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ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo tteexxttoo 55 OO EENNIIGGMMAA DDOO MMEESSTTRREE oo ssaabbeerr ee aa iinntteerrrrooggaaççããoo Muitos mistérios envolvem a figura de Sócrates, entre elas a da verdadeira distância entre o personagem histórico e aquilo que dele fez seu maior discípulo. Mas é sobretudo a interrogação dirigida à educação que nos interessa reter aqui, e em particular esse formidável paradoxo, que se estabelece justamente a partir do texto platônico: como é possível, àquele que afirmava só estar certo de sua ignorância, fazer-se definitivamente reconhecido pela imagem do mestre que é a própria identidade do saber humano? Com o Sócrates que afirma não possuir outro patrimônio além de sua interrogação sobre a verdade – este personagem que só pôde se aceitar como o «mais sábio» entre todos os sábios da Grécia quando finalmente entendeu que a verdadeira sabedoria estava em reconhecer sua ignorância1 – identifica-se todo aquele cujo ideal filosófico não se contaminou inteiramente com os apelos da facilidade. Essa figura de filósofo inspira cada professor que, a seu modo próprio, se faz também encarnação do eros do conhecimento, pelo combate e pela conciliação diária 1 Platão, Apologia de Sócrates. Rio de Janeiro: Ed. Abril, col. Os Pensadores, p. 22 e seg. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo entre Poros e Penía2, entre o recurso e a indigência, entre o abismo da criação e os limites da existência humana. O conhecimento nasce da interrogação: quem desconhece esta simples evidência dificilmente estará em condições de prestar contas daquilo que aprendeu. O conhecimento nasce da interrogação: quem se recusar a reconhecê-lo dificilmente estará em condições de aprender – e, menos ainda, de ensinar. Mas, em sua última obra, Castoriadis provocava: é porque não buscamos apenas a interrogação, mas também as respostas, que a elas nos prendemos, a tal ponto que descobrimos a enorme dificuldade de nos pormos ainda a caminho. Essa é a aporia da criação: realizando-se na indeterminação, ela só de realiza como nova determinação. Onde encontrar, portanto, as forças para questionar permanentemente o instituído – sobretudo quando ele é o resultado de nosso próprio poder instituinte, é aquilo que nós mesmos criamos, mais solidamente, como nossa identidade? Como recuperar o fôlego da interrogação permanente, obsessivamente iconoclasta, decididamente desconfortável? 2 O nome Poros vem do grego ponte, travessia, abertura, poro. Na mitologia, Poros é filho de Métis, a Invenção, divindade que encarna a astúcia, a habilidade prática, mas também a prudência. Originalmente, Poros é passagem por onde escapolem os navios em guerra: ele é o «Expediente», o meio eficaz de contornar uma dificuldade. Poros tem recursos para tudo, ele sempre atinge seus objetivos. Penia, por sua vez, tem o sentido de «Penúria» – ela é associada à necessidade, à aflição, ao trabalho forçado, à dificuldade. Segundo o belo mito que Platão inventa em O Banquete (cf., mas adiante, Fragmento 2), Eros, o Amor, é filho da Necessidade e do Recurso: tem a vida dura, mas busca o belo e sabe ser ardiloso para conseguir o que persegue. Entre os deuses, Eros é a figura da filosofia: ele é o intermediário entre o saber e a ignorância (Cf. Platão, O Banquete, 203-204 e Junito Brandão, Dicionário Mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1991). ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo Talvez somente na necessidade de recusa de um desconforto ainda maior, que é o da impostura: o da realização (sempre fantasmática) de um desejo de saber ilimitado. Na Apologia, Sócrates afirmava ser preferível a ignorância à pretensão de tudo saber, que ele identificava nos «profissionais» da educação de sua época: Enfim, fui procurar os profissionais. Se, em meu interior, estava efetivamente consciente de nada saber, sabia bem, por outro lado, dever encontrar entre eles alguns que conheciam uma quantidade de belas coisas. E, nisso, não me enganei: eles conheciam, ao contrário, coisas que eu desconhecia inteiramente e, deste ponto de vista, eles eram mais sábios do que eu! Foi, no entanto, minha opinião, atenienses, que o erro dos poetas era exatamente aquele desses excelentes profissionais: cada um deles, porque exercia com perfeição sua arte, julgava também possuir, para todo o resto, uma sabedoria acabada, e isto em relação às coisas que têm muito maior importância! Esta pretensão impertinente manchava sua outra sabedoria, de tal forma que eu me dizia, lembrando do oráculo, que preferia ser como sou, nem sábio da sabedoria das pessoas de que falo, nem ignorante de sua ignorância, do que ser os dois a uma só vez: o que é seu caso! A mim mesmo, como ao oráculo, respondia, portanto, que minha vantagem era ser como sou.3 Porém, o risco da impostura do mestre está associado a uma outra questão, que é a de sua investidura como tal: será de fato como um «sujeito que só sabe que nada sabe» que o mestre se institui, para o aluno? Em que pesem suas mais veementes declarações, não foi apenas como aquele que «só sabia nada saber» que Sócrates foi reconhecido por seus discípulos, mas sobretudo como o mestre capaz de conduzi-los à sabedoria. Esta imagem, Sócrates não a postulava, mas isso não quer dizer que ela esteve apoiada em uma alucinação 3 Apologia, 22 c - e. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo coletiva que tomou seus seguidores: ele próprio também contribuiu ativamente para construí- la. É claro que nem sempre se pode ser Sócrates – embora haja aqueles que sempre pretenderão, simulada ou sinceramente, tudo saber: a legitimação do mestre passaria, assim, necessariamente pela farsa, pela pretensão de ser o sujeito a saber? Mas o que permite, afinal, a alguém instituir-se como mestre para outro? Como definir as exigências da relação entre mestre e discípulo? O problema da relação pedagógica foi levantado por Rousseau no âmbito do paradoxo da educação da liberdade. Analisando a resposta fornecida pelo autor, Patrice Canivez sustenta que o cidadão de Genebra elaborou um modelo de «contrato pedagógico» que se efetiva, para o aluno, como «confiança» depositada no mestre; e, para este último, como compromisso com uma prestação de contas sistemática: Este modelo é estabelecido por uma espécie de «contrato pedagógico» que fornece uma base «jurídica» à autoridade… Só há um só meio de o indivíduo conservar sua liberdade, ao mesmo tempo em que obedece às ordens de seu educador: é preciso que a autoridade do educador seja explicitamente consentida pelo educado. Esta autoridade resulta, pois, de um acordo, cujos termos são os seguintes: o adolescente se engaja a obedecer incondicionalmente às ordens do adulto; este, em troca, se compromete em não ordenar senão aquilo que é melhor para o aluno – o que é natural – mas, sobretudo, se compromete em fornecer explicações. A ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo ordem dada é obedecida mas, em seguida, por ocasião de um momento de tranqüilidade, se discutirá sobre as circunstâncias que justificavam aquele imperativo. A obediência repousa, portanto, fundamentalmente sobre a confiança. O indivíduo obedece porque sabe que não lhe é imposto nada que ele não pudesse compreender e desejar por si mesmo, caso sua impetuosidade e inexperiência não o impedissem de entender corretamente a situação e de tomar consciência dos perigos.4 Canivez insiste, como se poderá perceber, no aspecto racional do contrato rousseauniano: adaptado à escola,seu princípio central, a prestação de contas, amplia-se como «processo de discussão e deliberação coletivos»: Este modelo não concerne a escola, já que a perspectiva de Rousseau é a de um preceptor que vive só com seu aluno. Mas pode-se tentar imaginar como, na realidade escolar, o exercício da autoridade pode ser fundado sobre processos de discussão e de deliberação coletivos.5 No entanto, o caminho proposto por Canivez, que leva do «contrato pedagógico» rousseauniano a uma «democracia escolar» graças a algumas passagens pelo Contrato social não é tão retilíneo como o autor faz supor, e encobre algumas questões essenciais. Para começar, o fato de que a relação pedagógica que Rousseau descreve entre o Emílio e seu preceptor não tem por base a deliberação comum, mas, pelo contrário, uma irrestrita «confiança» na deliberação do mestre. No que, por sua vez, se baseia essa confiança? De parte 4 Patrice Canivez, Educar o cidadão? São Paulo: Papirus, 1992, p. 31-32. 5 Id., ibid. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo do aluno, o «consentimento explícito» é, até certo ponto, um salto no escuro: a adesão incondicional só será racionalmente fundada ex post facto. De sua parte, o mestre deve necessariamente fazer-se o sujeito suposto saber o «que é melhor para o aluno»: ainda que eminentemente prático, seu saber lhe fornece a capacidade de previsão que permitirá guiar seguramente o aluno. Assim, a relação pedagógica se alimenta de uma crença comum na sabedoria do mestre que será confirmada quando o aluno puder «compreender e desejar por si mesmo» o que o mestre lhe impunha; até lá, o mestre será reconhecido como fonte do saber. Um segundo aspecto relevante é aquele que envolve a própria concepção rousseauniana de razão. Pode-se dizer, à luz não só Contrato, mas também dos Discursos, que ela é eminentemente phrónesis: não resulta tão somente dos progressos da ciência, mas sobretudo de uma conquista ética. O mestre que comanda de forma incondicionada está pois, ele próprio, incondicionalmente submetido ao contrato que o obriga a abdicar de seus interesses pessoais, e buscar, na única autoridade de uma lei mais geral – na natureza, nas coisas, nas próprias convenções – o fundamento de suas decisões e imposições. O mestre deve habituar o aluno a submeter-se ao acordo entre eles celebrado. Esse, por sua vez, é a metáfora do acordo social mais amplo, ao qual, qualquer que seja a sociedade, o futuro adulto se submeterá. O mestre deve ainda acostumar aos poucos o aluno a reconhecer, por trás de sua sempre provisória autoridade, a autoridade autêntica da lei mais geral. A autoridade do mestre é sempre, portanto, a metáfora da autoridade impessoal das leis que devem reger a humanidade e a vida social. Há, portanto, um tipo bastante peculiar de racionalismo que inspira a obra e o «contrato ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo pedagógico» de Rousseau – Ernst Cassirer o apelidou de «racionalismo ético»6. Seria absolutamente impreciso não identificar, nessa concepção de razão, o espaço aberto para a dimensão afetiva, ressaltada na relação que liga mestre e aluno. Apesar do estatuto sempre paradoxal que noções como desejo, imaginação, pulsão, paixão etc. apresentam no pensamento do autor, sobressaem-se, no Emílio, as diferenças com sua outra grande obra, o Contrato Social; mais ainda, realçam-se as diferenças com o pensamento de seu mais ilustre leitor, Immanuel Kant7: não é uma moralidade desencarnada que se constrói no Emílio, mas há entusiasmo e emoção, sentimento e afeto na relação mestre-discípulo. Segundo Cassirer, Rousseau pretendia superar a radical separação entre o «domínio do querer» e o «domínio do saber». No entanto, não há dúvidas de que, no Emílio, «o Governador sabe – no sentido mais amplo do termo – enquanto seu aluno não sabe e não se sabe: Rousseau não quis afastar a forma fundamental de toda educação. Educar significa conduzir a consciência ignorante até o nível do mestre, de tal forma que o reconhecimento entre dois espíritos, finalmente iguais, se opera, o mestre não mais vendo na outra consciência um simples aluno, mas um novo mestre que não lhe fica a dever nada em sabedoria e saber… Na última página do Emílio, o Governador consagra seu aluno, reconhecendo nele a mesma dignidade que lhe é atribuída.8 6 Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo e Rousseau. Brasília: Ed. Unicamp, 1992, p. 360 e Kant, Goethe – Deux essais. Paris: Belin, 1991, p. 30-91, sobretudo 80. 7 Cf. I. Kant. Da Pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1996. 8 A. Philonenko, Jean-Jacques Rousseau et la pensée du malheur. Paris : Flammarion, 1987, p. 97 . ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo Não se trata de definir em poucas linhas um pensamento complexo e paradoxal como o do genebrino: assinalemos tão-somente que, nesse primeiro contrato, os termos do enigma que envolve a figura do mestre estão presentes, e de nenhum proveito será ocultá-lo. Por um lado, para se instituir, a relação pedagógica supõe, do aluno, uma «confiança» que é mais do que cálculo racional, que é um investimento eminentemente afetivo que tem por objeto a figura do mestre, capaz de fornecer suporte e concretização para o «saber» que é buscado. Por outro lado, para que a relação pedagógica não se instale sob o signo da farsa, ou da dominação, a convicção íntima adquirida pelo mestre de que o que tem a oferecer não é uma coisa, uma soma de respostas, mas suas interrogações – aliada à descoberta de que não está unido ao aluno por uma simples «transmissão» de conteúdos – não pode permanecer secreta. Sujeito suposto saber, sujeito que só sabe que nada sabe: as tentativas de racionalizar inteiramente a relação pedagógica partem sem dúvida do abandono de, pelo menos, uma destas duas exigências. E é bem verdade que elas são, mais do que incômodas, aparentemente irreconciliáveis. Um novo contrato pedagógico seria, assim, impossível? O primeiro mestre é a mãe, ou aquela(e) que o representa. Na cadeia da socialização, a cada vez, o investimento afetivo pode e deve significar a superação do sentido primário, da realização imediata, fisiológica, narcísica, em direção ao que pode ser compartilhado, em direção ao que é comum. Em que se apóia esse deslocamento? Numa figura de uma figura de uma figura… Pela imagem do mestre idealizado, aquele que é objeto não só da construção de Platão, respondemos todos nós, que um dia abdicamos do conforto seguro de nosso fechamento para ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo nos criarmos como indivíduos sociais. Ele é a figura de sentido daquilo que nos permitirá ultrapassar, a cada momento, o que somos, para nos criarmos como seres de desejo mas, também, de deliberação. Assim, é possível que, em um novo contrato, a ética do mestre talvez não esteja nem em se afirmar como um sujeito que nada sabe, nem em se afirmar como o contrário – o sujeito que tudo sabe – mas, simplesmente, se fazer lugar de passagem até que o outro descubra em si a interrogação, e passe a visar não mais os objetos limitados que se oferecem a ele, mas os objetos/não-objetos, que jamais se projetarão inteiramente como imagem sólida: o saber, a democracia… O Eu não é mais investido como possuidor da verdade, mas como fonte, e capacidade incessantemente renovada, de criação. Ou, o que quer dizer a mesma coisa: o investimento tem por objeto a própria atividade do pensamento, como apta a produzir resultados verdadeiros, mas para além de qualquer resultado parcial. E isso se faz acompanhar por uma outra idéia de verdade, tanto comoidéia filosófica, quanto como objeto de paixão. O verdadeiro não é mais um objeto a possuir… nem espetáculo passivo do jogo do encobrimento/desvelamento do ser (…) O investimento não é mais investimento de um «objeto», nem mesmo de uma «imagem de ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo si», no sentido habitual, mas de um «objeto/não-objeto», atividade e fonte do verdadeiro. O apego ao verdadeiro é a paixão do conhecimento, ou o pensamento como Eros.9 9 C. Castoriadis, «Paixão e conhecimento», op. cit. p. 150-151. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo PPLLAATTÃÃOO Ora, certa vez, [Querefonte] indo a Delfos, arriscou uma consulta ao oráculo e perguntou se havia alguém mais sábio que eu; [Apolo] respondeu à Pítia que não havia ninguém mais sábio (...). Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: "Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível." (…) O provável, senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: "O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor." PLATÃO. Apologia de Sócrates, 21 a -21 b; 23 a - 23 b. São Paulo: Abril, 1972. pp. 14-6. No dia em que Afrodite nasceu, os deuses fizeram um banquete; entre os convidados estava Poros, o Expediente, filho de Metis, a Invenção. Após a refeição em que se haviam regalado, apareceu Penia, a Pobreza, que mendigava junto às portas. Havendo-se embriagado de néctar (pois ainda não existia o vinho!) Expediente foi até o jardim de Zeus e ali adormeceu… Pensando que, para ela, jamais havia expediente, Penia desejou um filho de Poros e se deitou a seu lado: e eis que do Amor ela se fez grávida! (…) E esse é o Amor, filho do Expediente e da Pobreza: sempre carente, ele não é tão delicado e belo quanto se pensa mas, ao contrário, é rude e encardido, miserável que não tem morada e dorme no chão, a descoberto, nas soleiras das casas e nas ruas. E tudo isso porque, da natureza da mãe, herdou a indigência. Mas, em contrapartida, da natureza do pai tirou a atração pelas coisas que são belas e boas, e é corajoso, aventureiro e vigoroso; hábil caçador, está sempre a urdir algum plano; curioso e rico de idéias e expedientes, passa sua vida a filosofar; engenhoso feiticeiro, inventa filtros mágicos, como os sofistas. Não é mortal, nem imortal: em um mesmo dia, se seus expedientes têm sucesso, ele está na flor da idade e em vida; mas, ao contrário, entra em agonia; depois, repentinamente volta à vida, graças à herança paterna, ainda que, por outro ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo lado, escorram-se entre seus dedos os frutos de seus expedientes! Assim, nem o Amor jamais é indigente, nem jamais possui o que quer que seja. Entre o saber e a ignorância, o Amor é o intermediário. Entre os deuses, nenhum há que se dedique à filosofia, nenhum que tenha o desejo de tornar-se sábio, pois eles já o são; quanto aos outros que são sábios, também não precisam filosofar; mas tampouco os ignorantes buscam a filosofia e não têm desejo de tornarem-se sábios – pois é próprio à ignorância que o homem a quem falta a realização e a inteligência sempre imagina sê-lo na proporção devida: aquele que não reconhece sua carência não tem desejo daquilo de que não acredita estar necessitado. – Mas quem são, pois, Diotima, gritei eu, os que se dedicam à filosofia, já que não são nem os sábios, nem os ignorantes? – É muito claro, disse ela, mesmo para uma criança! São os que são intermediários entre esses dois extremos, entre os quais sem dúvida encontra-se o Amor. A sabedoria é certamente uma das mais belas coisas, e é para o belo que o Amor se volta. Assim, o Amor é filósofo e, como tal, se faz intermediário entre o sábio e o ignorante. E isso em virtude de sua origem… PLATÃO. O Banquete, 203-204 b. São Paulo: Abril, 1972. pp. 14.16. PPAATTRRIICCEE CCAANNIIVVEEZZ Rousseau achava que a relação de autoridade tem efeitos negativos sobre as crianças. Por relação de autoridade deve-se entender as ordens explícitas do educador, as que ele dá mostrando o próprio poder. Por que um poder desse tipo tem efeitos perversos? Porque a criança é incapaz de perceber os motivos objetivos do que lhe ordenam. Por isso, ela interpreta sempre a ordem dada como expressão da vontade pessoal do adulto, isto é, de seu arbítrio. E todos os motivos ou justificativas que se dêem à criança lhe parecerão a roupagem desse arbítrio, como uma retórica destinada a levá-la a aceitar. Conforme o caso, a essa retórica a criança oporá a sua. Mas, seja como for, oporá seu desejo particular a exigências que ela percebe como a tradução de um desejo próprio do adulto. Daí uma situação de confronto e uma espécie de luta pelo poder, cujo desfecho é em qualquer caso detestável. De fato, das duas uma: ou a criança se submete, ou se rebela. Se contrair o hábito de obedecer incondicionalmente ao adulto, mais tarde ficará predisposta a se sujeitar à vontade do outro sem refletir; estará disposta a submeter-se a todas as imposições arbitrárias, sejam as da opinião ou da moda, ou as de um tirano ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo qualquer. Se, ao contrário, ela opõe seus próprios desejos ao que percebe como desejo particular do adulto, haverá confronto, direto ou indireto. Como não é a parte mais forte, a criança vai procurar contornar as exigências do mestre. Obedecerá na aparência, mas dará um jeito para fazer o que lhe agrada. Vai assim aprender a dissimular e a mentir. Vai aprender também a espionar, a espreitar as fraquezas do outro pelas quais poderá manobrá-lo. Em resumo, sua obediência terá um preço mediante esta ou aquela forma, e o adulto acaba entrando nesse jogo tácito: pensará que compra o sossego ao renunciar total ou parcialmente à sua autoridade. CANIVEZ, P. Educar o cidadão? 2 ed. Campinas: Papirus, 1991. pp. 34-35. Inspirando-nos livremente nas teses de Rousseau, podemos tirar dessas análises a formulação de um problema político: a relação do indivíduo com a autoridade política depende em parte de sua relação primitiva com a autoridade do adulto. Se o exercício inábil e precoce dessa autoridade permitiu o desenvolvimento de uma espécie de conflito de vontades particulares e de luta pela dominação, o indivíduo interpretará qualquer forma de autoridade como ameaça à sua liberdade. Vai confundir a autoridade de qualquer Estado, seja ele qual for, com o poder pessoal do governante ou com o arbítrio deste ou daquele partido. Assim, vai tentar salvar a própria liberdade, eventualmente por meio da revolta declarada. Mas na maioria das vezes vai usar a esperteza, o jogo de todas as pequenas práticas ilegais: pequenas mentiras, pequenos favores, pequenas trapaças ou até uma ligeira delinqüência, através do que vai opor um limite à autoridade do Estado a fim de manter seu sentimento de independência. CANIVEZ, P. Educar o cidadão? 2 ed. Campinas: Papirus, 1991. p. 35. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo JJEEAANN--JJAACCQQUUEESS RROOUUSSSSEEAAUU Tentaram-se todos os instrumentos, menos um, exatamente o único que pode dar certo: a liberdade bem regrada. Não se deve tentar educar uma criança quando não se sabe conduzi-Ia para onde se quer unicamente através das leis do possível e do impossível… ROUSSEAU,J. Emílio. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 89. Meu amigo, meu protetor, meu mestre, retoma a autoridade de que queres abdicar no momento em que é mais importante para mim que permaneças; até agora só a tinhas por causa da minha fraqueza, mas agora a terás por minha vontade, e assim ela será mais sagrada para mim. Defende-me de todos os inimigos que me assaltam, e sobretudo dos que trago comigo e que me traem; cuida de tua obra, para que eu permaneça digno de ti. Quero obedecer às tuas leis, quero-o sempre, é a minha vontade constante; se alguma vez eu te desobedecer, será contra a vontade; torna-me livre protegendo-me contra as minhas paixões que me violentam; impede que eu seja escravo delas e força-me a ser meu próprio senhor não obedecendo aos sentidos, mas à razão. ROUSSEAU, J. Emílio. São Paulo: Martins Fontes, 1995. pp. 446-447. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo CCOORRNNEELLIIUUSS CCAASSTTOORRIIAADDIISS O que, então, é investido pela paixão de conhecer? A primeira resposta que se apresenta é, evidentemente: a verdade. E não é necessário entrar na discussão filosófica da questão: «o que é a verdade?» para afirmar, em primeira aproximação, que a verdade tem a ver com os resultados de conhecer. Mas é aqui que os paradoxos reaparecem. A paixão da verdade… pode conduzir, e mais freqüentemente o conduz, a uma fixação nesses… resultados, com os quais o sujeito acaba por se identificar, ao ponto que qualquer questionamento pode ser ressentido como um questionamento de sua própria identidade, de seu próprio ser. O narcisismo do sujeito se estende necessariamente até englobar – e não somente no domínio do conhecimento – os produtos do sujeito, que passam a ser a partir de então objetos de um investimento categórico e incondicional. CASTORIADIS, «Paixão e conhecimento», in Encruzilhadas do labirinto V. Feito e a ser feito. Rio de Janeiro: DPA, 2000, p. 135)
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