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Unidade II 218 Unidade II 5 TOXICOLOGIA OCUPACIONAL E DE MEDICAMENTOS Este tópico será dividido em duas partes. Na primeira, abordaremos a toxicologia ocupacional, ou seja, você terá a oportunidade de compreender melhor como pode ocorrer a exposição e a intoxicação no ambiente de trabalho e também como é possível prevenir a intoxicação do trabalhador. Na segunda, abordaremos a toxicologia de medicamentos. Como foi possível você compreender, o medicamento é um agente exógeno e, por conseguinte, depende da forma pela qual o organismo se expõe a ele, pode haver o rompimento da homeostase e, consequentemente, o aparecimento de sinais e sintomas de intoxicação. Neste tópico ainda teremos a satisfação de trabalhar juntos a maneira de se realizar o diagnóstico da intoxicação por alguns medicamentos, bem como apresentar e compreender a importância dos antídotos no tratamento da intoxicação. 5.1 Toxicologia ocupacional Iremos agora expor algumas informações, para que possamos compreender o raciocínio toxicológico na esfera ocupacional. 5.1.1 Introdução Desde os primórdios, houve exposição dos trabalhadores a substâncias químicas, material biológico ou agentes físicos, mas nem sempre foi dada a devida atenção à saúde do trabalhador. Antes da Revolução Industrial, a exposição das pessoas a substâncias potencialmente tóxicas estava associada à própria subsistência. Em vários momentos da história, as atividades profissionais foram realizadas por escravos, ou seja, pessoas que eram dominadas por outros povos e submetidas a atividades insalubres, fato que perdurou até o final do século XIX. Para que você tenha dimensão do que representou a exposição ocupacional a agentes potencialmente tóxicos, no séc. IV a.C., Hipócrates identificou a intoxicação pelo chumbo na produção mineradora (SANTOS et al., 2004). Plínio, o Velho (23–79 d.C.), observou que, na tentativa de reduzir a exposição ao chumbo, trabalhadores utilizavam bexigas do trato urinário de animais como máscaras (KATO; GARCIA; WÜNSCH FILHO, 2007), e na Europa, a partir do século XII, as universidades já realizavam experimentos associados à higiene ocupacional, na tentativa de compreender melhor como aconteciam as intoxicações no ambiente de trabalho e preveni-las (SANTOS et al., 2004). Georgius Agricola (1494–1555) estudou entusiasticamente doenças ocupacionais de mineradores. Ele descreveu com bastante detalhe para a época os danos que aconteciam com os mineradores em diferentes situações e concluiu que, durante a extração de minério, quando as minas estavam mais secas que úmidas, havia liberação de poeira que, associada à baixa umidade do ar, penetrava na traqueia, e TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 219 quando corrosivas, “devorava” os pulmões. Nas minas das montanhas dos Cárpatos, havia mulheres que se casaram com sete maridos, todos com morte prematura pela exposição à poeira tóxica, nas mineradoras (HOOVER, 1950). Bernardino Ramazzini (1633–1714) foi um médico italiano que dedicou praticamente toda sua vida profissional à medicina ocupacional. Escreveu o livro sobre doenças ocupacionais e higiene industrial, De morbis artificum diatriba (Doenças dos trabalhadores) (FRANCO; FRANCO, 2001). Em 1767, George Baker (1722–1809) observou que as epidemias de cólicas saturninas ocorridas durante o século XVII estavam associadas aos efeitos gastrintestinais causados pela exposição ao chumbo presente na sidra, o vinho feito de maçã (RIVA, 2012). Se por um lado a Revolução Industrial trouxe aspectos positivos como as transformações econômicas, políticas e sociais, além do aprimoramento científico e tecnológico, por outro lado, homens, mulheres e crianças trabalhavam, moravam e viviam em condições precárias, nessa época. Os salários eram baixos, a jornada chegava a 18 horas por dia e havia, inclusive, castigos físicos. O trabalhador não tinha direito algum! Como havia muitas faltas ao trabalho com consequente baixa de produção, começou a haver a intervenção governamental. As leis associadas à saúde do trabalhador e à medicina do trabalho começam a surgir nesse período, ou seja, no início do séc. XIX. Mas você poderia perguntar: e o Brasil, como se posicionava do ponto de vista de legislação ocupacional nesse momento histórico? O trabalhador era destituído de valor. O trabalho índio foi substituído pelo escravo negro, e apenas no início do séc. XX o país conseguiu alguma projeção industrial, sobretudo após as duas grandes guerras. Esse breve histórico lhe foi trazido à luz para que você tenha uma dimensão temporal de quando a saúde do trabalhador começou minimamente a ser respeitada, no Brasil. Foi apenas durante o Estado Novo, em 1943, que houve a Consolidação das Leis do Trabalho, e com ela a Medicina do Trabalho e a Engenharia de Segurança passaram a ser fundamentais na prevenção das doenças ocupacionais (MACHADO, 2016). Saiba mais Você encontrará mais informações sobre o estudo das doenças dos trabalhadores em As doenças dos trabalhadores, que é uma tradução para o português do De morbis artificum diatriba. RAMAZZINI, B. As doenças dos trabalhadores. 4. ed. São Paulo: Ministério do Trabalho; Fundacentro, 2016. O termo intoxicação exógena está associado ao rompimento da homeostasia, o que é caracterizado pelo aparecimento de sinais e sintomas causados no referencial biológico que se expõe a um ou mais diferentes toxicantes. Esse desequilíbrio é representado pelas manifestações clínicas ou laboratoriais. Unidade II 220 Sob a perspectiva epidemiológica, de todos os 695.825 casos de intoxicação exógena relatados no Brasil entre os anos de 2007 a 2016 (veja a figura a seguir), 43.736 foram de origem ocupacional, ou seja, 6,7% dos casos de intoxicação ocorreram no ambiente de trabalho. Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul Brasil 2007 0 40 80 120 20 60 100 140 2009 2011 Ano Co efi ci en te d e in ci dê nc ia (p or m il ha bi ta nt es ) 2013 20152008 2010 2012 2014 2016 Figura 115 – Coeficiente de incidência (por mil habitantes) dos casos notificados de intoxicação exógena relacionada ao trabalho no Brasil, por região, de 2007 a 2016 Excetuando-se a região Sul, em todas as demais regiões houve aumento do número de casos de intoxicação ocupacional, no Brasil, a partir de 2013. Na região Sul, esses números aumentaram a partir de 2015 (BRASIL, 2018a). O trabalhador pode se expor no ambiente de trabalho a substâncias químicas como inseticidas, metais pesados, agentes metemoglobinizantes, gases e vapores tóxicos e outras substâncias ou produtos potencialmente tóxicos. O gênero masculino (veja a tabela a seguir) apresenta prevalência superior ao feminino, em termos de intoxicação ocupacional, no Brasil. Tabela 5 – Distribuição da frequência dos casos notificados de intoxicação exógena relacionada ao trabalho, segundo dados sociodemográficos: Brasil (2007–2016) Características N % Sexo 43.712 Masculino 28.214 64,5 Feminino 15.498 35,5 Raça/cor da pele 42.539 Branca 19.809 46,6 Preta 2.553 6,0 Parda 13.257 31,2 Ignorada 6.449 15,2 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 221 Características N % Outras 471 1,1 Escolaridade 38.007 Analfabeto 525 1,4 Ensino fundamental completo 3.102 8,2 Ensino fundamental incompleto 11.994 31,6 Ensino médio completo 6.668 17,5 Ensino médio incompleto 3.213 8,5 Ensino superior completo 1.011 2,7 Ensino superior incompleto 634 1,7 Ignorado 10.860 28,6 Fonte: Brasil (2018a). Lembrete Substâncias de caráter lipofílico atravessam membranas biológicas a favor do gradiente de concentração, sem gasto de energia, por difusão lipídica. Deve-se levar em consideração a crescente participação das mulheres no ambiente de trabalho, com destaque para as lactantes e gestantes. O lactente que é amamentado do leite de uma mãe que se expõe ocupacionalmente a substâncias químicas de caráter lipofílico pode também estar sendo exposto ao xenobiótico, pelo leite materno. A exposição vertical pode levar à teratogenicidade,dependendo do período gestacional em que o feto tiver sido exposto, da quantidade de toxicante ao qual foi exposto e do tempo de exposição. Quando se avalia a faixa etária e a escolaridade dos trabalhadores, deve-se considerar que é proibido o trabalho infantil, no Brasil. Ainda assim, a figura a seguir nos traz um gráfico em que é possível identificar a presença de menores no mercado de trabalho, com risco de intoxicação, nos dias atuais, risco esse aumentado quando o nível de escolaridade do trabalhador é baixo, uma vez que a atividade profissional e as medidas de segurança nem sempre são claras, pela dificuldade de leitura ou compreensão das informações dos que pouco estudaram. Feminino Masculino 15 1010 155 200 255 > a 80 71 a 80 61 a 70 51 a 60 41 a 50 31 a 40 21 a 30 11 a 20 5 a 13 n = 42.559 Fa ix a et ár ia % Figura 116 – Distribuição da frequência dos casos notificados de intoxicação exógena relacionada ao trabalho, segundo faixa etária e sexo, no Brasil, 2007 a 2016 Vamos agora unir os pontos da toxicologia? Faremos algumas perguntas. Unidade II 222 Qual é mesmo o conceito de toxicologia? Você se lembrou que é a ciência que estuda os efeitos nocivos causados por uma substância química no organismo humano. E o que significa ocupacional? Está associado ao ambiente de trabalho, também chamado de laboral. Assim, a toxicologia ocupacional é a área da toxicologia que estuda os efeitos nocivos causados pelas substâncias químicas produzidas ou utilizadas no ambiente de trabalho. Você se recorda dos objetivos do estudo da toxicologia? A toxicologia tem como objetivos o diagnóstico, o tratamento e a prevenção da intoxicação. Observação Nesse contexto, dentro dos três objetivos da toxicologia, o mais importante no âmbito ocupacional é a prevenção da intoxicação. As instituições ou empresas devem garantir que a exposição do trabalhador aos xenobióticos seja dentro de limites permitidos e que não leve ao aparecimento de danos aos trabalhadores. Entretanto, uma pequena parte dos trabalhores pode apresentar lesão com algumas substâncias químicas, mesmo quando elas estejam abaixo do limite máximo permitido de exposição. Um menor percentual de trabalhadores pode, inclusive, apresentar agravamento de uma doença preexistente por conta da exposição ocupacional. É por isso que a toxicologia leva em consideração a sensibilidade individual. Assim, a maioria dos trabalhadores deve estar protegida, do ponto de vista de intoxicação, no ambiente de trabalho. Exemplo de aplicação Ocorre-nos mais um questionamento: como é possível prevenir a intoxicação no ambiente de trabalho? Reflita. Para que se previna a intoxicação do trabalhador, são estabelecidas medidas seguras de exposição no ambiente de trabalho, e, para deixar caracterizado que elas existam, realizam-se a monitorização ambiental, a monitorização biológica e a vigilância da saúde. Vamos compreender melhor esses conceitos? O termo monitorização está associado a monitorar, ou seja, medir e comparar o resultado com uma referência apropriada. Permita-nos fazer uma analogia: para que se saiba se está havendo TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 223 aproveitamento, submete-se o aluno a avaliações. Caso as notas obtidas pelo aluno sejam iguais ou superiores ao limite estabelecido pela instituição de ensino, o aluno é aprovado. Ficou mais claro para você o conceito de monitorização? No ambiente de trabalho também se realizam monitorizações. Monitoram-se as substâncias presentes no ambiente de trabalho e no organismo, para estimar o risco de intoxicação durante toda sua vida laboral. A partir de agora, detalharemos como e por que ocorrem essas monitorizações. 5.1.2 Monitorização ambiental Imaginemos o seguinte cenário: um jovem trabalha na refinaria de petróleo. O benzeno, como sabemos, é um dos hidrocarbonetos presente em uma das frações de destilação do petróleo e pode causar danos pela exposição aguda ou crônica no trabalhador, dependendo das condições de exposição. Assim, como que você imagina que seria possível prevenir a intoxicação desse jovem trabalhador da refinaria de petróleo? A primeira situação que tem que ser pensada é identificar e quantificar substâncias químicas presentes no ar que o trabalhador respira, no ambiente de trabalho, e às quais esse trabalhador possa se expor diariamente, por toda a vida laboral (de trabalho), sem risco de intoxicação. Esse processo é denominado monitorização ambiental. Observação Não confunda monitorização ambiental referente ao meio ambiente com aquela realizada no ambiente de trabalho! Ambas possuem o mesmo nome, mas ocorrem em ambientes diferentes. Assim, a monitorização ambiental é a medida ou quantificação de uma substância química no ambiente de trabalho, ou seja, no ar que o trabalhador respira, para saber se está dentro dos limites permitidos pela legislação. Isso significa monitorar: medir a quantidade de um xenobiótico presente no ar e comparar os resultados obtidos com uma referência adequada (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). É possível o trabalhador se expor ao benzeno e, ainda assim, não apresentar efeitos tóxicos? Sim, é possível! Para isso, faz-se necessário que os limites de exposição ocupacional (LEO) sejam respeitados. O mnemônico LEO é muito utilizado na toxicologia. Ele se refere à máxima quantidade de um xenobiótico presente no ar presente no ambiente de trabalho a que a maioria dos trabalhadores pode se expor diariamente, por toda sua vida laboral, sem risco de intoxicação. Unidade II 224 Você poderia se perguntar após esse preâmbulo: de onde vêm essas informações, ou seja, se cada substância química apresenta um LEO diferente, como poderíamos saber qual é o LEO de cada uma das milhares de substâncias químicas utilizadas ou produzidas no ambiente de trabalho? Esse é um dos maiores desafios associados à toxicologia ocupacional. Essas informações advêm de estudos toxicológicos realizados em animais e extrapolados para humanos. Esses ensaios toxicológicos demandam vários anos para serem realizados e consomem milhões de dólares para cada uma das substâncias químicas. Não é qualquer um que realiza esses experimentos! Há a necessidade de uma grande quantidade de experts para realizá-los. Após esse grande investimento financeiro, conduzido por profissionais com bastante experiência na sua execução, conclui-se qual é o LEO para cada uma das substâncias químicas presentes no ambiente de trabalho. Caso o trabalhador apresente alguma lesão por conta da exposição ocupacional, a empresa empregadora responde por isso, legalmente. Renomadas agências internacionais estabelecem os limites de exposição ocupacional. Como os limites de exposição ocupacional advém dessas agências, muitas vezes utilizamos o mnemônico internacional de quem publicou os resultados. Assim, o LEO pode ser escrito como threshold limit value, em inglês; consequentemete, seu mnemônico é TLV. Dessa forma, LEO apresenta o mesmo significado que TLV: o primeiro é o mnemônio na língua portuguesa e o segundo, na inglesa. Em instantes veremos quais são as agências internacionais que normalmente realizam esses ensaios toxicológicos. Saiba mais Sugerimos, entusiasticamente, que você leia a obra a seguir: BUSCHINELLI, J. T. Manual de orientação sobre controle médico ocupacional da exposição a substâncias químicas. São Paulo: Fundacentro, 2014. Como a obtenção desses limites de exposição ocupacional demandam anos para serem realizados, massa crítica e milhões de dólares (para cada substância química!), essas agências ou instituições permitem que o Brasil compile essas informações, ou seja, as utilize com autorização. Exemplo de aplicação Há poucas décadas, quando um parente, amigo ou vizinho se aposentava, não ficávamos muito felizes. Reflita sobre isso. Para muitos desses, dependendo de onde trabalhava, a aposentadoria significava que não viveria muito tempo, diferentemente do que acontece atualmente, pois a expectativa de vidado brasileiro aumentou significativamente nas últimas décadas. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 225 Mas por que há essa diferença entre os que se aposentavam no Brasil há algumas poucas décadas e a realidade atual? Vamos contextualizar para que você compreenda melhor a linha do tempo da aplicação da legislação trabalhista brasileira e dos princípios toxicológicos no dia a dia das pessoas. Dependendo das condições de exposição, o asbesto ou amianto pode causar danos ao trabalhador, como o mesotelioma, câncer característico da exposição a essas fibras. Centenas de trabalhadores foram intoxicados pelo asbesto em uma fábrica de telhas que utilizava o amianto como matéria-prima na cidade de Osasco (WÜNSCH FILHO; NEVES; MONCAU, 2001). Saiba mais Sugerimos que você leia mais sobre os danos causados pelo asbesto no organismo humano em: INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER. Amianto. Brasília, 2018. Disponível em: https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/amianto. Acesso em: 16 nov. 2020. Consegue entender melhor por que é necessário haver uma legislação trabalhista vigente que aplique os conceitos toxicológicos? Para evitar perda de produtividade, absenteísmo (ausência no trabalho) e, principalmente, agravos à saúde e mortes prematuras do trabalhador. Vamos, agora, entender algumas instituições que realizam ensaios toxicológicos com o cerne ocupacional. A American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH) é um comitê norte-americano de toxicologistas ocupacionais que recomenda que deva haver limites de exposição ocupacional denominados de threshold limit values. A norte-americana Occupational Safety and Health Administration (OSHA), ou Administração de Segurança e Saúde do Trabalho (em tradução livre), adota outra terminologia para o limite de exposição ocupacional: o limite de exposição permitido, ou permissible exposure level (PEL). Isso quer dizer que a ACGIH e a OSHA possuem os mesmos propósitos, mas com independência entre elas. Dessa forma, realizam ensaios toxicológicos e os disponibilizam para que outros países compilem seus dados, ou seja, utilizem essas informações, mediante autorização dessas instituições. Há outras instituições que também realizam os mesmos ensaios toxicológicos (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). O TLV ou o PEL utilizados por países que compilam os dados norte-americanos devem atentar à jornada, ou seja, à carga horária semanal, e utilizar fatores de correção em relação aos números que nos são disponibilizados. No Brasil, o LEO também é chamado de limite de tolerância (LT). Unidade II 226 O Brasil compila dados da ACGIH, com algumas adaptações, como o fator de correção exposto anteriormente. Para efeito de legislação, o Ministério do Trabalho publicou a Norma Regulamentadora n. 15 (NR-15), de 1978. Observação Como o anexo 11 da NR-15/1978 preconiza os limites de exposição para até 48 horas semanais, faz-se necessário aplicar um fator de correção a 78% de seus valores. Como é virtualmente impossível estabelecer o LEO para todas as substâncias potencialmente tóxicas utilizadas ou presentes em processos industriais, a OMS sugere que sejam priorizadados os estudos dessas substâncias. Observe que, caso haja uma maior exposição ao asbesto em um dia de trabalho, o funcionário da empresa não morrerá imediatamente por conta disso, ou seja, o problema associado ao asbesto não se relaciona à exposição aguda, mas, sim, à crônica. Dentro desse contexto, dividem-se os limites de exposição ocupacional (TLV) segundo o risco de intoxicação. 5.1.2.1 ACGIH-TLV-TWA Embora possa parecer uma “sopa de letras”, nos permita explicar essas abreviações. ACGIH, como exposto anteriormente, é a conferência norte-americana que estabelece limites de exposição ocupacional. O termo TLV tem o mesmo significado que LEO, ou seja, limite de exposição ocupacional, e o mnemônico TWA advém do inglês time weighted avarage, ou seja, média ponderada pelo tempo. O que significa, então, a ACGIH-TLV-TWA? É um parâmetro de monitoramento ocupacional associado à exposição crônica. Significa que ao longo da jornada pode haver um ou mais picos de exposição da substância química, mas, ainda assim, não há risco de intoxicação para o trabalhador, uma vez que a média de exposição ao longo do dia não terá sido ultrapassada. Esse parâmetro de monitorização ambiental está associado à média de exposição ao longo da jornada, sem se preocupar se houve uma ou mais sobrexposições à substância química ao longo do dia, desde que, obviamente, o limite denominado de TWA não seja ultrapassado no final do dia de trabalho. Observação Quando se escreve jornada, deve-se subentender trabalho ao longo de um dia. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 227 Exemplo de aplicação Por que o trabalhador pode se expor a uma significativa quantidade da substância química ao longo da jornada e ainda assim não há risco de intoxicação? Não há risco de intoxicação porque a substância não ultrapassou o TLV-TWA e porque ela não apresenta importância na toxicidade aguda, mas, sim, na crônica. Conclui-se, assim, que, quando o toxicante é monitorado pelo TWA (veja a tabela a seguir), significa que pode haver uma ou mais exposições relativamente elevadas ao longo da jornada, mas, caso a média ponderada da exposição não ultrapasse o TWA, não há risco de intoxicação, ao menos para a maioria dos trabalhadores. Tabela 6 – Limites de exposição ocupacional (TWA) por diferentes instituições LEO Substância Número (CAS) LT – MTE – Brasil(*) EUA – TLV – ACGIH(**) EUA – PEL – OSHA(***) EU – OELV (****) UK – WEL(*****) Benzeno - 71-43-2 1 ppm (******) 0,5 ppm 1 ppm 1 ppm(a) 1 ppm Chumbo inorgânico - 7439-92-1 0,1 mg/m3 0,05 mg/m3 0,05 mg/m3 0,15 mg/m3 (a) 0,10 mg/m 3 Clorofórmio - 67-66-3 20 ppm 10 ppm 50 ppm 2 ppm (b) 2 ppm n-hexano - 110-54-3 - 50 ppm 500 ppm 20 ppm (b) 20 ppm Tolueno - 108-88-3 78 ppm 20 ppm 100 ppm 50 ppm(b) 50 ppm (*) Limites de tolerância – Ministério do Trabalho e Emprego, Brasil (**) Threshold limit values – ACGIH, Estados Unidos (sem valor legal) (***) Permissible exposure limit – OSHA, Estados Unidos (com valor legal) (****) Occupational exposure limits value – SCOEL, União Europeia (*****) Workplace exposure limits – HSE, Reino Unido. (******) 1 ppm não é o LT, mas o valor de referência tecnológico (VRT) para o setor de petróleo, sendo de 2,5 ppm o VRT para o setor siderúrgico (a) LEO binding ou obrigatório (b) LEO indicative ou indicativo Adaptada de: Costa et al. (2011). 5.1.2.2 ACGIH-TLV-STEL Há outro parâmetro que é utilizado na monitorização ambiental, no ambiente de trabalho: o ACGIH-TLV-STEL. O acrônimo STEL advém do inglês short time exposure limit, ou seja, limite de exposição a curto prazo ou de curta duração (tradução livre). Esse parâmetro de monitoração ambiental é utilizado para substâncias químicas que possam manifestar narcose, irritação ou dano tecidual irreversível ao trabalhador (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). Imagine o seguinte cenário: uma pessoa trabalha em uma refinaria de petróleo e, de repente, ouve uma sirene de alerta sobre vazamento de substâncias químicas potencialmente tóxicas com risco de intoxicação aguda. Esse trabalhador tem poucos minutos para evacuar a área para que não seja exposto à substância. Unidade II 228 Imagine se, ao procurar a rota de fuga, esse trabalhador apresente um quadro de torpor, ou seja, redução da sensibilidade e do movimento, e não consegue reciocinar rapidamente! Como o trabalhador vai conseguir identificar a rota de fuga e evacuar a área com rapidez se ele não consegue raciocinar e agir de forma célere? Você consegue entender a importância e complexidade de uma monitorização ambiental? Se o funcionário ouve a sirene, mas é hiporeativo e não consegue sair rapidamente do local, pode haver uma grande intensidade de exposição em curto prazo inclusive a outras substâncias e, consequentemente, importante dano ao trabalhador. Também é o caso dodano tecidual irreversível: pode ser que a exposição a essa substância, dependendo das condições de exposição, possa levar a irritação ou lesão tecidual irreversível. Para substâncias químicas utilizadas ou produzidas no ambiente de trabalho que possam causar esses tipos de lesão, o monitoramento ocorre pelo ACGIH-TLV-STEL. Um substância química pode, portanto, ser monitorada pelo ACGIH-TLV-TWA e pelo ACGIH-TLV-STEL ao mesmo tempo, ou seja, caso o trabalhador se exponha ocupacionalmente a substâncias químicas que possam trazer danos ao trabalhador em uma exposição crônica e também a substâncias que possam levar à narcose, irritação ou lesão tecidual irreversível, há as duas monitorizações. 5.1.2.3 ACGIH-TLV-C (ceiling) Há outra situação envolvendo a monitorização ocupacional: há substânicas químicas que apresentam importância na toxicidade aguda, ou seja, dependendo da quantidade da substância a que o trabalhador se exponha, mesmo que por pouco tempo, pode ser fatal. Para essas substâncias, há um outro parâmetro de monitorização ambiental no ambiente de trabalho: é o ACGIH-TLV-C (ceiling) (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). O ACGIH-TLV-C é o parâmetro que indica a concentração de um xenobiótico presente no ambiente de trabalho que em momento algum pode ser ultrapassado durante a jornada. Em caso de acidente como vazamento de substâncias químicas no local de trabalho com importância na toxicidade aguda, dispara-se a sirene e o trabalhador tem que se retirar imediatamente do local. Você consegue visualizar que, em caso de narcose, além de aumentar o risco de acidente no trabalho, o deslocamento desse funcionário em situação de evacuação do local pode ficar comprometido? É por isso que as empresas precisam trabalhar com a monitorização ambiental, para proteger seus funcionários da exposição excessiva de substâncias químicas com diferentes perfis de toxicidade (VEGA, 2010). 5.1.2.4 Nível de ação Os controles periódicos e médicos são iniciados a partir do nível de ação (NA), obtido quando se divide o limite de exposição ocupacional por 2, onde: TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 229 NA = Nível de ação TLV = LEO = Limite de exposição ocupacional NA = LEO 2 Ao medir a concentração da substância no ar que o trabalhador respira, desde que representativo da zona respiratória do trabalhador (veja a figura a seguir), caso o resultado seja inferior ao nível de ação dessa substância, interpreta-se que não esteja havendo uma significativa exposição do trabalhador. Figura 117 – Dinâmica de amostragem pessoal no ambiente de trabalho Segundo a Norma Regulamentadora n. 9 do Ministério do Trabalho, de 1978 (NR-9/1978 – MT), valores acima do NA indicam que, para que se minimizem os riscos de intoxicação ocupacional, devem ser tomadas ações preventivas referentes ao Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais (PPRA) (BRASIL, 1978). Sabemos que a monitorização ambiental monitora a exposição do funcionário no ambiente de trabalho. Mas vamos refletir sobre os seguintes cenários: todos os trabalhadores apresentam o mesmo metabolismo? Todos os funcionários se movimentam exatamente da mesma forma, ao longo da jornada, ou seja, todos os trabalhadores ficam sentados ou caminham no local de trabalho exatamente pelo mesmo tempo? Exemplo de aplicação Continue seguindo o raciocínio e reflita sobre a pergunta: se para a mesma quantidade de substância química presente no ar, no ambiente de trabalho, há um trabalhador que se movimenta bastante e outro que fica mais sentado realizando outra atividade, sendo que se expõem à mesma atmosfera de trabalho, ambos apresentam o mesmo perfil de exposição? Unidade II 230 Quando a pessoa se movimenta, ocorre alteração da frequência cardíaca, a ventilação pulmonar aumenta e, consequentemente, ocorre aumento no volume de ar que a pessoa inala. Se há aumento no volume de ar, significa que há mais exposição à substância química presente na atmosfera de trabalho em comparação com um funcionário que fica mais tempo sentado. 5.1.3 Monitorização biológica Como saber se, ainda que a quantidade da substância química presente no ar esteja dentro dos limites preconizados pela legislação, o trabalhador apresenta maior exposição com consequente elevação do risco de intoxicação? É dentro desse contexto que se utiliza da monitorização biológica. Você já sabe que monitorar significa medir algo e comparar esse resultado com uma referência apropriada. No caso da monitorização biológica, mede-se a substância química presente no organismo do trabalhador. É uma forma de garantir que, efetivamente, o trabalhador está sendo monitorado e que, após anos de trabalho, não haverá lesão a esse organismo por conta da exposição ocupacional. Assim, caso o organismo se exponha ao benzeno, tolueno ou xileno, são essas as substâncias químicas que devem ser identificadas e quantificadas no organismo, sendo depois comparadas com uma referência, para saber se o trabalhador apresenta risco de intoxicação? Como vimos anteriormente, muitas substâncias às quais o organismo se expõe são rapidamente biotransformadas e, consequentemente, caso as procuremos no organismo, não mais as encontraremos. Dessa forma, um artifício utilizado para saber se o organismo se expôs ao xenobiótico é determinar a substância química inalterada, produtos de biotransformação ou alterações bioquímicas precoces, em diferentes matrizes biológicas. É por esse motivo que você dedicou grande parte de seu tempo estudando os mecanismos de biotransformação de um toxicante, nos princípios da toxicologia: para que você tenha condição de compreender melhor como se aplicam aqueles conceitos teóricos aprendidos anteriormente, na prática. Observe que até agora não lhe foi exposto o conceito de monitorização biológica. Primeiro, trouxemos conceitos fundamentais desse tópico e os contextualizamos. Agora vamos lhe trazer à luz esse conceito. Monitorização biológica (MB) é a medida de uma substância química inalterada, produto de biotransformação ou alteração bioquímica precoce, presente no sangue, urina, suor, saliva, ar exalado ou outra matriz biológica, capaz de estimar o risco de intoxicação quando se comparam seus resultados com uma referência apropriada (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). Agora fica muito mais fácil a compreensão desse conceito: você sabe o que é uma substância química inalterada, um produto de biotransformação, e em poucos instantes iremos apresentar o que é uma alteração bioquímica precoce. Você sabe que eles podem estar presentes em diferentes matrizes biológicas (sangue, urina, suor, entre outros) e que, quando são quantificados no organismo, podem ser comparados com uma referência apropriada. Mas faltam ainda dois importantes conceitos: bioindicador e referência apropriada. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 231 Indicador biológico de exposição Bioindicador, indicador biológico de exposição (IBE) ou, em inglês, biological exposure limit (BEI) é toda substância química inalterada, produto de biotransformação ou alteração bioquímica precoce, encontrada em diferentes matrizes biológicas como sangue, urina, suor, saliva, ar exalado ou outras matrizes, que seja capaz de avaliar a exposição e o risco de intoxicação, quando se comparam seus resultados com uma referência apropriada. Observação Observe que o conceito de monitorização biológica e bioindicador são bastante próximos, mas não são iguais. Referência apropriada Você se recorda de que o Brasil compila dados da monitorização ambiental da ACGIH? Saiba que nosso país faz o mesmo para a monitorização biológica. A legislação brasileira que versa sobre a monitorização biológica é a Norma Regulamentadora n. 7 do Ministério do Trabalho, de 1978 (NR-7/MT), que determina que, para promover e preservar a saúde dos trabalhadores, toda empresa ou instituição, ao admitir funcionários, deve implementar e elaborar o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO). A NR-7/1978 nos traz conceitosrelevantes como valor de referência (VR), índice biológico máximo permitido (IBMP) e imediatly dangerous to life and health (IDLH) (BRASIL, 2018b). O VR é o maior índice de um bioindicador para um organismo não exposto ocupacionalmente. Por exemplo: se você não se expõe ao benzeno no seu ambiente de trabalho, ou seja, se, entre outras ocupações, você não trabalha como frentista ou em refinaria de petróleo, existe um valor máximo do biondindicador presente no seu organismo que estima a exposição ao benzeno, como o ácido s-fenilmercaptúrico (S-PMA) ou o ácido trans-transmucônico (TTMA), que é o VR (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). Caso você trabalhe em uma refinaria de petróleo ou é frentista em um posto de combustível, você será monitorado pelo IBMP, que é a máxima quantidade de um bioindicador presente no organismo do trabalhador em que se acredita que a maioria dos trabalhadores não apresente risco de intoxicação (BUSCHINELLI, 2014). 5.1.3.1 Tipos de bioindicadores Há três diferentes tipos de bioindicadores: de exposição ou dose interna, de efeito e de suscetibilidade. 5.1.3.1.1 Bioindicador de exposição ou de dose interna Quando o trabalhador se expõe a uma substância química, a identificação dessa substância no organismo reflete a extensão da absorção da substância, ou seja, a substância química agora está no “interior” do organismo do trabalhador, por isso se utiliza o termo dose interna (AMORIM, 2003). Unidade II 232 Ao ser absorvida, nem toda a porção da substância que agora está no organismo do trabalhador atingirá o órgão-alvo. É possível observar na figura a seguir que o afunilamento dessa “pirâmide invertida” significa que, para toda a substância a que o organismo se expõe, apenas uma menor parte tende a atingir o órgão-alvo. Mediação da dose interna ↓ Quantidade absorvida ↓ Quantidade alcança tecido ↓ Quantidade alcança célula ↓ Quantidade alcança macromolécula ↓ Quantidade alcança sítio crítico ↓ Dose biologicamente efetiva Lig aç ão c om e fe ito s Relação com exposição Exposição externa Figura 118 – Representação da intensidade de absorção de uma substância e quantidade do xenobiótico que atinge órgãos-alvo Alguma vez você já entrou em algum local e sentiu aquele cheiro forte de tinta? Alguns, inclusive, podem apresentar intensa cefaleia ao acessar um local cujas paredes tenham sido pintadas recentemente. Esse cheiro forte existe pelas várias substâncias presentes na tinta de parede, inclusive o tolueno. Para saber, por exemplo, se um trabalhador de uma fábrica de tintas de parede apresenta risco de intoxicação pela exposição ao tolueno, substância com meia vida biológica curta, determina-se a presença do ácido hipúrico urinário. Qual é o melhor momento para se coletar a urina do trabalhador para verificar o nível de exposição ao tolueno? Pela manhã? Nesse caso, a coleta da urina coletada deve ser realizada no final da jornada. Existe uma correlação direta entre a exposição ao tolueno e seu produto de biotransformação, desde que a coleta da amostra biológica ocorra no final da jornada. Caso a coleta da urina seja realizada no período da manhã, por exemplo, que é o que a maior parte das pessoas imagina, não haverá a correlação entre a exposição da substância e o bioindicador de dose interna, que é o ácido hipúrico. Assim, o momento da coleta é importante para que não haja erros TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 233 pré-analíticos. É por isso que faz-se necessário conhecer a toxicocinética de cada uma das substâncias químicas a que o trabalhador se expõe. A amostragem deve ser realizada no último dia da jornada semanal para a exposição ao n-hexano, tricloretileno ou outras substâncias químicas de meia vida prolongada, que seja de alguns dias, por exemplo. Essa coleta apresentará uma adequada correlação entre a exposição e a absorção associadas aos últimos dias de trabalho. Você poderia questionar: e se a substância química à qual o trabalhador se expõe tiver uma meia-vida biológica muito elevada, isso afeta o momento da coleta da amostra biológica? Desde que tenha havido um tempo de exposição representativo, o momento da coleta da amostra biológica não é limitante. É o caso do cádmio e chumbo (BRASIL, 2018b). Para que haja a monitorização biológica do cádmio na urina, o trabalhador deve ter sido exposto ao metal por ao menos seis meses (BUSCHINELLI, 2014). 5.1.3.1.2 Bioindicador de efeito O bioindicador de efeito está relacionado aos efeitos precoces que ocorrem no organismo do trabalhador após a exposição ao xenobiótico, e a estratégia é avaliar esses efeitos no organismo, na avaliação de risco do trabalhador (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). Se está havendo efeito, também não está havendo dano ao organismo do trabalhador? Não necessariamente. Há as alterações bioquímicas precoces. Vamos compreender melhor esses conceitos. O termo alteração bioquímica precoce está associado a toda alteração bioquímica que ocorre no organismo causado por uma substância química, mas que seja reversível e, ao mesmo tempo, possa auxiliar na prevenção da intoxicação. Vamos dar alguns exemplos clássicos de alteração bioquímica precoce para que você compreenda melhor e possamos complementar esse conceito. Comecemos pelo monóxido de carbono. Essa substância é produto da queima incompleta da matéria orgânica. Assim, quando há casos de incêndio ou queima de combustíveis fósseis ou do cigarro, o organismo se expõe ao monóxido de carbono. Gostaríamos que você continuasse interagindo e que se submetesse a seguinte reflexão: você acha que tem monóxido de carbono no seu sangue, neste momento? A resposta é sim! Mais uma reflexão: você está intoxicado pela quantidade de monóxido de carbono presente em seu sangue? A resposta é não! Unidade II 234 Lembrete Toda substância química é potencialmente tóxica ao organismo humano e de animais, dependendo das condições de exposição. Pequenos teores de carboxihemoglobinemia (HbCO no sangue) não causam danos ao organismo humano. Quando o organismo se expõe ao monóxido de carbono, essa substância ocupa o sítio de ligação da hemoglobina que deveria se ligar ao oxigênio. Assim, há uma alteração bioquímica, uma vez que, bioquimicamente, a hemoglobina deveria estar ligada ao oxigênio, e não ao monóxido de carbono. Ao mesmo tempo, quando os teores de carboxihemoglobina (HbCO) aumentam, ainda que não haja intoxicação, sinaliza que está havendo o aumento da exposição do organismo a esse gás, ou seja, inicialmente, não há dano no organismo, mas indica que, caso a exposição aumente, pode haver intoxicação. Para você ter dimensão, apenas após 10% de carboxihemoglobinemia é que o organismo apresenta o primeiro sintoma de intoxicação, que é uma ligeira cefaleia. Valores inferiores a 10% de carboxihemoglobinemia são assintomáticos. Entretanto, valores de 3,5% de HbCO, ainda que não causem intoxicação, indicam que o trabalhador está exposto ao gás, acima do limite máximo permitido, no ambiente de trabalho. A HbCO é uma substância química inalterada ou produto de biotransformação? Nenhuma delas é a resposta. É uma alteração bioquímica precoce. Sabe por quê? Porque não é uma substância química inalterada como chumbo no sangue ou cocaína no cabelo e nem produto de biotransformação como o TTMA, que é um dos bioindicadores de exposição ao benzeno. Entretanto, o CO está interagindo com a hemoglobina, impedindo a ligação do oxigênio. Além disso, é capaz de prever a intoxicação (mede-se o teor de HbCO e compara-se com uma referência) e é reversível, ou seja, se o trabalhador apresenta níveis de HbCO de 12% e uma ligeira cefaleia, ao afastar o trabalhador da exposição, os níveis de HbCO tendem a baixar e a cefaleia tende a desaparecer. Ficou mais clara a diferença entre substância química inalterada, produto de biotransformação e alteração bioquímica precoce? Em função da importância das alterações bioquímicas precoces, são necessários mais alguns exemplos clássicos.Metemoglobina Vamos compreender melhor o que é a metemoglobina (MeHb) e quais são os principais sistemas redutores em humanos. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 235 Continuamente, o organismo humano é submetido ao estresse com consequente oxidação direta ou indireta da oxihemoglobina (HbO2) à MeHb, por oxidação do ferro ferroso (Fe 2+) dos anéis pirrólicos do grupamento heme da hemoglobina, a ferro férrico (Fe3+), gerando a MeHb. A oxidação do ferro ferroso dos anéis pirrólicos da hemoglobina impede que o oxigênio se ligue aos eritrócitos e, consequentemente, se reduza o aporte de oxigênio aos tecidos distantes ou remotos. Para se contrapor à oxidação da hemoglobina, ou seja, para reduzir a metemoglobina a oxihemoglobina, o organismo humano possui sistemas redutores, que irão reduzir o Fe3+ da MeHb a Fe2+, restaurando a capacidade de ligação e transporte de oxigênio pela hemácia. Mas como ocorre essa reação de óxido-redução na hemoglobina? • Principais sistemas redutores: — Diaforase I: a diaforase I, também chamada de sistema NADH-citocromob5-redutase, é um sistema enzimático constituído pelo citocromo b5, citocromo b5-redutase e o citocromo P-450. Esse potente sistema enzimático capta elétrons derivados da glicólise NADH dependente. Esse sistema é bem desenvolvido em adultos, mas uma criança de até seis meses de vida não consegue sintetizar esse sistema redutor em sua plenitude. Sendo assim, as crianças são mais suscetíveis à intoxicação por agentes metemoglobinizantes. — Diaforase II: a diaforase II, também denominada de sistema MeHbredutase NADPH-dependente ou DAPH-flavina redutase, é um sistema carreador de elétrons derivado da glicólise NADPH-dependente. O azul de metileno é uma substância exógena capaz de captar o elétron derivado da glicólise NADPH-dependente e, como tem notável afinidade com a MeHb, transporta elétron a esse pigmento e a reduz à HbO2. Restaura-se, assim, a capacidade da hemoglobina de se ligar e transportar oxigênio a tecidos remotos. Agora que nos apropriamos dessas importantes informações, temos condição de compreender que os agentes metemoglobinizantes são capazes de alterar o estado de oxidação da hemoglogina e impedir a transferência de oxigênio aos tecidos remotos. Assim, a MeHb é mais um exemplo de alteração bioquímica precoce e, consequentemente, um bioindicador de efeito (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014). Ácido Δ-aminolevulínico Quando o organismo se expõe ao chumbo, há algumas formas de monitorar esse trabalhador. Uma delas é determinar a presença do ácido Δ-aminolevulínico na urina (Δ-ALA U). O chumbo pode interferir na síntese da heme na medula óssea por ser inibidor enzimático (inibe a enzima Δ-ALA desidratase). Quando isso ocorre, há acúmulo do Δ-ALA no organismo, que é excretado pela urina, uma vez que o Δ-ALA não se transforma em porfobilinogênio. Assim, o Δ-ALA não é uma substância química inalterada, nem produto de biotransformação, mas uma alteração bioquímica precoce, uma vez que está havendo uma inibição de enzima que atuaria Unidade II 236 sobre o Δ-ALA; este se acumula, é excretado na urina e é utilizado para prever a intoxicação. À medida que se identifica e quantifica o Δ-ALA na urina, compara-se esse resultado com a literatura adequada e estima-se o risco de intoxicação. Ainda que eventualmente possa ter havido alguma alteração no organismo por conta da exposição ao chumbo, como a anemia microcítica hipocrômica, quando se retira o trabalhador do ambiente de trabalho e, consequentemente, deixa de haver a exposição ao chumbo, o quadro de anemia tende a desaparecer. Assim, o Δ-ALA U é um bioindicador de efeito. Metalotioneína Outro clássico exemplo de alteração bioquímica precoce é a presença da metalotioneína na urina. Quando o organismo se expõe a metais, como o cádmio, para se proteger, o organismo produz maior quantidade de uma enzima de baixo peso molecular denominada de metalotioneína. Essa proteína se liga a metais, como o cádmio, forma um complexo hidrossolúvel e excreta o metal, impedindo que haja a manifestação de danos renais, uma vez que o cádmio é nefrotóxico. Assim, quando se identifica que há a presença de metalotioneína na urina, significa que o organismo está se expondo a metais. É mais um exemplo de alteração bioquímica precoce e, consequentemente, de bioindicador de efeito. Acetilcolinesterase (AChE) Por fim, a acetilcolinesterase. Quando o organismo se expõe a substâncias químicas inibidoras da acetilcolinesterase, como os praguicidas organofosforados, essa enzima é inibida e, consequentemente, não consegue hidrolisar a acetilcolina, induzindo ao excesso de estímulo colinérgico no organismo. Atente-se que a inibição da acetilcolinesterase não é uma substância química inalterada, nem um produto de biotransformação, mas, sim, uma alteração bioquímica precoce, uma vez que está havendo uma alteração bioquímica (inibição enzimática), que é precoce porque é possível identificar a intoxicação antes de danos irreversíveis e também é capaz de prever a intoxicação, já que se pode comparar os resultados com uma referência apropriada e estimar o risco de intoxicação. Nesse momento, utilizamos os conceitos aprendidos anteriormente, associados à alteração bioquímica precoce. Um bioindicador de efeito é aquele em que ocorre uma alteração bioquímica no organismo do trabalhador. Essa alteração deve ser precoce e reversível, ou seja, quando se identifica que há uma alteração bioquímica precoce, significa que foi possível prever a intoxicação antes de que houvesse um dano irreversível ao trabalhador. O trabalhador deve ser submetido a uma avaliação médica pelo médico do trabalho, com possível afastamento de sua atividade profissional, e realizar tratamento médico caso seja constatada a correlação entre efeitos tóxicos e os níveis dos indicadores biológicos de exposição de dose interna ou de efeito, ou seja, caso haja significado clínico. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 237 Você sabia que fatores ambientais ou até mesmo o alimento pode interferir nos resultados analíticos envolvendo a toxicologia ocupacional? Sim, isso pode acontecer! Observe a seguir. O teor de benzeno e de seus bioindicadores no organismo do trabalhador podem estar associados à exposição dessa substância, que também pode estar naturalmente presente na atmosfera pela liberação em um incêndio florestal de ocorrência natural ou antropogênica. Durante a prática do tabagismo, há a liberação de substâncias químicas, e o fumante ativo ou passivo se expõe ao benzeno liberado pela fumaça do cigarro. Dessa forma, os hábitos do trabalhador, bem como a região em que vive, podem influenciar direta e significativamente nos resultados analíticos e clínicos, pela exposição de substâncias químicas presentes no ambiente de trabalho. Caso uma pessoa more próximo a uma rodovia, por exemplo, inalará monóxido de carbono ao longo de toda a noite de sono. No dia seguinte, os teores de carboxihemoglobinemia estarão associados à exposição ambiental (referente ao meio ambiente), quando a pessoa dormiu inalando elevados teores de monóxido de carbono presente no ar atmosférico, e a ocupacional (trabalha se expondo a essa mesma substância química). Para você ter dimensão de como é complexa a monitorização biológica ocupacional, alimentos como amora, ameixa, morango e até groselha podem interferir no resultado dessa monitorização. Vamos evoluir no raciocínio para que você tenha elementos bioquímicos para compreender por que isso acontece. Quando o organismo se expõe ao tolueno, essa substância é biotransformada em ácido benzoico. Quando o ácido benzoico sofre reação de síntese com a glicina, forma-se o ácido hipúrico. Esse é um dos motivos pelos quais o ácido hipúrico é o bioindicador de exposição ao tolueno. Entretanto, o ácido benzoico está presente naturalmente nos alimentos expostos anteriormente, de forma que o morango, por exemplo, possui ácido benzoico. Isso significa que o ácido benzoicopresente no morango, amora, ameixa ou também na forma de benzoato de sódio como conservante de alimentos é conjugado com a glicina, formando o ácido hipúrico (veja a figura a seguir) pela mesma via metabólica que o ácido benzoico proveniente do tolueno. Ingestão de alimentos Biotransformação Tolueno Ácido benzoico Ácido hipúricoGlicina O+ NH2 CH3 O O O OH OH HO NH Figura 119 – Via metabólica da formação do ácido hipúrico, a partir do tolueno Unidade II 238 Assim, como saber se o ácido hipúrico presente na urina do trabalhador da fábrica de tintas é proveniente do tolueno ou do morango que o trabalhador comeu no dia anterior? É muito difícil chegar a essa conclusão! Ficou mais clara a complexidade quando se estuda a determinação da exposição de um organismo a uma substância química? Observação Você deve conhecer e memorizar a relação entre bioindicador com seu precursor e sua respectiva via metabólica. Vamos a mais uma contextualização? O bioindicador de exposição ao xileno é o ácido metil-hipúrico. Entretanto, diferentemente do tolueno, outras substâncias químicas não interferem na via metabólica desse xenobiótico, de forma a aumentar a quantidade de bioindicador pela exposição que não seja laboral. Observe a via metabólica a seguir, associada ao xileno: Biotransformação GlicinaÁcido metilbenzoicoMetaxileno Ácido metilhipúrico O O O O + NH2 CH3 H3CH3C H3C HO OH NH OH Figura 120 – Esquema da formação do ácido metil-hipúrico a partir do meta-xileno Quando o trabalhador se expõe ao xileno, não há uma segunda substância química presente na água ou alimento que se ingira ou que esteja no ar que o trabalhador respira que poderá interferir na análise da substância. Dessa forma, não há a necessidade de haver VR para o xileno e há apenas o IBMP (AMORIM, 2003). 5.1.3.1.3 Bioindicador de suscetibilidade Vimos anteriormente que a monitorização do trabalhador tem como objetivo prevenir a intoxicação da maioria dos trabalhadores. Mas por que mesmo a maioria dos trabalhadores, e não todos os trabalhadores? Por causa da suscetibilidade de cada um deles. Para as mesmas condições de exposição, organismos diferentes respondem diferentemente. E por que respondem diferentemente? A condição genética é uma das possibilidades: cada qual tem a sua. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 239 Observação A condição genética é apenas uma condição que pode fazer com que diferentes pessoas respondam de forma distinta à mesma exposição. Assim, os biomarcadores de suscetibilidade podem indicar que aquele organismo poderá expressar uma resposta diferente dos demais, pela sua condição genética. Observação Esses bioindicadores podem refletir, além dos fatores genéticos, também uma condição adquirida. O trabalhador que apresente, por exemplo, alteração na GST pode ter maior risco de intoxicação pela exposição aos compostos alifáticos halogenados e ao óxido de etileno, uma vez que pode haver prejuízo da biotransformação de seus intermediários epóxidos. Os que apresentam alteração na paroxonase podem ter aumentada a toxicidade dos organofosforados pela redução da atividade da acetilcolinesterase, e a deficiência da glicose 6-P-desidrogenase reduz (G6PD) a resistência para o estresse oxidativo de compostos nitroaromáticos. 5.1.4 Programa de controle médico de saúde ocupacional (PCMSO) O médico do trabalho deve ficar atento aos valores da monitorização biológica e realizar a vigilância da saúde. Os critérios empreendidos para a interpretação dos resultados dos exames médicos e laboratoriais e o procedimento adotado perante os resultados dos exames devem estar expressos com clareza no PCMSO. Para deixar os conceitos aqui apresentados mais claros, serão apresentados exemplos de como elaborar um PCMSO combinando com a vigilância à saúde e a monitorização biológica de exposição (BUSCHINELLI, 2014). A Norma Regulamentadora n. 9 do Ministério do Trabalho, de 1978, está associada ao Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), que determina que, para que se preserve a integridade e saúde dos trabalhadores, instituições e empregadores realizem o PPRA. Por meio do reconhecimento e controle dos riscos ambientais, bem como de sua antecipação, deve-se prevenir o aparecimento de doenças e preservar não apenas a saúde, mas também a integridade de seus funcionários por meio do PPRA, que deve estar vinculado com o PCMSO, previsto na NR-7. O modelo de análise utilizado para a medição e coleta de amostras deve levar em consideração quanto tempo será utilizado para a realização da medição, verificar se o escopo da análise é avaliar o Unidade II 240 perfil de exposição após a atividades realizadas pelos funcionários ou apenas avaliar a característica da exposição durante a jornada e, também, levar em consideração qual é o volume de ar que o equipamento analítico é capaz de coletar (BRASIL, 2018b). 5.1.5 Vantagens e desvantangens da monitorização biológica A monitorização biológica apresenta vantagens e desvantagens em relação à ambiental e é complementar a esta. Uma característica fundamental da monitorização biológica é que, quando se identifica e quantifica bioindicadores, a estimativa do risco de intoxicação é mais adequada, uma vez que há uma relação mais direta entre a relação dose/efeito, ou seja, entre a quantidade do xenobiótico presente no organismo e seus efeitos nocivos causados à saúde do trabalhador. Outra situação envolvida é que a monitorização ambiental avalia exclusivamente a exposição pelo trato respiratório. Entretanto, pode haver exposição ocupacional por outras vias, como pelo trato gastrintestinal e pela via dérmica. Há situações em que o funcionário se expõe a um xenobiótico pelo hábito de levar circunstancialmente a mão à boca em alguns momentos da jornada. É o típico caso de exposição pelo chumbo, que na monitorização ambiental pode apresentar baixos teores, mas quando se realiza a monitorização biológica, identifica-se sua extensa exposição. Até a diferença de higiene pessoal entre os funcionários da empresa pode levar a resultados significativamente distintos entre a monitorização ambiental e a biológica. 5.2 Toxicologia de medicamentos 5.2.1 Intoxicações por medicamentos Discutiremos neste tópico as intoxicações induzidas pelo uso de medicamentos, suas causas, grupos farmacológicos e manejo clínico, bem como os variados tratamentos empregados nas intoxicações medicamentosas. Algumas das informações iniciais você já conhece, especificamente aquelas relacionadas a alguns termos e alguns conceitos introdutórios, mas ainda assim faremos uma breve e direta revisão sobre algumas ocorrências. Aspectos gerais das intoxicações medicamentosas Segundo o legado deixado por Paracelsus (1493–1541), toda substância pode ser classificada como um veneno, o que irá diferenciar essa classificação é a dose. Além desse clássico e importante conceito deixado por aquele que é considerado o pai da farmacologia e da toxicologia, acrescemos que as condições de exposição também demonstram papel importante nesse contexto, além da dose administrada. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 241 Saiba mais Para conhecer um pouco mais sobre as ideias de Paracelsus (ou Paracelso), você pode consultar o artigo a seguir. Ainda hoje, suas ideias são consideradas válidas, tendo sido muito importantes para a evolução da toxicologia. CORREA, A. D.; SIQUEIRA-BATISTA, R.; QUINTAS, L. E. Similia Similibus Curentur: notação histórica da medicina homeopática. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 347-351, 1997. Disponivel em: http://www.scielo.br/pdf/ramb/v43n4/2026.pdf. Acesso em: 1º mar. 2020. Face a essa constatação, você concluiu que a capacidade que uma substância apresenta em causar toxicidade é definida pelo perigo que cada toxicante apresenta de forma inata. Esse perigo é definido como toxicidade intrínseca e pode ser aferido por valores da DL50, que representa a dose necessária para matar metadede uma população. Além desse perigo, que é algo inerente ao agente tóxico, a toxicidade relativa também estabelece uma importância preponderante na avaliação dos compostos. Essa toxicidade é determinada pelo agente tóxico especificamente (tipo), pela dose que foi utilizada, pela susceptibilidade individual e pelas condições de exposição (tempo e frequência, principalmente). Para recordarmos o que estudamos, você deve estar lembrado de que a intoxicação é representada por um conjunto de sinais e sintomas observáveis a partir da interação de um agente tóxico com um sistema orgânico através de efeitos nocivos que ocorrem em decorrência de um desequilíbrio orgânico e são manifestados através de sinais e sintomas. Esse processo depende da interação do agente tóxico ou toxicante com a parte biológica através de uma interação dele com um alvo biológico que execute mecanismos de reparo ainda que estes não sejam suficientes para sanar as alterações na homeostasia. Normalmente esses processos, quando exacerbados, originam doenças ou até mesmo situações fatais irreversíveis, demonstradas através de sinais e sintomas dependentes de dose e tempo de exposição. Dividimos a intoxicação em quatro fases distintas, a saber: • Fase de exposição: está ligada ao contato do agente tóxico com a parte orgânica, representando a sua disponibilidade química e condições de introdução no modelo biológico. Essa exposição pode ocorrer por diferentes vias, sendo as mais comuns a oral (intoxicações por medicamentos, venenos agrícolas etc.), a por via dérmica (contato com praguicidas na lavoura) e a pulmonar, através do ar inspirado (névoas de praguicidas agrícolas). • Fase toxicocinética: consiste no movimento do AT (agente tóxico) no organismo, compreendendo processos de absorção, distribuição, armazenamento e eliminação (biotransformação e excreção). Todos esses processos envolvem reações entre o agente tóxico e o organismo, tornando o AT disponível biologicamente. Unidade II 242 • Fase toxicodinâmica: corresponde aos efeitos propriamente ditos do AT pela interação com os alvos biológicos. Isso porque na maioria das vezes não se trata de uma ação localizada do agente, mas, sim, disseminada. Observação Na fase toxicodinâmica, os efeitos ocorrentes não dependem somente do agente tóxico em si, mas também dos seus produtos de biotransformação (metabolismo), que algumas vezes são mais tóxicos do que os próprios agentes tóxicos. Exemplo: quando o paracetamol é utilizado em doses acima das terapêuticas, ele passa por um processo de biotransformação hepática e se transforma no metabólito N-acetil-p-benzoquinoneimina, que é a substância hepatotóxica. • Fase clínica: nesta fase tem-se as manifestações clínicas dos efeitos pela exposição a um agente tóxico. É a aparição de sinais e sintomas que caracterizam o efeito tóxico propriamente dito e evidenciam a presença do fenômeno da intoxicação. Na toxicologia de medicamentos estudam-se as reações adversas provocadas por doses terapêuticas dos medicamentos, bem como as intoxicações resultantes de doses excessivas, seja por uso inadequado ou acidental ou ainda intencional. Entre os variados tipos de efeitos provocados pela interação entre o medicamento e o organismo, temos: • Efeito secundário: pode surgir em alguns pacientes pelo uso de medicamentos, ainda que em doses terapêuticas. Exemplo: diarreias induzidas por uso de antimicrobianos pela destruição de flora normal intestinal. • Efeito colateral: são efeitos previsíveis, pois estão ligados ao próprio mecanismo de ação da substância. Exemplo: sono em pacientes que utilizam alguns anti-histamínicos. • Idiossincrasia: são efeitos que dependem da forma como cada indivíduo responde quando mantém contato com uma substância. Essas diferentes formas de efeitos demonstráveis normalmente são relacionadas a situações genéticas e/ou enzimáticas particularmente individualizadas e que independem da dose administrada. Exemplo: deficiência da aldeído desidrogenase, enzima que metaboliza o álcool, em orientais, predispondo esses indivíduos a uma maior embriaguez quando se expõem a essa substância. • Alergia: as alergias podem ser caracterizadas como reações idiossincrásicas, pois não dependem da dose, mas, sim, de uma resposta individualizada. Elas passam a ser estudadas pela imunotoxicologia. Exemplos: crises alérgicas que muitos pacientes demonstram quando se expõem a antimicrobianos como penicilinas e sulfas. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 243 • Tolerância: é a condição em que se necessita de doses maiores para se obterem os mesmos efeitos iniciais do medicamento. Normalmente o aumento das doses não se faz suficiente para a resolução da situação, exigindo-se uma substituição. Essa tolerância pode ocorrer por dessensibilização de receptores ou ainda por indução enzimática. Exemplos: pacientes que utilizam morfina, um analgésico opioide, e que no mesmo período do dia exigem doses maiores para o efeito analgésico. Observação Veja que o processo de tolerância poderá ocorrer em tratamentos medicamentosos de rotina, e não só ela está ligada ao contexto toxicológico. • Dependência: é ocorrente quando o medicamento já assume uma postura de uso contínuo pelos benefícios que produz e pelas sensações prazerosas que possa causar. Exemplo: a agitação provocada pelo uso de anfetaminas (anorexígenos), que são estimulantes do SNC (sistema nervoso central) e ativam o SNA (sistema nervoso autônomo) simpático. • Interações: resultam da utilização simultânea de dois ou mais medicamentos, podendo haver redução dos efeitos ou, ainda, uma potenciação deles, levando a um quadro variável de intoxicação ou ineficácia de um dos medicamentos empregados. Agora que fizemos uma revisão de conceitos previamente estudados e sedimentados, falaremos sobre intoxicações com medicamentos. Faremos uma introdução e depois conversaremos sobre alguns medicamentos que estão relacionados a situações de intoxicações. 5.2.1.1 Introdução Você sabe muito bem que os efeitos dos medicamentos já são conhecidos desde os tempos remotos, quando nossos antepassados já buscavam a cura de muitas doenças através do uso de substâncias naturais. Observação Os cães, quando se sentem com desconforto gástrico, ingerem grama para sanar esse problema. Ela atua como irritante do estômago, fazendo-o vomitar a comida “indesejada” ou o “veneno” ingerido. Segundo a Anvisa (2020b), medicamento é definido como um produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. É uma forma farmacêutica terminada que contém o fármaco, geralmente em associação com adjuvantes farmacotécnicos, ou seja, com substâncias que irão se somar aos efeitos do fármaco ali presente. Ainda que esses medicamentos sejam utilizáveis pretendendo efeitos benéficos, quando mal empregados e indevidamente utilizados, causam efeitos que podem até chegar à fatalidade. A frequência de exposição a uma substância medicamentosa está relacionada à sua disponibilidade no mercado, à Unidade II 244 marca comercial e ao acesso ao produto, às atitudes do médico que os prescreveu, ao farmacêutico que o dispensa, assim como a quem regulamenta a sua produção, distribuição e utilização. Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2003), o padrão de consumo de medicamentos no Brasil é caracterizado pela elevação do uso como substâncias empregadas somente para curar sintomas ou ainda por automedicação, além, é claro, do trabalho brilhante feito pelo marketing das indústrias farmacêuticas, que induz ao uso de muitas substâncias, mesmo aquelas prescritas por um médico. Tal situação contribui acentuadamente com reações adversas causadas por medicamentos. No Brasil, embora tenhamos normas para o uso racional de medicamentos, não há um sistema de registro das ocorrências tóxicas pela exposição a medicamentos devidamente implantado, operante e atualizado. Existem trabalhos que são feitos deforma isolada e regionalizada que permitem conclusões que seguem essas regiões e não permitem uma leitura global e dinâmica das ocorrências de intoxicação no país de forma confiável e oficial. O Sistema Nacional de Informação Tóxico-Farmacológica (Sinitox/MS/Fiocruz) divulga estatísticas anuais referentes a casos de intoxicação registrados pelos Centros de Assistência e Informação Toxicológica (Ceatox), a partir de informações fornecidas espontaneamente, sem padronização de conceitos, formas de registro, agentes tóxicos e outros critérios. Quanto às reações adversas, há algumas experiências locais de farmacovigilância (CASTRO, 2000). Os registros dos Centros de Assistência Toxicológica são sentinelas, captadores de problemas sociais, alguns passíveis de atuação da vigilância sanitária. Se o medicamento está sendo utilizado, além de sua finalidade terapêutica, de forma abusiva ou indevida, a sociedade e o sistema de saúde devem enxergar esses casos e encontrar formas adequadas para enfrentá-los (GANDOLFI; ANDRADE, 2006). Como já vimos, o Sinitox, criado em 1980 pelo Ministério da Saúde, com sede na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tem como principal atividade coordenar o processo de coleta, compilação, análise e divulgação dos casos de intoxicação humana registrados no país pela Rede Nacional de Centros de Controle de Intoxicações, comumente denominada Rede Sinitox (BORTOLETTO; BOCHNER, 1999). Esses mesmos autores, em um trabalho realizado sobre o impacto dos medicamentos nas intoxicações humanas no Brasil, concluíram que o medicamento é o principal agente tóxico que causa intoxicação em seres humanos no Brasil, ocupando o primeiro lugar nas estatísticas do Sinitox desde 1994. Os benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos e anti-inflamatórios são as classes de medicamentos que mais causam intoxicações em nosso país (44% foram classificadas como tentativas de suicídio e 40% como acidentes, sendo que as crianças menores de cinco anos (33%) e adultos de 20 a 29 anos (19%) constituíram as faixas etárias mais acometidas pelas intoxicações por medicamentos. Veja na tabela a seguir os principais agentes tóxicos em um levantamento mais atualizado, o que nos mostra a mesma conclusão sobre os medicamentos, ou seja, eles representam o maior número de casos de intoxicações agora envolvendo não somente o homem, mas também animais e solicitações de informações que os centros recebem sobre eles. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 245 Tabela 7 – Casos totais de intoxicações humanas, de animais e de solicitações de informação de 10 dos principais agentes tóxicos Agente causador Número total de intoxicações Percentual (%) Medicamentos 21402 26,79 Animais peçonhentos/escorpiões 11943 14,95 Outros animais peçonhentos/venenosos 6439 8,06 Animais não peçonhentos 5402 6,76 Animais peçonhentos/aranhas 6220 7,79 Domissanitários 4761 5,96 Animais peçonhentos/serpentes 3290 4,12 Produtos químicos industriais 2992 3,39 Drogas de abuso 2777 3,48 Agrotóxicos/Uso agrícola 2706 3,39 Adaptada de: Sinitox (s.d.a). Conforme informado no site Milenar (USO..., 2018), para o mesmo período, um levantamento conduzido pela Unicamp no Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) concluiu que o uso de medicamentos responde pela maioria dos casos de intoxicação (33,62% das ocorrências), mais que o dobro, por exemplo, dos atendimentos por picadas de animais peçonhentos e consumo de produtos químicos (veja a figura a seguir). Outros 23,86% Medicamentos 33,62% Produtos domissanitários 14,08% Produtos químicos residenciais ou industriais 6,13% Animais não peçonhentos/ não venenosos 6,09% Figura 121 – Causas principais de intoxicações 5.2.1.2 Grupos farmacológicos envolvidos nas intoxicações medicamentosas Embora as variadas pesquisas executadas acerca do uso de medicamentos utilizados e as classes farmacológicas envolvidas nos processos tóxicos tenham sido divulgadas, não há uma pesquisa que seja incisiva e atualizada, e ainda que sejam efetuadas, elas acabam por refletir dados que são regionais, o que pode não traduzir a real ocorrência de forma generalizada. Unidade II 246 Em tempo, alguns medicamentos e classes se destacam na incidência de intoxicações com medicamento, como os neuropsicofármacos (clonazepam, carbamazepina, amitriptilina), os analgésicos e Aines (ácido acetilsalicÌlico, diclofenaco, dipirona, paracetamol), os antialérgicos e antigripais, os broncodilatadores (salbutamol, fenoterol) e os cardiovasculares (captopril, propranolol). Ainda que as pesquisas e trabalhos sobre intoxicação por medicamentos sejam regionalizadas e até específicas em detrimento a isso, os psicofármacos como os benzodiazepínicos (diazepam, clonazepam, bromazepam), que são substâncias largamente usadas em todo o mundo e no Brasil, assumem uma posição bem considerável nos casos de intoxicação induzidos por medicamentos, compreendendo em quase todos os estudos metade das ocorrências. Além dessa, outra metade é dirigida ao tratamento de problemas diversos músculo-esqueléticos (anti-inflamatórios e analgésicos). Essas substâncias, ainda que prescritas pelo médico, quando de uma forma não racional, passam a oferecer uma presença da substância em ambiente doméstico maior, consequentemente aumentando a incidência de intoxicação por eles. Estudaremos nos tópicos a seguir alguns dos medicamentos envolvidos em ocorrências de intoxicações. Você poderá notar que as classes desses fármacos são muito distintas; por isso, tentamos agrupá-las por sistema, tentando, assim, facilitar a sua compreensão, o que auxiliará muito no processo de aprendizagem. 5.2.1.2.1 Psicofármacos Veremos neste tópico os medicamentos que atuam sobre o SNC, ou seja, os fármacos que atuam sobre a “psique”. Antidepressivos ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina) Esses medicamentos são bem empregados no tratamento da depressão, de outros transtornos psiquiátricos, tais como síndrome do pânico, fobias e transtorno obsessivo-compulsivo, e de transtornos alimentares, incluindo anorexia, bulimia e obesidade. Veja que as aplicações clínicas desses medicamentos apresentam uma abrangência vasta de situações, inclusive para outras não diretamente relacionadas a doenças psiquiátricas. Observação Saiba que muitos fármacos que atuam sobre o SNC podem ser empregados para torcicolos e crises de enxaqueca. Estes antidepressivos inibem a recaptação de serotonina (um neurotransmissor que melhora o humor) no SNC, sistema nervoso periférico e plaquetas, estimulando os receptores serotoninérgicos. Quando comparados aos antidepressivos tricíclicos, são menos efetivos em bloquear a recaptação de noradrenalina e antagonizar receptores muscarínicos, histaminérgicos e adrenérgicos. Podem causar depressão do SNC e síndrome serotoninérgica quando usados em conjunto ou com outras substâncias que aumentam o TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 247 nível de serotonina, como outros antidepressivos (inibidores da monoaminoxidase – iMAO, tricíclicos, antidepressivos duais e atípicos), anfetaminas, sibutramina, ecstasy, cocaína, crack, LSD e opioides. Geralmente essas substâncias apresentam alto índice terapêutico. Doses acima de 10 vezes a dose terapêutica são mais toleradas se comparadas aos antidepressivos tricíclicos. Porém a associação com outros medicamentos ou drogas de abuso é frequente e aumenta a probabilidade de intoxicação grave. Lembrete Você já estudou e deve se recordar de que substâncias que possuem alto índice terapêutico são relativamente mais seguras que aquelas que possuem um índice baixo. Acentuemos essa recordação. Isso ocorre porque a distância entre a dose terapêutica e a tóxica é longa, o que não quer dizer que essas substâncias não possam ofertar um risco. N N N H NH HN CI CICF3 F3C NH2 (d) (e) (c)(b)(a) N O OO F F O O O O Figura 122 – Estrutura química dos principais ISRS: (a) fluoxetina, (b) paroxetina, (c) sertralina, (d) fluvoxamina,(e) citalopram Nível terapêutico de sinalização ATC ou ISRS Legenda: ATC = antidepressivos tricíclicos Figura 123 – Mecanismo de ação dos ISRS: a) antes do tratamento; b) com tratamento agudo dos fármacos; c) com tratamento crônico com os fármacos Unidade II 248 Observação Veja que esse mecanismo descrito na figura anterior é o ocorrente em situações toxicológicas. Observe que ocorre um aumento considerável nos níveis de serotonina na fenda sináptica. A seguir algumas informações farmacocinéticas acerca dessa categoria de fármacos. São substâncias bem absorvidas e possuem alta biodisponibilidade, e o pico de concentração plasmática ocorre em média em horas. Possuem um alto Vd (volume de distribuição), e a ligação a proteína plasmática pode variar de 56 a 99% e meia vida biológica média de 24 horas (exceto a fluoxetina, que possui uma T½ vida biológica que pode variar de quatro a seis dias). A biotransformação é hepática e dois dos fármacos (fluoxetina e paroxetina) são inibidores da enzima CYP2D6, implicando alterações nos efeitos de muitos outros fármacos. Observação Você já conhece a importância do complexo citocromo P450 na biotransformação de fármacos e as implicações que uma indução ou inibição enzimáticas desse sistema podem oferecer a outros fármacos. Sobre as manifestações clínicas, as intoxicações podem ser leves a moderadas, casos em que os pacientes apresentam ataxia (falta de coordenação em movimentos) e letargia (profunda e prolongada inconsciência), ou graves, em que os pacientes podem apresentar bradicardia, hipotensão, depressão do SNC e coma. Há também o risco de síndrome serotoninérgica, quando a quantidade ingerida é alta ou ocorre ingestão em associação com outras substâncias que aumentam o nível de serotonina, como outros antidepressivos (iMAO) e drogas de abuso. Esta síndrome serotoninérgica caracteriza-se por uma tríade: • alterações do estado mental (agitação, ansiedade e confusão mental); • instabilidade autonômica (taquicardia, hipertensão, sudorese, hipertermia e midríase); • hiperatividade neuromuscular, rigidez e tremores. O que poderia então se fazer para tratamento de intoxicações por essa categoria? Para adoção de medidas de tratamento das intoxicações, a maioria dos casos de ingestão de ISRS não desenvolvem sintomas graves, necessitando apenas de medidas de suporte básico de vida, como desobstrução de vias aéreas, administração de oxigênio, monitorização de sinais vitais, colheita de amostras biológicas para TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 249 posterior envio ao contexto laboratorial ou ainda descontaminação através de lavagem gástrica com uso de carvão ativado (1 g/kg por VO – via oral). Observação Ainda não estudamos de forma detalhada os antídotos, mas o carvão ativado representa um importante agente adsorvente que pode reduzir a absorção de várias substâncias. Veja que, para essa categoria de agente, não há antídoto específico e não se recomendam medidas para eliminação. Antidepressivos tricíclicos Esses fármacos são utilizados no tratamento da depressão maior, insônia e síndromes dolorosas crônicas. Os antidepressivos tricíclicos inibem a recaptação de neurotransmissores, principalmente noradrenalina (NA), serotonina (5-HT) e, em menor proporção, dopamina (DA). As aminas terciárias são inibidores mais potentes da recaptação de serotonina (clomipramina), enquanto as secundárias atuam principalmente sobre a recaptação de noradrenalina (desipramina, nortriptilina). Veja e compare que esses fármacos apresentam um mecanismo muito parecido com os anteriores discutidos aqui, porém, com um efeito maior sobre outros neurotransmissores como a NA (em maior grau) e a DA (em menor grau). São estruturalmente similares às fenotiazinas e têm ações em diversos receptores no organismo, gerando antagonismo colinérgico, bloqueio alfa adrenérgico, inibição da recaptação da noradrenalina, serotonina e dopamina, bloqueio de canais de sódio e potássio, e depressão respiratória e do sistema nervoso central (SNC). Saiba mais Leia mais sobre o assunto na página a seguir: RODRIGUES, S. A. Clorpromazina, C17H19N2SCl. PUBLISBQ – Química Nova Interativa, [s.d.]. Disponível em: http://qnint.sbq.org.br/novo/index. php?hash=molecula.264. Acesso em: 28 nov. 2020. Unidade II 250 SS NN HH Figura 124 – Estrutura molecular da fenotiazina CH CH2 CH2 N R1 R2 Fármaco R1 R2 Amitriptilina - CH3 - CH3 Nortriptilina - CH3 - H Figura 125 – Estrutura química dos antidepressivos tricíclicos amitriptilina e nortriptilina Note a semelhança entre os ATC e as fenotiazinas. Na intoxicação, os efeitos mais importantes são no SNC (sedação e coma por atividade anticolinérgica e convulsões por provável inibição da recaptação de catecolaminas cerebrais) e cardiovasculares (taquicardia e hipertensão por ação anticolinérgica e inibição da recaptação de catecolaminas, hipotensão pelo bloqueio alfa-adrenérgico, depressão miocárdica e distúrbios da condução cardíaca por bloqueio dos canais de sódio). Da mesma forma que fizemos na categoria anterior, seguem algumas informações rápidas sobre a farmacocinética desses compostos. São absorvidos, e o início dos efeitos ocorre após uma hora da exposição, com pico de concentração plasmática entre duas e oito horas. Possuem um Vd de 7 a 78 l/kg e se ligam em proteínas plasmáticas > 90% com T½ biológica variando entre sete e 58 horas. A biotransformação é hepática e a eliminação ocorre pela via renal (70%) e pela via fecal (30%). Na intoxicação aguda leve podem ocorrer sonolência, sedação, taquicardia, alucinações, midríase e outros efeitos anticolinérgicos, e em casos de intoxicação grave, convulsões, coma, aumento do intervalo QRS no eletrocardiograma (ECG), arritmias ventriculares, insuficiência respiratória e hipotensão. Podem ocorrer arritmias graves levando à parada cardíaca e óbito, mesmo em pacientes jovens. TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS 251 Para um tratamento na intoxicação, realizam-se medidas de suporte (já citadas anteriormente) acrescidas de verificação e correção de distúrbios hidreletrolíticos relacionados a Na+, K+ e Ca+2 devido ao aumento do risco de arritmias, em que o paciente dever ser mantido em observação por 72 horas ou enquanto ainda apresentar alterações no ECG. Não há antídoto para tratamento. Benzodiazepínicos São medicamentos utilizados em transtornos ansiosos, como anticonvulsivantes, na síndrome de abstinência alcoólica, nos estados hiperadrenérgicos, conforme ocorre nas intoxicações por drogas de abuso, como relaxantes musculares e como agentes sedativos em procedimentos. Todos os benzodiazepínicos em uso clínico são capazes de promover a ligação de um importante neurotransmissor inibitório, o ácido γ-aminobutírico (GABA), aos receptores de GABA do subtipo GABAA, que existem como canais de cloreto formados por múltiplas subunidades e controlados por ligando, intensificando, desse modo, as correntes iônicas induzidas pelo GABA através desses canais (BRUNTON; CHABNER; KNOLLMANN, 2012). Vamos falar um pouco sobre a farmacocinética? Os benzodiazepínicos são rapidamente absorvidos após a administração por via oral. Pela via parenteral, a distribuição no organismo se efetua de forma semelhante à observada com fármacos muito lipossolúveis. A penetração no tecido cerebral é muito rápida. A administração intramuscular não é sugerida para a maioria dos benzodiazepínicos, excetuando os hidrossolúveis, uma vez que a absorção por essa via é muito irregular. A biotransformação ocorre pelo CYP, o que implica às vezes interações medicamentosas significativas, e a eliminação é renal. C C CN R1 R2 R3 R4 R2' R7 N B 1 5 4 a 3A C Figura 126 – Estrutura geral dos benzodiazepínicos Nas intoxicações leves e moderadas observam-se sonolência, sedação e fala arrastada. Você sabia que essas substâncias são amplamente utilizadas como indutoras de anestesia em cirurgias? Pois bem, elas são muito empregadas para esse fim, e até
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