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Como funciona o sangue artificial Introdução Médicos e cientistas criaram muitos dispositivos mecâ- nicos que podem substituir partes do corpo que se quebram ou se desgastam. Um coração, por exemplo, é basicamente uma bomba; um coração artificial é uma bomba mecânica que faz circular o sangue. Da mesma forma, artroplastias totais de joelho substituem ossos e cartilagens por metal e plástico. Próteses de membros se tornam cada vez mais complexas, mas ainda são essencialmente dispositivos mecâ- nicos que podem fazer o trabalho de pernas e braços. Tudo isso é bastante fácil de compreender: trocar um órgão por um substituto artificial geralmente faz sentido. O sangue artificial, por outro lado, pode ser algo es- pantoso. Uma razão para isso é que a maioria das pessoas pensa no sangue como algo mais do que apenas tecido con- juntivo que transporta oxigênio e nutrientes. Em vez disso, o sangue representa a vida A maioria das culturas e religiões deposita um significado especial nele, e sua importância afetou até mesmo a língua inglesa Você pode se referir às suas características culturais ou ancestrais como estando em seu sangue Os membros da sua família são seus parentes de sangue. Se você é ultrajado, o seu sangue ferve. Se você está com medo, ele gela O sangue carrega todas essas conotações por um bom motivo: ele é absolutamente essencial à sobrevivência das formas de vida vertebradas, incluindo os seres humanos. Ele transporta oxigênio dos pulmões para todas as células do corpo. Ele também extrai o dióxido de carbono de que o organismo não precisa e o devolve aos pulmões para que seja exalado. O sangue fornece nutrientes do sistema di- gestivo e hormônios do sistema endócrino para as partes do seu corpo que precisam delas. Ele passa através dos rins e do fígado, que removem ou destroem resíduos e toxinas Os leucócitos do sangue ajudam a prevenir e combater doen- ças e infecções O sangue também pode formar coágulos, evitando hemorragias fatais em consequência de cortes e arranhões sem importância © S e b a s ti a n K a u li tz k D re a m s ti m e .c o m Imagem de células sanguineas. Pode parecer improvável, ou mesmo impossível, que uma substância artificial possa substituir alguma coisa que faça todo esse papel e seja tão importante para a vida hu mana. Para entender o processo, vamos conhecer um pouco sobre o funcionamento do sangue real O sangue tem dois componentes principais: plasma e elementos celulares. Quase tudo o que o sangue transporta, incluindo nutrientes, hormônios e resíduos, é dissolvido no plasma, que é basi camente água. Os elementos celulares, que são células e partes de células, também flutuam no plasma Os elementos celulares incluem os glóbulos brancos, que fazem parte do sistema imunológico, e as plaquetas, que ajudam a formar os coágulos. Os glóbulos vermelhos são responsáveis por uma das tarefas mais importantes do sangue: transportar oxigênio e dióxido de carbono. Os glóbulos vermelhos, ou hemácias, são muito nume- rosos; eles compõem mais de 90% dos elementos celulares do sangue Sua estrutura ajuda-os a transportar oxigênio mais eficientemente. Um glóbulo vermelho tem a forma de um disco côncavo em ambos os lados Assim, eles têm muita área de superfície para a absorção e liberação de oxigênio. Sua membrana é muito flexível O glóbulo vermelho não tem núcleo e, dessa forma, ele pode se esgueirar através da parede de minúsculos vasos capilares sem se romper S e b a s ti a n K a u li tz k i/ 12 3 rf .c o m Os glóbulos vermelhos, também chamados de eritrócitos, têm a forma de discos bicôncavos. A falta de núcleo de um glóbulo vermelho também dá a ele mais espaço para a hemoglobina (Hb), uma estrutura complexa que transporta oxigênio e é feita de um compo- nente proteico chamado globina e de um composto contendo ferro chamado heme. Os hemes usam o ferro para se unir ao oxigênio Dentro de cada glóbulo vermelho há cerca de 280 milhões de moléculas de hemoglobina. Se você perder muito sangue, você perde muito do seu sistema de fornecimento de oxigênio. Os leucócitos, os nu- trientes e as proteínas que o sangue transporta também são importantes, mas os médicos geralmente se preocupam mais com o fornecimento adequado de oxigênio às células Em uma situação de emergência, os médicos geralmente dão aos pacientes expansores de volume, como soluções sali nas, para compensar o volume de sangue perdido. Isso ajuda a restaurar a pressão sanguínea normal e permite que o restante dos glóbulos vermelhos continue a transportar oxigênio. Às vezes, isso é suficiente para manter o corpo em funcionamento até que ele possa produzir novas células sanguíneas e outros elementos do sangue. Caso contrário, os médicos fazem nos pacientes transfusões de sangue para substituir parte do san- gue perdido. As transfusões de sangue também são bastante comuns durante alguns procedimentos cirúrgicos. O processo de transfusão funciona muito bem, mas exis tem vários desafios que podem dificultar ou impossibilitar o fornecimento do sangue de que o paciente precisa: BIOLOGIA Capítulo 12 Sangue160 • o sangue humano deve ser mantido resfriado e sua vali dade é de 42 dias. Isso torna impraticável para as equipes de emergência transportá lo em ambulâncias ou outras equipes médicas transportá-lo para o campo de bata- lha Expansores de volume isoladamente podem não ser suficientes para manter vivo um paciente com um sangra- mento volumoso até que ele chegue ao hospital • os médicos precisam confirmar se o sangue é do tipo correto: A, B, AB ou O, antes de dá lo ao paciente Se uma pessoa receber o tipo de sangue errado, ela pode morrer. • o número de pessoas que precisam de sangue está cres cendo mais rapidamente do que o número de pessoas que doam sangue. • vírus como o do HIV e das hepatites B e C podem con- taminar o suprimento de sangue, ainda que testes mais modernos tenham diminuído em muito a contaminação na maioria dos países desenvolvidos É aqui que o sangue artificial entra. O sangue artificial não faz todo o trabalho do sangue real: às vezes, ele nem pode substituir o volume de sangue perdido. Em vez disso, ele transporta oxigênio em situações em que os glóbulos vermelhos de uma pessoa não conseguem fazer isso isola- damente Diferentemente do sangue real, o sangue artificial pode ser esterilizado para matar bactérias e vírus. Os médi- cos também podem dá lo ao paciente independentemente de seu tipo de sangue. Muitos tipos de sangue têm duração de mais de um ano e não precisam ser refrigerados, tornando os ideais para o uso em situações de emergência e em campos de batalha Assim, mesmo que ele não substitua de fato o sangue humano, o sangue artificial ainda é bastante incrível. A seguir, vamos ver de onde vem o sangue artificial e como ele funciona na corrente sanguínea de uma pessoa. Tipos de sangue artificial Até recentemente, a maioria das tentativas de criar san- gue artificial falhou. No século 19, médicos fracassaram ao dar aos pacientes sangue animal, leite, óleos e outros líqui- dos por via endovenosa. Mesmo depois da descoberta dos tipos de sangue humanos, em 1901, os médicos continua- ram a procurar substitutos para o sangue. As duas grandes Guerras Mundiais e as descobertas da hepatite e do vírus da imunodeficiência humana (HIV) também aumentaram o interesse em seu desenvolvimento. © M a s k a 8 2 D re a m s ti m e .c o m Bolsa de sangue artificial HBOC Empresas farmacêuticas desenvolveram algumas poucas variedades de sangue artificial nas décadas de 80 e 90, mas muitas abandonaram suas pesquisas após infartos, derrames ce- rebrais e mortes de cobaias humanas. Algumas fórmulas iniciais também causaram o colapso de vasos capilares e o aumento excessivo da pressão sanguínea. Porém, pesquisas adicionais levaram a vários substitutos específicos do sangue divididos em duas classes: carregadores de oxigênio que utilizam he- moglobina (HBOC, na sigla em inglês) e perfluorcarbonetos (PFC). Alguns desses substitutos, na sua fase final de teste,conse- guem estar disponíveis em hospitais Outros já estão em uso. Por exemplo, um HBOC chamado Hemopure atualmente é usado em hospitais na África do Sul, onde o alastramento do HIV ameaçou o suprimento de sangue. Um carregador de oxigênio baseado em PFC, chamado Oxygent, está nos estágios finais de testes em seres humanos na Europa e América do Norte. Os dois tipos têm estruturas químicas bastante diferentes, mas ambos trabalham basicamente através da difusão passiva. A difusão passiva tira proveito da tendência dos gases de se mover de áreas de maior concentração para áreas de menor concentração até atingir um estado de equilíbrio No corpo humano, o oxigênio se move dos pulmões (alta concentração) para o sangue (baixa concentração) Depois, quando o sangue atinge os vasos capilares, o oxigênio se move do sangue (alta concentração) para os tecidos (baixa concentração) O sangue artificial tira vantagem da difusão passiva, na qual o oxigênio se move de uma área de alta concentração (os pulmões) para uma área de baixa concentração (o sangue). HBOCs Os HBOCs assemelham-se vagamente ao sangue, sua cor é vermelho-escuro ou bordô. Eles são feitos de hemoglobina real, esterilizada, que pode vir de uma variedade de fontes: • glóbulos vermelhos de sangue humano real; • glóbulos vermelhos de sangue de vaca; • bactérias geneticamente modificadas que podem produzir hemoglobina; • placentas humanas. Porém, os médicos simplesmente não conseguem injetar hemoglobina na corrente sanguínea de uma pessoa. Quando está dentro das células sanguíneas, a hemoglobina faz um excelente trabalho de transporte e liberação de oxigênio. Mas sem a membrana da célula para protegê-la, ela se desintegra muito rapidamente. A hemoglobina desintegrada pode causar sérios danos renais. Por essa razão, a maioria dos HBOCs usa F R E N T E 3 161 formas modificadas de hemoglobina que são mais resistentes do que a molécula que ocorre naturalmente. Algumas das técnicas mais comuns são: • ligação cruzada de partes da molécula de hemoglobina com um derivado da hemoglobina que transporta oxigê- nio chamado diaspirina; • polimerizar a hemoglobina unindo várias moléculas; • conjugar a hemoglobina ligando-a a um polímero. Cientistas também pesquisaram HBOCs que envolvem a hemoglobina em uma membrana sintética feita de lipídios, colesterol ou ácidos graxos. Um HBOC, chamado MP4, é feito de hemoglobina revestida em polietileno glicol. Os HBOCs funcionam semelhantemente aos RBCs co- muns. As moléculas de HBOC flutuam no plasma sanguíneo. As moléculas são muito menores que os RBCs, assim, elas podem se encaixar em espaços nos quais os glóbulos verme- lhos não podem, como em tecido extremamente inchado ou vasos sanguíneos anormais ao redor de tumores cancerígenos. A maioria dos HBOCs permanece no sangue de uma pessoa por aproximadamente um dia – bem menos que os 100 dias ou mais que os glóbulos vermelhos comuns circulam Porém, os HBOCs também têm alguns poucos efeitos colaterais As moléculas de hemoglobina modificadas podem se encaixar em espaços muito pequenos entre as células e se unir ao óxido nítrico, que é importante para manter a pressão do sangue. Isso pode elevar a pressão sanguínea do paciente a níveis perigosos Os HBOCs também podem cau sar desconforto abdominal e cãibras, devido principalmente à liberação de radicais livres Alguns HBOCs podem causar vermelhidão temporária dos olhos ou da pele. HBOCs e PFCs são consideravelmente menores que os glóbulos vermelhos. PFCs Diferentemente dos HBOCs, os PFCs geralmente são bran- cos e inteiramente sintéticos. Eles são muito parecidos com os hidrocarbonetos, químicas feitas inteiramente de hidrogênio e carbono, mas eles contêm flúor em vez de carbono. Os PFCs são quimicamente inertes, mas são extrema mente bons no transporte de gases dissolvidos. Eles podem transportar entre 20% e 30% mais gás do que a água ou o plasma sanguíneo e, se mais gás estiver presente, eles po- dem transportar mais também Por essa razão, os médicos primeiramente usam os PFCs juntamente com o oxigênio suplementar Porém, o oxigênio extra pode causar a liberação de radicais livres. Pesquisadores estão estudando se os PFCs podem funcionar sem o oxigênio adicional Os PFCs são oleosos e escorregadios, assim, eles precisam ser emulsificados, ou suspensos em um líquido, para serem usados no sangue Geralmente, os PFCs são misturados com outras substâncias frequentemente usadas em drogas intraveno- sas, como a lecitina ou albumina. Esses emulsificadores acabam por se desintegrar à medida que circulam a partir do sangue O fígado e os rins removem-nos do sangue, e os pulmões exalam os PFCs da maneira como fazem com o dióxido de carbono. Às vezes, as pessoas experimentam sintomas parecidos com os da gripe quando seus corpos digerem e exalam os PFCs. © K s e n a 2 0 0 9 D re a m s ti m e .c o m Sangue artificial baseado em PFC Oxygent. Os PFCs, como os HBOCs, são extremamente peque- nos e podem se encaixar em espaços que são inacessíveis aos RBCs. Por essa razão, alguns hospitais estudaram se os PFCs podem tratar de traumatismo crânio-encefálico (TBI) por meio do fornecimento de oxigênio através do tecido cerebral inchado. As empresas farmacêuticas estão testando os PFCs e HBOCs para uso em situações médicas específicas, mas eles têm usos potenciais similares, incluindo: • restaurar o fornecimento de oxigênio após a perda de sangue devido ao trauma, especialmente em situações de emergência e em campos de batalha; • evitar a necessidade de transfusões de sangue durante cirurgias; • manter o fluxo de oxigênio para tecido cancerígeno, o que pode tornar a quimioterapia mais eficaz; • tratar de anemia, que causa uma redução dos glóbulos vermelhos; • permitir o fornecimento de oxigênio para tecidos inchados ou áreas do corpo afetadas por anemia falciforme A seguir, daremos uma olhada em alguns dos problemas que cercam o uso do sangue artificial, assim como seu futuro na medicina A controvérsia do sangue artificial À primeira vista, sangue artificial parece uma boa coisa Ele tem uma durabilidade maior que o sangue humano. Como o processo de manufatura pode incluir esterilização, ele não corre o risco de transmissão de doenças. Os médicos podem administrá-lo em pacientes com qualquer tipo de sangue. Além disso, muitas pessoas que não podem aceitar transfusões de sangue por motivos religiosos podem aceitar sangue artificial, particularmente PFCs, que não são derivados de sangue. Porém, o sangue artificial tem estado no centro de muitas controvérsias. Os médicos abandonaram o uso do HemAssist, o primeiro HBOC testado em humanos nos Estados Unidos, após pacientes que tinham recebido o HBOC terem morrido mais BIOLOGIA Capítulo 12 Sangue162
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