Buscar

Drogas, políticas públicas e o paradigma proibicionista um estudo entre Brasil e Uruguai

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 118 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 118 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 118 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Matheus Bernardes Rachadel 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DROGAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E O PARADIGMA 
PROIBICIONISTA: Um estudo entre Brasil e Uruguai 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, Nível Mestrado, da 
Universidade Federal de Santa Catarina. 
Orientadora: Profª Drª Tânia Regina Krüger 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2019 
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
 através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Rachadel, Matheus Bernardes
 Drogas, políticas públicas e o paradigma
proibicionista : um estudo entre Brasil e Uruguai /
Matheus Bernardes Rachadel ; orientador, Tânia
Regina Krüger, 2019.
 116 p.
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de
Santa Catarina, Centro Sócio-Econômico, Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social, Florianópolis, 2019.
 Inclui referências. 
 1. Serviço Social. 2. Drogas. 3. Proibicionismo.
4. Políticas Públicas. I. Krüger, Tânia Regina. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social. III. Título.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Aos meus pais, irmã e familiares que, com muito carinho e 
apoio incondicional, não mediram esforços para que eu chegasse até 
esta etapa da minha vida. 
 
Ao meu namorado, Gabriel Mendes, pelo carinho apoio e 
compreensão heroicos, incansáveis, enfrentando juntos os desafios e 
barreiras que criei. 
 
À CAPES, pela oportunidade tão privilegiada de poder 
construir minha formação com suporte financeiro. 
 
À minha professora orientadora Tânia Regina Krüger pela 
paciência, compreensão e principalmente motivação na orientação. 
Também pelo convívio, com exemplos de ética e humanidade. 
 
A todos do NESSOP que me receberam com todo o carinho e 
fazem do projeto um lugar de reflexão crítica e abraços apertados. 
 
As amigas, Aline Cunha, Andressa Molinari, Claudia Teles, 
Luna Oliveira e Mariele Hochmüller, pelo incentivo constante e apoio. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
A presente pesquisa tem como tema central o processo de transformação 
do paradigma proibicionista que cerca o fenômeno das drogas. Debatendo 
os determinantes sócio-históricos, econômicos e políticos que 
influenciam no processo de mudança ou manutenção desse paradigma. 
Realizando um estudo entre duas realidades sul-americanas, Brasil e 
Uruguai, e apresentando aproximações e afastamentos em relação ao 
tratamento da temática entre os dois países e os avanços no arcabouço 
legal de ambos no sentido da descriminalização e o tratamento da 
temática no âmbito da saúde pública. A fim de contrastar através de 
análise documental, tanto do arcabouço legal na temática das drogas de 
ambos os países, quanto das estratégias e programas que constroem o 
panorama de políticas públicas dos dois países a serem estudados. Dessa 
forma, foram tomados como eixos para análise da legislação e política 
sobre drogas dos países estudados: a descriminalização e despenalização 
do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal; a oferta de 
tratamento para o uso prejudicial; a oferta de serviços públicos de redução 
de danos; e a regulamentação do acesso à cannabis medicinal e o avanço 
na regulamentação da cannabis para uso adulto. Para desvelar essas 
questões o trabalho se divide em dois capítulos que juntos buscam 
alcançar os objetivos a que se propõe a investigação. No primeiro capítulo 
são abordados os determinantes para a criminalização das drogas e 
construção de políticas públicas no contexto dos Estados latino-
americanos. A questão das drogas como mercadoria e como ocorre sua 
reprodução social, passando pelos diferentes determinantes do 
proibicionismo como paradigma, buscando compreender questões 
fundantes para a manutenção de leis e políticas conservadoras no contexto 
latino-americano. O segundo capitulo propõe-se a estudar os documentos 
base para o debate dos passos de Brasil e Uruguai na formulação do 
arcabouço legal e planos para políticas públicas sobre o fenômeno das 
drogas. É abordada a formação dos Estados brasileiro e uruguaio, e os 
caminhos percorridos por ambos os países. Os debates desenvolvidos 
apontam as diferenças de trajetória dos dois países e tentam abordar quais 
os determinantes enfrentados por ambos que influenciaram o curso dessas 
construções, apresentando aproximações e afastamentos. 
 
Palavras-chave: Drogas. Proibicionismo. Políticas Públicas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
This research has as the central theme the transformation process of the 
prohibitionist paradigm that surrounds the phenomenon of drugs. 
Debating the socio-historical, economic and political determinants that 
influence the process of change or maintenance of this paradigm. 
Carrying out a study between two South American realities, Brazil and 
Uruguay, and presenting approximations and withdrawals regarding the 
treatment of the issue between the two countries and the advances in the 
legal framework of both in the sense of decriminalisation and the 
treatment of public health issues. The objective of this study is to 
compare, through documentary analysis, both the legal framework on 
drug issues in both countries and the strategies and programs that build 
the public policy landscape of the two countries to be studied. In this way, 
the drug laws and policies of the countries studied were analyzed as 
markers: decriminalisation and depenalisation of drug use or personal 
consumption; the provision of treatment for harmful use; the provision of 
public harm reduction services; and regulation of access to medical 
cannabis and progress in the regulation of cannabis for adult use. In order 
to uncover these questions the work is divided into two chapters that 
together seek to answer the questions and achieve the objectives of the 
research. The first chapter addresses the determinants of the 
criminalisation of drugs and the construction of public policies in the 
context of Latin American states. The question of drugs as a commodity 
and how its social reproduction occurs, passing through the different 
determinants of prohibitionism as a paradigm, trying to understand root 
issues in the maintenance of conservative laws and policies in the Latin 
American context. The second chapter proposes to study the basic 
documents for the debate of the steps of Brazil and Uruguay in the 
formulation of the legal framework and plans for public policies on the 
phenomenon of drugs. It addresses the formation of the Brazilian and 
Uruguayan states and the paths taken by both countries. The debates 
developed point out the differences in the trajectory of the two countries 
and try to identify the determinants faced by both that influenced the 
course of these constructions, presenting approximations and 
withdrawals. 
 
Keywords: Drugs. Prohibitionism. Public Policy. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMEN 
 
Esta investigación tiene como tema central el proceso de transformación 
del paradigma prohibicionista que rodea el fenómeno de las drogas. 
Debate sobre los determinantes socio-históricos, económicos y políticos 
que influyen en el proceso de cambio o mantenimiento de ese paradigma. 
Realizando un estudio entre dos realidades sudamericanas, Brasil y 
Uruguay, y presentando aproximaciones y alejamientos en relación al 
tratamiento de la temática entre los dos países y los avances en el marco 
legal de ambosen el sentido de la despenalización y el tratamiento de la 
temática en el ámbito de la salud pública. Se busca contrastar a través del 
análisis documental, tanto del marco legal en la temática de las drogas de 
ambos países, como de las estrategias y programas que construyen el 
panorama de políticas públicas de los dos países a ser estudiados. De esta 
forma fueron tomados como eje para análisis de la legislación y política 
sobre drogas de los países estudiados: la descriminalización y 
despenalización del consumo de drogas o porte para consumo personal; 
la oferta de tratamiento para el uso perjudicial; la oferta de servicios 
públicos de reducción de daños; y la regulación del acceso al cannabis 
medicinal y el avance en la regulación del cannabis para uso adulto. Para 
desvelar esas cuestiones el trabajo se divide en dos capítulos que juntos 
buscan responder a las indagaciones y alcanzar los objetivos a que se 
propone la investigación. El primer capítulo se abordan los determinantes 
para la criminalización de las drogas y la construcción de políticas 
públicas en el contexto de los Estados latinoamericanos. La cuestión de 
las drogas como mercancía y cómo ocurre su reproducción social, 
pasando por los diferentes determinantes del prohibicionismo como 
paradigma, buscando compreender cuestiones fundantes para el 
mantenimiento de leyes y políticas conservadoras en el contexto 
latinoamericano. El segundo capítulo se propone estudiar los documentos 
base para el debate de los pasos de Brasil y Uruguay en la formulación 
del marco legal y planes para políticas públicas sobre el fenómeno de las 
drogas. Es abordada la formación de los Estados brasileño y uruguayo, 
los caminos recorridos por ambos países y la construcción de las bases 
para políticas sobre drogas. Los debates desarrollados apuntan las 
diferencias de trayectoria de los dos países e intentan colocar cuáles son 
los determinantes enfrentados por ambos que influenciaron el curso de 
esas construcciones, presentando aproximaciones y alejamientos. 
 
Palabras clave: Drogas. Prohibicionista. Políticas Públicas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 13 
2 DETERMINANTES PARA A CRIMINALIZAÇÃO DAS 
DROGAS E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO 
CONTEXTO LATINO-AMERICANO ............................................. 20 
2.1 DROGAS COMO MERCADORIA E SUA 
REPRODUÇÃO SOCIAL ................................................................. 21 
2.2FUNDAMENTOS SOCIOECONÔMICOS E MORAIS 
DO PROIBICIONISMO E SUA MANUTENÇÃO ......................... 31 
2.3 POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS NO 
CONTEXTO LATINO-AMERICANO ............................................ 40 
3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DROGAS NOS CONTEXTOS 
BRASILEIRO E URUGUAIO ............................................................ 51 
3.1 FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO E 
URUGUAIO: CAMINHOS PERCORRIDOS E A CONSTRUÇÃO 
DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS ................................................. 51 
3.1.1 O trajeto brasileiro na formação de sua política 
sobre drogas ................................................................................. 52 
3.1.2 Construção histórica de um Uruguai 
progressista .................................................................................. 64 
3.2 CICLO DE MUDANÇAS E CONTINUIDADES: O 
ARCABOUÇO LEGISLATIVO DE BRASIL E URUGUAI .......... 75 
3.2.1 A descriminalização e a despenalização do 
consumo de drogas ou porte para consumo pessoal ................ 81 
3.2.2 A oferta de tratamento para o uso prejudicial 87 
3.2.3 A oferta de serviços públicos de redução de 
danos ............................................................................................. 93 
3.2.4 A regulamentação do acesso à cannabis 
medicinal e o avanço na regulamentação da cannabis para uso 
adulto ............................................................................................ 97 
3.3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS ACERCA DA 
AVALIAÇÃO ATRAVÉS DOS EIXOS DE ANALISE ............... 100 
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................... 103 
REFERÊNCIAS ................................................................................. 107 
13 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
Drogas não são um fenômeno recente, o mundo já percorreu um 
longo caminho de tensões e conflitos no tratamento da temática em 
função do proibicionismo, da moralização e da criminalização quando 
regentes no tratamento desse fenômeno. As experiências de guerra às 
drogas desde o século XX não reduziram o crescimento da demanda ou 
produção e acabaram beneficiando o crime organizado. Geraram uma 
massa de encarcerados, centenas de milhares de homicídios, corrupção 
institucionalizada, obstáculo ao desenvolvimento social e econômico, 
HIV/AIDS e toda sorte de violações de direitos humanos. 
A classificação de drogas ilícitas ou lícitas teve pouca base 
científica. As leis contra usuários ainda não conseguem evitar a 
desproporcionalidade no controle e punição e as ações policialescas são 
aplicadas arbitrariamente contra populações pobres e mais vulneráveis e 
não têm impacto persuasivo relevante, marginalizando as comunidades 
mais pobres e fomentando abusos contra direitos humanos. Um novo 
enfoque no processo de dessecuritização tem base na descriminalização 
do uso de todas as drogas, com programas de prevenção, redução de danos 
e tratamento para o uso prejudicial. A repressão extrema à ponta do tráfico 
só destrói a população já marginalizada - mulheres e jovens são os que 
mais sofrem. 
A United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC, 2016, 
p.44) em 2016 observou que "o mercado global de drogas ilícitas foi 
avaliado em mais de 300 bilhões de dólares americanos por ano". Isso 
posto, faz-se pertinente apresentar de forma mais aprofundada a temática. 
As drogas são hoje um fenômeno global multifacetado. O termo “droga”, 
apesar de utilizado na farmacologia para qualquer substância que cause 
reação em um organismo, em tratados e convenções mais recentes que 
abrangem o tema, é utilizado para definir qualquer substância psicoativa 
controlada internacionalmente. Para Bergeron (2012) o termo designa 
uma substância, natural ou sintética, capaz de mudar os estados de 
consciência, sendo exemplos: a cannabis, a cocaína, a heroína, o ópio, o 
álcool ou os remédios psicotrópicos. Aqui o termo droga será utilizado 
para englobar as substâncias de uso apenas ilícito. 
A partir do século XIX e com mais força no século XX, 
principalmente no pós-guerras, o comércio ilegal de drogas toma maiores 
proporções, e a proibição e criminalização tanto do produtor, comerciante 
e usuário tornam a luta contra o fenômeno das drogas uma cruzada sem 
fim pela segurança pública dentro dos Estados e a nível regional e global. 
14 
 
 
O mercado global de drogas tem o poder de testar as fraquezas dos 
governos e também de se fundir a esses. Capturando seus mercados e a 
força de trabalho renegada às periferias da periferia global. A dinâmica 
“produção – tráfico – comercialização – lavagem de dinheiro – corrupção 
– repressão” transborda muitos significados. Os meandros envolvem 
questões econômicas e políticas, de construção e perpetuação de uma 
moral erigida em conservadorismo e jogos de poder. Na América Latina, 
esse mercado tem sido capaz de se adaptar a novos obstáculos 
apresentados por lideranças, autoridades e organizações. 
Esse mercado está fortemente ligado à economia capitalista 
global em simbiose com mandatos políticos e instituições financeiras em 
todo o mundo, faz girar engrenagens fundamentais no que diz respeito a 
circulação e acumulação do capital. Esse potencial como mercadoria e a 
liquidez real e extremamente volumosa que esse mercado mantém no 
sistema financeiro dita também a importância da manutenção de uma 
“guerraàs drogas”. A descriminalização e regulamentação das drogas 
ilícitas, em especial da cannabis, facilitaria seu controle, educação sobre 
uso prejudicial, tratamento, políticas de redução de danos e diminuição 
do consumo. A potência e ramificação do mercado das drogas ilícitas se 
junta ao forte moralismo seletivo e estigma, truncando a evolução de 
políticas mais progressistas para a temática. É preciso entender esses 
movimentos e também os caminhos já percorridos em seu enfrentamento. 
A partir dessa visão, esse estudo se propõe a debater qual o 
contexto de formação de políticas públicas para o fenômeno das drogas 
no Brasil e também no Uruguai, vizinhos no Cone Sul, mas que têm feito 
diferentes apostas sobre o fenômeno das drogas. Discutindo como ambos 
os países lidam com essa temática, buscando aproximações e 
afastamentos, tentando entender quais são os passos de um caminho para 
uma política sobre drogas alinhada com as discussões mais atuais. Brasil 
e Uruguai têm realidades de construção sócio-histórica bastante 
diferentes, mas compartilham determinantes que a América Latina 
enfrenta como produtora e local de trânsito de drogas. A força da pressão 
do centro contra a periferia global quanto à temática das drogas é 
esmagadora. Estudar quais os condicionantes que levaram os dois países 
(Brasil e Uruguai) a seguirem passos diferentes faz com que seja possível 
vislumbrar as dimensões das mudanças no paradigma proibicionista e 
quais barreiras impedem os avanços do tratamento do fenômeno de forma 
progressista. 
Nesse sentido, a reformulação do modelo proibicionista 
criminalizante e as estratégias de redução de danos e prevenção de uso 
prejudicial vêm se apresentando como uma alternativa para a guerra às 
15 
 
 
drogas e principalmente como uma forma de amenizar o gasto em 
estratégias contra o tráfico e o aumento do encarceramento. É possível 
identificar que as políticas para reduzir o tráfico e o uso prejudicial de 
drogas ilícitas têm sido baseadas na teoria de que as reduções 
significativas de fornecimento de drogas levariam à redução de problemas 
relacionados com as drogas. Porém, o que fica claro é que a guerra às 
drogas e o combate direto ao tráfico reduziram muito pouco os problemas 
sociais, econômicos e de crimes relacionados ao fenômeno. Isso porque a 
grande demanda por drogas ilícitas é contínua em todo o mundo. Milhões 
de pessoas querem e precisam das drogas e estão dispostas a romper o 
tecido social e violar a lei para obtê-las, e em muitos casos, arriscam suas 
vidas para consegui-las, as sociedades estão longe da abordagem ideal, e 
a proposta, dessa forma, é avançar na análise de duas experiências 
distintas. Estados com políticas em velocidades diferentes, tentando 
extrair pistas de para onde se caminha e como se está percorrendo esse 
caminho, nessa temática tão complexa. 
No intuito de compreender esse cenário e os objetivos 
propostos a seguir, no estudo confluíram leituras críticas, mas 
especialmente características da realidade multidisciplinar da formação 
do autor desse trabalho. Uma vertente mais crítica olhando para as 
políticas públicas e buscando trabalhar a questão social e os determinantes 
sócio econômicos como fundantes para essa análise e em colaboração 
uma visão mais ampliada dos aspectos que envolvem o sistema 
internacional e como os determinantes a nível internacional e as políticas 
que flutuam - centro – periferia - global transcendem e afetam de forma 
contundente as estruturas estudadas e como elas vem ou não se 
transformando. A primeira visão e influencia corresponde a formação a 
nível de pós-graduação em Serviço Social com foco em políticas sociais 
para América Latina e a segunda corrente de ideias que se misturam a 
primeira se construíram ao longo da graduação em Relações 
Internacionais. Essas duas formações e visões dançam juntas no mesmo 
ritmo aqui, a fim de colaborar com elementos que puderam fomentar a 
construção e o processo de elucidação dos objetivos da pesquisa que 
segue. 
Nos últimos anos, nos planos nacionais, Brasil e Uruguai 
iniciaram uma crítica aos efeitos do proibicionismo, ambos os países 
experimentaram nesse início do século XXI, com governos mais à 
esquerda, uma abertura à discussão para temas progressistas com a 
contribuições da criminologia crítica, da agenda de lutas dos direitos 
humanos e movimentos sociais. Porém, concomitante a essa tendência de 
descriminalizar o uso de drogas, o Brasil vem recrudescendo práticas 
16 
 
 
referidas ao mercado das drogas, gerando uma guerra de posição (LIMA, 
2012). Um descompasso muito grande entre uma lei positivada mais 
progressista, até certo ponto, e os resultados na ponta, com dados sobre 
encarceramento e morte assustadores. Nesse sentido, as dificuldades e 
inconstâncias em implementar políticas progressistas sobre drogas de 
forma mais assertiva motivam essa pesquisa. 
Tendo como objetivo principal, discutir as políticas públicas 
relacionadas ao fenômeno das drogas de forma ampla, desenvolvendo um 
estudo entre Brasil e Uruguai, analisando as mudanças do paradigma 
proibicionista criminalizante e a tendência do tratamento da temática no 
âmbito da saúde pública. Buscando-se contrastar através de análise 
documental, o arcabouço legal na temática das drogas de ambos os países, 
assim como planos, estratégias e programas que constroem o panorama 
de políticas públicas para a temática. 
Dessa forma, o intuito de desenvolver um estudo e ter duas 
realidades diferentes como Brasil e Uruguai, mas que compartilham 
proximidades e características que os países latino-americanos carregam 
historicamente vem da possibilidade de discutir como o tema está sendo 
debatido e quais os condicionantes e determinantes que levaram a 
diferentes velocidades nas políticas de descriminalização, 
regulamentação e tratamento no campo da saúde pública. Discutir de que 
forma e quais os meandros que impedem ou impulsionam a possível 
ruptura do paradigma proibicionista que barra o tratamento da temática 
como um problema de saúde pública e não de segurança pública é o cerne 
que justifica esse trabalho. 
Nesse sentido, a pesquisa tem como tema central o processo de 
transformação do paradigma proibicionista criminalizante que cerca o 
fenômeno das drogas. Debatendo os determinantes sócio-históricos, 
morais, econômicos e políticos que influenciam no processo de mudança 
ou manutenção desse paradigma. Realizando um estudo entre duas 
realidades sul-americanas, Brasil e Uruguai, e apresentando 
aproximações e afastamentos em relação ao tratamento da temática entre 
os dois países e os avanços no arcabouço legal de ambos no sentido da 
descriminalização e o tratamento da temática no âmbito da saúde pública. 
Dessa forma, o trabalho possui a questão central: como o 
paradigma proibicionista relacionado ao fenômeno das drogas vem 
mudando no Brasil e no Uruguai em relação à criminalização do usuário 
e o tratamento da temática no campo da saúde pública? 
Além disso, traz como intenções mais especificas: 
compreender os condicionantes e determinantes para construção de 
políticas públicas, observando as estruturas e os determinantes sócio-
17 
 
 
históricos para formulação dessas em relação ao fenômeno das drogas; 
debater a evolução do arcabouço legal para políticas públicas sobre 
drogas no Brasil e Uruguai, correlacionando as experiências de 
descriminalização e as transformações e continuidades do paradigma 
proibicionista; identificar o tratamento do fenômeno das drogas na esfera 
da saúde pública em ambos os países, buscando compreender as conexões 
entre as mudanças no paradigma proibicionista e o fortalecimento da 
abordagem através das políticas de saúde. 
Esse trabalho se propõe a ser uma pesquisa documental do tipo 
qualitativa, de caráter descritiva-analítica, tendo como visão 
metodológica uma análise histórica crítica. Foram realizadas triagens nas 
principais bases de dados utilizando termosrelacionados ao tema a fim de 
delimitar trabalhos que tinham relevância para a pesquisa. Fontes 
primárias como documentos institucionais coletados de sites oficiais, tais 
como atas de reuniões, pareceres e relatórios também foram considerados 
no intuito de enriquecer o texto e buscar resultados mais próximos à 
realidade. 
O desenho documental que sustentou a matriz de estudo passou 
pela escolha de dois grandes conjuntos de documentos, são eles: o 
arcabouço legal de ambos os países, Brasil e Uruguai, em relação à 
temática das drogas e os planos nacionais de saúde, política de saúde 
mental e atenção psicossocial. No arcabouço legal incluem-se as leis de 
drogas, mas também as políticas nacionais antidrogas e os sistemas de 
políticas públicas. O marco temporal determinado para análise 
documental é o ano de 2006, com a implementação no Brasil do Sistema 
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), pois foi o 
período de maiores mudanças em ambos os países com relação à temática. 
Contudo, foram considerados alguns documentos imediatamente 
anteriores de todos os materiais analisados, a fim de conhecer a origem e 
estabelecer uma base de estudo com seus pares mais recentes. 
Faz-se necessário destacar que essa investigação não teve como 
intenção qualquer caráter reducionista e teve como objetivo traçar 
também uma análise histórica. O recorte temporal para o desenho 
documental tem o intuito de circunscrever um volume de documentos tais 
que se possa desenvolver análise com qualidade no espaço de tempo da 
investigação, levando também em conta o fato de que os principais fluxos 
de transformações no cenário das políticas públicas para o fenômeno das 
drogas, quanto a mudanças de paradigma, têm pertencido à última década. 
Nesse sentido, a fim de possibilitar o contraste entre documentos 
selecionados, quatro eixos foram modelados. Esses eixos representam 
caminhos de evolução em legislação e políticas sobre drogas e 
18 
 
 
correspondem a positivação de políticas públicas ou conjuntos de ações 
governamentais que aparecem com grande frequência como consenso 
entre pesquisadores da área, e principalmente, representam pontos chave 
na evolução de política sobre drogas pensados a partir da produção 
acadêmica crítica sobre o tema. 
Dessa forma foram tomados como eixos de análise da 
legislação e política sobre drogas dos países estudados: a 
descriminalização e despenalização do consumo de drogas ou porte para 
consumo pessoal; a oferta de tratamento para o uso prejudicial; a oferta 
de serviços públicos de redução de danos; e a regulamentação do acesso 
à cannabis medicinal e o avanço na regulamentação da cannabis para uso 
adulto. Esses Quatro eixos representam também caminhos percorridos em 
políticas públicas para a temática das drogas através de experiências que 
tem demonstrado sucesso e que são baseadas fortemente em estudos de 
saúde pública, políticas sociais, segurança, essas experiências reais, de 
países como Portugal e Holanda, principalmente de descriminalização 
total das drogas e aproximação da temática ao campo da saúde alicerçam 
a formação desses eixos para avaliação dos documentos selecionados. 
A análise documental dessa pesquisa teve por objetivo organizar, 
sintetizar e fornecer estrutura para dar base às discussões realizadas. O 
objetivo fundamental foi compreender globalmente os documentos, 
enriquecer a leitura das informações obtidas e interpretá-las de forma 
crítica. Sendo assim, depois da definição final dos documentos o material 
coletado foi sistematizado e organizado com a finalidade de torná-lo 
funcional. Concomitantemente, foi realizada uma leitura dinâmica e 
flutuante para a apropriação da linguagem dos documentos, demarcando 
assim os documentos que foram analisados de acordo com os objetivos 
pré-estipulados e os eixos previamente definidos. Posteriormente se 
realizou uma exploração do material, uma etapa essencial para riqueza 
das interpretações. E teve como objetivo a condensação das informações 
e o destaque dos documentos para a análise que culminou com a 
interpretação para realizar a análise reflexiva e crítica dos achados. 
O estudo se propôs enfatizar a análise dos condicionantes e 
fatores sócio-históricos fundamentais para a formação das políticas 
públicas sobre drogas no Brasil e no Uruguai, como elas se 
desenvolveram e seus dilemas e tendências atuais. Ficou evidente, nesse 
sentido, o constante alinhamento às dinâmicas impostas pelos acordos, 
modelos e instituições internacionais que formam o Regime Internacional 
de Controle de Drogas (RICD). O início de uma busca pela multiplicidade 
nas frentes de batalha com políticas como o Centro de Atenção 
Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) no Brasil e estratégias de 
19 
 
 
redução de danos, assim como a regulamentação da cannabis no Uruguai 
mostra que uma mudança de paradigma vem ocorrendo de forma 
paulatina. Essas mudanças enfrentam conservadorismo, questões 
religiosas e morais, interesses econômicos e políticos. Dessa forma, cada 
passo precisa ser avaliado em um campo tão permeado por ideias, 
discursos e práticas que apontam para diferentes caminhos. 
Para desvelar essas questões e também se debruçar sobre os 
documentos selecionados o trabalho se divide em dois capítulos que 
juntos buscam responder as indagações e alcançar os objetivos a que se 
propõe a investigação. O primeiro capítulo é dividido em três seções. Na 
primeira seção, é trabalhada a questão das drogas como mercadoria e 
como ocorre sua reprodução social, passando pelos diferentes 
determinantes do proibicionismo como paradigma e sua construção 
histórica. O estudo segue, na segunda seção desse capítulo, apresentando 
os fundamentos socioeconômicos e morais do proibicionismo e sua 
manutenção, buscando compreender como se enraizaram questões 
fundantes para a manutenção de leis e políticas conservadoras e 
criminalizantes. Por fim, na terceira e última seção, se discutem as 
políticas públicas sobre drogas no contexto latino-americano. 
O segundo capitulo, dividido em duas seções, propõe-se a estudar 
os documentos propostos como base para o debate dos passos de Brasil e 
Uruguai na formulação do arcabouço legal e planos para políticas 
públicas sobre o fenômeno das drogas. O capítulo tem como premissa 
debater como esses Estados vêm construindo suas bases para formulação 
de ações sobre a temática. Na primeira seção, aborda a formação dos 
Estados brasileiro e uruguaio, os caminhos percorridos por ambos os 
países e a construção das bases para políticas sobre drogas. Essa primeira 
seção se desdobra em dois segmentos: o trajeto brasileiro na formação de 
sua política sobre drogas; e a construção histórica de um Uruguai 
progressista. Ambos os segmentos trazem um panorama histórico 
buscando apontar de que forma se construíram as fundações e como 
ambos os países têm tratado a temática das drogas nas últimas décadas. A 
segunda sessão do capítulo busca explorar mudanças e continuidades no 
desenrolar dos últimos dez anos em políticas sobre drogas para ambos os 
países, utilizando, com o objetivo de organizar o debate, eixos de análise 
que representam questões centrais na evolução da base para política de 
drogas. Esses eixos de análise transbordam para a construção de 
segmentos do texto, pontuando, como já apresentado: a descriminalização 
e despenalização do consumo de drogas ou porte para consumo pessoal; 
a oferta de tratamento para o uso prejudicial no campo da saúde; a oferta 
de serviços públicos de redução de danos; e a regulamentação do acesso 
20 
 
 
à cannabis medicinal e cannabis para uso adulto recreativo. Os debates já 
desenvolvidos ao longo do texto se entrelaçam à leitura crítica dos 
documentos nesses segmentos, buscando colocar lado a lado as 
experiências contrastadas de Brasil e Uruguai. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
21 
 
 
2 DETERMINANTES PARAA CRIMINALIZAÇÃO DAS 
DROGAS E CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO 
CONTEXTO LATINO-AMERICANO 
 
Para iniciar o debate proposto e tentar alcançar os objetivos 
delimitados, neste primeiro capítulo são trabalhados os conceitos da droga 
como mercadoria e como ela se reproduz em nossa sociedade; a relação 
entre o mercado das drogas, o capital e o sistema financeiro global; e 
como o ciclo de produção, consumo e repressão favorece ao sistema 
capitalista em sua manutenção. São discutidas as cicatrizes deixadas pela 
violência – fator orgânico desse mercado – mas também, em 
contrapartida, como essa dinâmica configura trabalho e vida. 
Posteriormente, são debatidas as questões morais e socioeconômicas que 
influenciam no tratamento do tema, pesando fortemente na construção do 
arcabouço legal e em como se formula políticas públicas sobre drogas. 
Aborda-se a seletividade correspondente, principalmente, à classe e à 
raça, e como o conceito de crime e criminalização das drogas se 
configurou. Por fim, neste mesmo capítulo aborda-se o processo de 
formulação de políticas públicas e como esse tem especificidades 
características dos países latino-americanos no que diz respeito ao 
fenômeno das drogas. 
 
2.1 DROGAS COMO MERCADORIA E SUA REPRODUÇÃO 
SOCIAL 
A materialização da droga como produto e mercadoria percorre 
não somente as vias das necessidades criadas, transmutadas e enraizadas 
na sociedade, mas também as vias da formação e manutenção de uma 
economia estrutural e ramificada, condensada em simbiose com o 
capitalismo global – a forma como a acumulação se movimenta e gira 
economias no norte e sul do globo formal e informalmente. 
Sendo uma mercadoria, a droga, na sociedade capitalista, como 
coloca Marx (2008), é vendida para outro não para adquirir outro bem de 
consumo, mas para produzir valor (capital), substituindo-a pela 
mercadoria dinheiro. É o capital acima de tudo que faz girar a produção e 
a circulação das drogas, da forma como esse ciclo se caracteriza hoje. Ao 
se considerar que os produtos consumidos como drogas constituem valor 
para o capital, ou seja, são mercadorias, elas necessariamente precisam 
ser realizadas nas esferas da produção e da circulação. Marx afirma que 
“[...] a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-
se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente 
22 
 
 
considerada, é a forma elementar dessa riqueza” (MARX, 2008, p. 57). 
Marx ainda escreve que a mercadoria não é apenas um produto, ela é, 
“antes de mais nada”, [...] um objeto externo, uma coisa que, por suas 
propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza 
destas, inclui-se aí desejos e fantasias. Não importa a maneira como a 
coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de 
subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de 
produção (MARX, 2008, p. 57). 
Nesse sentido, um produto é mercadoria à medida que cria valor 
social para outros: uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano 
sem ser mercadoria. Quem, com seu produto, satisfaz a própria 
necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar 
mercadoria, é mister não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para 
outros, dar origem a valor-de-uso social. “[...] O produto, para ser 
mercadoria, tem de ser transferido a quem vai servir como valor-de-uso 
por meio de troca [...]” (MARX, 2008, p. 62- 63). 
A droga em todas as suas faces e usos não pode ser descolada da 
vida na comunidade humana, mas o que se pretende destacar aqui é que 
as drogas como valor para o capital, a partir da década de 1970, tem se 
realizado, nas esferas da produção e da circulação, de uma forma muito 
mais intensa, um produto é mercadoria se for produzido e reproduzido 
mais de uma vez, repetidamente. Ocorre, no entanto, que a mercadoria é, 
ao mesmo tempo, valor-de-uso e valor-de-troca, isto é, possui um duplo 
caráter. O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre 
valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, 
relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-
de-troca parece algo casual e puramente relativo, e, portanto, uma 
contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à 
mercadoria (MARX, 2008, p. 58). 
Tem-se, portanto, que qualquer produto só se constitui como 
mercadoria ao se constituir como valor social de troca para terceiros. Por 
si mesmas, as mercadorias não vão ao mercado e nem efetuam trocas 
entre si. Isso só ocorre porque a decisão de fazê-lo parte é, efetivamente, 
de quem as possui: seus donos (MARX, 2008). Da mesma forma, as 
mercadorias drogas não entram na relação de troca por decisão própria. 
Como coloca Martins (2011, p.87), um pé de cannabis não caminha até o 
seu consumidor, oferecendo-se como um produto pronto a ser consumido. 
Tampouco um quilo de cocaína converte-se em dinheiro. Tal fato se dá 
por relações sociais capitalistas, pela decisão de quem produz e possui a 
mercadoria em convertê-la na mercadoria dinheiro e em valor e mais 
valia. As mercadorias drogas são emblemáticas porque elas não só 
23 
 
 
cristalizam trabalho humano e geram um mercado que, apesar de muitas 
ramificações, tem características singulares, mas sobretudo porque sua 
produção e circulação envolvem questões que afetam a base econômica e 
política dos Estados. 
O contínuo produção-circulação da mercadoria droga influi 
politicamente as decisões governamentais, o posicionamento do Estado. 
O mercado da droga acompanha um balé coreografado pelo quão 
determinante a produção, a comercialização, o consumo e as necessidades 
em saúde pública são importantes na dinâmica do funcionamento de cada 
Estado. Ocorre que a análise das drogas ilícitas nas esferas da produção e 
circulação é dificultada porque os dados estatísticos, disponíveis em 
diferentes fontes, a depender da metodologia adotada, são subestimados 
ou superestimados. 
A mera descrição de dados estatísticos não evidencia o que se 
esconde por traz desse movimento e, da mesma forma, nem sempre 
evidencia a magnitude dos interesses econômicos e políticos nele 
envolvidos. A produção ilegal das drogas, ainda que seja orientada para a 
circulação, difere da produção da mercadoria legal no sentido de que esta 
avalia com mais precisão a demanda efetiva (MARTINS, 2011, p.88). 
O que se tem ideia é que ao longo dos anos a produção mundial 
de droga vem crescendo, segundo o relatório anual do UNODC de 2018, 
nunca se produziu e se consumiu tanta droga. Contudo consumo e 
produção não andam juntos igualados Martins (2011, p.88) aponta 
principalmente as perdas decorrentes da política antidrogas (repressão) 
que se resolve, na esfera da produção, na fumigação manual ou química 
das áreas plantadas e, na esfera da circulação, com a apreensão de drogas 
em circulação, mas também a queima de excedente por parte do mercado 
para manter os elevados valores. 
Esse abismo entre volume de produção e volume de distribuição 
e consumo é funcional para o mercado que ganha economia de escala e 
calibre para ultrapassar a barreira das políticas antidrogas, e só é funcional 
por conta da extrema exploração da maior parte dos produtores. 
Todos esses apontamentos demonstram o impacto que a 
produção e a circulação provocam na economia capitalista, ou seja, é 
preciso responder em que medida as drogas sustentam a acumulação 
capitalista. A resposta mais evidente a essa questão é alcançada quando 
se analisa a incidência do volume de capital proveniente das drogas na 
economia global. Contudo, para Martins (2011, p.94) faz-se necessário 
demarcar que a motivação econômica que move a produção e a circulação 
das drogas é uma particularidade da sociedade capitalista e que pressupõe 
relações de conflitos. Ao longo da civilização, a associação das drogas 
24 
 
 
aos conflitos quase sempre esteve presente, mas é bem verdade que no 
período que antecede o finaldo século XIX essa relação não evidenciava 
os determinantes econômicos e políticos claramente encontrados no auge 
da sociedade capitalista. 
Nesse sentido, os conflitos relacionados às drogas redesenharam 
e modificam contemporaneamente a geopolítica, isto é, as relações de 
poder entre Estados. Das Guerras do Ópio, do século XIX, aos conflitos 
atuais, a produção e a circulação das drogas têm gerado disputas de poder 
que se convertem em diferentes faces da violência: suborno, lavagem de 
dinheiro, execuções, corrupção de governos, tráfico de armas, tráfico de 
drogas, tráfico de órgãos e de seres humanos. Com interesses econômicos 
e políticos delimitados, os diversos conflitos envolvendo drogas e outras 
modalidades econômicas ilegais, mas lucrativas, se estendem por todas as 
regiões do planeta. 
Essa aproximação drogas e conflitos também tem sido 
emblemática para o entendimento da “economia das drogas” quando se 
considera que o narcotráfico, como já demarcado, envolve dispêndio de 
força de trabalho e capital visando à obtenção de mais capital na produção 
das mercadorias drogas. Nesse sentido, diverge de outras atividades 
criminosas como o roubo. As ações da criminalidade, como as 
imediatamente citadas, no sentido clássico não são atividades produtivas, 
mas “parasitárias” do sistema, porque não criam valor agregado. 
A produção das drogas pode ser considerada, como aponta 
Martins (2011, p.96), uma economia produtiva e a circulação – o tráfico 
da droga – dá-se fundamentalmente por meio de mecanismos de mercado, 
apresentando uma demanda e uma oferta. Além de possuir sistemas de 
transporte e de distribuição, conta com distintas empresas e se localiza em 
setores diferenciados da economia e tem desenvolvido mecanismos 
financeiros que permitem melhorar o controle e o manejo do capital 
Martins (2011, p.96) aponta o fato de que as operações 
financeiras (aplicações, empréstimos bancários, entre outras 
modalidades) são virtuais, ou seja, o dinheiro não existe materialmente, 
ou melhor, ele existe apenas potencialmente, com uma capacidade de 
poder “vir a ser”. As empresas que trabalham sob essa modalidade no 
mercado não produzem efetivamente nada. O contrário ocorre com as 
drogas. As drogas não são virtuais, mas reais, pois existem materialmente. 
Cifras assombrosas de dinheiro de várias nacionalidades podem ser 
recolhidas, ainda que paulatinamente, “lavadas” e convertidas na 
“economia legal”, o que exige uma ampla e dedicada conivência, quando 
não uma aliança de Estados, bancos, empresas financeiras, para realizar 
tais operações. 
25 
 
 
Nesse gancho, como já mencionado, o Estado, aquele que se 
beneficia dos negócios das drogas não faz esforços racionais para a 
erradicação das drogas em qualquer uma de suas esferas, seja na produção 
ou na circulação. Ao contrário, utiliza-se do discurso político, jurídico e 
transnacional das drogas para encobrir o impacto econômico e social que 
a cocaína, por exemplo, enquanto mercadoria, produz nas relações 
internacionais de poder. Se observadas as posturas estadunidenses 
historicamente e em razão da pressão sistemática que impõem aos países 
latino-americanos, mas também sobre a União Europeia, a impressão que 
se tem sobre o seu sistema financeiro é que é intransponível para os 
capitalistas das drogas, mas as informações de que se têm notícia 
demonstram exatamente o contrário. 
A retórica interna e externa perpassa o controle, porém nem 
sempre funcionam. Nos EUA todas as operações acima de dez mil dólares 
devem ser declaradas e verificadas. Porém, como coloca Martins (2011, 
p.100), o sistema bancário norte-americano é muito prolífero. Existem 
milhares de instituições bancárias diversas, sendo que a cada ano fecham 
algumas centenas e abrem outras tantas. Para controlar um grande volume 
de papel e um imenso número de informações, existe uma quantidade 
exígua de funcionários. Mesmo nos casos em que as ilegalidades são 
descobertas, as penalidades podem ser muito limitadas. 
Como aponta Martins (2011, p.101), ao contrário de intensificar 
o controle sobre as instituições financeiras, a resposta norte-americana foi 
o combate ao consumidor e ao pequeno traficante, isso com resultado 
financeiro duplamente custoso com força de segurança e encarceramento 
– dois mercados crescentes também muito explorados pelo capital. Do 
ponto de vista econômico, a alta lucratividade advinda do dinheiro das 
drogas relaciona-se intimamente com a própria natureza da ilegalidade. 
Quando se observa o movimento das drogas o que a princípio poderia 
supor uma oposição, de fato não o é, porque a taxa de lucro é elevada e o 
narcotráfico continua sendo dinâmico, apesar da sua ilegalidade. É por ser 
ilegal que a taxa de lucro é particularmente elevada. A economia das 
drogas é, então, muito dinâmica graças à ilegalidade e apesar dela. 
Quando esse capital especulativo circula num país 
subdesenvolvido, é natural que ele crie tremendo abismos sociais. Uma 
parcela da população vive muito bem, consumindo produtos de luxo, ao 
passo que a maioria vive muito mal. Esse mercado ilegal aparece então 
para uma população já marginalizada como fonte de renda, mas também 
de ascensão social, considerando-se que a população marginalizada vive 
geograficamente muito próxima à população que consome produtos de 
luxo. 
26 
 
 
A cocaína é um produto de exportação do Peru, da Bolívia e 
Colômbia. Nesse sentido, para essas economias subdesenvolvidas, esse 
sempre foi um mercado tradicional. E é difícil esperar que os governos 
locais empreendam, com grande entusiasmo, uma política de erradicação. 
Não é nem um pouco condizente com a realidade local se desconectar 
abruptamente da fonte de renda de uma parte bastante grande da classe 
trabalhadora e nem com a necessidade do Estado de complementar suas 
arrecadações diretas e indiretas propiciadas pelo mercado das drogas. 
Depreende-se, dessa forma, que a dicotomia ilegalidade e 
acumulação do capital é intrínseca e necessária ao ciclo 
produção/acumulação, essas duas facetas pertencem, de fato, à mesma 
moeda. Uma está entrelaçada à outra em um cenário de tensões e 
contradições e é preciso caminhar nos elementos que permitem entender 
a condenação das drogas, ao mesmo tempo em que a sua produção e 
circulação geram acumulação e circulação massiva de capital. 
Nesse sentido, em relação às drogas lícitas, considerando que 
estão inseridas no processo produtivo e lucrativo do chamado “mercado 
legal”, movimentos condenatórios existem, mas os conflitos daí 
decorrentes podem ser resolvidos na esfera legal. Em relação às drogas 
ilícitas, porém, considerando que são mercadorias e que precisam ser 
realizadas enquanto tais, por que a sua condenação? A resposta simples e 
direta poderia ser: a condenação dessas drogas existe porque trazem 
prejuízos para os indivíduos e para a sociedade. Se a resposta fosse 
somente essa, nesse caso não seria mais prudente regulamentá-las de 
forma criteriosa, submetendo-as a um controle de qualidade rígido, assim 
como é feito com as drogas lícitas? Sabe-se que, para a maioria das drogas 
ilícitas, boa parte dos seus malefícios reside nas impurezas e na mistura 
de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu 
processo de produção. As condições de uso, devido a sua ilegalidade 
também acarretam a outros problemas de saúde pública, como o uso de 
materiais contaminados (seringas e agulhas) e o descolamento da vida em 
sociedade por conta do medo e estigma. Em contrapartida, as drogas 
lícitas, largamente reconhecidas como passíveis de uso prejudicial e 
danosas à saúde dos indivíduos e também diretamente à sociedade – caso 
principalmente do álcool e todas as suas facetas – tem seu uso e produção 
controlados pelo Estado, níveis de concentração, de qualidade e massiva 
política de prevenção de uso prejudicial difundida. 
A retirada das drogas da ilegalidade, colocando-as sob o controle 
do Estado, atravésda taxação de impostos e da qualidade dos produtos, 
alinhados a políticas amplas de prevenção do uso e redução de danos 
eficientes não seria um caminho racional e economicamente viável para 
27 
 
 
a sociedade? Afinal, esse é, de fato, o recurso utilizado em relação às 
bebidas alcoólicas, ao tabaco e aos remédios. A quem interessa, então, 
manter na ilegalidade determinadas substâncias? A resposta a essa 
questão não é simples e muito menos direta. 
O desprendimento do ambiente místico, lúdico e cultural, 
tornando-se fonte de disputas e de lucros massivos, tem caracterizado as 
drogas como mercadorias nas esferas da produção e da circulação. Não 
se trata de solapar uma dificuldade lógica: se a produção gera a 
circulação/consumo de drogas ou se a sua circulação/consumo estimula a 
produção. Como já assinalado, o consumo de drogas, propriamente dito, 
envolve usos e contextos muito diversos. Ao se adotar a perspectiva de 
que a produção gera ou estimula o consumo, a política de enfrentamento 
às drogas recairá sobre a produção, fundamento da política vertical do 
Norte para o Sul global de penalizar os Estados produtores de drogas, em 
especial latino-americanos. Por outro lado, se a tese adotada é a de que 
uma disposição para o consumo estimula a oferta, elementos estruturantes 
no modo de produção e acumulação capitalista, que fazem parte do jogo, 
serão relativizados. A tarefa, portanto, é entender as drogas como uma 
produção social, historicamente demarcada e que, no âmbito da sociedade 
capitalista, o lúdico, o místico ou o cultural se mantêm, mas não são os 
elementos que estruturam a produção e a circulação das drogas. 
Com a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII e 
intensificada no século XIX, o uso do álcool destilado passa a ser descrito 
como útil não apenas para atividades lúdicas ou alimentícias, como foi o 
caso da cerveja. A bebida alcoólica passa a ser uma referência, ou seja, 
um artifício para entorpecer a dura realidade da classe trabalhadora, como 
observa Friedrich Engels (2008). Na Inglaterra, o deslocamento da 
população para as cidades acelerou o seu crescimento de forma 
desordenada, levando à aglomeração em torno dos centros industriais. O 
ritmo e o dispêndio da força de trabalho nas fábricas e nas minas, aliados 
à pobreza, à miséria, às longas jornadas de trabalho e aos baixos salários, 
contribuíram para que a classe trabalhadora, faminta, desprestigiada e 
explorada, recorresse, sem grandes subterfúgios, a um dos mais acessíveis 
meios de amortecimento de sua condição social – o álcool. 
Além das condições insalubres das habitações dos operários, 
Engels (2008) enfatiza também a má alimentação da classe trabalhadora, 
indicando que as condições materiais de vida dos trabalhadores 
contribuíram para que encontrassem no álcool um entorpecimento 
momentâneo para a dura realidade de suas existências: 
Todas as ilusões e tentações juntam para induzir os 
trabalhadores ao alcoolismo. A aguardente é para 
28 
 
 
eles a única fonte de prazer e tudo concorre para 
que a tenham à mão. O trabalhador retorna à casa 
fatigado e exausto; encontra uma habitação sem 
nenhuma comodidade, úmida, desagradável e suja; 
tem a urgente necessidade de distrair-se; precisa de 
qualquer coisa que faça seu trabalho valer a pena, 
que torne suportável a perspectiva do amargo dia 
seguinte. Nessas circunstâncias, como poderia o 
trabalhador deixar de sentir a atração pela bebida, 
como poderia resistir à tentação do álcool? Em tais 
circunstâncias, ao contrário, a necessidade física e 
moral leva uma grande parte dos trabalhadores a 
sucumbir ao álcool. [...] esses e cem outros fatores 
que operam tão fortemente não nos permitem, na 
verdade, censurar aos operários sua inclinação para 
o alcoolismo. Nesse caso, o alcoolismo deixa de ser 
um vício de responsabilidade individual; torna-se 
um fenômeno, uma consequência necessária e 
inelutável de determinadas circunstância que agem 
sobre um sujeito [...] aqui a responsabilidade cabe 
aos que fizeram do trabalhador um simples objeto 
[...] (ENGELS, 2008, p. 142). 
O contexto de flagelamento da classe trabalhadora marginalizada 
e apartada de entretenimento, lazer ou informação sobre saúde cria um 
contexto prolifico, não somente para o uso do álcool como escape da 
realidade, mas também como gatilho para o mercado fomentar a busca e 
criação de novas substâncias a fim de diversificar o mercado, aumentando 
as possibilidades de lucro e circulação do capital. É preciso reafirmar que 
drogas não são novidade mesmo para o século XIX, já existiam há 
milhares de anos, contudo o contexto da formação das grades metrópoles, 
circulação e concentração de pessoas e mercadorias, agregados às novas 
condições e dinâmicas da vida pós-Revolução Industrial levaram o uso 
prejudicial de drogas a um nível nunca antes experimentado. 
Conforme Escohotado (1994), na virada do século XIX para o 
século XX, por volta de 1900, já era possível comprar drogas hoje 
consideradas ilícitas facilmente, tanto na América, como na Ásia e na 
Europa. Afirma o autor que, de propaganda livre, as drogas até então não 
eram objeto de intervenção jurídica, político e ético-social, ainda que 
houvesse vozes discordantes protestando contra a liberdade reinante. Para 
além do gosto individual ou coletivo que os tornavam atraentes ou não, o 
elemento determinante para a permanência ou a decadência desses 
produtos no seio da sociedade da época, ao que tudo indica, foi o 
econômico. 
29 
 
 
Afirma Escohotado (1994) que o século XIX marca também o 
fato de as drogas vegetais terem transitado do seu “elemento mágico”, 
invariavelmente relacionado a ritos, mas é do século XX o ponto de 
inflexão em relação às drogas: de “elemento mágico” para elemento 
maldito. Circunscritas a uma forma de abordagem não proibitiva para um 
contexto proibitivo, a relação do indivíduo com as drogas vai sendo 
demarcada pela intolerância social e pelo banimento do seu uso em 
espaços públicos – como forma de socialização do lúdico, do cultural e 
até como símbolo de status – para espaços privados, determinadas festas, 
guetos e porões do “submundo” marcados pelo prazer e pelo estigma. 
Estigma aqui evoca como referencial teórico o sociólogo 
canadense Erving Goffman, que define estigma como um atributo 
incongruente e um estereótipo que tem a potencialidade de colocar sobre 
uma pessoa a desacreditação social e moral. Esta está composta por vários 
elementos arraigados: “o poder e dominação social”, “as normas 
socialmente definidas” e “os atributos diferentes aos outros presentes no 
intercâmbio social”. Sendo atributo profundamente desacreditador dentro 
de uma interação social particular, que reduz simbolicamente uma pessoa 
completa e normal para uma pessoa com características questionadas e 
diminuídas no seu valor social (GOFFMAN, 1982). 
Essa mudança, que se processa na forma como a sociedade lida 
com as drogas, não pode ser tomada apenas na sua aparência, na sua 
superficialidade. Embora ela faça parte de relações construídas 
socialmente, tomá-la na sua imediaticidade não esclarece, e não explica 
em si os fundamentos das drogas como mercadorias, da mesma forma que 
não explica, e não esclarece a racionalidade existente na organização do 
mercado das drogas. Os agentes do mercado das drogas ilegais são 
agentes racionais tanto quanto os capitalistas inseridos no mercado legal 
da produção e da circulação de quaisquer outras mercadorias. 
O mercado das drogas é formado de agentes racionais e que 
definem momentos de necessária colaboração ou não, formando redes. 
Para os autores, o uso de recursos como a violência e a capacidade 
corruptiva são partes constitutivas dessa racionalidade. O senso comum 
tende a compreender que o agir do mercado, sobretudo pelo uso da 
violência, é carregado de irracionalidade de onde interagem criminosos 
puramente temperamentais, mas isso não é verdade. Sugerem os autoresque, diferentemente do que ocorre num mercado legal, onde as ações dos 
capitalistas são respaldadas pela ordem econômica e pela ordem jurídica, 
no mercado ilegal há uma clara contradição entre essas duas ordens, os 
valores e interesses que motivam a ação dos empresários ilegais se 
sustentam em uma ‘situação de interesses’ que parte de uma ordem 
30 
 
 
econômica do tipo capitalista. O imperativo categórico de maximização 
dos benefícios se mostra, neste caso, de forma contundente, sem nenhuma 
ambiguidade. O mercado ilegal não é então a cara oposta da racionalidade 
capitalista, é a forma mais descarnada que podem adquirir esses valores. 
Poder-se-ia dizer que o mercado ilegal é uma ‘radicalização’ dessa lógica 
capitalista que não suporta adversários ou opositores para a realização de 
seus fins. 
Na falta de um aparato legal para dirimir conflitos e questões 
contratuais, entra o recurso à violência e a corrupção de autoridades. 
Nesse sentido, como coloca Martins (2011, p.61), o uso da violência e o 
constante choque entre o mercado das drogas e a segurança de Estado 
decorre, em boa medida, em razão da própria ilegalidade das drogas. O 
vazio jurídico-formal, isto é, a inexistência de mecanismos legais aos 
quais possam recorrer os capitalistas das drogas para resolver os conflitos, 
impõe a violência. A situação de anarquia do mercado das drogas gera um 
ambiente prolifero para a política do “olho por olho, dente por dente”. O 
combate a essa violência é um dos pilares da massiva guerra às drogas. 
Uma cruzada que insiste em apontar muito baixo suas armas, enquanto o 
mercado se encontra verticalizado ao extremo em simbiose com governos 
e instituições financeiras mundo a fora. De fato, não há uma 
“irracionalidade” nessa relação, posto que as drogas, nas esferas da 
produção, da circulação e também da repressão, estão inseridas no 
processo de produção e reprodução das relações sociais capitalistas. 
A estratégia de combate levou a uma guerra, cujos extremos 
foram as operações militares contra os pequenos agricultores de cultivos 
ilícitos, a fumigação química de cultivos ligados às drogas, o 
encarceramento em massa de usuários e pequenos distribuidores e até a 
pena de morte para os transgressores em alguns países. A proibição das 
drogas ilícitas pôs o mercado desse lucrativo comércio em mãos de 
grandes organizações criminosas e criou gigantescos fundos ilegais que 
estimulam corrupção e conflitos armados em todo o mundo. Como já 
apontado, a política de enfrentamento às drogas tem estimulado mercados 
e também usuários, colocando em cheque qualquer racionalidade para 
enfrentamento real do tema. O que temos hoje na maioria dos países é 
uma política bélica repressiva que estimula o tráfico, marginaliza quem 
se insere nesse mercado, estigmatiza usuários, afastando qualquer forma 
de controle, prevenção e tratamento. Gera assim uma prática de 
“seletividade punitiva” e, no Brasil, relaciona-se à caracterização 
daqueles que são determinantemente mais suscetíveis à entrada nesse 
mercado ilegal, pretos, pobres, periféricos têm vaga nesse varejo forjado 
pela desigualdade, marginalização e estigma geopolítico. Nesse sentido, 
31 
 
 
em sequência buscar-se-á apresentar mais detalhadamente como esse 
mercado e seus desdobramentos criam em toda América Latina um 
cenário de diversidade em políticas públicas de enfrentamento, que 
conectado aos determinantes globais, encaminhou-se para frentes de 
batalha desastrosas, gerando marginalização, encarceramento e mortes. 
 
2.2 FUNDAMENTOS SOCIOECONÔMICOS E MORAIS DO 
PROIBICIONISMO E SUA MANUTENÇÃO 
A formulação de políticas públicas sobre drogas perpassa 
diversas questões, contudo para entender o paradigma proibicionista e a 
criminalização do uso de drogas é essencial debater os fundamentos da 
moral. Definir os conceitos de moral, moralidade e moralização é algo 
impossível sem a abertura e interesse do pesquisador para a 
experimentação de uns óculos com muitas lentes diferentes. Tentar-se-á 
abordar esse objeto e sua relação com a criminalização das drogas, através 
de uma visão filosófica, sociológica e política. O dicionário filosófico de 
Abbagnano (2007) descreve o termo moral, primeiramente, como 
sinônimo de ética. Em seguida, como objeto da ética – conduta dirigida 
ou disciplinada por normas. Destaca-se que a palavra tem dois 
significados, correspondentes aos do substantivo moral: atinente à 
doutrina ética, e como adjetivo atinente à conduta e, portanto, suscetível 
de avaliação, para indicar uma atitude moralmente vaporável, mas 
também objetos positivamente valoráveis. É mencionado que em inglês, 
francês e italiano, esse adjetivo posteriormente passou a ter o significado 
genérico de “espiritual", que ainda conserva em certas expressões, por 
exemplo, na expressão "ciências morais" que são as "ciências do espírito". 
Para definir o conceito de moralidade o texto designa-o como caráter do 
que se conforma às normas morais. No sentido hegeliano, a moralidade 
distingue-se da “eticidade” por ser a "vontade subjetiva", ou seja, 
individual e desprovida de bem, enquanto a eticidade é a realização do 
bem em instituições históricas que o garantam. Kant contrapôs a moral à 
legalidade. A última é a simples concordância ou discordância de uma 
ação em relação à lei moral, sem considerar o móvel da ação. A moral ao 
contrário, consiste em assumir como móvel de ação a ideia de dever 
(ABBAGNANO, 2007, p. 682). 
Em “A Crítica da Razão Prática” (1788), Kant discute o 
problema moral. Essa obra seria a base do seu sistema de filosofia moral 
que inclui a “Metafísica dos Costumes”. Por apresentar o princípio 
fundamental da moralidade a partir da análise do conhecimento moral 
comum, essa obra serve como introdução à sua concepção de liberdade 
(RAMOS, 2012. p.161). A concepção kantiana de moral e moralidade 
32 
 
 
aponta no sentido contrário da concepção do senso comum: liberdade não 
é agir sem nenhuma regra, mas ser capaz de seguir uma regra livremente 
imposta pela própria razão. Para Nodari (2016), Kant está convencido de 
que o gênero humano caminha rumo à perfeição, sendo a mesma não 
determinada pela natureza, mas pela liberdade, lembrando, contudo, que 
o processo de moralização não prescinde da natureza, não se deixando, 
por sua vez, determinar pela natureza. A natureza pode apenas preparar o 
caminho para o desenvolvimento da moralidade. “A natureza colocou no 
homem as disposições necessárias para o seu avanço e desenvolvimento, 
porém o trabalho de transformá-las de simples disposições em fatores 
morais é particular ao homem” (MENEZES, 2000, p. 270). 
Nesse sentido, o chamado imperativo categórico, segundo 
Ramos (2012), é necessário devido ao conflito que existe entre a razão e 
os princípios de determinação sensíveis. A razão prática é somente pura 
e natural, não é empiricamente limitada. A razão limitada pela experiência 
sensível fornece regras, isto é, imperativos hipotéticos que representam a 
necessidade de uma ação possível como um meio de alcançar 
determinado fim. Já um imperativo categórico é bom por si mesmo 
porque pode ser universalizado, independente das circunstâncias ou de 
sua realização. 
Assim como “deveres” hipotéticos são possíveis porque temos 
desejos, “deveres” categóricos são possíveis porque temos razão. Deveres 
categóricos são derivados de um princípio que toda pessoa racional tem 
que aceitar: o imperativo categórico (RACHELS, 2013). Uma ação 
praticada por dever tem o seu valor moral não pelo propósito que com ela 
se quer atingir, nem depende da realidade do objeto da ação, mas somente 
do princípio do querer segundo o qual a ação foi praticada. O dever é 
então “a necessidade de uma ação por respeito à lei” (KANT, 2009, p. 
127). Os requerimentos morais são categóricos. A regra moral não é, por 
exemplo, que você deve ajudar as pessoas se você se importa com elas. 
Em vez disso, a regra é que você deve ajudar as pessoasnão interessando 
quais sejam os seus desejos. Esta, por sua vez, consiste em valer para 
todos, portanto, na sua universalidade que é, assim, o conteúdo da lei. 
“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao 
mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 
2008, p. 51). 
De acordo com Kant, então, nosso comportamento deve ser 
guiado por leis universais, as quais são leis morais verdadeiras em 
quaisquer circunstâncias. A obediência deve interiorizar-se – tornar-se 
obediente a si próprio – quer dizer, adquirir autonomia, o que significa 
liberdade. A máxima correspondente consiste em sempre pensar por si 
33 
 
 
próprio. E assim, não é mais do exterior, mas do interior que a ação deve 
proceder. Segundo Ramos (2012), Kant deixa transparecer que a 
submissão à lei moral não retira do homem sua dignidade, pelo contrário, 
enquanto essa submissão tem a forma da autonomia, ela é o fundamento 
da dignidade da natureza humana e de todo ser racional. Isso porque só o 
ser racional pode participar na legislação universal para a sociedade. 
O princípio máximo da filosofia prática de Kant 
supõe de certa forma a ideia de uma comunidade 
ética que constitui a totalidade de um reino dos fins 
– é a ela que se refere o procedimento de 
universalização das máximas que está na base do 
imperativo categórico (RAMOS, 2012, p.167). 
A forma tematizada pela doutrina do direito é a da limitação 
recíproca das liberdades; a matéria da ética é o fim proposto pela razão, 
que é ao mesmo tempo um dever. É então no domínio do direito, que trata 
da questão do justo, que Kant formulará sua doutrina política. Não 
surpreende, portanto, que sua teoria do Estado consiste na formulação de 
uma concepção normativa do chamado Estado de direito: o Estado que 
tem como função principal e específica a instituição de um estado 
jurídico, ou seja, a “instituição e a manutenção de um ordenamento 
jurídico como condição para a coexistência das liberdades” (BOBBIO, 
1987, p. 135). 
Kant (2009) destaca a fonte da moral no individuo, sua ação 
racional o leva a uma ação moral, cada um constrói a lei que segue a partir 
da sua vontade e razão. Mas como a moral se manifesta no coletivo, o 
processo de moralização e a construção de estrutura moralizante que vai 
para além das relações do direito como regulador. Nesse sentido, a teoria 
das representações coletivas de Durkheim (2008) pode colaborar para o 
intuito de extrapolar a análise do conceito de moral, e mais à frente, sua 
relação com a construção da criminalização das drogas. 
Para Durkheim (2008), os fatos sociais têm a propriedade de se 
sobreporem as consciências individuais, o caráter moral nesse sentido faz 
parte da existência social. As representações estão presentes em todas as 
subjetividades que participam em alguma instância da construção da 
realidade compartilhada que é a sociedade. O hábito, e o que é usual, ou 
correto, se sedimentam como curso apropriado de interação social, 
gerando consigo o caráter moral do fato social. O hábito limita 
drasticamente o ilimitado arsenal de ações humanas. 
O mundo da ordem emerge com as instituições e com ele as 
definições do que pode ser daninho à manifestação de ordem. Contudo, a 
conduta que destrói a ordem é tão presente como fato social como o 
34 
 
 
próprio controle. Dessa forma, não causa estranheza – a conduta fora de 
ordem está dentro de certa ordem, faz parte do aglomerado de fatos 
sociais, da cortiça que representaria nossas relações, que olhada de longe 
parece homogênea. Mesmo assim, as ações ofensivas aos valores da 
ordem botam em risco o “caráter sagrado” da norma moral (DURKHEIM, 
1970, p. 244). A moral a que se refere Durkheim, nesse sentido, é caráter 
próprio da sociedade, entendida como conjunto de ideias e crenças, 
representações coletivas, que ordenam a conduta dos indivíduos. Dever e 
obrigação são, dessa forma, instituições que ao contrário do que é 
observado em Kant, não são inerentes do indivíduo por meio do seu 
pensamento racional, são sim dadas pelas manifestações do curso da ação 
social, que o indivíduo deve seguir para que não lhe pese a punição por 
inadequação. 
A ordem como um fenômeno que se torna objetivo nos fatos 
morais da sociedade é colocada como regras de ação reconhecíveis, por 
certas características distintivas, sendo possível, portanto, observá-los, 
descrevê-los, classificá-los e procurar certas leis que os expliquem 
(DURKHEIM, 1977). Diferente da filosofia kantiana, que buscava 
entender o problema ético através do indivíduo como singular, em 
Durkheim, o código moral se assenta sobre a forma peculiar de 
convivência humana em sociedade. Nesse contexto, as leis expressam e 
regulam a moral em diferentes graduações. A intensidade da expressão da 
lei pode ser verificada a partir da forma como diferentes sanções são 
delimitadas para a mesma “quebra de ordem” em diferentes modelos de 
sociedade. 
No segmento cabe aprofundar a relação ordem e desvio e a forma 
como Durkheim identifica crime como sendo atos que invocam contra o 
seu autor uma reação específica por parte da sociedade: a punição 
(DURKHEIM, 1977). Durkheim retira do ato qualquer característica 
intrínseca que o faça criminoso. O crime se dá, dessa forma, quando é 
percebido e repudiado pela moral social e não quando foi materializado 
como ação. O conteúdo dos atos considerados criminosos pode variar 
muito, e para o autor a característica comum a todos os crimes é o fato de 
transgredirem crenças morais coletivamente adotadas e que por isso 
ensejam uma punição. 
A punição é a resposta da sociedade pela ofensa a valores morais 
compartilhados. É a repressão de moralidade especificas com base em 
castigos determinados, “não o reprovamos porque é um crime, mas é um 
crime porque o reprovamos”, os atos e fatos considerados crimes variam 
no tempo e no espaço, a punição é o elemento definidor. Nesse sentido, 
diferente da visão kantiana de indivíduo como legislador de si e imanente 
35 
 
 
de regras universais, Durkheim tenta demonstrar que os fatos sociais são 
independentes frente aos processos individuais sobre os quais assumem 
caráter normativo. 
A primeira norma surge antes da criação de Eva: 
não comer da árvore da vida. Liberdade absoluta: 
tudo poderia ser utilizado, menos o fruto da árvore 
do saber, do bem e do mal. A primeira regra da 
criação já veio com o primeiro código penal: “No 
dia em que comeres dela, morrerás” (Gênesis 
2:17). Criar punição antes da infração indica que já 
se sabe da dificuldade na observação da regra. 
Quando estabeleço o que acontece com quem não 
obedecer, já reconheço que obedecer é uma opção 
e que é humano enfrentar a regra (KARNAL, 2014, 
p. 34). 
Karnal coloca que a norma seduz para a possibilidade da 
infração. De alguma forma, o erro, o pecado e a infração são criados pela 
norma que os institui. A gramática estabelece a medida que torna alguém 
mau usuário da norma culta. Quem escreve uma gramática está criando 
os incultos da língua. A regra é a mãe do infrator. Para o autor, na cabeça 
do legislador estaria uma vontade de exaltar a regra e sua sabedoria, pois 
pela transgressão, ficariam evidentes a reta intenção e a justiça do autor 
da regra. Norma e erro; lei e pecado, esse binômio seria inseparável. 
Parece uma relação de causa e efeito. A regra parece só ter validade e 
brilhar no momento em que um infrator ingressa na ratoeira da moral 
(KARNAL, 2014). 
A sociedade tem então certamente um caráter moral e o crime 
está implícito em sua estrutura, sendo o crime um elemento da 
normalidade do corpo social. Dessa forma, que função teria o crime nesse 
corpo? Nesse caso, a aglutinação de certa consciência coletiva ao redor 
da punição e a manutenção de valores morais. O crime indica que nem 
todos os indivíduos estão constrangidos à ordem. Partindo dessa 
discussão, em Durkheim é possível depreender que atos punidos como 
imorais não possuem em seucerne nada que os faça imutavelmente 
distintos dos atos morais em sua natureza, sendo a caracterização de crime 
devida à punição, e esta ao rompimento do tecido da ordem moral. A 
partir dessa discussão é preciso entender como o uso de drogas passou a 
se caracterizar como uma quebra da ordem e como uma ameaça à moral 
construída pela sociedade. 
O consumo de drogas é ainda considerado crime em muitas 
sociedades e faz parte do acervo dos fatos que lesam a moral de quase 
todas. Usuários continuam sendo tratados como degenerados, recebendo 
36 
 
 
tratamento que varia do encarceramento psiquiátrico ao penitenciário. A 
associação do consumo a desequilíbrios psiquiátricos coletivos, como se 
determinados grupos fossem mais suscetíveis, é recorrente no imaginário 
moral. A regra proibitiva do comércio e consumo de drogas continua por 
outro lado a ser quebrada e vigorosamente transgredida em todas as 
sociedades nas quais foi estabelecida. 
O que podemos observar é o fato de que substâncias como a 
cannabis, cocaína e o ópio, por exemplo, foram utilizadas com fins 
religiosos, medicinais e recreativos por muito tempo na história humana, 
sem qualquer rótulo de droga ilícita. Dessa forma, é interessante pensar 
como diversas substâncias passaram a ter essa caracterização que as 
rotulam como ilícitas tornando passíveis de regulação e desenvolvendo o 
modelo de repressão de oferta e demanda a partir de políticas públicas. 
A questão econômica nunca pode ser descolada da análise 
política, para Netto (1990). A compreensão do ordenamento político, 
incluindo quem faz e como se faz políticas e para quais interesses ela é 
formulada. Nesse sentido mesmo as definições apresentadas pelo direito 
moderno não englobam todas as substâncias com efeitos psicoativos ou 
que podem levar à dependência. Dessa forma, fica, como já mencionado, 
à mercê de convenções arbitrárias a categorização do que é droga ou não. 
As manifestações de toda sorte de substâncias que podem afetar o corpo 
humano, por vezes muito mais fortemente do que as chamadas drogas 
ilícitas, não são criminalizadas por não envolver os interesses econômicos 
por trás do tradicional comércio ilegal de drogas. 
Substâncias que alteram a percepção do ser humano (dele com 
ele mesmo ou com o ambiente onde está inserido), sejam alucinógenos, 
estimulantes, energéticos, etc., sempre foram uma realidade desde tempos 
imemoriais em nossa existência como indivíduos e sociedade. Seja a 
descoberta da fermentação, a folha de coca ou a mais recente droga 
sintética, o uso histórico e cultural da “droga” faz parte do mundo que 
criamos mesmo em seus primórdios. Mas foi apenas no período 
mercantilista de expansão massiva dos mercados e do capital que os usos 
das drogas se diversificaram e se expandiram, saindo da esfera de uso em 
pequena escala, ligado à cultura, se direcionando ao uso como 
medicamentos e para fins recreativos. Segundo Silva (2011) por volta dos 
séculos XVII e XVIII, o consumo de drogas ainda era pontual. Apenas a 
partir do século XIX, as técnicas de produção de substâncias alucinógenas 
foram aperfeiçoadas, sintetizaram-se as primeiras formas de cocaína e 
heroína, inicialmente utilizadas com função terapêutica em doenças. 
Sobre a expansão do mercado das drogas, as Guerras do Ópio, 
ocorridas entre 1839–1860, são um claro exemplo da atuação do capital 
37 
 
 
transcrito em política imperialista como fomentador do tráfico de 
substâncias. Nesse período, a Inglaterra buscava diminuir seu déficit 
comercial com a China por meio do comércio de ópio oriundo da Índia, 
sua colônia. Com a proibição da venda da substância por parte do governo 
de Pequim, a Inglaterra viu seu lucrativo mercado de ópio ameaçado e 
declarou guerra à China. Em 1729, o imperador Yun-cheng proíbe, pela 
primeira vez, o comércio de ópio com os europeus no intuito de impedir 
a troca comercial dessa mercadoria por produtos chineses como o chá, 
especiarias, seda, ainda que o cultivo de papoula permanecesse livre no 
império chinês. Já em 1793, o imperador Chia-Ching, alegando que o uso 
do ópio havia alcançado, membros da boa família, estudantes e 
funcionários (ESCOHOTADO, 1994, p. 71), proíbe não só a importação 
do ópio como também o cultivo da planta em todo o território chinês, o 
que favoreceu o seu contrabando. Em 1838, o imperador Tao-Kuang, 
diante do saldo desfavorável da balança comercial da China, busca 
conselhos entre seus ministros, mas, antes de se resolver a situação – 
legalizar o uso do ópio e o cultivo da papoula ou permanecer na 'linha 
dura' da proibição” –, o mandarim Lin Tse-Hsü lança ao mar em torno de 
1 400 toneladas de ópio armazenados em Hong-Kong, fato que provoca a 
sua destituição do cargo, bem como a declaração, pela Inglaterra, de 
guerra à China, tomando por base o atentado contra a liberdade de 
comércio. 
O Tratado de Nankin, de 1843, coloca fim a esse primeiro 
conflito (1839- 1842 – “Primeira Guerra do Ópio”), e obriga a China a 
abrir seus portos ao comércio inglês e à cessão da ilha de Hong Kong por 
cem anos à Inglaterra (a ilha foi devolvida em julho de 1997). O ópio 
permaneceu proibido, mas passados treze anos do tratado, ocorre a 
“Segunda Guerra do Ópio” (1856-1860), motivada pela transgressão ao 
Tratado de Nankin, sendo a China rendida em 1858, com o Tratado de 
Teientsing. Em 1880, a Companhia Britânica das Índias sofre um duro 
golpe com a legalização da importação e consumo do ópio, bem como do 
cultivo da papoula, e, em 1890, a China já produzia 85% da demanda 
interna do ópio (ESCOHOTADO, 1994). 
O império britânico que declarou guerra à China em favor do 
"livre comércio", à época, garantiu o monopólio internacional, consolidou 
o domínio no Extremo Oriente e implementou a prática comercial de 
substâncias psicoativas em larga escala (SILVA, 2011), tornando 
posteriormente os EUA o principal expoente na cruzada “moral” contra o 
consumo de drogas. Os EUA, em nível internacional, atuam a fim de 
controlar o comércio de ópio para fins não medicinais, tentando 
38 
 
 
principalmente conquistar espaço de manobra e poder econômico nos 
mercados do oriente, então dominado pelos ingleses e seu ópio indiano. 
Importante destacar que essas substâncias foram utilizadas tanto 
em guerras, quanto em movimentos missionários religiosos, criando 
situações de dependência ao mesmo tempo em que contribuiu para a 
expansão da indústria farmacêutica durante todo o século XIX. No início 
do século XX, testemunhou-se a popularização da cocaína, sobretudo nos 
Estados Unidos da América, sendo utilizada, inclusive, pelo exército 
norte-americano em grande escala. O movimento hippie, nas décadas de 
1960 e 1970, ajudou a popularizar e criar uma atmosfera de uso recreativo 
de substâncias como a cannabis e alucinógenos (LYRA, 2014). Apesar de 
o uso da cannabis ser descrita em herbários chineses de quase 5 000 anos, 
sofreu ao longo do último século um processo de criminalização. Ligada, 
principalmente, a questões racistas – negros e, posteriormente, mexicanos 
na sociedade norte-americana deveriam ser controlados e mantidos na 
ordem. 
No final da década de 1970, surge o crack, subproduto da cocaína 
altamente tóxico e barato, tornando as drogas mais acessíveis às camadas 
mais pobres da população. Durante grande parte do período abordado 
anteriormente, até o início do século XX, não existia a ideia de 
narcotráfico, criminalização, ou expressão de demanda de política 
pública, uma vez que a maioria dessas substâncias não era ilegalmente 
consumida. Ao contrário, não existia qualquer regulamentação, tampouco 
a noção das drogas como um problema. 
O comércio de drogas está intrinsecamente associado à expansão 
comercial internacional, seja na forma do colonialismo mercantilista, do 
capitalismo industrial e financeiro, ou nas cruzadas da guerra às drogas. 
O proibicionismo como pilar para o tratamento da temática é um dos 
componentes-chave para o grande desastre

Continue navegando