia tor- nar-se-á um caminhante de fronteiras, como afi rma Edgar Morin. Para isso, deverá estar aberto ao mundo da leitura, das refl exões, da vontade de pensar e agir. Para iniciar esse caminho, já que boa parte do estudado será baseado em pesquisas científi cas, cabe ao aluno saber o que a ciência é, como é constituída, quais seus dile- mas. Entendemos que o estudante universitário não é mero consumidor de informa- ções; ele deve ser, também, produtor de conhecimentos. Desde o início de seu curso deve estar apto a, além de estudar e debater, pesquisar e constituir-se como agente em seu caminho e no grupo em que vive. Isso o levará a se constituir como leitor e escritor de textos e outras ações. O primeiro capítulo tratará de pôr em diálogo ciência e senso comum. “Pôr em diálogo”, e não meramente diferenciá-los. Ciência e senso comum muitas vezes se interpenetram, como verão no primeiro capítulo, Senso comum e ciência: visões de mundo, de José de Arimathéia Cordeiro Custódio. Vocês observarão também que o termo ciência não tem apenas uma defi nição: é produção humana histórica, portan- to mutável, falível, variável. Na sequência, os debates mais atuais sobre ciência serão apresentados por Luzia Marta Bellini no segundo capítulo, intitulado Os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional. É importante salientar que não pretendemos, com este livro, dar conta totalmente de conteúdos tão vastos. Oferecemos introduções que poderão ou deverão ser apro- fundadas por mais estudos e pesquisas. As referências ao fi nal de cada texto e os sites sugeridos são caminhos indicados. É exemplar percebermos que os autores não necessariamente concordam uns com os outros. Ciência é debate. Cada capítulo tem um autor, traz a marca de sua trajetória, que não é necessariamente a mesma de outros autores. Fundamentalmente, todos os temas tratados aqui estão em debate constante, pois a ciência tem o compromisso de presentação do livroa InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 12 buscar a verdade, não deve ter a pretensão de tê-la encontrado. O conjunto dos conhe- cimentos científi cos é heterogêneo e de muita discussão. Mais vale manter o debate que pretender ter encontrado a verdade. Sabemos pela história que o conhecimento muda; o que hoje parece verdadeiro amanhã poderá ser questionado. Ciência é expe- riência de humildade e de reconhecimento do tanto que ignoramos. Normalmente a ciência é divulgada em textos verbais, escritos ou orais – caso de aulas e palestras. Ciência é conhecimento público; logo, faz parte das obrigações do cientista publicar seus resultados. Por isso vocês devem aprender a compor textos que representem os conhecimentos obtidos. Professor deve ser autor, capaz, por exemplo, de escrever um texto voltado a seus alunos. O capítulo três, Texto: o que é?, de Ma- rilurdes Zanini, discute a noção de texto verbal e elementos que devem ser levados em conta para a comunicação das idéias. No curso, haverá grande solicitação de produção de textos e trabalhos. Vocês lerão, estudarão e escreverão bastante, porque esses são exercícios necessários à formação profi ssional do pedagogo. Por esse motivo temos um capítulo, o quarto, relativo à elaboração de resumos, resenhas e fi chamentos, denominado Produção de trabalhos acadêmico-científi cos fundamentais: fi chamento, resumo e resenha, de autoria de Jorge Cantos. E o quinto capítulo, Normas para apresentação de trabalhos acadêmi- cos, de Luzia Marta Bellini e Carlos Alberto Mororó Silva, trata das normas que devem ser seguidas para a apresentação de tais trabalhos. Por fi m, discutir ciência envolve discutir ética: ciência para que e para quem? Que cuidados devemos tomar ao nos postarmos como pesquisadores, como cientistas? Que cuidados devemos exigir dos cientistas? É o que será debatido no sexto e último capí- tulo, Pesquisar com ética, de autoria de Raymundo de Lima. Pretendemos que você, neste livro, encontre sentido nas leituras e interpretações dos textos com os quais se deparará durante a graduação. Perceba que a qualidade de seus estudos dependerá também de seu engajamento. Os textos não trazem os conhe- cimentos prontos; o conhecimento é produzido na mente de quem elabora o texto. O texto se completa no leitor, na leitura criativa, rica, crítica. Explore os textos do livro, mas não fi que apenas neles. Aprofunde em outros livros, use a imensa biblioteca que a rede de computadores dispõe. Há um conjunto imenso de pessoas que, há muitos milênios, se preocupam com o conhecimento, como este acontece, como devemos registrá-lo, deixando-o disponível a outras gerações. Entenda que você, agora, insere-se nesse conjunto, começa a constituir-se como ponte entre o que já foi produzido, o que está em construção e o que virá. É caminhode surpresas, por ora maravilhosas. E também de grande responsabilidade. Ana Cristina Teodoro da Silva Luzia Marta Bellini Organizadoras do Livro 13 Introdução Qual a melhor época para podar certos tipos de árvores? A resposta é fácil: nos meses sem “R” – ou seja, maio, junho, julho e agosto. Qual a lógica dessa resposta? Ora, os meses sem “r” no nome são os mais secos do ano, o que signifi ca que a poda liberará menos líquidos das árvores, e consequentemente atrairá menos insetos que poderiam prejudicar a saúde do vegetal. Todo esse raciocínio aparentemente com- plexo, mas subjacente, e traduzido para uma fórmula mais simples de memorizar, caracteriza o conhecimento do senso comum. E como se calcula o tempo de uma gestação humana comum? Muitos médicos se baseiam na gravidez mais famosa da História: a de Maria de Nazaré. O lapso de tempo entre 25 de março – dia da anunciação e da concepção – e 25 de dezembro – dia do nascimento – fi xa o parâmetro. Tais conhecimentos, tradicionais, são considerados de senso comum. Baseiam- se em alguma experiência; parecem funcionar na maioria das vezes, embora falhem eventualmente. São transmitidos de geração a geração, que simplesmente os conser- va, quase nada acrescentando ou reduzindo. Entretanto, não é semelhante o conhecimento científi co? Ele também se baseia na experiência – ou experimentação. Também pode falhar eventualmente (coitada da Meteorologia!) e é igualmente divulgado. As aparentes semelhanças acabam aí. O co- nhecimento dos sensos comum e científi co não é, na verdade, semelhante assim. Con- tudo, quem nega qualquer “fraternidade” entre ambos é o pensamento científi co. É ele que costuma desprezar seu “irmão” senso comum, como se este fosse o retrógrado, o envelhecido, o extemporâneo, o ultrapassado, o infundado, o crédulo, o ignorante. 1 José de arimathéia cordeiro custódio senso comum e ciência: visões de mundo InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 14 Por outro lado, o economista sueco Gunnar Myrdal (1898-1987) afi rmou certa vez: “A ciência nada mais é que o senso comum refi nado e disciplinado”. Hoje em dia, portanto, há espaço para os dois, como veremos a seguir. o senso comum Aranha e Martins (1993, p. 127-128) assim defi nem senso comum: “chamamos de conhecimento espontâneo ou senso comum o saber resultante das experiências le- vadas a efeito pelo homem ao enfrentar os problemas da existência. [...] Além disso, cada geração recebe das anteriores a herança fecunda que não só é assimilada como também transformada”. Segundo as autoras, tal conhecimento é “ametódico e assiste- mático”, bem como “empírico” e “ingênuo”, no sentido de que não indaga a si mesmo como tal. Normalmente, embora relacione causas e efeitos dos fenômenos com os quais in- terage, a pessoa que age segundo o senso comum não pergunta sobre tais causas e efeitos, bastando-lhe a certeza – às vezes falível – de que tal causa gera tal efeito. Não há preocupação com o “como” tal fenômeno ocorre. Com isso, certas associações de ideias que poderiam enriquecer ou ampliar o conhecimento são desconsideradas. Um exemplo – entre muitos – pode vir da “Física de Cozinha”: sabemos que, para evitar que a “quentura” do chá quebre a xícara, é só colocar a colher dentro do recipiente. A Física pode perfeitamente explicar as propriedades de absorção do calor pelo metal em comparação com as da louça e assim esclarecer o fenômeno. Mas para quê? A satisfação do senso comum com a compreensão da causa-efeito já levou a um conhecimento com base em aparências. O exemplo mais conhecido é o da Terra imó- vel, enquanto os astros, inclusive o sol, giram em torno dela. A ideia de que a Terra tinha essa condição e estava no centro do universo vigorou por séculos. Não é à toa que na Bíblia, no Livro de Josué (BÍBLIA, 1995a), há uma passagem na qual Deus para o “movimento” do sol por quase um dia inteiro para que os israelenses pudessem vencer uma batalha contra os emoritas. Como sabemos que o sol não gira em torno da Terra, mas o contrário, já percebemos que o referido texto – assim como muitos outros – não pode ser interpretado ao pé da letra, pois não tem sustentação factual. Ainda assim, já circulou na Internet uma mensagem dando conta de que uma inexpli- cável defasagem de tempo nos poderosos relógios atômicos da NASA seria esclarecida por esta e outra passagem da Bíblia, em que o sol realiza um movimento retrógrado por alguns minutos. Ou, mais especifi camente, dez graus. Está no Segundo Livro de Reis (BÍBLIA, 1995b). A aparência pode ainda dar a impressão de que um fenômeno particular traduza uma ocorrência universal, o que caracteriza um pensamento indutivo. Sem um rigor 15 na observação, esta pode se tornar uma perspectiva aleatória, baseada na incomple- tude. Ou, simplesmente, um conhecimento produzido a partir de uma subjetividade. A subjetividade, aliás, é forte característica do senso comum. É possível, mesmo diante de muitos fatos mais objetivos, que os valores subjetivos individuais – valores morais, opiniões pessoais, intuição, crenças – defi nam um juízo acerca de um objeto, pessoa ou fenômeno. Assim, basta um encontro com um objeto, pessoa ou fato dife- rente para que o senso comum logo o rotule de “estranho” ou “engraçado” (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 129). Chauí (2000, p. 248) aponta algumas características próprias do senso comum. O primeiro deles é a subjetividade. Em outras palavras, expressam saberes e valores de um determinado indivíduo ou grupo, em condições específi cas. O senso comum também é, conforme a autora, qualitativo, ou seja, são feitos juízos dos objetos, como grandes/pequenos, novos/velhos, próximos/distantes, belos/feios. É ainda heterogê- neo – referem-se a fatos diferentes: “sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada”, exemplifi ca a autora. Por essas duas últimas características, o senso comum também é individualizador – cada fato ou objeto parece próprio e ligado a um atribu- to: mel/doce, fogo/quente etc. Ao mesmo tempo, porém, pode ser generalizador em sua categorização: animais, artes, remédios, bebidas etc. As generalizações trazem as associações do tipo fumaça/fogo. Com isso, aquilo que se repete não é admirado, torna-se comum e esperado. O que chama a atenção do senso comum é aquilo que é extraordinário, milagroso. Exatamente por essa percep- ção, o saber comum às vezes encara uma descoberta científi ca como magia, maravilha, força sobrenatural ou obra miraculosa. A ligação com o maravilhoso gera projeções nas coisas do mundo: fatos parecem ser obra de uma entidade sobrenatural ou até de extraterrestres. O que hoje é considerado senso comum tem estreita relação com a tradição, por- que esta é forma pelo qual esse tipo de conhecimento é transmitido e se perpetua no curso da História. Por outro lado, o senso comum de hoje pode ser apenas um conhe- cimento científi co de ontem já superado na maioria dos contextos sociais. Todavia, an- tigos conhecimentos ainda se mantêm em alguns grupos, como no interior do Brasil. Em certas regiões, a população se guia por conhecimentos abandonados há séculos pelos moradores das cidades. Tais localidades rurais são uma presença viva da História. Tomemos, por exemplo, alguns conhecimentos de Medicina. Só se conhecem dois trabalhos de Medicina produzidos na Europa do século XII; ambos foram escritos por Hildegard de Bingen. A esse respeito, Pernoud (1996, p. 83) assinala: “Ela compôs uma verdadeira enciclopédia de conhecimentos da época, na Alemanha, em matéria de ciên- cias naturais e de medicina”. E acrescenta: “A medicina hildergardiana vem despertando senso comum e ciência: visões de mundo InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 16 a atenção do público há bastante tempo e tem suscitado numerosos trabalhos [...]” (PERNOUD, 1996, p. 84). Trata-se da ciência moderna tentando legitimar,com seus modelos e instrumentos, um conhecimento secular assimilado pelo senso comum. Ao enfocar as “sutilezas naturais”, Hildergard produziu conhecimentos terapêuti- cos a partir da observação de plantas, animais, da água e das diferenças de temperatura ambiente. Remédios naturais e dietas alimentares faziam parte de suas prescrições para diferentes enfermidades. Tais receitas chegaram aos nossos dias pela tradição e pelas heranças culturais familiares. Quer um remédio para o estresse e que ainda pode ajudar a prevenir o diabetes? Hildergard tinha, mas chamava esse mal de “cérebro fatigado”. Anote: Tomar uma noz moscada, peso igual de canela e um pouco de cravo; reduzir a pó; com esse pó, a fl or da farinha e um pouco de água, fazer pequenas bolachas e comer frequentemente; essa preparação ameniza a amargura do corpo e do espírito, abre o coração, aguça os sentidos embotados, alegra a alma, purifi ca os sentidos, diminui os humores nocivos, traz bom açúcar ao sangue e fortifi ca (PERNOUD, 1996, p. 90). As prescrições de Hildegard, assim como outras de sua época, não eram acuradas quanto à dosagem e outros detalhes, como vemos atualmente. Contudo, as substân- cias que a mística indicava como terapêuticas são cuidadosa e cientifi camente estuda- das por pesquisadores contemporâneos, os quais se indagam o que há por trás dos eventuais resultados positivos das receitas de Hildergard. Logo, o saber medieval, que se transformou em senso comum para parte da população, ganha o status de objeto de estudo. Naturalmente, é mais uma apropriação da ciência moderna, que tudo quer medir e pesar. Mas é também uma confi ssão de que os demais tipos de conhecimento – como o senso comum – não podem simplesmente ser ignorados. cIêncIa Para Chauí (2000, p. 249), o que distingue a atitude científi ca do senso comum é que a primeira indaga a si mesma e suas próprias certezas. Desconfi a da falta de perguntas e de crítica. A autora contrapõe, ponto a ponto, as características do senso comum, ao tratar do conhecimento científi co. Então, antes de mais nada, este é obje- tivo. É também quantitativo, ou seja, busca medir, comparar e avaliar. É homogêneo, porque busca as leis gerais que regem os fenômenos. Não é individualizador quando reúne aparentes individualidades sob as mesmas regras, padrões e critérios de medida. São, todavia, diferenciadores quando distinguem além da aparência de semelhança, e descobrem leis diferentes para fenômenos iguais apenas superfi cialmente. As associações ou relações causais tão recorrentes no senso comum não aconte- cem facilmente com o conhecimento científi co. Primeiro, este investiga a natureza ou 17 estrutura do fenômeno. E, ao contrário do saber comum, é a regularidade e frequência que faz admirar. O que pareceria um milagre será explicado pela revelação de detalhes particulares que, sempre que se repetirem, produzirão determinado efeito. Evidentemente, ciência não é magia nem é exercida por entidades sobre-humanas. E ao invés de fazer projeções, a ciência propala que liberta o ser humano delas. Final- mente, o saber científi co está sempre revendo a si mesmo. O pensamento e o método científi co tais como nos chegaram até hoje são uma invenção da Modernidade, ou seja, surgiram fortes do século XV em diante, vindo a se estabelecerem mesmo no século XVII e já encontrarem uma crise no século XIX, exatamente a partir do momento em que atingiram seu ápice. Atualmente, no século XXI, convivem os que ainda defendem o modelo moderno e os que o criticam, posi- cionando-se como pós-modernos, ou contemporâneos. Aranha e Martins (1993, p. 162) asseveram que “Até o século XIX o desenvolvimen- to da ciência tinha sido tão grande que o homem estava convencido da excelência do método científi co para conhecer a realidade”. Era o Positivismo. E as autoras conti- nuam: “No entanto, ainda no século XIX e no início do século XX, algumas descober- tas golpearam rudemente as concepções clássicas, originando o que se pode chamar de crise da ciência moderna”. Aparece a necessidade de revisão do conceito de ciência, dos critérios de certeza e da validade dos modelos científi cos (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 163). Já para Ronan (2001, p. 7), a História da Ciência é marcada por teorias científi cas revolucionárias, desde os babilônios e os antigos gregos. Porém ressalta: [...] mas a revolução que mudou a forma de encarar a natureza e que gerou a moderna concepção científi ca, foi a que começou no século XV e se prolongou até o fi m do século XVI. De fato suas conseqüências foram tão grandes que, com toda a razão, muitas vezes a chamam de ‘A Revolução Científi ca’. Para descrever os séculos XVII e XVIII na História da Ciência, o autor não disfarça seu tingimento moderno: Chegamos agora ao período em que a ciência moderna foi fi nalmente lançada e estabelecida em sua inaudita viagem de conquista. Do princípio do século XVII ao fi m do século XVIII, o aspecto geral do mundo natural alterou-se de tal forma que Copérnico teria fi cado pasmo. [...] A matemática tornou-se uma ferramenta cada vez mais essencial para as ciências físicas; os resultados eram expressos em números, e os argumentos qualitativos eram rejeitados. Houve também um desenvolvimento considerável no projeto e na fabricação de ins- trumentos científi cos, pois, se o mundo natural seria investigado de modo mais rigoroso e mais preciso, então era necessário um equipamento especializado. O desenho do que era, de fato, uma nova geração de instrumentos de precisão começou na última parte do século XVI [...] (RONAN, 2001, p. 73). senso comum e ciência: visões de mundo InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 18 Ciência, em sua concepção moderna, passou a ser sinônimo de instrumentalização. Percebemos isso logo nos primeiros argumentos da cientista, personagem do fi lme O Ponto de Mutação, ao falar do relógio. Percebemos isso na abertura de um desenho animado multinacional europeu sobre a História da Humanidade, que resume em curtas cenas os principais períodos. A partir da criação das máquinas a vapor – e com exceção da Revolução Francesa – tudo o que a abertura mostra é uma sequência de inovações tecnológicas: locomotiva a vapor, automóveis, avião, foguete e satélite. A historiadora Danielle Ljacquart, citada na Scientifi c American História (SCIENTI- FIC, 2004b, p. 5), entende que “as defi nições do que é ‘científi co’ mudaram de modo considerável”. A autora prossegue: “Para ela, a causa do ceticismo está nas prioridades medievais: ‘As disciplinas da época estavam incluídas num conjunto no qual todos os domínios do saber racional estavam organizados numa espécie de pirâmide, no alto da qual fi cava a teologia’”. O que a Modernidade fez foi mudar essa fi gura da pirâmide, o que implicou em uma nova forma de ver – e organizar – o mundo do ponto de vista humano. A profes- sora de História da Ciência da Unicamp, Silvia Figueiroa, na revista Scientifi c American História (SCIENTIFIC, [2005?], p. 6), propala que “O Renascimento representou, antes de tudo, a releitura do mundo. O que foi uma tarefa imensa, de enorme impacto”. Mais que isso: “A Terra passou a ter um novo lugar no universo” – defi ne a autora. A referência, evidentemente, é ao modelo heliocêntrico de Copérnico, na publicação citado ao lado de Newton e Galileu. Não é à toa que esses dois se tornaram, séculos mais tarde, nomes de revistas científi cas voltadas para o público leigo. Eles são dois dos representantes da concepção de ciência que se opõe à ideia de senso comum e tradição de coloração religiosa. A racionalidade é, segundo muitos cientistas, o elemento que separa o senso co- mum do conhecimento científi co – uma racionalidade que segue um método, realiza uma análise, experimenta e organiza os saberes. Porém: [...] nem todos os estudiosos da ciência aceitam o paradigma da racionalidade com único critério quediferencia ciência de saber comum. Alguns, inclusive, re- jeitam a oposição entre ciência e religião, dizendo que para além da racionalida- de científi ca reside um sentimento humano que conduz o homem na elaboração de respostas para as origens do Universo. A ciência seria um conjunto de tentati- vas de respostas. A religião, por seu lado, uma experiência análoga à ciência. [...] como ambas se constituem como buscas, hipóteses e ensaios, não se pode dizer que uma tem precedência ou mais valor que a outra (FILOSOFIA, 2006, p. 241). Não, pelo menos, no contexto acadêmico contemporâneo. E quanto ao conceito de progresso da ciência? A expressão é comum, largamente difundida, e associada às descobertas tecnológicas. Destarte, os inúmeros problemas 19 trazidos justamente pelo avanço científi co põem em xeque as virtudes da ciência e desiludem as pessoas. Já se acusam os cientistas de serem poucos neutros na produ- ção do conhecimento. O questionamento da própria ciência é feito pela Filosofi a da Ciência, que “vem desmentindo a ideia de progresso ou evolução científi ca com base nos estudos sobre as transformações científi cas, na sobreposição de paradigmas, nas rupturas epistemológicas e na descontinuidade dos processos de produção do conhe- cimento e da tecnologia”. Mais que isso: “quando falamos em progresso científi co, este conceito está impregnado com o espírito positivista que acreditava no avanço da ciência para a melhoria da vida humana e das condições de existência no planeta” (FILOSOFIA, 2006, p. 253). consIderaçÕes FInaIs A revista Scientifi c American Brasil, em sua edição de fevereiro de 2004 (SCIEN- TIFIC, 2004a), trouxe uma matéria com um título intrigante, posto o veículo em que está: “Não sabemos que não sabemos”. Trata-se na verdade de uma matéria que aborda as incertezas do pensamento cien- tífi co, principalmente à luz das descobertas do último século. É uma luz pós-moderna a fl agrar o cientifi cismo moderno. A frase-título é um jogo de palavras que o cientista Heinz von Foerster, contemplado na matéria, faz a partir das palavras de Sócrates – “Só sei que nada sei”. Curiosamente, a reportagem inicia abordando os dogmas: Os dogmas do cientifi cismo talvez representem a herança mais onerosa da mo- dernidade. Mais invasivos que os dogmas religiosos, com freqüência alimen- taram um racionalismo prepotente e desmedido (uma hybris da razão) que pretendeu explicar tudo, impelindo à margem os inúmeros aspectos não racio- nalizáveis da vida humana: instintos, pulsões, angústias, sentimentos, paixões (SCIENTIFIC, 2004a, p. 21). Há também um tempero de ironia: “O homem não é, nem nunca será, o deus diante de quem outro homem deve ajoelhar-se. Nenhum homem, portanto, jamais será onis- ciente. Isso vale, antes de mais nada, para os cientistas”. O pensamento tem tanto peso que é repetido em um box ao canto da página, a título de resumo, uma prática da revista. Notemos o que é redimido, após cinco séculos – o mito: “o mito também é um caminho para enfrentar o desconhecido, para resistir à angústia que os excessos de realidade provocam”. O fundamento está adiante: Ainda que o mundo secularizado (e tecnicizado) e o aparecimento do homem copernicano tenham delineado uma antítese radical entre mito e razão, no- vas descobertas e mudanças de paradigmas deslocaram os limites do que é inexplicável e indecidível, entrando para o acidentado e empolgante território senso comum e ciência: visões de mundo InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 20 da ignorância consciente. Não se trata de buscar novidades absolutas, mas de seguir o rastro da persistência de histórias, linguagens, tradições (SCIENTIFIC, 2004a, p. 21). E embora rejeite os mitos, o pensamento científi co também gerou os seus. Aranha e Martins (1993, p. 132) chamam a atenção para os mitos da ciência surgidos com as promessas iluministas do século XVIII: Pela ciência o homem podia espantar o medo causado pela ignorância e supers- tição, guardando a esperança de um mundo onde as luzes da razão permitiriam a melhor qualidade de vida possível e a emancipação dos preconceitos, da vio- lência e do arbítrio. No entanto, [...] há sombras nas promessas iluministas. E, se não podemos (e não desejamos) desprezar a ciência e a razão, é preciso com urgência indicar quais são os seus riscos e desvios. As autoras lembram que o Positivismo do século XIX, mais do que qualquer outra mentalidade, exagerou no valor atribuído ao conhecimento científi co, marginalizando outras formas de saber, como a religião e até a Filosofi a, consideradas expressões infe- riores e superadas da experiência humana. Só que valorizar demais a ciência também a transformou em um mito. Essa exclusão de outros saberes é arbitrária e mutiladora, e signifi ca, na verdade, um reducionismo, à medida que reduz o objeto das ciências ao fato positivo e observá- vel; reduz a fi losofi a aos resultados das ciências (gerando um utilitarismo pragmatista) e reduz as ciências humanas às naturais – como a Economia, que muitas vezes se asse- melha à História Natural, com seus discursos darwinistas sobre “sobrevivência do mais adaptado”, “extinção”, “competitividade”, “lei da selva” etc. Aranha e Martins (1993) elencam os novos mitos – os científi cos. Um deles é o mito do progresso, já abordado aqui. O ideal do progresso motivou, por exemplo, a colo- nização do norte do Paraná. Fotografi as da primeira metade do século XX mostram pioneiros triunfantes sobre as gigantescas perobas. Hoje essa perspectiva mudou. As imagens das árvores derrubadas não são mais signo de progresso. E é sempre bom lembrar que não só árvores foram tiradas. Ninguém se lembra de que havia índios pela região? Outro mito é o da tecnocracia. Ou seja, quem dita a ordem são aqueles que do- minam as técnicas. São os cientistas, os tecnocratas. Daí segue outro mito – o do especialista. É ele o competente em sua atuação, e não pode ser contestado. Se ele é o que sabe, então os demais não sabem nada, e a estes resta obedecer. Mas será que é mesmo assim? Por outro lado, existe ainda o mito da neutralidade científi ca – a ideia de que as pesquisas e os avanços da ciência não guardam relação com ideologia alguma. Assim, 21 os médicos só estariam preocupados em descobrir novas terapias – a decisão sobre seu uso caberia a cada paciente, a cada profi ssional, a cada Estado. Então como expli- car o desenvolvimento de armas de fogo, químicas e biológicas? Tais pesquisas estão isentas de ideologia? O modelo positivista, então, substituiu os antigos mitos, mais ligados à religião, por mitos científi cos. Criticava os antigos, mas criou novos, caindo em certa contradição. Os pontos de vista mais contemporâneos, diferentemente, tentam levar todos os mo- delos em consideração. Nesse âmbito, nem os mitos antigos, nem os modernos são desprezados. O terceiro milênio, com todos os seus augúrios, aponta para o pensamento plural, multicultural, subjetivo e relativista. Observemos que nada disso inclina para o forta- lecimento do senso comum, nem tampouco para a supremacia da ciência. O senso comum resiste, apegado à tradição. Mas mesmo ele vem cedendo à força dos novos costumes. O pensamento científi co, sem a mesma âncora, fi ca mais sujeito à sequência de vagas que são as contínuas descobertas e invenções. O melhor exemplo é o café: ele faz bem ou faz mal? Depende da semana em que se responde. O que Paden (2001, p. 10) discorre sobre o sagrado vale para o estudo de qualquer fenômeno humano: “Há muitas concepções de mundo, dependendo dos nossos ócu- los [...] As visões de mundo se tornaram apenas isso – visões”. Isto porque, segundo o autor, [...] os pontos de observação são frequentemente fi xos, singulares e defensivos. As teorias religiosas e acadêmicas, da mesma forma, têm muitas vezes esse tipo de perspectiva monoposicionada, como se fosse marca de uma interpretação corretaque apenas uma posição possa ser válida [...] (PADEN, 2001, p. 15). Ao contrapor ciência e religião (que possui um pensamento mais dogmático e oposto ao científi co), Paden (2001, p. 16) situa: Certamente, a ciência desafi ou os modelos religiosos e fez com que em gran- de parte parecessem falsos, mas ela também, de muitos modos, perpetuou o modelo único. A crença do século XIX de que a ciência substituiria a religião como a fonte do verdadeiro conhecimento sobre o mundo foi equivalente à substituição de uma lente por outra [...]. Conclusão: senso comum e ciência, hoje, não têm mais que estar em lados opostos de um ringue. E é novamente Paden (2001, p. 17) que sentencia: A capacidade de ver a própria visão de mundo como uma visão é uma marca do pensamento contemporâneo. [...] Não apenas perceber o mundo, mas perce- ber como percebemos o mundo está se tornando, de certa forma, uma segunda natureza para uma cultura pluralista e autoconsciente. senso comum e ciência: visões de mundo InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 22 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à Filosofi a. São Paulo: Moderna, 1993. BÍBLIA. A.T. Livro de Josué, 10:12-14. Português. Bíblia Sagrada. Tradução ecumênica brasileira. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995a. ________. Livro de Reis, 2Rs 20:8-11. Português. Bíblia Sagrada. Tradução ecumênica brasileira. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995b CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofi a. São Paulo: Ática, 2000. FILOSOFIA: ensino médio. Curitiba: Seed-PR, 2006. PADEN, William E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. São Paulo: Paulinas, 2001. PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen: a consciência inspirada do século XII. São Paulo: Rocco, 1996. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge: da renascença à revolução científi ca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. v. 3. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL. São Paulo, ano 2. n. 21. Febr. 2004a. SCIENTIFIC AMERICAN HISTÓRIA. A ciência na Idade Média. São Paulo: Duetto, 2004b. v. 1. referências 1) Todas as famílias transmitem oralmente uma grande quantidade de conhecimentos sobre o mundo aos seus membros. A partir dos conhecimentos de sua própria família e do grupo social ao qual você pertence, identifi que aqueles que parecem confi rmar ou contrariar as proposta de atividades 23 senso comum e ciência: visões de mundo SENSO COMUM (Carlos Fontes) O grupo reunira-se pela primeira vez para trabalhar. O professor solicitara um tra- balho referente ao tema “senso comum”. Na biblioteca da escola, a azáfama foi grande. O Nelson procurou em um dicionário e leu que o senso comum era uma espécie de conhecimento atribuído à grande maioria dos homens, denominando-se também doxa (opinião), sendo também identifi cado com a opinião pública. Não era grande coisa, mas era um bom princípio: saber o signifi cado das palavras. Manuel descobriu um livro na seção de fi losofi a, no qual um fi lósofo chamado Karl R. Popper afi rmava que a conhecida frase “A voz do Povo é a voz de Deus” foi durante muito tempo entendida como uma forma de sabedoria sem limites, sendo assumida mesmo como a autoridade fi nal sobre todas as questões. Ninguém percebeu nada. Um pouco à frente, o texto • <http://www.abc.org.br/> - Academia Brasileira de Ciências; • <http://www.ciencias.com.br/> - Desenvolvido por professores, traz links com várias áre- as; • <http://www.on.br/site_brincando/index.html> – Site do Ministério da Ciência e Tecno- logia; • <http://cienciaesaude.uol.com.br/> - Página sobre Ciência e Saúde; • <http://www.comciencia.br/comciencia/> - Revista Com Ciência de Jornalismo Científi co; • <http://cienciahoje.uol.com.br/> - Revista Ciência Hoje on-line; • <http://www2.uol.com.br/sciam/> - Revista Scientifi c American Brasil on-line. Leitura complementar sugestões de sites verdades científi cas. Em que bases ocorrem tais confi rmações ou oposições? Qual é mais confi ável: o conhecimento mais antigo e tradicional ou o mais moderno e científi co? 2) Há uma grande divulgação na imprensa das descobertas científi cas e inovações tecnoló- gicas. A partir dessa ampla difusão de informações, refl ita sobre dois aspectos. Primeiro: todas essas descobertas e inovações mudam o dia-a-dia das pessoas comuns, a curto prazo? Segundo: há um exagero no valor de tais descobertas e inovações? 3) Você reparou que toda inovação científi ca e tecnológica, seja na área da saúde (Medicina, Farmácia, Cosmética), seja na eletrônica (aparelhos de comunicação e informática, TV di- gital), ou qualquer outra, sempre implica em comprar, consumir e gastar? Pense: por que a ciência e tecnologia sempre estão ligadas à venda, ao comércio e ao consumo? InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 24 pontuava que essa “voz do Povo” tinha hoje um equivalente moderno na “fi gura mítica” do “Homem da Rua”, no seu voto e na sua voz. Raquel esteve para riscar essas palavras, mas por consideração ao Manuel que as encontrou acabou por o não fazer. Por outro lado, se estava escrito em um livro, ainda por cima de fi losofi a, deveria ser, por certo, verdadeira. “Mas o quê?”, interrogava-se Isabel. João, sempre disposto a discordar de tudo, questionou essa última posição. Parecia-lhe demasiado “ingênua” e “pouco críti- ca”, dado que partia do pressuposto que tudo o que estava escrito nos livros era verda- deiro. “Há livros e livros!”. Rita sentiu-se mais do que nunca confusa, sempre acreditara que o que está escrito nos livros era verdadeiro, não sabia o que fazer. João, empolgado pelo impacto que as suas afi rmações estavam a produzir nos colegas, não tardou em acusá-los de estarem presos a “ideias feitas”, “preconceitos” e até a “tradições” que lhes haviam sido incutidas ou transmitidas desde a infância e que agora os impediam de procurar o conhecimento de uma forma objetiva. Isabel estava desesperada, mais uma vez o seu grupo não iria conseguir concluir o trabalho. Resolveu, por isso, propor aos colegas que fosse redigido um texto com um título, que era só por si um trabalho: “IDENTIFICAÇÃO DOS OBSTÁCULOS DO SENSO COMUM QUE IMPEDIRAM QUE O TRABALHO FOSSE CONCLUÍDO.” Fonte: <http://afi losofi a.no.sapo.pt/SComum.htm>. anotações 25 Todo aluno que entra na universidade, de um modo ou de outro, fará parte do debate sobre o que é, ou melhor, sobre o que são as ciências. Geralmente o termo ciência é associado à experimentação e observação dentro e fora da universidade. Quase todos os dias vemos produtos alimentícios, de limpeza ou outros oferecidos na televisão, rádio, Internet, outdoor como “cientifi camente comprovados”. A esse rótulo respondemos afi rmativamente. Se for cientifi camente comprovado, é bom. Porém, é essa defi nição de ciência a mais correta? Para responder a essa pergunta, propomo-nos a caminhar por três dimensões. A primeira, pela fi losofi a da ciência, para conhecer o pensamento de alguns fi lósofos en- volvidos com a refl exão das ciências física, biologia, química, matemática e as ciências sociais. A segunda dimensão traz diferenciações entre os campos científi cos, que cha- maremos de epistemologia das ciências. A terceira é o campo educacional, que contém um campo rico de debates acerca das ciências e seus métodos. pensando as cIêncIas contemporÂneas peLa FILosoFIa da cIêncIa Quando estamos tratando do conhecimento científi co, de seus objetos de inves- tigação, dos problemas de pesquisa, de hipóteses, dos termos teóricos, mesmo não sabendo, estamos passando por um longo debate entre cientistas e fi lósofos da ciência na defi nição do que seja a ciência. Chalmers (1993), em seu livro O que é ciência, afi nal?, traduz de maneira simples, para um leitor novato na área, as diferentes correntes teórico-metodológicas que fi ze- ram a discussão metodológica da investigação científi ca. Anuncia, logo em seu título que, no debatesobre a defi nição do termo ciência, não houve consenso. Chalmers (1993, p. 17) pergunta: “O que há de tão especial em relação à ciência?” “O que vem 2 Luzia marta Bellini os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 26 a ser esse método científi co que comprovadamente leva a resultados meritórios ou confi áveis?”. A defi nição de ciência, postula Chalmers (1993), repousou no fundamento seguro de que a observação e a experimentação eram as bases para o método científi co. Essa ideia emergiu com Francis Bacon, no século XVII. O método indutivo, ou seja, deriva- do da observação ou da experiência do pesquisador, foi o raciocínio empregado para a descrição dos fenômenos (naturais). De acordo com esse raciocínio, o observador/ pesquisador deve empregar os seus sentidos para registrar e afi rmar coisas sobre o es- tado do mundo. Essas assertivas, também chamadas de proposições, tornam-se afi rma- ções universais se o investigador conseguir o maior número de observações possíveis. Nesse caminho, a ciência pode ser defi nida como uma coleção de dados obtidos pela observação e pela experiência. No entanto, se obtivéssemos o maior número de observações, esse método – o indutivo – garantiria que estaríamos fazendo ciência? Sim e não. Sim, para os indutivis- tas, e não para uma plêiade de fi lósofos da ciência. Entre eles, Chalmers (1993) destaca Popper, Kuhn, Lakatos e Feyrabend. O problema do método indutivo foi levantado por Bertrand Russell. Chalmers (1993, p. 37-38) conta: Um problema mais interessante embora um tanto medonho é uma elaboração da história que Bertrand Russell conta do peru indutivista. Esse peru descobri- ra que, em sua primeira manhã na fazenda de perus, ele fora alimentado ás 9 horas da manhã. Contudo, sendo um bom indutivista, ele não tirou conclusões apressadas. Esperou até recolher um grande número de observações do fato de que era alimentado às 9 horas da manhã, e fez essas observações sob uma ampla variedade de circunstâncias, às quartas e quintas-feiras, em dias quentes e frios, em dias chuvosos e dias secos. A cada dia acrescentava uma proposição de observação à sua lista. Finalmente, sua consciência indutivista fi cou satisfeita e ele levou a cabo uma inferência indutiva para concluir: Eu sou alimentado sempre às 9 horas da manhã. Mas, ai de mim, essa conclusão demonstrou ser falsa, de modo inequívoco, quando, na véspera do Natal, ao invés de ser ali- mentado, ele foi degolado. Uma inferência indutiva com premissas verdadeiras levara a uma conclusão falsa1. Popper (1902-1994), fi lósofo da ciência austríaco, traz outra interpretação de ciên- cia. Aceita a observação e a experimentação, mas ao contrário do indutivismo, assinala que a observação e a experimentação são orientadas pela teoria. No entanto, as teo- rias, por sua vez, não são estabelecidas como falsas ou verdadeiras à luz das evidências. 1 O problema da indução para as ciências biológicas, física e química foi resolvido em parte com a noção de proba- bilidade. Nessa forma, o conhecimento científi co não é conhecimento comprovado, mas provavelmente verdadeiro. 27 As teorias são interpretadas como hipóteses que o intelecto humano cria para superar os problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada dos comportamentos de alguns aspectos do mundo ou universo.[...] A ciência progride por erros e tentativas (CHALMERS, 1993, p. 64). Esse método é chamado de falsifi cacionismo por Popper. O raciocínio é o dedutivo. O falsifi cacionista explora ao máximo esta particularidade lógica [...]. A ciên- cia é um conjunto de hipóteses que são experimentalmente propostas com a fi nalidade de descrever ou explicar acuradamente o comportamento de algum aspecto do mundo ou do universo (CHALMERS, 1993, p. 65). Para o falsifi cacionista, as teorias falsifi cáveis devem ser preferidas pelas menos fal- sifi cáveis. Ou seja, quanto mais aberta for uma teoria às hipóteses ou conjecturas, mais progresso poderemos obter na ciência. Teorias pouco falsifi cáveis (fechadas, com pouca abertura a novas hipóteses) não nos permitem testá-las, não nos permitem errar e tentar novamente. Para essa corrente, aprendemos com nossos erros (CHALMERS, 1993). Desse modo, a ciência começa pelo problema, pela teoria ou conjunto de hipóteses2. Outro cientista que se preocupou com o método científi co foi Thomas Kuhn (1922- 1994). Sua obra A estrutura das revoluções científi cas, de 1962, abriu espaço para uma abordagem histórica das ciências (sobretudo a física). Kuhn quis ir além dos rela- tos indutivista e falsifi cacionista, dando às ciências um testemunho histórico. Sua ên- fase foi na noção de revolução científi ca e ciência normal e ao conceito de paradigma. Chalmers (1993, p. 124) explica paradigma3 como: Uma ciência madura é governada por um único paradigma. O paradigma de- termina os padrões para o trabalho legítimo dentro da ciência que governa. Ele coordena e dirige atividades de “solução de charadas” do grupo de cientistas normais que trabalham em seu interior. A existência de um paradigma capaz de sustentar uma tradição de ciência normal é a característica que distingue ciência da não ciência, segundo Kuhn. A mecânica newtoniana, a ótica de ondas e o ele- tromagnetismo clássico constituíram paradigmas e se qualifi cam como ciências. A característica da ciência é ser constituída por uma mudança revolucionária. Por exemplo, a física de Einstein emergiu do abandono da estrutura teórica da física de Newton. Tornou-se uma ciência revolucionária ao realizar nova estrutura. Kuhn admite a observação, a experimentação, os problemas de pesquisa, as hipóte- ses. Todavia, para ele era necessário pensar as ciências sendo constituídas por grupos de cientistas que buscavam a solução para as “charadas” científi cas. Mais de um grupo 2 É importante anotar aqui que também o falsifi cacionismo apresenta seus limites. Ver o capítulo VI de Chalmers. 3 Chalmers pontua que Kuhn, após 1970, referiu-se à paradigma como matriz disciplinar. Em grego, paradigma signifi ca modelo. os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 28 poderia trabalhar com os mesmos fenômenos, mas com problemas, hipóteses e técni- cas diferentes. O que determinaria a um grupo e não a outro encontrar a solução? O paradigma – conjunto de regras, orientações, crenças ou jogo – leva um grupo e não outro à descoberta e à aceitação do resultado. Lakatos (1922-1974), fi lósofo e matemático, preconizou o fazer ciência por meio dos programas de pesquisa. Considerava-se discípulo das ideias de Popper, porém para ele a noção de programa de pesquisa aprimoraria o conceito de fasifi cacionismo. Um programa de pesquisa é uma estrutura ou modelo de investigação que forneceria orientações para investigações futuras. Esse modelo indicava aos cientistas caminhos a serem evitados – heurística negativa4 – e caminhos compostos de uma pauta geral para serem desenvolvidas as pesquisas. O núcleo irredutível (ou cinturão protetor) do programa são hipóteses gerais, bases para o desenvolvimento das investigações (CHALMERS, 1993, p. 113; FEIJÓ, 2003). O núcleo irredutível da astronomia copernicana seriam as suposições de que a Terra gira em seu eixo uma vez por dia. O núcleo da física de newtoniana é composto das leis de movimento de Newton mais a sua lei da atração gravita- cional. O núcleo do materialismo histórico de Marx seria a suposição de que a mudança histórica deva ser explicação em termos de lutas de classes, a natureza das classes e os detalhes das lutas sendo determinados, em última análise, pela base econômica (CHALMERS, 1993, p. 113). O núcleo de um programa torna-se infalsifi cável pela “decisão metodológica de seus protagonistas”.Ou seja, qualquer problema entre os dados de observação e a pes- quisa não pode ser atribuído à hipótese ou a esse núcleo irredutível. Deve ser procura- do em outra parte da investigação. Isto é o cinturão protetor ou heurística negativa. É a exigência de que, durante o programa, não se abandone o núcleo irredutível. Se um cientista o abandonar, ele rompe com o programa. A heurística positiva “[...] consiste em um conjunto de sugestões ou indícios parcialmente articulados de como mudar, desenvolver, as “variantes refutáveis” de um programa de pesquisa como modifi car, sofi sticar, o cinturão `refutável´(LAKATOS apud CHALMERS, 1993, p. 114-115). A ciência, para Lakatos, ocorre por um progresso – lento e gradual – pelo enfra- quecimento de um programa em favor de outro. Um novo núcleo irredutível emerge aos poucos por tentativa e erro. Outro pensador importante na defi nição da ciência que amplia o debate relativo à de- fi nição da ciência é Paul Feyerabend (1924-1994). Feyerabend é chamado de anarquista metodológico, pois em oposição a Popper aventou que os avanços científi cos ocorreram 4 Heurística vem do grego euro, eureka, e signifi ca encontrar. Podemos asseverar que essa é a dimensão da des- coberta. 29 quando as metodologias rigorosas foram deixadas de lado. Para ele, todas as metodolo- gias têm suas limitações e a única regra que sobrevive é o “vale-tudo” (CHALMERS, 1993, p. 175). Instigante e provocador, em seu livro Contra o Método Feyerabend não quis propagar que não pode haver metodologia ou que não possamos defi nir ciência. Vale- tudo signifi ca que as ciências não podem ser elaboradas com regras fi xas e universais. Os cientistas não devem ser restringidos pelas regras da metodologia ao fazer ciência. Feyerabend, expôs Chalmers (1993, p. 175), aprecia a noção de programa de Lakatos, sobretudo porque “as metodologias dos programas ajudam o cientista, mas não contêm regras que lhe digam o que fazer”. Um aspecto relevante em Feyerabend são suas con- siderações contra aqueles que julgam a ciência uma forma de conhecimento superior às outras. Feyerabend considerava que não era justo rejeitar o marxismo, por exemplo, pelo fato de que sua teoria não se conforma a alguma noção preconcebida de método científi co como fez Popper. Nem, também, defender o marxismo, como fez Althusser em bases metodológicas semelhantes às de Popper (CHALMERS, 1993, p. 183). Para concluir este item, chamamos a atenção aos seguintes aspectos: 1) para o in- dutivismo, ao se afi rmar como ciência uma teoria deve ter uma grande sustentação pe- los dados; ciência é uma coleção de dados, como preconizou Chalmers (1993); 2) para Popper, a ciência nasce quando se baseia em hipóteses, em outras teorias; 3) Kuhn enuncia que para uma teoria se tornar uma ciência ela necessita ser aceita por um gru- po de cientistas. A ciência é produto de confl itos que geram novos paradigmas; 4) para Lakatos, a ciência pode ser constituída por programas de pesquisa orientadores de investigações e hipóteses mais gerais sobre um fenômeno estudado; e 5) Feyerabend propõe que as regras metodológicas não podem engessar a construção das ciências. As ciências nascem quando deixamos de lado as velhas fórmulas. Que lições podemos tirar desse percurso dos fi lósofos? Várias. Entre elas, a de saber que quando tratamos de ciência, abrimos uma considerável página da história dos cientistas e de suas refl exões acerca de uma das maiores conquistas humanas que temos nesse planeta, o conhecimento científi co. pensando as cIêncIas contemporÂneas peLa epIstemoLoGIa pIaGetIana Por epistemologia piagetiana defi nimos a relação entre sujeito que conhece e obje- to de conhecimento. Estes são, para Piaget, indissociavelmente dependentes em todas as formas de conhecimento, seja o matemático, o biológico, o físico, o social, entre outros. Entretanto, os modos dessa dependência variam segundo as disciplinas (mate- mática, física, química, biologia, linguagem, história, entre outras) em jogo. O que isso signifi ca? Signifi ca que não podemos defi nir todas as ciências por um mesmo método os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 30 de raciocínio. As ciências nascem pela interação do sujeito/cientista e seus objetos de conhecimento. Todavia, cada objeto apresenta-se de maneira diferente ao pensamento do cientista. Ou seja, uma planta ou o objeto/planta para o biólogo é diferente de objeto/sistema solar para o físico. Para o biólogo, é possível observar ou realizar a ex- perimentação com uma espécie de planta. Mas para o físico serão necessárias mais do que a observação e a experimentação; o trabalho do cientista/físico exige a dedução. Desse modo, podemos afi rmar que os conhecimentos científi cos apresentam epis- temologias diferentes umas das outras. Não é possível reduzir o conhecimento cientí- fi co a um esquema epistemológico único. Em termos de ensino, esse é um importante marco para pensarmos a aprendizagem. Não é possível também ensinar todas as disci- plinas científi cas em um mesmo padrão metodológico. Ensinar ciências para crianças e jovens requer pensar também um caminho de observação e experimentação, enquan- to na matemática isso não é necessário. Piaget, ao apresentar o lugar epistêmico da biologia, matemática, física no círculo das ciências, comparou a natureza da relação sujeito/objeto na biologia com as rela- ções presentes na física e na matemática, estabelecendo que: - na matemática, a atividade operatória (de pensamento) do sujeito parece ser a única em jogo; não há elemento experimental feito ao objeto. As noções de espaço, o número, a lógica das classes ou de relações não nascem em nos- sa mente por meio de experimentos, o sujeito que conhece recorre somente à coordenação das ações ou operações (ou de pensamento) efetuadas sobre objetos. Os conhecimentos matemáticos não se originam de uma abstração a partir dos objetos, mas de uma abstração a partir da coordenação das ações (mentais). O sujeito elabora o seu pensamento (isto implica em dizer coorde- nação de suas ações) graças à aplicação de seus pensamentos aos objetos. Des- se modo, a matemática é produto da atividade do sujeito. O matemático não recorre à experiência como critério de verdade: uma proposição matemática é verdadeira quando pode ser demonstrada racionalmente, independentemente de sua concordância atual com a realidade externa (PIAGET, 1979a). - o conhecimento físico marca a interdependência entre o sujeito e o objeto. A construção dos conhecimentos físicos estabelece a existência de dados exterio- res que o sujeito só descobre mediante a experiência em laboratório ou similar. Quando esses conhecimentos alcançam certo grau de generalidade, a experiên- cia e a atividade operatória do sujeito físico se confundem com os esquemas matemáticos necessários para sua formalização. Assim, mesmo sendo mais rea- lista que a matemática, a física alcança, em graus diversos, uma assimilação da realidade experimental aos esquemas lógico-matemáticos construídos através da atividade do sujeito (PIAGET, 1979a). - o conhecimento biológico é mais realista que a própria física, ou seja, traba- lhamos com “objetos” plantas, animais, e outros seres todos mais próximos a nós, em escala de tempo e espaço e destes objetos não podemos fugir. Não podemos descrever uma planta sem a presença da planta. Dela extraímos os dados. Nesse sentido, a dedução desempenha em biologia um papel muito menor que na física. Os dados “exteriores” são mais independentes do sujeito que no campo elaborado pelo matemático. Temos que nos prender aos objetos para pensá-los. Por ser uma forma de conhecimento que abarca a história de desenvolvimentos, a dedução sofre severas limitações para o desenvolvimento da biologia (PIAGET, 1979b). 31 Neste sentido, a forma de abstração do conhecimentomatemático, a abstração re- fl exionante, é elaborada pelas ações que podemos exercer sobre os objetos, e essen- cialmente das coordenações mais gerais das ações: disso decorre a generalidade e a fecundidade de suas aplicações. Isto signifi ca que para a matemática a atividade opera- tória (de pensamento) do sujeito é imprescindível à formulação do campo teórico. O matemático não precisa recorrer a outro critério de verdade como a experimentação em laboratório ou a observação senão às relações lógico-matemáticas que estabelece por seu próprio pensamento. O conhecimento físico, por outro lado, marca uma interdependência entre o sujei- to e o objeto que consiste na acomodação das ações do sujeito aos dados da experiên- cia e à assimilação do objeto aos esquemas lógico-matemáticos do sujeito. Tomemos como exemplo o relato de Inhelder e Piaget (1972), no livro De la lógica del niño a la lógica del adolescente, acerca de soluções que crianças e adolescentes apresentam para o problema da queda de corpos no plano inclinado. O dispositivo elaborado por Inhelder e Piaget, como prova cognitiva, consiste em um plano regulável, com diver- sas inclinações. Sobre ele roda uma bola, que na parte inferior do plano salta de um trampolim. O problema proposto é encontrar a correspondência entre as alturas da queda e do salto5. Enquanto temos essas formas de conhecimento do sujeito nas situações da mate- mática e da física, a biologia formula muitas de suas explicações por meio da observa- ção dos seres vivos. Assim, as descobertas nessa área ocorrem a partir de seus objetos, dos seres vivos e suas relações. Piaget alerta que, quando uma propriedade é extraída a partir dos próprios objetos, ela esclarece, tão somente, acerca deles: uma proprie- dade dessa natureza se for muito geral, arrisca-se a ser pobre e pouco utilizável, pois se aplica a tudo. 5 A criança, ao tentar solucionar esse problema, mesmo sem calcular a forma parabólica da curva des- crita no salto, poderá descobrir que o salto só depende da altura da queda, excluindo os fatores massa, inclinação e distância. Essa situação vai exigir do sujeito a construção de um quadro de referência que explore, de forma exaustiva, todas as combinações que alteram uma das variáveis e conservam as demais. Desse modo, o sujeito muda seu pensamento, isto é, assimila o objeto (INHELDER, PIAGET, 1972). Piaget observou que a abstração, nesse caso, procede do objeto, porém a partir de ações especializadas do sujeito, e assume uma forma lógico-matemática. Assim, a causalidade física é uma coordenação ope- ratória, da mesma natureza da que o sujeito utiliza para agrupar as próprias operações, porém atribuída ao objeto por assimilação das transformações do objeto às transformações operatórias. Por isso, Piaget propôs que a objetividade “extrínseca” do conhecimento físico corresponde, de forma muito próxima, à “objetividade intrínseca” da matemática. Nesse contexto, no ensino de física o professor deve aliar a arte de interpretar textos e de descoberta dos enunciados à observação e experimentação. Ele estará, dessa maneira, mantendo uma atividade básica para a construção de conhecimentos da ciência física: a experimentação e observação. os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 32 As ciências biológicas comportam um terceiro tipo de relação entre a atividade do sujeito e o objeto. A atividade de pensamento do sujeito se reduz a um mínimo, porque o biólogo não pode se esquecer dos objetos e dos “dados” fornecidos pela natureza6. As ciências sociais, compreendendo nesse rol a educação e a psicologia, nos levam a pensar que trabalhamos com diferentes objetos. Mais: esses “objetos” não são como os objetos das ciências biológicas, da matemática, da física, da química. São “objetos” que são sujeitos, culturas, aprendizagem. Nessa perspectiva, para Piaget, o pensamen- to científi co se orienta em duas direções complementares: conhecimento do objeto, da realidade exterior e conhecimento do sujeito, de sua organização mental e suas formas culturais, sociais entre outras. Serão, então, necessárias a indução (buscar da- dos na realidade em que vivemos) e a dedução, ou seja, a construção de abstrações mais complexas para interpretarmos o sujeito e seu meio (de ensino, cultural, social, econômico entre outros). Como vimos, neste item tratamos de outra dimensão do debate científi co: a dos objetos e suas ciências. A intenção aqui é alertar ao estudante que inicia seu percurso na universidade que não há objeto único, nem metodologia única na constituição das ciências. É um debate importante das ciências contemporâneas. pensando o deBate das cIêncIas contemporÂneas na educação No Brasil, o debate das ciências contemporâneas fi cou evidente nas investigações desenvolvidas no campo educacional7. Tomando a década de 30 do século XX como início das pesquisas, tivemos dois marcos8: o da pesquisa centrada na concepção de que os dados falam por si, ou seja, de um postulado empirista; e o da pesquisa cen- trada nas investigações históricas em que dados e teorias justifi cavam o fazer ciência. Essa dicotomia entre teoria e prática percorreu décadas e ainda persiste nas pes- quisas educacionais. É plausível postular que essa dicotomia iniciou com a presença 6 Quando surgiu a classifi cação sistemática das espécies, a forma mais elementar de conhecimento biológico, esta consistiu em agrupamentos aditivos de classes ou de relações, ou atividade operatória a que chamamos de lógica de encaixes. 7 Na verdade esse debate entrou pelas Ciências Sociais e passou a todos os campos de estudo: psicologia, peda- gogia, antropologia, entre outras áreas. Debateu-se, no Brasil, a infl uência de muitas matrizes científi cas como o positivismo, o marxismo de Weber, Durkhein. 8 É importante a leitura das obras ‘Anísio Teixeira: a obra de uma vida’, organizada por Carlos Monarcha, da DP&A Editora; Estórias da Educação de Pombal a Passarinho, de Lauro Oliveira Lima, Editora Brasília; Educação Brasileira contemporânea: organização e funcionamento, de organização de Walter E. Garcia, editora McGraw-Hill, para com- preender ao temas das pesquisas como a busca de dados sobre escolarização; as investigações de Florestan sobre cantigas de crianças em vilas operárias, entre outras. 33 do debate das ciências contemporâneas entre o empirismo e as tendências históricas. Como em outras áreas, o empirismo fez escola no Brasil. Como ressaltamos no primei- ro item deste capítulo, para o empirismo a ciência é uma coleção de dados. Em seu aspecto mais juvenil, o empirismo apregoa que os “dados falam por si mesmo”. Isso signifi ca que para essa concepção de ciência o fato, o dado prevalece sobre o pesqui- sador. O pesquisador é passivo. Cabe-lhe colher os dados e elaborar sua teoria. Este é, usando a metáfora recipiente, um depósito de dados. Quando na década de 50 do século passado muitas pesquisas com infl uência norte -americana traçaram um programa de investigações behavioristas na educação brasilei- ra, tivemos uma época com produções científi cas que priorizavam o dado como forma de elaborar ciência. Pesquisas sobre alfabetização e em aprendizagem centraram-se em aspectos mais formais da sala de aula do que em variáveis sócio-econômicas, por exem- plo. É preciso salientar que muitas investigações desse porte foram bem elaboradas, uma vez que os cientistas davam-lhe um acabamento intelectual formal, isto é, utiliza- vam a dedução como fonte de interpretação dos dados. Isto deu muito fôlego aos em- piristas em sua versão positivista. Ou seja, na versão teorizada por Comte (1798-1857), em que ser positivista signifi cava “[...] fi xemos a atenção sobre aquilo que é positivo”. Para Comte, positivo é o que “é útil, experimentável e concreto, sendo defi nido como útil, experimentável e concretotudo aquilo que pode ser investigado e evidenciado pela ciência” (BELLO, 2004, p. 42). Comte construiu um sistema – o positivo – justifi cado pela experiência e pela ciên- cia. Sua teoria prescrevia que no século XIX a sociedade havia alcançado um estado ideal para explicar não só os fenômenos naturais como também os fenômenos sociais. Esse estado era o positivo, em que “a imaginação e a argumentação (entendidos como soluções para o estado metafísico) deviam ceder lugar à observação” (GIANOTTI, 2007, p. 24). Comte não foi um empirista ingênuo ou puro, isto é, alguém que reduzia todo conhecimento aos fatos ou aos dados, isolando-os aí. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, en- tendidas como relações constantes entre fatos observáveis. Segundo Comte, a procura de leis imutáveis ocorreu pela primeira vez na história quando os antigos gregos criaram a astronomia matemática. Na época moderna, o mesmo procedimento reaparece em Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642) e René descartes (1596-1650), os fundadores da fi losofi a positiva, para Comte9 (GIA- NOTTI, 2007, p. 24). 9 É importante anotar aqui que não somente Comte entusiasmou-se com os fi lósofos modernos. Esse mesmo entusiasmo aparece em Marx. os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 34 As primeiras manifestações do positivismo no Brasil ocorreram em 1850, com o doutorado de Manuel Joaquim Pereira de Sá, apresentado na Escola Militar do Rio de Janeiro. A tese versava sobre ciências naturais e física (GIANOTTI, 2007). Essa infl uên- cia estende-se aos estudos de matemática e, mais tarde, aos de ciências sociais. O positivismo deixou um interessante legado, que foi o método quantitativo. Com- te, ao tomar o empirismo moderno como o marco do positivismo, traz a sua concepção de ciência o rigor do método quantitativo. Como assumiu o formalismo, ele também trouxe ao positivismo a dedução como marco do conhecimento, contribuindo, desse modo, com as bases para a pesquisa empírica. Em contraposição a esse tipo de método, um debate se impôs: a da historicidade dos fenômenos urbanos, rurais, e, porque não assinalar, dos educacionais. O debate era claro: os dados não falam por si. É necessário pensar as classes sociais, o fenômeno social e cultural para as investigações sobre a escola e suas demandas. Não se aceitava mais um mundo social sem contradições e sem enfrentamentos. Os homens e a socie- dade não eram números. Nesse caso, no âmbito das ciências humanas e da educação, o marxismo e o estru- turalismo de Lewis Strauss, a sociologia de Max Weber foram teorias que desencadea- ram investigações. A ideia de luta de classes de Karl Marx permeou as investigações de Florestan Fernandes10 (1920-1995)”, o qual desenvolveu trabalhos, nas décadas de 1950 e 1960, infl uenciado por Marx, Weber e outros pensadores. Por Marx para descre- ver a situação do estado brasileiro e o forte contingente de operários que não tinham acesso às escolas. Por Weber para demonstrar como a burocracia favorecia um grupo e impedia outros de terem acesso à cultura, à informação. As investigações de Florestan Fernandes uniam teorias consideradas complementares à investigação empírica. É um dos poucos pensadores/cientistas das ciências humanas que soube trabalhar, em suas investigações, a dimensão empírica, ou seja, da pesquisa de campo com a dimensão histórica, propiciando à ciência contemporânea educacional um grande lastro. Na década de 80 do século XX, tivemos muitos debates no país. Era uma época em que o Brasil iniciava uma luta mais aberta contra a ditadura militar. Pudemos conhecer, no âmbito universitário, os debates mais recentes das ciências na educação graças à liberdade para publicar e pesquisar. 10 Antes de Florestan, seu mestre Anísio Teixeira compôs um importante capítulo na história da educação brasi- leira. Anísio Teixeira fez investigações no campo da aprendizagem (teve Dewey como orientador), no campo da escolarização de crianças e jovens em conjunto com outros intelectuais como Paschoal Leme, Fernando Azevedo, entre outros. São investigações fundamentadas em dados importantes sobre a situação da escolarização no Brasil. 35 Em oposição ao positivismo, em diferentes campos das áreas humanas no Brasil cresceram grupos de pesquisadores que trabalhavam com a teoria marxista. Também cresceram grupos como a fenomenologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, o cognitivismo, o construtivismo e outras correntes. De modo diferente do marxismo, a fenomenologia opôs-se ao positivismo. Não identifi cou na história de classes e sim na condição do indivíduo no mundo a sua marca de pensar a cultura, a vida, a identidade, o sofrimento e a esperança de viver. Não im- porta que mundo político, mas quaisquer dos mundos. Os pesquisadores desse campo consideravam que o sujeito da investigação não aparecia na teoria, ele era um dado a mais. Para a fenomenologia, pesquisar sujeitos em sua condição no mundo signifi ca “ir ao encontro das coisas” sem ideias preconcebidas. Busca-se compreender e descrever o dado, mas este não é o determinante da análise. Não se afi rma que o sujeito conhece. O sujeito no mundo constrói atos diversos: há o ato de percepção, o ato cognitivo, o ato de imaginação11, pelos quais o homem interpreta o mundo (BELLO, 2004). Outras pesquisas contribuíram, nesse percurso, ao debate das teorias científi cas na área educacional. Em oposição ao behaviorismo ou comportamentalismo12 ocorreu o debate com o cognitivismo. Ele se deu em várias décadas, mais acentuadamente na década de 60 e 70 do século passado. Se para o primeiro a linguagem verbal13 seria a fonte da aprendizagem, para o cognitivismo a fonte seriam os modos de pensar ou as es- tratégias de resolução de problemas, inclusive os problemas decorrentes da linguagem. Há ainda vários debates da ciência contemporânea no campo educacional. Ainda permanece, em nossa opinião, o debate entre o empirismo, entendido erroneamente como método quantitativo, e o historicismo. Não é um debate muito fértil. Por quê? Porque, em primeiro lugar, algumas tendências teóricas se aproximam na metodo- logia proposta e na interpretação. Por exemplo: Mauricio Tragtemberg (1929-1998) produziu inúmeras investigações sobre a escola e a burocracia apoiando-se em Max Weber e Marx para a explicação da exclusão de jovens da escola. Não são teorias que se auto-excluem quando explicam o fenômeno da instituição escolar e do papel da burocracia na exclusão de pais e alunos das informações escolares. Outro exemplo: é 11 Ângela Ales Bello, em ‘Fenomenologia e ciências humanas’, faz uma boa interpretação de Husserl. Nesse livro da Editora da Universidade Sagrado Coração podemos conhecer a diversidade de interpretações de mundo. É importante saber que não há uma corrente fenomenológica. Podemos falar em fenomenologia quando destacamos Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Peirce, cada qual com sua direção. 12 Também é importante ressaltar que quando falamos em behaviorismo ou comportamentalismo e cognitivismo há inúmeras correntes de cada área. Não se trata de uma única maneira de ser comportamentalista ou cognitivista. 13 Da década de 90 a 2008 assistimos, curiosamente, a um debate similar: o debate entre os vygoticianos e piagetia- nos. Para os primeiros, a linguagem é fonte de conhecimento. Para os segundos, o pensamento. os debates das ciências contemporâneas: alguns dilemas na investigação educacional InIcIação à cIêncIa e à pesquIsa a construção do conhecImento 36 possível trabalhar com coleta de dados em um trabalho científi co relativo às condições de vida de alunos trabalhadores tomando a teoria de Marx como base para a interpre- tação. É possível também investigar
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