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Código Logístico 58964 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6542-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 4 2 4 A antropologia social, saber devotado às diferenças humanas, constituiu um modo particular de conhecer e de produzir conhecimento ao longa de sua história. Contudo, não é a intenção deste livro narrar uma história da antropologia. Mais do que contar a cronologia de ideias e autores que a constituíram, ao longo dos capítulos, são mobilizados nomes e conceitos importantes para traçar o modo pelo qual sua perspectiva concebe as diferenças humanas, isto é, o que se denomina de diferentes modos de cultivar a vida. Almejando tecer um diálogo com você, leitor, todos os capítulos começam com a palavra como. Comando privilegiado para a antropologia, o “como” aponta para um saber-fazer que não busca a explicação – que seria o foco de perguntas iniciadas com “por que” e “o que” –, mas procura articular um engajamento prático, sensório e cognitivo com o mundo, justamente para conhecê-lo a partir dessa experiência. Assim, a ideia é convidá-lo a se engajar com o texto de modo interativo para que, ao longo da leitura, você formule sua própria apropriação – sempre original e criativa, e não mera reprodução – da maneira pela qual a antropologia se relaciona com as diferenças humanas. Antropologia Social Leonardo Campoy IESDE BRASIL 2020 © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Samuel Borges Photography/Diego Cervo/Chetty Thomas/Tithi Luadthong/ Rawpixel.com / Katrine Glazkova/Krakenimages.com/Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C218a Campoy, Leonardo Antropologia social / Leonardo Campoy. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020 102 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6542-4 1. Etnologia. 2. Antropologia. 3. Sociologia. I. Título. 19-61555 CDD: 306 CDU: 316.7 Leonardo Campoy Mestre e doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor no ensino médio e no ensino superior, ministrando aulas de Sociologia e Antropologia. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Como pensar antropologicamente? 9 1.1 A cultura em nossas vidas 10 1.2 A unidade na diversidade 14 1.3 A aurora da antropologia 19 1.4 Da raça ao evolucionismo social 22 2 Como produzir conhecimento antropológico? 29 2.1 Como conhecer o outro? 29 2.2 Franz Boas: a cultura como um universo 32 2.3 Bronislaw Malinowski e a magia do etnógrafo 39 2.4 Etnografia: a premissa do conhecimento antropológico 43 3 Como aprender antropologicamente? 48 3.1 Do culto da performance ao prazer de viver 48 3.2 Adiando o fim do mundo 54 3.3 Por um lugar de escuta 58 4 Como propor soluções antropologicamente? 64 4.1 Uma questão ética 65 4.2 Reconhecendo o sofrimento alheio 67 4.3 Por uma sensibilidade ética 71 4.4 Imaginando novos mundos juntos 74 5 Como conhecer o Brasil antropologicamente? 79 5.1 Brasil como inferno: a miscigenação como infortúnio da nação 80 5.2 Brasil como paraíso: a miscigenação como solução do Brasil 85 5.3 Entre o inferno e o paraíso, a realidade 91 6 Gabarito 98 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Saber devotado às diferenças humanas, a antropologia social constituiu, ao longo de sua história, um modo particular de conhecer e de produzir conhecimento. Nas páginas que seguem, apresentamos essa particularidade de maneira acessível, sem, contudo, sacrificar o conteúdo do saber antropológico. Nossa intenção não é narrar uma história da antropologia. Mais do que contar a cronologia de ideias e autores que a constituíram, ao longo dos capítulos, mobilizamos nomes e conceitos importantes para traçar o modo pelo qual sua perspectiva concebe as diferenças humanas, isto é, o que denominamos de diferentes modos de cultivar a vida. Ao apresentar um saber arraigado na tradição acadêmica, com bagagem teórica e premissas metodológicas relativamente complexas, corre-se o risco constante de incorrer no mesmo erro dos conhecimentos universitários em geral: fechar-se em si mesmo, provocando no leitor a inescapável impressão de que o que está estudando é impermeável, como se fosse praticamente impossível usar aquele saber em sua vida cotidiana. Apesar de nunca estarmos completamente “vacinados” de cometer esse equívoco, oferecemos, assim esperamos, caminhos de entrada fáceis de serem achados e seguidos. Essa é a inspiração que anima os capítulos e a divisão entre eles. Almejando tecer um diálogo com você, leitor, todos os capítulos começam com a palavra como. Comando privilegiado para a antropologia, o “como” aponta para um saber-fazer que não busca a explicação – que seria o foco de perguntas iniciadas com “por que” e “o que” –, mas procura articular um engajamento prático, sensório e cognitivo com o mundo, justamente para conhecê-lo a partir dessa experiência. Assim, a ideia é convidá-lo a se engajar com o texto de modo interativo para, ao longo da leitura, formular sua própria apropriação – sempre original e criativa, e não mera reprodução – da maneira pela qual a antropologia se relaciona com as diferenças humanas. O diálogo se desdobra gradualmente ao longo dos cinco capítulos. No primeiro, descobrimos as bases do pensamento antropológico por meio de uma revisão das origens da disciplina. No segundo, estudamos as ideias de dois importantes teóricos, Boas e Malinowski, para nos aproximarmos da etnografia, que é o modo pelo qual se produz conhecimento antropológico. APRESENTAÇÃO No terceiro capítulo, realizamos o que os antropólogos chamam de efeito bumerangue, isto é, nos perguntamos o que a antropologia, ao estudar as diferenças humanas, pode ensinar sobre as semelhanças. Assim, “Como aprender antropologicamente”, título desse capítulo, aponta para uma reflexão crítica sobre nosso próprio modo de cultivar a vida. Já no quarto capítulo, procuramos considerar como a antropologia pode ser aplicada em nossas atividades práticas. “Como propor soluções antropológicas” é uma interpelação que incita a transformar esse saber acadêmico em ações e soluções para a vida em movimento. Finalmente, no quinto capítulo, pagamos nosso tributo à tradição antropológica de se manter atrelada às dimensões locais para propor uma interpretação do Brasil, tendo a questão racial como eixo de investigação. Antes de deixá-lo mergulhar no livro, uma palavra sobre o estilo da escrita da obra. Quando eu estava iniciando minha trajetória em antropologia, ainda na graduação em Ciências Sociais, tinha uma enorme dificuldade para explicar para minha avó, uma senhora de alfabetização rudimentar que viveu quase toda sua vida no campo, o que estava estudando na universidade. Usei vários exemplos em nossas conversas e também a escutava sobre sua vida nomundo rural do sudeste brasileiro na década de 1930. Nossas conversas jamais se revestiram de teorias e conceitos, sempre mantivemos nosso diálogo em reminiscências sobre a vida prosaica entre uma senhora que migrou do campo para a cidade e um jovem com toda sua vida tecida na urbe. Procurei escrever esta obra tendo em mente esses diálogos, isto é, mantendo a conversa no chão batido e empoeirado da vida, sem alçar voos especulativos e abstratos demais. Eu era muito feliz ao conversar com minha avó. Fui feliz escrevendo este livro e, desse modo, espero que você também o seja lendo-o. Quem sabe, assim como eu, você se apaixona pela antropologia? Espero que sim. Em minha opinião, o conhecimento só pode ser gerado por meio da alegria e da felicidade. Mais ainda, não há nada mais elucidativo sobre a vida do que uma conversa em que há a troca de experiências. Que este livro signifique algo assim para você: uma conversa entre pessoas que gostam da vida e, por isso, querem compartilhá-la. Boa leitura! Como pensar antropologicamente? 9 O que é antropologia? Algumas pessoas podem responder usando o significado literal da palavra: o estudo ou a ciência do humano. Mas, e a psicologia não é um estudo do humano tam- bém? E o ramo da biologia, que se ocupa do corpo humano, não é um tipo de ciência do humano? Que tal tentarmos responder ao que é a antropologia identificando o que ela estuda? Seriam ossos? Ou os ancestrais dos humanos, os hominídeos? Seriam as etnias indígenas? Ou então festas e tradições populares? Você que está se deparando com a antropologia pela primeira vez na leitura deste livro provavelmente não fez essas perguntas antes. Contudo, ao fazê-las, deve ter percebido como não é simples responder o que é antropologia e o que ela estuda. Este primeiro capítulo tem justamente o objetivo de delinear uma concepção de antropologia para o estudante que se depara pela primeira vez com o assunto. Nas duas primeiras seções, veremos uma inter- pretação da antropologia, seus temas de interesse e seus objetos de estudo. Nos dois últimos, abordaremos os primeiros passos da história da disciplina, identificando as principais teorias que mobili- zaram o pensamento antropológico em sua aurora. Antes de passar para as próximas páginas e iniciar a leitura, uma sugestão: se estiver com fome, alimente-se; se tiver um ani- mal de estimação, pegue-o para ler ao seu lado ou vá até o quintal e faça um carinho nele. Somente depois de resolver as inquietu- des, mergulhe no texto. Como pensar antropologicamente? 1 10 Antropologia Social 1.1 A cultura em nossas vidas Vídeo Você já se perguntou por que os humanos transformam alguns ani- mais em comida e outros em companheiros? Reproduzimos, criamos e abatemos bois, porcos e galinhas, às toneladas, para preencher nossas mesas de carnes em refeições diárias ou em eventos extraordinários, e as comemos para supostamente ficar mais fortes, sadios e saciados. A carne na alimentação humana é tão importante que, para muitas pessoas, sua presença no prato é obrigatória, chegando a considerar que, para uma refeição ser digna desse nome, é imprescindível que tenha carne. Na mesa, ela representa sustância e até mesmo fartura. No Brasil, imaginar uma ceia de Natal sem alguma carne assada, como peru, peixe ou partes do porco, pode sugerir uma celebração triste e pobre. É como o ditado popular afirma: a família pode estar passando por tempos de “vacas magras”. A própria identidade regional brasileira está intimamente associada a pratos em que a carne é a estrela da receita: o churrasco dos gaúchos, o tutu de feijão com linguiça dos mi- neiros, o pato no tucupi dos paraenses e o acarajé com camarão dos baianos são apenas alguns exemplos. Enquanto nos deleitamos com as carnes de bois, porcos, galinhas e outros animais, adotamos cães e gatos como membros da família. Da- mos nomes, abrigo e conforto a eles, isso quando não dormem junto conosco, em nossas próprias camas. Gastamos verdadeiras fortunas em banho e tosa, rações, biscoitos e todo tipo de mimo para eles brin- carem. Postamos fotos deles nas redes sociais, fazendo poses inusi- tadas e se divertindo com nossa família, e ficamos emocionadamente aliviados quando sabemos de um cachorro vítima de maus tratos que foi resgatado ou de um gato recolhido das ruas; estavam sofrendo e passando fome e agora vão ser cuidados com carinho e atenção. Faze- mos feiras de doação de vira-latas e abrimos canis e gatis para vender animais “pura raça”, e achamos lindos os belos cachorros e gatos ex- postos em concursos de beleza de animais de estimação. Mas, então, por que alguns animais vão para nossas camas e ou- tros para nossas panelas? Será que o motivo é a carne de alguns ser mais tenra e saborosa? Ou ainda, porque o ser humano digere melhor a carne de alguns animais e de outros, não? É difícil validar essas hipó- teses. O cachorro é um alimento em algumas regiões da Ásia; o cavalo Como pensar antropologicamente? 11 é um animal de estimação muito apreciado e valioso nos países árabes e também em outras partes do mundo, mas na França é uma iguaria alimentar. Afirmar que a qualidade da carne ou as propriedades do sistema digestivo do ser humano explicam as diferenças entre animais comestíveis e de estimação não dá conta dos múltiplos costumes en- contrados em diferentes regiões, países e continentes. Será que o comportamento típico dos animais responderia nossa pergunta? O boi, apesar de ser imenso em comparação ao ser huma- no, é geralmente passivo e medroso, um animal fácil de ser dominado. Por outro lado, o cachorro, domável e treinável, pode ter sido muito útil no passado da espécie humana, quando era preciso caçar para so- breviver. Contudo, novamente essas respostas não resolvem diversas situações verificadas em várias partes do mundo. Na Floresta Amazô- nica, por exemplo, muitas etnias indígenas alimentam-se da carne do macaco-prego e do tatu, animais que podem ser violentos. Por outro lado, treinam e domesticam o morcego, um animal arredio e de com- portamento indócil. Na verdade, qualquer tentativa de explicação universal para o questionamento sobre por que alguns animais viram comida e outros, companheiros, não se sustenta. As sociedades humanas são bastante diferentes entre si – o que é comestível em uma, é evitado em outra; um animal doméstico numa região é selvagem em outra. É justamente em razão da especificidade de cada sociedade humana que a antro- pologia responde a essa pergunta, sugerindo que a cultura explica o motivo de alguns animais se tornarem iguarias alimentares, enquanto outros recebem um nome e um lugar especial ao lado das pessoas. Foi essa a resposta que o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins deu. Estudioso da relação entre humanos e animais em seu país, Sahlins argumenta que a cultura dos Estados Unidos classifica alguns animais como objetos, como bois e porcos, e outros como su- jeitos, a exemplo de cachorros e cavalos. Essa distinção define o que o autor denominou como graus de comestibilidade. Segundo ele, bois, porcos, cavalos e cachorros “estão, em alguma medida, integrados à sociedade americana, mas claramente com status diferentes, os quais correspondem aos graus de comestibilidade” (SAHLINS, 2003, p. 174). Como a repulsa ao canibalismo é uma regra muito forte da cultu- ra norte-americana, comer animais que têm status de sujeitos é um 12 Antropologia Social grande tabu. Comer carne de cachorro, por exemplo, equivaleria a comer a de humano. Já bois e porcos vão para as panelas e churras- queiras, uma vez que são entendidos como menos humanos. Assim, de acordo com Sahlins, a regra da cultura norte-americana é a de que “a comestibilidade está inversamente relacionada à humanidade” (SAHLINS, 2003, p. 175). Quanto mais distante da ideia de humanida- de, mais comestível é o animal. Observem que o argumento de Sahlins não confere valor explicativo às propriedades e aos atributos dos animais.Para o autor, não há nada de intrínseco aos bois e aos cachorros que explicaria por que os primei- ros são comidos e os segundos são tratados como sujeitos. Não são fatores orgânicos e materiais que definem a comestibilidade dos ani- mais. O autor também não elabora um argumento histórico, sugerindo que, no passado, os cachorros eram úteis na caça, e então, hoje, são companheiros. A origem dos costumes, quando os norte-americanos passaram a comer bois e viver com cachorros, não é um problema para Sahlins. Sua análise indica que é o jeito de os humanos, nos Estados Unidos, entenderem e se relacionarem com os animais que responde à pergunta que fizemos inicialmente. Mas, afinal, o que é esse “jeito”? Como denominar, de maneira mais controlada, metódica e, em alguma medida, científica, esse “jeito” de entender e de se relacionar com ani- mais, seja nos Estados Unidos ou em outros países e lugares? Cultura. É assim que os antropólogos o denominam. A palavra cultura, para alguns, pode significar letramento, no senti- do de cultivo da leitura e do intelecto. Diz-se que uma pessoa é culta quando ela aparenta dominar conhecimentos acerca das humanidades e das ciências em geral. Também é comum entender cultura como arte, referindo-se às atividades que atores, cineastas, pintores e escultores, por exemplo, realizam. E ainda, não é raro entender cultura como cren- ças e costumes populares e tradicionais, como se significasse, exclusi- vamente, festas do interior, lendas do campo e simpatias de cura de nossas avós. Esses significados, apesar de não serem incorretos, são bastante restritos do ponto de vista da antropologia. Para esse ramo do saber, a noção de cultura é muito mais ampla do que intelectualidades, artes, crenças e costumes. Foi justamente para sublinhar essa abrangência que começamos nossos estudos com o exemplo das diferenças entre animais comestíveis e animais companheiros. Na série de documen- tários Chef’s Table, cada episódio explora a vida e a obra de um chef de cozinha renomado e inovador, que, de algum modo, causou impacto no mundo da gastronomia. Em todos os episódios, aprendemos muito sobre a relação entre comida e cultura. Criação: David Gelb. Estados Unidos: Netflix, 2015. Documentário Como pensar antropologicamente? 13 Para a antropologia, absolutamente todas as atividades dos seres humanos são culturais. Hábitos alimentares, modos de dormir e de caminhar, arquitetura dos edifícios e design de objetos e móveis, ves- tuário, linguagem, brincadeiras, cheiros, sabores, visões e audições. Até mesmo uma complexa cirurgia no cérebro, o sistema bancário e as negociações em torno da lei orçamentária anual do país no Congresso Nacional são culturais. A cultura, para a antropologia, está em absolu- tamente todas as atividades das nossas vidas. Na verdade, ela se con- funde com a vida, já que, de acordo com a perspectiva antropológica, molda indelevelmente nossos modos de existência. Além das diferenças entre os animais, podemos tomar como exem- plo para sustentar essa afirmação o tomate, ingrediente essencial da culinária italiana. Sendo italiano ou não, quando se fala em comida tra- dicional da Itália, logo vêm à mente deliciosos molhos à base de toma- tes, os quais, quando bem-preparados, equilibram a acidez e a doçura que o solo do país, conjugado com o clima mediterrâneo, fez surgir no fruto ali plantado. Em suma, comida italiana é praticamente sinônimo de suculentos molhos de tomate, na pizza, na lasanha ou no pappardel- le. Pois bem, mas os tomates são originários da América. Como a batata e o milho, não havia tomates no Velho Continente antes da colonização europeia da América. Assim, um dos ingredientes determinantes da “autêntica” culinária italiana é, originalmente, um estrangeiro ao país. Então a culinária italiana é falsa? Ela perde valor por ser constituída, dentre outros ingredientes, a partir de um fruto originalmente ameri- cano? De modo algum. Contudo, o caso ilustra como a cultura, tal como os antropólogos a entendem, moldou as atividades agrícolas no territó- rio que é hoje o italiano e, consequentemente, os hábitos alimentares, a culinária daquele país e até mesmo o simbolismo que a Itália guarda na mente de qualquer aficionado por pizza. Também podemos tomar como exemplo a microbiota que todos nós alimentamos em nosso intestino grosso. Em nosso processo diges- tório, depois da boca, do esôfago, do estômago e do intestino delgado, o bolo alimentar chega ao intestino grosso, última etapa antes de se transformar em bolo fecal para ser descartado. No intestino grosso, a maior parte do esforço digestivo não é feita por nós e sim por bactérias, ou seja, em resumo, o funcionamento do sistema digestivo humano de- pende, em sua etapa final, de bactérias. Temos milhões delas no intes- tino grosso, nascendo, se alimentando, se reproduzindo e morrendo dentro de nós, literalmente. 14 Antropologia Social Agora, as bactérias são seres vivos assim como qualquer outro, o que significa que, assim como existem certos tipos de macacos na Ásia e outros na África, existem certas bactérias no lugar onde você vive e outras onde eu vivo. Além disso, algumas se alimentam de carboidratos e outras, de proteínas e outros nutrientes. Alguns alimentos vêm com bactérias em sua própria constituição, como iogurtes, pães e queijos caseiros e artesanais, enquanto outros alimentos só existem porque as bactérias foram eliminadas deles, como o leite em caixinha. Essas diferenças, dentre várias outras, determinam as bactérias que cada um carrega dentro de si. Consequentemente, a digestão, os gases e as fezes de cada organismo humano são diretamente moldados pelos hábitos alimentares e pela região que habitamos, ou seja, pela cultura. A cultura está em toda a vida. A cultura molda nossas vidas e confun- de-se com a própria vida. Ou melhor, para pensar antropologicamente, é preciso considerar que a cultura é um jeito particular de cultivar a vida. Passemos, portanto, a uma revisão do que se pode entender por esse particular. 1.2 A unidade na diversidade Vídeo O que é uma pedra para você? Seria um objeto inerte, inanimado, puramente físico, sem vida? Para você, as pedras falam? Perguntas como essas parecem despropositadas, não é mesmo? Afinal, todos sabem que as pedras não têm vida e que, portanto, obviamente não falam. Mas todos, quem? Podemos ter certeza de que todos os seres humanos pensam assim, que as pedras não têm vida? Será mesmo que todos os habitantes humanos desse planeta concordam que as pedras não falam? O antropólogo norte-americano Alfred Irving Hallowell, durante a década de 1930, fez pesquisas entre os anishinaabe (ou, como eram conhecidos pelos brancos colonizadores, ojibwa), um grupo de caçado- res e coletores nativos do norte central do Canadá. Durante sua estada com o grupo, Hallowell estabeleceu amizade com um dos chefes deles, conhecido como William Berens. Segundo o antropólogo, Berens era um homem muito respeitado pelo grupo em razão de sua grande sa- bedoria, constituída a partir de suas reflexões e de sua formação com seus ancestrais. Os dois tinham conversas longas e profundas a respei- to de plantas, animais e pedras, entre outros assuntos concernentes à Como pensar antropologicamente? 15 vida naquela região do Canadá. Em uma dessas conversas, travada en- quanto caminhavam pelas margens de um rio com seu leito repleto de pedras, Hallowell, intrigado com a observação de que a palavra ojibwa significava pedra e parecia pertencer à classe de palavras atribuídas a seres animados e vivos, e não à de objetos inanimados, perguntou diretamente ao seu amigo: “Todas as pedras que vemos aqui, ao nosso redor, estão vivas?”. Após uma demorada reflexão, Berens respondeu: “Não! Mas algumas estão” (INGOLD, 2019, p. 15). Para nós, que não somos ojibwa e entendemos que pedras não es- tão vivas, é fácil interpretar a resposta de Berens ao antropólogo como produto de uma mente infantil, a qualatribui vida a objetos inanima- dos. Assim, o postulado de Berens de que algumas pedras estão vivas, mas outras não, seria concebido como uma ilusão de um povo selva- gem, que ainda se encontraria nos estágios primitivos do desenvolvi- mento intelectual da razão. Ou seja, seria uma crença comprovada pela ciência sem deixar dúvidas de que é falsa. Muitos de nós daríamos uma risada com o canto da boca à resposta de Berens e entenderíamos algo como: “ele acha que algumas pedras estão vivas, mas nós sabemos que nenhuma pedra vive”. Entretanto, notem que Berens era um senhor, um chefe respeitado pelo seu povo em razão de sua sabedoria e inteligência, e que, ade- mais, ganhou a amizade de “um de nós”, um norte-americano que vivia em cidades e conhecia profundamente a ciência ocidental, o antropó- logo Hallowell. Além disso, considerem que a resposta de Berens não é direta, mecanicamente confirmando ao amigo que todas as pedras estão vivas. Ele pensa longamente para afirmar que só algumas estão. Concordam que seria um enorme desrespeito, até mesmo um insulto, se Hallowell risse e desacreditasse da resposta do amigo ojibwa? Em antropologia, o maior erro é julgar apressadamente as afirma- ções dos outros, classificando-as como falsas ou então como ilusões, destituindo de qualquer validade o que dizem, pensam e fazem. Quan- do agimos assim, estamos interpretando as afirmações alheias de acordo com nossos próprios valores e pressupostos, desconsiderando, portanto, as premissas e os contextos de quem as fez. Se você já estu- dou antropologia em outro momento, provavelmente conhece a pala- vra etnocentrismo. É justamente esse o maior erro em antropologia, o etnocentrismo, isto é, colocar-se no centro do mundo, acreditando que 16 Antropologia Social a única verdade válida é a que você detém, enquanto as afirmações dos outros são meras ilusões. A respeito do etnocentrismo, Claude Lévi-Strauss, célebre antropó- logo francês, afirmou certa vez que “o bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 335). Ele está su- gerindo que a barbárie – que significa algo como “falta de civilização” – não é um atributo de quem é taxado como bárbaro, mas, sim, de quem interpreta a diversidade de culturas distinguindo as que são civilizadas das que supostamente não são. Mas, então, para não sermos etnocêntricos, deveríamos concordar com Berens e entender que algumas pedras estão realmente vivas? Também não é esse o caso. O antropólogo, via de regra, não quer “vi- rar o outro”, descartando completamente as suas verdades e seu estilo de vida para adotar como sua a vida dos seus interlocutores, isto é, das pessoas com quem estuda. Para fazer antropologia com os ojibwa, não é preciso viver sob a égide de que algumas pedras estão vivas. Contudo, é preciso levar a sério essa afirmação para fazer antropologia. Levar o outro a sério, eis aí a segunda sugestão para pensar antro- pologicamente. Uma das mais flagrantes obviedades acerca da espécie humana é a de que, ao longo de sua história, ela desenvolveu uma profunda e radical diversidade de formas de vida. Em cada momento da história e em cada canto do planeta, os humanos conceberam e praticaram múltiplos jeitos de cultivar a vida, quer dizer, desenvolve- ram diferentes formas de se relacionar com as plantas, os animais, as pedras, os rios, os oceanos, o sol, a lua e com outros seres humanos; distintas maneiras de entender e lidar com absolutamente qualquer condição e situação da humanidade: a gravidez, o nascimento e a mor- te, a alimentação, a respiração, a dor e a cura, a infância, a fase adulta e a velhice, os homens e as mulheres e os que não são nem homem e nem mulher. Aprenderam a lidar com a família, a união matrimonial, as trocas comerciais e a diplomacia, a guerra e o estrangeiro. Enfim, certamente diferentes grupos de humanos, em diferentes momentos históricos e locais geográficos, entenderam e praticaram o que imaginamos que é próprio da humanidade de maneira particular, condicionada pelos seus contextos específicos. A marca maior da hu- manidade é, portanto, ter sua unidade na diversidade; uma só espécie lidando com os impasses que lhe são próprios de maneiras múltiplas e diversas. Como pensar antropologicamente? 17 A antropologia é um saber que procura descrever as distintas for- mas de cultivar a vida, elaboradas e praticadas pelos seres humanos por métodos que lhe são próprios. A partir dessas descrições, na me- dida do possível, é admissível sugerir algumas hipóteses de interpre- tação da humanidade por meio da comparação dessas diferenças. Em suma, a antropologia é um saber acerca das diferenças que marcam as sociedades e culturas humanas e é por isso que o maior erro nessa disciplina é o etnocentrismo. Ao classificar as culturas como piores ou melhores do que a nossa, mais bonitas ou feias, mais certas ou erradas, estamos aniquilando as diferenças, uma vez que elas acabam sendo medidas pelas nossas próprias réguas. Levar o outro a sério é procurar medi-lo pela régua dele. Não para concluir se está certo ou errado, mas para entender o que é certo e er- rado para ele. Por isso, não é responsabilidade do antropólogo definir o que os outros são. Afinal, somente os outros têm autoridade para estabelecer o que e quem eles são e, à antropologia, cabe a tarefa de descrever, de acordo com o que os outros afirmam e fazem, como eles cultivam seus modos particulares de vida. Retornando ao caso de Hallowell, foi exatamente essa descrição que ele articulou a respeito dos ojibwa, procurando entender como eles vivem suas vidas. De certo modo, podemos afirmar que as perguntas que fizeram Hallowell conviver com os ojibwa e travar longas conversas com o chefe Berens foram: Como se vive uma vida em que algumas pedras estão vivas? Que humanidade se constitui a partir do momento em que se entende que algumas pedras estão vivas? Buscamos defender que, ao contrário do que pode parecer à pri- meira vista, não é um absurdo afirmar que algumas pedras estão vivas. Mais ainda, podemos argumentar que a antropologia parte da premis- sa de que é preciso levar a sério afirmações como essa para entender os jeitos particulares de cultivar a vida e, por consequência, para ter uma perspectiva acerca das diferenças que marcam a espécie huma- na. Contudo, ainda assim, alguns de nós podem ter chegado até aqui reiterando para si mesmos que “é impossível aceitar que pedras estão vivas, mesmo que sejam só algumas”. Para esses realistas céticos, tal- vez bastante agarrados às verdades científicas, vale uma última digres- são: será que nossa cultura urbana, industrial, tecnológica, racional e científica, essa que tomamos para medir as outras culturas, não teria 18 Antropologia Social também suas “pedras vivas”, isto é, concepções aparentemente fanta- siosas e delirantes? Tomem o número zero como exemplo, cuja origem é incerta. Al- guns historiadores indicam que ele teria sido inventado nas culturas pré-árabes do Oriente Médio, outros afirmam que surgiu inicialmente na Índia e, ainda, há os que sugerem que a concepção de zero era domi- nada pelos maias, na América, no momento da chegada dos europeus. Agora, independentemente de sua origem, o fato é que o zero não exis- te na natureza; não há qualquer materialidade observável, palpável e comprovável que possa servir de base à noção de um número nulo ou de um algarismo que representa o nada. Absolutamente tudo o que existe na natureza guarda alguma grandeza, nem que seja uma só. Não é exagero afirmar que o zero é produto exclusivo da imagina- ção humana. Contudo, uma vez imaginado, o zero faz sentido, não é mesmo? Afinal, se temos cem reais na conta e gastamos tudo no su- permercado, nos sobra zero real. Isso sim é bastante concreto e com- provável. O zero é fundamental para o sistema financeiro global e para toda a tecnologia informacional, como os computadores e celulares, que basicamente funcionam a partir da regra binominal zero-um.Por- tanto, também não é um exagero afirmar que esse produto da imagi- nação humana, o zero, literalmente moldou nossa realidade. E se, vivendo uma realidade em que o zero não existe, alguém apa- rece propondo uma representação numérica para o vazio, podemos imaginar que algumas vozes taxariam essa pessoa de lunática, afirman- do que o vazio não existe e que é impossível aceitar tamanha sandice? Usemos essa digressão a respeito do zero para pensar as pedras vivas e a perspectiva antropológica. O maior problema em aceitar que, para uma cultura diferente da nossa, algumas pedras estão vivas não é a suposta impossibilidade concreta dessa afirmação, como se ela não fosse plausível do ponto de vista das leis da natureza. A maior dificul- dade está em se distanciar das nossas pedras vivas, isto é, das bases e assunções que sustentam nossas próprias verdades. Estamos tão embebidos em nossos próprios jeitos de cultivar a vida que, diante de outros, tendemos a recusá-los ou a inferiorizá-los, usando como justifi- cativa nossas próprias concepções de mundo. O que veremos a seguir é que a própria antropologia se constituiu inicialmente a partir da infe- riorização de culturas diferentes da dela mesma, aquela que estava se consolidando com a formação da modernidade. Como pensar antropologicamente? 19 1.3 A aurora da antropologia Vídeo Ao longo da história da espécie, as diferenças entre os humanos sempre atraíram a curiosidade, despertaram o interesse ou geraram preocupação. Há mais ou menos 10 mil anos, no Oriente Médio, quan- do as primeiras civilizações, como a Mesopotâmia, se constituíram e os agrupamentos humanos eram menores e mais dispersos, o estrangei- ro era uma figura rara e que poderia trazer novidades desejáveis ou prenúncios de guerra. No século XVI, nas primeiras décadas da chega- da dos europeus na América, enquanto espanhóis e portugueses se perguntavam se os nativos tinham alma, índios mergulhavam corpos de europeus abatidos por dias, verificando se entravam em decom- posição ou não, para decidir se seus donos eram mesmo humanos (LÉVI-STRAUSS, 1976). E ainda, ao percebermos que ganhamos novos vizinhos, que acabaram de se mudar para o apartamento ao lado do nosso, muito provavelmente nos perguntaremos quem são esses des- conhecidos. O estranho, o estrangeiro, o forasteiro, em suma, o outro sempre foi um assunto que mobilizou as atenções dos humanos. Portanto, se nos perguntarmos quando surgiu a antropologia, per- cebemos que, na verdade, seu tema de estudo sempre esteve entre nós. Todavia, como um ramo de saber acadêmico, institucionalizado em universidades e amparado em pesquisas controladas metodolo- gicamente, a antropologia foi constituída no século XIX, fundamental- mente na Europa, a partir de um desdobramento das ciências da vida, ou o que alguns denominam grosseiramente de biologia. Às vezes, quando estudamos certas invenções na história das ciên- cias, tendemos a dar a uma pessoa em particular, ou a um livro espe- cífico, mais créditos do que realmente deveríamos. Ninguém sozinho e nenhuma obra única são capazes de gerar transformações revolucio- nárias tão socialmente abrangentes e impactantes quanto foram os de- senvolvimentos das ciências naturais. Assim, em meados do século XIX, todos aqueles que poderiam ser considerados cientistas já entendiam que a vida na Terra não tinha nascido pela obra da graça divina. Conse- quentemente, sabiam também que o surgimento do humano era um desdobramento de causas naturais, e não uma invenção celestial em que Deus teria feito, do barro, um ser semelhante à sua imagem. 20 Antropologia Social Entre esses cientistas, a disputa era conseguir elaborar uma teoria que explicasse e comprovasse o surgimento da vida e, de quebra, fosse aceita por todos os pares. O naturalista inglês Charles Darwin ganhou essa corrida. Em 1831, ele subiu a bordo do navio de nome Beagle e, até 1836, circundou o globo, passando pela Oceania, África, Ásia e Amé- rica do Sul, lugar em que mais se demorou. Nessa viagem, além de ter se encantado pelas florestas tropicais do Brasil e se horrorizado com a escravidão em nosso país, o jovem Darwin – que tinha 22 anos quando o Beagle se lançou ao mar – fez extensas anotações a partir de obser- vações e coletou quilos de materiais, como carcaças de tartarugas e pedras fossilizadas (DARWIN, 2006). Depois de mais de duas décadas de trabalho dando aulas, escreven- do artigos e estudando os materiais e as anotações dessa viagem, Dar- win publicou, em 1859, a obra A origem das espécies, lançando a base do que ficaria conhecido como teoria da evolução, isto é, o princípio da seleção natural. Em linhas gerais e grosseiras, a seleção natural é uma teoria que pro- cura dar conta da origem e da diversidade das espécies vivas. Por meio deste princípio, Darwin afirma que as espécies mais bem-adaptadas a certos ambientes têm mais chances de sobrevivência, ou seja, elas são selecionadas naturalmente no sentido de se adequarem melhor a certas configurações ambientais. Faz parte da seleção natural a luta pela sobre- vivência entre as espécies, uma afirmação de Darwin que gerou muitas controvérsias e mal-entendidos na interpretação de sua obra. A luta à qual Darwin se refere indica que, como os indivíduos de uma espécie são sempre diferentes entre si, eles tendem a lutar entre si pela sobrevivência. Os que têm mais chances de sobreviver e, assim, propagar-se nas próximas gerações, são os que apresentam caracterís- ticas naturais mais adequadas ao ambiente em que vivem. Um breve exemplo são os leões da savana africana; cada indivíduo da espécie apresenta diferentes tamanhos e formas de dentes caninos. Para Dar- win, a tendência é que os indivíduos com caninos mais fortes e ade- quados à caça sobrevivam e propaguem-se. Desse modo, em algumas gerações, quase todos os leões da savana africana terão caninos fortes como seus ancestrais. Entretanto, é muito importante considerar que Darwin não enten- de que as espécies mais bem-adaptadas são, de um ponto de vista Como pensar antropologicamente? 21 absoluto, melhores, mais sofisticadas ou evoluídas. Não há uma hie- rarquia das espécies na teoria de Darwin, como se ele estivesse jul- gando as diferentes formas de vida como inferiores ou superiores. O mais forte não é o superior, mas, simplesmente, aquele que conse- guiu se adequar melhor a um dado ambiente, levando a compreen- der que uma espécie que se adaptou melhor em um ambiente pode perecer em outro. Então, para Darwin, evolução não é um progresso em direção a um melhoramento da vida, mas, sim, o processo de di- versificação natural das espécies vivas. A evolução para Darwin é uma história natural da vida que não caminha para um futuro sempre me- lhor e mais sofisticado. E o ser humano, como localizá-lo nessa história natural? Para o ima- ginário da época (século XIX), o animal humano parecia ser a forma de vida mais bem-adaptada ao planeta, uma vez que teria dominado todas as regiões e subjugado todas as outras espécies. Nós não se- ríamos uma forma de vida especial a ponto de merecer uma ciência própria para estudá-la exclusivamente? Enfim, como contar a história natural dessa espécie? Aliás, seriam os humanos uma só espécie ou várias aparentadas, mas distintas? Como entender, do ponto de vista de uma ciência natural, as semelhanças e diferenças entre os seres hu- manos? Essas perguntas, motivadas pelas teorias de Darwin, deram luz à antropologia, a ciência do humano. Diferentemente da sociologia, criada por meio do cruzamento da filosofia, da política e da economia, a antropologia se constituiu a partir de desenvolvimentos teóricos das ciências naturais. Para os primeiros antropólogos, a tarefa da ciência do humano era muito clara: se a bio- logia se ocuparia do surgimento da vida até o aparecimento do homo sapiens e a história abordaria as mudanças e continuidades a partir do surgimento da escrita, a antropologia tomaria para si a tarefa de inves- tigar a lacunaentre as duas: estudaria o humano desde seu nascimen- to como espécie até o momento em que a escrita foi inventada, ou seja, aquela parte da nossa trajetória como espécie que provavelmente nos ensinaram, na escola, como sendo a pré-história. Contudo, para os antropólogos, os representantes dessa pré-história não estavam somente no passado, mas também no presente do século XIX. Assim, as etnias indígenas americanas, as sociedades tribais africa- nas e asiáticas, os ilhéus da Indonésia, Polinésia e Melanésia e os aboríge- nes australianos, em suma, todos aqueles que não dominavam a escrita 22 Antropologia Social e não eram propriamente europeus atrelados ao projeto da modernida- de, no século XIX, eram classificados pelos antropólogos da época como “fósseis vivos”, isto é, representantes de uma época da humanidade que já havia terminado, mas, ainda assim, estavam plenamente vivos. Na aurora da disciplina, o estudo antropológico desses não ociden- tais, do passado e do presente, se deu em quatro frentes. De um lado mais concreto, a arqueologia, se ocupando dos restos materiais do pas- sado humano, e a antropologia física, averiguando as características fenotípicas dos diferentes corpos humanos. Do lado mais social e cultu- ral, a antropologia linguística, tratando das diferenças gramaticais, léxi- cas e fonéticas entre as distintas línguas humanas e, finalmente, a área que nos interessa, a antropologia social e cultural, abordando as múlti- plas e variadas formas de pensar e viver coletivamente dos humanos. Você já reparou se aparece um antropólogo dando depoimento em documentários transmitidos em canais de história e geografia da TV a cabo, que trazem temas como “os hominídeos ancestrais dos humanos”, “a vida humana antes da civilização” ou até mesmo tópicos bastante he- terodoxos, do tipo “eram os deuses astronautas”? Ou notou se, em séries de investigação policial, há a presença do personagem do antropólogo forense, especializado em solucionar a identidade de corpos encontra- dos na cena do crime? Pois é, esses programas e séries não estão inven- tando uma antropologia inexistente. Existe, sim, essa antropologia que estuda ossos e corpos e ela é proeminente até hoje em muitos países, inclusive no Brasil, com uma fortíssima tradição em arqueologia. Mas então, você pode estar se perguntando por que estudamos so- mente a antropologia social e cultural neste livro. A resposta é porque essas áreas se distanciaram umas das outras ao longo dos últimos 150 anos, e para entender as razões que dividiram a antropologia em duas (sendo uma física e outra social), precisamos entender as disputas en- tre poligenistas e monogenistas que marcaram os primeiros desenvol- vimentos teóricos da disciplina. 1.4 Da raça ao evolucionismo social Vídeo Vamos nos imaginar no lugar de um antropólogo do século XIX. Na sua frente, encontra-se um representante daquelas sociedades deno- minadas à época como aborígenes australianos. Ele lhe parece fisica- mente muito diferente dos corpos que você está habituado a ver, sua Como pensar antropologicamente? 23 estatura é mais baixa, seu tipo é mais franzino e sua pele tem tom meio marrom, meio vermelho. Você sabe que ele não domina escrita e leitu- ra e que também não compartilha a noção de família, já que, para ele, o grupo doméstico é o clã, formado a partir do totem, que pode ser uma planta, um animal ou até mesmo um redemoinho. Para caçar, ele usa um instrumento estranho para você, o bumerangue. Além disso, seus rituais chegam a durar meses e sua religião não distingue nenhuma entidade superior ou espiritual; para ele, todos os elementos da natu- reza estão unidos numa força só. Como podemos explicar essa pessoa? Como a interpretamos? Ela é completamente diferente de nós? Será que representa outra humanidade? Se não, se nós e ele somos da mes- ma espécie, como explicar tamanha diferença? Nas primeiras décadas de produção de conhecimento antropológi- co, entre 1860 e 1890, para dar conta de problemas como o imagina- do, um antagonismo separava os antropólogos em dois lados de um embate teórico (SCHWARCZ, 1993). De um lado, havia os poligenistas, que acreditavam que a humanidade era constituída por diferentes es- pécies, cada uma com sua origem natural própria, e entendiam, por exemplo, que os aborígenes australianos não eram os mesmos huma- nos que os europeus eram; a constituição genética desses povos, para os poligenistas, era diferente. De outro, os monogenistas, que defen- diam a ideia de que os humanos, tanto os do presente quanto os do passado, tinham a mesma origem natural e que, portanto, para eles, apesar das enormes diferenças sociais e culturais, todos os humanos formavam uma só espécie. Da vertente poligenista, desponta uma ideia que, apesar de não ter tido uma vida longa na antropologia acadêmica, infelizmente atraiu um considerável número de entusiastas fora da disciplina. Ideia essa que certamente contribuiu para justificar consequências nefastas à huma- nidade: a ideia de raça. A partir de métodos como a frenologia, a antropometria e a cra- niometria – todos eles baseados em medições de partes do corpo –, antropólogos poligenistas afirmaram que a espécie humana se dividia em raças, isto é, gêneros humanos biologicamente distintos: a raça caucasiana seria a predominante na Europa; a negroide, na África; e a mongoloide, na Ásia e na América. totem: objeto, animal ou planta cultuado como um símbolo ou ancestral de uma coletividade. Glossário 24 Antropologia Social Tomando como base supostas características fenotípicas, os polige- nistas estabeleciam atributos comportamentais a cada raça. Para eles, por exemplo, a craniometria (medição do crânio) indicava que a raça negroide apresentava uma caixa craniana mais achatada nas laterais, fazendo com que o cérebro fosse comprimido e, assim, não se desen- volvesse plenamente. Portanto, de acordo com os poligenistas, o atribu- to comportamental específico da raça negroide era o trabalho físico, já que ela não estaria biologicamente apta ao desenvolvimento intelectual. Além disso, tendo dificuldades mentais de entendimento da ordem social e das leis, indivíduos negroides tenderiam a cometer mais crimes do que os de outras raças, como o antropólogo criminal italiano Cesare Lombroso sugeriu em 1876 (SCHWARCZ, 2003). A pureza racial, então, seria o ideal para os proponentes dessas ideias. A mistura racial levaria à degeneração, isto é, à perda das especializações comportamentais de cada raça. As falhas científicas na ideia de raça são flagrantes e óbvias e a maior delas estava em explicar supostos atributos comportamentais por supostas características fenotípicas, mas nenhuma evidência com- provável sustentava essa explicação. A ideia de raça estava baseada única e exclusivamente em suposições, de modo que o mais correto a respeito dela é afirmar que se trata de uma roupagem pseudocientífica para o velho e arraigado preconceito. A precariedade teórica da ideia de raça foi rapidamente percebida por muitos antropólogos, mas, infe- lizmente, não por quem não era. E, assim, essa ideia foi utilizada para justificar a escravidão e o imperialismo colonialista da Europa sobre a África, o Sudeste Asiático e boa parte da Oceania. O maior problema é que se as diferenças humanas são explicadas pela biologia, como fazia a ideia de raça, restam duas alternativas po- líticas: a sociedade é organizada de acordo com as supostas atribui- ções de cada raça – negros trabalham e brancos pensam, como muitos europeus desejavam – ou a raça tida como inferior é assassinada. É o genocídio, o assassinato de um gene, como nomeou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Organização das Na- ções Unidas em 1948. Foi o que o nazismo tentou fazer, baseando-se na ideia de raça, em seus campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Nenhuma dessas alternativas políticas é plausível; elas são horríveis, assim como a ideia de raça. Comopensar antropologicamente? 25 Os monogenistas não embarcaram na ideia de raça, pois como ad- vogava um de seus principais defensores, o britânico Edward Burnett Tylor (1832-1917), eles acreditavam na “unidade psíquica da humanida- de” (CASTRO, 2005, p. 14). Postular essa unidade significa afirmar que os humanos não diferem biologicamente e, portanto, suas potenciali- dades mentais e comportamentais são, a princípio, idênticas. Como, então, os monogenistas explicavam as explícitas diferenças entre os humanos? Pelo fator social e cultural. Eis aí o ponto de partida do nosso ramo da antropologia, aquele que investiga os aspectos sociais e culturais que compõem a diversidade de jeitos de cultivar a vida hu- mana. A premissa desse ramo é a de que os humanos são semelhantes biologicamente, mas diferem social e culturalmente. Ela foi lançada por monogenistas, ainda no século XIX, como pelas pesquisas do advogado norte-americano, Lewis Henry Morgan (1818-1881), que desde a sua ju- ventude se interessou pelas etnias indígenas que habitavam o nordeste do seu país e o sudoeste do Canadá, especialmente os iroqueses, esta- belecendo laços de amizade com algumas tribos e até mesmo represen- tando-as juridicamente em processos de demarcação de terras. Ao longo dessa relação, Morgan averiguou a organização social dos iroqueses, particularmente o que denominou de parentesco. Para não complicar nossos estudos, já que o tópico é complexo e truncado, basta indicar que Morgan percebeu que a noção usual de família não condi- zia com o modo como os iroqueses se organizavam. Ele notou que os indígenas tinham, sim, palavras equivalentes para pai, mãe, tio e filho, por exemplo, mas o que essas concepções significavam para eles era completamente diferente dos significados atribuídos pelos norte-ameri- canos e europeus. Para se referir à forma de organização social dos iro- queses, Morgan usou a palavra parentesco e, assim, demonstrou que a concepção ocidental de família não era universal. Ele não explica a orga- nização social dos iroqueses afirmando que os indígenas pertencem a uma raça diferente, mas, ao contrário, sustenta a semelhança biológica da humanidade ao postular que tal organização é uma diferença social. Todavia, nem tudo são flores entre os monogenistas. Se as diferen- ças não eram de gênero, eram de grau. Além de Morgan, autores como Edward Burnett Tylor e Sir James Frazer, outro britânico muito impor- tante neste momento da antropologia, são conhecidos por serem mo- nogenistas e, também, evolucionistas. Para eles, “em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios 26 Antropologia Social sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e as- cendente” (CASTRO, 2005, p. 14). De acordo com essa lógica, qualquer sociedade humana passaria pelas mesmas etapas de evolução social, indo do mais simples ao complexo. O evolucionismo é, portanto, um tipo de método comparativo, inter- pretando a vasta diversidade de sociedades e culturas humanas dentro de um único critério, qual seja, o da própria sociedade do pesquisador. Afinal, se todas as sociedades devem passar por estágios dentro de uma trajetória única e linear, qual delas estaria no topo dessa linha? Sim, a sociedade moderna, urbana, industrializada, europeia e branca na qual os próprios evolucionistas se encontravam. Em Londres, Paris e Nova York, a humanidade teria atingido seu ápi- ce evolutivo ao ter dominado a razão científica e o principal produto dela, a tecnologia. O indígena americano e o aborígene australiano se encontrariam nos primeiros degraus de uma escada que fatalmente desembocaria no estágio em que os europeus e norte-americanos se encontravam – daí a noção de sociedades primitivas. Elas estariam nas fases primárias de evolução da humanidade, na infância da espécie, por assim dizer; eram simples, enquanto a sociedade dos evolucionis- tas era adulta e complexa. Eles tinham rituais de cura e nós, medicina; tinham parentesco e nós, família. Eles dominavam a cerâmica e a ces- taria e nós, a máquina a vapor. Eles tinham crenças e nós tínhamos verdades; tinham cultura, e nós, ciência. Apesar de terem qualificado as diferenças humanas como sociais, oferecendo, assim, uma alternativa à ideia tão nefasta de raça, os evolu- cionistas acabaram confundindo evolução com progresso. A diversida- de cultural humana, por meio desse método, perdeu toda a sua riqueza ao ser reduzida a estágios de uma mesma história – aquela de quem escrevia os livros de antropologia, interpretada como uma trajetória de domínio da natureza por meio da razão e da tecnologia. E assim, os não ocidentais, esses outros, viraram “fósseis vivos” da história do Ocidente. Eles cometeram o erro fatal do etnocentrismo, e de todo modo, os evolucionistas não estavam sozinhos nessa maneira de entendimento da diversidade cultural. Na época deles, as últimas décadas do século XIX, era muito difícil resistir à força do progresso. A sensação geral na- quele momento era a de que o humano, de fato, havia vencido a bata- lha contra seu maior inimigo, a natureza. E a arma que teria garantido essa vitória era a tecnologia. Coração das trevas, novela escrita por Joseph Con- rad, narra a história de um marinheiro britânico que, em sua estada no Congo, em posse dos belgas na época, conhe- ceu uma figura que o impressionou fortemen- te. Para além dos dilemas humanos abordados na novela, o texto trata das relações entre europeus e povos não ocidentais na passagem do século XIX para o XX, mesmo mo- mento histórico em que os evolucionistas estavam elaborando suas teorias antropológicas. CONRAD, J. Rio de Janeiro: Antofá- gica, 2019. Livro Como pensar antropologicamente? 27 Além disso, à exceção de alguns raros pesquisadores, como Mor- gan, os evolucionistas não conviveram com os não ocidentais. Eram antropólogos de gabinete, teorizando sobre os outros por meio de in- formações que recebiam de militares, agentes do governo, comercian- tes, colonizadores e missionários que tinham entrado em contato com outras sociedades ao redor do mundo. A antropologia percebeu os erros dos evolucionistas e elaborou ma- neiras menos etnocêntricas de entendimento da diversidade cultural quando os pesquisadores resolveram ir, eles mesmos, conhecer os não ocidentais. E aí, é como o ditado popular mais ou menos preconiza: de perto, ninguém é normal. É o que veremos no próximo capítulo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de sua história de mais ou menos 200 anos, a antropologia refinou uma potente perspectiva de entendimento das diferenças huma- nas. Esforçando-se para levar o outro a sério, os antropólogos ensinam que qualquer ponto de vista que pretenda ser universal corre o constante risco de reduzir a importância da riqueza da diversidade humana. Assim fazendo, a antropologia tornou-se uma voz privilegiada de combate aos preconceitos e de estímulo ao aprofundamento de uma noção de demo- cracia que convida todos os outros para a participação política. Contudo, como vimos nos dois últimos itens deste capítulo, na aurora da disciplina, essas potências ainda não tinham se revelado plenamente. É importante salientar que todo ramo de saber acadêmico é uma cons- trução contínua, marcada por transformações dos modos de entender e de produzir o conhecimento. Como Weber certa vez afirmou, a verda- deira aspiração do cientista é ser esquecido e cair no ostracismo, já que, se assim acontecer, significa que seu ramo de conhecimento foi refinado posteriormente a ele. No caso da antropologia, é possível sugerir que o paradigma evolu- cionista, ao mesmo tempo em que representou uma sólida barreira para a efetiva percepção da alteridade, acabou tendo uma função histórica determinante para a disciplina: tal como um muro muito alto para ser transpassado, estabeleceu um forte desafio para as gerações vindouras. Para elas, se fosse possível desfazer as amarras do evolucionismo, a an- tropologia poderia terum futuro promissor. Analisando em retrospectiva, pode-se afirmar que essa possibilidade se tornou uma realidade. 28 Antropologia Social ATIVIDADES 1. Na sua região, como as pessoas adquirem carne para a alimentação? Elas vão ao supermercado ou criam e abatem animais em suas propriedades? Que tal, além de responder a essas indagações, conversar com pessoas mais velhas e perguntar a elas como era comer carne antigamente? Pergunte também como essas pessoas e suas famílias se relacionavam com bois, vacas, porcos e galinhas. Depois dessas pesquisas, reflita: a alimentação à base de carne, das últimas décadas para o presente, mudou? E a relação das pessoas com os animais que são abatidos para a alimentação continua sendo a mesma que era no passado ou ela foi transformada? 2. Vamos praticar a ideia de “levar o outro a sério”, como consta na segunda seção? O desafio é perguntar a uma pessoa totalmente desconhecida se ela é feliz e conversar sobre as razões de sua resposta. Deixe a conversa fluir, independentemente do tema que aparecer entre vocês. O importante é você se colocar em um lugar de escuta diante de outra pessoa e deixar que ela fale mais do que você. Depois, relate sua experiência de ouvinte. 3. Descreva qual foi o etnocentrismo dos evolucionistas. REFERÊNCIAS CASTRO, C. (org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. DARWIN, C. O diário do Beagle. Curitiba: UFPR, 2006. INGOLD, T. Antropologia – para que serve. Petrópolis: Vozes, 2019. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976. SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Como produzir conhecimento antropológico? 29 Se a antropologia social é um estudo das diferentes maneiras de cultivar a vida, como os seus pesquisadores fazem para conhe- cer e registrar essa diversidade? Afinal de contas, mesmo não sen- do uma ciência nos moldes da física e da química, a antropologia social ainda é um saber acadêmico que almeja produzir conheci- mento empírico, ou seja, observável e real, que seja considerado válido e legítimo. Nas próximas páginas, entenderemos como a antropologia so- cial produz esse tipo de conhecimento a respeito das culturas hu- manas e teremos resposta às perguntas que envolvem esse tema. Como produzir conhecimento antropológico? 2 2.1 Como conhecer o outro? Vídeo Ao andar pelas ruas de sua cidade, você costuma notar as pessoas com as quais cruza em seu trajeto? Ou ainda, no ônibus ou no carro, os sujeitos que atravessam seu olhar atraem sua atenção? Aquele grupo de estudantes rindo alto, o homem que anda apressado, a senhora com sacolas, a moça que acompanha com os lábios a música que ouve nos fones de ouvido, os funcionários das lojas, os motoristas, os mo- radores de rua ou o rapaz que não se desliga do celular. Todas essas pessoas, de um modo ou de outro, são estranhas para nós. Você se vê as observando e pensando sobre elas? Você se interessa por es- sas vidas a ponto de, sendo um tanto indiscreto, notar seus trejeitos e ações ou de especular sobre suas profissões, gostos e afazeres e, ainda, saber de onde estão vindo e para onde estão indo? Ou de se perguntar quais seriam suas vontades, medos e angústias? Esses ou- tros lhe interessam? 30 Antropologia Social Caso as pessoas ao seu redor não despertem seu interesse, espe- ro que este livro o faça, provocando em você a vontade de saber mais sobre os outros. Afinal, o interesse sobre eles é o ponto de partida da antropologia social. A partir do seu nascimento, com os evolucionistas, a antropolo- gia social configurou-se como um saber acadêmico que tinha como objeto de averiguação as sociedades não ocidentais. Se a sociologia (que estava surgindo na mesma época) conformou-se com o estudo da complexa sociedade industrial, capitalista e urbana que se conso- lidava na Europa Ocidental e nos Estados Unidos (MARTINS, 1982), a antropologia social foi identificada como uma ciência das sociedades simples, caracterizadas por clãs, totens, caça e coleta, alguma agricul- tura rudimentar e produção de subsistência. Como vimos, de acordo com os evolucionistas – que viviam na modernidade europeia e nor- te-americana, época em que o suposto triunfo da razão, da ciência e da tecnologia carregava a noção de progresso com um forte otimismo no futuro –, essas sociedades, como o indígena americano, o africa- no, o asiático e o ilhéu do Pacífico, eram classificados como humanos estranhos (os “outros”) ao que era familiar a eles, como se estivessem estacionados no passado da espécie, praticando rituais de iniciação, acreditando em espíritos que animavam as florestas e explicando o surgimento do sol e da lua por mitos. Se essas sociedades estavam bem distantes de onde os antropó- logos moravam, como eles as conheciam? Como informações sobre esses “outros” eram adquiridas? E, talvez o mais importante, de que tipo eram essas informações? Os evolucionistas, salvo algumas exceções, eram antropólogos de gabinete, ou seja, eles não visitavam as sociedades que estudavam; fi- cavam em universidades, escritórios e bibliotecas, amparando-se em livros de viajantes ou em questionários preenchidos por europeus que viviam ou tinham vivido próximos a essas sociedades. Era assim que teciam suas ideias e teorias sobre os outros. Relatos de viajantes e questionários preenchidos por terceiros po- dem oferecer produtivos pontos de partida para começar a conhecer o “outro”. Mas será que são suficientes para um saber que almeja al- guma cientificidade? Será que esses documentos oferecem dados que podem ser tomados como materiais de comprovação de teorias? As Como produzir conhecimento antropológico? 31 perspectivas que emanam das páginas desses textos foram fiéis à rea- lidade das sociedades que supostamente descreviam? Muitos dos que preenchiam os questionários eram militares, funcionários do governo e agentes do comércio, pessoas que estavam no além-mar preocupa- das com a defesa do território ou com impostos e lucros, e não com a feitura de uma descrição qualificada de um ritual ou de uma crença; eles não haviam sido treinados para pesquisar sociedades. E a língua? Será que eles realmente tinham aprendido a língua nativa, identifican- do dialetos e considerando os variados significados e sentidos que as palavras poderiam ter para seus falantes? E ainda, com quem teriam entrado em contato? Com homens ou mulheres? Quais homens e quais mulheres? Com quais posições sociais? Podemos afirmar, portanto, que as informações recebidas pelos evolucionistas eram bastante enviesadas. Muitas intermediações, que alteravam significativamente os dados recolhidos, se colocavam entre os primeiros antropólogos e as sociedades não ocidentais. A voz que emanava dos relatos e questionários não era propriamente a das pes- soas dessas sociedades e, sim, de europeus, via de regra alheios aos te- mas e às preocupações da antropologia. Em suma, a distância entre os antropólogos e as pessoas as quais estudavam, mesmo com os relatos e questionários, ainda era imensa. Essas pessoas continuavam sendo estranhas a eles. Não é exagero sugerir que as interpretações etnocêntricas dos evo- lucionistas, que colocavam as diferentes sociedades e culturas como estágios inferiores do desenvolvimento da própria modernidade eu- ropeia, foram produtos dessa distância. Apartados por milhares e milhares de quilômetros, tendo como material de pesquisa relatos e questionários amadores e, ainda, embebidos na atmosfera de crença na razão e na tecnologia como bússola para o futuro da humanidade, os evolucionistas tomaram as sociedades não ocidentais versões sim- ples e arcaicas deles mesmos. Para sair do paradigma evolucionista, a antropologia precisou se aproximar das sociedades que estudava. Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, alguns pesquisadores foram até elas e conviveram com aspessoas, aprendendo suas línguas, conversando com elas e fazendo as atividades presentes nessas sociedades. Eles se aproximaram dessas sociedades, escutaram mais, e melhor, suas vo- zes e desenvolveram observações próprias e mais diretas. Assim, ficou No filme O fabuloso destino de Amélie Poulain, a jovem garçonete Amélie descobre que é justa- mente no cuidado com o outro que ela encontra o amor e a alegria pela vida. Vale assistir ao filme para perceber como a abertu- ra sensível e emocional não é uma questão de altruísmo ou fuga da pró- pria vida, mas, sim, um caminho para o encontro consigo mesmo. Direção: Jean-Pierre Jeunet. França, 2001. Filme 32 Antropologia Social claro para eles que os “outros” não eram estágios da evolução da mo- dernidade e que, portanto, não eram inferiores, mas, sim, diferentes. Os antropólogos críticos do evolucionismo, sobre os quais estuda- remos a seguir, deram uma dica valiosa para você que pensa e se inte- ressa pelos estranhos que cruzam seu caminho pelas ruas da cidade. Se o objetivo é saber mais sobre a vida dessas pessoas, pensar sobre elas é um bom começo. Entretanto, o conhecimento só virá se você falar com elas. Mais ainda, se você entrar no cotidiano delas e acompa- nhá-las em suas atividades. Ao agir assim, é quase certa sua percepção de que essas pessoas são realmente bem diferentes de você. Todavia, percebendo a vida dessas pessoas pelos critérios delas mesmas, essas diferenças farão sentido. Afinal, para conhecer o outro, é preciso escu- tar sua voz. A questão é se nós estamos preparados e treinados para efetivamente escutar a voz do outro. 2.2 Franz Boas: a cultura como um universo Vídeo Franz Boas (1858-1942) é um dos heróis da antropologia social. Ca- rinhosamente chamado pelos seus alunos de Papa Boas, de fato, ele é um dos responsáveis pela formação de uma antropologia contrária às premissas do evolucionismo – formação essa que se deu em três sen- tidos. O primeiro, pela forma com que fez suas pesquisas; o segundo, por meio de textos, ideias e conceitos que derrubaram as concepções evolucionistas, uma vez que as criticavam e ofereciam alternativas; e o terceiro, em sua atuação profissional, dando aulas, organizando expo- sições museológicas e preparando uma nova geração de antropólogos, que pesquisaram sob sua orientação. Nascido na Prússia (hoje Alemanha), Boas defendeu seu doutorado em física na Universidade de Kiel (norte da Alemanha), em 1881, com uma tese sobre a absorção da luz pela água. Contudo, naquela época, a separação entre ciências naturais e sociais não era tão forte como é hoje. Ele se interessava bastante por geografia e psicofísica, um ramo da ciência que estudava as relações entre sensações físicas e percepções psicológicas. Em 1882, morando em Berlim, iniciou seus estudos em an- tropologia física e, sem perspectivas interessantes de trabalho, organi- zou uma expedição geográfica-antropológica à Ilha de Baffin, no norte do Canadá, com o objetivo de estudar os esquimós (hoje chamados de inuit). Financiado por um jornal berlinense, que garantiu os recursos para Como produzir conhecimento antropológico? 33 expedição mediante o recebimento de textos relatando a experiência, partiu para uma viagem em junho de 1883, acompanhado unicamente por um empregado da família (STOCKING JR., 2004). Os dois ficaram por um ano na ilha, não só vivendo com, mas so- bretudo vivendo como esquimós – uma experiência que certamente foi fundamental para as críticas que Boas lançaria mais tarde contra o evo- lucionismo. Podemos comparar, por exemplo, a ideia evolucionista de que as sociedades não ocidentais eram simples e estavam em estágios inferiores da evolução social humana com a seguinte observação de Boas, de dezembro de 1883, em seu diário de viagem: Frequentemente me pergunto que vantagens nossa “boa sociedade” possui sobre aquela dos “selvagens” e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito de olhá-Ias de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder- se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui? [...] Nós, “pessoas altamente educadas”, somos muito piores, relativamente falando [....]. Creio que, se esta viagem tem para mim uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação, e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, reside na formação do coração, que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós. (BOAS apud CASTRO, 2005, p. 9) A relatividade de toda formação. Essa passagem é uma espécie de resumo do que Boas ofereceu à antropologia social: não existe uma, mas, sim, várias, inúmeras, múltiplas culturas, as quais, ademais, não são melhores ou piores se compararmos umas às outras; são apenas diferentes. Voltaremos a essas ideias logo adiante. Boas então volta à Alemanha e, insatisfeito com os trabalhos que conseguia, em 1886, decide migrar para os Estados Unidos. Depois de diferentes ocupações e algumas expedições para outras regiões da América, torna-se professor de antropologia na prestigiosa Universi- dade de Columbia, em Nova York, em 1896, cargo que ocupou até se aposentar, em 1936, ao completar 78 anos. É importante frisar que, no momento de sua aposentadoria, boa parte da antropologia social mundial, se não toda ela, era boasiana. Foi assim, como professor e pesquisador, que revolucionou a antro- pologia social, lançando as bases do que podemos denominar cultura- lismo ou relativismo e formando a geração seguinte de pesquisadores. 34 Antropologia Social Seus alunos, ao se espalharem por outras universidades dos Estados Unidos, consolidaram a antropologia social no quadro de disciplinas acadêmicas do país. Até mesmo um brasileiro, muito importante para a interpretação cultural do nosso país, foi aluno de Boas. Trata-se do pernambucano Gilberto Freyre, que estudou com Boas no início da dé- cada de 1920 e é autor de clássicos do pensamento social brasileiro, como Casa-Grande e Senzala. Apesar de não ter escrito nenhum livro, Boas publicou centenas de artigos sobre diversos temas da antropologia social, como línguas indí- genas, rituais, máscaras, arte primitiva, mitos e religião, dentre outros. Aparentemente avesso à formulação de postulados, não esboçou uma definição clara e direta de cultura que te- nha ficado na memória da disciplina. Suas ideias, po- sições teóricas e metodológicas estão espalhadas por sua vasta obra, assim como seu legado, que se consolidou principalmente por meio dos seus alu- nos, os quais sempre fizeram questão de salien- tar como seus trabalhos eram influenciados pelo mestre. Para apresentar a importância revolucionária de Boas para a antropologia social, vamos recortar, de toda sua produção, três premissas epistemológicas, isto é, formas de entender a elaboração de conhecimento antropológi- co. Em outras palavras, vamos tentar responder, de acordo com Boas, o que é preciso ter em mente para conhecer o outro por meio da antropologia social. Primeira, o outro só pode ser antropologicamente conhecido em seu próprio habitat. Para Boas, nenhum relato de viajante ou ques- tionário aplicado por terceiros poderia substituir a pesquisa de campo feita pelo próprio antropólogo, que era treinado para isso e visitava o grupo a ser pesquisado exclusivamente com esse fim, e não com obje- tivos militares, comerciais ou religiosos. Assim, a observação direta gera uma aproximação intelectual, já que as intermediações entre o pesquisador e o grupo diminuem, pois convivendo com os integrantes do grupo, o pesquisador, ao menos por um período de tempo, vive como eles, fazendo o que fazem, comendo o que comem, morando nas mesmas habitações em que moram e as- sim por diante. Em algumas de suas aulas, Boas encenava os rituais das tribos que havia estudado. Na imagem, o professor ilustra uma das etapas do Hamats’a, importante ritual de tribos que habitam o oeste canadense. Figura 1 Franz Boas Ma gn us Ma nsk e/Wi kimediaCommons Como produzir conhecimento antropológico? 35 Ao conviver com tribos nativas da América por vários anos, em di- versas ocasiões ao longo de sua carreira, Boas percebeu a validade do trabalho de campo em suas próprias experiências e sensibilizou seus alunos a fazerem o mesmo. Vale notar que, para ele, havia uma razão política para o trabalho de campo dos antropólogos. Para o mestre, as tribos nativas da América estavam sendo brutalmente transformadas e/ou dizimadas pelo avanço da modernidade para dentro de suas ter- ras e tribos. Elas estavam prestes a desaparecer e era preciso defen- dê-las de algum modo. Se era praticamente impossível impedir esse processo, os antropólogos poderiam, ao menos, contribuir registrando a riqueza da diversidade dessas culturas para a humanidade. O trabalho de campo é o método por excelência da antropologia social até os dias de hoje. Como veremos a seguir, Malinowski, nos- so próximo autor, é geralmente reconhecido como o antropólogo que sistematizou esse método. Contudo, Boas, bem antes, já o praticava e o ensinava. A riqueza desse método está em observar as pessoas não só em seu habitat geográfico, mas, principalmente, em seus coti- dianos sociais. A antropologia entende que é aí que as pessoas agem normalmente, mostrando como realmente são. Em suas próprias ca- sas e fazendo o que seu grupo espera delas, as pessoas tenderiam a não rebuscar suas respostas diante de um aplicador de questionário ou a tomar posturas defensivas ou tímidas fora dos ambientes que lhe são familiares. Mais ainda, observando as pessoas em seus cotidianos, a vida de uma sociedade aparece ao pesquisador como efetivamente é: bagunçada, misturada, em que as esferas e práticas sociais que o intelecto separa – religião, política, economia, parentesco, arte, espor- te, dentre várias outras – estão inextricavelmente sobrepostas, uma influenciando a outra, uma sendo a outra dependendo da ocasião. A postura da antropologia é, então, se perguntar: por que não procurar descrever e analisar a vida cultural em sua totalidade, ao invés de sepa- rar o que não é separado? O que nos leva à segunda e mais importante premissa de Boas: a cultura é um universo em si. Um ritual, uma ideia, um costume, uma prática e até mesmo um objeto não podem ser entendidos separados de seus contextos culturais. A parte só faz sentido dentro do todo. Um exemplo das próprias pesquisas de Boas ajuda a ilustrar essa premissa. Entre os kwakiutl, etnia indígena que habitava a costa su- doeste do Canadá, na região da Columbia Britânica, Boas observou um A minissérie Olhos que condenam conta a história real de quatro adoles- centes negros que foram injustamente acusados de estuprar uma mulher no Central Park, em Nova York, em 1989. A trama acompanha o processo, o destino dos adolescentes no sistema carcerário e o contexto social do caso. Direção: Ava DuVernay. Estados Unidos: Netflix, 2019. Minissérie 36 Antropologia Social ritual bastante significativo para os nativos chamado potlatch. Realizado em ocasiões especiais, como casamentos, nascimentos, falecimentos e iniciação na vida adulta, o potlatch só era frequentado pelas famílias mais importantes da etnia, geralmente líderes de clãs. O que intrigava Boas nesse ritual era sua dinâmica: em um dado momento da cerimô- nia, o anfitrião desafiava um convidado a medir poder e prestígio com ele. Aceitar o desafio era uma questão de honra. Mas, afinal, como esses líderes mediam seus respectivos poderes e prestígios? Dando e queimando seus próprios pertences materiais. Quem dava ou queimava mais posses materiais era o vencedor. A própria palavra potlatch pode ser traduzida como dar. Fazendo uma analogia com a nossa própria sociedade, o potlatch significava para os kwakiutl algo parecido com uma eleição. O líder mais respeitado e po- deroso, o “eleito”, era o que dava mais e, assim, permanecia até a pró- xima cerimônia, quando os “candidatos” mediriam forças novamente. Do ponto de vista da sociedade capitalista, trata-se realmente de um ritual estranho, pois acumular posses é sinal de prestígio social e poder político. Queimar pertences estimados, nesse sis- tema, seria avaliado como uma ação absurda. Dar obje- tos pessoais e importantes, por sua vez, só faz sentido por motivos emocionais e familia- res. Em casos de doações filantrópicas, confere-se certa superioridade huma- na ao doador, gesto visto como al- truísta. De todo modo, a regra capitalista é ter, acumular, lucrar e, muitas vezes, ostentar. Se interpretarmos o potlat- ch pelo ponto de vista capita- lista, provavelmente seremos levados a entender o ritual como uma ocasião desconexa e sem sentido, uma invenção de mentes desprovidas de suas facul- dades racionais. Os kwakiutl, observa- dos por essa perspectiva, pareceriam seres selvagens, primitivos e inferiores, que acreditam em uma ilu- são distante da verdade dos fatos. Figura 2 Encenação potlatch, com as máscaras e totens marcantes da cultura kwakiutl Edward S. Cur tis / Wik ime dia Co mm on s Como produzir conhecimento antropológico? 37 E se tentarmos entender o potlatch pelo ponto de vista dos kwa- kiutl, de acordo com seus valores e suas regras? Foi essa a sugestão de Boas. Para o antropólogo, o ritual compunha a cultura kwakiutl de tal modo que não era possível entender um sem a outra e vice-versa. Ele afirma que o potlatch é um sistema de crédito para os indígenas. A derrota em uma cerimônia fazia com que o perdedor contraísse uma dívida com o ganhador e que essa poderia ser paga de diversas formas: submissão política, esposas para os filhos, colheitas, pescas e até mesmo sacrifícios animais aos espíritos, clamando pela saúde do ganhador. Ganhar um potlatch gerava um ativo não só para si mesmo, mas para o clã. Ao explicar que as dívidas contraídas em um ritual podiam ser pagas aos filhos do ganhador, Boas expõe que “assim, o potlatch passa a ser considerado pelos índios como um meio de asse- gurar o bem-estar de seus filhos, se por acaso ficarem órfãos ainda jo- vens. É, poderíamos dizer, um seguro de vida” (BOAS apud STOCKING JR., 2004, p. 137). Por meio de suas análises do potlatch, podemos perceber o que Boas entende por cultura: um todo integrado que faz sentido para as pessoas que fazem parte dela. Mais do que afirmar que as sociedades são sistemas muito bem organizados e racionais, Boas postula que o que confere sentido à vida social é o modo como as pessoas dessas sociedades as entendem. São as percepções das pessoas – a um só tempo, cognitivas, emocionais e práticas – que dão significado aos cos- tumes, às ideias, aos cotidianos e aos objetos. Essas percepções são o que podemos denominar de cultura para Boas. Desde crianças, as pessoas vão aprendendo como se vive em suas respectivas sociedades. Aprendem não só valores, verdades e princí- pios por meio de ensinamentos formais de adultos, mas também pra- ticam essa vida, acompanhando os mais velhos em diversas ocasiões, observando o que acontece, copiando comportamentos, conversando, escutando e se relacionando com pessoas da mesma idade. Para Boas, ao longo desse processo de socialização, as pessoas são efetivamente criadas como sujeitos de uma sociedade específica, como kwakiutl, es- quimós, capitalistas e assim por diante. Essa criação é uma moldagem da percepção ou, em outras palavras, de formação da cultura dentro de cada pessoa. Para usar uma metáfora estimada por Boas, as culturas são lentes pelas quais vemos o mundo. 38 Antropologia Social Para ele, portanto, o mundo não é percebido de maneira comple- tamente objetiva. Não existe o mundo “tal como ele é” para o autor. O mundo é o que cada cultura faz dele. Se existem culturas, então exis- tem mundos. Daí a ideia lançada anteriormente: para Boas, cada cul- tura é um universo em si. Cabe ao antropólogo entrar nesse mundo e interpretar seus significados de acordo com os seus habitantes. Na história da antropologia social, a concepção
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