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Justica Restaurativa em Crimes De Violencia Domestica

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Este trabalho foi escrito entre os anos 2016-2018, período
que o Brasil sofreu o golpe jurídico-parlamentar-midiático
que depôs a primeira mulher presidenta do país e,
posteriormente, condenou ilegalmente o primeiro operário
nordestino a ocupar a presidência da República.
Em 2018, a jovem democracia completaria 30 anos, mas
foi alvejada de morte no “estado de exceção” instalado, em
que o Direito foi suspenso e reinou a arbitrariedade dos
imperialistas.
Os condenados do Sul do mundo lutam não só por uma
segunda abolição, como também por uma segunda
democracia, erigida pelo povo e para o povo.
Dedico, portanto, este trabalho ao povo brasileiro, herdeiro
direto dos povos originários, que, organizados em defesa dos
sonhos de muitos, se levantou em massa e fez dos tempos
sombrios longas primaveras de luta. Viva esta brava gente!
AGRADECIMENTOS
“Minha primeira lembrança de felicidade, quando era uma pirralha magrela e
desgrenhada, é a de mexer ao som dos tambores...A música é um vento levado pelos
anos, pelas lembranças e pelo temor, esse animal preso que carrego dentro de mim. (...)
Dance, dance, Zarité, porque escravo que dança é livre...enquanto dança. Eu sempre
dancei.” 1
Nesta dança de libertação da mente dos processos violentos de
colonização e epistemicídio, há muitos braços que nos empurram para
frente e encorajam a ocupação de espaços como esse.
Agradeço primeiramente à minha família, em nome de meus pais,
irmão e primas. Ao meu pai, por me entregar todo o apoio possível para
seguir caminhando a passos largos, por ser a razão negra que conheço
desde menina; à minha mãe, pela presença constante e amor cuidadoso; ao
meu irmão, pelo companheirismo; às minhas primas Larissa e Natália, pela
irmandade doce e amiga.
Agradeço à minha orientadora Vanessa Berner, por aceitar entrar
nesta jornada comigo, pelo acolhimento de portas abertas e por me propor
lentes decoloniais durante o mestrado da UFRJ.
À Riccardo Cappi, eterno orientador amado, por me apresentar a
criminologia crítica, por brincar com minhas certezas, por nos fazer rebeldes
contra a violência penal e pelo suporte fundamental desde as primeiras
inquietações até o produto �nal desta pesquisa.
Às professoras Marília Montenegro, Fernanda Rosenblatt e Carolina
Salazar gratidão pela oportunidade de acompanhar a pesquisa “Entre
práticas retributivas e restaurativas: A lei Maria da Penha e os avanços e
desa�os do Poder Judiciário”.
À CAPES, pela bolsa concedida que garantiu a exequibilidade deste
trabalho.
À Marcha Mundial das Mulheres, especialmente ao núcleo Rosa dos
Ventos, por me colocar em movimento orientada pelo feminismo popular.
À Consulta Popular como um todo, mas especialmente à do Rio de
Janeiro, por me inserir nas lutas gerais do povo na construção permanente
de um mundo novo. Grata pela solidariedade e pelas jangadas de esperança
saídas para o mar.
Agradeço, por �m, aos negros e negras em diáspora, pela chama que
queima na busca por sobrevivência e luta pela liberdade plena, por
operarem em mim esta força ancestral e adoçarem a memória dos tempos
de resistência de ontem que inspiram a resistência de hoje.
1 ALLENDE, Isabel. A ilha sob o mar (1942). Tradução Ernani Só. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2010.
APRESENTAÇÃO
Bebo da poética das mulheres que pisam o chão descalças, sentem as
pedras, a terra, suportam as estações e atravessam os tempos da história.
Assim como Conceição Evaristo (2009, p.18) se vê no ato de transmitir a
fala, “quando escrevo, quando invento, quando crio a minha �cção, não me
desvencilho de um ‘corpo-mulher-negra em vivência’ e que, por ser esse ‘o
meu corpo, e não outro’, vivi e vivo experiências que um corpo não negro,
não mulher, jamais experimenta”.
Assim também me sinto e vejo no processo de interpretar o mundo,
pisar nele e caminhar para transformá-lo, trilhos estes que não escolhi, mas
me escolheram. Não sou mulher, sou mulheres. Minha consciência é plural,
assim como meu sujeito. Carnes fatigadas, léguas e léguas de preterimentos,
invisibilizações e silenciamentos. Carnes baratas do mercado ardem e
exibem a fúria dos povos espoliados na hora da verdade: nesta terra em
transe, nossa loucura é nossa consciência e está aqui na luta, na resistência.
É um tempo de guerra. Mas outrora representou paz para quem? A
luta de classes é uma guerra constante e sentencia à morte os deserdados
desde o seu princípio. É a partir deste sertão de corpos de mulheres,
negros(as) e pobres empilhados que vou doar minha voz latina para
compreender o funcionamento penal de estigmatização e aniquilamento
com as populações marginais.
Para entender a tônica das relações sociais no Brasil, urge
compreender como operou a violência outrora colonial e, agora,
capitalista/patriarcal/racista. Este mapeamento nos remete aos processos
históricos de dominação e subalternização, orientados pelo projeto da
modernidade a partir do eurocentrismo e dos mitos fundacionais de
superioridade e inferioridade. Os dispositivos de poder e de ‘invenção do
outro’ a partir da lógica binária/excludente, fruto da racionalidade
moderna, foram fundamentados pela ideia de raça e �zeram da América
Latina um lugar de extração, seja de riquezas, seja da vida dos povos.
Essas vidas são extraídas, dentre muitas formas, pelo extermínio físico,
pela coisi�cação, pela exploração do trabalho ou, através da pena por
excelência do capitalismo, o encarceramento. A prisão reúne muitas formas
de apagamento, representa a modernização das tecnologias punitivas que
impõe novas roupagens, mas continua expressando que “a carne mais
barata do mercado é a carne negra” (salve Elza Soares!) e pauperizada. As
permanências autoritárias e racistas no continuum punitivo e na maneira de
atuar do sistema penal atualizam as formas de encarceramento: o
aprisionamento pela raça, pela classe, pelo gênero.
O sistema penal se caracteriza por uma e�cácia instrumental invertida
em que a função real não é combater (reduzir ou eliminar) a criminalidade,
protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e
jurídica, mas, ao invés, construi-la seletiva e estigmatizantemente, e neste
processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e
assimetrias sociais de gênero, raça e classe.
A ine�cácia do sistema penal é sentida também no âmbito de proteção
das mulheres contra a violência, porque não previne novas violências, não
escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão
do signi�cado da violência para gestão do con�ito, e muito menos para a
transformação das relações de gênero. Assim, é estruturalmente incapaz de
oferecer alguma proteção à mulher e responde com o castigo,
desigualmente distribuído e não cumpre as funções preventivas
(intimidatória e reabilitadora) que se lhe atribuem.
O avanço do capitalismo neoliberal aprofunda contradições sociais
estruturais e re�na seus instrumentos de controle da vida das mulheres,
seja pela condução natural do acirramento da luta de classes, personi�cada
na dinâmica conservadora estampada nos interesses político-econômico-
ideológicos, seja pelo lugar conferido ao Direito nesta lógica espoliativa: o
de fortalecer uma política de gênero violenta.
Para tentar sanar esta incapacidade protetiva, preventiva e resolutória
dos crimes de gênero é que nos associamos àqueles e àquelas que
defendem a multiplicação da prática da Justiça Restaurativa, pois que é
processo participativo, democrático e formativo.
A prática restaurativa foge à didática operacional do castigo como
resposta reparadora ao crime, confronta a justiça penal tradicional a
começar pela concepção de justiça e crime a partir da criminologia crítica,
principalmente de quem é o criminoso e quem é a vítima, bem como da
falência do sistema penal a partir das bases do abolicionismo penal,
deslocando o senso comum teórico2 para a subjetividade por detrás do
con�ito.
É um Direito do encontro e do consenso, e não da força sancionatória,uma vez que foca na restauração das relações intersubjetivas e comunitárias
afetadas pelo crime, na solução do con�ito, na reparação dos danos e dos
traumas, na satisfação das partes (vítimas, infrator e comunidade). Forma
de devolver o con�ito antes apropriado pelo Estado aos verdadeiros
protagonistas, confere elemento participativo e democrático ao modelo
restaurativo e descontrói uma ideia de justiça da ordem para uma justiça
horizontal do debate.
No entanto, sabemos que a ideologia sexista, classista e racista
instrumentaliza os modos de agir nas relações materiais, consolidando
direta ou indiretamente sistemas de dominação- exploração. Por ser assim,
a questão que se coloca é: quais as condições de possibilidade de se realizar
um procedimento restaurativo, fundado na igualdade, paridade e
horizontalidade se entre as partes envolvidas já existe um poder
hierarquizado pré-estabelecido socialmente pela ideologia de classe, gênero
e raça?
O patriarcado é associado ao capitalismo e ao racismo como fontes
formais e materiais de produção de consenso opressor. Nesse sentido, foram
analisadas as opressões através da transversalidade em que incorrem
nos(as) sujeitos(as), pensando-as como um nó, na medida em que atuam
conjuntamente e aprofundam a objeti�cação dos indivíduos, ao tempo em
que demarcam que a violência é declarada, mas também simbólica e
travestida nos discursos e modos de agir dentro e fora do sistema.
Transdisciplinar por excelência, o tema da violência sexista focado na
violência doméstica transita entre as categorias citadas, mas está �rmado na
perspectiva de gênero e, portanto, da criminologia feminista. O sistema
penal androcêntrico é contestado a partir das respostas dadas aos con�itos,
de modo que entre as funções não-declaradas do sistema penal está a
revitimização das mulheres submetidas ao processo penal.
Da imersão nos modos de produção como bases para organizar a
opressão de raça/classe/gênero, denúncia de morte em vida provocada pela
operatividade do sistema penal à crítica da crítica com a Justiça
Restaurativa, este trabalho como toda orientação marxista, é matéria em
movimento, é processo e será construído com as lentes menos colonizadas
que possível for.
A pesquisa se pretende enquanto processo coletivo e instrumento da e
para a luta feminista e abolicionista, afastando o fetichismo normativo
achado na lei para rea�rmar o direito achado nas ruas, revertido a uma
orientação comunitária e de pés �rmes contra a violência travestida de
justiça social.
Portanto, este é um pontapé para avançar no debate criminológico
crítico a respeito da violência doméstica com uma perspectiva feminista
abolicionista, por sabermos das nuances sutis da contradição em defender
as vidas das mulheres ao custo do aprisionamento de homens
subalternizados na sociedade a ponto de contribuir para o apagamento
simbólico das comunidades negras. Não nos isentamos, todavia, de fazer a
crítica da crítica, analisando as condições de possibilidade da execução das
práticas restaurativas dadas as peculiaridades brasileiras.
Os homens e mulheres alienados do processo espoliativo das
sociedades do Sul global transformados em bagaço (sem desfrutar do suco
do capital) fazem parte da história da gente que virou suco3 e também da
gente que constata esse contínuo esmagar de pessoas, essa estrutura que
rouba a dignidade humana.
A dissertação é, portanto, a história da mulher e do homem que não
querem virar suco, que se opõem à pasteurização de suas vidas, que lutam
contra a constante opressão sofrida, desde o depósito em porões da miséria,
até a violência do Direito que não nota sua presença, não distingue sua
diferença e o(a) marginaliza, condenando-o(a) a um crime que nunca
cometera. Este sujeito da história, que se apropria de sua consciência de
classe, deixa de ser mais um(a) de vida severina para transformar as secas
vidas do povo.
2 Warat, L.A – Saber crítico e o senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, 1982.
3 Referência ao �lme “O homem que virou suco”, de 1981, dirigido por João Batista de Andrade, que
conta a estória de um poeta nordestino confundido com um assassino e criminalizado. É uma
sátira do capitalismo e sua mão nada invisível para punir os pobres.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
I. O MUNDO COLONIAL NÃO SUPLANTADO: A VIOLÊNCIA
CAPITALISTA-PATRIARCAL-RACISTA
I.1. O fetiche da colonialidade: “eis que me descubro
objeto em meio a outros objetos”4
I.2. Escravismo, colonização e capitalismo dependente
I.3. “A morte reiterada na vida e a vida que habita a
máscara da morte”: das mortes em vida do negro
I.4. Desatar os nós
I.5. Amandla Awethu20: negros(as) do mundo,
aquilombai-vos!
II. ABOLICIONISMO PENAL E APONTAMENTOS TEÓRICOS
SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA SOB A PERSPECTIVA
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FEMINISTA
II.1. Punição estrutural: a laranja mecânica23 do dia a dia
II.2. A parte que lhe cabe neste latifúndio: a fábrica do
cárcere
II.3. Em busca das promessas perdidas30: o direito penal
desmisti�cado
II.4. “Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro”31
II.5. A caminho do horizonte estratégico: as propostas
abolicionistas
II.6. “Em que meu olhar permite ver as coisas?”39:
trocando as lentes
III. NOVAS SENTENÇAS, VELHOS CATIVEIROS, VELHOS
PERSEGUIDOS
III.1. Estado da arte da violência contra mulheres no Brasil
III.2. Introduzindo a pesquisa-paradigma e a lei de Marias
III.3. Potencialidades e riscos da justiça restaurativa em
casos de violência doméstica no Brasil
III.4. O gênero da violência e a crítica da criminologia48
III.5. E as condições de possibilidade?
III.6. Para abolir uma linguagem-fronteira: uma
linguagem-percurso como resposta-percurso
IV. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APÊNDICE - ENTREVISTA COM UM COMUNISTA ZAMBIANO
I. O MUNDO COLONIAL NÃO
SUPLANTADO: A VIOLÊNCIA
CAPITALISTA-PATRIARCAL-RACISTA
I.1. O fetiche da colonialidade: “eis que me
descubro objeto em meio a outros objetos”4
“Falo de milhões de homens/Em quem deliberadamente inculcaram o medo/O complexo
de inferioridade, o tremor/A prostração, o desespero, o servilismo.”
(Aimé Césaire, 2006)
Um dos maiores estudiosos da diáspora africana, Frantz Fanon, na
introdução da sua tese Pele Negra, Máscaras brancas (2008), ao nos falar
das clausuras da branquitude e da negritude como construções do
colonialismo, diz existir uma “zona de não-ser”, um espaço de negação da
existência em que o negro foi despejado, constatando, com pesar, que na
sociedade de bases coloniais o destino do negro é branco. Denuncia a
morte em vida que é o estado estéril de não-humanidade a que estão
sujeitos os colonizados do mundo.
Demarcando o sentido materialista que orienta a análise, evidencia
que a verdadeira desalienação do negro implica na tomada de consciência
das realidades econômicas e sociais, pois que o complexo de inferioridade
acontece após um duplo processo: inicialmente econômico e em seguida
pela “epidermização” dessa inferioridade, isto é, a interiorização, a gravação
na pele do lugar de poder que cabe a cada um.
As relações modernas5 de poder têm caráter dualista e excludente,
pautadas no dispositivo que constrói o outro mediante uma lógica binária
que reprime as diferenças. A máquina que garante a engrenagem desta
perspectiva é o eurocentrismo, modo de produzir conhecimento que opera
como espelho a distorcer o que re�ete. Todos os povos submetidos ao poder
colonial foram conduzidos a aceitar a imagem europeia re�etida como se
sua fosse. A violência colonial se manifesta, dentre outras formas, na
negação da diferença e na destruição paulatina da cultura das Américas, da
linguagem às experiências históricas, aniquilando as nações ora por
extermínio físico, ora por apagamento cultural.
Esse movimento de disciplinar os per�s de subjetividade a partir de
coordenação estatal conduz ao fenômeno da “invenção do outro”
(CASTRO-GÓMEZ, 2005), muito ligado aoprocesso de produção material
e simbólica no qual se viram envolvidas as sociedades ocidentais a partir do
século XVI.
A respeito dos mecanismos disciplinares de poder no contexto latino-
americano do século XIX, Beatriz González Stephan (1995) identi�ca três
práticas disciplinares que contribuíram para forjar os cidadãos: as
constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas do idioma. Ela
segue o teórico uruguaio Angel Rama ao dizer que essas tecnologias de
subjetivação possuem um denominador comum: sua legitimidade repousa
na escrita e essa lógica da civilização pela linguagem faz parte do projeto
colonizador.
É neste sentido que Silvia Cusicanqui (2010) coloca a retórica da
igualdade e da cidadania como uma caricatura para encobrir privilégios
culturais e políticos. A aquisição de cidadania é tática de ajuste ao tipo de
sujeito requerido pelo projeto da modernidade: homem, branco, pai de
família, católico, proprietário, letrado e heterossexual, o qual cabe muito
bem no formato do bom burguês. Os “outros” - mulheres, empregados,
loucos, analfabetos, negros, hereges, índios, escravos, homossexuais,
dissidentes, migrantes - �cam de fora da cidade “letrada”, reclusos no
âmbito da ilegalidade, submetidos ao castigo por parte da mesma lei que os
exclui. E, por isso, a autora boliviana destacava, já em 1983, em sua obra
Oprimidos pero non vencidos, a necessidade de uma descolonização das
estruturas políticas, econômicas e mentais da Bolívia, cujas reformulações
legais e constitucionais continuaram reproduzindo práticas de exclusão e
dominação6.
Os países de terceiro mundo, classi�cação que Arturo Escobar (1996)
coloca como parte do processo de subjugo e disputa de poder7, estão
sujeitos a um duplo ou triplo tipo de violência: a violência estrutural, base
das desigualdades entre países considerados de primeiro mundo e terceiro
mundo; e uma violência simbólica, de operação sutil e de caráter cultural,
com função legitimadora das formas estruturais e diretas. A violência
cultural se apresenta por meio dos discursos, símbolos, metáforas, religiões,
assim como a violência epistêmica se relaciona com a dualidade saber-
poder, estudada por Foucault, com temas relativos à produção e à maneira
pela qual o poder se apropria e condiciona o conhecimento, determinando
aquilo de primitivo, selvagem e descartável.
Em outras palavras, os discursos patrocinados pelo projeto da
modernidade não toleram as epistemologias alternativas8 e pretendem
negar a alteridade e a subjetividade dos outros de forma a perpetuar a
opressão dos saberes e justi�car a dominação. E é o Estado, como
garantidor da organização racional da vida humana, que detém também o
monopólio da violência para �ns de dirigir as atividades dos cidadãos -
Walter Mignolo (2000) aborda o Estado-nação como uma maquinaria
geradora de “outredades” que devem ser disciplinadas.
Nesse sentido, Gayatri Spivak (2003) problematiza o modo como o
sujeito do terceiro mundo é representado no discurso ocidental,
denunciando o projeto da modernidade como exercício da violência
epistêmica e relacionado ao vínculo conhecimento-disciplina. Esta violência
epistêmica se constitui em uma forma de exercer o poder simbólico e é um
conceito que consiste na negação e no apagamento de signi�cados da vida
de indivíduos e grupos.
Ao identi�carmos que o ponto de partida para a construção das
representações dos sujeitos é o dispositivo de saber/poder, essencial é
localizar o conceito de colonialidade do poder9 (QUIJANO, 1999, pp. 99-
109), mecanismo que gera o sistema-mundo. Para Quijano, a espoliação
colonial é autorizada pelo imaginário que estabelece diferenças
incomensuráveis entre colonizador e colonizado. Aqui as noções de raça e
cultura operam como dispositivos categorizadores que geram identidades
opostas. O colonizado é o “outro”, fato que legitima o exercício de um poder
disciplinar que parte do colonizador. As identidades são excludentes entre
si: enquanto o colonizado é associado à maldade, selvageria, barbárie, o
colonizador aparece vinculado à bondade, civilização e racionalidade.
Com esse panorama, fácil é identi�carmos o viés maniqueísta que
orienta essa dualidade de pensamento e, consequentemente, o controle
social seletivo. Para isso Castro-Gómez (2005, p.83) conecta:
O conceito da colonialidade do poder amplia e corrige o conceito foucaultiano de poder
disciplinar, ao mostrar que os dispositivos panópticos erigidos pelo Estado moderno
inscrevem-se numa estrutura mais ampla, de caráter mundial con�gurada pela relação
colonial entre centros e periferias devido à expansão europeia. Deste ponto de vista
podemos dizer o seguinte: a modernidade é um projeto na medida em que seus
dispositivos disciplinares se vinculam a uma dupla governamentabilidade jurídica. De
um lado, a exercida para dentro pelos estados nacionais em sua tentativa de criar
identidades homogêneas por meio de políticas de subjetivação; por outro lado, a
governamentabilidade exercida para fora pelas potências hegemônicas do sistema-
mundo moderno/colonial, em sua tentativa de assegurar o �uxo de matérias-primas da
periferia em direção ao centro.
A expansão comercial, a dinâmica de troca de mercadoria entre centro
e periferia e a vigilância/domínio sobre os sujeitos dialogam com a relação
de superioridade/inferioridade entre dominador e dominado patrocinada
pelo eurocentrismo. A respeito disso, importante demarcarmos como a ideia
de raça nas Américas é uma maneira de legitimar as relações de dominação
impostas pela conquista (QUIJANO, 2005). A elaboração teórica da raça
surge, oportunamente, como ferramenta de naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus.
A maioria dos teóricos sociais dos séculos XVII e XVIII, resgata
Castro-Gómez (2005), coincidia na opinião de que a espécie humana
caminha da ignorância à iluminação em um processo crescente até chegar
ao aperfeiçoamento representado pelas sociedades modernas europeias. O
primeiro estágio de desenvolvimento, relatado pelos navegantes era o das
sociedades indígenas, retratadas com as características da selvageria,
barbárie e ausência completa de arte, ciência e escrita. A América era
sinônimo de superstição, primitivismo, guerra de todos contra todos,
“estado de natureza”, tal qual teorizado por Hobbes. O estágio mais alto do
progresso humano estaria representado pelas sociedades europeias, onde
reinariam a civilidade, o Estado de Direito e o cultivo da ciência e das artes.
A conformação colonial do mundo entre ocidental ou europeu,
concebido como moderno e avançado, e os “outros”, restante dos povos e
culturas, é inaugurada, segundo Edgard Lander (2005), com a conquista
ibérica do continente americano. A partir desse momento, inicia-se a
constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (MIGNOLO,
1995) e do imaginário (QUIJANO, 1992), processo que culmina nos
séculos XVIII e XIX com a organização de todos os territórios em uma
grande narrativa universal. Nesta narrativa, a Europa é o centro geográ�co
e o auge do avanço. E ao nos referirmos a um lugar sob a perspectiva das
relações de poder, estamos falando de geopolítica; nesse caso, a geopolítica
do conhecimento mostra como tem operado a periferização de uns lugares
e a centri�cação de outros. É nesse sentido que Catherine Walsh (2005, p.
41) nos a�rma que a produção do conhecimento “está marcada geo-
historicamente, geo-politicamente e geo-culturalmente; tem valor, cor e
lugar ‘de origem’”.
Esta construção eurocêntrica que toma a totalidade do tempo e do
espaço para a humanidade a partir da própria experiência, colocando as
particularidades histórico-culturais como padrão de referência superior e
universal, é também um dispositivo de conhecimento colonial. Explicamos:
o dispositivo colonizador do conhecimento transforma um modo de vida de
dada sociedade no modo “normal” do ser humano e da sociedade; as
formas de ser, conhecimentoe organização social não apenas são diferentes,
como também carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas
(LANDER, 2005). Essa visão de mundo tem como eixo articulador central
quatro visões básicas:
1. A visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da qual se
constrói a classi�cação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências
históricas); 2. A ‘naturalização’ tanto das relações sociais como da ‘natureza humana’
da sociedade liberal-capitalista; 3. A naturalização ou ontologização das múltiplas
separações próprias dessa sociedade; e 4. A necessária superioridade do conhecimento
que esta sociedade produz (‘ciência’) em relação a todos os outros conhecimentos.
(LANDER, 2005, p. 13)
Por ser assim, Grosfoguel (2006, p. 21) declara que “os paradigmas
hegemônicos eurocêntricos que têm con�gurado a �loso�a e as ciências
ocidentais no sistema-mundo moderno/colonial capitalista/patriarcal [...]
durante os últimos 500 anos assumem um ponto de vista universalista,
neutro e objetivo”. É nesse sentido que nomeia de “ego-política do
conhecimento” a ideia de que pode existir a produção e apropriação de
conhecimento desde um não-lugar, desde um sujeito deshistoricizado e
descorporizado, isto é, um sujeito universal. Esta ego-política não leva em
conta as relações entre a localização epistêmica do sujeito que produz
conhecimento, o conhecimento gerado e suas articulações com processos de
dominação, exploração e sujeição.
Os processos de exploração nas Américas estão inscritos na estrutura
triangular da colonialidade: a colonialidade do ser, a colonialidade do
poder e a colonialidade do saber, em que este último se localiza em uma
estrutura hierárquica, disciplinar e �scalizadora (CASTRO-GÓMEZ, 2007).
A colonialidade do saber controla a produção intelectual e criativa e
determina aquilo que é considerado bom/belo/importante e o que é
inferior. Essa produção descartável é construída por grupos colonizados e
esse controle é uma forma de segregação não-declarada, fazendo parte do
aperfeiçoamento das tecnologias de sujeição e exploração das populações
periféricas.
Estas marcas serão percebidas no tópico seguinte em que iremos expor
sobre o modo de produção escravista, seu embasamento ideológico e a
relação de dependência para com os países europeus, em que os signos da
colonialidade produziram sentidos de inferioridade racial a justi�car a
exploração e a violência cometida contra os povos negros do Brasil.
I.2. Escravismo, colonização e capitalismo
dependente
A formação social brasileira tem em sua história as marcas da violência
fruto do colonialismo que instaurou modos de produção exploradores da
mão de obra dos povos originários da nação. Desde o princípio do
estabelecimento das nações europeias em território brasileiro, houve o
surrupiamento das riquezas do país e a subalternização dos grupos
instalados, conduta fruto de uma orientação hierárquica de mundo.
Enquanto a violência colonial atua descivilizando e embrutecendo o
colonizador, se propõe, no outro extremo, a submeter e desumanizar o
colonizado. Para Césaire (2006), quando o colonizado resiste, morre pelas
balas dos soldados; quando cede, morre em sua qualidade de homem, pois
se degrada, tendo seu caráter tomado pela vergonha e pelo medo.
A coisi�cação gerada pela colonização só pode ser combatida através
de um processo histórico e radical de descolonização, isto é, de destruição
do mundo colonial para devolver aos homens e mulheres espezinhados a
humanidade e a linguagem, convertendo a antiga coisa colonizada em um
novo homem através da libertação (FANON, 2015).
Entendido o colonialismo como violência em seu estado de natureza,
não se pode derruba-lo senão por uma violência maior. Assim, a
contribuição de Fanon é trazida pela voz de Césaire (2010, p. 25):
Na visão fanoniana, a violência revolucionária é concebida como uma necessidade,
para se quebrar o jugo militar colonial, e também como um indispensável
instrumento de reconstrução da autoestima do colonizado. Fanon concebe que, para o
sujeito colonizado modi�car os termos da relação com o mundo que o oprime, se
fazia necessário o emprego da resistência em todas as suas formas. A resistência ao
racismo eleva o sujeito colonizado ao lugar de protagonista, devolvendo-lhe, com isso,
a humanidade. A violência revolucionária, diz Fanon, é desalienante.
Para Fanon, o inconsciente coletivo dos colonizados que processa a
autodefesa por meio da violência de cunho político e revolucionário, parte
da tomada de consciência enquanto sujeito de um mundo cortado em dois.
O colonizado esteve dominado, inferiorizado, mas nunca domesticado. No
fundo, sempre está preparado para o momento de descuido do colono, em
que abandonará seu papel de presa e assumirá o de caçador.
Para entender a questão racial no brasil, é imprescindível
remontarmos para o escravismo como modo de produção que imperou de
1550-188810, gestou a economia, sedimentou as relações sociais no Brasil
colonial e se estendeu pelos períodos posteriores no que toca à ideologia do
servilismo do negro em função da dominação do branco.
Por assim dizer, estamos em sintonia com Clovis Moura (1994) ao
entendermos que o sociólogo ou historiador deve procurar nas contradições
e nos con�itos as causas geradoras da dinâmica social de um modo de
produção e não nas áreas neutras e estáticas de condições do sistema. Com
esta responsabilidade, os recortes de história narrados no presente texto
partirão do marco de que o único equilíbrio social entre escravos e senhores
que existiu foi promovido pelo controle social.
Em verdade, as colaborações dos escravos e compreensão dos senhores
não representavam a �bra das relações sociais produzidas na dinâmica
colonial. Ao contrário, a tônica era do antagonismo de interesses e da
contenção de classe através do controle social. Narrar dando
intencionalidade para uma harmonia perene como regra, tal qual
segmentos da sociologia o �zeram, é “supor-se que a inércia social é o fator
de mudança e transformação da dinâmica social”(1994, p.20).
Analisar um modo de produção em sua totalidade requer identi�car
as relações centrais e as secundárias e isto se exempli�ca na dinâmica do
escravismo, na qual as relações paci�cas e neutras existiram e possibilitaram
a segurança social do modo de produção. Nesse sentido, é evidente que são
encontradas áreas em que as frações de classe são coloquiais, neutras e
pací�cas, mas isto não explica ou esgota a dinâmica escravista.
A interpretação de Gilberto Freyre, por exemplo, ressalta um caráter
democrático das relações entre negros e brancos no Brasil. Toda a análise
freyriana sobre a escravatura e a história social do negro brasileiro após a
escravidão induz à conclusão de que: a escravatura daqui foi humanizada,
não alienante, fruto do patriarcalismo brasileiro; as peculiaridades culturais
e morais do português e seus descendentes no Brasil tornaram a sociedade
brasileira uma sociedade racialmente democrática.
O que explica esta posição romântica e fantasiosa sobre o escravismo é
que Freyre trabalha na perspectiva da casa-grande e do sobrado, isto é, do
branco senhor de escravos, ou do branco que pensa os problemas raciais
brasileiros na ótica da classe dominante. Para o branco proprietário de
terras e escravos, toda a violência cometida contra os negros era na verdade
uma benevolência, uma oportunidade de acessarem comida e moradia e de
salvarem seus espíritos demoníacos perante Deus. A história pode ser
escrita de formas completamente diferentes a depender da lente daquele
que narra.
Ao contrário, a�rma Clovis Moura (1994, p.21):
O seu agente motor está justamente no oposto da harmonia e da cooperação, nas
contradições que uma parte da classe produtora do valor se abstém dessa produção.
Ora, se todos escravos fossem disciplinados, �zessem acordos, aceitassem a cultura da
escravidão segundo os critérios de concessão do senhor, então,como diria Marx, a
história pararia.
O Brasil, na sua formação histórico-social construiu dois modelos de
sociedade: o escravista colonial, subordinado à economia colonialista e o
capitalismo dependente subordinado ao imperialismo. Mas em que
consistiam as relações sociais entre os grupos da sociedade escravista?
No sistema escravista, o cativo se converteu em coisa. O seu interior e
a sua humanidade foram esvaziados pelo senhor até que ele �casse
totalmente subordinado; a sua re-humanização só era reestabelecida na e
pela rebeldia, isto é, na sua negação consequente como escravo. Essa
constatação revela como o escravismo penetrou na sociedade e injetou seus
valores, de modo a ser o período da história dramaticamente necessário de
se conhecer para compreendermos os alcances atuais dos arranjos sociais.
A divisão social do trabalho correspondeu, na realidade, a uma divisão
racial do trabalho, por força de a divisão compulsória determinar que a mão
de obra escrava seria praticada pelos negros. Em momento posterior, esta
divisão passou a ser acionada no contexto competitivo, reservando-se para o
negro apenas aquilo que o branco, descartava ou desprezava.
O caráter repressivo e violento das relações escravistas de produção é
apreendido da compreensão de que o escravismo é um sistema de
produção de mais-valia absoluta, sistema esse no qual a mercadoria aparece
imediata e explicitamente como produto da força de trabalho alienada.
Ademais, a alienação incide duplamente no escravo, como pessoa,
enquanto propriedade do senhor, e em sua força de trabalho, faculdade
sobre a qual não tem ingerência. Para viver e reproduzir-se, o escravo é
obrigado a produzir muito além do que recebe e não dispõe de condições
para negociar, nem o uso da sua força de trabalho nem a si mesmo. Esse é o
fundamento do caráter repressivo e violento do escravismo. (IANNI, 1978)
Desde o princípio, as sociedades das Américas estão atadas à economia
mundial formadas em estado de dependência enquanto colônias ou países:
primeiro à mercantilista e depois à capitalista. Nessas condições, quando o
capitalismo alcançou certo grau de desenvolvimento, em âmbito mundial,
tornou difícil a continuidade das relações escravistas de produção.
No Brasil, a formação social capitalista foi se constituindo por dentro
da formação social escravista. O ápice do confronto entre a formação social
escravista, em franca decadência, e a formação social capitalista em
expansão foi a queda da monarquia. Explicamos: a luta entre a aristocracia
agrária, de base escravocrata, e a burguesia cafeeira do oeste paulista, na
qual vence esta, era a expressão política dos desajustes e antagonismos
entre as duas formações sociais.
A transição da sociedade escravista para a sociedade competitiva do
capitalismo preservou as estruturas de poder herdeiras da ideologia do
colonizador. As classes dominantes do império, que se transformaram de
senhores de escravos em latifundiários, estabeleceram mecanismos
repressivos, ideológicos, econômicos e culturais a �m de controlar a luta de
classes dessas camadas de ex-escravos, acomodando-os nos espaços
marginais de uma economia de capitalismo dependente. (MOURA, 1980)
A sociedade competitiva que substituiu a escravista favoreceu a
ideologia da democracia racial e produziu nas organizações negras um
assimilacionismo de formas de comportamento brancas como meio de
proteção contra a perseguição por força de seus propósitos radicais. Esta é
uma das faces do pacto entre a ideologia do colonizador e a do colonizado.
Nesse sentido, a re�exão de Moura (op. Cit., p.125):
A sociedade de modelo de capitalismo dependente substituiu a de escravismo colonial.
O sistema competitivo inerente ao modelo de capitalismo dependente, ao tempo em
que remanipula os símbolos escravistas contra o negro procura apagar a sua memória
histórica e étnica, a �m de que ele �que como homem �utuante, ahistórico. Porque
situa-lo historicamente é vê-lo como agente coletivo dinâmico / radical desde a origem
da escravidão no Brasil. É, por outro lado, revalorizar a República de Palmares, único
acontecimento político que conseguiu pôr em cheque a economia e a estrutura militar
colonial; é valorizar convenientemente as lideranças negras de movimentos como as
revoltas baianas de 1807 a 1844.
Segundo Ianni (1978, p. 80), o paternalismo, a ambiguidade, o mito da
democracia racial e outras expressões da dominação exercida pelo branco
confundem e irritam o negro. É frente a esta manipulação ideológica que o
negro toma consciência da sua dupla alienação: como raça e como membro
de classe. Assim, para enfrentar sua condição duplamente subalterna, o
negro é levado a elaborar uma consciência política dúplice; reconhece- se
como membro de outra raça e classe opostas às do branco, passando a
entender que enquanto membro desta raça está só e precisa lutar a partir
desta condição. Nesse cenário, raça e classe subsumem-se reciproca e
continuamente, tornando mais complexa a consciência e a prática política
do negro.
Sobre o aspecto capitalista do Brasil, a re�exão de Jacob Gorender
(1998, pps. 105-106):
A concentração de renda e a deterioração da qualidade de vida de grandes massas da
população justi�caram que se chamasse o capitalismo brasileiro de selvagem. Mas se
trata de uma designação puramente moral, sem valor cientí�co. Qualquer que seja o
país, inclusive os da revolução burguesa clássica, todo capitalismo, por suas leis
imanentes, tende à exploração da força de trabalho até o limite das possibilidades
físicas. O que o impede de chegar a este limite e lhe impõe formas civilizadas de
exploração é a luta de classes dos operários.
As categorias de raça e classe precisam ser compreendidas em suas
especi�cidades. Uma interpretação dos problemas raciais que não incorpora
a localização das pessoas na estrutura de classes, sejam elas classes
amadurecidas, em formação ou em crise, está certamente equivocada e
incompleta.
Portanto, pode-se concluir que o modo de produção escravista entrou
em colapso, mas deixou marcas profundas que se comportam como
elementos vivo nas relações de produção da sociedade brasileira. O modelo
de capitalismo dependente que substituiu o modo de produção escravista
dele se aproveitou e fez dele uma parte dos seus mecanismos reguladores
da economia subdesenvolvida. Desta forma, os vestígios escravistas são
remanejados e dinamizados na sociedade de capitalismo dependente em
função do imperialismo dominante.
I.3. “A morte reiterada na vida e a vida que
habita a máscara da morte”: das mortes em vida
do negro
As estratégias históricas de apagamento da identidade negra
constituem um projeto de genocídio físico e simbólico dos negros em
diáspora. A libertação do negro, nesse sentido, só é possível se reconhecidas
estas variadas servidões visíveis e invisíveis como parte de uma mística
racista de propósito arianista, isto é, de fortalecimento do ideal de
branqueamento.
O uso sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro
brasileiro foi cunhado pelo grande teórico, político e militante do
movimento negro Abdias do Nascimento. Nesse sentido, o autor aponta
como primeira estratégia de genocídio a do branqueamento da raça.
A intenção do desaparecimento inapelável dos descendentes africanos
no Brasil se deu através do recurso da exploração sexual da mulher negra,
estuprada pelos senhores brancos para produzir o que entendiam como
puri�cação do sangue: o mulato, o pardo, o moreno. A herança negra, vista
como mancha negra, precisava ser combatida por meio do processo de
mulatização, que nada mais é que um fenômeno de genocídio, haja vista o
crescimento da população mulata e o desaparecimento da raça negra sob a
coação do progressivo clareamento da população no país (NASCIMENTO,
1978).
A respeito do papel social do mulato, Abdias (Ibid, p.69) a�rma:
Situado no meio do caminho entre a casa-grande e a senzala, o mulato prestou serviços
importantes àclasse dominante; durante a escravidão, ele foi capitão-do-mato, feitor, e
usado noutras tarefas de con�ança dos senhores, e, mais recentemente, o erigiram como
um símbolo da nossa ‘democracia racial’.
A solução parecia satisfatória e recebeu endosso religioso da Igreja
Católica, que considerava o negro um indivíduo de sangue infectado. Além
disso, as teorias cientí�cas forneceram suporte vital ao racismo arianista que
se propunha a erradicar o negro. Desde o �m do século XIX, o objetivo
estabelecido pela política imigratória foi o desaparecimento do negro
através da “salvação” do sangue europeu.
O dramaturgo Nelson Rodrigues (apud Nascimento, p.77) contribui
com uma linguagem ácida para a caracterização de nossas relações de raça:
Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas
fazemos o que talvez seja pior. Nós os tratamos com uma cordialidade que é o disfarce
pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite.
Com esta passagem, denuncia o racismo travestido em sua linguagem
para soar como parte de um bonito processo de democracia racial, só não
sendo evidente para aqueles(as) que não querem enxergar suas formas de
atuação. Nessa esteira, como outra estratégia de genocídio, Abdias (Ibid,
p.93) aponta o embranquecimento cultural em certeiras e cortantes linhas:
Devemos compreender democracia racial como a metáfora perfeita para designar o
racismo estilo brasileiro: não tão obvio como o racismo dos Estados Unidos e nem
legalizado como o apartheid da África do Sul, mas e�cazmente institucionalizado nos
níveis o�ciais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico,
político e cultural da sociedade do país. Da classi�cação grosseira dos negros como
selvagens e inferiores, ao enaltecimento da virtude das misturas de sangue como
tentativa de erradicação da mancha negra; da operatividade do sincretismo religioso; a
história não o�cial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem
perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada
democracia racial que só concede aos negros um único ‘privilégio’: aquele de se
tornarem brancos, por dentro e por fora. (grifos nossos)
Mais contemporaneamente, o africano Achille Mbembe, pensador de
altíssimo requinte no estudo do pós-colonialismo e das questões da história
e da política africana, trabalha através do resgate histórico, político e
�losó�co para mostrar como a raça foi a causa de inúmeras catástrofes,
crimes incalculáveis e carni�cinas no mundo.
Em sua obra “Crítica da Razão Negra”11, o autor discorre, por meio de
uma �loso�a política latente e erudita, sobre a ideia de homem-mercadoria,
a lógica das raças e a consequente condição subalterna do negro no projeto
colonial de esmagá-lo e convertê-lo em coisa. Desta feita, propõe a
descolonização do pensamento europeu para combater o racismo global
como parte do capitalismo.
Para começo de conversa, aponta (Mbembe, 2017) três momentos
paradigmáticos para entender a socialização do negro: o trá�co atlântico
(séc. XV ao XIX) em que homens e mulheres originários de África foram
transformados em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda; o
segundo momento corresponde ao acesso à escrita e tem início em �ns do
século XVIII, quando os Negros capturados articularam uma linguagem
para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo vivo. Não
por acaso, tal período foi marcado por inúmeras revoltas de escravos, pela
independência do Haiti em 1804, por combates pela abolição do trá�co,
pelas descolonizações africanas, pelas lutas pelos direitos cívicos nos Estados
Unidos e, por �m, pelo desmantelamento do apartheid nos últimos anos do
século XIX; o terceiro momento (início do século XXI) refere-se à
globalização dos mercados, ao avanço do neoliberalismo, do complexo
militar e das tecnologias eletrônicas digitais.
Em um discurso inconformado, Mbembe (2017, p.19) esboça o
percurso de criação do conceito de “Negro”, idealizado pelo Ocidente como
uma fábula plena de exotismo, re�nada com elementos carnais de pulsão
sexual e sensualidade, mas principalmente fundido com a imagem de
escravo. Assim discorre:
Produto de uma máquina social e técnica indissociável do capitalismo, da sua
emergência e globalização, este nome foi inventado para signi�car exclusão,
embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado.
Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único
de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria-
a cripta viva do capital.
A partir da denúncia do alterocídio, isto é, o ato de constituir o outro
não como semelhante a si mesmo, mas como objeto essencialmente
ameaçador e do qual é preciso proteger-se por meio do controle social ou
do extremo da destruição, o autor propõe um pensamento de
circulação/travessia e ampara-se em Frantz Fanon para associar a raça ao
desejo de vingança.
A raça, preleciona (Ibid, p. 27), não existe da perspectiva física,
antropológica ou genética; atravessou a história como um mecanismo
codi�cado de divisão da diversidade segundo hierarquias estanques. A
raça, em verdade, “não passa de uma �cção útil, de uma construção
fantasista ou de uma projeção ideológica cuja função é desviar a atenção de
con�itos antigamente entendidos como mais verossímeis- a luta de classes
ou a luta de sexos, por exemplo.”
Prossegue na desconstrução assinalando (Ibid, p. 40):
O negro não existe, no entanto, enquanto tal. É constantemente produzido. Produzir o
Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto é, um
corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para
obter o máximo de rendimento.
Nesse sentido, Fanon tinha razão ao sugerir que o Negro era uma
�gura ou ainda um objeto inventado pelo branco e �xado, como tal, pelo
seu olhar, por seus gestos e atitudes, tendo sido tecido por relatos e
anedotas. Em um movimento de programar o negro como parte negada do
branco, isto é, aquilo que este não quer ser, aos poucos o negro vai sendo
transformado em inimigo e o branco em vítima compassiva, o opressor
torna-se oprimido e o oprimido o algoz12. Esta é a verdadeira tônica da
alteridade na era moderna.
No momento em que partes cindidas da psique são projetadas para
fora, criando o “outro” como antagonista ao “eu”, o branco faz uma cisão de
si mesmo: a parte do ego- associada a qualidades boas- é vivida como o
verdadeiro “self” e o resto- a parte vinculada a características indesejadas- é
projetada sobre o “outro”. “O outro torna-se então a representação mental
do que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: o(a)
ladrão(a) violento(a), o(a) bandido(a) indolente e malicioso” (KILOMBA,
2010, p. 174).
Em outras palavras, prossegue Grada Kilomba (2010), tornamo-nos a
representação mental daquilo com o que o branco não quer parecer. A
branquitude pode ser descrita como uma identidade relacional dependente
que existe através da exploração do “outro”. A isso Toni Morrison (1992)
chama de “dessemelhança”.
Enquanto humilhado e espoliado, o negro vive uma humanidade
mutilada marcada pelo ferro e pela alienação. Todavia, ressigni�cado como
conceito, o Negro torna-se a linguagem pela qual os descendentes de
africanos se anunciam ao mundo e se proclamam como mundo:
Mas, a par da maldição a que a sua vida está destinada e da possibilidade de insurreição
radical que, contudo, transporta e que nunca consegue �car totalmente aniquilada pelos
dispositivos de submissão, ele representa também uma espécie de limo da terra, no
ponto de con�uência de uma multiplicidade de semimundos produzidos pela dupla
violência da raça e do capital. Operando do fundo dos porões, terão sido os primeiros
obreiros da nossa modernidade. E se há algo que assombra a modernidade desde sempre
é precisamente a possibilidade de um acontecimento particular, a revolta dosescravos,
que assinalaria não apenas a libertação dos servos, mas também uma mudança radical
das bases da reprodução da própria vida. (MBEMBE, 2017, pps. 73-74).
Uma relação de co-dependência liga os conceitos de Negro e África,
pois que falar de um é necessariamente evocar o valor do outro. A Idade
Moderna confere à África dois sentidos: o de um lugar em que o humano
se vê no extremo da precariedade da vida e do vazio do ser; e o da condição
de emaranhamento entre o humano, o animal, a natureza, a morte e vida,
“da presença uma na outra, da morte que vive na vida e que lhe dá rigidez
de um cadáver- o ensaio da morte na vida através de um jogo de
desdobramento e de repetição.”(Ibid, p.92)
Desta feita, quer se trate de literatura, �loso�a, artes ou política, os
sentidos de Negro e África estão atravessados pelos acontecimentos da
escravatura, da colonização e do apartheid que, dentre outras coisas,
produziram uma textualidade de folclorização e exotismo a estes
signi�cantes, transformando a mística do continente em um estereótipo. A
identidade negra ressurge, por outro lado, como uma identidade em devir,
em processo de reconhecimento e a�rmação de existência. Quem somos
neste mundo branco? Que podemos esperar e fazer? Somos negros. E,
como diria Florestan Fernandes (2007), negros no mundo dos brancos.
Em uma das belas passagens da obra de Mbembe (Ibid, p.89), somos
agraciados com sua percepção a respeito:
De fato, o substantivo negro tem vindo a preencher três funções essenciais na
modernidade – funções de atribuição, de interiorização e de subversão. (...) Ao longo da
história, aconteceu que aqueles que foram ridiculamente contemplados com esta
alcunha- e tinham, consequentemente, sido postos à parte ou à distância- acabaram por
habitá-la. Passou a ser de uso corrente, mas isto fê-lo mais autêntico? Num gesto
consciente de subversão, poético umas vezes, outras, carnavalesco, muitos a terão
endossado somente para melhor devolverem contra os seus inventores esse patronímico
humilhante. Decidiram transformar este símbolo de abjeção num símbolo de beleza e de
orgulho, utilizado doravante como insígnia de um desa�o radical e de um apelo ao
levantamento, à deserção e à insurreição. Enquanto categoria histórica, o Negro não
existe, portanto, fora destes três momentos: o momento de atribuição, o momento de
aceitação e interiorização e o momento da reviravolta ou da subversão- que aliás
inaugura a plena e incondicional recuperação do estatuto de humanidade antes
rasurada pelo ferro e pelo chicote. (grifos nossos)
O devir negro no mundo é a legítima resposta ao processo predador e
autoritário que forjou as vidas negras através da criação das raças e da
signi�cante “Negro” como subsídio do capitalismo para explorar. Os novos
condenados da terra, aqueles sem direitos, condenados a viver nos
calabouços sociais à mercê dos controles jurídicos, policiais, os clandestinos,
os imigrantes, os sem-papéis, são resultado de uma seleção de claros
pressupostos raciais repaginados pelo tempo.
Por ser assim, para reconstruirmos o mundo pautado na humanidade,
a restituição, reparação e a justiça são condições para recon�gurarmos os
processos de abstração e de coisi�cação promovidos pela história, re-
costurando estas partes amputadas para repararmos as dores e
(re)instalarmos a solidariedade.
I.4. Desatar os nós
Como vimos, a lógica categorial dicotômica e hierárquica se apresenta
como instrumento central do pensamento capitalista13, que se externaliza
na linguagem sobre raça, gênero e sexualidade. Assim, ao se estabelecer a
dominação das Américas, os colonizados passaram a ser vistos como a
negação da regra do colonizador, sendo os não-humanos, os não-brancos,
os não-homens, sendo a oposição ao aceitável no mundo do colonizador, o
não- esperado, o inimigo, o outro.
A prática do poder aparelha o assujeitamento14 entre agentes que são
sujeitos de direitos e humanidade e os assujeitados passivos, de modo que a
produção de subjetividade se encarrega de criar identidades servis. Há,
portanto, um processo de animalização: os colonizados e os escravizados
como o oposto ao civilizado e humano, os selvagens como instrumentos
animados nas relações de produção. Essa concepção legitima a
subordinação e a apropriação do corpo para �ns de exploração para o
trabalho e sexual, pois pressupõe uma irracionalidade que justi�ca a
intervenção em suas vidas.
O termo “colonialidade do poder”, como apresentado alhures, foi
cunhado por Aníbal Quijano e advém da compreensão histórica da
inseparabilidade da racialização e da exploração capitalista como
constitutivas do sistema capitalista de poder que ancorou a colonização das
Américas. O eurocentrismo é lido como novo modo de produção e controle
da subjetividade, um sistema de controle da autoridade coletiva em torno
da hegemonia do estado-nação que exclui as populações racializadas como
inferiores.
Por isso que quando a ex-escrava Sojourner Truth, em dezembro de
1851 na Convenção de mulheres em Ohio, ao não se sentir incluída nas
discussões sobre os direitos feitas na ocasião, se dirigiu à plateia e indagou
“¿Acaso no soy una mujer?”, a resposta seria “não”, já que estava na
encruzilhada, era a negação das categorias de branco e de negro. Essa
denúncia ainda se faz pertinente se identi�carmos o feminismo como
colonizado pelas ideologias de classe e raça e que invisibiliza ainda as pautas
das mulheres negras.
É por isso que as discussões feministas contemporâneas, in�uenciadas
pela literatura desenvolvida pelas feministas negras, marxistas, terceiro-
mundistas e descoloniais apontam para uma interpretação da realidade
como a encruzilhada de opressões. O termo interseccionalidade ganhou
repercussão mundial quando desenvolvido pela advogada militante norte-
americana Kimberlé Williams Crenshaw que, nos seus estudos de teoria
crítica da raça, pensou como as diferentes estruturas de poder interagem
nas vidas dos sujeitos por algum motivo marginalizados, especialmente as
mulheres negras que se viam e vêm invisibilizadas.
Dessa forma, Crenshaw criou a metáfora das ruas que são cortadas por
avenidas e que nas encruzilhadas se é atravessado por diversas direções, nos
dizendo que em determinados pontos as discriminações atuam
simultaneamente e causam impactos maiores, causam acidentes mais
perversos, se formos utilizar um termo que dialogue com a metáfora criada.
Conceber o conjunto de opressões que atuam de formas múltiplas e
arquitetadas pelas ideologias de gênero, de raça e de classe, é admitir o
caráter estrutural da dominação sobre os grupos. A despeito do fenômeno
da fusão das categorias de gênero, classe e raça na realidade, Sa�oti (2015,
p. 122) fala de um “nó” formado por essas três contradições e que signi�ca
um acúmulo qualitativo destas subestruturas- patriarcado- racismo-
capitalismo. Esclarece:
Ademais, o gênero, a raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturantes
da sociedade. Estas contradições, tomadas isoladamente, apresentam características
distintas daquelas que se pode detectar no nó que formaram ao longo da história. Este
contém uma potenciação de contradições. Efetivamente, o sujeito, constituído em
gênero, classe e raça/etnia, não apresenta homogeneidade. Dependendo das condições
históricas vivenciadas, uma destas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda
que vivas, colocam-se à sombra da primeira. Em outras circunstâncias, será uma outra
faceta a tornar-se dominante.
(...)
Não se trata da �gura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando
mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma destas contradições
atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial,
própria do nó. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições
integrantes do nó adquire relevos distintos.
Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade
compósita e novaque resulta desta fusão. Como a�rma Kergoat (1978), o conceito de
superexploração não dá conta da realidade, uma vez que não existem apenas
discriminações quantitativas, mas também qualitativas. Uma pessoa não é discriminada
por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente
discriminada porque, além de mulher é ainda uma trabalhadora assalariada. Não se
trata de variáveis quantitativas, mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades,
que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa. (pps. 83/123/133)
Nesse sentido, ao dividir as categorias a partir da lente eurocêntrica,
recorta-se o mundo em opressores e oprimidos, lógica que inclui a mulher
negra no “não-lugar”15, no vazio que é não ser homem e não ser branca. O
pensamento dual é uma forma central no desenvolvimento da hierarquia
no capitalismo e a ausência das negras nas categorias “negro” e “mulher’
consolida a colonialidade de gênero.
Revisitar e problematizar como o corpo e vida das mulheres é regulado
no mundo da produção capitalista, é questionarmos qual o lugar do corpo
das mulheres negras e terceiro-mundistas nessa produção, é nos
perguntarmos de que maneira o poder tem colonizado os corpos, saberes e
práticas femininas.
Esse movimento reclama visitarmos fronteiras, desnudarmos histórias
não-contadas, trocarmos o olhar do colonizador para ceder espaço para os
olhares dos(as) colonizados(as), os olhares desde o Sul, transgredindo a
centralização da autoridade de fala para fazermos o deslocamento contra-
hegemônico, primeiro denunciando o paradigma serva-senhora
reproduzido na teorização feminista (HOOKS, 2013) para depois
disputarmos o território de produção da mesma.
O gênero, enquanto categoria histórica, terá aspectos diferentes
enfatizados por cada expressão do feminismo, havendo um campo de
consenso: é a construção social do masculino e do feminino. O termo
gênero é usado como recurso para recusar o essencialismo biológico e a
imutabilidade implícita que a�rma ser a anatomia o destino. Pode ser
entendido como a dimensão da cultura por meio da qual o sexo se expressa
vinculado ao poder, bem como através das funções sociais ordenadas pelo
sexismo.
Na dimensão do corpo, o gênero atua quer como mão de obra, quer
como objeto sexual, ou ainda como reprodutor, cujo destino, no caso das
mulheres, é participar da produção na função de força de trabalho,
reprodução e serviço sexual. Assim, gênero é um conceito desenvolvido
para reivindicar a naturalização da desigualdade de tratamento, acesso e
participação social de homens e mulheres em múltiplas arenas, envolvendo
categorias de inclusão e exclusão. A teorização e a prática feministas em
torno do gênero buscam contestar e transformar sistemas históricos de
diferença sexual nos quais o que se compreende enquanto homem e o que
se compreende enquanto mulher são socialmente formados e posicionados
em relações de hierarquia e oposição.
A preocupação com a questão da mulher é uma constante do
pensamento socialista, compreendendo esta libertação como etapa para
uma transformação radical da sociedade. Os determinantes da vida social
da mulher, portanto, são encarados por Marx como decorrência de um
regime de produção cujo sustentáculo é a opressão do homem pelo
homem, de um regime que aliena, que corrompe tanto o corpo quanto o
espirito.
Os últimos milênios gestaram uma estrutura de poder baseada tanto
na ideologia quanto na violência (Sa�oti, 2015), responsável por
estabelecer um tipo hierárquico de relação a invadir todos os espaços da
sociedade e garantir direitos dos homens sobre as mulheres, a que
chamamos de patriarcado.
Ao conceituar patriarcado, Pateman (1993, p. 16-17) retoma a teoria
política do contrato para concluir que este é o meio pelo qual se constitui o
patriarcado moderno:
O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de
sujeição. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido
de patriarcal- isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres-, e
também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao
corpo das mulheres.
A partir disso, valendo-se da imagem e de como a �gura do prédio de
comando criado por Bentham e estudado por Foucault em Vigiar e Punir
corpori�ca a ideologia de comando, Sa�oti (2015, p. 43) faz a analogia:
As portas de todas as celas dão para o interior do prédio e, no alto, um único guarda é
su�ciente para vigiar um grande número de prisioneiros, sem que estes possam saber em
que momento são observados. Esta imagem adequa-se à descrição da vigilância exercida
sobre as mulheres ou sobre os trabalhadores ou, ainda, sobre os negros. As categorias
sociais contra as quais pesam discriminações vivem, imageticamente falando, no interior
de um enorme panóptico- a sociedade- na medida em que sua conduta é vigiada sem
cessar, sem que elas o saibam. Isto é um controle social poderoso, pois a introjeção das
normas sociais por mulheres funciona como um panóptico.
Por ser assim, diz-se que a ideologia sexista se corpori�ca nos agentes
sociais tanto de um polo quanto de outro da relação de dominação-
subordinação. O �lme Lanternas Vermelhas (1991) apresenta uma trama
que capta isto: a engenharia do patriarcado enquanto estrutura hierárquica
que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independente
da �gura humana investida de poder. Na trama, uma das quatro esposas
reféns do patriarca denuncia a outra que incorria em traição e seria punida
com a morte. Ou seja, o patriarcado estimula a guerra entre as mulheres,
funciona como uma engrenagem com funções automáticas, podendo ser
acionada por qualquer um, inclusive por mulheres.
As relações entre os sexos e a posição da mulher na família e na
sociedade fazem parte de um sistema mais amplo de dominação, de modo
que, para entendermos a exclusão destas da esfera pública para �ns de
manutenção do exclusivo vínculo doméstico, fundamental é �xarmos
características presentes no sistema capitalista que formaram complexos
sociais até hoje justi�cados em nome da tradição.
A partir da articulação entre a moral, religião, educação, são criados
mitos que essencializam os papeis sociais desenvolvidos pelas mulheres
como as funções de sexualidade, reprodução e socialização dos �lhos
desempenhadas na família, por exemplo. A sociedade se vale dos mitos,
revela Sa�oti (2013, p.179), “para retardar a emancipação de uma categoria
social que se impõe a tarefa de libertação”. Assim tem sido com as mulheres,
os negros e os povos originários sob o jugo do colonialismo.
A apreensão na totalidade da temática exige um entendimento-
chave16: ainda que, aparentemente, determinada coletividade seja excluída
das relações de produção em virtude de sua raça ou de seu sexo, há que se
buscar nas primeiras- relações de produção- a explicação da escolha de
fatores raciais e de sexo para operarem como marcadores sociais que
autorizam hierarquizar, segundo uma escala de valores, os sujeitos de uma
sociedade historicamente situada. (SAFFIOTI, 2013)
Quer dizer, enquanto categorias dependentes da instrumentalização
do capital, operam segundo as necessidades do sistema produtivo de bens e
serviços, assumindo feições distintas conforme a fase de desenvolvimento
do tipo estrutural da sociedade. Nas palavras da autora (Ibid, p. 60):
Alguns desses caracteres naturais isolados para operar como desvantagens sociais são
passíveis de anulação ao longo do tempo. Neste caso, a sociedade acaba por encontrar
outros fatores que possam funcionar como marcas sociais e justi�car o desprestígio de
outros setores demográ�cos e sua localização na base da pirâmide social.
É possível entendermos, a partir disso, que os marcadores sociais
atuarão segundo as demandas do modo de produção vigente em dada
sociedade, variando a forma como incide e aparelha as relações sociais. A
história da modernidade é, porassim dizer, a narrativa das diferentes vestes
que as opressões de raça, classe, gênero, entre outras, ganharam ao longo
do tempo.
Por oportuno, enquanto marxista e ao mesmo tempo crítica da
esquerda ortodoxa que defende a primazia da classe sobre as outras
questões de opressão, enquadrando-as como categorias subalternas, Davis
(2011)17 reivindica o entrecruzamento das mesmas:
As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e
ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso
compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero
informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é
a maneira como a raça é vivida. A gente precisa re�etir bastante para perceber as
intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias
existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a
primazia de uma categoria sobre as outras.
Nessa esteira, por mais que tenhamos feito uma pequena digressão ao
modo escravista de produção para justi�car certas permanências nos
contextos posteriores, o marco temporal deste trabalho é o advento do
capitalismo justamente por compreendermos que o modo capitalista de
produção aprofundou a contradição presente nas formações econômico-
sociais anteriores baseadas na apropriação privada dos meios de produção e
dos produtos do trabalho humano.
Sendo assim, a desigualdade nos status jurídicos dos homens (servos,
escravos, livres) não mais justi�ca a dimensão econômica das relações
sociais. Os novos homens e mulheres libertos possuem sua força de
trabalho e participam do mercado sob a igualdade do status jurídico que,
supostamente, é su�ciente para assegurar a igualdade de fato. 18
Com efeito, Lenin (1956, p. 47) condiciona a vitória da luta do
proletariado à necessária igualdade material entre homens e mulheres, não
só a igualdade jurídica, enfatiza. E assim discorre: “O proletariado não
alcançará a emancipação completa se não for conquistada primeiro a
completa emancipação das mulheres”.
A respeito das condições históricas das relações estabelecidas no
processo de dominação na América Latina, sabemos que a violação
sistemática das mulheres negras19 e indígenas pelos senhores brancos deu
origem à miscigenação, formou a identidade nacional e resultou no
famigerado mito da democracia racial. O fetiche de alguns sociólogos pela
narrativa do romance no contato dos colonizadores e nossos povos
originários é, na verdade, um eufemismo para o contexto de coisi�cação
das mulheres negras e índias.
A violência sexual colonial formou a base das hierarquias de gênero e
raça presentes na nossa sociedade que, ao ser ignorada, centraliza o
feminismo a uma inclinação eurocêntrica/universalista que peca por não
contextualizar as particularidades das relações sociais constituídas no Brasil
colônia e que reverberam até hoje.
O poeta negro Aimé Césaire crava lição primordial neste debate ao
dizer que há duas maneiras de perder-se, ou por segregação ou por diluição
no universal. Nem guetos nem universalização cega. O sentido da luta está,
diz Carneiro (2011, p.8), em garantir a plenitude do ser humano para além
da raça e do gênero, isto é, “ser negro sem ser somente negro, ser mulher
sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra.”
Por isso a sua proposta: enegrecer o feminismo brasileiro para instituir o
peso da questão racial na con�guração das desigualdades, violência e
privilégios da branquitude.
O aspecto servil imposto às relações sociais entre mulheres negras e
brancos(as) se encontra na presença que não se nota, na existência que se
ignora, na dignidade que não se confere, tal qual se percebe no tratamento
dado às empregadas domésticas, função social que personi�ca a
subalternização. A dimensão de poder nega agência enquanto sujeito e
atesta a invisibilidade dessas trabalhadoras, em uma dialética de ausência e
presença, de pertença e não-pertença. Nas palavras de Patricia Hill Collins
(2016), são “forasteiras de dentro”, “estrangeiras de dentro”.
Trata-se de veri�carmos que formas historicamente condicionadas de
trabalho permitem a objeti�cação humana e quais outras aviltam o ser
social do homem e da mulher. O trabalho na sociedade de classes, a par de
ser alienado enquanto atividade, gera um valor do qual não se apropria
inteiramente aquele(a) que o executa, seja homem, seja mulher. Esta,
contudo, se apropria da menor parcela dos produtos de seu trabalho do que
o faz o homem. É óbvio, pois, que a mulher sofre mais diretamente do que
o homem os efeitos da apropriação privada dos frutos do trabalho social.
O espaço que o trabalho tem ocupado na vida das mulheres negras
reproduz padrões escravistas, na medida em que a mulher negra ainda é
vista como unidade de trabalho em tempo integral, mão de obra barata e
trabalhadora valorosa. A respeito das lutas dos(as) trabalhadores(as) por
regulamentação de seus direitos e dos traços escravistas das relações de
trabalho, já no século XIX Marx (2013, p.372) alertava que: “o trabalho de
pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é
marcado a ferro. Mas da morte da escravidão brotou imediatamente uma
vida nova e rejuvenescida.”
De um modo geral, a quali�cação pro�ssional da mulher negra no
Brasil foi construída através de dois estereótipos: doméstica e mulata.
Criada pelo sistema hegemônico para atender a um tipo especial de
mercado, a signi�cante mulata, segundo Lélia Gonzalez (1979) atualmente
supera a tradução da mestiçagem entre negro(a) e branco(a) para ser o
moderno “produto de exportação”, sendo exercida por jovens que buscam
prestígio e desconhecem a construção da hipersexualização das latinas
como moeda de troca para a economia de mercado internacional.
Os traços comuns do racismo institucionalizado não tornam
homogêneas as experiências negras, visto que fatores como classe in�uem
fortemente nas manifestações racistas. Na classe trabalhadora, além do
assujeitamento de raça, há um sentido de propriedade através do controle e
subordinação com mecanismo de salário, horas extras, mecanização da
trabalhadora como sujeita pensante, o esvaziamento do sujeito. Na teoria
marxista, esta última faceta é compreendida como a alienação ou
estranhamento do(a) trabalhador(a) em relação à sua produção.
A construção do exercício do trabalho atrelado à moralidade e como
digni�cador do homem faz parte da estratégia ideológica de disciplinar os
grupos sociais para a produção e manutenção do sistema capitalista. Quanto
a isso, Althusser (apud Gonzalez, 1979, p. 8) doutrina:
Nas sociedades de classes, ideologia é uma representação do real, mas necessariamente
falseado, porque é necessariamente orientada e tendenciosa- e é tendenciosa porque seu
objetivo não é dar aos homens o conhecimento objetivo do sistema social em que vivem,
mas, ao contrário, para mantê-los em seu ‘lugar’ no sistema de exploração de classe.
A partir deste entendimento, e percebendo que o privilégio racial é
uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo
branco é o grande bene�ciário da exploração da população negra, o
objetivo do movimento negro é organizar o povo negro “para lutar contra a
superexploração econômica de que tem sido objeto, assim como contra a
‘mais-valia’ cultural e ideológica dele extraída pelo grupo branco
dominante” (Ibid, p.4)
Antes de prosseguirmos, uma questão típica do economicismo merece
explicação (Ibid, p. 9):
tanto brancos quanto negros pobres sofrem os efeitos da exploração capitalista. Mas na
verdade, a opressão racial faz-nos constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos
meios de produção são bene�ciários do seu exercício. Claro está que, enquanto o
capitalista branco se bene�cia diretamente da exploração ou superexploração do negro,
a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partirde sua vantagem
competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam nas
recompensas materiais e simbólicas mais desejadas.
Da mesma forma, o movimento feminista liberal ao reivindicar suas
pautas e desconhecer quão mais complexa é a incidência das opressões na
vida das mulheres negras, por ser branco e burguês, recebe um
protagonismo mesmo que a busca seja por emancipação meramente
individual.
Para Audre Lorde (2015, pps. 193-210), a crença por parte das
feministas brancas de que as mulheres negras desconhecem a opressão
machista até haver uma análise e programa de libertação elaborado por
aquelas advém do fato de acreditarem em uma fonte de conhecimento,
desconhecendo ou ignorando as estratégias de resistência de inspiração
empírica contra situações opressoras diárias e que formam uma consciência
política de potência, embora não sustentada por termos de gênero.
As negras convivem com uma dupla criação a respeito da sua
personalidade: ora os mitos racistas das super-mulheres, portadoras de uma
força que tudo suporta, a tudo combate sem repercussões íntimas; ora a
vítima que questiona esse lugar social que para ela foi criado. Nessa
perspectiva, Audre Lorde (Idem, p. 207) é conclusiva:
Ao projetar sobre as mulheres negras um poder e uma força míticos, as brancas
promovem uma falsa imagem de si mesmas como vítimas impotentes e passivas, ao
mesmo tempo que desviam a atenção de sua agressividade, de seu poder (ainda que
limitado em um Estado hegemonicamente branco, dominado por homens) e de sua
disposição de dominar e controlar os outros.
No território em que se discute como a lógica escravagista continua
presente nas formas de pensamento e nas práticas de apropriação do corpo
negro como subordinado, assim como no feminismo com suas políticas
brancas, trava-se um embate sobre os níveis hierárquicos de opressão.
O preceito de que não se trata de quanti�car a dor do outro não
signi�ca igualar todas as vivências femininas a um mesmo julgo sexista, e
sim reconhecer que existem opressões com maior envergadura política e são
as que fogem à esfera individual e reverberam coletivamente. Nessa esteira,
a lição cirúrgica de Benjamin Barber (1975, p. 30), citado por Audre Lorde:
O sofrimento não é necessariamente uma experiência �xa e universal que possa ser
medida com uma régua única: está relacionado a situações, necessidades e aspirações.
Mas deve haver alguns parâmetros históricos e políticos para o uso do termo, para que
possam ser estabelecidas prioridades políticas e se possa dar mais atenção a diferentes
formas e graus de sofrimento. (Grifos nossos)
A despeito das prioridades políticas e graus de sofrimento, a negritude
é o traço de desumanidade que a herança escravagista permite que se
marque a ferro nas peles, de modo que o movimento contrário à negação
do ser negro(a) é processo de resistência contra a expectativa de
passividade. É assim que, sobre o processo de rea�rmação do ser negro,
Neusa Santos Souza (1983, p. 17) partilha:
A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio. (Aliás, o óbvio é aquela
categoria que só aparece enquanto tal, depois do trabalho de se descortinar muitos
véus). Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,
confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas
alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua
história e recriar-se em suas potencialidades.
E continua:
Ser negro é, além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um
discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o
aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta
consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que
rea�rme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-
se negro. (Grifos nossos) (Idem, p. 77)
A luta das mulheres é a luta contra a atuação do patriarcado nas
relações sociais, contra o capitalismo que superexplora seus trabalhos,
transforma seus corpos em mercadoria e contra o racismo que elenca
aquelas que estarão na zona do submundo da exploração, sujeitas a
violências coloniais que remetem a um estágio anterior às conquistas
liberais do marco internacional de defesa dos direitos humanos.
I.5. Amandla Awethu20: negros(as) do mundo,
aquilombai-vos!
A ascensão de estudos dos quilombos como questão para ciências
humanas advém do reconhecimento da necessidade da temática para
compreensão das formas de organização de luta existentes desde África,
bem como do processo de dar voz aos que vivem/viveram a realidade da
escravização.
O nome original vem da história de resistência angolana e queria dizer
acampamento de guerreiros na �oresta, administrado por chefes rituais de
guerra. Enquanto estabelecimento territorial, há semelhanças e diferenças
entre os quilombos de Angola e os �rmados no Brasil, mas, na concepção
de Beatriz Nascimento (1981), na raiz de todos existe uma procura do
homem por espaço.
Nos estudos historiográ�cos, o fenômeno de reunião de negros
escravizados fugidos assumem, a partir de �ns da década de setenta e início
da década de oitenta, uma conotação ideológica no sentido de comunidade
de luta que reconhece o direito à terra (espaço físico) e à terra-nação que
lhe deve direitos.
Assim observa Beatriz Nascimento no �lme Ori(1989):
É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográ�co,
mas o território a nível(sic) duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos
ao território, à terra. Várias e várias e várias partes de minha história contam que eu
tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. A terra é o meu quilombo. Meu espaço é
meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou. (Grifos nossos)
Esse excerto da obra da re�exão da historiadora remete à ideia de
criação da identidade a partir do pertencimento a um espaço geográ�co, de
reconhecer tal espaço como casa, como porto.
A rede�nição das subjetividades negras por meio da memória
promove um sentido de inclusão e de recon�guração do espaço,
compreendendo que, ao reproduzir espaços como casas-grandes e senzalas,
existe uma divisão racial do território. Isso se compreende da leitura da
naturalização do que é o lugar do negro, ligado à subserviência e à
criminalização e do que é o lugar do branco, relacionado a postos de
comando e dominação.
Lélia Gonzalez (1984, p. 232) ao discorrer sobre, anuncia que “os
diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção
econômica existentes no brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a
reinterpretação da teoria do ‘lugar natural’ de Aristóteles.” A dialética do
senhor e do escravo se apresenta também na lógica de dominação, que diz
quem domina e quem é dominado, que tenta domesticar e infantilizar o
negro e a mulher. Esse processo é encoberto pelo mito da democracia racial,
tática para induzir uma falsa ideia de igualdade não �dedigna com a
exclusão de fato das pessoas negras.
Com a chave destas questões é que se pretende desnaturalizar a classe,
desnaturalizar a raça e desnaturalizar o gênero, assimilando que um
instrumentaliza o outro e se reúnem em um só golpe. Pensar através da
perspectiva macro é adotar os pontos de referência adequados para captar a
questão política estrutural das mulheres e o problema da universalização a
partir da “mulher-média”, isto é, branca, burguesa e heterossexual, que não
representa a maioria das mulheres negras trabalhadoras que estão na linha
de frente da tropa de choque do Estado, isto é, em posições subalternas e
marginalizadas.
Nesse sentido, o universalismo é encarado como um postulado
colonial, porque, ao generalizar as identidades, essencializa particularidades
e ignora como a combinação de certos aspectos de dominação atravessam

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