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Matheus Bernardes Rachadel DROGAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E O PARADIGMA PROIBICIONISTA: Um estudo entre Brasil e Uruguai Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social, Nível Mestrado, da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profª Drª Tânia Regina Krüger Florianópolis 2019 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC. Rachadel, Matheus Bernardes Drogas, políticas públicas e o paradigma proibicionista : um estudo entre Brasil e Uruguai / Matheus Bernardes Rachadel ; orientador, Tânia Regina Krüger, 2019. 116 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Sócio-Econômico, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Florianópolis, 2019. Inclui referências. 1. Serviço Social. 2. Drogas. 3. Proibicionismo. 4. Políticas Públicas. I. Krüger, Tânia Regina. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. III. Título. Aos meus pais, irmã e familiares que, com muito carinho e apoio incondicional, não mediram esforços para que eu chegasse até esta etapa da minha vida. Ao meu namorado, Gabriel Mendes, pelo carinho apoio e compreensão heroicos, incansáveis, enfrentando juntos os desafios e barreiras que criei. À CAPES, pela oportunidade tão privilegiada de poder construir minha formação com suporte financeiro. À minha professora orientadora Tânia Regina Krüger pela paciência, compreensão e principalmente motivação na orientação. Também pelo convívio, com exemplos de ética e humanidade. A todos do NESSOP que me receberam com todo o carinho e fazem do projeto um lugar de reflexão crítica e abraços apertados. As amigas, Aline Cunha, Andressa Molinari, Claudia Teles, Luna Oliveira e Mariele Hochmüller, pelo incentivo constante e apoio. RESUMO A presente pesquisa tem como tema central o processo de transformação do paradigma proibicionista que cerca o fenômeno das drogas. Debatendo os determinantes sócio-históricos, econômicos e políticos que influenciam no processo de mudança ou manutenção desse paradigma. Realizando um estudo entre duas realidades sul-americanas, Brasil e Uruguai, e apresentando aproximações e afastamentos em relação ao tratamento da temática entre os dois países e os avanços no arcabouço legal de ambos no sentido da descriminalização e o tratamento da temática no âmbito da saúde pública. A fim de contrastar através de análise documental, tanto do arcabouço legal na temática das drogas de ambos os países, quanto das estratégias e programas que constroem o panorama de políticas públicas dos dois países a serem estudados. Dessa forma, foram tomados como eixos para análise da legislação e política sobre drogas dos países estudados: a descriminalização e despenalização do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal; a oferta de tratamento para o uso prejudicial; a oferta de serviços públicos de redução de danos; e a regulamentação do acesso à cannabis medicinal e o avanço na regulamentação da cannabis para uso adulto. Para desvelar essas questões o trabalho se divide em dois capítulos que juntos buscam alcançar os objetivos a que se propõe a investigação. No primeiro capítulo são abordados os determinantes para a criminalização das drogas e construção de políticas públicas no contexto dos Estados latino- americanos. A questão das drogas como mercadoria e como ocorre sua reprodução social, passando pelos diferentes determinantes do proibicionismo como paradigma, buscando compreender questões fundantes para a manutenção de leis e políticas conservadoras no contexto latino-americano. O segundo capitulo propõe-se a estudar os documentos base para o debate dos passos de Brasil e Uruguai na formulação do arcabouço legal e planos para políticas públicas sobre o fenômeno das drogas. É abordada a formação dos Estados brasileiro e uruguaio, e os caminhos percorridos por ambos os países. Os debates desenvolvidos apontam as diferenças de trajetória dos dois países e tentam abordar quais os determinantes enfrentados por ambos que influenciaram o curso dessas construções, apresentando aproximações e afastamentos. Palavras-chave: Drogas. Proibicionismo. Políticas Públicas. ABSTRACT This research has as the central theme the transformation process of the prohibitionist paradigm that surrounds the phenomenon of drugs. Debating the socio-historical, economic and political determinants that influence the process of change or maintenance of this paradigm. Carrying out a study between two South American realities, Brazil and Uruguay, and presenting approximations and withdrawals regarding the treatment of the issue between the two countries and the advances in the legal framework of both in the sense of decriminalisation and the treatment of public health issues. The objective of this study is to compare, through documentary analysis, both the legal framework on drug issues in both countries and the strategies and programs that build the public policy landscape of the two countries to be studied. In this way, the drug laws and policies of the countries studied were analyzed as markers: decriminalisation and depenalisation of drug use or personal consumption; the provision of treatment for harmful use; the provision of public harm reduction services; and regulation of access to medical cannabis and progress in the regulation of cannabis for adult use. In order to uncover these questions the work is divided into two chapters that together seek to answer the questions and achieve the objectives of the research. The first chapter addresses the determinants of the criminalisation of drugs and the construction of public policies in the context of Latin American states. The question of drugs as a commodity and how its social reproduction occurs, passing through the different determinants of prohibitionism as a paradigm, trying to understand root issues in the maintenance of conservative laws and policies in the Latin American context. The second chapter proposes to study the basic documents for the debate of the steps of Brazil and Uruguay in the formulation of the legal framework and plans for public policies on the phenomenon of drugs. It addresses the formation of the Brazilian and Uruguayan states and the paths taken by both countries. The debates developed point out the differences in the trajectory of the two countries and try to identify the determinants faced by both that influenced the course of these constructions, presenting approximations and withdrawals. Keywords: Drugs. Prohibitionism. Public Policy. RESUMEN Esta investigación tiene como tema central el proceso de transformación del paradigma prohibicionista que rodea el fenómeno de las drogas. Debate sobre los determinantes socio-históricos, económicos y políticos que influyen en el proceso de cambio o mantenimiento de ese paradigma. Realizando un estudio entre dos realidades sudamericanas, Brasil y Uruguay, y presentando aproximaciones y alejamientos en relación al tratamiento de la temática entre los dos países y los avances en el marco legal de ambosen el sentido de la despenalización y el tratamiento de la temática en el ámbito de la salud pública. Se busca contrastar a través del análisis documental, tanto del marco legal en la temática de las drogas de ambos países, como de las estrategias y programas que construyen el panorama de políticas públicas de los dos países a ser estudiados. De esta forma fueron tomados como eje para análisis de la legislación y política sobre drogas de los países estudiados: la descriminalización y despenalización del consumo de drogas o porte para consumo personal; la oferta de tratamiento para el uso perjudicial; la oferta de servicios públicos de reducción de daños; y la regulación del acceso al cannabis medicinal y el avance en la regulación del cannabis para uso adulto. Para desvelar esas cuestiones el trabajo se divide en dos capítulos que juntos buscan responder a las indagaciones y alcanzar los objetivos a que se propone la investigación. El primer capítulo se abordan los determinantes para la criminalización de las drogas y la construcción de políticas públicas en el contexto de los Estados latinoamericanos. La cuestión de las drogas como mercancía y cómo ocurre su reproducción social, pasando por los diferentes determinantes del prohibicionismo como paradigma, buscando compreender cuestiones fundantes para el mantenimiento de leyes y políticas conservadoras en el contexto latinoamericano. El segundo capítulo se propone estudiar los documentos base para el debate de los pasos de Brasil y Uruguay en la formulación del marco legal y planes para políticas públicas sobre el fenómeno de las drogas. Es abordada la formación de los Estados brasileño y uruguayo, los caminos recorridos por ambos países y la construcción de las bases para políticas sobre drogas. Los debates desarrollados apuntan las diferencias de trayectoria de los dos países e intentan colocar cuáles son los determinantes enfrentados por ambos que influenciaron el curso de esas construcciones, presentando aproximaciones y alejamientos. Palabras clave: Drogas. Prohibicionista. Políticas Públicas. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 13 2 DETERMINANTES PARA A CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO ............................................. 20 2.1 DROGAS COMO MERCADORIA E SUA REPRODUÇÃO SOCIAL ................................................................. 21 2.2FUNDAMENTOS SOCIOECONÔMICOS E MORAIS DO PROIBICIONISMO E SUA MANUTENÇÃO ......................... 31 2.3 POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO ............................................ 40 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DROGAS NOS CONTEXTOS BRASILEIRO E URUGUAIO ............................................................ 51 3.1 FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO E URUGUAIO: CAMINHOS PERCORRIDOS E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS ................................................. 51 3.1.1 O trajeto brasileiro na formação de sua política sobre drogas ................................................................................. 52 3.1.2 Construção histórica de um Uruguai progressista .................................................................................. 64 3.2 CICLO DE MUDANÇAS E CONTINUIDADES: O ARCABOUÇO LEGISLATIVO DE BRASIL E URUGUAI .......... 75 3.2.1 A descriminalização e a despenalização do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal ................ 81 3.2.2 A oferta de tratamento para o uso prejudicial 87 3.2.3 A oferta de serviços públicos de redução de danos ............................................................................................. 93 3.2.4 A regulamentação do acesso à cannabis medicinal e o avanço na regulamentação da cannabis para uso adulto ............................................................................................ 97 3.3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS ACERCA DA AVALIAÇÃO ATRAVÉS DOS EIXOS DE ANALISE ............... 100 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................... 103 REFERÊNCIAS ................................................................................. 107 13 1 INTRODUÇÃO Drogas não são um fenômeno recente, o mundo já percorreu um longo caminho de tensões e conflitos no tratamento da temática em função do proibicionismo, da moralização e da criminalização quando regentes no tratamento desse fenômeno. As experiências de guerra às drogas desde o século XX não reduziram o crescimento da demanda ou produção e acabaram beneficiando o crime organizado. Geraram uma massa de encarcerados, centenas de milhares de homicídios, corrupção institucionalizada, obstáculo ao desenvolvimento social e econômico, HIV/AIDS e toda sorte de violações de direitos humanos. A classificação de drogas ilícitas ou lícitas teve pouca base científica. As leis contra usuários ainda não conseguem evitar a desproporcionalidade no controle e punição e as ações policialescas são aplicadas arbitrariamente contra populações pobres e mais vulneráveis e não têm impacto persuasivo relevante, marginalizando as comunidades mais pobres e fomentando abusos contra direitos humanos. Um novo enfoque no processo de dessecuritização tem base na descriminalização do uso de todas as drogas, com programas de prevenção, redução de danos e tratamento para o uso prejudicial. A repressão extrema à ponta do tráfico só destrói a população já marginalizada - mulheres e jovens são os que mais sofrem. A United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC, 2016, p.44) em 2016 observou que "o mercado global de drogas ilícitas foi avaliado em mais de 300 bilhões de dólares americanos por ano". Isso posto, faz-se pertinente apresentar de forma mais aprofundada a temática. As drogas são hoje um fenômeno global multifacetado. O termo “droga”, apesar de utilizado na farmacologia para qualquer substância que cause reação em um organismo, em tratados e convenções mais recentes que abrangem o tema, é utilizado para definir qualquer substância psicoativa controlada internacionalmente. Para Bergeron (2012) o termo designa uma substância, natural ou sintética, capaz de mudar os estados de consciência, sendo exemplos: a cannabis, a cocaína, a heroína, o ópio, o álcool ou os remédios psicotrópicos. Aqui o termo droga será utilizado para englobar as substâncias de uso apenas ilícito. A partir do século XIX e com mais força no século XX, principalmente no pós-guerras, o comércio ilegal de drogas toma maiores proporções, e a proibição e criminalização tanto do produtor, comerciante e usuário tornam a luta contra o fenômeno das drogas uma cruzada sem fim pela segurança pública dentro dos Estados e a nível regional e global. 14 O mercado global de drogas tem o poder de testar as fraquezas dos governos e também de se fundir a esses. Capturando seus mercados e a força de trabalho renegada às periferias da periferia global. A dinâmica “produção – tráfico – comercialização – lavagem de dinheiro – corrupção – repressão” transborda muitos significados. Os meandros envolvem questões econômicas e políticas, de construção e perpetuação de uma moral erigida em conservadorismo e jogos de poder. Na América Latina, esse mercado tem sido capaz de se adaptar a novos obstáculos apresentados por lideranças, autoridades e organizações. Esse mercado está fortemente ligado à economia capitalista global em simbiose com mandatos políticos e instituições financeiras em todo o mundo, faz girar engrenagens fundamentais no que diz respeito a circulação e acumulação do capital. Esse potencial como mercadoria e a liquidez real e extremamente volumosa que esse mercado mantém no sistema financeiro dita também a importância da manutenção de uma “guerraàs drogas”. A descriminalização e regulamentação das drogas ilícitas, em especial da cannabis, facilitaria seu controle, educação sobre uso prejudicial, tratamento, políticas de redução de danos e diminuição do consumo. A potência e ramificação do mercado das drogas ilícitas se junta ao forte moralismo seletivo e estigma, truncando a evolução de políticas mais progressistas para a temática. É preciso entender esses movimentos e também os caminhos já percorridos em seu enfrentamento. A partir dessa visão, esse estudo se propõe a debater qual o contexto de formação de políticas públicas para o fenômeno das drogas no Brasil e também no Uruguai, vizinhos no Cone Sul, mas que têm feito diferentes apostas sobre o fenômeno das drogas. Discutindo como ambos os países lidam com essa temática, buscando aproximações e afastamentos, tentando entender quais são os passos de um caminho para uma política sobre drogas alinhada com as discussões mais atuais. Brasil e Uruguai têm realidades de construção sócio-histórica bastante diferentes, mas compartilham determinantes que a América Latina enfrenta como produtora e local de trânsito de drogas. A força da pressão do centro contra a periferia global quanto à temática das drogas é esmagadora. Estudar quais os condicionantes que levaram os dois países (Brasil e Uruguai) a seguirem passos diferentes faz com que seja possível vislumbrar as dimensões das mudanças no paradigma proibicionista e quais barreiras impedem os avanços do tratamento do fenômeno de forma progressista. Nesse sentido, a reformulação do modelo proibicionista criminalizante e as estratégias de redução de danos e prevenção de uso prejudicial vêm se apresentando como uma alternativa para a guerra às 15 drogas e principalmente como uma forma de amenizar o gasto em estratégias contra o tráfico e o aumento do encarceramento. É possível identificar que as políticas para reduzir o tráfico e o uso prejudicial de drogas ilícitas têm sido baseadas na teoria de que as reduções significativas de fornecimento de drogas levariam à redução de problemas relacionados com as drogas. Porém, o que fica claro é que a guerra às drogas e o combate direto ao tráfico reduziram muito pouco os problemas sociais, econômicos e de crimes relacionados ao fenômeno. Isso porque a grande demanda por drogas ilícitas é contínua em todo o mundo. Milhões de pessoas querem e precisam das drogas e estão dispostas a romper o tecido social e violar a lei para obtê-las, e em muitos casos, arriscam suas vidas para consegui-las, as sociedades estão longe da abordagem ideal, e a proposta, dessa forma, é avançar na análise de duas experiências distintas. Estados com políticas em velocidades diferentes, tentando extrair pistas de para onde se caminha e como se está percorrendo esse caminho, nessa temática tão complexa. No intuito de compreender esse cenário e os objetivos propostos a seguir, no estudo confluíram leituras críticas, mas especialmente características da realidade multidisciplinar da formação do autor desse trabalho. Uma vertente mais crítica olhando para as políticas públicas e buscando trabalhar a questão social e os determinantes sócio econômicos como fundantes para essa análise e em colaboração uma visão mais ampliada dos aspectos que envolvem o sistema internacional e como os determinantes a nível internacional e as políticas que flutuam - centro – periferia - global transcendem e afetam de forma contundente as estruturas estudadas e como elas vem ou não se transformando. A primeira visão e influencia corresponde a formação a nível de pós-graduação em Serviço Social com foco em políticas sociais para América Latina e a segunda corrente de ideias que se misturam a primeira se construíram ao longo da graduação em Relações Internacionais. Essas duas formações e visões dançam juntas no mesmo ritmo aqui, a fim de colaborar com elementos que puderam fomentar a construção e o processo de elucidação dos objetivos da pesquisa que segue. Nos últimos anos, nos planos nacionais, Brasil e Uruguai iniciaram uma crítica aos efeitos do proibicionismo, ambos os países experimentaram nesse início do século XXI, com governos mais à esquerda, uma abertura à discussão para temas progressistas com a contribuições da criminologia crítica, da agenda de lutas dos direitos humanos e movimentos sociais. Porém, concomitante a essa tendência de descriminalizar o uso de drogas, o Brasil vem recrudescendo práticas 16 referidas ao mercado das drogas, gerando uma guerra de posição (LIMA, 2012). Um descompasso muito grande entre uma lei positivada mais progressista, até certo ponto, e os resultados na ponta, com dados sobre encarceramento e morte assustadores. Nesse sentido, as dificuldades e inconstâncias em implementar políticas progressistas sobre drogas de forma mais assertiva motivam essa pesquisa. Tendo como objetivo principal, discutir as políticas públicas relacionadas ao fenômeno das drogas de forma ampla, desenvolvendo um estudo entre Brasil e Uruguai, analisando as mudanças do paradigma proibicionista criminalizante e a tendência do tratamento da temática no âmbito da saúde pública. Buscando-se contrastar através de análise documental, o arcabouço legal na temática das drogas de ambos os países, assim como planos, estratégias e programas que constroem o panorama de políticas públicas para a temática. Dessa forma, o intuito de desenvolver um estudo e ter duas realidades diferentes como Brasil e Uruguai, mas que compartilham proximidades e características que os países latino-americanos carregam historicamente vem da possibilidade de discutir como o tema está sendo debatido e quais os condicionantes e determinantes que levaram a diferentes velocidades nas políticas de descriminalização, regulamentação e tratamento no campo da saúde pública. Discutir de que forma e quais os meandros que impedem ou impulsionam a possível ruptura do paradigma proibicionista que barra o tratamento da temática como um problema de saúde pública e não de segurança pública é o cerne que justifica esse trabalho. Nesse sentido, a pesquisa tem como tema central o processo de transformação do paradigma proibicionista criminalizante que cerca o fenômeno das drogas. Debatendo os determinantes sócio-históricos, morais, econômicos e políticos que influenciam no processo de mudança ou manutenção desse paradigma. Realizando um estudo entre duas realidades sul-americanas, Brasil e Uruguai, e apresentando aproximações e afastamentos em relação ao tratamento da temática entre os dois países e os avanços no arcabouço legal de ambos no sentido da descriminalização e o tratamento da temática no âmbito da saúde pública. Dessa forma, o trabalho possui a questão central: como o paradigma proibicionista relacionado ao fenômeno das drogas vem mudando no Brasil e no Uruguai em relação à criminalização do usuário e o tratamento da temática no campo da saúde pública? Além disso, traz como intenções mais especificas: compreender os condicionantes e determinantes para construção de políticas públicas, observando as estruturas e os determinantes sócio- 17 históricos para formulação dessas em relação ao fenômeno das drogas; debater a evolução do arcabouço legal para políticas públicas sobre drogas no Brasil e Uruguai, correlacionando as experiências de descriminalização e as transformações e continuidades do paradigma proibicionista; identificar o tratamento do fenômeno das drogas na esfera da saúde pública em ambos os países, buscando compreender as conexões entre as mudanças no paradigma proibicionista e o fortalecimento da abordagem através das políticas de saúde. Esse trabalho se propõe a ser uma pesquisa documental do tipo qualitativa, de caráter descritiva-analítica, tendo como visão metodológica uma análise histórica crítica. Foram realizadas triagens nas principais bases de dados utilizando termosrelacionados ao tema a fim de delimitar trabalhos que tinham relevância para a pesquisa. Fontes primárias como documentos institucionais coletados de sites oficiais, tais como atas de reuniões, pareceres e relatórios também foram considerados no intuito de enriquecer o texto e buscar resultados mais próximos à realidade. O desenho documental que sustentou a matriz de estudo passou pela escolha de dois grandes conjuntos de documentos, são eles: o arcabouço legal de ambos os países, Brasil e Uruguai, em relação à temática das drogas e os planos nacionais de saúde, política de saúde mental e atenção psicossocial. No arcabouço legal incluem-se as leis de drogas, mas também as políticas nacionais antidrogas e os sistemas de políticas públicas. O marco temporal determinado para análise documental é o ano de 2006, com a implementação no Brasil do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), pois foi o período de maiores mudanças em ambos os países com relação à temática. Contudo, foram considerados alguns documentos imediatamente anteriores de todos os materiais analisados, a fim de conhecer a origem e estabelecer uma base de estudo com seus pares mais recentes. Faz-se necessário destacar que essa investigação não teve como intenção qualquer caráter reducionista e teve como objetivo traçar também uma análise histórica. O recorte temporal para o desenho documental tem o intuito de circunscrever um volume de documentos tais que se possa desenvolver análise com qualidade no espaço de tempo da investigação, levando também em conta o fato de que os principais fluxos de transformações no cenário das políticas públicas para o fenômeno das drogas, quanto a mudanças de paradigma, têm pertencido à última década. Nesse sentido, a fim de possibilitar o contraste entre documentos selecionados, quatro eixos foram modelados. Esses eixos representam caminhos de evolução em legislação e políticas sobre drogas e 18 correspondem a positivação de políticas públicas ou conjuntos de ações governamentais que aparecem com grande frequência como consenso entre pesquisadores da área, e principalmente, representam pontos chave na evolução de política sobre drogas pensados a partir da produção acadêmica crítica sobre o tema. Dessa forma foram tomados como eixos de análise da legislação e política sobre drogas dos países estudados: a descriminalização e despenalização do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal; a oferta de tratamento para o uso prejudicial; a oferta de serviços públicos de redução de danos; e a regulamentação do acesso à cannabis medicinal e o avanço na regulamentação da cannabis para uso adulto. Esses Quatro eixos representam também caminhos percorridos em políticas públicas para a temática das drogas através de experiências que tem demonstrado sucesso e que são baseadas fortemente em estudos de saúde pública, políticas sociais, segurança, essas experiências reais, de países como Portugal e Holanda, principalmente de descriminalização total das drogas e aproximação da temática ao campo da saúde alicerçam a formação desses eixos para avaliação dos documentos selecionados. A análise documental dessa pesquisa teve por objetivo organizar, sintetizar e fornecer estrutura para dar base às discussões realizadas. O objetivo fundamental foi compreender globalmente os documentos, enriquecer a leitura das informações obtidas e interpretá-las de forma crítica. Sendo assim, depois da definição final dos documentos o material coletado foi sistematizado e organizado com a finalidade de torná-lo funcional. Concomitantemente, foi realizada uma leitura dinâmica e flutuante para a apropriação da linguagem dos documentos, demarcando assim os documentos que foram analisados de acordo com os objetivos pré-estipulados e os eixos previamente definidos. Posteriormente se realizou uma exploração do material, uma etapa essencial para riqueza das interpretações. E teve como objetivo a condensação das informações e o destaque dos documentos para a análise que culminou com a interpretação para realizar a análise reflexiva e crítica dos achados. O estudo se propôs enfatizar a análise dos condicionantes e fatores sócio-históricos fundamentais para a formação das políticas públicas sobre drogas no Brasil e no Uruguai, como elas se desenvolveram e seus dilemas e tendências atuais. Ficou evidente, nesse sentido, o constante alinhamento às dinâmicas impostas pelos acordos, modelos e instituições internacionais que formam o Regime Internacional de Controle de Drogas (RICD). O início de uma busca pela multiplicidade nas frentes de batalha com políticas como o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) no Brasil e estratégias de 19 redução de danos, assim como a regulamentação da cannabis no Uruguai mostra que uma mudança de paradigma vem ocorrendo de forma paulatina. Essas mudanças enfrentam conservadorismo, questões religiosas e morais, interesses econômicos e políticos. Dessa forma, cada passo precisa ser avaliado em um campo tão permeado por ideias, discursos e práticas que apontam para diferentes caminhos. Para desvelar essas questões e também se debruçar sobre os documentos selecionados o trabalho se divide em dois capítulos que juntos buscam responder as indagações e alcançar os objetivos a que se propõe a investigação. O primeiro capítulo é dividido em três seções. Na primeira seção, é trabalhada a questão das drogas como mercadoria e como ocorre sua reprodução social, passando pelos diferentes determinantes do proibicionismo como paradigma e sua construção histórica. O estudo segue, na segunda seção desse capítulo, apresentando os fundamentos socioeconômicos e morais do proibicionismo e sua manutenção, buscando compreender como se enraizaram questões fundantes para a manutenção de leis e políticas conservadoras e criminalizantes. Por fim, na terceira e última seção, se discutem as políticas públicas sobre drogas no contexto latino-americano. O segundo capitulo, dividido em duas seções, propõe-se a estudar os documentos propostos como base para o debate dos passos de Brasil e Uruguai na formulação do arcabouço legal e planos para políticas públicas sobre o fenômeno das drogas. O capítulo tem como premissa debater como esses Estados vêm construindo suas bases para formulação de ações sobre a temática. Na primeira seção, aborda a formação dos Estados brasileiro e uruguaio, os caminhos percorridos por ambos os países e a construção das bases para políticas sobre drogas. Essa primeira seção se desdobra em dois segmentos: o trajeto brasileiro na formação de sua política sobre drogas; e a construção histórica de um Uruguai progressista. Ambos os segmentos trazem um panorama histórico buscando apontar de que forma se construíram as fundações e como ambos os países têm tratado a temática das drogas nas últimas décadas. A segunda sessão do capítulo busca explorar mudanças e continuidades no desenrolar dos últimos dez anos em políticas sobre drogas para ambos os países, utilizando, com o objetivo de organizar o debate, eixos de análise que representam questões centrais na evolução da base para política de drogas. Esses eixos de análise transbordam para a construção de segmentos do texto, pontuando, como já apresentado: a descriminalização e despenalização do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal; a oferta de tratamento para o uso prejudicial no campo da saúde; a oferta de serviços públicos de redução de danos; e a regulamentação do acesso 20 à cannabis medicinal e cannabis para uso adulto recreativo. Os debates já desenvolvidos ao longo do texto se entrelaçam à leitura crítica dos documentos nesses segmentos, buscando colocar lado a lado as experiências contrastadas de Brasil e Uruguai. 21 2 DETERMINANTES PARAA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO Para iniciar o debate proposto e tentar alcançar os objetivos delimitados, neste primeiro capítulo são trabalhados os conceitos da droga como mercadoria e como ela se reproduz em nossa sociedade; a relação entre o mercado das drogas, o capital e o sistema financeiro global; e como o ciclo de produção, consumo e repressão favorece ao sistema capitalista em sua manutenção. São discutidas as cicatrizes deixadas pela violência – fator orgânico desse mercado – mas também, em contrapartida, como essa dinâmica configura trabalho e vida. Posteriormente, são debatidas as questões morais e socioeconômicas que influenciam no tratamento do tema, pesando fortemente na construção do arcabouço legal e em como se formula políticas públicas sobre drogas. Aborda-se a seletividade correspondente, principalmente, à classe e à raça, e como o conceito de crime e criminalização das drogas se configurou. Por fim, neste mesmo capítulo aborda-se o processo de formulação de políticas públicas e como esse tem especificidades características dos países latino-americanos no que diz respeito ao fenômeno das drogas. 2.1 DROGAS COMO MERCADORIA E SUA REPRODUÇÃO SOCIAL A materialização da droga como produto e mercadoria percorre não somente as vias das necessidades criadas, transmutadas e enraizadas na sociedade, mas também as vias da formação e manutenção de uma economia estrutural e ramificada, condensada em simbiose com o capitalismo global – a forma como a acumulação se movimenta e gira economias no norte e sul do globo formal e informalmente. Sendo uma mercadoria, a droga, na sociedade capitalista, como coloca Marx (2008), é vendida para outro não para adquirir outro bem de consumo, mas para produzir valor (capital), substituindo-a pela mercadoria dinheiro. É o capital acima de tudo que faz girar a produção e a circulação das drogas, da forma como esse ciclo se caracteriza hoje. Ao se considerar que os produtos consumidos como drogas constituem valor para o capital, ou seja, são mercadorias, elas necessariamente precisam ser realizadas nas esferas da produção e da circulação. Marx afirma que “[...] a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura- se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente 22 considerada, é a forma elementar dessa riqueza” (MARX, 2008, p. 57). Marx ainda escreve que a mercadoria não é apenas um produto, ela é, “antes de mais nada”, [...] um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza destas, inclui-se aí desejos e fantasias. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (MARX, 2008, p. 57). Nesse sentido, um produto é mercadoria à medida que cria valor social para outros: uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano sem ser mercadoria. Quem, com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social. “[...] O produto, para ser mercadoria, tem de ser transferido a quem vai servir como valor-de-uso por meio de troca [...]” (MARX, 2008, p. 62- 63). A droga em todas as suas faces e usos não pode ser descolada da vida na comunidade humana, mas o que se pretende destacar aqui é que as drogas como valor para o capital, a partir da década de 1970, tem se realizado, nas esferas da produção e da circulação, de uma forma muito mais intensa, um produto é mercadoria se for produzido e reproduzido mais de uma vez, repetidamente. Ocorre, no entanto, que a mercadoria é, ao mesmo tempo, valor-de-uso e valor-de-troca, isto é, possui um duplo caráter. O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor- de-troca parece algo casual e puramente relativo, e, portanto, uma contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à mercadoria (MARX, 2008, p. 58). Tem-se, portanto, que qualquer produto só se constitui como mercadoria ao se constituir como valor social de troca para terceiros. Por si mesmas, as mercadorias não vão ao mercado e nem efetuam trocas entre si. Isso só ocorre porque a decisão de fazê-lo parte é, efetivamente, de quem as possui: seus donos (MARX, 2008). Da mesma forma, as mercadorias drogas não entram na relação de troca por decisão própria. Como coloca Martins (2011, p.87), um pé de cannabis não caminha até o seu consumidor, oferecendo-se como um produto pronto a ser consumido. Tampouco um quilo de cocaína converte-se em dinheiro. Tal fato se dá por relações sociais capitalistas, pela decisão de quem produz e possui a mercadoria em convertê-la na mercadoria dinheiro e em valor e mais valia. As mercadorias drogas são emblemáticas porque elas não só 23 cristalizam trabalho humano e geram um mercado que, apesar de muitas ramificações, tem características singulares, mas sobretudo porque sua produção e circulação envolvem questões que afetam a base econômica e política dos Estados. O contínuo produção-circulação da mercadoria droga influi politicamente as decisões governamentais, o posicionamento do Estado. O mercado da droga acompanha um balé coreografado pelo quão determinante a produção, a comercialização, o consumo e as necessidades em saúde pública são importantes na dinâmica do funcionamento de cada Estado. Ocorre que a análise das drogas ilícitas nas esferas da produção e circulação é dificultada porque os dados estatísticos, disponíveis em diferentes fontes, a depender da metodologia adotada, são subestimados ou superestimados. A mera descrição de dados estatísticos não evidencia o que se esconde por traz desse movimento e, da mesma forma, nem sempre evidencia a magnitude dos interesses econômicos e políticos nele envolvidos. A produção ilegal das drogas, ainda que seja orientada para a circulação, difere da produção da mercadoria legal no sentido de que esta avalia com mais precisão a demanda efetiva (MARTINS, 2011, p.88). O que se tem ideia é que ao longo dos anos a produção mundial de droga vem crescendo, segundo o relatório anual do UNODC de 2018, nunca se produziu e se consumiu tanta droga. Contudo consumo e produção não andam juntos igualados Martins (2011, p.88) aponta principalmente as perdas decorrentes da política antidrogas (repressão) que se resolve, na esfera da produção, na fumigação manual ou química das áreas plantadas e, na esfera da circulação, com a apreensão de drogas em circulação, mas também a queima de excedente por parte do mercado para manter os elevados valores. Esse abismo entre volume de produção e volume de distribuição e consumo é funcional para o mercado que ganha economia de escala e calibre para ultrapassar a barreira das políticas antidrogas, e só é funcional por conta da extrema exploração da maior parte dos produtores. Todos esses apontamentos demonstram o impacto que a produção e a circulação provocam na economia capitalista, ou seja, é preciso responder em que medida as drogas sustentam a acumulação capitalista. A resposta mais evidente a essa questão é alcançada quando se analisa a incidência do volume de capital proveniente das drogas na economia global. Contudo, para Martins (2011, p.94) faz-se necessário demarcar que a motivação econômica que move a produção e a circulação das drogas é uma particularidade da sociedade capitalista e que pressupõe relações de conflitos. Ao longo da civilização, a associação das drogas 24 aos conflitos quase sempre esteve presente, mas é bem verdade que no período que antecede o finaldo século XIX essa relação não evidenciava os determinantes econômicos e políticos claramente encontrados no auge da sociedade capitalista. Nesse sentido, os conflitos relacionados às drogas redesenharam e modificam contemporaneamente a geopolítica, isto é, as relações de poder entre Estados. Das Guerras do Ópio, do século XIX, aos conflitos atuais, a produção e a circulação das drogas têm gerado disputas de poder que se convertem em diferentes faces da violência: suborno, lavagem de dinheiro, execuções, corrupção de governos, tráfico de armas, tráfico de drogas, tráfico de órgãos e de seres humanos. Com interesses econômicos e políticos delimitados, os diversos conflitos envolvendo drogas e outras modalidades econômicas ilegais, mas lucrativas, se estendem por todas as regiões do planeta. Essa aproximação drogas e conflitos também tem sido emblemática para o entendimento da “economia das drogas” quando se considera que o narcotráfico, como já demarcado, envolve dispêndio de força de trabalho e capital visando à obtenção de mais capital na produção das mercadorias drogas. Nesse sentido, diverge de outras atividades criminosas como o roubo. As ações da criminalidade, como as imediatamente citadas, no sentido clássico não são atividades produtivas, mas “parasitárias” do sistema, porque não criam valor agregado. A produção das drogas pode ser considerada, como aponta Martins (2011, p.96), uma economia produtiva e a circulação – o tráfico da droga – dá-se fundamentalmente por meio de mecanismos de mercado, apresentando uma demanda e uma oferta. Além de possuir sistemas de transporte e de distribuição, conta com distintas empresas e se localiza em setores diferenciados da economia e tem desenvolvido mecanismos financeiros que permitem melhorar o controle e o manejo do capital Martins (2011, p.96) aponta o fato de que as operações financeiras (aplicações, empréstimos bancários, entre outras modalidades) são virtuais, ou seja, o dinheiro não existe materialmente, ou melhor, ele existe apenas potencialmente, com uma capacidade de poder “vir a ser”. As empresas que trabalham sob essa modalidade no mercado não produzem efetivamente nada. O contrário ocorre com as drogas. As drogas não são virtuais, mas reais, pois existem materialmente. Cifras assombrosas de dinheiro de várias nacionalidades podem ser recolhidas, ainda que paulatinamente, “lavadas” e convertidas na “economia legal”, o que exige uma ampla e dedicada conivência, quando não uma aliança de Estados, bancos, empresas financeiras, para realizar tais operações. 25 Nesse gancho, como já mencionado, o Estado, aquele que se beneficia dos negócios das drogas não faz esforços racionais para a erradicação das drogas em qualquer uma de suas esferas, seja na produção ou na circulação. Ao contrário, utiliza-se do discurso político, jurídico e transnacional das drogas para encobrir o impacto econômico e social que a cocaína, por exemplo, enquanto mercadoria, produz nas relações internacionais de poder. Se observadas as posturas estadunidenses historicamente e em razão da pressão sistemática que impõem aos países latino-americanos, mas também sobre a União Europeia, a impressão que se tem sobre o seu sistema financeiro é que é intransponível para os capitalistas das drogas, mas as informações de que se têm notícia demonstram exatamente o contrário. A retórica interna e externa perpassa o controle, porém nem sempre funcionam. Nos EUA todas as operações acima de dez mil dólares devem ser declaradas e verificadas. Porém, como coloca Martins (2011, p.100), o sistema bancário norte-americano é muito prolífero. Existem milhares de instituições bancárias diversas, sendo que a cada ano fecham algumas centenas e abrem outras tantas. Para controlar um grande volume de papel e um imenso número de informações, existe uma quantidade exígua de funcionários. Mesmo nos casos em que as ilegalidades são descobertas, as penalidades podem ser muito limitadas. Como aponta Martins (2011, p.101), ao contrário de intensificar o controle sobre as instituições financeiras, a resposta norte-americana foi o combate ao consumidor e ao pequeno traficante, isso com resultado financeiro duplamente custoso com força de segurança e encarceramento – dois mercados crescentes também muito explorados pelo capital. Do ponto de vista econômico, a alta lucratividade advinda do dinheiro das drogas relaciona-se intimamente com a própria natureza da ilegalidade. Quando se observa o movimento das drogas o que a princípio poderia supor uma oposição, de fato não o é, porque a taxa de lucro é elevada e o narcotráfico continua sendo dinâmico, apesar da sua ilegalidade. É por ser ilegal que a taxa de lucro é particularmente elevada. A economia das drogas é, então, muito dinâmica graças à ilegalidade e apesar dela. Quando esse capital especulativo circula num país subdesenvolvido, é natural que ele crie tremendo abismos sociais. Uma parcela da população vive muito bem, consumindo produtos de luxo, ao passo que a maioria vive muito mal. Esse mercado ilegal aparece então para uma população já marginalizada como fonte de renda, mas também de ascensão social, considerando-se que a população marginalizada vive geograficamente muito próxima à população que consome produtos de luxo. 26 A cocaína é um produto de exportação do Peru, da Bolívia e Colômbia. Nesse sentido, para essas economias subdesenvolvidas, esse sempre foi um mercado tradicional. E é difícil esperar que os governos locais empreendam, com grande entusiasmo, uma política de erradicação. Não é nem um pouco condizente com a realidade local se desconectar abruptamente da fonte de renda de uma parte bastante grande da classe trabalhadora e nem com a necessidade do Estado de complementar suas arrecadações diretas e indiretas propiciadas pelo mercado das drogas. Depreende-se, dessa forma, que a dicotomia ilegalidade e acumulação do capital é intrínseca e necessária ao ciclo produção/acumulação, essas duas facetas pertencem, de fato, à mesma moeda. Uma está entrelaçada à outra em um cenário de tensões e contradições e é preciso caminhar nos elementos que permitem entender a condenação das drogas, ao mesmo tempo em que a sua produção e circulação geram acumulação e circulação massiva de capital. Nesse sentido, em relação às drogas lícitas, considerando que estão inseridas no processo produtivo e lucrativo do chamado “mercado legal”, movimentos condenatórios existem, mas os conflitos daí decorrentes podem ser resolvidos na esfera legal. Em relação às drogas ilícitas, porém, considerando que são mercadorias e que precisam ser realizadas enquanto tais, por que a sua condenação? A resposta simples e direta poderia ser: a condenação dessas drogas existe porque trazem prejuízos para os indivíduos e para a sociedade. Se a resposta fosse somente essa, nesse caso não seria mais prudente regulamentá-las de forma criteriosa, submetendo-as a um controle de qualidade rígido, assim como é feito com as drogas lícitas? Sabe-se que, para a maioria das drogas ilícitas, boa parte dos seus malefícios reside nas impurezas e na mistura de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu processo de produção. As condições de uso, devido a sua ilegalidade também acarretam a outros problemas de saúde pública, como o uso de materiais contaminados (seringas e agulhas) e o descolamento da vida em sociedade por conta do medo e estigma. Em contrapartida, as drogas lícitas, largamente reconhecidas como passíveis de uso prejudicial e danosas à saúde dos indivíduos e também diretamente à sociedade – caso principalmente do álcool e todas as suas facetas – tem seu uso e produção controlados pelo Estado, níveis de concentração, de qualidade e massiva política de prevenção de uso prejudicial difundida. A retirada das drogas da ilegalidade, colocando-as sob o controle do Estado, atravésda taxação de impostos e da qualidade dos produtos, alinhados a políticas amplas de prevenção do uso e redução de danos eficientes não seria um caminho racional e economicamente viável para 27 a sociedade? Afinal, esse é, de fato, o recurso utilizado em relação às bebidas alcoólicas, ao tabaco e aos remédios. A quem interessa, então, manter na ilegalidade determinadas substâncias? A resposta a essa questão não é simples e muito menos direta. O desprendimento do ambiente místico, lúdico e cultural, tornando-se fonte de disputas e de lucros massivos, tem caracterizado as drogas como mercadorias nas esferas da produção e da circulação. Não se trata de solapar uma dificuldade lógica: se a produção gera a circulação/consumo de drogas ou se a sua circulação/consumo estimula a produção. Como já assinalado, o consumo de drogas, propriamente dito, envolve usos e contextos muito diversos. Ao se adotar a perspectiva de que a produção gera ou estimula o consumo, a política de enfrentamento às drogas recairá sobre a produção, fundamento da política vertical do Norte para o Sul global de penalizar os Estados produtores de drogas, em especial latino-americanos. Por outro lado, se a tese adotada é a de que uma disposição para o consumo estimula a oferta, elementos estruturantes no modo de produção e acumulação capitalista, que fazem parte do jogo, serão relativizados. A tarefa, portanto, é entender as drogas como uma produção social, historicamente demarcada e que, no âmbito da sociedade capitalista, o lúdico, o místico ou o cultural se mantêm, mas não são os elementos que estruturam a produção e a circulação das drogas. Com a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII e intensificada no século XIX, o uso do álcool destilado passa a ser descrito como útil não apenas para atividades lúdicas ou alimentícias, como foi o caso da cerveja. A bebida alcoólica passa a ser uma referência, ou seja, um artifício para entorpecer a dura realidade da classe trabalhadora, como observa Friedrich Engels (2008). Na Inglaterra, o deslocamento da população para as cidades acelerou o seu crescimento de forma desordenada, levando à aglomeração em torno dos centros industriais. O ritmo e o dispêndio da força de trabalho nas fábricas e nas minas, aliados à pobreza, à miséria, às longas jornadas de trabalho e aos baixos salários, contribuíram para que a classe trabalhadora, faminta, desprestigiada e explorada, recorresse, sem grandes subterfúgios, a um dos mais acessíveis meios de amortecimento de sua condição social – o álcool. Além das condições insalubres das habitações dos operários, Engels (2008) enfatiza também a má alimentação da classe trabalhadora, indicando que as condições materiais de vida dos trabalhadores contribuíram para que encontrassem no álcool um entorpecimento momentâneo para a dura realidade de suas existências: Todas as ilusões e tentações juntam para induzir os trabalhadores ao alcoolismo. A aguardente é para 28 eles a única fonte de prazer e tudo concorre para que a tenham à mão. O trabalhador retorna à casa fatigado e exausto; encontra uma habitação sem nenhuma comodidade, úmida, desagradável e suja; tem a urgente necessidade de distrair-se; precisa de qualquer coisa que faça seu trabalho valer a pena, que torne suportável a perspectiva do amargo dia seguinte. Nessas circunstâncias, como poderia o trabalhador deixar de sentir a atração pela bebida, como poderia resistir à tentação do álcool? Em tais circunstâncias, ao contrário, a necessidade física e moral leva uma grande parte dos trabalhadores a sucumbir ao álcool. [...] esses e cem outros fatores que operam tão fortemente não nos permitem, na verdade, censurar aos operários sua inclinação para o alcoolismo. Nesse caso, o alcoolismo deixa de ser um vício de responsabilidade individual; torna-se um fenômeno, uma consequência necessária e inelutável de determinadas circunstância que agem sobre um sujeito [...] aqui a responsabilidade cabe aos que fizeram do trabalhador um simples objeto [...] (ENGELS, 2008, p. 142). O contexto de flagelamento da classe trabalhadora marginalizada e apartada de entretenimento, lazer ou informação sobre saúde cria um contexto prolifico, não somente para o uso do álcool como escape da realidade, mas também como gatilho para o mercado fomentar a busca e criação de novas substâncias a fim de diversificar o mercado, aumentando as possibilidades de lucro e circulação do capital. É preciso reafirmar que drogas não são novidade mesmo para o século XIX, já existiam há milhares de anos, contudo o contexto da formação das grades metrópoles, circulação e concentração de pessoas e mercadorias, agregados às novas condições e dinâmicas da vida pós-Revolução Industrial levaram o uso prejudicial de drogas a um nível nunca antes experimentado. Conforme Escohotado (1994), na virada do século XIX para o século XX, por volta de 1900, já era possível comprar drogas hoje consideradas ilícitas facilmente, tanto na América, como na Ásia e na Europa. Afirma o autor que, de propaganda livre, as drogas até então não eram objeto de intervenção jurídica, político e ético-social, ainda que houvesse vozes discordantes protestando contra a liberdade reinante. Para além do gosto individual ou coletivo que os tornavam atraentes ou não, o elemento determinante para a permanência ou a decadência desses produtos no seio da sociedade da época, ao que tudo indica, foi o econômico. 29 Afirma Escohotado (1994) que o século XIX marca também o fato de as drogas vegetais terem transitado do seu “elemento mágico”, invariavelmente relacionado a ritos, mas é do século XX o ponto de inflexão em relação às drogas: de “elemento mágico” para elemento maldito. Circunscritas a uma forma de abordagem não proibitiva para um contexto proibitivo, a relação do indivíduo com as drogas vai sendo demarcada pela intolerância social e pelo banimento do seu uso em espaços públicos – como forma de socialização do lúdico, do cultural e até como símbolo de status – para espaços privados, determinadas festas, guetos e porões do “submundo” marcados pelo prazer e pelo estigma. Estigma aqui evoca como referencial teórico o sociólogo canadense Erving Goffman, que define estigma como um atributo incongruente e um estereótipo que tem a potencialidade de colocar sobre uma pessoa a desacreditação social e moral. Esta está composta por vários elementos arraigados: “o poder e dominação social”, “as normas socialmente definidas” e “os atributos diferentes aos outros presentes no intercâmbio social”. Sendo atributo profundamente desacreditador dentro de uma interação social particular, que reduz simbolicamente uma pessoa completa e normal para uma pessoa com características questionadas e diminuídas no seu valor social (GOFFMAN, 1982). Essa mudança, que se processa na forma como a sociedade lida com as drogas, não pode ser tomada apenas na sua aparência, na sua superficialidade. Embora ela faça parte de relações construídas socialmente, tomá-la na sua imediaticidade não esclarece, e não explica em si os fundamentos das drogas como mercadorias, da mesma forma que não explica, e não esclarece a racionalidade existente na organização do mercado das drogas. Os agentes do mercado das drogas ilegais são agentes racionais tanto quanto os capitalistas inseridos no mercado legal da produção e da circulação de quaisquer outras mercadorias. O mercado das drogas é formado de agentes racionais e que definem momentos de necessária colaboração ou não, formando redes. Para os autores, o uso de recursos como a violência e a capacidade corruptiva são partes constitutivas dessa racionalidade. O senso comum tende a compreender que o agir do mercado, sobretudo pelo uso da violência, é carregado de irracionalidade de onde interagem criminosos puramente temperamentais, mas isso não é verdade. Sugerem os autoresque, diferentemente do que ocorre num mercado legal, onde as ações dos capitalistas são respaldadas pela ordem econômica e pela ordem jurídica, no mercado ilegal há uma clara contradição entre essas duas ordens, os valores e interesses que motivam a ação dos empresários ilegais se sustentam em uma ‘situação de interesses’ que parte de uma ordem 30 econômica do tipo capitalista. O imperativo categórico de maximização dos benefícios se mostra, neste caso, de forma contundente, sem nenhuma ambiguidade. O mercado ilegal não é então a cara oposta da racionalidade capitalista, é a forma mais descarnada que podem adquirir esses valores. Poder-se-ia dizer que o mercado ilegal é uma ‘radicalização’ dessa lógica capitalista que não suporta adversários ou opositores para a realização de seus fins. Na falta de um aparato legal para dirimir conflitos e questões contratuais, entra o recurso à violência e a corrupção de autoridades. Nesse sentido, como coloca Martins (2011, p.61), o uso da violência e o constante choque entre o mercado das drogas e a segurança de Estado decorre, em boa medida, em razão da própria ilegalidade das drogas. O vazio jurídico-formal, isto é, a inexistência de mecanismos legais aos quais possam recorrer os capitalistas das drogas para resolver os conflitos, impõe a violência. A situação de anarquia do mercado das drogas gera um ambiente prolifero para a política do “olho por olho, dente por dente”. O combate a essa violência é um dos pilares da massiva guerra às drogas. Uma cruzada que insiste em apontar muito baixo suas armas, enquanto o mercado se encontra verticalizado ao extremo em simbiose com governos e instituições financeiras mundo a fora. De fato, não há uma “irracionalidade” nessa relação, posto que as drogas, nas esferas da produção, da circulação e também da repressão, estão inseridas no processo de produção e reprodução das relações sociais capitalistas. A estratégia de combate levou a uma guerra, cujos extremos foram as operações militares contra os pequenos agricultores de cultivos ilícitos, a fumigação química de cultivos ligados às drogas, o encarceramento em massa de usuários e pequenos distribuidores e até a pena de morte para os transgressores em alguns países. A proibição das drogas ilícitas pôs o mercado desse lucrativo comércio em mãos de grandes organizações criminosas e criou gigantescos fundos ilegais que estimulam corrupção e conflitos armados em todo o mundo. Como já apontado, a política de enfrentamento às drogas tem estimulado mercados e também usuários, colocando em cheque qualquer racionalidade para enfrentamento real do tema. O que temos hoje na maioria dos países é uma política bélica repressiva que estimula o tráfico, marginaliza quem se insere nesse mercado, estigmatiza usuários, afastando qualquer forma de controle, prevenção e tratamento. Gera assim uma prática de “seletividade punitiva” e, no Brasil, relaciona-se à caracterização daqueles que são determinantemente mais suscetíveis à entrada nesse mercado ilegal, pretos, pobres, periféricos têm vaga nesse varejo forjado pela desigualdade, marginalização e estigma geopolítico. Nesse sentido, 31 em sequência buscar-se-á apresentar mais detalhadamente como esse mercado e seus desdobramentos criam em toda América Latina um cenário de diversidade em políticas públicas de enfrentamento, que conectado aos determinantes globais, encaminhou-se para frentes de batalha desastrosas, gerando marginalização, encarceramento e mortes. 2.2 FUNDAMENTOS SOCIOECONÔMICOS E MORAIS DO PROIBICIONISMO E SUA MANUTENÇÃO A formulação de políticas públicas sobre drogas perpassa diversas questões, contudo para entender o paradigma proibicionista e a criminalização do uso de drogas é essencial debater os fundamentos da moral. Definir os conceitos de moral, moralidade e moralização é algo impossível sem a abertura e interesse do pesquisador para a experimentação de uns óculos com muitas lentes diferentes. Tentar-se-á abordar esse objeto e sua relação com a criminalização das drogas, através de uma visão filosófica, sociológica e política. O dicionário filosófico de Abbagnano (2007) descreve o termo moral, primeiramente, como sinônimo de ética. Em seguida, como objeto da ética – conduta dirigida ou disciplinada por normas. Destaca-se que a palavra tem dois significados, correspondentes aos do substantivo moral: atinente à doutrina ética, e como adjetivo atinente à conduta e, portanto, suscetível de avaliação, para indicar uma atitude moralmente vaporável, mas também objetos positivamente valoráveis. É mencionado que em inglês, francês e italiano, esse adjetivo posteriormente passou a ter o significado genérico de “espiritual", que ainda conserva em certas expressões, por exemplo, na expressão "ciências morais" que são as "ciências do espírito". Para definir o conceito de moralidade o texto designa-o como caráter do que se conforma às normas morais. No sentido hegeliano, a moralidade distingue-se da “eticidade” por ser a "vontade subjetiva", ou seja, individual e desprovida de bem, enquanto a eticidade é a realização do bem em instituições históricas que o garantam. Kant contrapôs a moral à legalidade. A última é a simples concordância ou discordância de uma ação em relação à lei moral, sem considerar o móvel da ação. A moral ao contrário, consiste em assumir como móvel de ação a ideia de dever (ABBAGNANO, 2007, p. 682). Em “A Crítica da Razão Prática” (1788), Kant discute o problema moral. Essa obra seria a base do seu sistema de filosofia moral que inclui a “Metafísica dos Costumes”. Por apresentar o princípio fundamental da moralidade a partir da análise do conhecimento moral comum, essa obra serve como introdução à sua concepção de liberdade (RAMOS, 2012. p.161). A concepção kantiana de moral e moralidade 32 aponta no sentido contrário da concepção do senso comum: liberdade não é agir sem nenhuma regra, mas ser capaz de seguir uma regra livremente imposta pela própria razão. Para Nodari (2016), Kant está convencido de que o gênero humano caminha rumo à perfeição, sendo a mesma não determinada pela natureza, mas pela liberdade, lembrando, contudo, que o processo de moralização não prescinde da natureza, não se deixando, por sua vez, determinar pela natureza. A natureza pode apenas preparar o caminho para o desenvolvimento da moralidade. “A natureza colocou no homem as disposições necessárias para o seu avanço e desenvolvimento, porém o trabalho de transformá-las de simples disposições em fatores morais é particular ao homem” (MENEZES, 2000, p. 270). Nesse sentido, o chamado imperativo categórico, segundo Ramos (2012), é necessário devido ao conflito que existe entre a razão e os princípios de determinação sensíveis. A razão prática é somente pura e natural, não é empiricamente limitada. A razão limitada pela experiência sensível fornece regras, isto é, imperativos hipotéticos que representam a necessidade de uma ação possível como um meio de alcançar determinado fim. Já um imperativo categórico é bom por si mesmo porque pode ser universalizado, independente das circunstâncias ou de sua realização. Assim como “deveres” hipotéticos são possíveis porque temos desejos, “deveres” categóricos são possíveis porque temos razão. Deveres categóricos são derivados de um princípio que toda pessoa racional tem que aceitar: o imperativo categórico (RACHELS, 2013). Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral não pelo propósito que com ela se quer atingir, nem depende da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação foi praticada. O dever é então “a necessidade de uma ação por respeito à lei” (KANT, 2009, p. 127). Os requerimentos morais são categóricos. A regra moral não é, por exemplo, que você deve ajudar as pessoas se você se importa com elas. Em vez disso, a regra é que você deve ajudar as pessoasnão interessando quais sejam os seus desejos. Esta, por sua vez, consiste em valer para todos, portanto, na sua universalidade que é, assim, o conteúdo da lei. “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 2008, p. 51). De acordo com Kant, então, nosso comportamento deve ser guiado por leis universais, as quais são leis morais verdadeiras em quaisquer circunstâncias. A obediência deve interiorizar-se – tornar-se obediente a si próprio – quer dizer, adquirir autonomia, o que significa liberdade. A máxima correspondente consiste em sempre pensar por si 33 próprio. E assim, não é mais do exterior, mas do interior que a ação deve proceder. Segundo Ramos (2012), Kant deixa transparecer que a submissão à lei moral não retira do homem sua dignidade, pelo contrário, enquanto essa submissão tem a forma da autonomia, ela é o fundamento da dignidade da natureza humana e de todo ser racional. Isso porque só o ser racional pode participar na legislação universal para a sociedade. O princípio máximo da filosofia prática de Kant supõe de certa forma a ideia de uma comunidade ética que constitui a totalidade de um reino dos fins – é a ela que se refere o procedimento de universalização das máximas que está na base do imperativo categórico (RAMOS, 2012, p.167). A forma tematizada pela doutrina do direito é a da limitação recíproca das liberdades; a matéria da ética é o fim proposto pela razão, que é ao mesmo tempo um dever. É então no domínio do direito, que trata da questão do justo, que Kant formulará sua doutrina política. Não surpreende, portanto, que sua teoria do Estado consiste na formulação de uma concepção normativa do chamado Estado de direito: o Estado que tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, ou seja, a “instituição e a manutenção de um ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades” (BOBBIO, 1987, p. 135). Kant (2009) destaca a fonte da moral no individuo, sua ação racional o leva a uma ação moral, cada um constrói a lei que segue a partir da sua vontade e razão. Mas como a moral se manifesta no coletivo, o processo de moralização e a construção de estrutura moralizante que vai para além das relações do direito como regulador. Nesse sentido, a teoria das representações coletivas de Durkheim (2008) pode colaborar para o intuito de extrapolar a análise do conceito de moral, e mais à frente, sua relação com a construção da criminalização das drogas. Para Durkheim (2008), os fatos sociais têm a propriedade de se sobreporem as consciências individuais, o caráter moral nesse sentido faz parte da existência social. As representações estão presentes em todas as subjetividades que participam em alguma instância da construção da realidade compartilhada que é a sociedade. O hábito, e o que é usual, ou correto, se sedimentam como curso apropriado de interação social, gerando consigo o caráter moral do fato social. O hábito limita drasticamente o ilimitado arsenal de ações humanas. O mundo da ordem emerge com as instituições e com ele as definições do que pode ser daninho à manifestação de ordem. Contudo, a conduta que destrói a ordem é tão presente como fato social como o 34 próprio controle. Dessa forma, não causa estranheza – a conduta fora de ordem está dentro de certa ordem, faz parte do aglomerado de fatos sociais, da cortiça que representaria nossas relações, que olhada de longe parece homogênea. Mesmo assim, as ações ofensivas aos valores da ordem botam em risco o “caráter sagrado” da norma moral (DURKHEIM, 1970, p. 244). A moral a que se refere Durkheim, nesse sentido, é caráter próprio da sociedade, entendida como conjunto de ideias e crenças, representações coletivas, que ordenam a conduta dos indivíduos. Dever e obrigação são, dessa forma, instituições que ao contrário do que é observado em Kant, não são inerentes do indivíduo por meio do seu pensamento racional, são sim dadas pelas manifestações do curso da ação social, que o indivíduo deve seguir para que não lhe pese a punição por inadequação. A ordem como um fenômeno que se torna objetivo nos fatos morais da sociedade é colocada como regras de ação reconhecíveis, por certas características distintivas, sendo possível, portanto, observá-los, descrevê-los, classificá-los e procurar certas leis que os expliquem (DURKHEIM, 1977). Diferente da filosofia kantiana, que buscava entender o problema ético através do indivíduo como singular, em Durkheim, o código moral se assenta sobre a forma peculiar de convivência humana em sociedade. Nesse contexto, as leis expressam e regulam a moral em diferentes graduações. A intensidade da expressão da lei pode ser verificada a partir da forma como diferentes sanções são delimitadas para a mesma “quebra de ordem” em diferentes modelos de sociedade. No segmento cabe aprofundar a relação ordem e desvio e a forma como Durkheim identifica crime como sendo atos que invocam contra o seu autor uma reação específica por parte da sociedade: a punição (DURKHEIM, 1977). Durkheim retira do ato qualquer característica intrínseca que o faça criminoso. O crime se dá, dessa forma, quando é percebido e repudiado pela moral social e não quando foi materializado como ação. O conteúdo dos atos considerados criminosos pode variar muito, e para o autor a característica comum a todos os crimes é o fato de transgredirem crenças morais coletivamente adotadas e que por isso ensejam uma punição. A punição é a resposta da sociedade pela ofensa a valores morais compartilhados. É a repressão de moralidade especificas com base em castigos determinados, “não o reprovamos porque é um crime, mas é um crime porque o reprovamos”, os atos e fatos considerados crimes variam no tempo e no espaço, a punição é o elemento definidor. Nesse sentido, diferente da visão kantiana de indivíduo como legislador de si e imanente 35 de regras universais, Durkheim tenta demonstrar que os fatos sociais são independentes frente aos processos individuais sobre os quais assumem caráter normativo. A primeira norma surge antes da criação de Eva: não comer da árvore da vida. Liberdade absoluta: tudo poderia ser utilizado, menos o fruto da árvore do saber, do bem e do mal. A primeira regra da criação já veio com o primeiro código penal: “No dia em que comeres dela, morrerás” (Gênesis 2:17). Criar punição antes da infração indica que já se sabe da dificuldade na observação da regra. Quando estabeleço o que acontece com quem não obedecer, já reconheço que obedecer é uma opção e que é humano enfrentar a regra (KARNAL, 2014, p. 34). Karnal coloca que a norma seduz para a possibilidade da infração. De alguma forma, o erro, o pecado e a infração são criados pela norma que os institui. A gramática estabelece a medida que torna alguém mau usuário da norma culta. Quem escreve uma gramática está criando os incultos da língua. A regra é a mãe do infrator. Para o autor, na cabeça do legislador estaria uma vontade de exaltar a regra e sua sabedoria, pois pela transgressão, ficariam evidentes a reta intenção e a justiça do autor da regra. Norma e erro; lei e pecado, esse binômio seria inseparável. Parece uma relação de causa e efeito. A regra parece só ter validade e brilhar no momento em que um infrator ingressa na ratoeira da moral (KARNAL, 2014). A sociedade tem então certamente um caráter moral e o crime está implícito em sua estrutura, sendo o crime um elemento da normalidade do corpo social. Dessa forma, que função teria o crime nesse corpo? Nesse caso, a aglutinação de certa consciência coletiva ao redor da punição e a manutenção de valores morais. O crime indica que nem todos os indivíduos estão constrangidos à ordem. Partindo dessa discussão, em Durkheim é possível depreender que atos punidos como imorais não possuem em seucerne nada que os faça imutavelmente distintos dos atos morais em sua natureza, sendo a caracterização de crime devida à punição, e esta ao rompimento do tecido da ordem moral. A partir dessa discussão é preciso entender como o uso de drogas passou a se caracterizar como uma quebra da ordem e como uma ameaça à moral construída pela sociedade. O consumo de drogas é ainda considerado crime em muitas sociedades e faz parte do acervo dos fatos que lesam a moral de quase todas. Usuários continuam sendo tratados como degenerados, recebendo 36 tratamento que varia do encarceramento psiquiátrico ao penitenciário. A associação do consumo a desequilíbrios psiquiátricos coletivos, como se determinados grupos fossem mais suscetíveis, é recorrente no imaginário moral. A regra proibitiva do comércio e consumo de drogas continua por outro lado a ser quebrada e vigorosamente transgredida em todas as sociedades nas quais foi estabelecida. O que podemos observar é o fato de que substâncias como a cannabis, cocaína e o ópio, por exemplo, foram utilizadas com fins religiosos, medicinais e recreativos por muito tempo na história humana, sem qualquer rótulo de droga ilícita. Dessa forma, é interessante pensar como diversas substâncias passaram a ter essa caracterização que as rotulam como ilícitas tornando passíveis de regulação e desenvolvendo o modelo de repressão de oferta e demanda a partir de políticas públicas. A questão econômica nunca pode ser descolada da análise política, para Netto (1990). A compreensão do ordenamento político, incluindo quem faz e como se faz políticas e para quais interesses ela é formulada. Nesse sentido mesmo as definições apresentadas pelo direito moderno não englobam todas as substâncias com efeitos psicoativos ou que podem levar à dependência. Dessa forma, fica, como já mencionado, à mercê de convenções arbitrárias a categorização do que é droga ou não. As manifestações de toda sorte de substâncias que podem afetar o corpo humano, por vezes muito mais fortemente do que as chamadas drogas ilícitas, não são criminalizadas por não envolver os interesses econômicos por trás do tradicional comércio ilegal de drogas. Substâncias que alteram a percepção do ser humano (dele com ele mesmo ou com o ambiente onde está inserido), sejam alucinógenos, estimulantes, energéticos, etc., sempre foram uma realidade desde tempos imemoriais em nossa existência como indivíduos e sociedade. Seja a descoberta da fermentação, a folha de coca ou a mais recente droga sintética, o uso histórico e cultural da “droga” faz parte do mundo que criamos mesmo em seus primórdios. Mas foi apenas no período mercantilista de expansão massiva dos mercados e do capital que os usos das drogas se diversificaram e se expandiram, saindo da esfera de uso em pequena escala, ligado à cultura, se direcionando ao uso como medicamentos e para fins recreativos. Segundo Silva (2011) por volta dos séculos XVII e XVIII, o consumo de drogas ainda era pontual. Apenas a partir do século XIX, as técnicas de produção de substâncias alucinógenas foram aperfeiçoadas, sintetizaram-se as primeiras formas de cocaína e heroína, inicialmente utilizadas com função terapêutica em doenças. Sobre a expansão do mercado das drogas, as Guerras do Ópio, ocorridas entre 1839–1860, são um claro exemplo da atuação do capital 37 transcrito em política imperialista como fomentador do tráfico de substâncias. Nesse período, a Inglaterra buscava diminuir seu déficit comercial com a China por meio do comércio de ópio oriundo da Índia, sua colônia. Com a proibição da venda da substância por parte do governo de Pequim, a Inglaterra viu seu lucrativo mercado de ópio ameaçado e declarou guerra à China. Em 1729, o imperador Yun-cheng proíbe, pela primeira vez, o comércio de ópio com os europeus no intuito de impedir a troca comercial dessa mercadoria por produtos chineses como o chá, especiarias, seda, ainda que o cultivo de papoula permanecesse livre no império chinês. Já em 1793, o imperador Chia-Ching, alegando que o uso do ópio havia alcançado, membros da boa família, estudantes e funcionários (ESCOHOTADO, 1994, p. 71), proíbe não só a importação do ópio como também o cultivo da planta em todo o território chinês, o que favoreceu o seu contrabando. Em 1838, o imperador Tao-Kuang, diante do saldo desfavorável da balança comercial da China, busca conselhos entre seus ministros, mas, antes de se resolver a situação – legalizar o uso do ópio e o cultivo da papoula ou permanecer na 'linha dura' da proibição” –, o mandarim Lin Tse-Hsü lança ao mar em torno de 1 400 toneladas de ópio armazenados em Hong-Kong, fato que provoca a sua destituição do cargo, bem como a declaração, pela Inglaterra, de guerra à China, tomando por base o atentado contra a liberdade de comércio. O Tratado de Nankin, de 1843, coloca fim a esse primeiro conflito (1839- 1842 – “Primeira Guerra do Ópio”), e obriga a China a abrir seus portos ao comércio inglês e à cessão da ilha de Hong Kong por cem anos à Inglaterra (a ilha foi devolvida em julho de 1997). O ópio permaneceu proibido, mas passados treze anos do tratado, ocorre a “Segunda Guerra do Ópio” (1856-1860), motivada pela transgressão ao Tratado de Nankin, sendo a China rendida em 1858, com o Tratado de Teientsing. Em 1880, a Companhia Britânica das Índias sofre um duro golpe com a legalização da importação e consumo do ópio, bem como do cultivo da papoula, e, em 1890, a China já produzia 85% da demanda interna do ópio (ESCOHOTADO, 1994). O império britânico que declarou guerra à China em favor do "livre comércio", à época, garantiu o monopólio internacional, consolidou o domínio no Extremo Oriente e implementou a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala (SILVA, 2011), tornando posteriormente os EUA o principal expoente na cruzada “moral” contra o consumo de drogas. Os EUA, em nível internacional, atuam a fim de controlar o comércio de ópio para fins não medicinais, tentando 38 principalmente conquistar espaço de manobra e poder econômico nos mercados do oriente, então dominado pelos ingleses e seu ópio indiano. Importante destacar que essas substâncias foram utilizadas tanto em guerras, quanto em movimentos missionários religiosos, criando situações de dependência ao mesmo tempo em que contribuiu para a expansão da indústria farmacêutica durante todo o século XIX. No início do século XX, testemunhou-se a popularização da cocaína, sobretudo nos Estados Unidos da América, sendo utilizada, inclusive, pelo exército norte-americano em grande escala. O movimento hippie, nas décadas de 1960 e 1970, ajudou a popularizar e criar uma atmosfera de uso recreativo de substâncias como a cannabis e alucinógenos (LYRA, 2014). Apesar de o uso da cannabis ser descrita em herbários chineses de quase 5 000 anos, sofreu ao longo do último século um processo de criminalização. Ligada, principalmente, a questões racistas – negros e, posteriormente, mexicanos na sociedade norte-americana deveriam ser controlados e mantidos na ordem. No final da década de 1970, surge o crack, subproduto da cocaína altamente tóxico e barato, tornando as drogas mais acessíveis às camadas mais pobres da população. Durante grande parte do período abordado anteriormente, até o início do século XX, não existia a ideia de narcotráfico, criminalização, ou expressão de demanda de política pública, uma vez que a maioria dessas substâncias não era ilegalmente consumida. Ao contrário, não existia qualquer regulamentação, tampouco a noção das drogas como um problema. O comércio de drogas está intrinsecamente associado à expansão comercial internacional, seja na forma do colonialismo mercantilista, do capitalismo industrial e financeiro, ou nas cruzadas da guerra às drogas. O proibicionismo como pilar para o tratamento da temática é um dos componentes-chave para o grande desastre
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