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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO DE JANEIRO – IFRJ CAMPUS ENGENHEIRO PAULO DE FRONTIN COORDENAÇÃO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA Tiago José Lemos Monteiro PRODUÇÃO AUDIOVISUAL INSÓLITA DE BORDAS: PROPOSTA DE CURSO DE EXTENSÃO Engenheiro Paulo de Frontin – RJ 2020 Tiago José Lemos Monteiro PRODUÇÃO AUDIOVISUAL INSÓLITA DE BORDAS: PROPOSTA DE CURSO DE EXTENSÃO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Especialização em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), como requisito para a obtenção do título de Especialista. Orientador: Prof. Dr. Jupter Martins de Abreu Jr. Engenheiro Paulo de Frontin – RJ 2020 2 PRODUÇÃO AUDIOVISUAL INSÓLITA DE BORDAS: PROPOSTA DE CURSO DE EXTENSÃO TIAGO JOSÉ LEMOS MONTEIRO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação lato sensu em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do certificado de Especialista. Examinado por: ______________________________________________ Prof. Dr. Jupter Martins de Abreu Jr. Instituto Federal do Rio de Janeiro Orientador ______________________________________________ Profª. Drª. Sabrina Araújo de Almeida Instituto Federal do Rio de Janeiro Membro Interno ______________________________________________ Profª. Drª. Ângela Maria da Costa e Silva Coutinho Instituto Federal do Rio de Janeiro Membro Externo 3 Para a Maisa, minha esposa, que a cada dia me faz acreditar que é possível ser feliz. Para a Olívia, minha filha e meu sentimento de eternidade possível. Para o irmãozinho ou irmãzinha-estrela da Olívia, que certamente esteve do meu lado durante todo o processo de escrita deste trabalho. 4 AGRADECIMENTOS O contexto político, econômico, sociocultural e até de saúde pública durante o qual este curso de Especialização transcorreu decerto não foi dos mais harmônicos, tanto em nível local quanto global, tanto em âmbito coletivo quanto existencial. Urge, portanto, agradecer a todos e todas que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este trabalho e seu autor pudessem sobreviver ao percurso e chegar até aqui. Presto reverência ao meu orientador, Prof. Jupter, pela disponibilidade em aceitar a supervisão de um trabalho cujo desenvolvimento certamente pedia mais tempo, mais trocas e uma maior dedicação da minha parte. À professora Angela Coutinho, avaliadora externa ao curso, agradeço pela participação em mais uma banca da minha vida, passados exatos dez anos do processo seletivo que resultou na minha admissão como docente no Instituto Federal do Rio de Janeiro. À professora Sabrina Almeida, avaliadora interna, meu muito obrigado pelos insights que a disciplina de Projeto de Ação Docente proporcionou: o embrião deste trabalho começou seu processo gestacional neste curso. À colega de curso e de Instituto Federal (além de minha Coordenadora na Especialização em Liguagens Artísticas, Cultura e Educação!), prof. Fernanda Delvalhas Piccolo, faço um brinde (virtual) em celebração a todas as boas risadas nervosas que foi possível dar no decurso de um processo de pesquisa e escrita bastante turbulento. Saúdo, ainda, o Coordenador do Curso de Especialização em DOCEPT, prof. Ricardo Kneipp, e o prof. Lindinei Rocha que, por ocasião da apresentação da Proposta de MVP no final do primeiro semestre, me estimularam a dar seguimento à ideia que culminou neste trabalho. Ao corpo docente do Curso, agradeço pela compreensão demonstrada ante os meus silêncios e ausências. Por último, mas não menos importante, agradeço a todos os filmes que me alimentaram até aqui, e a todos os realizadores e realizadoras que os sonharam. 5 Roll the credits, Johnny You up there in the projection booth Dream-time is over now Time to put our shoes on and hit the street But wasn't it beautiful? Didn't we forget About the sad times for a while? The good guys won The bad guys tasted bitterness and defeat We kissed the leading ladies Felt the warmth of their deep caress Drank with kings and prophets We rode rocket ships to the stars But it's dark now on the streets of life Christ, I think I lost my pocket knife in there Goddammit, Johnny, I can't even remember Where in hell we parked the car? But singin' keeps the fear away And whistlin' keeps the wolves at bay Remember'n all we might have been All the love that could have been Let's storm the old ramparts Let's sing those love songs From old movies in our heart “Roll the credits, Johnny” (Tom Russell) 6 RESUMO MONTEIRO, Tiago José Lemos Monteiro. Produção audiovisual insólita de bordas: proposta de curso de extensão. 86f. Orientador: Jupter Martins de Abreu Jr.. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica), Instituto Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020. A ampliação do acesso às tecnologias de captação e edição de imagem e som vem permitindo que novas formas de agência criativa no âmbito do audiovisual assumam um protagonismo cada vez maior, reivindicando seu direito ao discurso fílmico e à representação de suas subjetividades não mais a partir de um olhar externo. O termo “Cinema de Bordas”, cuja formulação ainda pode ser considerada bastante recente, configura uma tentativa de conferir visibilidade a essa produção, viabilizada pelo barateamento dos equipamentos audiovisuais, radicada em contextos periféricos, empreendida por realizadores sem formação especializada e, quase sempre, a partir de um diálogo estrito com as matrizes narrativas do cinema mainstream de gênero, sobretudo em suas vertentes menos legitimadas (como o filme de artes marciais, o horror, a ficção- científica, dentre outros). Parte substancial desta produção, por sua vez, pode ser apreendida a partir da ideia de Insólito Ficcional, conceito de amplo espectro que abrange diversas modulações cuja afinidade se dá por um afastamento das narrativas de matriz realista. Este trabalho, integrado à linha de pesquisa “Práticas de Educação e Diversidade” do curso de Especializaçao em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica, é movido por um impulso de verificação da aplicabilidade deste “imaginário insólito de bordas” em contextos de ensino-aprendizagem, por meio da proposta de um Curso de Extensão cujo público-alvo seriam discentes das variadas Licenciaturas oferecidas pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, onde atuo há pouco mais de dez anos. Espera-se, assim, como resultado do curso, a produção de narrativas audiovisuais de curtíssima ou curta-metragem que “enquadrem” a prática docente ou os dilemas da inserção profissional sob o viés do insólito, e a partir dos recursos técnicos à disposição da turma (como telefones celulares ou softwares gratuitos de edição), de acordo com uma lógica do possível. Palavras-chave: Audiovisual de Bordas; Insólito Ficcional; Curso de Extensão. 7 ABSTRACT MONTEIRO, Tiago José Lemos. Making fringe films through the lenses of the “insolito”: proposal for an extension course. 86f. Advisor: Jupter Martins de Abreu Jr. Final Paper for the Specialization Course in Teaching for Professional and Technological Education), Instituto Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020. The growing availability of new technologies of image and sound recording and editing had increased the number of creative agents which, until now, were put apart of more traditional methods of film production, such as the industrial model epitomized by Hollywood. The rise of thesenew sensibilities in filmmaking favoured the emergence of discourses which, by one side, recognize the affective influence of genre mainstream cinema but, on the other hand, construct themselves according to very low budget production schemes. The concept of "Fringe Cinema" was recently developed in Brazil to create a theoretical framework able to research and validate these kind of films, and their peculiar modes of appropriation of genre codes, mainly those which dwelve into themes and plots less concerned with realism. Both Spanish and Portuguese languages have a word to define this escape attempt from realism in the fictional realm: "insolito", a broad concept which comprises horror, science fiction, fantasy, the weird, the uncanny, among others. This work aims to develop a proposal of an experimental extension course in which both concepts - fringe cinema and the "insolito" - would serve as procedural and stylistic templates to the production of short-lenght films. Being it the final paper of an Specialization in Teaching for Professional and Technological Education, my intention is to reach an audience of soon-to-be licensees (a graduation course which capacitates the students to act as teachers in elemental school). Furthermore, the relation between this work and the research axis named "Teaching practices and diversity" is justified by the fact that Fringe Cinema opens several possibilities in terms of first-person approaches about identity and representation, while the "insolito" mindframe favours the exploration of social, racial and gender issues through unrealistic and, sometimes, more bearable perspectives. Keywords: Fringe Cinema; “Insolito”; Extension Course. 8 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ……………………………………….. 09 1. SALA DE CINEMA, SALA DE AULA: DAS INTERFACES ENTRE O AUDIOVISUAL E A EDUCAÇÃO ……………………….. 15 1.1 Três dimensões de uma relação antiga ……………………………. 15 1.2 O audiovisual no limbo dos processos de ensino-aprendizagem ... 20 1.3 O Curso de Extensão: público-alvo, cronograma geral de encontos e conteúdo programático ………………………………………………. 23 2. CELULAR NA MAO, IDEIA NA CABEÇA E O CINEMA NO CORAÇÃO: O IMAGINÁRIO AUDIOVISUAL DE BORDAS …….. 26 2.1 Breves apontamentos sobre a transformação do cinema em indústria …………………………………………………………………. 26 2.2 Cinema independente, undergrond, marginal, livre ou de guerrilha? Genealogia dos conceitos em disputa ……………………... 29 2.3 O Cinema de Bordas e suas fronteiras ……………………………. 32 2.4 “A borda não é trash! Ou é?” Relato de uma experiência ……….. 35 2.5 Uma provocação: audiovisual de bordas como (des)metodologia de produção ……………………………………………………………... 37 3. “É UM MUNDO ESTRANHO...”: DA OPÇÃO PELA NARRATIVA INSÓLITA ……………………………………………….. 41 3.1 Gêneros narrativos e a hegemonia da matriz narrativa realista …. 41 3.2. O “desvio” insólito ………………………………………………….. 44 3.3. Do conceito à ação: a escrita do Roteiro …………………………... 47 4. “FAÇA SEUS PRÓPRIOS FILMES!”: DA PRODUÇÃO À FINALIZAÇÃO …………………………………………………………. 54 4. 1 A Produção, de quem depende o sucesso (ou o fracasso) do filme .. 56 4.2 A Direção, que escreve com imagens ……………………………….. 58 4.3 A Fotografia, que pinta com a luz ………………………………….. 61 4.4 A Arte, que constrói a atmosfera …………………………………… 64 4.5 O Som, esse renegado ……………………………………………….. 66 4.6 A Edição, que junta os pedaços (e dá sentido ao todo) ……………. 70 4.7 Da centralidade de um Encontro de Culminância ………………... 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS ……….................................................... 76 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 81 ANEXO I – CRONOGRAMA DOS ENCONTROS DO CURSO DE EXTENSÃO ……………………………………………………………... 86 9 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Esta proposta possui um caráter experimental, e nasce da confluência entre três vetores que atravessam minha trajetória profissional e acadêmica: a formação em Comunicação Social nos níveis de Graduação, Mestrado e Doutorado, onde as discussões sobre as dinâmicas de legitimação cultural e atribuição de valor artístico sempre me encantaram; a atuação, desde 2010, como professor do curso de Bacharelado em Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus Nilópolis, onde também sou responsável pelo híbrido de laboratório e grupo de pesquisa intitulado Núcleo de Criação Audiovisual (NUCA); e, por último, mas não menos importante, minha imersão no universo das discussões sobre os conceitos de Cinema de Bordas e Insólito Artístico, que estiveram presentes na investigação que desenvolvi em estágio pós-doutoral junto à Universidade Anhembi Morumbi (SP), entre 2016 e 2017. Embora ainda esteja bastante restrito ao campo da Comunicação e dos Media and Film Studies, o conceito de Cinema de Bordas parece ser de extrema valia também em contextos de ensino e aprendizagem, conforme minha vivência no curso de Produção Cultural, em certa medida, atesta. Formulado como uma alternativa a termos mais consagrados no âmbito destas mesmas áreas do conhecimento (tais como “Cinema independente”, “Cinema Experimental”, “Cinema de Guerrilha”, “Cinema Marginal”, dentre outros), o conceito de Cinema de Bordas vem ao encontro da necessidade de se criar um instrumental teórico para o mapeamento e a análise de um tipo muito particular de produção audiovisual1 contemporânea, viabilizado justamente pelo advento das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação; capitaneado por atores sociais autodidatas, 1 Neste trabalho, o termo “audiovisual” será, preferencialmente, utilizado quando em referência a modalidades, formatos e manifestações artísticas que operem a partir das seguintes dimensões: (1) a captura da imagem em movimento pela mediação de uma câmera ou dispositivo análogo e (2) sua articulação a uma dimensão sonora. De acordo com essa concepção, o cinema seria apenas uma (muito embora, inegavelmente, a primeira) dentre as múltiplas possibilidades de exploração dos recursos e das linguagens audiovisuais, que também abrangeriam as artes, narrativas e tecnologias do vídeo (analógico ou digital), bem como eventuais apropriações híbridas entre linguagens (por exemplo, o uso da projeção de vídeo no contexto de um espetáculo de artes cênicas). A palavra “cinema”, portanto, aparecerá neste trabalho quando em referência à experiência da sala de cinema ou à produção de textos audiovisuais no formato da película de filme ou, ainda, quando o conceito que dela se utilizar assim o exigir (por exemplo, na expressão “cinema de guerrilha”, que sob um viés puramente técnico, poderia se chamar “audiovisual de guerrilha”). No fundo, é a uma disputa em torno da ideia de cinema que a alternância entre as palavras corresponde, e como este trabalho está longe de ter por objetivo esgotar a discussão, também os termos “cinema” e “audiovisual” poderão aparecer de maneira intercambiável no decorrer deste material. 10 sem formação acadêmica ou técnica na área; e cujo pólo irradiador tendem a ser territórios periféricos (LYRA; SANTANA, 2006). Diferentemente, contudo, de termos mais consagrados como Cinema de Guerrilha, que denota um caráter oposicional e de confronto mais explícito em relação ao cinema mainstream; Cinema Experimental, que pressupõe uma desobrigação ante os códigos do cinena narrativo; Cinema Marginal, que costuma ser empregado quando em referência a um momento particular da história do Cinema Brasileiro; e Cinema Independente, que não raro é feito sob a tutela dos grandes estúdios de Hollywood, o Cinema de Bordas se caracteriza, precisamente, por uma relação de proximidade estética e estilística com a narrativa clássica mainstream e os inúmeros gêneros nos quais ela se desdobrou ao longo do século XX. Impossível dissociar certos enquadramentos aosquais este trabalho está submetido da minha experiência empírica e subjetiva com a docência, sobre a qual a única forma possível de discorrer com honestidade me parece ser mediante o relato em primeira pessoa. Para as minhas turmas de Fundamentos das Artes Audiovisuais, tenho por hábito propor uma atividade (cuja proposta, na verdade, foi devidamente “roubada” da professora Liv Sovik, com quem tive aulas no Mestrado) chamada de “reações”: a reação consiste na construção de um texto livre a partir das ressonâncias afetivas despertadas por uma dada situação de consumo audiovisual, sem que o discente precise se preocupar com o resumo da trama ou com a enumeração de aspectos técnicos, e indo além do simples “gostei/não gostei”. Certa feita, diante da proposta de atividade, uma aluna levantou a mão, de maneira muito tímida, e perguntou se estaria autorizada a escrever sobre a franquia de ação automobilística Velozes e furiosos, pois embora ela gostasse muito de carros e dos filmes da série, achava que aquele tipo de objeto não cabia no espaço da universidade. A partir do exposto, podemos inferir a existência de um gap entre aquilo que constitui os repertórios artísticos e culturais de docentes e discentes, e as obras que habitam os corpora de referência utilizados, debatidos e analisados no espaço da sala de aula. Não raro, os currículos são elaborados consoante uma obediência inflexível e quase submissa aos cânones, sem que haja o intuito de questioná-los ou desconstruí-los. Quando passamos da teoria à prática, por sua vez, o que se verifica é uma tentativa, muitas vezes, forçada de adequação entre a sensibilidade artística dos discentes e estes modelos legitimados, 11 resultando em textos audiovisuais nos quais se enxerga os componentes curriculares da disciplina, mas não o aluno por detrás da câmera. A exemplo do Cinema de Bordas, o insólito artístico também é um conceito relativamente recente, oriundo dos Estudos Literários e cujas manifestações têm se revelado cada vez mais expressivas no decurso das últimas décadas. Seus vestígios podem ser encontrados em produtos comunicacionais e linguagens artísticas diversas, como no âmbito das artes cênicas (teatro, dança); audiovisuais (cinema, televisão, vídeo, jogos eletrônicos); visuais (pintura, escultura); bem como em outras vertentes do campo cultural, como os quadrinhos, a performance e as artes multimidiáticas. Com a habilidade de articular questões de ordem política, social, tecnológica, filosófica e estética mediante a subversão das matrizes narrativas de viés realista, o Insólito pode ser apreendido como um conceito de amplo espectro que abrange diversas nuances, como o estranho/inquietante, o maravilhoso, o horrífico, o grotesco, o realismo mágico, o fantasismo e a ficção-científica/ especulativa, dentre outros (MATANGRANO; TAVARES, 2018). Nos últimos 10 anos, percebe-se um acréscimo significativo no número e na frequência de eventos dedicados ao insólito artístico, que tendem a ser multifacetados em suas características (mostras, cineclubes, festivais e convenções, mas também congressos, seminários e simpósios) e endereçamentos, como é o caso dos festivais Fantaspoa e Cine Fantasy, e de eventos acadêmicos, como o InsolitoCom e o Seminário de Estudos do Gótico, entre outros. Tais cenários parecem se configurar por efeito da visibilidade midiática, ao mesmo tempo causa e consequência da expressividade mercadológica que algumas vertentes do insólito vêm obtendo em seus respectivos contextos. Uma rápida pesquisa online2 em torno da expressão Cinema de Bordas, por sua vez, nos revelará que parte substancial da produção dos “bordistas” orbita em torno do imaginário de alguns gêneros, como o faroeste, o filme de ação e aquilo que nomeio de “modulações do insólito artístico”, como o horror/terror, a ficção-científica e o fantasismo. Tais vertentes, por sua vez, também se mostram muito populares junto ao público jovem, 2 Ao digitar a expressão “cinema de bordas” no YouTube, desconsiderando as ocorrências correspondentes a documentários e entrevistas, e retendo apenas as que se referem a produtos ficcionais, tem-se como principais resultados os curtas “A valise foi trocada” e “Vagabundo faixa preta”, de Simião Martiniano; “O homem sem lei”, de Manoel Loreno (popularmente conhecido como Seu Manoelzinho), “Necrochorume”, de Geisla Fernandes, e “Carniçal” (sem autoria identificada), dentre outros nos quais, já a partir dos títulos, é possível inferir conexões com os gêneros supracitados. 12 conforme atestam algumas sondagens sobre os hábitos de consumo cultural dos cariocas3 (HÁBITOS, 2013, p. 48). Ainda assim, ou talvez justamente como efeito de tais processos, em alguns circuitos mais ortodoxos da crítica e da academia podemos perceber a continuidade de um sentimento de desconfiança acerca da relevância de tais discussões, como se o caráter assumidamente industrial e de mercado de inúmeras manifestações do Insólito nas mídias (patente, por exemplo, na tendência à serialidade extrema levada a cabo por muitas narrativas de horror), o descolamento da matriz realista (entendido por seus detratores como sinônimo de entretenimento escapista e, portanto, apolítico) ou mesmo o apelo inegável de tais artefatos junto ao público infanto-juvenil ou adolescente funcionasse, a priori, como um atestado de inocuidade dos mesmos, em uma espécie de reprodução acrítica e anacrônica da velha dicotomia entre arte e mercado. Na minha prática docente e, sobretudo, no contexto das disciplinas direcionadas para a área do Audiovisual, busco, sempre que possível, trazer “objetos insólitos” para as discussões em sala de aula, o que costuma ser recebido com surpresa por parte expressiva da(s) turma(s) – talvez por efeito da supracitada lógica de construção de cânones de que somos reféns, e segundo a qual determinados filmes seriam mais “dignos” de frequentarem o espaço acadêmico do que outros. Um exemplo de tal procedimento seria utilizar o longa- metragem híbrido de ação e ficção-científica Eles vivem (1988), do realizador estadunidense John Carpenter, como ponto de partida para um debate sobre os conceitos de Indústria Cultural, massificação dos gostos e alienaçao das audiências formulados por Theodor Adorno e Max Horkheimer no clássico texto A industria cultural, de 1944. Em outras palavras, da mesma forma que o cinema fora do mainstream (e que, no discurso corrente, receberá alcunhas valorativas como “cinema de arte”, “cinema de autor” ou “cult”) não necessariamente vai sempre se opor aos valores dominantes ou ao status quo, também o cinema produzido consoante lógicas industriais ou endereçamentos de mercado não será inexoravelmente sinônimo de conformismo e alienação das audiências. O mais provável, segundo Kellner (2001), é que um mesmo artefato cultural midiático seja 3 O gênero “terror/suspense de terror” figura como o quarto em termos de preferência no contexto da supracitada pesquisa, sendo sua maior aderência entre os espectadores nas faixas entre 12 a 15 anos, e 16 a 24 anos. Se considerarmos que o Insólito Artístico também abrange gêneros como a ficção-científica, ou pode se fazer presente em títulos percebidos como sendo de “ação/aventura” (o primeiro da lista de preferências), como é o caso das tramas envolvendo super-heróis, a capilaridade do conceito se torna ainda mais expressiva. 13 atravessado por dimensões ambivalentes de consenso e de conflito, no mais das vezes oscilando de forma (des)equilibrada no interior da própria obra. Muito se discute sobre como a ampliação do acesso às Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (e, dentre elas, às ferramentas de captação e edição de imagem e som) vem impactando a prática docente, transcendendo seu uso meramente ilustrativo oucomo simples material de apoio à transmissão unilateral de determinado conteúdo em sala de aula (AMARAL & BARROS, FORESTI & TEIXEIRA, 2012; SCHELLER, VIALI & LAHM, 2014). Mesmo o caso citado no parágrafo anterior configuraria, em certa medida, uma aplicação algo “tradicionalista” da linguagem audiovisual como recurso didático, na medida em que limita a agência do corpo discente à sua condição de espectador (e eventual debatedor) do título exibido – título este que, por sua vez, havia sido previamente selecionado pelo professor, a partir de critérios eventualmente subjetivos ou da ordem do gosto pessoal nem sempre explicitados à turma. Em função do exposto, cada vez mais se preconiza a adoção de metodologias ativas no que diz respeito ao uso das tecnologias como estratégias didáticas (BERNINI, 2017). Nesse sentido, falar de “audiovisual na sala de aula” seria, também e sobretudo, pensar nas possbilidades de aprorpriação cri-ativa e experimental das ferramentas de captação e edição de imagem e som por parte dos alunos, com vistas à produção de conteúdos relacionados não só às ementas das disciplinas em curso, mas também às vivências e perspectivas do alunado acerca das realidades que os cercam – e é precisamente aí, como uma espécie de (des)metodologia de produção, que o Imaginário de Bordas aparece como uma tática possível de engajamento dos discentes em práticas de criação audiovisual. As páginas que se seguem consolidam a discussão conceitual que subsidia este trabalho na proposta de um Curso de Extensão de Produção Audiovisual, de viés teórico- prático e utilizando a perspectiva “(des)metodológica” do Cinema de Bordas, ou seja, valorizando o letramento audiovisual adquirido pelos participantes em sua condição de espectadores ou entusiastas de determinado(s) gênero(s), e os recursos técnicos e tecnológicos à sua disposição (por mais precários ou aparentemente limitados que sejam). A discussão conceitual sobre o Insólito Artístico, por sua vez, fornecerá o recorte específico para a construção dos projetos práticos que os participantes desenvolverão – 14 individualmente, em grupos ou, se assim ficar decidido, pelo coletivo da turma – a título de culminância do Curso. De modo a não apenas otimizar os recursos técnicos e tecnológicos disponíveis, como também utilizar, a favor da proposta, a provável falta de experiência dos participantes na construção de narrativas audiovisuais, o ideal é que a duração dos vídeos orbite entre 1 e 5 minutos. A princípio, pode parecer pouco tempo para se contar uma história com princípio, meio e fim, mas iniciativas longevas como a do Festival do Minuto, bem como alguns exemplos de filmes de curtíssima-metragem de matriz insólita, como Tuck me in (Ignacio Rodó, 2014)4, ou Lights out (David F. Sandberg, 2013) demonstram que a concisão do formato não é um impedimento para a criatividade. Constituem recursos infraestruturais, técnicos e tecnológicos essenciais para a realização do Curso: uma sala de aula com capacidade para um número máximo de 30 pessoas; data-show, caixas de som e computador com acesso à internet, para exibição de conteúdos audiovisuais pertinentes ao tema do encontro; espaço de armazenamento on line para disponibilização de materiais e posterior partilha dos produtos finais. Faz parte da “metodologia” do Cinema de Bordas que os curtas e curtíssimas-metragens sejam gravados e editados com os recursos que estejam à disposição dos “bordistas” (telefones celulares, webcam, aplicativos gratuitos de edição), por mais precários ou aparentemente insuficientes que sejam, na medida em que o maior esforço residiria na adequação entre a proposta e os recursos disponíveis, ou na busca por soluções criativas para minimizar estes descompassos. A intenção é que nenhuma ideia seja, a priori, descartada, por soar excessivamente elaborada ou exigir recursos complexos, visto que a problematização das noções de valor artístico ou qualidade estética, que perpassa inúmeros debates sobre a construção de cânones, seria precisamente um dos objetivos do Curso. 4 Um breve adendo sobre menções a obras audiovisuais: no caso de a obra em questão ter sido lançada comercialmente no Brasil, em qualquer que tenha sido o formato (sala de cinema, DVD, vídeo on demand, plataformas de streaming como Netflix, Amazon Prime, etc), será dada preferência à versão traduzida do título; o título original só será utilizado caso a obra seja inédita comercialmente no país. A quase totalidade dos títulos que aparecem neste trabalho configuram apenas e tão somente menções, não tendo sido o objeto de revisão recente com o intuito de serem incorporados ao corpus de referências do mesmo, razão pela qual não sigo o padrão da ABNT para referências a obras audiovisuais, antes optando pela convenção que vai considerar TÍTULO, DIRETOR e ANO DE PRODUÇÃO como essenciais para a identificação da obra. 15 1. SALA DE CINEMA, SALA DE AULA: DAS INTERFACES ENTRE O AUDIOVISUAL E A EDUCAÇÃO 1.1 Três dimensões de uma relação antiga As relações entre o audiovisual e a educação são diversas e multifacetadas, assumindo contornos particulares consoante o período histórico em pauta, as infraestruturas tecnológicas disponíveis e as perspesctivas sobre ensino e aprendizagem em vigor (BULLA et al., 2018; FRESQUET, 2010; MIGLIORIN, 2015). Uma primeira dimensão dessa relação, e que parece válida de ser mencionada, é a das obras audiovisuais, sejam elas pertencentes ao escopo da ficção ou do documentário, cujas narrativas se passam em contextos educacionais: é a “sala de aula no cinema”. Parte substancial da trama desses filmes gira em torno dos conflitos decorrentes da interação docente-discente, ou dos embates entre docentes e as esferas administrativas que gerenciam o espaço escolar, conforme atestam títulos que, no âmbito ficção, vão do clássico Ao mestre com carinho (James Clavell, 1967) aos mais recentes Meu mestre minha vida (John G. Avildsen, 1989), Mudança de Hábito 2 (Bill Duke, 1993), Mentes perigosas (John N. Smith, 1995), Escritores da liberdade (Richard La Gravenese, 2007) e Entre os muros da escola (Laurent Cantet, 2008), dentre muitos – muitos! – outros; já no campo do documentários, onde a oferta é decerto menos farta, destacam-se os longas- metragens Ser e ter (Nicolas Philibert, 2002) e Pro dia nascer feliz (João Jardim, 2005). Nesse filão audiovisual, o docente protagonista costuma ser um recém-chegado em um território atravessado por múltiplas tensões (sociais, raciais ou econômicas), as quais ele tenta resolver mediante a implementação de projetos que, ao longo da trama, sofrerão os mais diversos revezes, seja pela resistência dos alunos (cada um vivenciando seu próprio calvário de conflitos), seja pela falta de vontade política dos diretores e gestores da escola. A partir dessa premissa, o filme pode enveredar pelos códigos do drama social, da comédia ou mesmo do musical (e a música tende a desempenhar um papel central nestes títulos, mormente apresentada como “tábua de salvação” ante o apelo do crime organizado ou das drogas). 16 O documentário, por sua vez, se apropria destas questões sob um outro viés, que pode ser mais observacional, quando a câmera adentra o espaço escolar sem produzir muitas interferências no mundo representado; interativo, quando o foco está nas trocas entre a equipe de documentaristas e o corpo docente/discente; ou expositivo, quando, mediante entrevistas com especialistas e abundância de dados, buscar-se-á a obtenção de algum diagnóstico sobre o “problema” narrado (NICHOLLS, 2005). Muitos destes títulos se prestarão a um uso – quase metalinguístico – no âmbito da segunda dimensão das relações entre audiovisual e educação,que seria a do “cinema na sala de aula”. Esta modalidade é historicamente tão antiga quanto a disponibilidade tecnológica de equipamentos de exibição audiovisual em contextos escolares e se subdivide, grosso modo, em três aplicações possíveis: A) o audiovisual como “tapa-buraco”: esta talvez seja a modalidade mais deslegitimada dessas relações, e seu uso indiscriminado ao longo do tempo é um dos responsáveis por um certo estigma que a presença das linguagens artísticas em contextos educacionais, por vezes, possui. Todo mundo decerto já vivenciou um episódio desta natureza: por alguma razão, o professor falta, e sua ausência é compensada pela exibição – não raro, aleatória – de um filme. Certa feita, na escola onde cursei meu ensino fundamental, o não-comparecimento de um docente foi substituído por uma sessão, no auditório, do longa de fantasia Willow na Terra da Magia (Ron Howard, 1989), que eu – admito – nunca entendi muito bem como se tornou disponível para exibição de forma tão rápida no acervo da escola. À parte um certo caráter anedótico da história, tais procedimentos reforçam a percepção do senso comum de que a arte, em todas as suas manifestações, não possui outra finalidade a não ser funcionar como um passatempo inócuo a ser desfrutado quando coisas mais importantes não podem ser feitas. B) o audiovisual como ilustração ou complemento de conteúdo curricular: embora menos estigmatizada do que a primeira, esta modalidade também enseja algumas controvérsias, pois se naquela o cinema é passatempo, nesta ele é autoridade, com a exibição de filmes atuando como forma de aprofundamento ou expansão da “matéria dada” e servindo de validação ao conteúdo transmitido. Aqui, o vilão da vez acaba sendo o documentário, sobretudo em suas manifestações mais expositivas e didáticas – o célebre “padrão Discovery”, com sua incontornável voice over, reconstruções ficcionais canhestras e especialistas devidamente identificados legitimando o discurso do filme. Compreensível, 17 portanto, que diante de tamanha superexposição ao formato, o público jovem em geral demonstre tanta resistência ao documentário, ou mesmo se surpreenda quando descobre a existência de outras possibilidades narrativas para além das mais clichês (razão pela qual um curta-metragem como Ilha das flores, de Jorge Furtado, talvez fique impregnado de forma tão intensa em nossa memória dos tempos de escola...). C) o audiovisual como reforço dos cânones: a terceira e última modalidade é, também, a mais sutil, posto que sua desconstrução depende, antes de mais nada, da compreensão do conceito de cânone artístico e do papel que a escola, muitas vezes, desempenha, no sentido de endossá-lo acriticamente. Todo campo possui o seu corpus de obras consagradas, a partir das quais sua própria história ou as discussões sobre sua linguagem se constroem. Tais cânones, por sua vez, não são fruto de geração espontânea e nem o resultado de qualquer coisa próxima da imanência kantiana, muito embora tenham a pretensão de se passarem por a-históricos e neutros, tendo por objetivo último sua naturalização como referência inconteste. Em última instância, o que se tem é um círculo vicioso: somos obrigados a ler determinado livro na escola porque o conteúdo será cobrado no vestibular; o conteúdo será cobrado no vestibular porque o livro em questão se trata de uma obra de referência; ser uma obra de referência faz com que a leitura desse livro continue sendo obrigatória na escola, e assim por diante. Se nossa relação com a literatura no ambiente escolar já se dá a partir desses parâmetros, quando o audiovisual entra na história, uma nova lógica de cânone se aplica, agora no âmbito de outra linguagem. Um exemplo hipotético: turma do Segundo Ano do Ensino Médio estuda a ficção gótica de Edgar Allan Poe, a propósito de um tópico sobre Literatura Romântica Decadentista do Século XIX. O docente responsável pela disciplina decide, então, complementar a leitura de um conto de Poe – A queda da casa de Usher – com sua respectiva adaptação para o cinema, ficando diante de três opções de longa- metragem: a versão homônima de 1928 dirigida por Jean Epstein, um exercício de linguagem inspirado pela vanguarda surrealista; a releitura feita em 1960 por Roger Corman, nome de referência no âmbito do cinema de gênero “classe B”, e aqui no Brasil rebatizada como O solar maldito; e, por fim, o inusitado Revenge in the house of Usher, de 1982, dirigido pelo prolífico realizador espanhol Jesús Franco, vinculado ao contexto do cinema de exploração erótico europeu dos anos 1970 (PIEDADE, 2002). 18 A versão de Epstein é a mais canônica das três, e o fato de estabelecer um diálogo estilístico estreito com as vanguardas do entreguerras reforça seu estatuto de objeto de arte. O segundo e o terceiro títulos inserem-se em uma lógica de mercado explícita, com o longa de Corman enfatizando, em tecnicolor, os elementos horríficos presentes no conto de forma apenas velada; e a adaptação de Franco, comprometida por um orçamento baixíssimo, mantendo uma não mais do que tênue correspondência com o texto-base de Poe, e carregando nas tintas da violência e do erotismo, conforme preconizava a cartilha do euroexploitation. Muito embora não haja uma resposta certa para o dilema deste docente fictício, defendo a hipótese de que a opção pelo primeiro título seria a mais convencional das três, no sentido de reforçar a lógica do cânone e da high art pelas vias da espectação de uma obra cifrada e de difícil fruição, com a qual os discentes – é uma aposta – provavelmente terão imensa dificuldade em se conectar, por se tratar de um longa em preto e branco, silencioso e de viés experimental. O segundo título constitui uma opção intermediária em termos didáticos, pois é relativamente próxima ao conto em termos de conteúdo e ambientação (servindo bem a práticas de close reading e à aplicação de metodologia comparativas) e visualmente atrativa, mesmo não sendo particularmente recente; por outro lado, envolve todo um estilo de encenação e atuação que decerto causará estranhamento ou riso na audiência, o que também pode ser um ponto de discussão interessante – a depender do interesse do docente em explorá-lo. Por fim, o Usher de Jesús Franco é o mais desafiante em termos de abordagem na sala de aula, pois nele absolutamente tudo parece fora de lugar e, no extremo, obedecer a uma lógica muito pouco narrativa; em contrapartida, se, dos três títulos, este é o menos próximo do conto de Poe em termos de ambiência e conteúdo, ele talvez seja o mais “fiel” na construção de uma atmosfera de delírio, a partir de elementos eminentemente audiovisuais (uso de lentes que distorcem a perspectiva, iluminação expressionista, movimentos de câmera erráticos). Pouco importa, em última instância, que seja um filme passível de ser considerado ruim a partir dos critérios técnicos que sustentam o cânone: sua riqueza reside precisamente em sua imperfeição. Em seu artigo “Esper, the renunciator: teaching ‘bad’ movies for good students” (2003), o teórico e pesquisador estadunidense Jeffrey Sconce fará a defesa apaixonada daquilo que poderíamos traduzir como “pedagogia do paracinema”. Para o autor, ele 19 mesmo um longevo investigador das práticas de consumo audiovisual pautadas por critérios estéticos e de valor diametralmente opostos ao que será defendido pelo cânone e pelo “bom gosto” (as quais ele nomeará de “paracinefilias”), os cursos de cinema e vídeo se equivocam ao pautar a aprendizagem dos alunos pelos filmes considerados bem sucedidos ou “de qualidade”. Um bom plano, segundo Sconce, é um bom plano, e ao aprendiznão restará outra alternativa a não ser tentar emulá-lo ou reproduzi-lo. Já um enquadramento mal ajambrado, uma direção de arte claudicante, uma cena que parece iluminada por menos refletores do que deveria ou uma atuação histriônica produziriam, no alunado, a busca incessante pelo fazer diferente, por soluções narrativas que, de fato, funcionassem; em suma, suscitariam um posicionamento muito mais cri-ativo por parte do discente. A soma destes questionamentos me conduz, por fim, à terceira dimensão das relações entre audiovisual e educação, que é a do “cinema em sala de aula como práxis” (LIMA, 2020; MIGLIORIN, 2015). Mais do que pensar o filme como um texto fechado em si mesmo, passível de ser usado como entretenimento, tratado como autoridade ou estar a serviço dos cânones, a práxis audiovisual se coloca como um convite à experimentação, à exploração da linguagem, à tomada dos recursos de produção audiovisual a favor da expressão das subjetividades e visões de mundo da turma e seus componentes. Para que a práxis audiovisual em sala de aula possua condições de florescer, contudo, é fundamental que se construa uma reflexão crítica em torno das seguintes premissas: - a lógica industrial não é o único pardigma de produção existente: a aceitação incondicional deste discurso reforça a ideia perniciosa de que “fazer cinema é para poucos”. - recursos tecnológicos de última geração não são pré-requisito para se contar uma história por meio de imagens e sons: às vezes, eles apenas significam que determinada produção possui orçamento para gastar, e nem sempre todos esses recursos serão necessários. - não existem histórias impossíveis de serem contadas: é a proposta que deve se adequar à realidade de produção, e não o inverso. 20 - antes de sermos criadores/produtores, somos espectadores: e esta bagagem que fomos arregimentando ao longo da vida não deve ser desprezada quando passamos à práxis audiovisual. - quando em contextos de ensino-aprendizagem, tanto mais rica é a práxis audiovisual quanto mais ela se rende à visão de mundo dos discentes: ao docente, cabe apenas propor parâmetros temáticos ou, nos dizeres de Pierre Levy (2001), atuar como uma espécie de “animador da inteligência coletiva”. Do contrário, as potências do exercício se diluem em uma mera disputa de “a minha bagagem é maior e melhor do que a sua”; ou então se convertem na versão para sala de aula da clássica cena do filme O passageiro (1975), de Michelangelo Antonioni, quando o jornalista interpretado por Jack Nicholson, após desferir inúmeras perguntas tendenciosas para o líder de uma tribo africana, é surpreendido com o momento em que o entrevistado vira a câmera na direção do próprio repórter e rebate: “Se suas perguntas já contêm a resposta dentro delas, então é melhor que o entrevistado seja você”. 1.2 O audiovisual no limbo dos processos de ensino-aprendizagem Existe, portanto, uma inegável dimensão política que atravessa a proposta do Curso, no sentido de reconhecer a existência de um acesso desigual aos meios de produção audiovisual, tão historicamente construído quanto a perspectiva dualista de classes que pautou as políticas públicas para a Educação Profissional e Tecnológica no Brasil a partir da década de 1930 (FARIAS, 2019; FRIGOTTO, 2001; KUENZER, 2007). Enquanto estas últimas indiretamente vedavam a entrada dos filhos e filhas da classe trabalhadora no Ensino Superior, a eles destinando o ambiente da EPT como uma espécie de “estação terminal da formação” (depois da qual haveria apenas o mundo do trabalho), o discurso de não-pertencimento de certos setores ao universo da produção audiovisual inviabilizou, durante muito tempo, que eles se enxergassem representados a contento nas telas, visto que o olhar que forjava as imagens e os representava (como o Outro) vinha sempre de fora – e de cima (ADELMAN, 2006). Se, por um lado, a ampliação do acesso às tecnologias de informação e comunicação permitiu que as regras desse jogo de representação/representatividade audiovisual se alterassem a favor dessas categorias até então alijadas do processo, por 21 outro esta “mudança” não deixa de seguir ocorrendo consoante as regras do mercado (que, não raro, passa a demandar por outras formas de representação; um mercado mais acessível está longe de ser anti-sistema). Já a supracitada perspectiva dualista parece longe de se dissolver, com a iniciativa privada cada vez mais ansiosa por espraiar seus tentáculos de monstro lovecraftiano por sobre a EPT pública. A práxis audiovisual ainda habita uma espécie de limbo no que concerne aos contextos de ensino e aprendizagem: por um lado, ela tende a ser incentivada por muitos docentes (quaisquer que sejam os níveis de ensino ou a natureza dos cursos, nos termos das áreas do conhecimento), como recurso expressivo ou mesmo a título de instrumento de avaliação. Empiricamente, já coletei diversos relatos de discentes que comentavam comigo sobre o docente X ou Y ter proposto a feitura de um vídeo como trabalho de conclusão de disciplina, sem que nem o componente curricular em questão abrangesse o audiovisual como práxis na ementa, e nem que houvesse sido dada qualquer mínima orientação acerca de como realizar o tal vídeo. Por outro lado, e também em consequência desse entendimento torto da ideia de do it yourself aplicada à feitura de vídeos, a admissão do audiovisual nos currículos, sobretudo no Ensino Médio-Técnico, segue se dando de maneira não-sistemática e quase extra-oficial. As aulas de Artes até podem, vez por outra, reservar um ou dois encontros para se falar sobre cinema e vídeo, mas isso geralmente aparece dissolvido no conjunto das discussões sobre outras linguagens artísticas mais predominantes, como as artes plásticas/visuais. A mim é impossível dissociar tais percepções do fato de atuar há exatos dez anos como docente responsável pelas disciplinas de audiovisual do Bacharelado em Produção Cultural e da Especialização em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação, alem de ser encarregado de um laboratório/grupo de pesquisa no Campus Nilópolis afeito ao mesmo universo. Nesta década, testemunhei episódios curiosos, como as convocações para as reuniões do Departamento de Artes que não contemplavam o audiovisual, ou ver os objetos das minhas pesquisas sendo o alvo de deboche em plena reunião de Colegiado de Campus, por parte de colegas da área de Ciências Exatas e da Terra. Minha reinvindicação pela concessão de um maior espaço ao audiovisual nos currículos até pode soar algo ressentida, a típica manifestação de alguém que gostaria de ver a sua linguagem artística do coração sendo mais reconhecida do que efetivamente é, 22 não fosse o fato de, muito raramente (arriscaria dizer quase nunca), eu escutar de um aluno que determinado professor o encarregou da tarefa de compor uma música ou pintar um quadro. Se a feitura de vídeos é passível de ser cobrada com finalidades avaliativas, é justo e desejável que a práxis audiovisual possa ser discutida em toda sua complexidade e exercitada de maneira plena em sala de aula. Nada disso é minimamente possível sem uma capacitação prévia ou, nas condições ideais de temperatura e pressão, sem uma formação específica para o trabalho com o audiovisual em contextos de ensino e aprendizagem, seja em na Educação Profissional e Tecnológico de Nível Médio, seja no âmbito do Ensino Superior (MORAN, 2000; PENA, 2016; SANTOS, 2014). Mais uma vez, falo a partir da vivência que me precede: no curso de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde obtive meu Bacharelado, a cada semestre acumulavam-se novas frustrações quando a promessa de ter aulas com um cineasta ou técnico atuanteno mercado se traduzia em aulas dedicadas à mera exibição de filmes. Não me parece que a situação mude muito de figura se substituirmos o “cineasta ou técnico atuante no mercado” por “bacharel/mestre/doutor com experiência em pesquisa”, pois não raro existe um descompasso, em termos formativos, entre expertise técnica e/ou investigativa, e a partilha destes saberes para um público cujo repetório ainda está em construção. Nesse sentido, a experiência do curso de Licenciatura em Cinema da Universidade Federal Fluminense representa um respiro mais do que bem-vindo, ante à visão restritiva e excludente que pauta a maioria dos cursos de Licenciatura em Artes (MIGLIORIN, 2015). O relato de seus criadores é inspirador em vários aspectos, sobretudo quando descreve a resistência encontrada, por parte dos professores da área de Educação, frente a possibilidade de aumento de carga horária e demanda de trabalho, ou a desconfiança generalizada acerca da própria finalidade do curso – efeito da supracitada associação automática entre o cinema e a lógica de produção industrial. Foram, contudo os trechos que discorrem sobre a forte burocracia institucional encontrada pelos proponentes no processo de regulamentação e implementação do curso que me levaram a reformular a minha proposta original do que seria este Trabalho. 23 1.3 O Curso de Extensão: público-alvo, cronograma geral de encontos e conteúdo programático Em sua configuração inicial, este projeto assumia os contornos de uma oficina cujo público-alvo seria composto por “discentes do Ensino Médio e dos primeiros semestres letivos do Ensino Superior; preferencialmente, que estejam cursando disciplinas nas áreas de Letras, Literatura, Comunicação e Informação, Artes em geral (...)”. Se, por um lado, há inegável valor na amplitude deste recorte, pela diversidade e abrangência de sujeitos que podem ser afetados pela proposta, por outro existe um risco de perda de foco que, no limite, parece resvalar em uma certa aleatoriedade de objetivos. Diante desta constatação, optei não apenas por repensar a oficina como um Curso de Extensão, como também por redimensionar o recorte original, circunscrevendo-o a alunos das Licenciaturas. A opção pelas Licenciaturas, quaisquer que sejam os campos do conhecimento a que se vinculem, é um salto sem rede da minha parte, pois sinto que meu lugar de fala como Bacharel em Comunicação não me autoriza a adentrar certos terrenos na área do Ensino; ao mesmo tempo, creio que esse punhado de anos dedicados às disciplinas de audiovisual me colocam em uma posição de partilha de saberes e modos de fazer que, aliados às premissas do imaginário de bordas (sobre o qual falarei no capítulo seguinte), reforçam o caráter promissor das trocas a serem estabelecidas com o público- alvo do curso. Licienciandos, no geral, partilham de uma condição sui generis: são, em sua maioria, jovens discentes que se encontram na iminência de se tornarem professores de outros discentes menos ou mais jovens do que eles. Desta maneira, sua participação no Curso acaba correspondendo a uma dupla finalidade: em primeiro lugar, permite que eles se coloquem na posição de alguém desafiado a experimentar a criação artística no âmbito de uma nova linguagem; em segundo lugar, os habilita, capacita e autoriza a desenvolver estratégias no sentido de também propor a seus futuros alunos um desafio semelhante, não importa se a Licenciatura em curso seja na área de Artes, Física ou Matemática. Os recortes e enquadramentos temáticos que proponho, em torno do Insólito Ficcional (tema do Capítulo 3), também não se restringem a uma associação imediata com o campo das Artes. No contexto da disciplina “Projeto de Ação Docente” desta Especialização, tive o primeiro insight em torno das múltiplas modalidades de exploração 24 desse universo, quando propus uma atividade de extensão que tematizava a questão do monstro e da monstruosidade a partir de uma persectiva interdisciplinar (GOLUB; HEYTON, 2017). Podemos, sim, falar de monstros pelo prisma das Artes, evocando textos clássicos da literatura como o Frankenstein de Mary Shelley ou o Drácula de Bram Stoker, mas também podemos recorrer à História ou à Antropologia no sentido de discutir o medo como fenômeno social, ou ainda a origem de mitos como o antropófago/canibal ou mesmo o zumbi; por último, a perspectiva das Ciências da Natureza ajudaria a elucidar um aspecto nem sempre evidenciado quando se discute a questão das monstruosidades: seu componente biológico. Asma (2009), por exemplo, sustenta a hipótese de que diversas criaturas mitológicas que se perpetuaram no imaginário universal dos bestiários (por exemplo, dragões) podem ser nada mais nada menos do que o resultado de descobertas protocientíficas de fósseis pré-históricos que, na ausência de referencial científico capaz de explicar o fenômeno, logo eram atribuídas ao sobrenatural. Já o reenquadramento da proposta como Curso de Extensão atende não apenas ao disposto pelo Artigo 207 da Constituição Federal de 1988, que estabelece a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão no âmbito das Universidades, mas sobretudo à possibilidade que ele oferece de transcender os muros – físicos e simbólicos – da instituição e alcançar outros públicos (FERREIRA et al., 2011). A Pandemia de COVID-19 e o cenário de indefinição sobre quando (e se) será possível a retomada das nossas atividades regulamentares dificulta a definição de algumas estratégias nesse sentido, mas a ideia é que uma primeira edição do Curso esteja sediada no Campus Nilópolis, sendo, contudo, aberta à adesão de participantes licenciandos externos a ele; uma segunda edição, por sua vez, poderia ser pensada em formato itinerante, percorrendo os campi que também oferecessem Licenciaturas e estando igualmente aberta ao público de licenciandos do entorno. O curso teria frequência semestral, e o cronograma dos treze encontros presenciais (conforme discrminado no ANEXO I) estaria inserido no contexto dos calendários letivos dos campi onde ele estivesse sendo oferecido naquele momento. O Enconto inaugural estaria reservado à partilha do conteúdo programático e a uma discussão inicial acerca dos conceitos de Cinema de Bordas (Capítulo 2) e de Insólito Ficcional (Capítulo 3) em sua relação, muitas vezes insuspeita, com eventuais vivências audiovisuais amadoras que os participantes já tenham tido. Ao final deste dia, cada participante se apresentaria e 25 discorreria brevemente sobre sua relação com o universo do audiovisual; a título de encaminhamento para o próximo encontro, os participantes seriam orientados a se articularem em grupos ou unidades de produção e, se possível, construírem um esboço da proposta de tema do curtíssima-metragem, a partir dos enquadramentos propostos (ver Capitulo 3), de modo que as três semanas subsequentes (02, 03 e 04) pudessem ser dedicadas ao Roteiro. Destas três semanas, apenas as duas primeiras contemplariam atividades presenciais, com a terceira ficando reservada à finalização dos materiais dramatúrgicos. Da quinta à décima quarta semana, o Curso oscilaria entre um caráter mais expositivo, no qual as conversas girariam em torno do processo de criação e produção audiovisual a partir das etapas e funções que o constituem, e um mais prático, pautado nos debates direcionados às propostas de projeto. Desta maneira, as Semanas 05 e 06 estariam voltadas a uma discussão sobre as atribuições da Equipe de Produção, enquanto as de número 07 e 08, à Equipe de Direção. As Semanas 09, 10 e 11 contemplariam, respectivamente, as Equipes de Imagem/Fotografia, Arte e Som. Para a discussão da etapa subsequente do processo,que é a edição/montagem, seriam novamente reservadas três semanas (12, 13 e 14), com um novo intervalo de uma semana sem atividades presenciais, desta feita, adicionado entre a primeira e a terceira semana, por razões de ordem técnica que explico no Capítulo 4. Por fim, o último encontro seria dedicado à apresentação e discussão dos projetos audiovisuais, bem como à autoavaliação do Curso. As semanas sobressalentes (considerando as 18 semanas de um semestre letivo padrão), sem quaisquer atividades previstas no cronograma, serviriam a finalidades diversas: desde como precaução ante a ocorrência de algum imprevisto (por exemplo, uma chuva muito intensa que obrigue à suspensão de determinado encontro) até se, por demanda da turma, revelar- se necessária a inclusão de novos intervalos ou a prorrogação dos intervalos já previstos entre as semanas de atividade. Delineada a estrutura-base do curso, é chegada a hora de iniciar a apresentação dos conceitos que subsidiarão ou, melhor dizendo, servirão de inspirção à práxis, bem como o detalhamento, por Encontro ou conjunto de Encontros, das etapas que compõem o Curso de Extensão Produção Audiovisual Insólita de Bordas. 26 2. CELULAR NA MAO, IDEIA NA CABEÇA E O CINEMA NO CORAÇÃO: O IMAGINÁRIO AUDIOVISUAL DE BORDAS 2.1 Breves apontamentos sobre a transformação do cinema em indústria Se 1895 assinala a primeira apresentação pública do cinematógrafo dos irmãos Lumière, pode-se dizer que o cinema, em toda a dimensão lúdica que a ilusão de movimento das imagens possui, é consideravelmente anterior ao episódio que, por força das circunstâncias, acabou se inscrevendo nos livros de história como sua data de “nascimento”. A idéia de cinema está presente nas pinturas rupestres das cavernas da pré- história; nos inúmeros dispositivos de entretenimento que, sob uma chave de leitura quase mágica, provocavam encantamento e assombro em igual medida; e, por fim, nos diversos engenhos técnicos e tecnológicos que a ciência desenvolve ao longo do século XIX, com o intuito de melhor compreender o movimento das coisas (MACHADO, 1997). É, contudo, o cinematógrafo patenteado pelos Lumière e trazido à lume no alvorecer do século XX que inaugura e consagra uma experiência de cinema que se dirige ao coletivo de espectadores, ao mesmo tempo em que sugere as três linhas-mestras a partir das quais o cinema tenderá a ser entendido até os dias de hoje: o cinema como linguagem, o cinema como arte e o cinema como indústria (AUMONT, 1995). Ao contrário do que se pensa, tais condições não acompanham o cinema desde o seu surgimento: serão necessárias pelo menos duas décadas de intensa experimentação para que o invento dos Lumière descubra sua forma específica de resolver impasses decorrentes da necessidade de se contar histórias cada vez mais complexas; para que seja reconhecido como uma forma de arte, passível de ser equiparada às modalidades que o antecederam e, em certa medida, afetaram seu desenvolvimento durante os primeiros anos de sua existência; e, por último mas não menos importante, para que sua realização seja organizada consoante os mesmos princípios das nascentes indústrias culturais, que se disseminam pelo mundo ocidental da década de 1930 em diante. Detenho-me neste último aspecto, pois ele é fundamental para o argumento que sustenta esta capítulo e, de certa forma, todo este trabalho: o caráter industrial do cinema não o acompanha desde o berço, muito embora, nos dias de hoje, seja praticamente impossível dissociar a realização cinematográfica e audiovisual de uma lógica que envolve, 27 dentre outras variáveis, a segmentação da produção em etapas bem definidas, a divisão do trabalho em equipes às quais serão atribuídas funções específicas e, por fim, as consideráveis quantidades de dinheiro que fazer cinema em escala industrial envolve. O imperativo do lucro, ou do retorno financeiro sobre o valor investido na feitura e promoção da obra, será diretamente proporcional ao vulto da indústria que engendra determinada produção. Contextos industriais menores, em processo de desenvolvimento ou que nunca chegaram a consolidar uma efetiva indústria audiovisual em seus territórios, tendem a lidar com tais imperativos de maneira menos premente, o que, por sua vez, não necessariamente significa uma maior abertura às produções experimentais ou de vanguarda, pois não raro o vigor daquilo que nomeamos de “cinema independente” decorre precisamente da existência de uma indústria consolidada. Aqui, é importante retroceder um pouco no tempo, até o momento no qual tais processos começam a ganhar forma. A partir de meados da década de 1920, percebe-se uma mudança significativa na maneira de fazer filmes: as tramas se tornam mais complexas e a metragem dos títulos aumenta significativamente; a experiência do cinema se autonomiza em relação às opções de entretenimento com as quais ela convivia a paredes meias no período do Primeiro Cinema; as elites, pouco a pouco, descobrem que a melhor maneira de atenuar o caráter ultra-popular, algo sensacionalista e, portanto, “perigoso” deste Primeiro Cinema é pela sua captura e colonização – súbito, a experiência do cinema se torna disciplinada e, portanto, mais afeita às sensibilidades burguesas (COSTA, 1995). Uma vez que o cinema se vê capaz de atrair um público de maior poder aquisitivo, passa a ser urgente contemplar-lhe os gostos e justificar o preço do ingresso: retroalimenta- se, assim, o círculo vicioso que “pede” por tramas mais complexas, suntuosas e que exigirão, de seus realizadores, uma estrutura de produção capaz de dar conta de tais demandas. O caráter artesanal do Primeiro Cinema, segundo o qual as funções criativas se sobrepunham e as fases da produção não precisavam estar bem definidas, torna o processo lento e custoso: para otimizar os recursos e o tempo, urge tornar-se indústria. Engana-se quem pensa que tais preocupações são exclusivas do contexto estadunidense ou “nascem” com Hollywood – que, por força das dinâmicas de poder instituídas, acabou se tornando o nosso paradigma de indústria audiovisual. Muito antes que Hollywood sequer existisse, contextos de produção como o italiano já davam os primeiros passos rumo ao que seria chamado de “sistema de estúdios”, ainda na década de 28 1910: uma superprodução como o épico Cabiria, de Giovanni Pastrone (1914), seria impensável sem uma estrutura industrial, ainda que incipiente, por detrás. O próprio surgimento de Hollywood decorre de uma reação (político-econômica conservadora) dos produtores de cinema radicados na costa leste dos Estados Unidos diante das articulações sindicais e de classe que começavam a vicejar no bojo da indústria nascente: como na costa oeste as leis trabalhistas eram mais flexíveis, os grandes estúdios da época simplesmente atravessam o país e fundam Hollywood. Enquanto isso, na Europa, duas Guerras Mundiais literalmente minam (com o perdão do trocadilho) quaisquer pretensões de hegemonia audiovisual de países como Itália, Alemanha e França; no rescaldo da Segunda Guerra, por sua vez, e com as engranagens do sistema de estúdios hollywoodiano perfeitamente azeitadas, ocorrerá o golpe de misericórdia que, pelas duas décadas vindouras, relegará o cinema europeu à condição de quintal dos Estados Unidos, no que concerne ao consumo, mas também à feitura, de produções de viés comercial (MASCARELLO, 2006). De que maneira o Brasil se posiciona em relação a esta dinâmica? A título de resposta, podemos partir de uma premissa: o Brasil nunca chegou a consolidar uma indústria cinematográfica de fato, que possuísse não apenas longevidade no tempo, como também alguma capilaridade junto ao público do seu próprio país (BERNARDET, 2009). Nossastentativas de implementação de qualquer coisa próxima de uma indústria pela via do sistema de estúdios tenderam à curta duração de iniciativas esparsas cujo fôlego rapidamente se esgotou (como é o caso das companhias cinematográficas Atlântida, do Rio de Janeiro, ou Vera Cruz, de São Paulo, entre as décadas de 1930 e 1950). Nas décadas de 1960 a 1980, por sua vez, o exemplo da Boca do Lixo5 paulistana se revelou bastante expressivo na busca por um cinema de caráter popular-massivo, comercial e de gênero, às margens dos mecanismos oficiais de financiamento à produção (via Embrafilme) e, não raro, mediante acordos diretos entre (pequenos e médios) 5A expressão “Boca do Lixo” nomeia uma região do centro da cidade de São Paulo onde, desde meados dos anos 1940, instalam-se diversos escritórios e estúdios de companhias cinematográficas nacionais e estrangeiras, atraídas pela proximidade em relação à Estação de Trens da Luz, que facilitaria o transporte de cópias e maquinário para o interior do estado e, por extensão, do país como um todo. Fazendo jus à alcunha que, de modo pejorativo, a região recebeu por parte da imprensa, na Boca do Lixo criminosos arraia-miúda, profissionais do sexo e poetas de sarjeta conviviam de forma harmônica com o pessoal do cinema, igualmente heterogêneo em sua constituição, tendo por epicentro a Rua do Triunfo. Desta insólita mistura, resultaram aproximadamente mil filmes, produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, que transitavam entre a comédia de costumes e o thriller policial, entre o musical de temática sertaneja e o faroeste, e nos quais a presença do elemento erótico era uma constante, independendo do gênero em questão (ABREU, 2002). 29 produtores e os exibidores. A partir do final dos anos 1970, contudo, o cinema da Boca do Lixo passa a ser alvo de constantes ataques e tentativas de desmonte, seja por parte da própria imprensa (que vociferava contra o conteúdo erótico e exploratório dos filmes), seja por parte das majors internacionais, que não raro viam seus filmes batendo de frente – e perdendo a disputa – com alguma produção de maior apelo comercial vinda da região (ABREU, 2002). 2.2 Cinema independente, undergrond, marginal, livre ou de guerrilha? Genealogia dos conceitos em disputa Diante da inexistência de uma indústria cinematográfica de fato (a despeito de um crescimento da produção de filmes, em termos de volume, a partir dos anos 2000), é válido questionar se, ao refletirmos sobre as relações entre cinema, indústria e mercado no Brasil, também não seria fundamental rever os termos e conceitos que utilizamos para nomear os agentes e as dinâmicas destes processos (MARSON, 2009). Isto parece particularmente válido se nos detivermos em uma palavra como independente. O que é fazer cinema independente no Brasil? Cinema independente, no Brasil, aciona o mesmo conjunto de valores e práticas aplicáveis quando se fala em cinema independente nos Estados Unidos, na França, na Nigéria ou na China? Arriscaria dizer que não. No caso estadunidense, por exemplo, a comparação se revela discrepante não apenas em termos de orçamento (com a verba de um filme independente de lá, é possível fazer um filme de médio-grande porte aqui no Brasil), mas também pelo fato de ser bastante comum que os próprios grandes estúdios de Hollywood possuam a sua divisão de cinema independente (20th Century Fox e Fox Searchlight; Warner Bros. e Warner Independent Pictures, e assim por diante). Mesmo a acepção mais consagrada do termo, que surge em meados dos anos 1960 para rotular o alvorecer de uma nova geração de jovens realizadores egressos das faculdades de cinema e alinhados com o ideário contracultural, se dará numa relação de simbiose com o próprio sistema de estúdios cuja crise a engendra: não à toa, o cinema independente americano dos anos 1960 ficará conhecido como… Nova Hollywood (SUPPIA et al, 2008). Diante disso, é pertinente questionar em relação a quê esse cinema se posiciona como independente. À lógica de mercado talvez não seja, pois a forma de se ter acesso a 30 esses títulos – mediante aquisição de ingresso – vale tanto para um blockbuster de super- heróis com a grife do Marvel Studios quanto para um filme de Wes Anderson. O mesmo se aplicaria à tutela dos estúdios como instância dirigente, pois não raro o que torna viável a feitura destes filmes “independentes” é o capital que circula nos estúdios a partir das expressivas arrecadações nas bilheterias dos filmes “ponta de lança”. Aliás e a propósito do caso brasileiro, costuma ser recorrente o discurso de que um dos problemas da nossa (não) indústra cinematográfica é a inexistência daquilo que, noutros contextos, é chamado de “filme médio”, ou seja, nem tanto ao mar dos títulos de grande apelo comercial (como as comédias), mas também nem tanto à terra do cinema de invenção de um Júlio Bressane, por exemplo (BERNARDET, 2009; RAMOS, 2004). Estabelecendo uma analogia com a imagem de um trem em movimento, é como se o blockbuster fosse a locomotiva que “puxa” o conjunto e os filmes médios fossem os vagões intermediários que, de fato, transportam a carga, com o cinema de invenção sendo o vagão de combustível. No Brasil, nossa locomotiva é errática em termos de potência (são poucos os títulos que, efetivamente, podemos dizer serem lucrativos) e os vagões intermediários carregam pouca carga, o que deixa para o vagão de combustível a ingrata (e inócua) missão de puxar o trem. Em outras palavras, no Brasil até o mainstream parece independente. Portanto, quando o termo independente é utilizado para nomear ou qualificar outras modalidades de práxis audiovisual, é fundamental não apenas historicizar/referenciar o conceito, como também problematizar seu uso indevido e, se possível, prospectar outros termos que sejam mais fiéis aos contextos de produção, industrial ou não, aos quais remetem. Tal necessidade nos coloca diante de todo um conjunto de denominações adjacentes as quais, cada uma com sua particularidade, servirão para sinalizar um mesmo posicionamento (estético, crítico, político): seu distanciamento, em maior ou menor grau, de um cinema/audiovisual considerado hegemônico. Comecemos pela ideia de underground que, a exemplo do independente, também se configura como um conceito relacional: no caso, se o underground carrega uma forte acepção de algo subterrrâneo, aquilo contra o qual ele se posiciona estaria situado logo acima, sendo, portanto, mais visível e acessível ao grande público. O florescimento do cinema underground está diretamente vinculado aos desdobramentos das vanguardas artísticas surgidas nas décadas do entreguerras que também possuíram manifestações em 31 âmbito audiovisual, como é o caso do surrealismo, presente nas obras de artistas como Maya Deren e Kenneth Anger. Tradicionalmente, o termo underground parece aderir de maneira mais inconteste a filmes de pronunciado teor experimental, nos quais a gramática da narrativa clássica, com suas lógicas de causalidade, personagens bem definidos e a trama estruturada em três atos, cede lugar a abordagens mais sensoriais e plásticas. No Brasil da segunda metade da década de 1960, a palavra underground foi devidamente aportuguesada para udigrudi, nome que também serviu para batizar o movimento cinematográfico dissidente do Cinema Novo conhecido como Cinema Marginal, que radicaliza as propostas políticas e estéticas do grupo ao qual sucedeu, em filmes nos quais a ideia do grotesco, do abjeto e da representação liminar ocupam lugar de destaque (RAMOS, 1987). A alcunha de “marginal” pode ser entendida tanto no contexto de uma celebração da marginalidade como algo transgressor, presente no discurso contracultural da época (com o “Seja marginal, seja herói”,de Helio Oiticica, logo vindo à mente), quanto a propósito do longa-metragem que, de certa maneira, inaugura o movimento: A margem, de Ozualdo Candeias (1967), sobre um grupo de desvalidos que habita os entornos do rio Tietê, em São Paulo. Embora de curta duração, o ciclo do Cinema Marginal lançou as bases do que de mais instigante se produziu em termos de cinema no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980. Com o recrudescimento da Ditadura Militar, boa parte do grupo fundador (composto, entre outros, por Rogerio Sganzerla, Julio Bressane, José Agripino de Paula, Neville d’Almeida, dentre outros) já havia deixado o país, em condição de exílio, ou então se dispersado por outras frentes do cinema paulistano de então: será na Boca do Lixo que muitos dos marginais, como José Mojica Marins, Carlos Reichenbach e o próprio Candeias, encontrarão as condições possíveis de continuar produzindo o seu cinema. Podemos identificar ecos do Cinema Marginal em dois outros termos, estes bem mais contemporâneos, que compõem o nosso universo de conceitos relacionais: na ideia de cinema de guerrilha e no filme livre. O primeiro deles denota uma forte carga de conflito/confronto, associada ao entendimento da guerrilha como algo clandestino, feito na surdina e a partir de posições de subalternidade ante os poderes instituídos. É interessante partirmos dessa premissa para discutirmos um movimento como o Cinema de Guerrilha da Baixada, por exemplo, no que concerne aos afetos que aciona e à sua proposta de embate com um cinema “oficial”, que monopoliza e concentra meios de produção e discursos de 32 representação do Outro (LEROUX, 2017). Já o conceito de “filme livre”, tal e qual aparece no nome de uma tradicional Mostra Audiovisual6 que acontece anualmente no país, pode ser pensado em relação às diversas amarras que cerceiam o processo de criação artístico e cinematográfico: da duração que a obra precisa ter, de modo a possuir viabilidade comercial, até as convenções de gêneros narrativos e fronteiras que separam o documentário da ficção. Em todos os termos contemplados até aqui, entretanto, parece haver um limite de abrangência no que diz respeito às relações que essa produção estabelece com o cinema mainstream ou hegemônico: e se (ou quando) essas relações não se dão pela via do embate ou do distanciamento, mas sim pela adesão/aspiração? Dito de outra forma: e quando o mainstream é o local de onde eu parto e onde desejo chegar, mas me faltam os recursos, o domínio técnico ou a estrutura industrial necessária por detrás? 2.3 O Cinema de Bordas e suas fronteiras É a propósito destes silêncios que o conceito de cinema de bordas é formulado. Sua elaboração é relativamente recente (década de 2000), localizada (o termo irradia, sobretudo, a partir de um conjunto de preocupações compartilhadas por pesquisadores vinculados ao curso de Cinema da Universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo) e, a princípio, circunscrita a um tipo muito particular de produção audiovisual, passível de ser identificada graças ao barateamento das tecnologias de captação de imagem e som, mas que até então não havia sido mapeada ou discutida em âmbito acadêmico (LYRA & SANTANA, 2006; LYRA, 2009a, 2009b). A procedência dos filmes de bordas, por sua vez, estaria em alguma medida vinculada à sua condição de afastamento dos grandes centros, o que pode corresponder a uma dinâmica centro/periferia em termos de configuração urbana (por exemplo, na relação entre município do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense), mas também se referir ao modo como a produção audiovisual (em termos de recursos, infraestrutura ou pessoal) é distribuída ou concentrada dentro de um mesmo território “central”: por exemplo, dentro do município do Rio de Janeiro, a Zona Sul poderia ser considerada um “centro dentro do 6 Conforme declaração de princípios disponível em <https://www.mostralivre.com/20/>. Acesso em 21 nov. 2011. https://www.mostralivre.com/20/ 33 centro” em termos de número de produtoras e profissionais que vivem da atividade cinematográfica; assim, alguém que faça cinema em um bairro do subúrbio estaria situado nas “bordas” dessa relação. O conceito de cinema de bordas, entretanto, vai além da ideia de uma produção periférica invisível ao circuito comercial, e viabilizada pelo advento das câmeras digitais e dos softwares gratuitos de edição de imagem e som. Até aí, e consideradas apenas essas dimensões, pouca diferença haveria entre o cinema de bordas e o independente, o underground, o filme livre, etc. A singularidade do cinema de bordas reside, então e precisamente, na relação de proximidade estética e estilística com a narrativa clássica mainstream e os inúmeros gêneros nos quais ela se desdobrou ao longo do século XX. Os cineastas de Bordas não se preocupam com a desconstrução da linguagem ou a ruptura dos modelos narrativos prestabelecidos, antes desejando emulá-los ou mimetizá- los, no limite do que a escassez de recursos, de infraestrutura ou de domínio técnico lhes permite. Não raro, a condição de “bordista” (termo que passou a designar os praticantes destas produções) nasce de uma relação afetuosa, que remete à infância, à adolescência ou ao início da fruição audiovisual, com os formatos e gêneros consagrados pelo cinema mainstream, sobretudo em suas vertentes mais deslegitimadas – aquelas nas quais o caráter mercadológico ou industrial tende a transbordar de maneira mais explícita para a própria narrativa. Aqui é preciso abrir um parêntese: muito embora a tradição dos Film Studies em âmbito internacional e, a passos de tartaruga, também aqui no Brasil, venha gradativamente se tornando menos subserviente ao legado das Teorias Críticas de matriz frankfurtiana (de Theodor Adorno, Max Horkheimer e contemporâneos) e mais aberta às perspectivas de viés culturalista do pós-década de 1960, ainda é possível identificar, por parte de alguns setores, entidades associativas e programas de pós-graduação e pesquisa, uma considerável resistência à entrada de certos objetos no panteão de temas legítimos de serem discutidos dentro da academia (KELLNER, 2001). Que isto não soe a uma recusa pura e simples de quaisquer pertinências que as teorias críticas decerto ainda possuem como referencial de análise: a questão é quando a perspectiva adorniana sobre a dicotomia entre a “arte elevada” (que desafia a fruição e desconstrói os códigos preestabelecidos) e os artefatos da indústria cultural (produtos formulacios que fomentam a alienação das audiências e ajudam a preservar o status quo) pauta as próprias decisões sobre o que é 34 digno ou não se de tornar objeto de pesquisa (ADORNO & HORKHEIMER, 2002; BENJAMIN, 2000). De fato, e conforme a crítica feita por Hall (2003), no afã em se romper com um certo elistismo presente na perspectiva das Teorias Críticas e, sobretudo, pela maneira como a noção de “agência do receptor” e “consumo produtivo” foi apropriada por vertentes estadunidenses dos Estudos Culturais a partir da década de 1980, inúmeros excessos celebratórios foram cometidos: flanar pelo shopping virou indicativo de resistência ao capitalismo, e mesmo o mais reacionário blockbuster de ação pode abrir “linhas de fuga” para leituras empoderadoras da audiência. Mas pesquisar artefatos midiáticos potencialmente conservadores ou reféns de uma lógica de mercado (como o são muitos blockbusters de ação, por exemplo) não significa, necessariamente, endossar-lhes o discurso ou promovê-los a petardos contra-hegemônicos dirigidos ao capitalismo global. Isto posto, e muito embora o termo cinema de bordas abranja uma produção audiovisual que bebe da fonte das narrativas e formatos do mainstream, sua instrumentalização
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