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Portfolio Prof. André 2022 13665991 Eduarda Gabrielly Krynski de Oliveira UC04- PROCESSO DE SAUDE E DOENÇA Cê curou tantos enfermos, Jesus Mas hoje em dia, se alguém fica enfermo, não acha remédio nem lá no SUS -A Divina Comédia, Fábio Brazza Considerado um dos maiores sistemas de saúde pública mundial, o Sistema Único de Saúde (SUS) surgiu em 1990 na tentativa de homogeneizar a disponibilidade de saúde para a população de diferentes classes sociais, etnias, gêneros e regiões geográficas. De fato, o SUS obteve um sucesso parcial nesse requisito quando comparado á outros países. Sempre que penso sobre isso, relembro os discursos familiares que ouvi durante a eleição americana do Donald Trump. Minha avó, frente à televisão, me dizia sobre a importância do SUS para o atendimento aos mais vulneráveis, elemento inexistente na América do Norte, onde qualquer serviço de saúde é realizado mediante a uma taxa exorbitante, e sobre como uma mudança política daquela magnitude poderia dificultar ainda mais a população americana dependente de planos de saúde, já que o governo anterior ao Trump possuía um enfoque maior em saúde a baixos valores. Essa preocupação dos estado- unidenses sobre saúde pública é extremamente perceptível nos aspectos socioculturais, principalmente na produção de audiovisuais, sendo que um filme marcante sobre o assunto lançado no ano de 2022 levantou novos questionamentos – Introdução principalmente de brasileiros – sobre a manutenção da medicina internacional. O filme em questão, “Purple Heart”, expressa um casamento falso pelos protagonistas para que a mulher, portadora da síndrome metabólica Diabetes Mellittus tipo I, consiga obter o tratamento de insulina através do Plano de Saúde Militar do marido. Após o lançamento da longa-metragem, brasileiros, indignados com a ausência de um Sistema de Saúde gratuita, relataram sua indignação sobre o assunto nas mídias sociais. Naquele momento, assim como no diálogo com minha avó, pensei: “Quanta sorte tenho de morar no Brasil!”. Talvez eles estejam certo, morar em um país sem ter que se preocupar com o valor monetário de um parto infantil. Porém, seria essa a realidade de todos os brasileiros ou ainda existem parcelas sociais que não podem sequer ter a garantia de um atendimento médico adequado? Não muito tempo após o comentário da minha vó, obtive minha resposta. vAlguns dias depois, uma ligação desesperada de minha mãe noticia a internação da minha irmã, Katherine, devido uma Meningite Viral tardiamente diagnosticada. Após uma viagem para a capital de Rondônia, Porto Velho, já que as outras regiões do estado não possuem estrutura suficiente para tratamento, minha mãe soube pelo médico de um hospital público que minha irmã teria que ser medicada oralmente com uma solução não disponível na rede de farmácias do SUS. Mesmo após alguns meses, posso lembrar do desespero de minha mãe por não poder fazer nada por sua filha mais nova, uma situação que, infelizmente, não era única, já que ocorreu diversas vezes durante minha infância. Todavia, quando cheguei na FMUSP após a minha aprovação, a qualidade do sistema de saúde, quando comparado a minha região de origem, me impressionou e revoltou-me simultaneamente. Senti a raiva pura interiorizada de alguém que, muitas vezes, sequer tinha o tratamento médico básico ou Dipirona disponível na farmácia do sistema de saúde, mas que naquele momento estava diante de um hospital público de alta tecnologia mediada por médicos graduados, principalmente, pela própria Universidade de São Paulo, uma universidade que, apesar de ser pública e federal, formava médicos que, muitas vezes, são restritos à população de São Paulo e de Classe Média e Classe Alta. Assim, pergunto-me se essa alta tecnologia e medicina equitativa fornecida pelo SUS é realmente igualitária e se essa “sorte de ser brasileiro” é aplicável no contexto de vulnerabilidade e marginalização, já que enquanto os pacientes atendidos no Hospital das Clínicas dispõem de um farto estoque de medicamentos intravenosos e médicos extremamente qualificados, os pacientes das periferias brasileiras ou do interior do Brasil não possuem a disponibilidade de um Otoscópio decente para atendimentos. Para Brazza, isso é uma realidade comum na periferia. Com isso em mente, Brazza discursa em suas canções sobre a naturalização da vulnerabilidade no Brasil. A demonstração prática desse argumento está contextualizada na reação pública ao filme “Purple Heart”. Quando confrontados com o caso da protagonista, brasileiros discursaram nas redes sociais acerca da necessidade de medidas estatais para a população vulnerável norte-americana. Porém, considerando o nosso próprio país, o fenômeno popular diverge do esperado, com falácias como: “Pelo menos temos o SUS, mesmo que deficiente para os vulneráveis. Ter algo é melhor que nada.”, mesmo quando inúmeros diabéticos dependem desse sistema para obter suas aplicações de insulina diária, mas são notificados com a indisponibilidade na Unidade Básica de Saúde, evidenciando que, claramente, é necessário para conciliar a integração da igualdade. Sem um sistema de saúde, não existiria uma mera possibilidade de haver uma decrescente mortalidade na população brasileira, principalmente quando se utiliza um dos principais parâmetros de diagnóstico de saúde: a taxa de mortalidade infantil. Desde 1990, a taxa de mortalidade infantil se apresenta em uma queda brusca que, até 2015, equivalia a uma redução maior que a metade do valor de origem (Em 1990: 47,1 óbitos por mil e 2015: 13,3 óbitos por mil). Considerando que a aplicação dos princípios do SUS tem origem na Constituição de 1988, é possível que haja uma relação entre essa diminuição, pontuando a favor do argumento da importância do SUS e, apesar de todas as falhas que já contaste pessoalmente sobre o Sistema, utilizei após a chegada na capital paulistana inúmeras vezes o serviço e me surpreendi com o atendimento, principalmente comparado a minha cidade de origem. Porém, seria justo com esses mais vulneráveis na sociedade brasileira relevar suas dores por “o SUS ser melhor do que nada”? Ou pior, reverberar a moralidade colonial ao precificar pessoas, fornecendo apenas o básico falho para às necessidades de sobrevivência para alguns, enquanto outros possuem o demasiado? Pretendo, com esse portfólio, discorrer dos inúmeros aprendizados que obtive na UC04 para discursar sobre tais levantamentos, mas ainda mais importante, desejo provocar o leitor com a seguinte questão: “Como nossas ações como médicos podem influenciar a qualidade de um sistema de saúde universal?” riscos e eu segurava sua mão com força, com um tremor mal escondido de que aquele dia perderia minha mãe. Quando ela desapareceu diante das portas cirúrgicas, eu me sentei contra a parede e chorei. Lembro que fazia anos que eu não chorava, sempre numa tentativa de parecer mais forte para meus irmãos e minha mãe. No entanto, eu me sentia como uma pequena criança frágil esperando por um monstro atacar. O monstro, porém, era real: era o medo de perder a pessoa que eu mais amava nesse mundo. Tempo depois, senti um calor ao meu lado e me virei. Era um homem de meia idade. Usava um jaleco tão branco que eu me sentia impura por estar perto de alguém tão heróico e divino como aquele médico. Vim de uma cultura que médicos eram seres inalcançáveis, então tive que suprimir o instinto de apenas fugir do homem ao meu lado. Discussão Pessoalmente, não comecei Medicina por ser médica. Assim como todos, ou todos que conheci, eu sonhava desde os 6 anos em fazer medicina para estabelecer um melhor padrão de vida para a vida de minha família, por um objetivo frágil que sequer envolvia o amor total pela profissão. Claro, eu amava ajudar as pessoas. Porém, outras profissões poderiam me realizar ainda mais caso esse fosse meu propósito guia, como um voluntariado ou uma formação em Assistência Social. Aos meus 12 anos, porém, um momento chave, que eu sequer considerava que seria importante no futuro, modificou minha visão.Era uma das primeiras vezes que eu conhecia São Paulo e eu tinha vindo pois minha mãe iria realizar uma operação no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Desde muito jovem, ela teve que ir além do limite para sustentar nossa família e, esse esforço, psicológico e físico, teve como consequência seis hérnias de discos que a deixavam impossibilitada de sequer andar pela dor. Entramos no hospital e minha impressão foi que o que tornava esse hospital incrível era a tecnologia ao meu redor. Janelas grandes de vidro, médicos aos montes e exames quase que instantâneos. Era um sonho. Ela se arrumava para cirurgia enquanto o doutor explicava os “-Você está esperando alguém? “-Minha mãe. O senhor está esperando alguém?” Eu não lembro de seu rosto ou de seu nome, mas lembro de sua voz. -Não. Acho que vou esperar aqui com você.” Seu jaleco branco, sem medo de sujar com o chão, estava esparramado. Mas ele ficou lá até o fim. Minha avó, acompanhante da minha mãe, estava na área de acompanhantes, porém mesmo com sua presença, não houve nada que pudesse tirar aquilo das minhas memórias: um doutor ao meu lado, mesmo sendo um doutor e eu sequer sendo um paciente. Foi quando escolhi essa faculdade. Também foi quando eu escolhi o tipo de médica que eu queria ser. Então, se eu pudesse traduzir a Atenção Primária em Saúde em uma cena, seria essa. O doutor que chefiou a cirurgia da minha mãe salvou sua vida, mas, honestamente, não lembro o nome dele. Enquanto isso, o médico que apenas me salvou naquele momento, me guiou como um modelo. Subjetivamente, para mim, existem muitas regras no atendimento primário e muitos pilares, mas não há outro tão importante quanto o aplicado pelo senhor que estava ao meu lado e hoje eu entendo: não tente ser o melhor médico do mundo para todos. Seja o melhor médico do mundo para seu paciente. Afinal, cuidar não envolve apenas conhecimentos técnicos. Claro, a APS permite ao médico prevenir uma internação ou uma descompensação de saúde. Porém, diferente do atendimento na Urgência ou Emergência, o APS permite cuidar das histórias de seus pacientes, seja trocando uma medicação ou apenas se sentando ao seu lado apesar do chão sujo. Essa minha visão foi concretizada durante a UC04. Na UBS, meu primeiro contato com o paciente foi uma senhora oriental que dizia que sua parte favorita do dia era receber os Agentes de Saúde. Ela se sentia solitária e essas pessoas eram seus únicos contatos sociais diários. Enquanto que para mim, meu “tratamento” foi companhia durante uma fase difícil, para ela foi aqueles pequenos momentos de normalidade fornecida pela APS. Apesar da APS ter um eixo de profilaxia e promoção de saúde, ela se concentra em valores humanitários que não são focos em atendimento em redes de urgência e emergência, já que estes são baseados em atendimento técnico rápido e eficaz, não passando de um encontro médico com o paciente, tornando incapaz de estabelecer laços de confiança médico-paciente. Esse atendimento, entretanto, não é igualitário, diferente do que muitos pensam, já que deve estar adaptado às questões de território, vulnerabilidades e comunidade do paciente. Para entender melhor o conceito do atendimento contextual que pauta a medicina centrada no paciente, convido ao leitor a análise da obra abaixo: No primeiro vislumbre, o item que mais me chama atenção é a obscuridade da obra, com cores sombrias. As crianças, com ossos sobressalentes e pés descalço, parecem seguir a expressão de desespero dos adultos. Á direita, uma delas possui sinais clínicos de esquistossomose, aparente pela ascite sobressalente. A esquistossomose é uma doença parasitária comum em regiões sem saneamento básico, um grande fator de risco para outras doenças parasitárias, como a Cólera ou a Leptospirose. É difícil, vivendo na capital, em que um copo d’água potável está a uma torneira de distância, imaginar que o uso de água contaminada pode ser uma realidade para o nosso paciente. Essa vulnerabilidade, inclusive, não é tão distante quanto pensamos. Durante minha primeira visita a UBS São Jorge, o Agente Comunitário de Saúde relatou sua preocupação acerca das novas periferias emergindo no bairro, já que até pouco tempo atrás, não havia coleta de lixo ou saneamento básico entre as principais regiões populares e, com esses novos aglomerados residências, era muito possível que essa realidade se concretizasse nesses locais. Então, a inexistência de condições sanitárias suficientes a moradia não se limita apenas ao senso comum do Nordeste, mas está presente, inclusive, na Região Metropolitana de São Paulo. Entender os riscos associados das vulnerabilidades dos nossos pacientes, inclusive sobre seus aspectos territoriais, é necessário para atender às demandas da comunidade, visando não apenas tratar os doentes, mas os fatores causadores da doença da melhor forma que nossa profissão permite. Porém, como vim de uma região cujas vulnerabilidades eram ignoradas, observo que o que deveria ser uma pauta do Sistema Único de Saúde é completamente ignorada pelos médicos, pelo Sistema e por toda a equipe de saúde. Como disse antes, na minha cidade, médicos eram intocáveis e deusificados como o ápice do conhecimento humano. Todavia, esses mesmos profissionais mantinham uma impessoalidade impressionante, quase que com medo de nos olhar. Agora, na profissão, minha hipótese seria que talvez esse medo de nos olhar seja real, liderado por um medo de ver seres humanos igual a ele, não objetos de prática da ciência que eram pobres de conhecimento. Assim as consultas são regidas por um modelo unilateral de conversa, em que existe o contraponto entre aquele que detém todo conhecimento e o ignorante. Eu sequer me sentia a vontade de dizer que era alérgica a dipirona, com medo das consequências de duvidar do discernimento técnico do profissional de saúde. Seria esse o preço a ser pago por uma consulta fornecida pelo SUS? Seria o Sistema de Saúde o único culpado? Sinceramente, creio que não. Claro, existe uma evidente falta de recursos e investimentos sobre esse sistema, mas muitas vezes o tratamento médico não é só pautado em medicação, mas cultivar o melhor possível para o paciente, mesmo quando não existe nada que podemos fazer cientificamente para eles. Então, sim, uma comunicação dialógica com o cuidado centrado nos aspectos individuais do paciente e seu território seria o modelo ideal, uma maneira de confrontar o humano com empatia, compaixão e considerar o atendimento como uma troca de conhecimento, em que eu, como futura médica, provavelmente não saberei as mesmas informações que meu paciente, mas posso aprender com ele também. Entretanto, só apenas por ser um modelo ideal, devemos, como estudante de Medicina, considerá-lo como inatingível? Pessoalmente, acredito que não. Pacientes são histórias, retalhos de todos que o amaram e todas suas experiências. Dessa maneira, pontuo que o principal “furo” do SUS seria a indiferença com as vulnerabilidades, muitas vezes provocada pelos próprios profissionais de saúde, distanciando o paciente da realidade dele como indivíduo. Para que haja a sensibilidade a esse tópico, é necessário entender a importância das vulnerabilidades e dos pilares para estabelecer um cuidado centrado no paciente. Em contraponto a vulnerabilidade demonstrada na obra de Portinari, a obra “Angústia” conta a história de um trabalhador de classe média que, mesmo com um padrão de vida suficiente para a sobrevivência, ainda vive em grande estado de angústia, remoendo cada parte de seu passado, presente e futuro. Com uma infância solitária, Luís tem uma visão pessimista de tudo que o cerca, além da grande necessidade de enfatizar sua masculinidade, seja competindo por Marina, seu par romântico, seja através de seus atos adultos, que beiram a violência. A grande questão que trago é a influência dessa masculinidade imposta pelos aspectos culturais de ser filho de um sertanejo e como sua vulnerabilidade acerca da questão de gênero, mesmo com estabilidade financeira, teria sido prevalenteem seu estado de saúde no final da obra, em que Luís beira ao delírio e paranoia. Durante diversos momentos, Luís justifica seus atos agressivos ao fato de ter a necessidade de demonstrar a Marina que ele é mais homem do que o “namorado” dela jamais será. Portanto, é notável que as vulnerabilidades ignoradas não abrangem apenas a situação econômica e territorial, mas também as questões de gênero e etnia. Enquanto os Retirantes, em um claro déficit socioeconômico, demandam um atendimento voltado a situação sanitária, educação sexual, principalmente ligado a natalidade, já que a mãe aparenta ter iniciado a maternidade ainda na juventude, e prevenção e rastreio de doenças concomitantes as suas dificuldades individuais, Luís, apesar de não apresentar visível déficit socioeconômico, demanda de entender suas questões de gênero e desvincular sua imagem de masculinidade e saúde, já que principalmente se tratando de distúrbios mentais, o estigma masculino torna praticamente impossível a adesão ao tratamento. Assim, fica ainda mais claro que a medicina não é única para todos, mas subjetiva ao meu paciente. As necessidades de Luís são diferentes das dos Retirantes. Além do gênero, a questão da orientação sexual deve ser levantada para entender o impacto de tais fatores no atendimento. Normalmente, quando tratamos da comunidade LGBTQIA+, é comum que os profissionais de saúde e o SUS generalize tais questões apenas como os riscos de DST’s e, realmente, tal discussão é importante não apenas para a comunidade, mas para quaisquer pacientes que possuem vida sexualmente ativa. Mesmo diante desse levantamento, ainda há focos deficientes, principalmente quando se trata da proteção de mulheres, como o uso de camisinhas femininas. Porém, o aspecto de saúde de gênero ou saúde da comunidade abrange muitos tópicos além de Exames de Próstata ou folhetos educativos sobre AIDS direcionados a comunidade LGBTQIA+ , como o tabu médico acerca do ato sexual, violências domésticas ou abusos sexuais dentro de relações homossexuais e até mesmo a saúde mental e isso é demonstrado com o passado brasileiro. Frente a epidemia de casos de AIDS, anúncios agressivos com orientação sobre o pânico popular culpava, principalmente, os indivíduos pertencentes à comunidade LGBTQIA+ como causadores dos casos. Até então, os panfletos ou anúncios televisivos orientando sobre a proteção em relações sexuais, além dos riscos associados de seu não uso, não eram comuns. Sinceramente, mesmo hoje, em meio a uma pandemia, não se observa orientações sobre uso das máscaras, então não houve grande mudanças nesse quesito. Em meio do caos, a culpa recaindo nas minorias não necessariamente é uma novidade ao leitor. Porém, como resultado, assassinatos em massa eram cometidos contra a comunidade, quase numa tentativa de “exterminar” aqueles que os anúncios culpavam, já que houve uma discussão que reforçava a homofobia do período. Contudo, atualmente, sabemos que a epidemia da doença abrangiam muito mais os indivíduos heterossexuais do que homossexuais. Trago tais fatos para demonstrar os impactos de orientações de saúde no atendimento, que mesmo após algumas décadas, é um desafio para o profissional de saúde lidar, principalmente quando tratamos da doença, mas não da causa, como ocorreu no passado, onde houve divulgação dos sintomas causados pela AIDS, mas não sobre como isso afetava todas orientações sexuais ou como a homossexualidade deve ser desvinculada desse aspecto de preconceito, já que algo que deve ser normalizado. Porém, a importância da comunicação com o paciente e os tópicos a serem abordados, em pleno século XXI, ainda não é assimilada e ainda existe o retorno das situações passadas em um ciclo. Durante a pandemia de COVID, por exemplo, anúncios públicos acerca dos benefícios do fármaco Cloroquina levaram a agravamentos de diversos casos que, além de realizar o uso da medicação inapropriada, ainda não aderiram ao isolamento social. Seriam essas pessoas as únicas culpadas pelo seu adoecimento? Claramente, não. A inadequação da comunicação sobre a importância do isolamento ou sobre o uso de camisinha, que infelizmente não é realizada pelo Ministério de Saúde, portanto, é influenciada por nós, médicos. Sem as mídias realizando tais divulgações, cabe aos profissionais de saúde orientar o paciente dentro das consultas através das dúvidas dele e seu aspecto socioeconômico, evitando a culpabilidade do paciente em seu estado de saúde e promovendo a profilaxia de saúde, para que não haja a duplicação dos eventos que ocorreram durante a epidemia de AIDS. Uma das maneiras de entender as demandas de determinada região geográfica, e, possivelmente poder usá-las para amenizar os problemas na saúde pública brasileira para nosso paciente, é através de um diagnóstico de saúde obtido pelos indicadores epidemiológicos. Para melhor compreensão do leitor, retorno às obras anteriores. Na pintura de Cândido, as crianças raquíticas demonstram a privação nutricional da família. Porém, trazendo outra obra que compreende a mesma região, o Nordeste brasileiro, um índice importante nos traz o diagnóstico de saúde da população nordestina. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, os pais nomeiam seus filhos como “Filho mais velho” e “Filho mais novo”. Durante o período que abrange a literatura de Ramos, a mortalidade infantil, indicador que calcula a probabilidade de óbito infantil até um ano de idade por mil vivos, era extremamente alto, tanto pela privação nutricional quanto pela sede ou ingestão de água contaminada. Assim, muitas vezes, os pais sequer nomeavam seus filhos quando novos. Sabendo desse dado, isso permite ao profissional de saúde retratar um quadro geral dos residentes da região, principalmente quando comparamos o risco relativo (proporção de mortes considerando outros fatores, como o acesso à saúde ou o ambiente) do sertão nordestino a um padrão elegível que se aproxima do ideal (ambiente apto a sobrevivência e acesso à saúde de qualidade, excluindo quase todas variáveis). Considerando a infância um dos momentos mais sensíveis de imunocompetência, é possível que o epidemiologista obtenha dados dessas regiões de alto risco. Após, é possível obter um refinamento desse diagnóstico através de outros indicadores que tornem possível definir o porque da mortalidade infantil estar tão alta no cenário de Vidas Secas, principalmente considerando a proporção (expressa número de eventos que ocorrem com características específicas dentre o número total de eventos, como por exemplo o número de óbitos infantis causados por desidratação dentre o número de óbitos infantis) das principais causas de mortes dentre o número de óbitos infantis e suas incidências (casos novos de determinada doença dentre o grupo exposto), permitindo entender o risco e peso de determinadas causas de morte naquele indicado e a progressão dessas causas dentro da região. A melhor exemplificação da importância dos aspectos epidemiológicos pessoalmente, seria a atuação dela nos casos de Febre Amarela na região de São Paulo. Apresentado durante a Unidade Curricular 03, o médico responsável pelo departamento de Medicina Tropical, ele comentou sobre que um grande agravante foi o diagnóstico primário errôneo, em que muitos eram tratados com Anti-inflamatórios Não Esteroidais (AINE), facilitando a multiplicação viral em um estado de viremia. Porém, durante os primeiros meses ainda, houve uma interprofissionalidade entre a epidemiologia e Medicina Veterinária, permitindo que os primeiros sinais já gerassem suspeitas e que o SUS pudesse promover a vacinação prévia desse grupo de risco. Assim, através de rastreamento de casos de óbitos em macacos e de incidência e prevalência dos contaminados pelo vírus, além de alertar os profissionais de saúde para que houvesse exames diagnósticos aos menores indícios clínicos, foi possível conter a doença e suas complicações. Dessa maneira, a epidemiologia é capaz de se aliar fortemente com a promoção de saúde e, através de seus coeficientes, rastrear o grupo derisco para determinada doença. Ainda mais importante do que entender o território, o grupo de risco e a vulnerabilidade é entender o diálogo de tais aspectos sociais e culturais na doença e como isso influencia no tratamento dela. Para isso, como finalização, convido ao leitor a ler um capítulo do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus, e refletir comigo sobre os assuntos pontuados. “Amanheci com dor de barriga e vomitando. Doente e sem ter nada para comer. Eu mandei o João no ferro velho vender um pouco de estopa e uns ferros. Ele ganhou 23 cruzeiros. Não dava nem para fazer uma sopa. (...) Que suplicio adoecer aqui na favela! Pensei: hoje é o meu ultimo dia em cima da terra. ...Percebi que havia melhorado. Sentei na cama e comecei catar pulgas. A idéia da morte já ia se afastando. E eu comecei a fazer planos para o futuro. Hoje eu não saí para catar papel. Seja o que Deus quiser.” -Quarto de Despejo Carolina de Jesus vive em condições precárias dentro de uma periferia brasileira, dependendo de “catar papéis” para sobreviver. Para ela, a doença é um dia de trabalho perdido, sem poder alimentar seus filhos ou sua própria fome. Uma dos trechos mais impactantes para mim é “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”. Concordo com Carolina, porém adiciono uma observação sobre isso. O Brasil também precisa de médicos e profissionais de saúde que já passaram pela fome como professora, para que haja qualquer sinal de reconhecimento que demonstre que nem todo paciente é capaz de se alimentar com frutas e carnes diariamente, principalmente quando a sua doença significa manter seus filhos mais um dia sem as três refeições adequadas. Considerando a periferia em que Carolina reside, cujos arredores tornam quase impossíveis de criar conexões pessoais para manter uma vida com um emprego estável, principalmente uma mulher negra e mãe solo de 3 crianças, os limites entre saúde e doença são quase invisíveis, já que mesmo se nosso paciente conseguir atendimento médico, é quase impossível a ele manter o tratamento indicado alimentar e medicamentoso quando sua principal prioridade é um dia de trabalho para manter uma refeição. Assim, o Sistema Único de Saúde e o médico deve levar em consideração esses aspectos para melhorar adesão do paciente ao tratamento e não apenas culpabilizar o paciente pela sua própria doença ou agravamento desta, já que a comunicação por si só deve ultrapassar um ideário aprendido na graduação sobre a importância da boa alimentação é quase que inviável para alguém que recebe 0,28 centavos/dia. Agradeço ao Prof. André pela oportunidade de desvincular a imagem do médico intocável que eu trazia desde minha infância, onde se importar com o paciente supostamente impede um tratamento justo para que, assim, eu entenda que um médico, com seu jaleco, estava apenas verdadeiramente atuando em sua profissão ao sentar ao meu lado. Conclusão O SUS é incapaz de sustentar uma equidade social devido a um claro déficit orçamentário. Porém, os futuros médicos não devem apenas aceitar tais condições, lutando pelo que nossa profissão centraliza: a humanidade. Enquanto tais mudanças não são estabelecidas, como indivíduos, cabe aos médicos entender que não apenas a ausência de investimentos no setor de saúde pública é uma problemática nesse setor, visto que a indiferença ao paciente como indivíduo está estruturado numa mentalidade de superioridade do estudante de medicina, desconsiderando toda história, cultura, aspecto socioeconômico e valores desses pacientes como humanos. Nós, futuros médicos, não tratamos doenças, mas sim pessoas. Enquanto não ocorrer uma reflexão dos valores da profissão ainda na graduação, o SUS se manterá ainda desigual, mesmo frente a aumento orçamentário. Concluindo, a Unidade Curricular trabalhada nesse portfólio permitiu-me como indivíduo entender que muito mais do que o conhecimento científico aprendido na universidade, a medicina deve compreender aquele que como nosso igual, possui suas dores, qualidades, amores e dificuldades.
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