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Este trabalho foi escrito entre os anos 2016-2018, período que o Brasil sofreu o golpe jurídico-parlamentar-midiático que depôs a primeira mulher presidenta do país e, posteriormente, condenou ilegalmente o primeiro operário nordestino a ocupar a presidência da República. Em 2018, a jovem democracia completaria 30 anos, mas foi alvejada de morte no “estado de exceção” instalado, em que o Direito foi suspenso e reinou a arbitrariedade dos imperialistas. Os condenados do Sul do mundo lutam não só por uma segunda abolição, como também por uma segunda democracia, erigida pelo povo e para o povo. Dedico, portanto, este trabalho ao povo brasileiro, herdeiro direto dos povos originários, que, organizados em defesa dos sonhos de muitos, se levantou em massa e fez dos tempos sombrios longas primaveras de luta. Viva esta brava gente! AGRADECIMENTOS “Minha primeira lembrança de felicidade, quando era uma pirralha magrela e desgrenhada, é a de mexer ao som dos tambores...A música é um vento levado pelos anos, pelas lembranças e pelo temor, esse animal preso que carrego dentro de mim. (...) Dance, dance, Zarité, porque escravo que dança é livre...enquanto dança. Eu sempre dancei.” 1 Nesta dança de libertação da mente dos processos violentos de colonização e epistemicídio, há muitos braços que nos empurram para frente e encorajam a ocupação de espaços como esse. Agradeço primeiramente à minha família, em nome de meus pais, irmão e primas. Ao meu pai, por me entregar todo o apoio possível para seguir caminhando a passos largos, por ser a razão negra que conheço desde menina; à minha mãe, pela presença constante e amor cuidadoso; ao meu irmão, pelo companheirismo; às minhas primas Larissa e Natália, pela irmandade doce e amiga. Agradeço à minha orientadora Vanessa Berner, por aceitar entrar nesta jornada comigo, pelo acolhimento de portas abertas e por me propor lentes decoloniais durante o mestrado da UFRJ. À Riccardo Cappi, eterno orientador amado, por me apresentar a criminologia crítica, por brincar com minhas certezas, por nos fazer rebeldes contra a violência penal e pelo suporte fundamental desde as primeiras inquietações até o produto �nal desta pesquisa. Às professoras Marília Montenegro, Fernanda Rosenblatt e Carolina Salazar gratidão pela oportunidade de acompanhar a pesquisa “Entre práticas retributivas e restaurativas: A lei Maria da Penha e os avanços e desa�os do Poder Judiciário”. À CAPES, pela bolsa concedida que garantiu a exequibilidade deste trabalho. À Marcha Mundial das Mulheres, especialmente ao núcleo Rosa dos Ventos, por me colocar em movimento orientada pelo feminismo popular. À Consulta Popular como um todo, mas especialmente à do Rio de Janeiro, por me inserir nas lutas gerais do povo na construção permanente de um mundo novo. Grata pela solidariedade e pelas jangadas de esperança saídas para o mar. Agradeço, por �m, aos negros e negras em diáspora, pela chama que queima na busca por sobrevivência e luta pela liberdade plena, por operarem em mim esta força ancestral e adoçarem a memória dos tempos de resistência de ontem que inspiram a resistência de hoje. 1 ALLENDE, Isabel. A ilha sob o mar (1942). Tradução Ernani Só. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. APRESENTAÇÃO Bebo da poética das mulheres que pisam o chão descalças, sentem as pedras, a terra, suportam as estações e atravessam os tempos da história. Assim como Conceição Evaristo (2009, p.18) se vê no ato de transmitir a fala, “quando escrevo, quando invento, quando crio a minha �cção, não me desvencilho de um ‘corpo-mulher-negra em vivência’ e que, por ser esse ‘o meu corpo, e não outro’, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta”. Assim também me sinto e vejo no processo de interpretar o mundo, pisar nele e caminhar para transformá-lo, trilhos estes que não escolhi, mas me escolheram. Não sou mulher, sou mulheres. Minha consciência é plural, assim como meu sujeito. Carnes fatigadas, léguas e léguas de preterimentos, invisibilizações e silenciamentos. Carnes baratas do mercado ardem e exibem a fúria dos povos espoliados na hora da verdade: nesta terra em transe, nossa loucura é nossa consciência e está aqui na luta, na resistência. É um tempo de guerra. Mas outrora representou paz para quem? A luta de classes é uma guerra constante e sentencia à morte os deserdados desde o seu princípio. É a partir deste sertão de corpos de mulheres, negros(as) e pobres empilhados que vou doar minha voz latina para compreender o funcionamento penal de estigmatização e aniquilamento com as populações marginais. Para entender a tônica das relações sociais no Brasil, urge compreender como operou a violência outrora colonial e, agora, capitalista/patriarcal/racista. Este mapeamento nos remete aos processos históricos de dominação e subalternização, orientados pelo projeto da modernidade a partir do eurocentrismo e dos mitos fundacionais de superioridade e inferioridade. Os dispositivos de poder e de ‘invenção do outro’ a partir da lógica binária/excludente, fruto da racionalidade moderna, foram fundamentados pela ideia de raça e �zeram da América Latina um lugar de extração, seja de riquezas, seja da vida dos povos. Essas vidas são extraídas, dentre muitas formas, pelo extermínio físico, pela coisi�cação, pela exploração do trabalho ou, através da pena por excelência do capitalismo, o encarceramento. A prisão reúne muitas formas de apagamento, representa a modernização das tecnologias punitivas que impõe novas roupagens, mas continua expressando que “a carne mais barata do mercado é a carne negra” (salve Elza Soares!) e pauperizada. As permanências autoritárias e racistas no continuum punitivo e na maneira de atuar do sistema penal atualizam as formas de encarceramento: o aprisionamento pela raça, pela classe, pelo gênero. O sistema penal se caracteriza por uma e�cácia instrumental invertida em que a função real não é combater (reduzir ou eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construi-la seletiva e estigmatizantemente, e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais de gênero, raça e classe. A ine�cácia do sistema penal é sentida também no âmbito de proteção das mulheres contra a violência, porque não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão do signi�cado da violência para gestão do con�ito, e muito menos para a transformação das relações de gênero. Assim, é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher e responde com o castigo, desigualmente distribuído e não cumpre as funções preventivas (intimidatória e reabilitadora) que se lhe atribuem. O avanço do capitalismo neoliberal aprofunda contradições sociais estruturais e re�na seus instrumentos de controle da vida das mulheres, seja pela condução natural do acirramento da luta de classes, personi�cada na dinâmica conservadora estampada nos interesses político-econômico- ideológicos, seja pelo lugar conferido ao Direito nesta lógica espoliativa: o de fortalecer uma política de gênero violenta. Para tentar sanar esta incapacidade protetiva, preventiva e resolutória dos crimes de gênero é que nos associamos àqueles e àquelas que defendem a multiplicação da prática da Justiça Restaurativa, pois que é processo participativo, democrático e formativo. A prática restaurativa foge à didática operacional do castigo como resposta reparadora ao crime, confronta a justiça penal tradicional a começar pela concepção de justiça e crime a partir da criminologia crítica, principalmente de quem é o criminoso e quem é a vítima, bem como da falência do sistema penal a partir das bases do abolicionismo penal, deslocando o senso comum teórico2 para a subjetividade por detrás do con�ito. É um Direito do encontro e do consenso, e não da força sancionatória,uma vez que foca na restauração das relações intersubjetivas e comunitárias afetadas pelo crime, na solução do con�ito, na reparação dos danos e dos traumas, na satisfação das partes (vítimas, infrator e comunidade). Forma de devolver o con�ito antes apropriado pelo Estado aos verdadeiros protagonistas, confere elemento participativo e democrático ao modelo restaurativo e descontrói uma ideia de justiça da ordem para uma justiça horizontal do debate. No entanto, sabemos que a ideologia sexista, classista e racista instrumentaliza os modos de agir nas relações materiais, consolidando direta ou indiretamente sistemas de dominação- exploração. Por ser assim, a questão que se coloca é: quais as condições de possibilidade de se realizar um procedimento restaurativo, fundado na igualdade, paridade e horizontalidade se entre as partes envolvidas já existe um poder hierarquizado pré-estabelecido socialmente pela ideologia de classe, gênero e raça? O patriarcado é associado ao capitalismo e ao racismo como fontes formais e materiais de produção de consenso opressor. Nesse sentido, foram analisadas as opressões através da transversalidade em que incorrem nos(as) sujeitos(as), pensando-as como um nó, na medida em que atuam conjuntamente e aprofundam a objeti�cação dos indivíduos, ao tempo em que demarcam que a violência é declarada, mas também simbólica e travestida nos discursos e modos de agir dentro e fora do sistema. Transdisciplinar por excelência, o tema da violência sexista focado na violência doméstica transita entre as categorias citadas, mas está �rmado na perspectiva de gênero e, portanto, da criminologia feminista. O sistema penal androcêntrico é contestado a partir das respostas dadas aos con�itos, de modo que entre as funções não-declaradas do sistema penal está a revitimização das mulheres submetidas ao processo penal. Da imersão nos modos de produção como bases para organizar a opressão de raça/classe/gênero, denúncia de morte em vida provocada pela operatividade do sistema penal à crítica da crítica com a Justiça Restaurativa, este trabalho como toda orientação marxista, é matéria em movimento, é processo e será construído com as lentes menos colonizadas que possível for. A pesquisa se pretende enquanto processo coletivo e instrumento da e para a luta feminista e abolicionista, afastando o fetichismo normativo achado na lei para rea�rmar o direito achado nas ruas, revertido a uma orientação comunitária e de pés �rmes contra a violência travestida de justiça social. Portanto, este é um pontapé para avançar no debate criminológico crítico a respeito da violência doméstica com uma perspectiva feminista abolicionista, por sabermos das nuances sutis da contradição em defender as vidas das mulheres ao custo do aprisionamento de homens subalternizados na sociedade a ponto de contribuir para o apagamento simbólico das comunidades negras. Não nos isentamos, todavia, de fazer a crítica da crítica, analisando as condições de possibilidade da execução das práticas restaurativas dadas as peculiaridades brasileiras. Os homens e mulheres alienados do processo espoliativo das sociedades do Sul global transformados em bagaço (sem desfrutar do suco do capital) fazem parte da história da gente que virou suco3 e também da gente que constata esse contínuo esmagar de pessoas, essa estrutura que rouba a dignidade humana. A dissertação é, portanto, a história da mulher e do homem que não querem virar suco, que se opõem à pasteurização de suas vidas, que lutam contra a constante opressão sofrida, desde o depósito em porões da miséria, até a violência do Direito que não nota sua presença, não distingue sua diferença e o(a) marginaliza, condenando-o(a) a um crime que nunca cometera. Este sujeito da história, que se apropria de sua consciência de classe, deixa de ser mais um(a) de vida severina para transformar as secas vidas do povo. 2 Warat, L.A – Saber crítico e o senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, 1982. 3 Referência ao �lme “O homem que virou suco”, de 1981, dirigido por João Batista de Andrade, que conta a estória de um poeta nordestino confundido com um assassino e criminalizado. É uma sátira do capitalismo e sua mão nada invisível para punir os pobres. SUMÁRIO Capa Folha de Rosto Créditos I. O MUNDO COLONIAL NÃO SUPLANTADO: A VIOLÊNCIA CAPITALISTA-PATRIARCAL-RACISTA I.1. O fetiche da colonialidade: “eis que me descubro objeto em meio a outros objetos”4 I.2. Escravismo, colonização e capitalismo dependente I.3. “A morte reiterada na vida e a vida que habita a máscara da morte”: das mortes em vida do negro I.4. Desatar os nós I.5. Amandla Awethu20: negros(as) do mundo, aquilombai-vos! II. ABOLICIONISMO PENAL E APONTAMENTOS TEÓRICOS SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA SOB A PERSPECTIVA file:///tmp/calibre_4.23.0_tmp_HP7UzL/OEbKWy_pdf_out/OEBPS/Text/capa.xhtml FEMINISTA II.1. Punição estrutural: a laranja mecânica23 do dia a dia II.2. A parte que lhe cabe neste latifúndio: a fábrica do cárcere II.3. Em busca das promessas perdidas30: o direito penal desmisti�cado II.4. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”31 II.5. A caminho do horizonte estratégico: as propostas abolicionistas II.6. “Em que meu olhar permite ver as coisas?”39: trocando as lentes III. NOVAS SENTENÇAS, VELHOS CATIVEIROS, VELHOS PERSEGUIDOS III.1. Estado da arte da violência contra mulheres no Brasil III.2. Introduzindo a pesquisa-paradigma e a lei de Marias III.3. Potencialidades e riscos da justiça restaurativa em casos de violência doméstica no Brasil III.4. O gênero da violência e a crítica da criminologia48 III.5. E as condições de possibilidade? III.6. Para abolir uma linguagem-fronteira: uma linguagem-percurso como resposta-percurso IV. CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APÊNDICE - ENTREVISTA COM UM COMUNISTA ZAMBIANO I. O MUNDO COLONIAL NÃO SUPLANTADO: A VIOLÊNCIA CAPITALISTA-PATRIARCAL-RACISTA I.1. O fetiche da colonialidade: “eis que me descubro objeto em meio a outros objetos”4 “Falo de milhões de homens/Em quem deliberadamente inculcaram o medo/O complexo de inferioridade, o tremor/A prostração, o desespero, o servilismo.” (Aimé Césaire, 2006) Um dos maiores estudiosos da diáspora africana, Frantz Fanon, na introdução da sua tese Pele Negra, Máscaras brancas (2008), ao nos falar das clausuras da branquitude e da negritude como construções do colonialismo, diz existir uma “zona de não-ser”, um espaço de negação da existência em que o negro foi despejado, constatando, com pesar, que na sociedade de bases coloniais o destino do negro é branco. Denuncia a morte em vida que é o estado estéril de não-humanidade a que estão sujeitos os colonizados do mundo. Demarcando o sentido materialista que orienta a análise, evidencia que a verdadeira desalienação do negro implica na tomada de consciência das realidades econômicas e sociais, pois que o complexo de inferioridade acontece após um duplo processo: inicialmente econômico e em seguida pela “epidermização” dessa inferioridade, isto é, a interiorização, a gravação na pele do lugar de poder que cabe a cada um. As relações modernas5 de poder têm caráter dualista e excludente, pautadas no dispositivo que constrói o outro mediante uma lógica binária que reprime as diferenças. A máquina que garante a engrenagem desta perspectiva é o eurocentrismo, modo de produzir conhecimento que opera como espelho a distorcer o que re�ete. Todos os povos submetidos ao poder colonial foram conduzidos a aceitar a imagem europeia re�etida como se sua fosse. A violência colonial se manifesta, dentre outras formas, na negação da diferença e na destruição paulatina da cultura das Américas, da linguagem às experiências históricas, aniquilando as nações ora por extermínio físico, ora por apagamento cultural. Esse movimento de disciplinar os per�s de subjetividade a partir de coordenação estatal conduz ao fenômeno da “invenção do outro” (CASTRO-GÓMEZ, 2005), muito ligado aoprocesso de produção material e simbólica no qual se viram envolvidas as sociedades ocidentais a partir do século XVI. A respeito dos mecanismos disciplinares de poder no contexto latino- americano do século XIX, Beatriz González Stephan (1995) identi�ca três práticas disciplinares que contribuíram para forjar os cidadãos: as constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas do idioma. Ela segue o teórico uruguaio Angel Rama ao dizer que essas tecnologias de subjetivação possuem um denominador comum: sua legitimidade repousa na escrita e essa lógica da civilização pela linguagem faz parte do projeto colonizador. É neste sentido que Silvia Cusicanqui (2010) coloca a retórica da igualdade e da cidadania como uma caricatura para encobrir privilégios culturais e políticos. A aquisição de cidadania é tática de ajuste ao tipo de sujeito requerido pelo projeto da modernidade: homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual, o qual cabe muito bem no formato do bom burguês. Os “outros” - mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, índios, escravos, homossexuais, dissidentes, migrantes - �cam de fora da cidade “letrada”, reclusos no âmbito da ilegalidade, submetidos ao castigo por parte da mesma lei que os exclui. E, por isso, a autora boliviana destacava, já em 1983, em sua obra Oprimidos pero non vencidos, a necessidade de uma descolonização das estruturas políticas, econômicas e mentais da Bolívia, cujas reformulações legais e constitucionais continuaram reproduzindo práticas de exclusão e dominação6. Os países de terceiro mundo, classi�cação que Arturo Escobar (1996) coloca como parte do processo de subjugo e disputa de poder7, estão sujeitos a um duplo ou triplo tipo de violência: a violência estrutural, base das desigualdades entre países considerados de primeiro mundo e terceiro mundo; e uma violência simbólica, de operação sutil e de caráter cultural, com função legitimadora das formas estruturais e diretas. A violência cultural se apresenta por meio dos discursos, símbolos, metáforas, religiões, assim como a violência epistêmica se relaciona com a dualidade saber- poder, estudada por Foucault, com temas relativos à produção e à maneira pela qual o poder se apropria e condiciona o conhecimento, determinando aquilo de primitivo, selvagem e descartável. Em outras palavras, os discursos patrocinados pelo projeto da modernidade não toleram as epistemologias alternativas8 e pretendem negar a alteridade e a subjetividade dos outros de forma a perpetuar a opressão dos saberes e justi�car a dominação. E é o Estado, como garantidor da organização racional da vida humana, que detém também o monopólio da violência para �ns de dirigir as atividades dos cidadãos - Walter Mignolo (2000) aborda o Estado-nação como uma maquinaria geradora de “outredades” que devem ser disciplinadas. Nesse sentido, Gayatri Spivak (2003) problematiza o modo como o sujeito do terceiro mundo é representado no discurso ocidental, denunciando o projeto da modernidade como exercício da violência epistêmica e relacionado ao vínculo conhecimento-disciplina. Esta violência epistêmica se constitui em uma forma de exercer o poder simbólico e é um conceito que consiste na negação e no apagamento de signi�cados da vida de indivíduos e grupos. Ao identi�carmos que o ponto de partida para a construção das representações dos sujeitos é o dispositivo de saber/poder, essencial é localizar o conceito de colonialidade do poder9 (QUIJANO, 1999, pp. 99- 109), mecanismo que gera o sistema-mundo. Para Quijano, a espoliação colonial é autorizada pelo imaginário que estabelece diferenças incomensuráveis entre colonizador e colonizado. Aqui as noções de raça e cultura operam como dispositivos categorizadores que geram identidades opostas. O colonizado é o “outro”, fato que legitima o exercício de um poder disciplinar que parte do colonizador. As identidades são excludentes entre si: enquanto o colonizado é associado à maldade, selvageria, barbárie, o colonizador aparece vinculado à bondade, civilização e racionalidade. Com esse panorama, fácil é identi�carmos o viés maniqueísta que orienta essa dualidade de pensamento e, consequentemente, o controle social seletivo. Para isso Castro-Gómez (2005, p.83) conecta: O conceito da colonialidade do poder amplia e corrige o conceito foucaultiano de poder disciplinar, ao mostrar que os dispositivos panópticos erigidos pelo Estado moderno inscrevem-se numa estrutura mais ampla, de caráter mundial con�gurada pela relação colonial entre centros e periferias devido à expansão europeia. Deste ponto de vista podemos dizer o seguinte: a modernidade é um projeto na medida em que seus dispositivos disciplinares se vinculam a uma dupla governamentabilidade jurídica. De um lado, a exercida para dentro pelos estados nacionais em sua tentativa de criar identidades homogêneas por meio de políticas de subjetivação; por outro lado, a governamentabilidade exercida para fora pelas potências hegemônicas do sistema- mundo moderno/colonial, em sua tentativa de assegurar o �uxo de matérias-primas da periferia em direção ao centro. A expansão comercial, a dinâmica de troca de mercadoria entre centro e periferia e a vigilância/domínio sobre os sujeitos dialogam com a relação de superioridade/inferioridade entre dominador e dominado patrocinada pelo eurocentrismo. A respeito disso, importante demarcarmos como a ideia de raça nas Américas é uma maneira de legitimar as relações de dominação impostas pela conquista (QUIJANO, 2005). A elaboração teórica da raça surge, oportunamente, como ferramenta de naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. A maioria dos teóricos sociais dos séculos XVII e XVIII, resgata Castro-Gómez (2005), coincidia na opinião de que a espécie humana caminha da ignorância à iluminação em um processo crescente até chegar ao aperfeiçoamento representado pelas sociedades modernas europeias. O primeiro estágio de desenvolvimento, relatado pelos navegantes era o das sociedades indígenas, retratadas com as características da selvageria, barbárie e ausência completa de arte, ciência e escrita. A América era sinônimo de superstição, primitivismo, guerra de todos contra todos, “estado de natureza”, tal qual teorizado por Hobbes. O estágio mais alto do progresso humano estaria representado pelas sociedades europeias, onde reinariam a civilidade, o Estado de Direito e o cultivo da ciência e das artes. A conformação colonial do mundo entre ocidental ou europeu, concebido como moderno e avançado, e os “outros”, restante dos povos e culturas, é inaugurada, segundo Edgard Lander (2005), com a conquista ibérica do continente americano. A partir desse momento, inicia-se a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (MIGNOLO, 1995) e do imaginário (QUIJANO, 1992), processo que culmina nos séculos XVIII e XIX com a organização de todos os territórios em uma grande narrativa universal. Nesta narrativa, a Europa é o centro geográ�co e o auge do avanço. E ao nos referirmos a um lugar sob a perspectiva das relações de poder, estamos falando de geopolítica; nesse caso, a geopolítica do conhecimento mostra como tem operado a periferização de uns lugares e a centri�cação de outros. É nesse sentido que Catherine Walsh (2005, p. 41) nos a�rma que a produção do conhecimento “está marcada geo- historicamente, geo-politicamente e geo-culturalmente; tem valor, cor e lugar ‘de origem’”. Esta construção eurocêntrica que toma a totalidade do tempo e do espaço para a humanidade a partir da própria experiência, colocando as particularidades histórico-culturais como padrão de referência superior e universal, é também um dispositivo de conhecimento colonial. Explicamos: o dispositivo colonizador do conhecimento transforma um modo de vida de dada sociedade no modo “normal” do ser humano e da sociedade; as formas de ser, conhecimentoe organização social não apenas são diferentes, como também carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas (LANDER, 2005). Essa visão de mundo tem como eixo articulador central quatro visões básicas: 1. A visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da qual se constrói a classi�cação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas); 2. A ‘naturalização’ tanto das relações sociais como da ‘natureza humana’ da sociedade liberal-capitalista; 3. A naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e 4. A necessária superioridade do conhecimento que esta sociedade produz (‘ciência’) em relação a todos os outros conhecimentos. (LANDER, 2005, p. 13) Por ser assim, Grosfoguel (2006, p. 21) declara que “os paradigmas hegemônicos eurocêntricos que têm con�gurado a �loso�a e as ciências ocidentais no sistema-mundo moderno/colonial capitalista/patriarcal [...] durante os últimos 500 anos assumem um ponto de vista universalista, neutro e objetivo”. É nesse sentido que nomeia de “ego-política do conhecimento” a ideia de que pode existir a produção e apropriação de conhecimento desde um não-lugar, desde um sujeito deshistoricizado e descorporizado, isto é, um sujeito universal. Esta ego-política não leva em conta as relações entre a localização epistêmica do sujeito que produz conhecimento, o conhecimento gerado e suas articulações com processos de dominação, exploração e sujeição. Os processos de exploração nas Américas estão inscritos na estrutura triangular da colonialidade: a colonialidade do ser, a colonialidade do poder e a colonialidade do saber, em que este último se localiza em uma estrutura hierárquica, disciplinar e �scalizadora (CASTRO-GÓMEZ, 2007). A colonialidade do saber controla a produção intelectual e criativa e determina aquilo que é considerado bom/belo/importante e o que é inferior. Essa produção descartável é construída por grupos colonizados e esse controle é uma forma de segregação não-declarada, fazendo parte do aperfeiçoamento das tecnologias de sujeição e exploração das populações periféricas. Estas marcas serão percebidas no tópico seguinte em que iremos expor sobre o modo de produção escravista, seu embasamento ideológico e a relação de dependência para com os países europeus, em que os signos da colonialidade produziram sentidos de inferioridade racial a justi�car a exploração e a violência cometida contra os povos negros do Brasil. I.2. Escravismo, colonização e capitalismo dependente A formação social brasileira tem em sua história as marcas da violência fruto do colonialismo que instaurou modos de produção exploradores da mão de obra dos povos originários da nação. Desde o princípio do estabelecimento das nações europeias em território brasileiro, houve o surrupiamento das riquezas do país e a subalternização dos grupos instalados, conduta fruto de uma orientação hierárquica de mundo. Enquanto a violência colonial atua descivilizando e embrutecendo o colonizador, se propõe, no outro extremo, a submeter e desumanizar o colonizado. Para Césaire (2006), quando o colonizado resiste, morre pelas balas dos soldados; quando cede, morre em sua qualidade de homem, pois se degrada, tendo seu caráter tomado pela vergonha e pelo medo. A coisi�cação gerada pela colonização só pode ser combatida através de um processo histórico e radical de descolonização, isto é, de destruição do mundo colonial para devolver aos homens e mulheres espezinhados a humanidade e a linguagem, convertendo a antiga coisa colonizada em um novo homem através da libertação (FANON, 2015). Entendido o colonialismo como violência em seu estado de natureza, não se pode derruba-lo senão por uma violência maior. Assim, a contribuição de Fanon é trazida pela voz de Césaire (2010, p. 25): Na visão fanoniana, a violência revolucionária é concebida como uma necessidade, para se quebrar o jugo militar colonial, e também como um indispensável instrumento de reconstrução da autoestima do colonizado. Fanon concebe que, para o sujeito colonizado modi�car os termos da relação com o mundo que o oprime, se fazia necessário o emprego da resistência em todas as suas formas. A resistência ao racismo eleva o sujeito colonizado ao lugar de protagonista, devolvendo-lhe, com isso, a humanidade. A violência revolucionária, diz Fanon, é desalienante. Para Fanon, o inconsciente coletivo dos colonizados que processa a autodefesa por meio da violência de cunho político e revolucionário, parte da tomada de consciência enquanto sujeito de um mundo cortado em dois. O colonizado esteve dominado, inferiorizado, mas nunca domesticado. No fundo, sempre está preparado para o momento de descuido do colono, em que abandonará seu papel de presa e assumirá o de caçador. Para entender a questão racial no brasil, é imprescindível remontarmos para o escravismo como modo de produção que imperou de 1550-188810, gestou a economia, sedimentou as relações sociais no Brasil colonial e se estendeu pelos períodos posteriores no que toca à ideologia do servilismo do negro em função da dominação do branco. Por assim dizer, estamos em sintonia com Clovis Moura (1994) ao entendermos que o sociólogo ou historiador deve procurar nas contradições e nos con�itos as causas geradoras da dinâmica social de um modo de produção e não nas áreas neutras e estáticas de condições do sistema. Com esta responsabilidade, os recortes de história narrados no presente texto partirão do marco de que o único equilíbrio social entre escravos e senhores que existiu foi promovido pelo controle social. Em verdade, as colaborações dos escravos e compreensão dos senhores não representavam a �bra das relações sociais produzidas na dinâmica colonial. Ao contrário, a tônica era do antagonismo de interesses e da contenção de classe através do controle social. Narrar dando intencionalidade para uma harmonia perene como regra, tal qual segmentos da sociologia o �zeram, é “supor-se que a inércia social é o fator de mudança e transformação da dinâmica social”(1994, p.20). Analisar um modo de produção em sua totalidade requer identi�car as relações centrais e as secundárias e isto se exempli�ca na dinâmica do escravismo, na qual as relações paci�cas e neutras existiram e possibilitaram a segurança social do modo de produção. Nesse sentido, é evidente que são encontradas áreas em que as frações de classe são coloquiais, neutras e pací�cas, mas isto não explica ou esgota a dinâmica escravista. A interpretação de Gilberto Freyre, por exemplo, ressalta um caráter democrático das relações entre negros e brancos no Brasil. Toda a análise freyriana sobre a escravatura e a história social do negro brasileiro após a escravidão induz à conclusão de que: a escravatura daqui foi humanizada, não alienante, fruto do patriarcalismo brasileiro; as peculiaridades culturais e morais do português e seus descendentes no Brasil tornaram a sociedade brasileira uma sociedade racialmente democrática. O que explica esta posição romântica e fantasiosa sobre o escravismo é que Freyre trabalha na perspectiva da casa-grande e do sobrado, isto é, do branco senhor de escravos, ou do branco que pensa os problemas raciais brasileiros na ótica da classe dominante. Para o branco proprietário de terras e escravos, toda a violência cometida contra os negros era na verdade uma benevolência, uma oportunidade de acessarem comida e moradia e de salvarem seus espíritos demoníacos perante Deus. A história pode ser escrita de formas completamente diferentes a depender da lente daquele que narra. Ao contrário, a�rma Clovis Moura (1994, p.21): O seu agente motor está justamente no oposto da harmonia e da cooperação, nas contradições que uma parte da classe produtora do valor se abstém dessa produção. Ora, se todos escravos fossem disciplinados, �zessem acordos, aceitassem a cultura da escravidão segundo os critérios de concessão do senhor, então,como diria Marx, a história pararia. O Brasil, na sua formação histórico-social construiu dois modelos de sociedade: o escravista colonial, subordinado à economia colonialista e o capitalismo dependente subordinado ao imperialismo. Mas em que consistiam as relações sociais entre os grupos da sociedade escravista? No sistema escravista, o cativo se converteu em coisa. O seu interior e a sua humanidade foram esvaziados pelo senhor até que ele �casse totalmente subordinado; a sua re-humanização só era reestabelecida na e pela rebeldia, isto é, na sua negação consequente como escravo. Essa constatação revela como o escravismo penetrou na sociedade e injetou seus valores, de modo a ser o período da história dramaticamente necessário de se conhecer para compreendermos os alcances atuais dos arranjos sociais. A divisão social do trabalho correspondeu, na realidade, a uma divisão racial do trabalho, por força de a divisão compulsória determinar que a mão de obra escrava seria praticada pelos negros. Em momento posterior, esta divisão passou a ser acionada no contexto competitivo, reservando-se para o negro apenas aquilo que o branco, descartava ou desprezava. O caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção é apreendido da compreensão de que o escravismo é um sistema de produção de mais-valia absoluta, sistema esse no qual a mercadoria aparece imediata e explicitamente como produto da força de trabalho alienada. Ademais, a alienação incide duplamente no escravo, como pessoa, enquanto propriedade do senhor, e em sua força de trabalho, faculdade sobre a qual não tem ingerência. Para viver e reproduzir-se, o escravo é obrigado a produzir muito além do que recebe e não dispõe de condições para negociar, nem o uso da sua força de trabalho nem a si mesmo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento do escravismo. (IANNI, 1978) Desde o princípio, as sociedades das Américas estão atadas à economia mundial formadas em estado de dependência enquanto colônias ou países: primeiro à mercantilista e depois à capitalista. Nessas condições, quando o capitalismo alcançou certo grau de desenvolvimento, em âmbito mundial, tornou difícil a continuidade das relações escravistas de produção. No Brasil, a formação social capitalista foi se constituindo por dentro da formação social escravista. O ápice do confronto entre a formação social escravista, em franca decadência, e a formação social capitalista em expansão foi a queda da monarquia. Explicamos: a luta entre a aristocracia agrária, de base escravocrata, e a burguesia cafeeira do oeste paulista, na qual vence esta, era a expressão política dos desajustes e antagonismos entre as duas formações sociais. A transição da sociedade escravista para a sociedade competitiva do capitalismo preservou as estruturas de poder herdeiras da ideologia do colonizador. As classes dominantes do império, que se transformaram de senhores de escravos em latifundiários, estabeleceram mecanismos repressivos, ideológicos, econômicos e culturais a �m de controlar a luta de classes dessas camadas de ex-escravos, acomodando-os nos espaços marginais de uma economia de capitalismo dependente. (MOURA, 1980) A sociedade competitiva que substituiu a escravista favoreceu a ideologia da democracia racial e produziu nas organizações negras um assimilacionismo de formas de comportamento brancas como meio de proteção contra a perseguição por força de seus propósitos radicais. Esta é uma das faces do pacto entre a ideologia do colonizador e a do colonizado. Nesse sentido, a re�exão de Moura (op. Cit., p.125): A sociedade de modelo de capitalismo dependente substituiu a de escravismo colonial. O sistema competitivo inerente ao modelo de capitalismo dependente, ao tempo em que remanipula os símbolos escravistas contra o negro procura apagar a sua memória histórica e étnica, a �m de que ele �que como homem �utuante, ahistórico. Porque situa-lo historicamente é vê-lo como agente coletivo dinâmico / radical desde a origem da escravidão no Brasil. É, por outro lado, revalorizar a República de Palmares, único acontecimento político que conseguiu pôr em cheque a economia e a estrutura militar colonial; é valorizar convenientemente as lideranças negras de movimentos como as revoltas baianas de 1807 a 1844. Segundo Ianni (1978, p. 80), o paternalismo, a ambiguidade, o mito da democracia racial e outras expressões da dominação exercida pelo branco confundem e irritam o negro. É frente a esta manipulação ideológica que o negro toma consciência da sua dupla alienação: como raça e como membro de classe. Assim, para enfrentar sua condição duplamente subalterna, o negro é levado a elaborar uma consciência política dúplice; reconhece- se como membro de outra raça e classe opostas às do branco, passando a entender que enquanto membro desta raça está só e precisa lutar a partir desta condição. Nesse cenário, raça e classe subsumem-se reciproca e continuamente, tornando mais complexa a consciência e a prática política do negro. Sobre o aspecto capitalista do Brasil, a re�exão de Jacob Gorender (1998, pps. 105-106): A concentração de renda e a deterioração da qualidade de vida de grandes massas da população justi�caram que se chamasse o capitalismo brasileiro de selvagem. Mas se trata de uma designação puramente moral, sem valor cientí�co. Qualquer que seja o país, inclusive os da revolução burguesa clássica, todo capitalismo, por suas leis imanentes, tende à exploração da força de trabalho até o limite das possibilidades físicas. O que o impede de chegar a este limite e lhe impõe formas civilizadas de exploração é a luta de classes dos operários. As categorias de raça e classe precisam ser compreendidas em suas especi�cidades. Uma interpretação dos problemas raciais que não incorpora a localização das pessoas na estrutura de classes, sejam elas classes amadurecidas, em formação ou em crise, está certamente equivocada e incompleta. Portanto, pode-se concluir que o modo de produção escravista entrou em colapso, mas deixou marcas profundas que se comportam como elementos vivo nas relações de produção da sociedade brasileira. O modelo de capitalismo dependente que substituiu o modo de produção escravista dele se aproveitou e fez dele uma parte dos seus mecanismos reguladores da economia subdesenvolvida. Desta forma, os vestígios escravistas são remanejados e dinamizados na sociedade de capitalismo dependente em função do imperialismo dominante. I.3. “A morte reiterada na vida e a vida que habita a máscara da morte”: das mortes em vida do negro As estratégias históricas de apagamento da identidade negra constituem um projeto de genocídio físico e simbólico dos negros em diáspora. A libertação do negro, nesse sentido, só é possível se reconhecidas estas variadas servidões visíveis e invisíveis como parte de uma mística racista de propósito arianista, isto é, de fortalecimento do ideal de branqueamento. O uso sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro foi cunhado pelo grande teórico, político e militante do movimento negro Abdias do Nascimento. Nesse sentido, o autor aponta como primeira estratégia de genocídio a do branqueamento da raça. A intenção do desaparecimento inapelável dos descendentes africanos no Brasil se deu através do recurso da exploração sexual da mulher negra, estuprada pelos senhores brancos para produzir o que entendiam como puri�cação do sangue: o mulato, o pardo, o moreno. A herança negra, vista como mancha negra, precisava ser combatida por meio do processo de mulatização, que nada mais é que um fenômeno de genocídio, haja vista o crescimento da população mulata e o desaparecimento da raça negra sob a coação do progressivo clareamento da população no país (NASCIMENTO, 1978). A respeito do papel social do mulato, Abdias (Ibid, p.69) a�rma: Situado no meio do caminho entre a casa-grande e a senzala, o mulato prestou serviços importantes àclasse dominante; durante a escravidão, ele foi capitão-do-mato, feitor, e usado noutras tarefas de con�ança dos senhores, e, mais recentemente, o erigiram como um símbolo da nossa ‘democracia racial’. A solução parecia satisfatória e recebeu endosso religioso da Igreja Católica, que considerava o negro um indivíduo de sangue infectado. Além disso, as teorias cientí�cas forneceram suporte vital ao racismo arianista que se propunha a erradicar o negro. Desde o �m do século XIX, o objetivo estabelecido pela política imigratória foi o desaparecimento do negro através da “salvação” do sangue europeu. O dramaturgo Nelson Rodrigues (apud Nascimento, p.77) contribui com uma linguagem ácida para a caracterização de nossas relações de raça: Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. Nós os tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Com esta passagem, denuncia o racismo travestido em sua linguagem para soar como parte de um bonito processo de democracia racial, só não sendo evidente para aqueles(as) que não querem enxergar suas formas de atuação. Nessa esteira, como outra estratégia de genocídio, Abdias (Ibid, p.93) aponta o embranquecimento cultural em certeiras e cortantes linhas: Devemos compreender democracia racial como a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão obvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado como o apartheid da África do Sul, mas e�cazmente institucionalizado nos níveis o�ciais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Da classi�cação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento da virtude das misturas de sangue como tentativa de erradicação da mancha negra; da operatividade do sincretismo religioso; a história não o�cial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada democracia racial que só concede aos negros um único ‘privilégio’: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. (grifos nossos) Mais contemporaneamente, o africano Achille Mbembe, pensador de altíssimo requinte no estudo do pós-colonialismo e das questões da história e da política africana, trabalha através do resgate histórico, político e �losó�co para mostrar como a raça foi a causa de inúmeras catástrofes, crimes incalculáveis e carni�cinas no mundo. Em sua obra “Crítica da Razão Negra”11, o autor discorre, por meio de uma �loso�a política latente e erudita, sobre a ideia de homem-mercadoria, a lógica das raças e a consequente condição subalterna do negro no projeto colonial de esmagá-lo e convertê-lo em coisa. Desta feita, propõe a descolonização do pensamento europeu para combater o racismo global como parte do capitalismo. Para começo de conversa, aponta (Mbembe, 2017) três momentos paradigmáticos para entender a socialização do negro: o trá�co atlântico (séc. XV ao XIX) em que homens e mulheres originários de África foram transformados em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda; o segundo momento corresponde ao acesso à escrita e tem início em �ns do século XVIII, quando os Negros capturados articularam uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo vivo. Não por acaso, tal período foi marcado por inúmeras revoltas de escravos, pela independência do Haiti em 1804, por combates pela abolição do trá�co, pelas descolonizações africanas, pelas lutas pelos direitos cívicos nos Estados Unidos e, por �m, pelo desmantelamento do apartheid nos últimos anos do século XIX; o terceiro momento (início do século XXI) refere-se à globalização dos mercados, ao avanço do neoliberalismo, do complexo militar e das tecnologias eletrônicas digitais. Em um discurso inconformado, Mbembe (2017, p.19) esboça o percurso de criação do conceito de “Negro”, idealizado pelo Ocidente como uma fábula plena de exotismo, re�nada com elementos carnais de pulsão sexual e sensualidade, mas principalmente fundido com a imagem de escravo. Assim discorre: Produto de uma máquina social e técnica indissociável do capitalismo, da sua emergência e globalização, este nome foi inventado para signi�car exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria- a cripta viva do capital. A partir da denúncia do alterocídio, isto é, o ato de constituir o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto essencialmente ameaçador e do qual é preciso proteger-se por meio do controle social ou do extremo da destruição, o autor propõe um pensamento de circulação/travessia e ampara-se em Frantz Fanon para associar a raça ao desejo de vingança. A raça, preleciona (Ibid, p. 27), não existe da perspectiva física, antropológica ou genética; atravessou a história como um mecanismo codi�cado de divisão da diversidade segundo hierarquias estanques. A raça, em verdade, “não passa de uma �cção útil, de uma construção fantasista ou de uma projeção ideológica cuja função é desviar a atenção de con�itos antigamente entendidos como mais verossímeis- a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo.” Prossegue na desconstrução assinalando (Ibid, p. 40): O negro não existe, no entanto, enquanto tal. É constantemente produzido. Produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento. Nesse sentido, Fanon tinha razão ao sugerir que o Negro era uma �gura ou ainda um objeto inventado pelo branco e �xado, como tal, pelo seu olhar, por seus gestos e atitudes, tendo sido tecido por relatos e anedotas. Em um movimento de programar o negro como parte negada do branco, isto é, aquilo que este não quer ser, aos poucos o negro vai sendo transformado em inimigo e o branco em vítima compassiva, o opressor torna-se oprimido e o oprimido o algoz12. Esta é a verdadeira tônica da alteridade na era moderna. No momento em que partes cindidas da psique são projetadas para fora, criando o “outro” como antagonista ao “eu”, o branco faz uma cisão de si mesmo: a parte do ego- associada a qualidades boas- é vivida como o verdadeiro “self” e o resto- a parte vinculada a características indesejadas- é projetada sobre o “outro”. “O outro torna-se então a representação mental do que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: o(a) ladrão(a) violento(a), o(a) bandido(a) indolente e malicioso” (KILOMBA, 2010, p. 174). Em outras palavras, prossegue Grada Kilomba (2010), tornamo-nos a representação mental daquilo com o que o branco não quer parecer. A branquitude pode ser descrita como uma identidade relacional dependente que existe através da exploração do “outro”. A isso Toni Morrison (1992) chama de “dessemelhança”. Enquanto humilhado e espoliado, o negro vive uma humanidade mutilada marcada pelo ferro e pela alienação. Todavia, ressigni�cado como conceito, o Negro torna-se a linguagem pela qual os descendentes de africanos se anunciam ao mundo e se proclamam como mundo: Mas, a par da maldição a que a sua vida está destinada e da possibilidade de insurreição radical que, contudo, transporta e que nunca consegue �car totalmente aniquilada pelos dispositivos de submissão, ele representa também uma espécie de limo da terra, no ponto de con�uência de uma multiplicidade de semimundos produzidos pela dupla violência da raça e do capital. Operando do fundo dos porões, terão sido os primeiros obreiros da nossa modernidade. E se há algo que assombra a modernidade desde sempre é precisamente a possibilidade de um acontecimento particular, a revolta dosescravos, que assinalaria não apenas a libertação dos servos, mas também uma mudança radical das bases da reprodução da própria vida. (MBEMBE, 2017, pps. 73-74). Uma relação de co-dependência liga os conceitos de Negro e África, pois que falar de um é necessariamente evocar o valor do outro. A Idade Moderna confere à África dois sentidos: o de um lugar em que o humano se vê no extremo da precariedade da vida e do vazio do ser; e o da condição de emaranhamento entre o humano, o animal, a natureza, a morte e vida, “da presença uma na outra, da morte que vive na vida e que lhe dá rigidez de um cadáver- o ensaio da morte na vida através de um jogo de desdobramento e de repetição.”(Ibid, p.92) Desta feita, quer se trate de literatura, �loso�a, artes ou política, os sentidos de Negro e África estão atravessados pelos acontecimentos da escravatura, da colonização e do apartheid que, dentre outras coisas, produziram uma textualidade de folclorização e exotismo a estes signi�cantes, transformando a mística do continente em um estereótipo. A identidade negra ressurge, por outro lado, como uma identidade em devir, em processo de reconhecimento e a�rmação de existência. Quem somos neste mundo branco? Que podemos esperar e fazer? Somos negros. E, como diria Florestan Fernandes (2007), negros no mundo dos brancos. Em uma das belas passagens da obra de Mbembe (Ibid, p.89), somos agraciados com sua percepção a respeito: De fato, o substantivo negro tem vindo a preencher três funções essenciais na modernidade – funções de atribuição, de interiorização e de subversão. (...) Ao longo da história, aconteceu que aqueles que foram ridiculamente contemplados com esta alcunha- e tinham, consequentemente, sido postos à parte ou à distância- acabaram por habitá-la. Passou a ser de uso corrente, mas isto fê-lo mais autêntico? Num gesto consciente de subversão, poético umas vezes, outras, carnavalesco, muitos a terão endossado somente para melhor devolverem contra os seus inventores esse patronímico humilhante. Decidiram transformar este símbolo de abjeção num símbolo de beleza e de orgulho, utilizado doravante como insígnia de um desa�o radical e de um apelo ao levantamento, à deserção e à insurreição. Enquanto categoria histórica, o Negro não existe, portanto, fora destes três momentos: o momento de atribuição, o momento de aceitação e interiorização e o momento da reviravolta ou da subversão- que aliás inaugura a plena e incondicional recuperação do estatuto de humanidade antes rasurada pelo ferro e pelo chicote. (grifos nossos) O devir negro no mundo é a legítima resposta ao processo predador e autoritário que forjou as vidas negras através da criação das raças e da signi�cante “Negro” como subsídio do capitalismo para explorar. Os novos condenados da terra, aqueles sem direitos, condenados a viver nos calabouços sociais à mercê dos controles jurídicos, policiais, os clandestinos, os imigrantes, os sem-papéis, são resultado de uma seleção de claros pressupostos raciais repaginados pelo tempo. Por ser assim, para reconstruirmos o mundo pautado na humanidade, a restituição, reparação e a justiça são condições para recon�gurarmos os processos de abstração e de coisi�cação promovidos pela história, re- costurando estas partes amputadas para repararmos as dores e (re)instalarmos a solidariedade. I.4. Desatar os nós Como vimos, a lógica categorial dicotômica e hierárquica se apresenta como instrumento central do pensamento capitalista13, que se externaliza na linguagem sobre raça, gênero e sexualidade. Assim, ao se estabelecer a dominação das Américas, os colonizados passaram a ser vistos como a negação da regra do colonizador, sendo os não-humanos, os não-brancos, os não-homens, sendo a oposição ao aceitável no mundo do colonizador, o não- esperado, o inimigo, o outro. A prática do poder aparelha o assujeitamento14 entre agentes que são sujeitos de direitos e humanidade e os assujeitados passivos, de modo que a produção de subjetividade se encarrega de criar identidades servis. Há, portanto, um processo de animalização: os colonizados e os escravizados como o oposto ao civilizado e humano, os selvagens como instrumentos animados nas relações de produção. Essa concepção legitima a subordinação e a apropriação do corpo para �ns de exploração para o trabalho e sexual, pois pressupõe uma irracionalidade que justi�ca a intervenção em suas vidas. O termo “colonialidade do poder”, como apresentado alhures, foi cunhado por Aníbal Quijano e advém da compreensão histórica da inseparabilidade da racialização e da exploração capitalista como constitutivas do sistema capitalista de poder que ancorou a colonização das Américas. O eurocentrismo é lido como novo modo de produção e controle da subjetividade, um sistema de controle da autoridade coletiva em torno da hegemonia do estado-nação que exclui as populações racializadas como inferiores. Por isso que quando a ex-escrava Sojourner Truth, em dezembro de 1851 na Convenção de mulheres em Ohio, ao não se sentir incluída nas discussões sobre os direitos feitas na ocasião, se dirigiu à plateia e indagou “¿Acaso no soy una mujer?”, a resposta seria “não”, já que estava na encruzilhada, era a negação das categorias de branco e de negro. Essa denúncia ainda se faz pertinente se identi�carmos o feminismo como colonizado pelas ideologias de classe e raça e que invisibiliza ainda as pautas das mulheres negras. É por isso que as discussões feministas contemporâneas, in�uenciadas pela literatura desenvolvida pelas feministas negras, marxistas, terceiro- mundistas e descoloniais apontam para uma interpretação da realidade como a encruzilhada de opressões. O termo interseccionalidade ganhou repercussão mundial quando desenvolvido pela advogada militante norte- americana Kimberlé Williams Crenshaw que, nos seus estudos de teoria crítica da raça, pensou como as diferentes estruturas de poder interagem nas vidas dos sujeitos por algum motivo marginalizados, especialmente as mulheres negras que se viam e vêm invisibilizadas. Dessa forma, Crenshaw criou a metáfora das ruas que são cortadas por avenidas e que nas encruzilhadas se é atravessado por diversas direções, nos dizendo que em determinados pontos as discriminações atuam simultaneamente e causam impactos maiores, causam acidentes mais perversos, se formos utilizar um termo que dialogue com a metáfora criada. Conceber o conjunto de opressões que atuam de formas múltiplas e arquitetadas pelas ideologias de gênero, de raça e de classe, é admitir o caráter estrutural da dominação sobre os grupos. A despeito do fenômeno da fusão das categorias de gênero, classe e raça na realidade, Sa�oti (2015, p. 122) fala de um “nó” formado por essas três contradições e que signi�ca um acúmulo qualitativo destas subestruturas- patriarcado- racismo- capitalismo. Esclarece: Ademais, o gênero, a raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturantes da sociedade. Estas contradições, tomadas isoladamente, apresentam características distintas daquelas que se pode detectar no nó que formaram ao longo da história. Este contém uma potenciação de contradições. Efetivamente, o sujeito, constituído em gênero, classe e raça/etnia, não apresenta homogeneidade. Dependendo das condições históricas vivenciadas, uma destas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda que vivas, colocam-se à sombra da primeira. Em outras circunstâncias, será uma outra faceta a tornar-se dominante. (...) Não se trata da �gura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e novaque resulta desta fusão. Como a�rma Kergoat (1978), o conceito de superexploração não dá conta da realidade, uma vez que não existem apenas discriminações quantitativas, mas também qualitativas. Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada porque, além de mulher é ainda uma trabalhadora assalariada. Não se trata de variáveis quantitativas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa. (pps. 83/123/133) Nesse sentido, ao dividir as categorias a partir da lente eurocêntrica, recorta-se o mundo em opressores e oprimidos, lógica que inclui a mulher negra no “não-lugar”15, no vazio que é não ser homem e não ser branca. O pensamento dual é uma forma central no desenvolvimento da hierarquia no capitalismo e a ausência das negras nas categorias “negro” e “mulher’ consolida a colonialidade de gênero. Revisitar e problematizar como o corpo e vida das mulheres é regulado no mundo da produção capitalista, é questionarmos qual o lugar do corpo das mulheres negras e terceiro-mundistas nessa produção, é nos perguntarmos de que maneira o poder tem colonizado os corpos, saberes e práticas femininas. Esse movimento reclama visitarmos fronteiras, desnudarmos histórias não-contadas, trocarmos o olhar do colonizador para ceder espaço para os olhares dos(as) colonizados(as), os olhares desde o Sul, transgredindo a centralização da autoridade de fala para fazermos o deslocamento contra- hegemônico, primeiro denunciando o paradigma serva-senhora reproduzido na teorização feminista (HOOKS, 2013) para depois disputarmos o território de produção da mesma. O gênero, enquanto categoria histórica, terá aspectos diferentes enfatizados por cada expressão do feminismo, havendo um campo de consenso: é a construção social do masculino e do feminino. O termo gênero é usado como recurso para recusar o essencialismo biológico e a imutabilidade implícita que a�rma ser a anatomia o destino. Pode ser entendido como a dimensão da cultura por meio da qual o sexo se expressa vinculado ao poder, bem como através das funções sociais ordenadas pelo sexismo. Na dimensão do corpo, o gênero atua quer como mão de obra, quer como objeto sexual, ou ainda como reprodutor, cujo destino, no caso das mulheres, é participar da produção na função de força de trabalho, reprodução e serviço sexual. Assim, gênero é um conceito desenvolvido para reivindicar a naturalização da desigualdade de tratamento, acesso e participação social de homens e mulheres em múltiplas arenas, envolvendo categorias de inclusão e exclusão. A teorização e a prática feministas em torno do gênero buscam contestar e transformar sistemas históricos de diferença sexual nos quais o que se compreende enquanto homem e o que se compreende enquanto mulher são socialmente formados e posicionados em relações de hierarquia e oposição. A preocupação com a questão da mulher é uma constante do pensamento socialista, compreendendo esta libertação como etapa para uma transformação radical da sociedade. Os determinantes da vida social da mulher, portanto, são encarados por Marx como decorrência de um regime de produção cujo sustentáculo é a opressão do homem pelo homem, de um regime que aliena, que corrompe tanto o corpo quanto o espirito. Os últimos milênios gestaram uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (Sa�oti, 2015), responsável por estabelecer um tipo hierárquico de relação a invadir todos os espaços da sociedade e garantir direitos dos homens sobre as mulheres, a que chamamos de patriarcado. Ao conceituar patriarcado, Pateman (1993, p. 16-17) retoma a teoria política do contrato para concluir que este é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno: O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido de patriarcal- isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres-, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres. A partir disso, valendo-se da imagem e de como a �gura do prédio de comando criado por Bentham e estudado por Foucault em Vigiar e Punir corpori�ca a ideologia de comando, Sa�oti (2015, p. 43) faz a analogia: As portas de todas as celas dão para o interior do prédio e, no alto, um único guarda é su�ciente para vigiar um grande número de prisioneiros, sem que estes possam saber em que momento são observados. Esta imagem adequa-se à descrição da vigilância exercida sobre as mulheres ou sobre os trabalhadores ou, ainda, sobre os negros. As categorias sociais contra as quais pesam discriminações vivem, imageticamente falando, no interior de um enorme panóptico- a sociedade- na medida em que sua conduta é vigiada sem cessar, sem que elas o saibam. Isto é um controle social poderoso, pois a introjeção das normas sociais por mulheres funciona como um panóptico. Por ser assim, diz-se que a ideologia sexista se corpori�ca nos agentes sociais tanto de um polo quanto de outro da relação de dominação- subordinação. O �lme Lanternas Vermelhas (1991) apresenta uma trama que capta isto: a engenharia do patriarcado enquanto estrutura hierárquica que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independente da �gura humana investida de poder. Na trama, uma das quatro esposas reféns do patriarca denuncia a outra que incorria em traição e seria punida com a morte. Ou seja, o patriarcado estimula a guerra entre as mulheres, funciona como uma engrenagem com funções automáticas, podendo ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. As relações entre os sexos e a posição da mulher na família e na sociedade fazem parte de um sistema mais amplo de dominação, de modo que, para entendermos a exclusão destas da esfera pública para �ns de manutenção do exclusivo vínculo doméstico, fundamental é �xarmos características presentes no sistema capitalista que formaram complexos sociais até hoje justi�cados em nome da tradição. A partir da articulação entre a moral, religião, educação, são criados mitos que essencializam os papeis sociais desenvolvidos pelas mulheres como as funções de sexualidade, reprodução e socialização dos �lhos desempenhadas na família, por exemplo. A sociedade se vale dos mitos, revela Sa�oti (2013, p.179), “para retardar a emancipação de uma categoria social que se impõe a tarefa de libertação”. Assim tem sido com as mulheres, os negros e os povos originários sob o jugo do colonialismo. A apreensão na totalidade da temática exige um entendimento- chave16: ainda que, aparentemente, determinada coletividade seja excluída das relações de produção em virtude de sua raça ou de seu sexo, há que se buscar nas primeiras- relações de produção- a explicação da escolha de fatores raciais e de sexo para operarem como marcadores sociais que autorizam hierarquizar, segundo uma escala de valores, os sujeitos de uma sociedade historicamente situada. (SAFFIOTI, 2013) Quer dizer, enquanto categorias dependentes da instrumentalização do capital, operam segundo as necessidades do sistema produtivo de bens e serviços, assumindo feições distintas conforme a fase de desenvolvimento do tipo estrutural da sociedade. Nas palavras da autora (Ibid, p. 60): Alguns desses caracteres naturais isolados para operar como desvantagens sociais são passíveis de anulação ao longo do tempo. Neste caso, a sociedade acaba por encontrar outros fatores que possam funcionar como marcas sociais e justi�car o desprestígio de outros setores demográ�cos e sua localização na base da pirâmide social. É possível entendermos, a partir disso, que os marcadores sociais atuarão segundo as demandas do modo de produção vigente em dada sociedade, variando a forma como incide e aparelha as relações sociais. A história da modernidade é, porassim dizer, a narrativa das diferentes vestes que as opressões de raça, classe, gênero, entre outras, ganharam ao longo do tempo. Por oportuno, enquanto marxista e ao mesmo tempo crítica da esquerda ortodoxa que defende a primazia da classe sobre as outras questões de opressão, enquadrando-as como categorias subalternas, Davis (2011)17 reivindica o entrecruzamento das mesmas: As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa re�etir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras. Nessa esteira, por mais que tenhamos feito uma pequena digressão ao modo escravista de produção para justi�car certas permanências nos contextos posteriores, o marco temporal deste trabalho é o advento do capitalismo justamente por compreendermos que o modo capitalista de produção aprofundou a contradição presente nas formações econômico- sociais anteriores baseadas na apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho humano. Sendo assim, a desigualdade nos status jurídicos dos homens (servos, escravos, livres) não mais justi�ca a dimensão econômica das relações sociais. Os novos homens e mulheres libertos possuem sua força de trabalho e participam do mercado sob a igualdade do status jurídico que, supostamente, é su�ciente para assegurar a igualdade de fato. 18 Com efeito, Lenin (1956, p. 47) condiciona a vitória da luta do proletariado à necessária igualdade material entre homens e mulheres, não só a igualdade jurídica, enfatiza. E assim discorre: “O proletariado não alcançará a emancipação completa se não for conquistada primeiro a completa emancipação das mulheres”. A respeito das condições históricas das relações estabelecidas no processo de dominação na América Latina, sabemos que a violação sistemática das mulheres negras19 e indígenas pelos senhores brancos deu origem à miscigenação, formou a identidade nacional e resultou no famigerado mito da democracia racial. O fetiche de alguns sociólogos pela narrativa do romance no contato dos colonizadores e nossos povos originários é, na verdade, um eufemismo para o contexto de coisi�cação das mulheres negras e índias. A violência sexual colonial formou a base das hierarquias de gênero e raça presentes na nossa sociedade que, ao ser ignorada, centraliza o feminismo a uma inclinação eurocêntrica/universalista que peca por não contextualizar as particularidades das relações sociais constituídas no Brasil colônia e que reverberam até hoje. O poeta negro Aimé Césaire crava lição primordial neste debate ao dizer que há duas maneiras de perder-se, ou por segregação ou por diluição no universal. Nem guetos nem universalização cega. O sentido da luta está, diz Carneiro (2011, p.8), em garantir a plenitude do ser humano para além da raça e do gênero, isto é, “ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra.” Por isso a sua proposta: enegrecer o feminismo brasileiro para instituir o peso da questão racial na con�guração das desigualdades, violência e privilégios da branquitude. O aspecto servil imposto às relações sociais entre mulheres negras e brancos(as) se encontra na presença que não se nota, na existência que se ignora, na dignidade que não se confere, tal qual se percebe no tratamento dado às empregadas domésticas, função social que personi�ca a subalternização. A dimensão de poder nega agência enquanto sujeito e atesta a invisibilidade dessas trabalhadoras, em uma dialética de ausência e presença, de pertença e não-pertença. Nas palavras de Patricia Hill Collins (2016), são “forasteiras de dentro”, “estrangeiras de dentro”. Trata-se de veri�carmos que formas historicamente condicionadas de trabalho permitem a objeti�cação humana e quais outras aviltam o ser social do homem e da mulher. O trabalho na sociedade de classes, a par de ser alienado enquanto atividade, gera um valor do qual não se apropria inteiramente aquele(a) que o executa, seja homem, seja mulher. Esta, contudo, se apropria da menor parcela dos produtos de seu trabalho do que o faz o homem. É óbvio, pois, que a mulher sofre mais diretamente do que o homem os efeitos da apropriação privada dos frutos do trabalho social. O espaço que o trabalho tem ocupado na vida das mulheres negras reproduz padrões escravistas, na medida em que a mulher negra ainda é vista como unidade de trabalho em tempo integral, mão de obra barata e trabalhadora valorosa. A respeito das lutas dos(as) trabalhadores(as) por regulamentação de seus direitos e dos traços escravistas das relações de trabalho, já no século XIX Marx (2013, p.372) alertava que: “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro. Mas da morte da escravidão brotou imediatamente uma vida nova e rejuvenescida.” De um modo geral, a quali�cação pro�ssional da mulher negra no Brasil foi construída através de dois estereótipos: doméstica e mulata. Criada pelo sistema hegemônico para atender a um tipo especial de mercado, a signi�cante mulata, segundo Lélia Gonzalez (1979) atualmente supera a tradução da mestiçagem entre negro(a) e branco(a) para ser o moderno “produto de exportação”, sendo exercida por jovens que buscam prestígio e desconhecem a construção da hipersexualização das latinas como moeda de troca para a economia de mercado internacional. Os traços comuns do racismo institucionalizado não tornam homogêneas as experiências negras, visto que fatores como classe in�uem fortemente nas manifestações racistas. Na classe trabalhadora, além do assujeitamento de raça, há um sentido de propriedade através do controle e subordinação com mecanismo de salário, horas extras, mecanização da trabalhadora como sujeita pensante, o esvaziamento do sujeito. Na teoria marxista, esta última faceta é compreendida como a alienação ou estranhamento do(a) trabalhador(a) em relação à sua produção. A construção do exercício do trabalho atrelado à moralidade e como digni�cador do homem faz parte da estratégia ideológica de disciplinar os grupos sociais para a produção e manutenção do sistema capitalista. Quanto a isso, Althusser (apud Gonzalez, 1979, p. 8) doutrina: Nas sociedades de classes, ideologia é uma representação do real, mas necessariamente falseado, porque é necessariamente orientada e tendenciosa- e é tendenciosa porque seu objetivo não é dar aos homens o conhecimento objetivo do sistema social em que vivem, mas, ao contrário, para mantê-los em seu ‘lugar’ no sistema de exploração de classe. A partir deste entendimento, e percebendo que o privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande bene�ciário da exploração da população negra, o objetivo do movimento negro é organizar o povo negro “para lutar contra a superexploração econômica de que tem sido objeto, assim como contra a ‘mais-valia’ cultural e ideológica dele extraída pelo grupo branco dominante” (Ibid, p.4) Antes de prosseguirmos, uma questão típica do economicismo merece explicação (Ibid, p. 9): tanto brancos quanto negros pobres sofrem os efeitos da exploração capitalista. Mas na verdade, a opressão racial faz-nos constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos meios de produção são bene�ciários do seu exercício. Claro está que, enquanto o capitalista branco se bene�cia diretamente da exploração ou superexploração do negro, a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partirde sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam nas recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. Da mesma forma, o movimento feminista liberal ao reivindicar suas pautas e desconhecer quão mais complexa é a incidência das opressões na vida das mulheres negras, por ser branco e burguês, recebe um protagonismo mesmo que a busca seja por emancipação meramente individual. Para Audre Lorde (2015, pps. 193-210), a crença por parte das feministas brancas de que as mulheres negras desconhecem a opressão machista até haver uma análise e programa de libertação elaborado por aquelas advém do fato de acreditarem em uma fonte de conhecimento, desconhecendo ou ignorando as estratégias de resistência de inspiração empírica contra situações opressoras diárias e que formam uma consciência política de potência, embora não sustentada por termos de gênero. As negras convivem com uma dupla criação a respeito da sua personalidade: ora os mitos racistas das super-mulheres, portadoras de uma força que tudo suporta, a tudo combate sem repercussões íntimas; ora a vítima que questiona esse lugar social que para ela foi criado. Nessa perspectiva, Audre Lorde (Idem, p. 207) é conclusiva: Ao projetar sobre as mulheres negras um poder e uma força míticos, as brancas promovem uma falsa imagem de si mesmas como vítimas impotentes e passivas, ao mesmo tempo que desviam a atenção de sua agressividade, de seu poder (ainda que limitado em um Estado hegemonicamente branco, dominado por homens) e de sua disposição de dominar e controlar os outros. No território em que se discute como a lógica escravagista continua presente nas formas de pensamento e nas práticas de apropriação do corpo negro como subordinado, assim como no feminismo com suas políticas brancas, trava-se um embate sobre os níveis hierárquicos de opressão. O preceito de que não se trata de quanti�car a dor do outro não signi�ca igualar todas as vivências femininas a um mesmo julgo sexista, e sim reconhecer que existem opressões com maior envergadura política e são as que fogem à esfera individual e reverberam coletivamente. Nessa esteira, a lição cirúrgica de Benjamin Barber (1975, p. 30), citado por Audre Lorde: O sofrimento não é necessariamente uma experiência �xa e universal que possa ser medida com uma régua única: está relacionado a situações, necessidades e aspirações. Mas deve haver alguns parâmetros históricos e políticos para o uso do termo, para que possam ser estabelecidas prioridades políticas e se possa dar mais atenção a diferentes formas e graus de sofrimento. (Grifos nossos) A despeito das prioridades políticas e graus de sofrimento, a negritude é o traço de desumanidade que a herança escravagista permite que se marque a ferro nas peles, de modo que o movimento contrário à negação do ser negro(a) é processo de resistência contra a expectativa de passividade. É assim que, sobre o processo de rea�rmação do ser negro, Neusa Santos Souza (1983, p. 17) partilha: A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio. (Aliás, o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal, depois do trabalho de se descortinar muitos véus). Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. E continua: Ser negro é, além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que rea�rme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar- se negro. (Grifos nossos) (Idem, p. 77) A luta das mulheres é a luta contra a atuação do patriarcado nas relações sociais, contra o capitalismo que superexplora seus trabalhos, transforma seus corpos em mercadoria e contra o racismo que elenca aquelas que estarão na zona do submundo da exploração, sujeitas a violências coloniais que remetem a um estágio anterior às conquistas liberais do marco internacional de defesa dos direitos humanos. I.5. Amandla Awethu20: negros(as) do mundo, aquilombai-vos! A ascensão de estudos dos quilombos como questão para ciências humanas advém do reconhecimento da necessidade da temática para compreensão das formas de organização de luta existentes desde África, bem como do processo de dar voz aos que vivem/viveram a realidade da escravização. O nome original vem da história de resistência angolana e queria dizer acampamento de guerreiros na �oresta, administrado por chefes rituais de guerra. Enquanto estabelecimento territorial, há semelhanças e diferenças entre os quilombos de Angola e os �rmados no Brasil, mas, na concepção de Beatriz Nascimento (1981), na raiz de todos existe uma procura do homem por espaço. Nos estudos historiográ�cos, o fenômeno de reunião de negros escravizados fugidos assumem, a partir de �ns da década de setenta e início da década de oitenta, uma conotação ideológica no sentido de comunidade de luta que reconhece o direito à terra (espaço físico) e à terra-nação que lhe deve direitos. Assim observa Beatriz Nascimento no �lme Ori(1989): É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográ�co, mas o território a nível(sic) duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes de minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. A terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou. (Grifos nossos) Esse excerto da obra da re�exão da historiadora remete à ideia de criação da identidade a partir do pertencimento a um espaço geográ�co, de reconhecer tal espaço como casa, como porto. A rede�nição das subjetividades negras por meio da memória promove um sentido de inclusão e de recon�guração do espaço, compreendendo que, ao reproduzir espaços como casas-grandes e senzalas, existe uma divisão racial do território. Isso se compreende da leitura da naturalização do que é o lugar do negro, ligado à subserviência e à criminalização e do que é o lugar do branco, relacionado a postos de comando e dominação. Lélia Gonzalez (1984, p. 232) ao discorrer sobre, anuncia que “os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção econômica existentes no brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do ‘lugar natural’ de Aristóteles.” A dialética do senhor e do escravo se apresenta também na lógica de dominação, que diz quem domina e quem é dominado, que tenta domesticar e infantilizar o negro e a mulher. Esse processo é encoberto pelo mito da democracia racial, tática para induzir uma falsa ideia de igualdade não �dedigna com a exclusão de fato das pessoas negras. Com a chave destas questões é que se pretende desnaturalizar a classe, desnaturalizar a raça e desnaturalizar o gênero, assimilando que um instrumentaliza o outro e se reúnem em um só golpe. Pensar através da perspectiva macro é adotar os pontos de referência adequados para captar a questão política estrutural das mulheres e o problema da universalização a partir da “mulher-média”, isto é, branca, burguesa e heterossexual, que não representa a maioria das mulheres negras trabalhadoras que estão na linha de frente da tropa de choque do Estado, isto é, em posições subalternas e marginalizadas. Nesse sentido, o universalismo é encarado como um postulado colonial, porque, ao generalizar as identidades, essencializa particularidades e ignora como a combinação de certos aspectos de dominação atravessam
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