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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI GEOGRAFIA DA POPULAÇÃO GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 5 2 A POPULAÇÃO E SUA HISTORICIDADE .................................................................... 6 2.1 Fases do crescimento populacional ........................................................................... 6 2.2 Motivações para o aumento populacional na história ................................................. 9 2.3 Relação entre geografia populacional e geografia econômica ................................. 11 3 A GEOGRAFIA DA POPULAÇÃO: ENFOQUES CONTEMPORÂNEOS .................... 15 3.1 O papel dos estudos populacionais .......................................................................... 15 3.2 Componentes importantes para o estudo de populações ........................................ 19 3.2.1 Aspectos sociais .................................................................................................... 19 3.2.2 Aspectos socioeconômicos ................................................................................... 21 3.2.3 Aspectos políticos ................................................................................................. 22 3.3 A importância da diversidade de gênero, de etnia e de cultura ................................ 23 4 A TEORIA MALTHUSIANA DO CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO ........................... 27 4.1 Contexto da teoria populacional formulada por Malthus .......................................... 28 4.2 Aspectos históricos da teoria malthusiana ............................................................... 30 4.3 A teoria malthusiana no contexto populacional atual ............................................... 33 5 AS TEORIAS POPULACIONAIS MARXISTA E REFORMISTA .................................. 38 5.1 Contexto histórico das teorias marxista e reformista ................................................ 38 5.2 A contribuição de Marx à geografia populacional ..................................................... 42 5.3 Viabilidade das teorias marxistas e reformistas no contexto atual ........................... 45 6 O NEOMALTHUSIANISMO E A GEOPOLÍTICA DA FOME ....................................... 48 6.1 Aspectos sociais da teoria neomalthusiana.............................................................. 49 6.2 A teoria neomalthusiana e a escassez de alimentos ................................................ 53 3 6.3 Decorrências da revolução verde ............................................................................. 55 7 CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO E CRESCIMENTO VEGETATIVO ....................... 59 7.1 Crescimento vegetativo versus crescimento demográfico ....................................... 60 7.2 Fatores determinantes do crescimento demográfico ................................................ 63 7.3 A historicidade do crescimento vegetativo ............................................................... 66 8 ASPECTOS DA DENSIDADE DEMOGRÁFICA ......................................................... 69 8.1 Regiões densamente povoadas ............................................................................... 70 8.2 As motivações para concentração e dispersão da população .................................. 74 8.3 A influência da economia na densidade demográfica .............................................. 76 9 DIFERENÇAS POPULACIONAIS NO HEMISFÉRIO NORTE E NO HEMISFÉRIO SUL.............. .................................................................................................................. 80 9.1 Transição demográfica ............................................................................................. 80 9.1.1 Fases da transição demográfica ........................................................................... 81 10 TEORIAS MIGRATÓRIAS ......................................................................................... 83 10.1 Historicidade das migrações .................................................................................. 83 10.2 Diferentes teorias e suas influências econômicas .................................................. 87 10.2.1 Teoria microeconômica neoclássica ................................................................... 87 10.2.2 Teoria do capital humano .................................................................................... 87 10.2.3 Teoria dos novos economistas da migração do trabalho .................................... 88 10.2.4 Teoria macroeconômica neoclássica .................................................................. 89 10.2.5 Teorias histórico-estruturalista ............................................................................ 89 10.2.6 Teoria do princípio da causalidade ...................................................................... 91 10.2.7 Teoria das análises institucionais ........................................................................ 92 10.3 Consequências das migrações .............................................................................. 94 10.3.1 Consequências econômicas ................................................................................ 94 4 10.3.2 Consequências demográficas ............................................................................. 94 10.3.3 Consequências políticas ...................................................................................... 95 10.3.4 Consequências socioculturais ............................................................................. 95 11 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ...................... 96 11.1 Migrações ambientais e suas motivações .............................................................. 97 11.1.1 Alterações ambientais e migração ...................................................................... 99 11.2 Migrações por conflitos ......................................................................................... 100 11.2.1 Migrações na contemporaneidade .................................................................... 101 11.2.2 Consequências das migrações por conflitos ..................................................... 102 11.3 Influência econômica e a descapitalização no processo migratório ..................... 103 12 MIGRAÇÕES INTERNAS NO BRASIL ................................................................... 106 12.1 Movimentos populacionais no Brasil .................................................................... 107 12.1.1 Movimentos migratórios do período colonial até o século XIX .......................... 107 12.1.2 As migrações internas de meados do século XIX ao século XXI ...................... 110 12.2 Motivações para as migrações ............................................................................. 115 12.3 Consequências das migrações internas ............................................................... 118 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 121 5 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do alunotempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 6 2 A POPULAÇÃO E SUA HISTORICIDADE Projeções da Organização das Nações Unidas (ONU) para o crescimento populacional indicam um aumento significativo nos próximos 80 anos, com estimativa média de 11 bilhões de habitantes em escala mundial. No entanto, sabemos que o crescimento demográfico global não é contínuo e apresenta oscilações ao longo do tempo, que ocorrem de acordo com os aspectos ambientais socioeconômicos e culturais de distintas realidades geográficas. Em uma perspectiva histórico-geográfica, algumas dessas variações foram traduzidas, com fins analíticos, como fases do crescimento populacional, nas quais são consideradas as condições sociais, produtivas, políticas, econômicas e culturais dos distintos momentos históricos da humanidade. 2.1 Fases do crescimento populacional A partir da segunda metade do século XX, a população mundial aumentou exponencialmente, alcançando os atuais 7,7 bilhões de pessoas. No entanto, esse cenário nem sempre foi assim, considerando que o crescimento populacional passou, ao longo do tempo, por diferentes fases marcadas por aspectos produtivos, sociais e econômicos ligados a saúde, alimentação, condições sanitárias, entre outros fatores que afetam a qualidade e expectativa de vida de uma população. Além disso, é importante considerar que as dinâmicas demográficas em escala mundial são bastante diversificadas, variando de contexto nacional ou regional. Isso significa, por exemplo, que as fases de crescimento demográfico de países economicamente desenvolvidos não são idênticas às fases de crescimento dos países de economias emergentes, isto é, latino- americanos, africanos e alguns asiáticos (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). A primeira fase do crescimento populacional é marcada pela Revolução Industrial na Europa, durante os séculos XVIII e XIX, o que contribuiu para a intensificação da urbanização. O crescimento urbano é definido não apenas pelo aumento de edificações nas cidades, mas pelo próprio crescimento demográfico, que pode ocorrer pelo aumento da taxa de natalidade e pela migração. O papel desempenhado pela industrialização neste sentido foi fundamental, visto que a produção industrial nos séculos XVIII e XIX 7 costumava utilizar todo o núcleo familiar como força de trabalho (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Ou seja, mulheres e crianças (a partir de determinada idade) também constituíam a mão-de-obra fabril. Esse foi um dos estímulos para o crescimento das famílias, considerando que mais crianças significavam mais mão-de-obra, o que, por sua vez, significava mais ingresso de renda na unidade familiar (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Ainda entre os séculos XVIII e XIX, a industrialização também colaborou com o fenômeno de êxodo rural, quando as populações campesinas se deslocaram para as cidades em busca de trabalho e melhor qualidade de vida. Esses fatores, somados à redução nas taxas de mortalidade em função da melhoria das condições sanitárias, provocaram um aumento exponencial dos índices populacionais no contexto europeu. Essa primeira fase nos contextos latino-americanos, africanos e asiáticos primeiramente não corresponde ao mesmo período que na Europa, América Anglo- saxônica e Oceania. A motivação para o crescimento demográfico acelerado em países como Brasil, Índia, Colômbia e China foi, além da industrialização e urbanização, o avanço da medicina a partir da segunda metade do século XX, ampliando a expectativa de vida em países que já apresentavam altos índices populacionais e elevada taxa de natalidade. Entre as décadas de 1950 e 1990, a população em regiões como América Latina e Ásia ultrapassou os índices da Europa quando este continente se encontrava em fase de expansão demográfica (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). A segunda fase do crescimento populacional na Europa também foi afetada pela industrialização e urbanização, ao final do século XIX e início do século XX. Entretanto, essa fase é marcada pela redução nas taxas de natalidade e mortalidade, devido às transformações socioeconômicas e produtivas envolvidas na produção industrial. Um exemplo dessas transformações foram os direitos trabalhistas — como a abolição do trabalho infantil e a redução das excessivas horas de trabalho —, juntamente com inovações tecnológicas que implicaram no desenvolvimento e adoção de equipamentos que substituíram o trabalho humano em atividades exaustivas, elementos que contribuíram para redução da mortalidade entre os trabalhadores operários, causando um impacto no crescimento populacional da Europa de forma geral. 8 A abolição do trabalho infantil também afetou a dinâmica familiar, pois provocou uma redução no número de filhos, já que as crianças passaram de produtoras ativas de renda para meras consumidoras no seio das famílias (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Além disso, a ampliação dos direitos civis às mulheres, que se inseriram no mercado de trabalho e passaram a reivindicar direitos do ponto de vista reprodutivo, afetou significativamente a taxa de fecundidade e natalidade. De forma complementar, o desenvolvimento urbano da época, associado a melhorias nas condições sanitárias, contribuiu para uma melhor qualidade de vida da população, aumentando obviamente a expectativa de vida. A terceira fase do crescimento populacional no contexto europeu foi caracterizada por uma estabilização e posterior redução demográfica, em virtude do declínio na taxa de fecundidade, redução da taxa de mortalidade e consequente aumento na expectativa de vida da população (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). A segunda e terceira fases do crescimento populacional em países subdesenvolvidos, como Brasil, Índia e México, também foram marcadas pela redução nas taxas de natalidade e mortalidade. Essas transformações na dinâmica populacional ocorreram em virtude de fatores sociais, como o acesso aos métodos contraceptivos e parciais conquistas de direitos reprodutivos pelas mulheres; desenvolvimento urbano e melhoria nas condições sanitárias; acesso à educação e saúde; e melhoria nas condições de moradia. Aspectos econômicos também devem ser considerados, como o desenvolvimento socioeconômico dos países, que resultou em melhoria na qualidade de vida das pessoas. No entanto, é importante levar em consideração que não estamos nos referindo a realidades homogêneas, ainda que distintos países, ricos ou pobres, compartilhem situações semelhantes em termos socioeconômicos. Em países como Angola, Moçambique e Etiópia, por exemplo, as taxas de crescimento populacional são elevadas, alcançando respectivamente 3,3%, 2,9% e 2,4% para o ano de 2017 (THE WORLD BANK, 2019). É interessante notar que essas taxas são típicas da primeira fase de crescimento populacional de países como Brasil (2,3% em 1960), Colômbia (3% em 1963) e Chile (2,94% em 1963) (THE WORLD BANK, 2019). O acelerado crescimento populacional em países africanos pode estar associado a questões sócio produtivas e 9 culturais, como as estruturas agrárias em que a mão-de-obra é essencialmente familiar e o casamento é uma forma de ampliar o terreno cultivado; a valorização de famílias com muitos filhos; a prática eventual da poligamia; e o escasso uso de métodos contraceptivos por parte das mulheres. Analisando o caso de Moçambique, Cardoso (2007) entende que existe uma relação entre casamento precoce, nupcialidade e taxa de fecundidade que altera toda a dinâmica populacional no país. Aelevação da idade de casamento, por exemplo, cada vez mais comum nos contextos urbanos, é considerada um dos fatores que contribui para a redução das taxas de fecundidade. No entanto, é interessante considerar que o continente africano é bastante diverso e sua dinâmica populacional merece ser analisada com os devidos cuidados, considerando suas especificidades histórico-geográficas, em constante diálogo com as possíveis relações em escala global. 2.2 Motivações para o aumento populacional na história Na seção anterior, conhecemos as fases do crescimento populacional em uma perspectiva histórica. Além disso, vimos brevemente que a industrialização, urbanização, ampliação na produção de alimentos, melhorias nas condições sanitárias e modernização da medicina foram essenciais para o aumento populacional tanto em países subdesenvolvidos quanto desenvolvidos. Por essa razão, aprofundaremos esses condicionantes sociais que impactaram a dinâmica populacional em sua historicidade. Ao mesmo tempo, existem diversos outros fatores que merecem ser estudados, como as especificidades socioculturais e econômicas de realidades diversas, para que os aspectos demográficos sejam lidos com os devidos cuidados ao estabelecermos relações causais. De forma complementar, reiteramos que o crescimento populacional é interpretado e analisado por meio de elementos como a natalidade, fecundidade, mortalidade e migração (DAMIANI, 1998). Já nos familiarizamos com a noção de que a Revolução Industrial, que teve início no século XVIII na Europa, transformou, em escala global, a sociedade e sua dinâmica econômica, produtiva e até cultural. Em termos demográficos, esse fenômeno social foi determinante tanto para o aumento e posterior redução das taxas de natalidade quanto 10 para o declínio na mortalidade. O trabalho infantil, comum na produção industrial nos séculos XVIII e XIX, afetou a organização demográfica familiar, estimulando o aumento no número de filhos nas unidades domésticas e consequentemente elevando a taxa de natalidade em diversas regiões da Europa, sobretudo no Reino Unido (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Por sua vez, a industrialização levou a um aumento na oferta de alimentos impulsionado pela modernização da agricultura, por meio da qual foram introduzidos novos insumos agrícolas, assim como tecnologias logísticas e produtivas que permitiram uma ampliação na oferta de produtos de primeira necessidade, reduzindo, dessa forma, a mortalidade entre a população (DAMIANI, 1998). Nesse contexto, a industrialização, em associação com a modernização agrícola, também foi responsável pela intensificação da urbanização, como condição e resultado da migração no sentido campo–cidade, que caracteriza o fenômeno do êxodo rural. Ou seja, populações campesinas, em algumas situações expropriadas de suas terras e com o objetivo de buscar trabalho e melhor qualidade de vida, deslocaram-se para as cidades, inflacionando a população urbana. Segundo outras considerações teóricas a respeito da dinâmica populacional, a industrialização, assim como a urbanização, apesar de em um primeiro momento ter estimulado o aumento populacional, de forma geral provocou a redução da fecundidade (DAMIANI, 1998). Isso ocorreu devido à ampla difusão e incorporação da lógica da racionalidade e individualidade, características do estilo de vida urbano-industrial nas sociedades ocidentais modernas, resultando na primazia da família nuclear com poucos filhos, em detrimento da família ampla (DAMIANI, 1998). Isso significa que, em virtude dos custos envolvidos na criação e formação dos filhos, a taxa de fecundidade despencou entre as famílias europeias, que passaram a ser cada vez menores, almejando com isso um melhor desenvolvimento econômico familiar. Além das questões socioeconômicas, o avanço da medicina no tratamento, controle e prevenção de doenças, assim como melhorias nas condições sanitárias, em nível individual e coletivo, foram fatores determinantes na redução da mortalidade durante o século XIX e início do século XX, resultando em forte aumento populacional. 11 Os progressos da medicina datam de meados do século XIX em diante, com a introdução da noção de assepsia e a descoberta de anestésicos. No final do século XIX, destacam-se os bactericidas e a imunologia, citando-se, entre outros, os trabalhos de Pasteur. A pesquisa em quimioterapia, iniciada na década de 1930, avança até nossos dias (DAMIANI, 1998, p. 32). No entanto, consideramos importante entender que esses fatores não operam de forma isolada na dinâmica populacional. Alguns autores mencionados por Damiani (1998) entendem que aspectos sociais, como os direitos trabalhistas durante o período da industrialização, foram fundamentais na redução das taxas de mortalidade da população europeia: [...] a mortalidade teria sofrido um descenso antes da socialização das grandes conquistas médicas (vacinas, assepsia hospitalar, anestesia, descoberta de grande número de vírus e bacilos, ou dos antibióticos às vésperas da Segunda Guerra Mundial). [...] a redução da jornada de trabalho, a instituição das férias e do seguro social para os trabalhadores e a revolução tecnológica nas formas de produção, com as máquinas e equipamentos substituindo os homens em certas atividades exaustivas, seriam as responsáveis iniciais pela redução da mortalidade nos países desenvolvidos (DAMIANI, 1998, p. 32). Isso também significa que as taxas de mortalidade, natalidade, fecundidade e migração, em uma perspectiva histórica e contemporânea, são indicadores sensíveis às condições sociais de uma população (DAMIANI, 1998). Ou seja, os elementos da dinâmica populacional se relacionam diretamente com o desenvolvimento socioeconômico de um país ou região. Por essa razão, devem ser mutuamente articulados nos processos de análises, sempre considerando as condições de educação, moradia, renda, desenvolvimento social e humano de uma realidade geográfica. 2.3 Relação entre geografia populacional e geografia econômica Considerando que as dinâmicas populacionais estão sempre relacionadas aos aspectos econômicos, produtivos e políticos da sociedade, fica explícito que não podemos trabalhar o tema da geografia populacional de forma dissociada das questões econômicas. O objetivo desta disciplina é analisar a dinâmica populacional em uma perspectiva espacial, considerando fatores múltiplos, como a própria sociedade, técnica, tecnologia, trabalho, sistema de produção, natureza, entre outros elementos sócio 12 espaciais. Nesse sentido, a geografia econômica desempenha um papel importante, na medida em que busca compreender de que forma as relações econômicas — entre fatores de produção (espaço, trabalho e capital) e agentes econômicos (produtores e consumidores) — em diferentes escalas se materializam e se movem pelo espaço, produzindo-o e transformando-o (CLAVAL, 2012). A geografia, como sabemos, passou por distintas fases em sua base epistemológica, incorporando diferentes perspectivas teóricas, como a regional, quantitativa, crítica e pós-moderna. Consequentemente, os estudos geográficos focados em problemáticas econômicas acompanharam a trajetória da disciplina. Na segunda metade do século XIX, geografia econômica clássica utilizava o método descritivo para retratar as áreas e fluxos de produção (CLAVAL, 2012) e, do ponto de vista demográfico, preocupou-se em realizar esboços quantitativos da distribuição da população sobre o espaço: “É comum a utilização da representação cartográfica dessa repartição, dos mapas — por pontos e signos volumétricos proporcionais —, e do cálculo das densidades de população por quilômetro quadrado, em unidades de superfície de diferentes tamanhos” (DAMIANI, 1998, p. 49). Nesse sentido, os estudos populacionais em geografia apresentavam pouco caráter analítico, da mesma formaque não consideravam a dimensão humana e histórica do processo de distribuição populacional. Sendo assim, não explicavam a diversidade sócio produtiva do espaço (por exemplo, a diversidade cultural de uma população e o potencial econômico de um lugar) e sua relação com as dinâmicas de concentração e dispersão populacional. O paradigma clássico da geografia econômica também enfocou as potencialidades econômicas dos recursos naturais e, partir disso, suas transformações e uso pelas atividades humanas (CARVALHO; FILHO, 2017). Em sua relação com a geografia populacional, passou a avaliar em que medida esse potencial econômico poderia influenciar o nível de densidade de ocupação populacional em determinada área. No entanto, a disciplina não considerava inúmeras variáveis — sobretudo as históricas, técnicas, sociais e produtivas — que poderiam afetar as formas de ocupação e uso do solo, como as próprias técnicas empregadas pelas pessoas para explorar o potencial produtivo e econômico de um lugar (DAMIANI, 1998). 13 Posteriormente, orientada pelo paradigma da economia espacial, a geografia econômica se debruçou sobre o tema da localização das atividades econômicas, especialmente as industriais, considerando o impacto destas sobre o espaço em que vivemos (CLAVAL, 2005; 2012; CARVALHO; FILHO, 2017). Segundo Damiani (1998, p. 50), na antiga União Soviética da primeira e segunda metade do século XX: [...] a geografia da população é considerada como um ramo da geografia econômica, no estudo da interligação dos processos econômicos e demográficos. O estudo da implantação das empresas e das unidades territoriais de produção criadas liga-se estreitamente à análise da repartição dos habitantes no território nacional, da composição e do dinamismo desses grupos. No entanto, foi em sua vertente mais crítica que a geografia econômica passou a dialogar com os estudos populacionais em uma perspectiva não apenas quantitativa, mas também qualitativa, considerando aspectos históricos, culturais, sociais e políticos. Nessa fase, as pesquisas trataram da localização de atividades agrícolas e industriais. Surgiu a divisão dos espaços urbanos, para funções produtivas e funções residenciais. Essa nova perspectiva originou o desenvolvimento de uma teoria das migrações humanas e contribuiu para a compreensão de situações onde se buscava rendas mais altas e também atividades de lazer. A geografia econômica passou a tratar de escolhas residenciais, de segregações urbanas e do turismo (CARVALHO; FILHO, 2017, documento on-line). Tal disciplina evidentemente não se isolou das transformações sociais ocorridas no mundo na segunda metade do século XX — crise econômica, aumento populacional, urbanização, globalização — e tampouco deixou de acompanhar as marés teóricas das ciências sociais e humanidades para dar conta das novas problemáticas emergentes. Portanto, passou a incorporar abordagens críticas diversas — economicista, marxista, alternativas (CLAVAL, 2005) — para interpretar um novo momento marcado pela mediação tecnológica e informacional das relações econômicas e espaciais. Com isso, as discussões sobre mobilidade — de informação, mercadorias, tecnologias, pessoas — ganham força. O pensamento geográfico orientado pelo marxismo, por exemplo, parte da premissa de que as relações econômicas e de produção incidem profundamente no espaço. De acordo com autores como David Harvey (1980) e Neil Smith (1988), o espaço geográfico é gerado a partir da produção de mercadorias e das relações sócio produtivas 14 dentro do sistema capitalista que produz e reproduz desigualdades sociais, econômicas e espaciais. Em uma perspectiva demográfica, sabemos que a população se configura também como força de trabalho, produtora e consumidora de bens e serviços, contribuindo para a reprodução do sistema de produção capitalista e sua lógica espacial, ao mesmo tempo em que é atingida por essa estrutura. Fenômenos como a migração, por exemplo, podem ser motivados por questões econômicas, como crise de desemprego e declínio de um estado de bem-estar social. A mortalidade, por sua vez, encontra-se diretamente relacionada às condições socioeconômicas da população, tanto que autores como Damiani (1998) preferem tratá-la de forma diferencial, visto que atinge predominantemente a população mais pobre. Além disso, a geografia é capaz de explicar — tanto de uma perspectiva econômica quanto espacial — fenômenos como o êxodo rural e a urbanização. Esses são fenômenos complexos impulsionados pelo processo de modernização da agricultura, caracterizada pela transformação fundiária e da base técnica da produção agrícola, e também pela industrialização, que, como vimos, contribuiu para o crescimento populacional nas cidades, por meio da natalidade e migração. Essa realidade, embora tenha afetado diversos países, é a marca das realidades condicionadas pelo que entendemos por subdesenvolvimento: Se no discurso sobre o subdesenvolvimento a migração era um elemento secundário de análise, e era ressaltado o crescimento vegetativo, natural, segundo a literatura em ciências sociais, especialmente a partir dos anos 60, houve uma inversão: o crescimento natural aparece como subordinado à análise da migração. Neste momento, a migração rural-urbana definia-se como fundamental (DAMIANI, 1998, p. 41). Em suma, entendemos que a relação empírica entre as dinâmicas populacionais e econômicas é notória e necessita ser trabalhada interdisciplinarmente e com a devida seriedade. De modo similar, a trajetória de construção do conhecimento na geografia demonstra que os fenômenos espaciais estão inter-relacionados e que nenhuma disciplina geográfica deve ser desenvolvida e abordada de forma isolada. Vimos as diferentes fases e motivações para o crescimento populacional ao longo do tempo, considerando as diferenciações geográficas entre países e regiões globais. Historicamente, todas as fases de aceleração e redução do crescimento populacional 15 foram afetadas por questões sociais e econômicas, como a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, avanços na medicina e melhorias nas condições sanitárias no século XX e avanços no desenvolvimento socioeconômico em nível mundial. Nesse sentido, percebemos que essa relação direta entre aspectos socioeconômicos e dinâmica populacional tem sido abordada pela geografia econômica, a partir de enfoques regionais, quantitativos e críticos, desde o século XIX, época da sistematização e consolidação da geografia enquanto ciência. Essa trajetória epistemológica também é marcada pela fundação da disciplina de geografia populacional na metade do século XX, que tem incorporado novos enfoques teóricos (como os estudos críticos e culturais), a fim de dar conta do caráter multidimensional das dinâmicas populacionais. 3 A GEOGRAFIA DA POPULAÇÃO: ENFOQUES CONTEMPORÂNEOS Os estudos populacionais passaram, ao longo do tempo, por diferentes transformações em suas bases teóricas e metodológicas. Essas mudanças estão relacionadas aos enfoques das diferentes áreas do conhecimento, como ciências sociais, geografia, história, demografia, economia, bem como às problemáticas demográficas identificadas na sociedade em nível mundial. Com isso, percebemos uma diversidade de temas, variáveis, indicadores, análises e interpretações mobilizados para dar conta da complexidade que marca a dinâmica populacional contemporânea. 3.1 O papel dos estudos populacionais Os estudos populacionais compreendem diversas áreas do conhecimento que possuem a população como objeto de estudo. Mas o que é a população? Para responder essa pergunta, precisamos estabelecer uma distinção entre o que entendemos por pessoas e por população. De acordo com estudos realizados por Dantas, Morais e Fernandes (2011), quando falamos em pessoas, estamos nos referindo ao âmbito individual equando falamos em população, estamos nos referindo ao coletivo, ou melhor dizendo, à sociedade. Desse modo, o que vincula o indivíduo à população ou à sociedade 16 são questões estruturais e institucionais, como as práticas sociais, classes sociais, as leis, o trabalho, entre outros fatores (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Historicamente, a população sempre foi tema de discussão política ou intelectual. No campo da geografia, ao longo dos séculos XIX e XX, ela foi considerada a primeira forma de abordagem a fenômenos humanos complexos (DAMIANI, 1998). Nesse sentido, além de uma categoria analítica, a população é compreendida como um conjunto de relações sociais e espaciais, mediada por fatores diversos, como as estruturas, as instituições, os valores humanos e culturais, a economia, a natureza e o próprio espaço. Sua dinâmica complexa e sua permanência nos estudos geográficos possibilitaram a consolidação da disciplina de geografia da população na segunda metade do século XX (SILVA; FERNANDES, 2016), definida, na época, como: [...] a ciência que trata dos modos pelos quais o caráter geográfico dos lugares é formado por um conjunto de fenômenos de população que varia no interior deles através do tempo e do espaço, na medida em que seguem suas próprias leis de comportamento, agindo uns sobre os outros e relacionando-se com numerosos fenômenos não demográficos (ZELINSKY, 1974, p. 17) No entanto, entendemos que a geografia não possui exclusividade nos estudos populacionais. A população, como categoria de análise, é abordada a partir de distintas perspectivas que variam de acordo com a área de estudo, assim como as ferramentas teóricas e metodológicas em jogo (DAMIANI, 1998). Por essa razão, o papel que os estudos populacionais desempenham vai variar segundo o interesse de cada disciplina. Na geografia, por exemplo, sabemos que o estudo populacional busca explicar espacialmente os fenômenos demográficos; nas ciências sociais, porém, os estudos populacionais giram em torno da compreensão das relações sociais em determinados contextos históricos, econômicos e políticos e como estas podem afetar a dinâmica demográfica. A antropologia, por sua vez, vai se preocupar com o tema da cultura, dos hábitos e das relações que as populações estabelecem com o meio em que vivem e transformam (MORMUL, 2013). Por fim, a demografia dedica-se às análises tanto quantitativas quanto qualitativas da dinâmica populacional, constituindo uma disciplina fundamental para o desenvolvimento dos estudos populacionais em outras áreas. Com isso, embora existam componentes básicos que são transversais aos estudos populacionais em diferentes ciências — número de nascimentos, mortes, migração, 17 estrutura etária —, eles são utilizados e interpretados para alcançar o objetivo do campo de estudo em questão. Além disso, devemos entender que a função dos estudos populacionais varia não apenas de acordo com o campo de estudo, mas é afetado e transformado pelas circunstâncias históricas e políticas. Para entender essa relação, tomemos a ciência geográfica como exemplo. Percebemos que a trajetória da geografia é marcada por diferentes paradigmas que se consolidam por razões tanto científicas quanto políticas. Um exemplo claro disso é a geografia regional, que se forma em um contexto político e ideológico marcado acima de tudo pelos conflitos territoriais protagonizados por autoridades francesas e germânicas no século XIX (DOMINGUES, 1985). Assim, os estudos populacionais em geografia regional se dedicavam a temas como a relação entre a população e recursos, população e produtividade, assim como número de pessoas que constituíam uma nação (GEORGE, 1955 apud DAMIANI, 1998). A geografia teorética, por sua vez, direcionava seus estudos populacionais à compreensão quantitativa da distribuição populacional. Após a Segunda Guerra Mundial, os estudos populacionais adquiriram maior relevância em virtude do aumento das taxas de natalidade, o que, associado às reduções na mortalidade, provocou um crescimento demográfico em escala mundial. “Tanto os capitalistas queriam entender a dinâmica populacional para identificar as potencialidades e vulnerabilidades para a economia quanto os socialistas queriam fundamentar os seus planos econômicos” (SILVA; FERNANDES, 2016, p. 2). Ademais, como as ciências — a exemplo da própria geografia e das ciências sociais — eram financiadas principalmente pelas autoridades estatais, seus estudos (entre esses os demográficos) objetivavam atender aos interesses políticos e territoriais do Estado. Durante a década de 1950, geógrafos como Glenn Trewartha, Jacqueline Beaujeu-Garnier e Wilbur Zelinsky se dispuseram a argumentar sobre o papel que os estudos populacionais deveriam desempenhar na geografia, defendendo, é claro, suas afiliações teóricas e metodológicas; Trewartha e Beaujeu-Garnier vinculados à geografia regional e Zelinsky à quantitativa, corrente teórica mais apreciada nas décadas de 1950 e 1960 (SILVA; FERNANDES, 2016). Para Zelinsky (1974), os estudos populacionais na geografia deveriam priorizar a compreensão da relação entre a dinâmica populacional e 18 o espaço geográfico, em seus aspectos sociais, econômicos, políticos, técnicos, tecnológicos. Ao final do século XX, com o fortalecimento das correntes críticas da geografia, as atribuições associadas aos estudos populacionais passaram a adquirir maior complexidade, dando conta de questões históricas, políticas, econômicas e socioculturais. Em defesa de um maior comprometimento com os fenômenos sócio espaciais, Damiani (1998) argumenta que os estudos demográficos não devem se limitar aos aspectos quantitativos, também buscando compreender as relações estabelecidas entre os diferentes elementos que compõem o comportamento populacional sobre o espaço. Além disso, devem entender quais são os resultados dessas relações na produção e transformação do espaço e como a própria dinâmica espacial pode influenciar as práticas sociais das populações. Mormul (2013), ao estabelecer uma relação entre a geografia da população e a geografia humana, defende que os estudos populacionais precisam considerar o contexto histórico no qual as relações humanas e sócio espaciais são produtoras e produtos. Os estudos populacionais, neste sentido, possuem a responsabilidade não apenas de apresentar os dados demográficos vinculados a crescimento vegetativo, mortes, nascimentos e estrutura etária, mas também de investigar e problematizar o que está por trás desses dados e quais são suas explicações do ponto de vista histórico-geográfico. Agora, quando tomamos como exemplo os anais do Encontro Nacional de Estudos Populacionais de 2018 (CAMPOS et al., 2018), percebemos que não se trata exclusivamente de estudos estatísticos, mas de trabalhos dedicados a estudar realidades marcadas por aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. Sendo assim, as informações referentes a natalidade, mortalidade, migração, crescimento vegetativo e estrutura etária não são estáticas, mas relacionais, retratando conjunturas complexas. Por essa razão, entendemos que no contexto atual o papel dos estudos populacionais tem sido de investigar, analisar e interpretar a relação população–espaço em sua heterogeneidade e, no limite, de fornecer subsídios para a elaboração de projetos de desenvolvimento social em diferentes escalas — local, regional e nacional. 19 3.2 Componentes importantes para o estudo de populações Compreendemos que a população é um objeto de estudo bastante complexo que movimenta questões materiais, simbólicas, objetivas, subjetivas, estruturais, espaciais, entre outras, e que para compreendê-la a partir de suas múltiplas dimensões temos de percorrer um caminho analítico que parta de categorias de análises mais básicas rumo às mais complexas (DAMIANI,1998). Ao afirmarmos, por exemplo, que atualmente a população no Brasil diminuiu em virtude de melhorias nas condições socioeconômicas das famílias, precisaremos deixar claro em que consistem essas condições socioeconômicas e de que forma ocorreram essas melhorias, para, finalmente, entender seu impacto na vida das famílias e no baixo crescimento demográfico. Isso também significa que os estudos populacionais são multidisciplinares e realizam-se a partir de conceitos já desenvolvidos em estudos urbanos, políticos, econômicos, sociais, territoriais, entre outros, como os conceitos de “segregação” (qual é o nível educacional de uma população residente em um bairro de baixa renda?), “desenvolvimento” (quais características socioeconômicas a demografia de um país deve apresentar para alcançar um alto nível de desenvolvimento humano?) e “desigualdade” (qual é o impacto das desigualdades socioeconômicas na expectativa de vida de uma população?). Com base nessas considerações, para que os estudos populacionais, independentemente da área de estudo, possam cumprir seu papel, é necessário considerar alguns aspectos básicos (analíticos e empíricos). Mas que aspectos são esses? Os aspectos sociais, socioeconômicos e políticos. Com isso, vamos especificar quais são os impactos desses fatores na dinâmica e estrutura populacional, bem como nos estudos demográficos. 3.2.1 Aspectos sociais A estrutura social pode ser compreendida como um sistema de organização social, constituído pelas relações sociais, políticas, institucionais e econômicas que estabelecemos uns com os outros. Essas relações são mediadas por normas e recursos (regras, leis, meios de produção, tecnologias) que são mobilizados e corroborados em 20 nossas ações sociais repetitivas. O entrelaçamento dessas relações constitui o que o sociólogo Giddens (1984) chama de sistema social. Para o autor, as sociedades, em suas relações e práticas recursivas, legitimam as dinâmicas institucionais, reforçando as estruturas. As estruturas são simultaneamente potencializadoras e limitadoras da ação humana. Em outras palavras, nós, como atores sociais, reforçamos as estruturas, ao mesmo tempo em que temos nossas ações determinadas por elas. Mas afinal, qual é a relação disso tudo com as dinâmicas e os estudos populacionais? A estrutura social é um componente importante para os estudos populacionais, pois permite investigar qualitativamente como as relações sociais, as instituições e as práticas recursivas da sociedade afetam e são afetadas pela dinâmica e estrutura populacional. Podemos avaliar o impacto dos aspectos estruturais (políticos, institucionais e econômicos) de um Estado na dinâmica populacional por meio de uma diferenciação de gênero entre a população ocupada (que está trabalhando) e a população desocupada (que não está trabalhando, mas encontra-se disposta a trabalhar) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014). A partir disso, poderemos questionar: existe uma discrepância entre homens e mulheres quando examinamos o percentual de população ocupada no país? Caso exista, como ela pode ser descrita, analisada e explicada? Independentemente da área de estudo, os aspectos sociais estão sempre presentes nos estudos populacionais, seja de forma explícita nos estudos de natureza qualitativa — os quais geralmente realizam uma análise da estrutura social em questão —, seja de forma implícita, a exemplo dos estudos quantitativos, em que os dados numéricos são priorizados na análise, mas retratam uma realidade social que pode ser examinada. Além disso, ainda que existam características transversais entre as sociedades, ou seja, elas são organizadas por Estados, instituições, leis e normas, e cada sociedade também apresenta suas especificidades históricas, políticas, culturais e geográficas que não devem ser desconsideradas nos estudos demográficos. 21 3.2.2 Aspectos socioeconômicos Os aspectos socioeconômicos também estão vinculados à estrutura social, mas, de uma forma mais precisa, correspondem às questões sociais e econômicas que influenciam a qualidade de vida da população, além de revelar a dinâmica de desenvolvimento de um país. Vamos iniciar com um exemplo: se a média da população brasileira tiver amplas possibilidades de reprodução social e econômica, possuindo boa renda, trabalho com segurança, acesso à educação e saúde de qualidade, sua qualidade de vida aumenta. Em termos demográficos, essa realidade é refletida no aumento da expectativa de vida no Brasil e, consequentemente, no seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH foi desenvolvido a partir do conceito de desenvolvimento humano, preconizado pelo economista Amartya Sen. Esse conceito se constrói com o objetivo de questionar a perspectiva de desenvolvimento voltada apenas para o crescimento econômico de um país. Com isso, o desenvolvimento humano corresponde à ampliação das capacidades e oportunidades que as pessoas têm e podem adquirir ao longo de sua vida para se realizarem de acordo com os seus desejos, considerando outros aspectos além do econômico, como culturais, políticos e sociais (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Podemos nos perguntar novamente: o que isso tem a ver com os estudos populacionais? O IDH considera múltiplas variáveis demográficas, como a população total, urbana, rural, residente masculina e residente feminina, estrutura etária da população (número de jovens, adultos e idosos), taxa de envelhecimento, taxa de longevidade, mortalidade, fecundidade, entre outros elementos capazes de explicar a estrutura e a dinâmica de uma população. A partir disso, busca analisar a evolução desses dados ao longo do tempo — se diminuíram, se aumentaram, assim como as causas e efeitos dessas transformações. Em termos quantitativos/qualitativos, o IDH também avalia a educação de um país, considerando o fluxo escolar por faixa etária, além das expectativas de anos de estudo, bem como renda per capita, concentração de renda, taxa de atividade, desocupação, habitação e vulnerabilidade social, além de considerar 22 todos esses aspectos a partir dos diferenciais raciais e de gênero (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011). Em suma, trata-se de um índice bastante denso, que contém distintos indicadores e dados oriundos de profundas pesquisas demográficas. A partir disso, também podemos considerar que o componente socioeconômico é importante para os estudos populacionais, pois mobiliza variáveis — como educação, trabalho, renda per capita, escolaridade e moradia — que são comumente trabalhadas em áreas de economia, economia política, ciências sociais, geografia e saúde coletiva, que, por sua vez, permitem avaliar de forma mais circunstanciada a dinâmica demográfica de dada realidade social. 3.2.3 Aspectos políticos As questões políticas também estão estreitamente vinculadas aos aspectos mencionados anteriormente, pois é por meio das instituições governamentais que são pensadas as estratégias de desenvolvimento social para garantir melhor qualidade de vida à população. Programas habitacionais, de transferência de renda e de erradicação da fome e extrema pobreza, entre outras políticas públicas, podem, futuramente, contribuir para o desenvolvimento humano em nível nacional. Agora, como isso pode influenciar a dinâmica populacional do país? Para responder essa pergunta, podemos considerar o seguinte exemplo: um sistema de saúde de determinado país consegue elaborar uma política de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de acessibilidade e uso de métodos contraceptivos. O questionamento que um estudo populacional pode realizar a partir disso é: que impacto essa política exercerá sobre as taxas de fecundidade, natalidade e mortalidade? O crescimento populacional cairia? Entraria em estabilidade? De que forma essa políticaafetaria a qualidade de vida da população? Também sabemos da existência de autoridades estatais que realizam práticas de intervenção direta na dinâmica populacional, no sentido de pensar políticas de planejamento familiar, visando o controle de natalidade, como foi o caso da China entre o final da década de 1970 e 2015. O país conseguiu exercer, por 36 anos, um rigoroso 23 controle do crescimento populacional impondo a política do filho único. O resultado dessa política, somado, é claro, a outros aspectos socioeconômicos e sociais — como a ascensão do estilo de vida urbano, melhorias nas condições econômicas das famílias, acesso à educação de qualidade, autonomia financeira e conquistas de direitos reprodutivos pelas mulheres, etc. —, foi o baixo crescimento populacional já a partir da década de 1970 (YANG; WANG, 2016). Com isso, as projeções futuras têm indicado redução da população jovem, aumento da população idosa e redução da população economicamente ativa (YANG; WANG, 2016). Com este cenário, o Estado chinês resolveu finalizar a política do filho único. Nesse contexto, os questionamentos produzidos pelos estudos populacionais podem ser: quais são os fatores envolvidos nos processos de tomada de decisão das famílias em relação a ter um ou mais filhos? Em que medida é aceitável política ou moralmente intervenções governamentais sobre as escolhas que afetam a dinâmica econômica, social e emocional de uma família? Qual será o impacto econômico na China caso as projeções demográficas se confirmem? Enfim, são diversas e pertinentes as interrogações que podem surgir ao considerarmos os componentes políticos nos estudos populacionais. 3.3 A importância da diversidade de gênero, de etnia e de cultura Do ponto de vista antropológico, a cultura pode ser concebida como “[...] uma teia de significados tecida pelo homem. Essa teia orienta a existência humana. Trata-se de um sistema de símbolos que interage com os sistemas de símbolos de cada indivíduo numa interação recíproca” (GEERTZ, 2003, p. 39). Nesse sentido, nossas ações individuais e sociais também são práticas culturais, que transformam o espaço que produzimos e vivemos. No âmbito geográfico, o giro cultural emergiu a partir da corrente crítica da geografia e direcionou sua crítica à modernidade e seu determinismo econômico para explicar os processos sociais e espaciais. Com isso, o giro cultural defende que os processos sócio espaciais (entre eles os demográficos) estão estreitamente relacionados à cultura, que também atravessa as relações de classe, raça e gênero (NARVÁEZ MONTOYA, 2014). Os estudos de Campos et al. (2018), por 24 exemplo, buscam compreender os padrões de mobilidade (migração) entre os grupos indígenas no Brasil, considerando tanto aspectos culturais (práticas sociais e de relação com a terra) quanto socioeconômicos (renda, região de domicílio, etc.). Além disso, a partir da perspectiva cultural na geografia, a cultura também passa a desempenhar um papel relevante na compreensão das formas de reprodução do capitalismo na sociedade (ÁLVAREZ GALLEGO, 2014). Nessa linha, busca compreender, por exemplo, como nos relacionamos com o trabalho produtivo e com o consumo. Considerando os estudos populacionais, a relação entre os aspectos culturais, de gênero e etnia é fundamental, pois, por meio de análises de variáveis comuns como renda, trabalho, mortalidade e expectativa de vida, é possível compreender que a população não é homogênea, apresentando diferenciações socioeconômicas, orientadas pelas questões raciais, culturais, de gênero e classe. Nesse sentido, se nos dedicarmos a compreender a população em um nível pormenorizado, perceberemos que as pessoas estão inseridas em contextos econômicos, sociais e culturais específicos, comportando- se de distintas formas ou afetadas em diferentes graus pelos mesmos problemas sociais. Por essa razão, são necessárias abordagens teóricas e metodológicas sensíveis a essas realidades e que forneçam subsídios para pensar, no debate público, projetos de desenvolvimento social, a fim de atenuar as desigualdades que podem ser agravadas e reforçadas pelas já mencionadas estruturas sociais. Retomando nossos exemplos, sabemos que o indicador “renda”, comumente utilizado para avaliar o índice de desenvolvimento humano em diversos países, varia conforme o grupo social, considerando que a população é compartimentada de acordo com as condições socioeconômicas das pessoas (estratificação social). Mas você sabia que existe no Brasil uma diferença significativa de renda entre homens e mulheres? Considerando o caso do Rio Grande do Sul, a renda per capita para o ano de 2010 entre as mulheres foi de R$704,32, enquanto para os homens foi de R$711,98 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Também é possível notar uma diferença em relação ao rendimento médio por pessoas ocupadas, que para as mulheres foi de R$1.055 e para homens, de R$1.555,29 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). 25 A diferença na taxa de desocupação e grau de formalização das pessoas ocupadas também é evidente: mulheres com 6,33% e homens com 3,08% (taxa de desocupação para o ano de 2010); e 65,44% para mulheres e 67,13% para homens (grau de formalização para o ano de 2010), respectivamente. Outra informação interessante e que dialoga com os dados apresentados é o nível educacional das pessoas ocupadas: 49,57% das mulheres ocupadas têm ensino médio completo (12,9% superior completo) e 38,88% dos homens ocupados têm ensino médio completo (9,5% superior completo) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Mas como os dados referentes ao nível educacional dialogam com essa discrepância de renda? É exatamente essa pergunta que os estudos populacionais em diversas áreas tentam responder. Nas ciências sociais, são discutidos os impactos que as estruturas sociais exercem sobre essa dinâmica, com seus valores culturais herdados de uma época recente em que, segundo as teorias neoclássicas do trabalho, as mulheres eram pouco aptas para as atividades produtivas, em virtude da maternidade e de sua aptidão “natural” ao cuidado da família (DEGRAFF; ANKER, 2004). De acordo com a teoria neoclássica, a racionalidade dos trabalhadores faz com que eles busquem trabalhos de acordo com suas capacidades e interesses. No caso das mulheres, essa teoria aponta para a preferência por cargos com salários iniciais altos, com baixo retorno de experiência e com flexibilidade nos horários de trabalho, de forma que sejam permitidas saídas temporárias, pois as mulheres são consideradas responsáveis pelo trabalho de reprodução social na casa (atividades domésticas e de cuidado familiar) (DEGRAFF; ANKER, 2004). Igualmente, os empregadores esperam que as mulheres gerem maiores custos empregatícios (o que muitas vezes é incorreto), devido a uma percepção generalizada de que, devido às responsabilidades familiares, as mulheres apresentam maior absenteísmo, maior impontualidade e maior rotatividade. Desta maneira, cria-se um círculo vicioso inter geracional no qual a participação na força de trabalho diferenciada por sexo e a segregação ocupacional por sexo são, ao mesmo tempo, os principais determinantes e as principais consequências da desigualdade no mercado de trabalho baseada no gênero (DEGRAFF; ANKER, 2004, p. 166). Esses valores, que são culturais, relacionais, socialmente construídos e adquiridos, se perpetuam e se transformam ao longo do tempo, com algumas rupturas — 26 hoje em dia, um número cada vez maior de mulheres tem ensino superior e ocupa cargos de autoridades — e algumas continuidades — a população feminina ainda recebe salários menores em comparação à masculina, e as donas de casa, responsáveis pelo trabalho de reprodução social, são categorizadas como “População EconomicamenteInativa”. Como se não bastasse, considerando a dimensão étnico-racial, se tomamos as mesmas variáveis que utilizamos para interpretar a desigualdade de gênero, veremos que a situação não apenas permanece, como se agrava. Ainda considerando o recorte espacial do Rio Grande do Sul, no ano de 2010 a renda per capita entre a população negra gaúcha foi de R$558,81 e entre a população branca, R$1.038,03; os rendimentos médios entre a população ocupada foram de R$875,06 (população negra) e de R$1.414,51 (população branca). A taxa de desocupação foi de 6,43% para negros e 4,22% para brancos; e o grau de formalização foi de 64,21% (negros) e 66,84% (brancos). As informações mais impressionantes são relacionadas à longevidade e à mortalidade: a expectativa de vida ao nascer é de 74,2 anos para negros e de 75,8 anos para brancos; já a mortalidade infantil é de 14,3% (negros) e de 11,8% (brancos) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Ademais, o Atlas da Violência dos anos de 2017, 2018 e 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revela que, em escala nacional, a população jovem negra é a principal vítima de homicídios no Brasil. Ou seja, a taxa mortalidade, componente básico para avaliar a dinâmica populacional, é maior para essa categoria social. A realidade das mulheres negras — considerando uma intersecção entre os componentes étnico-raciais e de gênero — é bastante semelhante: A desigualdade racial pode ser vista também quando verificamos a proporção de mulheres negras entre as vítimas da violência letal: 66% de todas as mulheres assassinadas no país em 2017. O crescimento muito superior da violência letal entre mulheres negras em comparação com as não negras evidencia a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalidade de suas políticas públicas (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2019, p. 39) Outro estudo, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais em 2015, apontou que, entre os anos de 2003 a 2013, o percentual de homicídios de mulheres negras aumentou 54% (WAISELFISZ, 2015, p. 30). A partir de uma breve 27 interpretação desses dados, podemos retomar a definição de taxas de mortalidade em uma perspectiva diferencial, como aponta Damiani (1998). Para a autora, é fundamental considerar as taxas de mortalidade estratificadas por condições socioeconômicas. Assim, para interpretarmos os referidos dados demográficos, podemos considerar o diferencial em termos de gênero e raça — questionando sobre as razões que explicam essa significativa discrepância entre as taxas de mortalidade e renda entre a população negra e branca no país — e em termos de localização, incluindo outras populações racializadas como os indígenas. E a partir daí, podemos vislumbrar quais são as ações possíveis para reduzir esse quadro de desigualdade social e qual é o papel dos estudos populacionais nesse processo. Enfim, consideramos importante evidenciar que a relação étnico-racial e de gênero nos estudos populacionais não deve cumprir o papel de “ornamento teórico”, no sentido de apenas reconhecer a diversidade social. Como foi possível perceber nas considerações apresentadas nesta seção, estamos falando de problemas estruturais e concretos da sociedade que devem ser analisados com a devida seriedade e cuidado. São problemáticas de natureza demográfica, social, geográfica, histórica, etc., a partir das quais o estudo populacional, revisitando suas atribuições nos estudos geográficos do século XIX, constitui uma importante forma de aproximação para interpretar esses fenômenos complexos (DAMIANI, 1998). 4 A TEORIA MALTHUSIANA DO CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO Quando falamos sobre teorias demográficas, Thomas Malthus ainda permanece entre os intelectuais mais mencionados. Apesar de inúmeros questionamentos e críticas à sua proposição teórica, ela serviu de inspiração para a construção do pensamento econômico clássico, para a retomada das discussões demográficas após a Segunda Guerra Mundial, para discussões sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento e para as críticas ambientalistas da década de 1970. 28 4.1 Contexto da teoria populacional formulada por Malthus É importante deixar claro que todo conhecimento produzido nas áreas de ciências sociais e humanidades é construído a partir da observação de alguma realidade. Nesse sentido, as hipóteses e teorias são situadas no tempo e no espaço; são desenvolvidas e comunicadas por alguém em determinado lugar, em determinado período e de acordo com os valores socioculturais de determinada época. Podemos ilustrar essa afirmação com um exemplo. A teoria do capital de Karl Marx (1818–1883) foi desenvolvida a partir de sua observação e análise das transformações sociais (como a separação do trabalhador dos meios de produção e a agudização das desigualdades socioeconômicas) e produtivas (como os processos de acumulação de capital e inovação tecnológica que afetaram as dinâmicas de trabalho operário) ocorridas com o fortalecimento do modo de produção industrial na Inglaterra do século XIX. Sendo assim, entendendo que “o conhecimento não nasce independente do movimento real da vida” (DAMIANI, 1998, p. 12), analisaremos, antes de mais nada, o contexto histórico no qual foi desenvolvida a teoria populacional formulada por Thomas Robert Malthus (1766– 1834). Na segunda metade do século XVIII, dois eventos históricos ganhavam corpo na Europa: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. O ambiente de ideias características do Iluminismo colocava o problema da pobreza na pauta de debates. Assim, vários pensadores sociais de época surgiram com não menos numerosas explicações para o fenômeno da pobreza (SOUZA; PREVIDELLI, 2017, documento on-line). Entre o final do século XVIII e início do século XIX, o processo de industrialização na Europa levou à substituição do trabalho manufaturado — isto é, realizado por pessoas utilizando equipamentos artesanais — por maquinários, destituindo muitos trabalhadores de seus postos de trabalho. Além disso, o frequente uso de mão-de-obra considerada mais barata, como a infantil e a feminina, em determinadas fases da produção industrial agravou a situação de fragilidade socioeconômica do operariado, gerando descontentamento entre os trabalhadores (DAMIANI, 1998). Esse período também é marcado pela primeira fase do crescimento populacional na Europa, em que houve um aumento significativo no contingente demográfico, 29 vinculado à referida Revolução Industrial. Esta, associada à Revolução Agrária — definida pela transformação na estrutura fundiária e modernização da agricultura, com o uso de insumos e novas tecnologias produtivas —, transformou a dinâmica populacional europeia a partir da intensificação da migração no sentido campo–cidade, bem como pela urbanização e aumento nas taxas de natalidade, visto que muitas famílias escolhiam ter mais filhos, pois estes poderiam constituir mão-de-obra fabril. É interessante entender que as teorias malthusianas não surgem apenas em um contexto sócio produtivo, mas em um momento de efervescência intelectual e política, no qual emergem diferentes formas de pensar e interpretar a realidade da época, definida pela industrialização, pela acumulação de capital por grupos sociais restritos e pela intensificação das desigualdades socioeconômicas. Nesse mesmo contexto, surgem críticas sociais por parte de intelectuais dedicados a compreender os processos de desigualdade oriundos do sistema de produção capitalista que vinha se fortalecendo desde o século XVI na Europa. Entre os intelectuais contemporâneos de Malthus que também abordavam a questão da expansão demográfica, podemos destacar os filósofos Marquês de Condorcet (1743–1794) e William Godwin (1756–1836). Esses teóricos defendiam uma sociedade igualitária, na qualos trabalhadores não deveriam ser separados dos meios de produção, possuindo, portanto, autonomia produtiva. Godwin e Condorcet indicavam que uma das características primordiais do capitalismo consistia nessa separação entre trabalhadores e seus meios de subsistência. Esse processo ocorreu na Europa entre os séculos XIV e XVIII, convertendo os agricultores em trabalhadores livres, que poderiam vender sua força de trabalho. Segundo Damiani (1998), tal processo viria a ser interpretado por Karl Marx no século XIX como processo de acumulação originária, considerada a gênese do próprio capitalismo (DAMIANI, 1998). De acordo com Marx, foi a partir desse processo de separação entre trabalhadores e os meios de produção que foram se aprofundando e se agudizando os problemas de desigualdades sociais, visto que uma pequena parcela da população acabava detentora dos meios de produção para a acumulação de capital, enquanto uma significativa maioria tinha de vender sua força de trabalho para sobreviver em condições miseráveis. Décadas antes, no entanto, Godwin e Condorcet já denunciavam as mazelas 30 vividas pela população inglesa, compreendendo que somente uma sociedade igualitária seria capaz de resolver a situação de miséria vivida naquele momento (DAMIANI, 1998). Sendo assim, para esses intelectuais, a expansão demográfica não era considerada um problema que poderia agravar a situação de miséria e fome. Pelo contrário, seguindo a tendência do Iluminismo a respeito da relação população e riqueza, segundo eles, uma população maior seria capaz de aumentar a produção e gerar mais riqueza. Em virtude dessa postura, o economista Thomas Malthus os considerava “excessivamente otimistas” (SOUZA; PREVIDELLI, 2017). Para Malthus: [...] uma sociedade igualitária estimularia nascimentos, dessa forma estendendo a todos a pobreza. A luta pela sobrevivência, nessas condições, faria triunfar o egoísmo. Malthus discorda, inclusive, da assistência do Estado aos pobres, considerando-a nefasta, porque, diminuindo a miséria a curto prazo, favorece o casamento e a procriação dos indigentes (DAMIANI, 1998, p. 14). A miséria, para ele, não era encarada como um problema, mas como um obstáculo positivo ao acelerado processo de crescimento populacional, que, segundo Malthus, comprometia uma relação equilibrada entre o tamanho da população e a produção dos meios de subsistência, ou seja, de alimentos. Para ele, a miséria funcionaria como um fator de regulação natural, responsável por reequilibrar duas forças desproporcionais: a multiplicação da população e a produção dos meios de subsistência. Para explicar sua posição teórica e política, em 1798 ele escreveu o ensaio intitulado “Essay on the principle of population” (Ensaio sobre o princípio da população), material que posteriormente, em 1803, seria republicado com novas considerações a respeito da população: “escrita nos contextos históricos da Revolução Francesa e Revolução Industrial, a obra dialoga diretamente com as ideias de transformação social da primeira e os problemas de distribuição de riqueza da segunda” (SOUZA e PREVIDELLI, 2017, documento on-line). 4.2 Aspectos históricos da teoria malthusiana No início do século XIX, Malthus concentrou-se na produção de alimentos para discutir a relação entre a pobreza e as condições de subsistência da população. Sua tese central, publicada em seu ensaio a respeito do princípio da população, defendia que o 31 problema da fome e da miséria tinha como principal causa o excedente populacional. Dessa forma, argumentava que: [...] há um fundo de subsistência que só depende do trabalho agrícola e, a partir do valor desse fundo, é definida a condição para se ter mais ou menos filhos. Para ele, quando a produção agrícola é maior, aumenta o valor monetário do fundo, o que acarreta um “estímulo ao crescimento populacional”; assim os trabalhadores poderiam oficializar a união mais jovens, quando a taxa de fertilidade é maior, consequentemente o número de filhos por casal também aumentaria. De maneira análoga, caso o valor do fundo diminua, há um desestímulo ao casamento precoce e, assim, uma diminuição na taxa de crescimento populacional (BIFFI; DA SILVA; TRIVIZOLI, 2018, documento on- line). Para fundamentar o que ele chamava de princípio da população, Malthus recorreu aos modelos matemáticos para afirmar que a população crescia a um ritmo geométrico (1, 2, 4, 8, 16...), enquanto a produção de alimentos, a um ritmo aritmético (1, 2, 3, 4, 5…). Sendo assim, se a população cresce em ritmo mais acelerado que a produção de alimentos, o resultado não poderia ser outro: fome e miséria. [...] o crescimento natural da população, que é determinado pela paixão entre os sexos, excede a capacidade da terra para produzir alimentos para o homem. A dificuldade da subsistência exerce uma forte e constante pressão restritiva, sentida em um amplo setor da humanidade: os mais pobres ficam com a pior parte e a menor parte, convivendo com a fome e a miséria (DAMIANI, 1998, p. 13). Desse modo, ele encarava a situação de miséria pela qual passavam as populações mais pobres como uma barreira ao crescimento populacional, que acabaria contido com ações positivas: [...] que seriam a fome, a miséria, as epidemias, catástrofes naturais, desnutrição e guerras, que aumentariam a mortalidade; e os obstáculos preventivos, no que pregava as famílias serem formadas mais tarde ou terem seus filhos só após poderem se sustentar; esses obstáculos diminuiriam a natalidade, sem a necessidade dos obstáculos positivos entrarem em ação (MARTINS; PIMENTEL, 2014, documento on-line). Nesse caso, a miséria — caracterizada pelo desemprego, fome, condições de saúde precárias, etc. — apresentava duas funções importantes. Além de reduzir a população, fosse pelo adoecimento e morte ou pela redução de matrimônios e número 32 de filhos, ela motivava os produtores a aumentarem a produção de alimentos para abastecer a população crescente (DAMIANI, 1998; BIFFI; DA SILVA; TRIVIZOLI, 2018). Agora, “quanto à produção de alimentos, ela não é ilimitada. Varia segundo a existência de espaços cultiváveis, fertilidade do solo, disponibilidade dos empreendedores para se voltarem a essa atividade etc.” (DAMIANI, 1998, p. 14). No caso europeu, Malthus entendia que a produção de alimentos estaria mais comprometida devido à escassez de terras cultiváveis e à primazia dada à produção manufaturada e, posteriormente, industrial, as quais, apesar de enriquecer uma nação, como defendia o economista Adam Smith, não a abasteceria com alimentos para sustentar uma população cujo crescimento se tratava de um impulso natural (DAMIANI, 1998). No entanto, estudos como os Souza e Previdelli (2017), dedicados a compreender em profundidade a teoria desenvolvida por Malthus em diálogo com seu contexto social e histórico, entendem que as referidas teses produzidas a respeito das dinâmicas populacionais e sua relação com a capacidade produtiva de um país — a exemplo de Godwin, Condorcet e Malthus — apresentavam uma insuficiente base empírica, visto que as informações demográficas disponíveis no século XVIII e XIX eram bastante escassas e pouco precisas, pois foi exatamente nessa época em que se realizaram os primeiros censos (SOUZA; PREVIDELLI, 2017). Ademais, no que concerne à teoria de Malthus sobre a relação desigual entre população, produção de alimentos e pobreza, os autores afirmam que tinha pouco fundamento matemático: Ainda que, nessa primeira edição, Malthus não tivesse realizado sequer um cálculo aproximado a partir de dados demográficos, ou mesmo uma demonstração algébrica de sua tese central, ela era boa demais para ser descartada pelos defensores do capitalismo industrial. Colocados contra a parede pelos críticos das consequências da Revolução Industrial — que viam a pobreza crescer à margem do progressomaterial de sua época — tais apologistas agarraram-se à tábua de salvação malthusiana, atribuindo a causa da pobreza ao excesso de pobres, e, em última análise, ao destempero demográfico das classes menos favorecidas (SOUZA; PREVIDELLI, 2017, documento on-line). Segundo o acadêmico canadense Steven Pinker (2018), é verdade que a teoria malthusiana não se confirma quando aplicada a qualquer período histórico mais recente. Em sua análise, porém, o período da história humana que se estende dos primórdios de nossa espécie até o início do século XIX pode, a bem da verdade, ser chamado de: 33 Era Malthusiana, quando eventuais avanços na agricultura ou na saúde eram logo anulados pelo resultante aumento da população — apesar de “era” ser um termo estranho para designar 99,9% do tempo de existência da nossa espécie. A partir do século XIX, porém, o mundo encontrou a Grande Saída, termo do economista Angus Deaton para designar a libertação da humanidade de seu legado de pobreza, doença e mortalidade precoce (PINKER, 2018, p. 78–79). De acordo com o autor, a partir da época da “Grande Saída”, percebeu-se que a população humana não necessariamente deve crescer a uma taxa geométrica, porque: [...] quando as pessoas se tornam mais ricas e mais bebês sobrevivem, elas passam a ter menos filhos. [Além disso], descobrimos que o estoque de alimentos pode crescer geometricamente quando se aplica conhecimento para aumentar a quantidade de gêneros capaz de ser extraída de um pedaço de terra (PINKER, 2018, p. 101–102). No entanto, no contexto europeu, o cenário de desenvolvimento econômico do modelo industrial, somado à modernização da agricultura, que expandiu a produção de alimentos, foi acompanhado, ao final do século XIX e início do século XX, por um baixo crescimento populacional. Ou seja, as melhorias na produção dos meios de subsistência, assim como nas situações socioeconômicas da população, evidenciaram uma estabilização no número de filhos presentes nas famílias europeias. Apesar desse contexto levantar questionamentos sobre a teoria populacional malthusiana, ela foi retomada na segunda metade do século XX por abordagens demográficas que buscavam problematizar a relação entre recursos disponíveis em nível mundial e a explosão demográfica ocorrida especialmente nos países latino-americanos, asiáticos e africanos (DAMIANI, 1998). 4.3 A teoria malthusiana no contexto populacional atual A teoria populacional malthusiana foi desenvolvida em um contexto espaço- temporal específico, ou seja, na Europa do final do século XVIII e início do século XIX, período marcado por uma transição na base produtiva (manufatura → indústria) e por um alto crescimento populacional. Além disso, de acordo com os intelectuais socialistas da época (Fourier, Marx, Godwin), as considerações malthusianas sobre a relação entre pobreza e expansão demográfica correspondiam às visões políticas e intelectuais 34 estreitamente vinculadas ao sistema econômico capitalista. Malthus seria, para esses teóricos socialistas, um defensor da economia burguesa — que vinha se fortalecendo desde o século XVII, atingindo sua expressão máxima com o capitalismo industrial do século XIX (DAMIANI, 1998). A partir disso, podemos nos perguntar: a teoria malthusiana é relevante para o contexto populacional atual? Apesar de questionada, a teoria populacional malthusiana inspirou algumas conceitualizações no pensamento econômico, como a lei dos rendimentos decrescentes, desenvolvida pelo economista David Ricardo. Segundo essa lei, a contratação de mais trabalhadores por uma indústria contribuiria para seu rendimento produtivo e econômico até certo limite. A partir de então, esse rendimento tenderia ao declínio e não seria necessária a incorporação de mais trabalhadores na produção (DAMIANI, 1998). A relação dessa lei econômica com a teoria demográfica malthusiana é reforçada a partir da interpretação de que tanto a produção agrícola quanto a industrial seriam incapazes de dar conta de um contingente populacional excessivo. Por essa razão, reforça-se a necessidade de controle do aumento demográfico. A teoria malthusiana também foi reelaborada logo após a Primeira Guerra Mundial, em virtude da baixa natalidade da população europeia. De acordo com Damiani (1998), o entendimento da época era de que o fraco crescimento populacional na Europa, com a redução na presença de jovens, estava comprometendo o desenvolvimento produtivo e econômico. Com isso, foi valorizada a concepção de crescimento ótimo de população, segundo a qual deveria existir um limite para o crescimento demográfico, em que tanto a insuficiência quanto o excesso no número de habitantes poderiam comprometer a disponibilidade de recursos (econômicos, produtivos, técnicos, etc.) para garantir boa qualidade de vida à população (DAMIANI, 1998). Além disso, também após a Segunda Guerra Mundial a teoria malthusiana foi retomada com nova roupagem e identificada como neomalthusianismo, o qual, direcionando suas análises aos países subdesenvolvidos, buscava avaliar a relação entre a quantidade (crescente) de habitantes e a capacidade dos meios de subsistência e recursos naturais de um território (DAMIANI, 1998), considerando as novas questões sociais e econômicas do momento, como o alto crescimento populacional global e o desenvolvimento do meio técnico, 35 científico e informacional. Na perspectiva ambientalista, destacam-se os teóricos Paul Ehrlich e Garrett Hardin (CORAZZA; ARAÚJO, 2009). Em linhas gerais, segundo a perspectiva neomalthusiana, o subdesenvolvimento de países latino-americanos, africanos e asiáticos está diretamente vinculado à sua população excedente, que compromete seu crescimento econômico. Ou seja, de acordo com os neomalthusianos, a condição de subdesenvolvimento desses países é resultado de seu excessivo contingente populacional. Por essa razão, seriam necessárias políticas de controle de natalidade em tais realidades. A partir dessas considerações, perguntamos: qual é o problema dessa abordagem? O problema é que, assim como sua ideia original, essa nova perspectiva malthusiana desconsiderou a complexidade das dinâmicas sociais, econômicas e políticas em escalas nacionais e globais. Segundo Damiani (1998), tais dinâmicas são mediadas por históricas relações de poder entre países ricos e pobres; por relações coloniais que, em alguns países africanos, ainda se mantinham na década de 1950; pelos interesses econômicos das empresas privadas (especialmente as farmacêuticas) — maximização de seus lucros — que se beneficiaram com as políticas de planejamento familiar (controle de natalidade) e de esterilização em massa da população pobre, implementadas em países como Índia e Colômbia. A partir dessas considerações, entendemos que, apesar de sua insuficiência argumentativa e empírica, como apontavam seus críticos, as teorias malthusianas e neomalthusianas contribuíram em ações políticas concretas, a exemplo da Grande Fome da Irlanda (1845–1849) e das referidas políticas de controle de natalidade nos países subdesenvolvidos na segunda metade do século XX. Por outro lado, fecharam os olhos às novas lógicas de consumo descontrolado (especialmente nos Estados Unidos e Europa, após a Segunda Guerra), que se ampliaram em escala mundial (DAMIANI, 1998). Nesse sentido, partindo das reflexões de Lefebvre (1978 apud DAMIANI, 1998), de que as ideologias se originam do real interpretado e representado, Damiani (1998) entende que: [...] o malthusianismo e o neomalthusianismo têm um fundamento real, mas podem ser, de tal forma, mutilantes como interpretação, que acabam obscurecendo o entendimento. Mais ainda, eles justificam ações e situações. São 36 análises de caráter geral, especulativo, que ao mesmo tempo representam interesses definidos, limitados, particulares (DAMIANI,
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