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Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino de Castro e Costa Secretaria Nacional de Segurança Pública Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Diretoria de Ensino e Pesquisa Michele Gonçalves dos Ramos Coordenação-Geral de Ensino Ana Claudia Bernardes Vilarinho de Oliveira Coordenação Pedagógica Joyce Cristine da Silva Carvalho Coordenação de Ensino a Distância Renata Guilhões Barros Santos Gerente de Curso Adriana Aparecida Vizzotto Conteudistas Juliana Teixeira de Souza Martins Orlinda Cláudia Rosa de Moraes Renata Avelar Giannini Revisão Técnica Denice Santiago Santos do Rosário Revisão Pedagógica Evania Santos Assunção Motta Revisão Textual Bruna Carolina da Silva Pereira Programação e Edição Renato Antunes dos Santos Fábio Nevis dos Santos Design Instrucional Marcelo Pinto de Assis Sumário 1. APRESENTAÇÃO DO CURSO ...................................................................................................... 5 2. OBJETIVOS DO CURSO .............................................................................................................. 7 2.1 Objetivo Geral ............................................................................................................................. 7 2.2 Objetivos Específicos: .................................................................................................................. 7 3. ESTRUTURA DO CURSO ............................................................................................................. 8 4. MÓDULOS DA FORMAÇÃO ....................................................................................................... 9 4.1 – Módulo I: Protagonismo de mulheres e enfrentamento da violência ................................ 9 4.1.1 Apresentação do módulo .................................................................................................... 9 4.1.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 10 4.1.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 11 4.1.3.1 Aula 1 – A evolução dos direitos humanos de mulheres........................................... 12 Evolução do direito das mulheres e meninas ................................................................... 13 As conferências internacionais de mulheres .................................................................... 16 Declarações da Assembleia Geral da ONU ........................................................................ 20 Interseccionalidade e o marco normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres ..................................................................................................... 21 Finalizando ........................................................................................................................ 23 4.1.3.2 Aula 2 - Principais Conceitos e Definições ................................................................. 23 Sexo ................................................................................................................................... 25 Gênero e Papéis Sociais de Gênero .................................................................................. 26 Identidade De Gênero ....................................................................................................... 31 Sexualidade ....................................................................................................................... 33 Orientação Sexual ............................................................................................................. 34 Atenção para não confundir: ............................................................................................ 35 Igualdade de Gênero e Feminismo ................................................................................... 38 Patriarcado e o Conceito de Família ................................................................................. 39 Interseccionalidade ........................................................................................................... 40 Finalizando ........................................................................................................................ 42 4.1.3.3 Aula 3 - Sensibilização à violência baseada em gênero ............................................. 43 Violência psicológica ou emocional .................................................................................. 44 Violência física ................................................................................................................... 45 Violência patrimonial ........................................................................................................ 45 Violência sexual ................................................................................................................ 45 Finalizando ........................................................................................................................ 47 4.1.3.4 Aula 4 - Participação, liderança e protagonismo de mulheres .................................. 48 Mulheres contribuem para o protagonismo e a estabilidade .......................................... 48 A agenda sobre mulheres paz e segurança....................................................................... 49 Resoluções sobre a agenda mulheres paz e segurança .................................................... 51 A agenda sobre mulheres, paz e segurança no Mundo, na América Latina e no Brasil ... 51 Finalizando ........................................................................................................................ 53 4.2 – Módulo II: Violências, estrutura de governança e políticas baseadas em evidências ....... 53 4.2.1 Apresentação do módulo .................................................................................................. 54 4.2.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 54 4.2.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 55 4.2.3.1 Aula 1 - O que os dados disponíveis nos dizem sobre violência contra mulheres e meninas no Brasil? ................................................................................................................. 56 A Violência Doméstica ....................................................................................................... 56 Violência Sexual................................................................................................................. 61 Violência Letal ................................................................................................................... 63 Fique por Dentro ............................................................................................................... 66 4.2.3.2 Aula 2 - Dados e Evidências na formulação de políticas públicas ............................. 68 Dados e evidências. Do que estamos falando? ................................................................. 68 Que fontes de dados existem? .......................................................................................... 72 Saúde ................................................................................................................................. 73 Segurança Pública: ............................................................................................................ 74 Secretarias Estaduais de Segurança Pública: .................................................................... 74 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ........................................................75 Sociedade Civil................................................................................................................... 75 A importância dos registros feitos pelos profissionais do Susp ........................................ 77 4.2.3.3 Aula 3 - Governança e a importância do trabalho em rede ...................................... 79 Estrutura de Governança da proteção de mulheres no Brasil .......................................... 79 Disque 100 e Ligue 180 ..................................................................................................... 84 O que é trabalho em rede? ............................................................................................... 84 A(s) rede(s) de proteção.................................................................................................... 86 Como Funciona.................................................................................................................. 87 Finalizando ........................................................................................................................ 89 4.3 – Módulo III: Aspectos operacionais e táticos fundamentais para o enfrentamento da violência contra mulheres ...................................................................................................... 90 4.3.1 Apresentação do módulo .................................................................................................. 90 4.3.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 90 4.3.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 91 4.3.3.1 Aula 1 – O papel dos órgãos de segurança pública no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas. .................................................................................................. 93 Introdução ......................................................................................................................... 93 Violência contra a mulher é um problema de segurança pública ................................... 94 O enfrentamento da violência contra a mulher como parte da política de segurança pública ............................................................................................................................... 97 Finalizando ...................................................................................................................... 100 4.3.3.2 Aula 2 - Legislação aplicada na proteção de mulheres e meninas em seus aspectos práticos. ............................................................................................................................... 101 Introdução ....................................................................................................................... 101 Aspectos Gerais da Legislação e Aplicação Prática ......................................................... 104 Definindo a Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ........................................ 105 As Formas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ..................................... 106 Aspectos Do Atendimento Às Mulheres Em Situação De Violência Doméstica ............. 107 Mas o que é revitimização? ............................................................................................ 108 Aspectos do Atendimento às Vítimas de Crimes Sexuais ............................................... 110 Medidas Protetivas de Urgência ..................................................................................... 115 Finalizando ...................................................................................................................... 117 4.3.3.3 Aula 3: Identificando a violência contra mulheres e meninas ................................ 118 Introdução ...................................................................................................................... 118 Principais aspectos da violência contra a mulher ........................................................... 118 Análise de risco ............................................................................................................... 119 Dimensões da avaliação de risco .................................................................................... 120 Fatores de Risco .............................................................................................................. 121 Fatores de proteção ........................................................................................................ 122 Classificação e gestão do risco ........................................................................................ 123 Gestão de Risco ............................................................................................................... 123 Plano de Segurança ......................................................................................................... 123 Formulário Nacional de Avaliação do Risco (FONAR) ..................................................... 124 Finalizando ...................................................................................................................... 127 4.3.3.4 Aula 4: Identificando o papel dos atores da segurança pública na redução da “rota crítica” das vítimas de violência. .......................................................................................... 128 Introdução ....................................................................................................................... 128 Atuação da segurança pública com perspectiva de rede ............................................... 128 Rota crítica ...................................................................................................................... 131 E o papel dos atores da segurança pública na redução da “rota crítica” das vítimas de violência?......................................................................................................................... 131 Finalizando ...................................................................................................................... 133 4.3.3.5 Aula 5: A atuação da segurança pública de modo integrado com os diferentes atores da rede proteção e enfrentamento. .................................................................................... 134 Introdução ....................................................................................................................... 134 Atuação Integrada ........................................................................................................... 134 Vantagens de trabalhar de forma integrada .................................................................. 135 Desafios do trabalho integrado ....................................................................................... 136 A segurança pública no contexto de integração operacional ......................................... 137 Finalizando ...................................................................................................................... 140 4.3.3.6 Aula 6: Serviços especializados no atendimento a mulheres e meninas no âmbito da segurança pública. ............................................................................................................... 141 Introdução ....................................................................................................................... 141 As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher ................................................ 142 Atribuições das DEAMs ................................................................................................... 143 Patrulhas e Rondas Maria da Penha ............................................................................... 146 Principais características e modelo de atuação: .............................................................147 Principais atividades das Patrulhas Maria da Penha: ..................................................... 149 Principais estratégias das Patrulhas Maria da Penha: .................................................... 151 Finalizando ...................................................................................................................... 152 4.3.3.7 Aula 7: Desafios da atuação quando os autores ou vítimas de violência contra a mulher são profissionais de segurança pública. .................................................................. 154 Introdução ....................................................................................................................... 154 Prevenção e enfrentamento da violência doméstica nas instituições de segurança pública ............................................................................................................................. 155 4.3.3.8 Aula 8 – Boas Práticas: Grupos Reflexivos para profissionais de segurança autores de violência doméstica e familiar ........................................................................................ 160 Finalizando ...................................................................................................................... 161 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 163 6 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência APRESENTAÇÃO DO CURSO Caras alunas e caros alunos, As diferentes formas de violência contra mulheres e meninas, em grande parte, estão associadas à profunda desigualdade entre homens e mulheres presente em nossa sociedade. Essa desigualdade influencia os papéis que homens e mulheres desempenham, bem como os riscos a que estão submetidos e as redes de proteção às quais têm acesso. Este curso tem como objetivo apresentar os principais conceitos, marcos teóricos e normativos das vulnerabilidades que mulheres e meninas enfrentam, bem como os instrumentos desenvolvidos para a ampliação de sua proteção. Também será abordada a importância do protagonismo de mulheres no enfrentamento de diferentes formas de violência e da promoção da igualdade de direitos. A violência contra mulheres e meninas é um grave problema social e vem ocupando espaço de relevância e visibilidade, com impactos diretos nos órgãos de segurança pública. No entanto, o enfrentamento desta forma de violência demanda um contínuo conhecimento sobre suas dinâmicas e estratégias para sua prevenção e redução por parte dos profissionais que atuam nos distintos serviços públicos, destaque feito àqueles que integram os órgãos do sistema de segurança pública e justiça criminal. A atuação frente aos crimes relacionados à violência contra mulheres e meninas corresponde a uma parte significativa do trabalho desempenhado pelos diferentes órgãos de segurança pública no Brasil. Por essa razão, independentemente da existência de setores especializados no enfrentamento desta forma de violência, como é caso, por exemplo, das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher ou ainda as Patrulhas/Rondas Maria da Penha, todos (as) os (as) profissionais de segurança pública devem possuir o conhecimento Figura 1: Mulher loira em pé sobre fundo rosa cobrindo os olhos com as mãos Fonte: Imagem de krakenimages.com no Freepik https://br.freepik.com/fotos-gratis/mulher-loira-em-pe-sobre-fundo-rosa-cobrindo-os-olhos-com-as-maos-e-fazendo-gesto-de-parada-com-expressao-triste-e-de-medo-conceito-envergonhado-e-negativo_42264488.htm#query=violência contra a mulher&position=15&from_view=search&track=ais 7 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência que os (as) capacite a atuar de modo técnico, profissional e humanizado diante de cada ocorrência, evitando, sobretudo, uma atuação revitimizante. A ampliação do debate público sobre o tema, as alterações na legislação nacional voltada ao enfrentamento da violência contra a mulher, bem como a necessidade de padronização dos protocolos de atuação, tornam este um tema de interesse para todos os profissionais do Sistema Único de Segurança Pública – Susp. Um dos principais pressupostos do atendimento a mulheres e meninas em situação de violência é a necessidade da intersetorialidade, ou seja, a perspectiva de um trabalho articulado e em rede, entre órgãos e serviços das áreas de saúde, segurança pública, justiça, assistência social, educação, dentre outras. Este curso está dividido em três módulos: Primeiro Módulo Apresenta uma introdução ao tema, destacando os principais conceitos, marcos teóricos e normativos sobre o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, bem como sobre a importância do protagonismo das mulheres na prevenção e redução da violência. Segundo Módulo Aborda a estrutura de governança do enfrentamento desta forma de violência no Brasil, bem como a importância do uso de dados e evidências para informar as políticas públicas focadas nesta temática. Terceiro módulo Trata dos aspectos operacionais, práticos e legais, destacando experiências bem- sucedidas no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, como as delegacias especializadas, as Patrulhas/Rondas Maria da Penha, entre outros. Público-alvo: Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública. 8 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência OBJETIVOS DO CURSO 2.1 Objetivo Geral A ação educacional tem por objetivo capacitar os profissionais do Susp, a partir de uma análise histórica e social de gênero, com a perspectiva de aprimoramento do serviço de segurança pública no atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência e, também, do fortalecimento da participação das mulheres na segurança pública. 2.2 Objetivos Específicos: Os objetivos específicos do curso visam que os profissionais do sistema de segurança pública possam: ⚫ Conhecer os principais conceitos, marcos teóricos e normativos sobre o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas e a importância do protagonismo de mulheres e meninas a partir de uma linguagem fácil e acessível; ⚫ Conhecer a estrutura de governança e as principais políticas públicas para o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas no Brasil; ⚫ Conhecer boas práticas de enfrentamento da violência contra mulheres e meninas: experiências desenvolvidas pelos órgãos do Susp; ⚫ Refletir sobre a violência presente nas sociedades contemporâneas (relações de gênero, classe social e etnia); ⚫ Discutir a importância das mulheres na elaboração e execução das políticas de segurança pública; ⚫ Analisar o papel dos órgãos de segurança pública na rede de proteção às mulheres e às meninas, bem como no atendimento aos casos de violência contra as mulheres e meninas. 9 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 3. ESTRUTURA DO CURSO Este curso possui uma carga horária de 40 horas e compreende os seguintes módulos: • Módulo 1 - Protagonismo de mulheres e enfrentamento da violência • Módulo 2 - Violências, Estrutura de governança e políticas baseadas em evidência • Módulo 3 - Aspectos operacionais e táticos fundamentais para o enfrentamento da violência contra mulheres 10 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 4. MÓDULOS DA FORMAÇÃO Figura 2: Protagonismo Feminino Fonte: Imagem de Ebanx Community4.1 – Módulo I: Protagonismo de mulheres e enfrentamento da violência 4.1.1 Apresentação do módulo Este módulo é uma introdução ao tema, e destaca os principais conceitos, marcos teóricos e normativos sobre o enfrentamento da violência contra mulheres e a importância do protagonismo de mulheres a partir de uma linguagem fácil e acessível. https://community.ebanx.com/mulheres-tecnologia-transformacao-times/ 11 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 4.1.2 Objetivos do módulo Este módulo tem por objetivos: Contribuir para um entendimento sobre a origem e causas da violência contra mulheres; Oferecer ferramentas conceituais para facilitar a identificação e o registro da violência contra as mulheres e seus diferentes tipos; Apresentar o ciclo da violência e formas de interrompê-lo; Apresentar a evolução e a importância dos direitos humanos de mulheres; Apresentar os principais marcos normativos nacionais e internacionais que servem de referência para atuação no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas no Brasil; Apresentar a importância da participação de mulheres e sua relação com um ambiente livre de violências. 1 2 3 4 5 6 12 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 4.1.3 Estrutura do módulo Este módulo compreende as seguintes aulas: Aula 1 Marco normativo internacional: a evolução dos direitos humanos de mulheres Aula 2 Conceitos e Definições Aula 3 Sensibilização à violência baseada em gênero Aula 4 Participação, liderança e protagonismo de mulheres 13 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 4.1.3.1 Aula 1 – A evolução dos direitos humanos de mulheres Na Prática Vocês sabem o que são os direitos humanos? Qual a importância deles? Por que eles foram pensados? Como eles se relacionam aos direitos humanos de mulheres? Gostaria de convidá-los e convidá-las a pensar nessas perguntas. Tire cinco minutos e pense um pouco sobre elas. Anote em um papel e ao fim desta aula vamos comparar as respostas. Agora vamos lá. Quando falamos especificamente dos direitos humanos de mulheres, estamos falando daqueles que se ocupam principalmente deste público, inclusive de meninas. Ao longo dos anos, foi necessário estabelecer regras sobre como os países deveriam tratar as suas mulheres. Isso aconteceu porque nem sempre as mulheres eram tratadas com dignidade e respeito. A evolução dos direitos das mulheres acompanhou também a evolução dos direitos humanos. Em 1948 foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este marco normativo teve como objetivo principal garantir direitos básicos e dignidade a todos e a todas, inclusive aquelas pessoas marginalizadas e tradicionalmente excluídas da vida pública do Estado. Figura 3: Eleanor Roosevelt - Presidente da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Fonte: Wikipedia https://tinyurl.com/ksfu4p99 14 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Eleanor Roosevelt foi uma figura importante em São Francisco, nos Estados Unidos, local em que a Declaração foi assinada. Na foto ela declara este que foi um dos primeiros documentos internacionais que falam sobre como os países devem tratar seus cidadãos e cidadãs com dignidade e respeito. Neste contexto, a presente aula explora a evolução dos direitos humanos das mulheres, desde a sua origem a partir da evolução dos direitos humanos e do reconhecimento da igualdade de gênero, até os dias atuais. Entender o progresso dos direitos humanos significa entender como a desigualdade impõe barreiras para que mulheres possam se desenvolver plenamente e contribuir para o desenvolvimento das sociedades em que vivem. Evolução do direito das mulheres e meninas Para abordar o tema dos direitos das mulheres e das meninas, recomenda-se um entendimento sobre o “regime internacional de igualdade de gênero”, o contexto histórico em que surgiu, bem como o que ele propõe. O termo regime se refere aos “princípios, normas, regras e procedimentos decisórios de determinada área, sobre os quais as expectativas dos atores são convergentes”.1 Tais regras e procedimentos podem ser explícitos, como a codificação do Direito Internacional na forma de tratados, ou podem ser implícitos ou menos vinculantes do ponto de vista formal, a exemplo das conferências internacionais. Estas constituem importantes normas e ações, reunidos de maneira tal que conseguem influenciar a ação do Estado. O regime de igualdade de gênero, como outros regimes, inclui uma série de conferências, tratados, e diversificada rede de organizações, do nível global ao local, incluindo organizações governamentais e não governamentais. A Carta da ONU é um documento fundador do regime de igualdade de gênero. O Preâmbulo da Carta reafirma, especificamente, a “fé nos direitos fundamentais humanos, na dignidade e no valor do ser humano, nos direitos iguais dos homens e mulheres e das grandes e pequenas nações, e […] na promoção do progresso social e de padrões de vida melhores, em um contexto mais amplo de liberdade”. A Carta também enfatiza especialmente a não discriminação contra mulheres e meninas, e a promoção da igualdade, do equilíbrio e da equidade de gênero nos Capítulos I, III, IX e XII. Porém, alguns dos princípios centrais que emergem na Carta, incluindo a igualdade soberana dos Estados, a manutenção da paz e da segurança, e a não intervenção nos assuntos internos dos Estados, 1 STEPHEN K., 1982, p. 186. 15 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência frequentemente operam em oposição direta aos objetivos relacionados a gênero. Na prática, estes princípios podem terminar sobrepondo-se aos objetivos relacionados a gênero. A brasileira Bertha Lutz foi uma das cinco mulheres que participaram oficialmente como representantes de governo na Conferência de São Francisco, a qual originou a Organização das Nações Unidas, que é a principal organização internacional no âmbito da defesa de direitos. Bertha Lutz foi a responsável pela inclusão da igualdade de gênero na Carta deste importante organismo. Uma enorme contribuição de uma brasileira para todas as mulheres do mundo. A igualdade de gênero trata da possibilidade de acesso a oportunidades iguais entre homens e mulheres. Sua interpretação como uma questão de direitos humanos recebeu sua reafirmação institucional dentro da ONU, pelo que se tornou informalmente conhecido como a Carta Internacional de Direitos Humanos. Carta Internacional de Direitos Humanos Declaração Universal dos Direitos Humanos 10/12/1948 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento base não jurídico que delineia a proteção universal dos direitos humanos básicos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, elaborado principalmente pelo jurista canadense John Peters Humphrey, contando com a ajuda de várias representantes de origens jurídicas e culturais de todas as regiões do planeta. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 16/12/1966 O acordo diz que seus membros devem trabalhar para a concessão de direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) para pessoas físicas, incluindo os direitos de trabalho e o direito à saúde, além do direito à educação e a um padrão de vida adequado. Pacto Internacional Sobre DireitosCivis e Políticos 19/12/1966 Instrumento por meio do qual os Estados Partes das Nações Unidas que aderirem e ratificarem o Pacto assumem o compromisso de respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição. Figura 4: Bertha Lutz durante os trabalhos da Conferência de São Francisco - 1945 . Fonte: Câmara dos Deputados https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/imagens/exposicoes-historicas-e-artisticas-2016/bertha-lutz-durante-os-trabalhos-da-conferencia-de-sao-francisco-1945/view https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/imagens/exposicoes-historicas-e-artisticas-2016/bertha-lutz-durante-os-trabalhos-da-conferencia-de-sao-francisco-1945/view 16 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Protocolo Opcional 22/12/2000 Protocolo que estabelece mecanismos para notificação e investigação da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres Esses documentos fundacionais foram importantes para estabelecer um arcabouço legal normativo e componentes substanciais do Direito Internacional. Ainda assim, a sua implementação está, com frequência, aquém do ideal. Apesar disso, essa declaração e os dois tratados subsequentes adotam uma abordagem relativamente estreita sobre o tema. Elas não tratam de questões fundamentais para o direito de mulheres e meninas que ocorrem no âmbito privado, local que é, ainda onde as principais formas de violência afetam mulheres. Por essa razão, os seus mandatos são bastante criticados, e seguiu-se um movimento forte e atuante por parte da sociedade civil para que questões no âmbito doméstico também fossem tratadas. Em outras palavras: sim, é dever do Estado proteger mulheres e seus direitos no interior de seus lares. Era necessário, portanto, um documento de caráter jurídico vinculante e especificamente dedicado aos direitos de mulheres e meninas. Então, em 1979 a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (do termo em inglês CEDAW). Trata-se do primeiro instrumento internacional de direitos humanos a definir explicitamente todas as formas de discriminação contra mulheres como violações fundamentais de direitos humanos. Boa parte do texto dessa convenção foi redigida pela Comissão sobre o Status da Mulher (do termo em inglês CSW), criada especificamente para promover os direitos de mulheres e defendê- los. A Comissão reúne-se até hoje, desde a sua criação em 1946, no mês de março, e traz uma série de deliberações desde a sua criação sobre como seguir avançando neste âmbito. O Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, que entrou em vigor em 2000, melhorou ainda mais o regime de igualdade de gênero, criando procedimentos e mecanismos para que os Estados prestem contas perante a Convenção. Ao ratificar o Protocolo Facultativo, um Estado reconhece a competência do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher - a CEDAW –, o órgão que monitora o cumprimento da Convenção pelos Estados para receber e examinar queixas de indivíduos ou grupos dentro da sua jurisdição. Mais especificamente, o Protocolo prevê os dois procedimentos listados abaixo. 1. Procedimento de comunicação: permite que mulheres, de maneira individual, ou grupos de mulheres, submetam violações de direitos protegidos pela Convenção ao 17 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Comitê. Para serem aceitas pelo Comitê, as comunicações individuais precisam atender a uma série de critérios. Um exemplo é o esgotamento de todas as ações cabíveis em âmbito nacional. 2. Segundo procedimento: permite que o Comitê inicie inquéritos sobre as situações de violações graves ou sistemáticas de direitos das mulheres. Em ambos os casos, para que sejam aceitos, os Estados devem ser partes signatárias da Convenção e do Protocolo.2 As conferências internacionais de mulheres Vimos na seção anterior que os direitos das mulheres avançaram através de três instrumentos principais: a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, a inclusão da igualdade de gênero no documento fundados da ONU, e a atuação da Comissão sobre o Status da Mulher que gerou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, e uma série de protocolos adicionais. Porém, houve ainda uma série de conferências internacionais que também contribuíram para avançar os direitos das mulheres, em especial nas esferas econômica e política. Entre 1975 e 1995, o regime de igualdade de gênero se consolidou em diversas áreas através das quatro conferências globais sobre mulheres, realizadas na Cidade do México, em Copenhague, na Dinamarca; em Nairóbi, no Quênia; e em Beijing, na China. Essas conferências proporcionaram plataformas para negociações intergovernamentais e deram às organizações de mulheres um palco internacional para a proposição de suas reivindicações e para o seu trabalho em rede. A primeira conferência foi convocada na Cidade do México para coincidir com o Ano Internacional da Mulher, em 1975, oficializado para relembrar a comunidade internacional de que a discriminação contra mulheres e meninas continuava a ser um problema na maior parte do mundo. Esta primeira conferência focou no desenvolvimento de planos de ação para atender três principais objetivos: (1) a plena igualdade de gênero e a eliminação da discriminação de gênero; (2) a integração e participação plena das mulheres nas ações relacionadas ao desenvolvimento; (3) a contribuição ampliada das mulheres para fortalecer a paz mundial.3 2 ONU MULHERES, 2000. 3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1976. 18 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 5: 1ª Conferência Mundial sobre Mulher - México (1975): “Igualdade, Desenvolvimento e Paz”. Fonte: ONU Ainda que exista um reconhecimento, embora tímido, sobre o papel de mulheres para a paz, esta conferência, juntamente com a Década das Nações Unidas para as Mulheres (1976 - 1985), focou seus esforços em promover um diálogo mais amplo e quase inédito sobre igualdade de gênero no mundo. Constituiu, efetivamente, um processo de aprendizado que envolveu deliberações, negociações, estabelecimento de objetivos, identificação de obstáculos e revisão dos avanços. Este processo continuou com a segunda conferência mundial para as mulheres, realizada em 1980, em Copenhague. http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/ 19 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 6: 2ª Conferência Mundial sobre a Mulher Copenhague (1980): “Educação, Emprego e Saúde”. Fonte: ONU Especificamente sobre a atuação no âmbito da paz e segurança, o relatório determina que no contexto do fortalecimento da paz e da segurança internacional, desarmamento e enfraquecimento de tensões, seja prestada a devida atenção ao avanço de mulheres e proteção de mães e crianças (parágrafo 33).4 O enquadramento dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero passam a ser componentes importantes para a paz e a segurança. A terceira conferência,em 1985, lançou as Estratégias Prospectivas de Nairóbi para o Avanço das Mulheres, com um plano de ação que definiu as ações necessárias em prol da igualdade, do desenvolvimento e da paz, até o ano 2000. Esse documento conectou claramente a promoção e a manutenção da paz à erradicação da violência contra as mulheres em todos os níveis da sociedade. O parágrafo 13, por exemplo, afirma que a promoção plena e efetiva dos direitos das mulheres terão maiores chances de serem implementados em um contexto de paz e segurança internacional.5 Explica, ainda, que a paz refere-se não somente à ausência de guerras, violência e hostilidades em níveis nacional e internacional, mas também à valorização da justiça econômica e social, à igualdade e a todo o rol de direitos humanos e liberdades fundamentais. 4 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1980. 5 DECLARAÇÃO DE BEIJING E A PLATAFORMA DE AÇÃO, 1995. http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/ 20 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 7: 3ª Conferência Mundial sobre a Mulher - Nairóbi (1985): “Estratégias Orientadas ao Futuro, para o Desenvolvimento da Mulher até o Ano 2000”. Fonte: ONU O documento também encoraja os Estados-membros a adotar medidas constitucionais e jurídicas para eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres, bem como moldar as estratégias nacionais para facilitar a participação das mulheres em ações dedicadas à paz e ao desenvolvimento. A quarta conferência mundial sobre mulheres, realizada em Beijing, em 1995, produziu a Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação.6 A Declaração cobrou dos governos os compromissos de implementar as estratégias acordadas em Nairóbi em 1985 antes do final do século XX e de mobilizar recursos para a implantação da Plataforma de Ação. A Plataforma é o documento mais completo produzido por uma conferência da ONU sobre os direitos das mulheres, uma vez que ela incorpora conquistas de conferências e tratados anteriores, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a CEDAW e a Declaração e Programa de Ação de Viena, que foram preparados na conferência global sobre direitos humanos em 1993. 6 Idem. http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/ 21 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 8: 1995 – IV Conferência Mundial sobre a Mulher com tema central: “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, China. Fonte: ONU Declarações da Assembleia Geral da ONU Além dessas conferências globais, dos tratados internacionais e das diversas entidades internacionais existentes, cabe destacar também que o regime da igualdade de gênero é composto por uma série de Declarações da Assembleia Geral da ONU. Por definição, as declarações não são compulsórias, mas têm contribuições importantes no que diz respeito ao desenvolvimento da ideia da igualdade de gênero e ao seu impacto na missão da ONU de manter a paz e a segurança internacional. Em 1966, aprovou-se a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da Assembleia Geral, que abriu o caminho para a CEDAW. Em 1974, a Assembleia Geral aprovou a Declaração sobre a Proteção de Mulheres e Crianças em Emergências e Conflitos Armados, que preparou o terreno para o arcabouço de proteção dentro do regime de igualdade de gênero. Com a reafirmação da CEDAW e das declarações anteriores, a Assembleia Geral adotou a Resolução 3521 (1975), convidando os Estados-membros da ONU a ratificarem convenções internacionais e outros instrumentos ligados à proteção dos direitos das mulheres. De acordo com essa resolução, ao se beneficiarem dos direitos estipulados nos instrumentos internacionais pertinentes, as mulheres devem desempenhar um papel igual ao dos homens em todas as esferas da vida, incluindo a promoção da paz e o fortalecimento da segurança internacional. Finalmente, em 1993, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/ 22 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência reconheceu a necessidade urgente da aplicação universal dos direitos das mulheres e dos princípios a respeito da igualdade, segurança, liberdade, integridade e dignidade de todos os seres humanos, e expressou sua preocupação com o fato de que a violência contra as mulheres é um obstáculo à conquista da igualdade, do desenvolvimento e da paz. Ela apontou que essa violência pode ser praticada por agressores de ambos os sexos, dentro da família e do próprio Estado. Essas declarações e resoluções da Assembleia Geral, entre outras, são peças centrais na compreensão do desenvolvimento e da trajetória do trabalho da ONU na promoção da igualdade de gênero e do empoderamento de mulheres e meninas. Mas além dos esforços com enfoque específico nas questões de gênero, outras áreas dentro do Sistema ONU passaram por mudanças, criando espaço para que as questões de gênero aparecessem em novos contextos, em particular no contexto da paz e da segurança internacional. No final da década de 1990, por exemplo, no âmbito das graves situações de violência em Ruanda e na ex-Iugoslávia, o Conselho de Segurança realizou uma série de reuniões para tratar a questão da responsabilidade para proteger populações civis em tempos de guerra. Parte dessa mudança de pensamento estava relacionada à evolução do Direito Internacional que, pela primeira vez, codificou o estupro e a violência sexual como crimes de guerra, crimes contra a humanidade e atos de genocídio. Essa importante categorização começou com os Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda, tornando-se permanente com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998.7 Neste, o estupro e a violência sexual são considerados crimes contra a humanidade. Esses instrumentos internacionais históricos estão entre os fatores que pressionaram o Conselho de Segurança a ampliar o seu entendimento do que constitui uma ameaça à segurança internacional, estabelecendo uma jurisdição que vai além de um conflito armado internacional, real ou iminente. Interseccionalidade e o marco normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres Apesar do efeito perverso que a violência contra mulheres gera em mulheres pertencentes a grupos que foram historicamente marginalizados de políticas públicas brasileiras, não há menções específicas à necessidade de incorporar uma abordagem de gênero aos principais instrumentos internacionais de proteção de mulheres. De fato, nenhum 7 BRASIL, 2002. 23 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência dos documentos supracitados, particularmente a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nem a própria CEDAW trata das perspectivas de mulheres pertencentes a identidades que podem gerar vulnerabilidades e riscos extras para elas.8 No entanto, a participação de mulheres negras nas Conferências internacionais foi intensa. Em 1975, com a Declaração do Ano 1975 como o Ano Internacional da Mulher, elas compareceram na primeira conferência e apresentaram um documento que indicava a situação de exploração e opressão da mulher negra em diferentes contextos.9 A presença delas nas Conferências, apesar de forte, teve seus primeiros resultados na Conferência de Direitos Humanos em Viena, em 1993, quando, foi incluído em seu texto oficial menção a necessidade de olhar os direitos de mulheres também pela óticade mulheres não-brancas. No Brasil, entre os anos 90 e 2000 houve importantes ações públicas em prol da visibilização do racismo estrutural e o papel da ação afirmativa. Neste contexto, mulheres negras tiveram um papel fundamental na Constituinte de 1988, inaugurando formulações políticas para setores historicamente marginalizados no Brasil. Isto resultou, mais adiante, em propostas práticas no âmbito nacional, como a política de cotas em universidades e órgãos públicos no Brasil. Assim, em 1994, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing, na China, e em 2001 na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas conexas de Intolerância em Durban, houve uma participação e articulação transnacional do movimento feminista negro sem precedentes. Para Beijing, mulheres negras enviaram importantes subsídios, como “A mulher negra na década: a busca da autonomia.”10 SAIBA MAIS A necessidade de estabelecer um regime de proteção das mulheres surgiu em razão da marginalização e exclusão das mulheres ao longo dos séculos, o que gerou oportunidades desiguais de acesso a direitos, inclusive com relação aos papéis que desempenham na sociedade. Por isso, o movimento feminista, muito antes da existência das Nações Unidas, luta para o reconhecimento destes direitos, o que só aconteceu após a elaboração de uma série de documentos que discutimos aqui brevemente. Para um breve resumo do conteúdo desta aula, acesse o vídeo do Politize: "Direito das Mulheres: o que são e como surgiram? - Projeto Equidade". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wQHeL2hHe7g 8 Ferreira, Lobo (2023). 9 Nascimento, 1978. 10 (RIBEIRO, 2008, p. 991). https://www.youtube.com/watch?v=wQHeL2hHe7g 24 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Finalizando Bom, agora que nós terminamos esse módulo, gostaria de convidá-los e convidá-las a dar uma olhadinha naquele conteúdo que vocês pensaram na nossa atividade de abertura. E então, suas respostas estão mais ou menos de acordo com o que aprenderam nessa seção? Para facilitar vou fazer um resumindo aqui embaixo sobre o que aprendemos neste módulo: A) Mulheres foram tradicionalmente excluídas da vida pública do Estado e por essa razão, com frequência têm seus direitos mais básicos violados; B) Uma série de marcos internacionais, em especial a Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, conformam o regime internacional de proteção dos direitos das mulheres. Em outras palavras, eles determinam como os Estados devem tratar suas mulheres, garantindo todos os seus direitos e igualdade de oportunidades; C) Porém, a forma como as mulheres são tratadas no interior de seus lares demorou a ser reconhecida como direito. E é neste âmbito o local em que grande parte de seus direitos são violados. E é claro que não podemos permitir isso. As conferências internacionais, ações do movimento feminista e deliberações da Comissão sobre o status da Mulher contribuíram para que se criassem protocolos e plataformas de atuação que corrigem esse direito. Agora é nosso dever proteger essas mulheres. 4.1.3.2 Aula 2 - Principais Conceitos e Definições Profissionais da segurança pública são, em sua maioria, homens. Para mulheres, entrar em uma delegacia, ou discar o 190, para registrar uma ocorrência relacionada a violência baseada em gênero pode ser um desafio. Isso porque pode ser difícil falar sobre este tipo de violência, em especial quando o interlocutor é um homem. Por que isso acontece? A violência contra mulheres, seja ela em qualquer uma de suas formas, tem origem na profunda desigualdade de gênero em nossa sociedade. As relações desiguais entre homens e mulheres geram relações de poder, que podem se traduzir, inclusive, na violência sobre o corpo, comportamento e formas de ser de mulheres. 25 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência A maioria dos perpetradores da violência contra mulheres são parceiros e ex-parceiros ou membros da família. Profissões como aquelas relacionadas à segurança pública remetem à categoria construída a partir da imputação de papéis sociais a indivíduos de uma dada organização que detém o monopólio da força. De certa forma, estes profissionais são, com frequência, vistos como separados do restante da sociedade, e vivem em um sistema de relações, regras e comportamentos distintos dos demais indivíduos desta mesma sociedade. Apesar das particularidades de cada categoria, a estes profissionais são impostos comportamentos que deverão desconstruir sua identidade original e colocar em seu lugar uma nova identidade. Os adjetivos que tendem a definir estes profissionais nas sociedades ocidentais são, em certa medida, os mesmos que definem os homens, o ser masculino: viril, corajoso, audacioso, etc. Ambientes assim podem ser considerados amedrontadores e hostis para muitas mulheres, por isso, também pode ser difícil para elas reportar este tipo de violência. Mas não só a ida a delegacia que pode ser difícil para mulheres, é comum que a fim de evitar o assédio, o constrangimento e outros tipos de agressão, muitas mulheres alteram a sua rotina para fazer outro caminho ou mudam a forma de se vestir. De acordo com a ONG Think Olga, 99,6% das mulheres brasileiras já sofreram com assédios no espaço público.11 Considerando o risco constante à violência baseada no gênero e a dificuldade enfrentada por muitas mulheres para reportar este tipo de violência, esta aula pretende informar os profissionais do sistema de segurança pública sobre alguns conceitos e definições básicos, como forma de sensibilizá-los sobre a relação entre os papéis que mulheres desempenham na sociedade e os riscos e vulnerabilidades a que estão submetidas. Observem as fotos desses dois bebês: Figura 9: Menina em rosa Figura 10: Menino recém-nascido para dormir Fonte: Public Domain Pictures.net Fonte: Public Domain Pictures.net 11 Ver: Pesquisa Chega de Fiu Fiu - Think Olga. https://www.publicdomainpictures.net/pt/view-image.php?image=11151&picture=menina-em-rosa https://www.publicdomainpictures.net/pt/view-image.php?image=59885&picture=menino-recem-nascido-para-dormir https://thinkolga.com/ferramentas/pesquisa-chega-de-fiu-fiu/ 26 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Na Prática 1. Que presentes você daria para esses bebês? 2. O que você acha que cada um vai ser quando crescer? 3. O que vão estudar? 4. Como vão se vestir? 5. Aos 15 anos, o que estarão fazendo? 6. Aos 30 anos, o que estarão fazendo? 7. E se invertêssemos os presentes desses bebês? SAIBA MAIS Assistir o filme: Inspiring The Future - Redraw The Balance Versão em português: Profissão de homem ou de mulher? Sexo Na Biologia, sexo é o conjunto de características físicas e orgânicas que permite diferenciar o homem e a mulher, conferindo-lhes papéis específicos na reprodução. O sexo é, assim, apenas uma classificação do corpo da pessoa: se este apresenta aspectos básicos da biologia feminina, trata-se de uma mulher; da mesma forma, se o corpo possui características biológicas exclusivas do sexo masculino, trata-se de um homem. No momento do nascimento de um bebê, tudo que sabemos a seu respeito é o sexo. Traços de sua personalidade, como temperamento, habilidades, gostos e desejos serão revelados ao longo de seu amadurecimento. Isso se deve ao fato de que, biologicamente, pertencer ao sexo masculino ou feminino não define o comportamento das pessoas. Ou seja, um bebê do sexo masculino não tem maior propensãoa gostar de futebol do que um bebê do sexo feminino. O que definirá isso é a imersão social da criança. Além de masculino e feminino, há uma terceira categoria de sexo chamada intersexo. Refere-se à pessoa cujas características físicas/biológicas mesclam aspectos do sexo feminino e do masculino, ou, ainda, não apresentam atributos que permitam a classificação em um único sexo. Por apresentar variações de cromossomos ou órgãos genitais que estão fora do padrão, são designados em uma outra classificação. Englobam hermafroditas, que apresentam tecidos https://www.youtube.com/watch?v=qv8VZVP5csA https://www.youtube.com/watch?v=WQcVenoISA0 27 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência testiculares e ovulares, e pseudo-hermafroditas, caso de pessoas cujos testículos não desceram, pênis demasiado pequeno, clítoris muito grande, vagina ausente ou código genético masculino e características físicas femininas e vice-versa. Segundo a Organização Mundial da Saúde, estima-se que cerca de 1% da população mundial seja intersexual.12 Gênero e Papéis Sociais de Gênero O gênero reúne as características físicas, intelectuais e emocionais que se espera de homens e mulheres. Refere-se à forma como a pessoa se expressa socialmente. No exercício de abertura, apenas com o conhecimento do sexo biológico dos bebês, foram expostos projeções e anseios para cada um. Tais projeções são reproduções dos papéis de gênero, isto é, do que é esperado deles caso seja uma menina ou um menino. Estas projeções também mudam segundo a cultura, a raça, e até mesmo a família de cada um. Assim, família, amigos, mídia e sociedade dizem de diversas formas como homens e mulheres devem agir, criando padrões de comportamento para cada gênero. Essas ideias e expectativas são convenções sociais, padrões geralmente aceitos sobre comportamentos e capacidades tipicamente femininas ou masculinas13. Assim, a ideia de gênero é um processo social, ligado à cultura, que está menos relacionado à biologia de cada um do que às expectativas da sociedade. Os papéis de gênero variam ao longo da história e de acordo com a cultura local. Não há uma definição universal do que é ser homem ou ser mulher, tampouco há características de masculinidade e feminilidade que abarque a todos. Logo, ao pensarmos em diferenças "naturais" entre homens e mulheres, devemos compreender que não fazem parte da biologia de cada um, mas da forma com que são colocados na sociedade. Em outras palavras, é o convívio social que determina as diferenças entre os gêneros e não o sexo. Este convívio inicia-se quando somos ainda crianças. Meninas não nascem com uma tendência natural a gostar de rosa, tampouco os meninos de azul, porém essas cores estão constantemente associadas a seu gênero e, no esforço de se encaixar, esses "gostos" são internalizados. Enquanto meninas ganham bonecas, lousas, cozinhas de brinquedo, meninos brincam com video-games, carrinhos elétricos e legos, esses brinquedos não são apenas entretenimento infantil, mas passam uma mensagem e dizem às crianças o que é esperado delas. Mais que isso: os brinquedos 12 "Sou intersexual, não hermafrodita". EL PAÍS. Disponível em: https://tinyurl.com/Sou-intersexual. 13 "Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género: Manual de Actividades Educativas". Projecto Acquire, EngenderHealth e Promundo, 2008. P. 95. Disponível em: https://tinyurl.com/58ecpa79. https://tinyurl.com/Sou-intersexual https://tinyurl.com/58ecpa79 28 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência influenciam diretamente no desenvolvimento cognitivo das crianças, na sua capacidade de aprender. Ao brincar de ser professora, a menina pratica habilidades diferentes do menino que brinca de lego. Enquanto este desenvolve noção espacial, por exemplo, ela pratica a comunicação verbal. Brinquedos são apenas um exemplo dentre tantos outros das possíveis influências que, por vezes, passam despercebidas na educação das crianças e jovens e são tidas como naturais, inerentes àquele gênero.14 Por exemplo, ao pensarmos no futuro profissional de um menino, pensa-se nas mais diversas carreiras. Ao mesmo tempo, meninas são vistas como mais preparadas para atividades voltadas à pessoas e à relações interpessoais, como profissões de comunicação, de cuidados e de ensino (enfermeiras e professoras, por exemplo). As áreas de exatas são automaticamente associadas a homens, que seriam, pelo senso comum, biologicamente mais aptos a lidar com coisas, máquinas, tecnologia e raciocínio lógico. Os papéis de gênero acabam por criar estereótipos do que é agir como homem e como mulher. Aqueles que não atuam de acordo com o conjunto dessa "caixa" sofrem com o rechaço, a vergonha ou a exclusão social. Assim, os papéis de gênero limitam as possibilidades de expressão e ação das pessoas, que se veem pressionadas a seguir um modelo. Na Prática Observe os pictogramas abaixo. Questione a mensagem que querem expressar. Em seguida, tente visualizar as características construídas socialmente e o impacto que elas podem gerar na vida de mulheres. 14 Ver também: "Estereótipo de que 'matemática é para garotos' afasta meninas da tecnologia, diz pesquisador", disponível em: https://tinyurl.com/5yeksysj. https://tinyurl.com/5yeksysj 29 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 11: Como homens e mulheres se comunicam Fonte: Yang Liu Design/Taschen ______________________________________________________________________ Figura 12: Cultura de gênero em ilustrações, o projeto Man Meets Woman de Yang Liu. Fonte: Yang Liu Design/Taschen https://slate.com/human-interest/2014/08/man-meets-woman-by-yang-liu-uses-pictograms-to-explore-the-differences-between-the-sexes.html https://pitangadigital.wordpress.com/2014/09/14/cultura-de-genero-em-ilustracoes-o-projeto-man-meets-woman-de-yang-liu/ 30 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 1. COMUNICAÇÃO VERBAL A comunicação verbal é um exemplo de como os papéis de gênero estabelecidos podem prejudicar o desenvolvimento individual tanto de homens quanto de mulheres. Homens são vistos como diretos, focados, "curtos e grossos" e decididos, mas também são pouco incentivados a compartilhar seus sentimentos, o que gera um fluxo de repressão das emoções. Já em relação às mulheres, a generalização é de que falam demais, dão muitas voltas para passar uma mensagem simples, são sentimentais, choram em demasia e apresentam alterações de humor bruscas. Figura 13: Projeções a respeito do par perfeito por sexo Fonte: Yang Liu Design/Taschen 2. VALORIZAÇÃO SOCIAL Para os homens, a mulher dos sonhos é aquela que se encaixa dentro do padrão de beleza. Para a mulher, o homem dos sonhos é admirado por outras características que não só o seu corpo. A mulher aparece como um objeto: se o seu corpo for jovem e corresponder ao desejado, não é necessário que ela tenha outra qualidade. Assim, o único interesse que os homens têm nas mulheres reflete que elas são objetos sexuais, não seres pensantes com quem compartilham sentimentos ou anseios. https://slate.com/human-interest/2014/08/man-meets-woman-by-yang-liu-uses-pictograms-to-explore-the-differences-between-the-sexes.html 31 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 14: Estereótipo sobre capacidade de focar e desenvolver múltiplastarefas Fonte: Yang Liu Design/Taschen 3. FOCO Muitos argumentam que homens não conseguem lidar com mais de um assunto ao mesmo tempo, tendo um único foco por vez. A mulher, por outro lado, teria a habilidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo ("multitasking"). Mas não se trata de uma habilidade natural, mas de necessidade, pois enquanto o homem se dedica com atenção a cada uma de suas atividades, a mulher fica pelas outras atividades pendentes, como as tarefas da casa e dos filhos, além de seu trabalho, se for o caso. ______________________________________________________________________ Esta atividade utilizou algumas representações15 de estereótipos de gênero, sobre aspectos da masculinidade e da feminilidade. Vale notar que as imagens evidenciam que o papel de gênero da mulher é, em geral, desvantajoso em relação ao do homem. 15 "Los estereotipos de género, resumidos en veinte esclarecedores pictogramas" (tradução livre: os estereótipos de gênero, resumidos em vinte esclarecedores pictogramas). Disponível em: https://tinyurl.com/3y9ys5vv. https://pitangadigital.wordpress.com/2014/09/14/cultura-de-genero-em-ilustracoes-o-projeto-man-meets-woman-de-yang-liu/ https://tinyurl.com/3y9ys5vv 32 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Abaixo, segue uma representação: Figura 15: Estereótipos de gênero Fonte: ONU Mulheres Identidade De Gênero A identidade de gênero é uma classificação pessoal, realizada através da autoidentificação, e revela como a pessoa se sente sobre seu sexo. A autoidentificação pode não ser a mesma do sexo biológico: uma pessoa do sexo masculino pode se identificar com o gênero feminino e vice-versa.16 Nesse sentido, há duas classificações usuais: Cisgênero Comumente chamadas de "cis", são as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Por exemplo, uma pessoa é do sexo feminino e se identifica como mulher (gênero feminino). Transgênero Denominadas "trans", são pessoas que não se identificam com o gênero, expressões de gênero e/ou papéis de gênero que lhes foram atribuídos pelo sexo biológico. É o caso das travestis e transexuais. Para ilustrar: apesar de ter nascido do sexo masculino, a pessoa identifica-se, percebe- se e se sente como mulher. Assim, mulher transgênero é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher, também chamada de transmulher. E homem transgênero 16 "ORIENTAÇÕES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO: CONCEITOS E TERMOS". JESUS, Jacqueline Gomes de. Brasília, 2012. P. 12. Disponível em: https://tinyurl.com/4denysk7. https://twitter.com/ONUMujeresMX/status/1092256428100710402 https://tinyurl.com/4denysk7 33 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como homem, também denominada transhomem trans-homem.17 A diferença entre transexuais e travestis está essencialmente na autoidentificação. Se a pessoa deseja realizar a transição de gênero, através de tratamentos hormonais e cirurgia de redesignação sexual, ela é transexual. Nesse caso, a pessoa gostaria que seu corpo tivesse características do seu gênero (de como ela se identifica e se sente), não do seu sexo biológico. Por outro lado, as travestis se identificam com o gênero oposto e adotam suas expressões - comportamento, vestimentas etc -, mas não necessariamente desejam mudar seu corpo. A questão social também tem papel fundamental nessa diferenciação, pois muitas pessoas trans gostariam de realizar a transição de gênero, mas são impedidas por dificuldades socioeconômicas. Desse modo, a autoidentificação é a melhor classificação, visto que é baseada no desejo e no sentimento da pessoa e não em fatores físicos. A transfobia é a discriminação que sofrem em função de sua identidade de gênero. Por serem diferentes do padrão, pessoas trans sofrem muito preconceito e têm suas vidas prejudicadas pela exclusão social e violência. Em geral, uma série de fatores deteriorantes acomete a vida das pessoas trans: devido ao bullying e à perseguição nas escolas, comunidades e mesmo em casa, dificilmente conseguem concluir sua educação; sem instrução formal, não conseguem disputar espaço no mercado de trabalho formal18 e são forçadas a viver na marginalidade. As travestis19, em grande parte dos casos, sobrevivem trabalhando como prostitutas. A marginalização, porém, não é o pior que ocorre às pessoas trans. Elas sofrem cotidianamente risco de vida devido à propagação do ódio e à desumanização de suas imagens. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo - apenas em 2021, foram 316 mortes violentas, sendo 285 assassinatos, 26 suicídios, e 5 mortes por outras causas. 20 Um fator importante da sociabilização da pessoa trans é o nome social. Marcada ao longo de sua vida pela dificuldade de viver em um corpo que não representa seu gênero, as travestis e transexuais preferem ser chamadas pelo nome escolhido por elas, diferente de seu nome do registro civil, ainda ligado a seu sexo biológico, com o qual não se identificam. 17 Identificar-se com as expressões de um gênero não é o mesmo que aceitar os papéis de gênero socialmente impostos. A pessoa pode se identificar com ser mulher, sem reproduzir os estereótipos. 18 "ORIENTAÇÕES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO: CONCEITOS E TERMOS". JESUS, Jacqueline Gomes de. Brasília, 2012. P. 16. Disponível em: https://tinyurl.com/4denysk7. 19 Independente de como se identificam, a maioria das travestis preferem o tratamento no feminino. Portanto, deve-se chamá-las de AS travestis, não OS travestis. 20 "Dossiê de mortes e violência contra LGBT+ no Brasil". Disponível em: https://tinyurl.com/yeysa6pr. https://tinyurl.com/4denysk7 https://tinyurl.com/yeysa6pr 34 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência A utilização do nome social representa respeito e um mínimo esforço de inclusão dessa população na sociedade. Figura 16: Assassinatos de Travestis e Transexuais Fonte: G1 – Globo.com O motivo para tantas agressões às pessoas trans é o fato delas não corresponderem à heteronormatividade, ou aos padrões socialmente construídos que consideram, por exemplo, atribuições como a virilidade e a força como superiores. Neste contexto, o homem é considerado superior às pessoas do gênero feminino, porém isso não se aplica a qualquer homem: cabe apenas ao homem heterossexual que expresse categoricamente sua masculinidade. Dessa forma, heteronormatividade descreve regras baseadas na vivência heterossexual como obrigatórias a todos e pune socialmente aqueles que desviam dessas normas. Sexualidade O sexo, como qualquer outro ato social, envolve uma série de questões da nossa cultura: a beleza, o romance, o controle, a agressividade, a comunicação etc. Assim, inevitavelmente a sexualidade é mais um marcador de diferença entre o gênero feminino e o masculino, devido ao que é imposto pelos papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres e como cada um deve explorar sua liberdade sexual. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/01/28/sp-e-o-estado-brasileiro-que-mais-registrou-mortes-de-transexuais-em-2021-pelo-3oano-consecutivo-diz-levantamento.ghtml 35 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Desde muito cedo, somos expostos a diversos tipos de mensagens, muitas vezes contraditórias. Na família, em instituições religiosas e até mesmo nas escolas, é comum que se apresente uma postura conservadora quanto ao sexo. Jáa mídia e os amigos tendem a tratar mais abertamente do assunto. Independente da abordagem, há sempre uma mensagem e uma expectativa de comportamento sendo transmitida. Isso ocorre porque os seres humanos, em geral, não limitam a sua sexualidade à reprodução e somam valores morais e comportamentos sociais à prática sexual.21 Quem gosta mais de fazer sexo: o homem ou a mulher? Os estereótipos (heteronormativos) de gênero afirmam que os homens são naturalmente mais inclinados aos prazeres do sexo e precisam fazê-lo com mais frequência. Já o estereótipo feminino atribui às mulheres o plano secundário, coadjuvante, como se as mulheres preferissem o romance e gostassem menos da prática sexual. Além disso, se uma mulher tem vários parceiros, é depreciada por ser vulgar ou "prostituta". O homem, ao contrário, reforça sua masculinidade e é visto como "garanhão". Por essa razão, a mulher costuma mentir o número de parceiros sexuais para preservar sua reputação, ao passo que o homem tende a aumentar esse número, para mostrar potência e virilidade. Essas ideias legitimam, isto é, autorizam socialmente, que homens tenham relações fora do casamento ou se preocupem menos com o prazer feminino na hora do sexo. Trata-se de um comportamento nocivo não apenas para a sexualidade da mulher, tolhida de sua liberdade sexual, mas também para o homem, visto que o incentivo para que eles tenham múltiplas parceiras aumenta os riscos de contração de DSTs e HIV. Orientação Sexual A orientação sexual refere-se à atração afetiva e sexual por alguém de algum(ns) gênero(s). Ainda não há evidências científicas sólidas sobre como a orientação sexual é determinada. A perspectiva mais consensual é a de que seja uma combinação de múltiplos fatores sociais, psicológicos e biológicos. Do ponto de vista psicológico, não há como escolher ser homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual, portanto, não se trata de opção sexual. 21 "Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género: Manual de Actividades Educativas". Projecto Acquire, EngenderHealth e Promundo, 2008. P. 92. Disponível em: https://tinyurl.com/y439ztda. https://tinyurl.com/y439ztda 36 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência As categorias correntes são: Assexual: pessoa que não se sente atraída por nenhum gênero. Bissexual: pessoa que se sente atraída afetiva e sexualmente por pessoas de qualquer gênero. Homossexual: pessoa que se sente atraída afetiva e sexualmente por pessoas do mesmo gênero (gays e lésbicas). Heterossexual: pessoa que se atrai afetiva e sexualmente por pessoas de outro gênero (homem-mulher). Atenção para não confundir: i. Orientação sexual e identidade sexual: a primeira indica se a pessoa se sente atraída por homens, mulheres ou ambos, em relação a seu próprio gênero. A segunda classifica se a pessoa se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Por exemplo, uma pessoa bissexual cisgênera é aquela que se identifica com o gênero designado e se interessa por ambos os gêneros. Pode ser o caso de uma pessoa do sexo feminino, que se identifica como mulher e sente atração por homens e mulheres. Da mesma forma, uma pessoa trans, assim como qualquer outra pessoa, pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual. Por fim, alguém de sexo biológico masculino que se identifica com o gênero feminino (transmulher) e sente atração por homens é uma pessoa heterossexual. ii. Orientação sexual e papéis ou expressões de gênero: essa confusão é gerada pelos conceitos de feminilidade e masculinidade, trabalhados anteriormente. A atribuição de comportamentos específicos para pessoas a partir do seu sexo biológico gera problemas de generalização e entendimento da orientação sexual de uma pessoa. Um homem que se expressa de maneira tida como mais feminina não necessariamente se sente atraído por outros homens. Um homossexual, bem como um heterossexual, pode expressar-se de forma muito masculina, feminina, ou nenhum dos dois, sem que isso tenha relação com a sua orientação sexual. Esta é determinada pelo desejo que a pessoa sente por outras pessoas do mesmo gênero ou de gênero distinto. Em resumo: o gênero é como a sociedade reconhece a pessoa; a identidade de gênero é como ela se identifica e se sente, e a orientação sexual é por quem ela se sente atraída. 37 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Figura 17: Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género: Manual de Atividades Educativas. Fonte: PROMUNDO, 2008 http://promundo.org.br/recursos/envolvendo-meninos-e-homens-na-transformacao-das-relacoes-de-genero-manual/ 38 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência Igualdade de Gênero e Feminismo As diferenças expressas nos conceitos de gênero e na construção dos papéis de gênero têm reflexos na vida real. - Apesar das mulheres serem metade da população mundial, representam 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).22 - A média salarial das mulheres é 24% inferior à dos homens.23 - Em todas as regiões do mundo, as mulheres trabalham mais que os homens: realizam em média duas vezes e meia a quantidade de trabalho doméstico e cuidados não remunerados realizados por eles.24 Como exposto anteriormente, os estereótipos de gênero são desvantajosos para as mulheres, na medida em que exageram e reforçam comportamentos depreciativos relativos à feminilidade, e celebram características tidas como masculinas. Estas desigualdades refletem-se, inclusive, nos papéis e funções desempenhados por homens e mulheres na sociedade. Mulheres cuidam dos filhos e da casa e os homens adquirem uma profissão. Como consequência, a falta de responsabilidade paterna na criação dos filhos e nos cuidados da casa, combinada à falta de creches e à dificuldade de concluir os estudos, reduz as possibilidades de inserção laboral de mulheres. Estas acabam trabalhando em atividades informais, sem garantias de proteção social ou de estabilidade no trabalho. Desse modo, para dar conta dos cuidados da família e do lar, as mulheres se veem impedidas de investir em sua formação ou de trabalhar fora de casa, o que reforça a desigualdade. Neste contexto, a pobreza e a violência contra mulheres estão relacionadas e se reforçam mutuamente. Enquanto a violência contra a mulher afeta a sua capacidade produtiva e social, a pobreza gera dependência econômica e a dificuldade de sair de relacionamentos violentos. Percebe-se que as diferenças de gênero, entre o que é esperado da mulher e do homem, geram discriminação e preconceito em relação às mulheres, sendo tratadas de forma diferente, negativa e limitante. Por isso, os movimentos de mulheres lutam pela igualdade de gênero, para que ambos desfrutem do mesmo status e compartilhem as 22 "LA TRAMPA DEL GÉNERO. MUJERES ,VIOLENCIA Y POBREZA." (tradução livre: A Armadilha do Gênero. Mulheres, Violência e Pobreza). ANISTIA INTERNACIONAL. Disponível em: https://tinyurl.com/3revn64r. 23 "EL PROGRESO DE LAS MUJERES EN EL MUNDO 2015-2016" (tradução livre: O Progresso das Mulheres no Mundo 2015-2016). ONU MULHERES, 2015, página 11. Disponível em: https://tinyurl.com/3r7d2j97. 24 Ibid. https://tinyurl.com/3revn64r https://tinyurl.com/3r7d2j97 39 Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas: Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência mesmas oportunidades, direitos e liberdade de explorar seu potencial individual. A esse movimento
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