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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – CPDOC 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MEMÓRIAS OCULTAS: 
EXPERIÊNCIAS DE MULHERES CANAVIEIRAS EM GUARIBA (1975-1985) 
 
Apresentado por: JULIA CHEQUER 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RIO DE JANEIRO 
2019
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – CPDOC 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MEMÓRIAS OCULTAS: 
EXPERIÊNCIAS DE MULHERES CANAVIEIRAS EM GUARIBA (1975-1985) 
 
 
Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de 
História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). 
 
 
JULIA CHEQUER 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RIO DE JANEIRO 
2019
 
 
 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV 
 
 
 
 Hartung,	Julia	Chequer	 
 Memórias	ocultas:	experiências	de	mulheres	canavieiras	em	Guariba	(1975-1985)	/	
 Julia Chequer Hartung. – 2019. 
 
 185 f. 
 
 Dissertação (mestrado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio 
 Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. 
 Orientadora João Marcelo Ehlert Maia 
 Inclui bibliografia. 
 
 1. 	 Trabalhadores rurais. 2. Trabalho migratório. 3. Cana-de-açúcar - Guariba (SP) 
 4. Mobilidade ocupacional.	5.	Mulheres	nas	profissões.	 I. João Marcelo Ehlert Maia. II. 
 Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de Pós-Graduação 
 em História, Política e Bens Culturais. III. Título. 
 
 CDD – 331.763 
 
 
 
 
 Elaborada por Maria do Socorro Almeida – CRB-7/4254 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À Therezinha. 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
A experiência de um mestrando é permeada pelo anseio de, ao mesmo tempo, solidificar a 
formação e dar os primeiros passos em uma pesquisa acadêmica, que tem seu conteúdo 
constantemente reelaborado pelo contato com novas leituras, fontes, professores e colegas. Um 
ambiente sem dúvida de expansão e amadurecimento, mas também de angústias, prazos e 
problemas de percurso que nem sempre são do nosso controle. Um processo que só pôde ser 
concluído com colaboração e apoio de muitas pessoas. E é a elas que eu agradeço. 
 
Primeiramente, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 
(Capes) pela bolsa que me foi concedida. Mais do que nunca, é fundamental afirmar o papel do 
investimento nas possibilidades de realização de pesquisas acadêmicas. Ao CPDOC, por 
aceitarem esse projeto, pela possibilidade de uma formação engrandecedora na Revista 
Mosaico e nas disciplinas dos professores Paulo Fontes, João Maia, Dulce Pandolfi e Verena 
Alberti. Sou grata a elas e elas, assim como à professora Angela Moreira, pelo trabalho 
cuidadoso e dedicado na coordenação da pós-graduação. 
 
Ao professor Paulo Fontes agradeço pela generosidade intelectual com a qual acompanhou o 
meu percurso. As possibilidades deste trabalho se devem muito a ele e às discussões com os 
colegas do LEHMT: Heliene, Isabelle, Juliana, Deivison, João, Flávia, Yasmin, Felipe, 
Leonardo, Claudiane, Samuel, Alejandra, Mariana e Renata. Importantes contribuições também 
foram feitas na qualificação, por isso agradeço aos membros da banca Ynaê Lopes dos Santos 
e Fernando Teixeira da Silva. Também à Fabiane Popinigis pela disponibilidade de compor a 
banca de defesa e ao professor João Maia, por me aceitar como orientanda na reta final do 
trabalho, e possibilitar a conclusão do trabalho da melhor maneira possível. Ainda no inicio 
dessa trajetória, as conversas e o incentivo do professor José Arbex também foram 
fundamentais para a elaboração do projeto. 
 
A busca por fontes tomou boa parte dos esforços desta dissertação e também dependeu em 
grande medida da contribuição de algumas pessoas. Foi Ana Rosa quem me recebeu em 
Guariba, junto com sua filha Daiane, e abraçou a ideia de contar histórias de vida de mulheres 
que trabalharam nos canaviais, assim como ela, sua irmã e sua mãe. Através dela conheci as 
entrevistadas Ana, Nina e Zilda. Seu Eleno, um remanescente da Pastoral do Migrante de 
Guariba que também trabalhou nas lavouras da região, ao ouvir o tema da pesquisa, me levou 
 
 
prontamente até sua casa para conversar com sua sogra, Argentina, e sua esposa, Jani, e também 
insistiu que eu entrevistasse seu Ignácio. Agradeço a abertura e a generosidade com a qual Ana, 
Nina, Zilda e Argentina compartilharam comigo suas histórias e também aos demais 
entrevistados: padre José Domingos Bragheto, Roberto Rodrigues, Wilson Rodrigues da Silva, 
Lineu Nobukini e Ignácio Bernardes. Ao Domingos, que me disponibilizou sua coleção do 
jornal A Comarca de Guariba, assim como uma mesa de trabalho. Aos funcionários do Centro 
de Memória, Arquivo e Cultura do TRT da 15ª Região e da 1ª Vara do Trabalho de Jaboticabal. 
A eles(as) e a todas as pessoas que, de alguma forma, me ajudaram a acessar fontes – não foram 
poucas –, obrigada! 
 
Como o afeto é parte fundamental nesse processo, agradeço à minha mãe Cristina pelo apoio e 
pelo incentivo. A Priscilla, Gabriel, Lúcia, Beto e Lara que me receberam tão amorosamente 
no Rio de Janeiro. À minha retaguarda em São Paulo: Cami, Raiana, Julia D., Georgia, Joana, 
Ana Maria, Alessa, Fernanda, Heloísa e Zazá, mulheres maravilhosas e brilhantes com quem 
pude compartilhar tanto dúvidas, reflexões e angústias, quanto momentos de diversão, por vezes 
com a participação especial dos queridos Heitor e Pedrão. Ao Renas, pela parceria e pela porta 
sempre aberta. Ao clube do Guga e ao Júlio pelas necessárias doses de caos. Ao Odi pelo mapa 
no último minuto. 
 
Por último, agradeço ao Danilo, amado companheiro, que acompanhou cada etapa dessa 
jornada. Me ouviu entusiasmada comentar uma nova leitura, me amparou em momentos de 
estagnação e garantiu que eu me alimentasse em momentos de intensa produtividade. Leu e 
revisou tudo o que escrevi nesses dois anos e partilhou comigo as celebrações, o futebol, o 
violão, o cinema e a casa. 
 
 
 
RESUMO 
 
 
Este trabalho procura analisar a experiência de migrantes de origem rural para Guariba, no 
interior de São Paulo, entre 1975, ano em que foi instituído o Programa Nacional do Álcool, e 
1985, ano de refundação do sindicato local, após as mobilizações iniciadas em 1984. As 
principais questões que moveram essa pesquisa foram: 1) de que maneira a transição do 
trabalho rural de base familiar para o assalariamento temporário individual e a migração para a 
cidade impactaram nas relações de gênero e na estrutura familiar de trabalhadores rurais?; 2) 
quais os diálogos entre os conflitos públicos empreendidos pelos cortadores de cana e os 
enfrentamentos vivenciados pelas mulheres na família e nos espaços de convivência?; 3) de que 
maneira as mobilizações camponesas do início da década de 1960 e o uso da Justiça do Trabalho 
influenciou a eclosão do movimento de 1984, em Guariba? Privilegiei, assim, a experiência de 
mulheres que transitaram de diversas formas de trabalho rural familiar para o trabalho no corte 
de cana, como forma de compreender as articulações entreos espaços da família, do trabalho e 
do cotidiano, além de tentar contribuir com a própria documentação dessas trajetórias, que são 
marginais na literatura sobre o tema. 
 
 
 
Palavras-chave: trabalhadores rurais; mulheres; gênero; movimentos sociais; migração; greve; 
camponês; Proálcool; cana-de-açúcar; Guariba. 
ABSTRACT 
 
 
This paper aims to analyze the experience of migrants of rural origin to Guariba, São Paulo, 
between 1975, when the National Alcohol Program was instituted, and 1985, the founding year 
of the local union, after mobilizations started in 1984. The main questions that moved this 
research were: 1) how did the transition from family-based agriculture to individual temporary 
employment and migration to the city impact on gender relations and the family structure of 
rural workers?; 2) What are the dialogues between the public conflicts undertaken by the 
sugarcane workers and the confrontations experienced by women in the family and living 
spaces?; 3) In what way did the peasant mobilizations of the early 1960s and the use of Labor 
Justice influence the outbreak of the 1984 movement in Guariba? I thus privileged the 
experience of women who moved from different types of family-based agriculture to work on 
sugarcane fields, as a way of understanding the articulations between family, work and daily 
life spaces, as well as in an attempt to contribute with the documentation of these trajectories, 
which are marginal in the literature on the subject. 
 
Keywords: rural workers; women; gender; social movements; migration; peasant; Proalcool; 
sugar cane; Guariba. 
 
 
 
 
 
SIGLAS 
 
 
ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária 
ARENA – Aliança Renovadora Nacional 
CAI – Complexo Agroindustrial 
CEAGESP – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo 
CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes 
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho 
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura 
Coplana – Cooperativa dos Plantadores de Cana da Zona de Guariba 
CPT – Comissão Pastoral da Terra 
CTPS – Carteira de Trabalho e Previdência Social 
CUT – Central Única dos Trabalhadores 
EJA – Educação de Jovens e Adultos 
EPI – Equipamento de Proteção Individual 
ETR – Estatuto do Trabalhador Rural 
FECOESP – Federação dos Círculos Operários do Estado de São Paulo 
FEE - Fundo Especial de Exportação 
FERAESP – Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo 
FETAESP – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo 
FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural 
FTIAESP – Federação dos Trabalhadores na Indústria de Alimentação do Estado de São Paulo 
IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool 
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 
JCJ – Junta de Conciliação e Julgamento 
MDB – Movimento Democrático Brasileiro 
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 
MSTR – Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais 
PCB – Partido Comunista Brasileiro 
PEA – Pessoa Economicamente Ativa 
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 
Proálcool – Programa Nacional do Álcool 
Sabesp – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo 
 
 
SNA – Sociedade Nacional da Agricultura 
Socicana – Associação dos Fornecedores de Cana de Guariba 
SRB – Sociedade Rural Brasileira 
TRT – Tribunal Regional do Trabalho 
ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil 
Unica – União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo
 
LISTA DE FIGURAS 
 
 
Figura 1: Localização da Região Administrativa de Ribeirão Preto, do município de Guariba e 
das usinas Bonfim, São Martinhos, São Carlos e Santa Adélia no estado de São Paulo. 15	
Figura 2: Argentina Teixeira de Souza, com seu avô Luís, na fazenda Jandaia. ................... 34	
Figura 3: Orlando Ometto com amigos na praia, em Santos. ................................................. 41	
Figura 4: Argentina Teixeira de Souza, em sua casa, na Vila Garavello, Guariba, onde mora 
com a filha Jani, o genro Eleno e os netos. Ao fundo, Jani lava a louça. ........................ 73	
Figura 5: Obra de pavimentação, na Vila Amorim, em 1980. ................................................ 89	
Figura 6: Primeira página das Carteiras de Trabalho de Ana e Nina, expedidas, 
respectivamente, em janeiro e novembro de 1981. .......................................................... 96	
Figura 7: Caminhão de turma em Guariba, 1984. ................................................................ 100	
Figura 8: Acidente envolvendo um caminhão com trabalhadores rurais, em 20 de agosto de 
1983, em Guariba. .......................................................................................................... 101	
Figura 9: Primeira página da CTPS de Zilda Bezerra, Raimundo Vicente de Lima e Francisco 
de Assis Pereira. ............................................................................................................. 127	
 
 
LISTA DE TABELAS 
 
Tabela 1: Valores pagos por hora normal de trabalho para serviços na lavoura em períodos de 
entressafra, registrados por meio em contrato de trabalho temporário pela empregadora 
Agro Pecuária Monte Sereno S. A. .................................................................................. 66	
Tabela 2: Percentual de famílias com uma mulher como pessoa de referência no estado de São 
Paulo. ............................................................................................................................. 117	
Tabela 3: Valores pagos em contratos de trabalho por tempo determinado para serviços na 
lavoura da Agro Pecuária Monte Sereno. ...................................................................... 126	
Tabela 4: Ocorrências sociais envolvendo trabalhadores agrícolas de Jaboticabal e/ou de 
Guariba no período de 1954-1964. ................................................................................ 185	
 
 
ÍNDICE 
 
 
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14 
Memórias em chamas ........................................................................................................................ 16 
Breve discussão de fontes .................................................................................................................. 29 
1. “MODERNIZAÇÃO” PARA QUEM? ............................................................................ 34 
1.1 Duas chegadas a Guariba ............................................................................................................. 34 
1.2 As transformações no campo e a ditadura militar ....................................................................... 47 
1.3 O Proálcool e o cotidiano da cidade: as novas chegadas ............................................................. 58 
2. AS RESISTÊNCIAS SILENCIOSAS .............................................................................. 74 
2.1 A vida na terra e o caminho para a cidade ................................................................................... 77 
2.2 Migração e ajustamento ............................................................................................................... 86 
2.3 Casa e “rua” ................................................................................................................................. 94 
2.4 Assalariamento e família ........................................................................................................... 107 
2.5 Precisão e enfrentamento ........................................................................................................... 111 
2.6 “Se numa parte melhorou, na outra foi pior” ............................................................................ 116 
3. AS RESISTÊNCIAS ABERTAS ....................................................................................121 
3.1 “Jeitinho enrolado” .................................................................................................................... 121 
3.2 A Justiça do Trabalho e o cotidiano na lavoura ........................................................................ 124 
3.3 Resistência como repertório ...................................................................................................... 144 
3.4 A greve e o Sindicato ................................................................................................................ 154 
Considerações finais............................................................................................................. 164 
Bibliografia ........................................................................................................................... 168 
Arquivos e Acervos .............................................................................................................. 180 
Entrevistas de História Oral ............................................................................................... 181 
Periódicos .............................................................................................................................. 182 
IBGE ..................................................................................................................................... 182 
ANEXO 1 .............................................................................................................................. 185 
 
 
14 
INTRODUÇÃO 
 
Esse trabalho se debruça sobre a experiência de migrantes no município de Guariba, no interior 
de São Paulo, entre 1975 e 1985. O ponto de partida inicial da periodização proposta é o ano 
em que foi instituído o Programa Nacional do Álcool, através do Decreto nº 76.593, de 14 de 
novembro de 1975, e o final é o ano em que foi refundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais 
de Guariba, após o emblemático movimento grevista de 1984. Nesse contexto, procuro destacar 
a experiência de mulheres que transitaram de diferentes formas de trabalho agrícola de base 
familiar para o assalariamento individual temporário, assim como as interconexões entre os 
diferentes espaços de vivência e trabalho na luta por direitos. 
 
É importante, no entanto, situar que a história desse município situado a 50 quilômetros de 
Ribeirão Preto se insere entre a de uma série de cidades que surgiram com o avanço do café, 
sobretudo com a extensão das estradas de ferro. Na virada do século, a região consolidou a 
chamada “economia de terra roxa” (MARTINS, 1996), baseada não exclusivamente1, mas 
principalmente, na força de trabalho imigrante, estruturado por meio do colonato2. Se, nessa 
“cidade do café”, a sociabilidade se dava sobretudo nos finais de semana, nas missas, nas festas 
populares e quando habitantes das áreas rurais levavam seus produtos para serem vendidos nas 
feiras, a paisagem começou a se transformar com a decadência dessa cultura. 
 
A subida do preço do açúcar, na década de 1930, deu o primeiro impulso para a produção de 
cana e muitos ex-colonos se empenharam no cultivo, em pequenas propriedades adquiridas das 
antigas fazendas de café. Ao longo da década de 1940, surgiram as quatro usinas que passaram 
 
1 De acordo com Vettorassi (2006, p. 23), em 1870 havia na região onde, mais tarde, seria fundado o município de 
Guariba, algumas famílias mineiras. Ali, implementavam culturas de subsistência e criação de gado. Por volta de 
1895, numerosos grupos de baianos chegaram para o cultivo do café, antes da chegada massiva de imigrantes. Ver 
também Stolcke e Hall (1983), Martins (2010) e Domingos (2004) para um panorama das diferentes formas de 
trabalho no contexto da expansão oeste da cafeicultura paulista. 
2 Particular das fazendas de São Paulo, os colonos viviam em casas geminadas na propriedade e recebiam uma 
parte do pagamento em dinheiro, pelo trabalho da família, e outra por meio de permissão para ter uma pequena 
roça de subsistência, ou seja, plantar e criar animais de pequeno porte (SILVA, 2004, p. 18). 
 
 
15 
a cercar a cidade: a Bonfim3, em Guariba; a São Martinho4, em Pradópolis – cujo território fez 
parte do município de Guariba até 1959; a Santa Adélia5, em Jaboticabal; e a São Carlos6, em 
Jaboticabal. A região, nesse sentido, foi parte desde cedo do ciclo expansivo da cana-de-açúcar 
no estado de São Paulo e do processo de industrialização do campo, entre 1948 e 1968 
(MENDES, 1999, 50). 
 
Figura 1: À esquerda, a localização da Região Administrativa de Ribeirão Preto e do município de Guariba 
no mapa do estado de São Paulo. Em destaque, os limites do município de Guariba e a localização das usinas 
Bonfim, São Martinhos, São Carlos e Santa Adélia e dos municípios de Ribeirão Preto e Jaboticabal. 
Guariba faz divisa com os municípios de Jaboticabal, Pradópolis, Motuca, Dobrada, Santa Ernestina e 
Taquaritinga. 
 
Fonte: Elaborado com referência em IBGE. 
 
3 A usina Bonfim foi instalada em 1946 por José Corona, natural da Itália, que na época já era proprietário da 
Metalúrgica Glória, na cidade de São Paulo (MARTINS, 1996). Desde 1981, José Corona dá nome à rodovia que 
liga a cidade de Guariba à rodovia SP-253 (Diário Oficial do estado de São Paulo, 22 dez. 1981, p. 1). Na cidade 
há também um bairro chamado “Vila Corona” e a “rua Bonfim”, situada na Vila Mangolini. 
4 A usina São Marinho foi fundada em 1948, nas terras da tradicional fazenda de café da família Prado e, em 1949, 
foi vendida à família Ometto, descendente de imigrantes italianos, ex-colonos do café (GORDINHO, 1986). A 
família é homenageada com o nome de uma rua, no Jardim Primavera e a São Martinho em rua da Vila Mangolini. 
5 A usina Santa Adélia foi instalada em 1947 pela família Bellodi, descendente de colonos italianos, que se 
tornaram fazendeiros em Guariba e Jaboticabal (BELLODI, 2011; MENDES, 1999). 
6 A usina São Carlos é de 1947, fundada pelos Tonanni, empresários de Jaboticabal, provenientes do Nordeste 
brasileiro. Na década seguinte, a usina foi vendida à família Bellodi (MENDES, 1999). 
 
 
16 
 
 Na década de 1950, surge o primeiro bolsão periférico de Guariba, resultante do 
transbordamento dos limites urbanos, a partir do loteamento do Bairro Alto, conhecido como 
“João-de-Barro” por conta do estilo das casas, construídas pelos próprios habitantes, com 
lajotas de barro. Na década seguinte, surge o cinturão da Vila Jordão, do outro lado da cidade 
(VETTORASSI, 2006, p. 28-29). Na medida em que a produção de álcool combustível ganha 
centralidade política e econômica, principalmente a partir do Proálcool, se intensifica a massa 
de migrantes que chega à região em busca de trabalho, e os pequenos municípios próximos a 
grandes usinas, como Guariba, rapidamente crescem como cidades-dormitório. Nos anos 1980, 
foi construído um conjunto habitacional, a Cohab, e mais recentemente surge a Vila Rocca, 
ambos os bairros, do mesmo modo, ocupam as margens do perímetro urbano e são habitadas 
principalmente por migrantes que chegavam para trabalhar em fazendas de cana, laranja e café 
– assim como as regiões do Bairro Alto e da Vila Jordão. 
 
A história dos canavieiros e canavieiras de Guariba também é marcada pela greve de 1984, 
precursora de um movimento que se espalhou pela região e gerou consequências que 
transformaram a vida, as relações de trabalho e as formas de organização da categoria. Assim, 
parto da hipótese de que as resistências, as práticas cotidianas, as redes sociais, a utilização da 
Justiça do Trabalho e um repertório de lutas que remonta o início dos anos 1960 não apenas 
contribuem para a compreensão da greve de 1984, mas são partes de um mesmo processo de 
lutas sociais em Guariba. 
 
 
Memórias em chamas 
 
Quando retornei a Guariba, em 2017, dez anos após a última visita, para aentão realização do 
trabalho de conclusão de curso, encontrei uma cidade transformada. Os “Rurais”7, presença 
marcante por décadas nas ruas, principalmente no início da manhã e no fim da tarde, tornaram-
se raros. No centro, muitos comércios estavam fechados em pleno horário comercial e a Igreja 
 
7 Os chamados “Rurais” são ônibus parecidos como os de linhas urbanas, que levam as turmas de trabalhadores 
para as lavouras diariamente. Eles são facilmente identificáveis pela palavra “rural” escrita acima do vidro frontal 
e destacadamente pintada nas laterais e/ou na traseira do veículo. 
 
 
17 
da Matriz, um dos símbolos da cidade8, havia sido destruída por um incêndio, possivelmente 
ocasionado pela falta de manutenção na rede elétrica. 
 
A sede da Pastoral do Migrante foi fechada em 2015. Os clérigos que ali atuavam desde 1985 
foram deslocados para outras dioceses devido à quase ausência de migrantes chegando à região. 
O acervo documental da entidade está em processo de transferência para o Centro de Estudos 
Migratórios, em São Paulo, e o que resta desta experiência de trabalho social na cidade está na 
memória dos poucos remanescentes do grupo religioso que lá residem. 
 
No mesmo sentido, os relatos de ex-trabalhadores da cana são perpassados pela nostalgia. Ainda 
que ressaltem também a dureza do trabalho e a luta cotidiana, enfatizam um passado com mais 
perspectivas, sonhos, união e menos violência9. Como pontua Farnsworth-Alvear, a nostalgia 
pode ser interpretada não apenas enquanto pessoas mais velhas contando histórias da juventude, 
mas como um ponto de partida para perguntas a respeito das mudanças através do tempo (2000, 
p. 4). 
 
Guariba foi uma cidade que cresceu rapidamente em torno do trabalho nos canaviais, 
principalmente a partir do Programa Nacional do Álcool. Em apenas cinco anos, a população 
estimada saltou de 12.68410 para 18.887, sendo que 7.961 correspondia ao número de residentes 
não naturais do município (IBGE, 1975, 1980). Não é possível precisar em que medida esses 
dados contabilizaram o grande contingente de migrantes sazonais que permaneciam na cidade 
– em alojamentos ou na casa de parentes – apenas no período da safra, aproximadamente entre 
maio e novembro. Sabemos, no entanto, que muitos migrantes desta época acabaram levando 
suas famílias das zonas rurais, e que estas passaram a viver no município por meio do trabalho 
 
8 A primeira construção da Paróquia de São Matheus de Guariba é datada de 1900. Nas primeiras décadas do 
século XX, foi construída a antiga Igreja da Matriz, que, nos anos 1960, foi demolida para a construção de novo 
edifício, finalizada em 1966 (MARTINS, 1996). 
9 Ainda que os relatos sobre os anos 1970 e 1980, assim como outras fontes, contradigam esta ideia, na medida 
em que também são permeados por conflitos - muitos violentos - e pelo alcoolismo, é interessante notar a diferença 
de como essas questões se apresentam: antes, aparecem mais conflitos entre vizinhos, parentes, além da violência 
doméstica. Aos problemas atuais, por sua vez, são atribuídos um lugar desconhecido, muitas vezes 
incompreensível, e são tidos como mais organizados. A explicação para o atual mal é muitas vezes apresentada na 
chave religiosa, como um problema moral. 
10 Estimativa atribuída ao IBGE em Martins (1995, p. 180). De acordo com o Censo Demográfico deste Instituto, 
Guariba possuía 11.448 habitantes em 1970. 
 
 
18 
temporário nas lavouras de cana – também da laranja e do amendoim – de quantos membros 
fosse possível, incluído crianças a partir dos 12 anos de idade. O contingente de mulheres 
trabalhando na lavoura de cana foi referido, por todos os entrevistados, como algo em torno da 
metade da mão de obra nos canaviais próximos a Guariba, nos anos 1970 e 198011. 
 
Esta realidade foi se transformando com a paulatina implementação das colhedeiras mecânicas 
de cana. Pouco a pouco, os empregos foram diminuindo e as mulheres – assim como os 
trabalhadores mais velhos – foram sendo substituídos por homens jovens, migrantes sazonais, 
como aponta Silva (2004). Um estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrícola (BRASIL, 
2006) também apontou uma “masculinização” do pessoal ocupado na agropecuária entre 1993 
e 2004, em todo o Brasil. 
 
Ainda que as questões de ordem econômica e tecnológica não deem conta de explicar esse 
processo12, o fato é que o protocolo ambiental firmado entre usinas, fornecedores e o Estado de 
São Paulo para pôr fim às queimadas e o impulso dado ao setor com a chegada dos carros “flex” 
ao mercado, aceleraram o processo de mecanização. Assim, entre 2007 e 2017, o percentual de 
lavouras mecanizadas no estado saltou de 42% para 98%13. 
 
Hoje, os poucos Rurais que ainda são vistos em Guariba levam trabalhadores para diárias na 
colheita de laranja, e novos ônibus passaram a sair, mas em direção a Ribeirão Preto, a 50 
quilômetros de distância, organizados pela própria Prefeitura a um preço mais baixo que o de 
uma passagem rodoviária. Entre os que tomam esta condução, se destaca o número de mulheres 
trabalhadoras domésticas, diaristas, babás e cuidadoras. 
 
 
11 Os relatos se contrastam com os dados sobre o trabalho feminino na agricultura no estado e no município, o que 
levanta a suspeita de relevante subvaloração nos levantamentos do IBGE, como será discutido no Capítulo 2. De 
todo modo, o estudo de Baptistella e Vicente (1987) aponta também para o aumento do trabalho volante feminino 
entre 1975 e 1986, no estado de São Paulo. 
12 Não explicam, por exemplo, a mudança do perfil da migração. Além disso, é possível dizer, a partir de algumas 
fontes, que as resistências e conquistas dos trabalhadores tiveram peso na busca pela mecanização. 
13 Dado atribuído à UNICA (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) em SILVA, J., TOLEDO, M. “Os órfãos da 
cana”. Folha de S. Paulo, 30 de junho de 2017. Disponível em < http://temas.folha.uol.com.br/orfaos-da-
cana/orfaos-da-cana/fim-da-queima-expulsa-trabalhadores-dos-canaviais-e-trava-migracao-para-sp.shtml>, 
acesso em jun. 2017. 
 
 
19 
O duro quadro social é em grande medida minimizado pelas possibilidades encontradas na 
Justiça do Trabalho. Foi apenas através de processos trabalhistas que algumas entrevistadas – 
e seus conhecidos – conseguiram transformar sua vida de trabalho em bens como uma casa 
própria. Em geral, no entanto, elas também convivem com marcas no corpo de acidentes ou de 
doenças ligadas ao trabalho, as quais carregam com um sofrimento muitas vezes escondido 
detrás da dignidade de terem podido criar os filhos, de terem uma casa com comida na mesa e 
uma rede de afeto entre vizinhos, parentes e ex-companheiras de lavoura. Esse caminho foi 
percorrido com uma luta que só se percebe se levarmos em conta as resistências cotidianas, 
empreendidas tanto fora quanto dentro da família, no trabalho, nas instituições e no convívio 
social. Tais resistências, em grande medida, dão sentido à própria narrativa de vida. 
 
Considero que a problemática das fontes pode ser introduzida por uma chave análoga, pois, se 
em 21 de setembro de 1980 era inaugurado o Museu Histórico14 da cidade – contexto em que 
os jornais locais apresentam euforicamente a indústria da cana como a chegada do progresso, a 
imagem de um futuro próspero –, hoje ele está há anos fechado e o paradeiro do acervo é incerto. 
A Prefeitura Municipal também não possui arquivo público e alguns funcionários informaram 
que um incêndio queimou a documentação antiga. 
 
A Biblioteca Municipal não possui nem mesmo um acervo dos periódicos locais. É uma 
pequena sala, com alguns livros de temas variados à disposição da população. Do mesmo modo, 
o escrivão da Delegacia informou que uma rebelião de presos em 2007, quando ainda 
funcionava uma cadeia municipal no imóvel, teriasido responsável pela queima de toda a 
documentação anterior. Duas notícias sobre fugas de presos, em 2006 e em 2007, foram 
encontradas no jornal O Estado de S. Paulo15, sem, no entanto, a confirmação de depredações 
ou danos ao patrimônio. 
 
 
14 “Na inauguração do museu, o ponto alto da festa”. A Comarca de Guariba, 27 de setembro de 1980, p. 1. 
15 AGÊNCIA ESTADO. “Presos fogem durante rebelião em cadeia de Guariba”. O Estado de S. Paulo, 16 de nov. 
2006. Disponível em <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,presos-fogem-durante-rebeliao-em-cadeia-de-
guariba,20061116p31673>, acesso em junho de 2018; PEREIRA, Elvis. “Presos fogem por túnel em cadeia no 
interior de SP”. O Estado de S. Paulo, 12 de dez. 2007. Disponível em <https://sao-
paulo.estadao.com.br/noticias/geral,presos-fogem-por-tunel-de-cadeia-no-interior-de-sp,94800>, acesso em 
junho de 2018. 
 
 
20 
As indicações para minha estranha busca por documentos, em todos os lugares, foram similares: 
ler o livro Guariba 100 anos (MARTINS, 1996), onde pude encontrar o que tomo como certa 
“história oficial” da cidade – entre outras razões, pelo patrocínio da Prefeitura Municipal – e 
procurar moradores antigos, ou pessoas interessadas em guardar registros. Foi batendo em 
algumas portas que pude encontrar quase a totalidade das edições do jornal A Comarca de 
Guariba (1977-1984)16. 
 
Ainda que aponte as dificuldades gerais em torno da memória em uma cidade do interior de 
São Paulo, o que pude verificar, principalmente nos jornais locais, no livro Guariba 100 anos 
e também edificados em nomes de praças, ruas e rodovias, é que há memórias que não se 
perdem: a da fundação da cidade, com o avanço do café para o oeste e sobretudo com a chegada 
da ferrovia; a de comerciantes, intelectuais, profissionais liberais e a trajetória de suas famílias; 
a das famílias italianas que prosperaram no fim do ciclo do café, dando origem às prósperas 
fazendas de cana e, mais tarde, às usinas São Martinho e Bonfim. 
 
Ao mesmo tempo, há um silêncio quase que absoluto a respeito dos migrantes, dos “boias-frias” 
e suas experiências. Nota-se, por vezes, até um desejo de apagamento implícito em um 
incômodo na associação desta população à imagem da cidade, como em nota intitulada “Artigo 
no jornal de Araraquara causa mal estar em Guariba”17. Nele, o anônimo redator se queixa de 
uma publicação do jornal O Diário, de Araraquara, a respeito das condições de vida dos 
trabalhadores rurais de Guariba: 
 
(...) publicou um artigo sobre os bóias-frias de Guariba, estampando, de maneira 
sensacionalística [sic], a vida dos trabalhadores rurais e de suas nuanças, ignorando o 
lado positivo da cidade, suas riquezas econômicas e o altivo trabalho da administração 
municipal, buscando, apenas, as intempéries e as misérias, próprias de qualquer 
comunidade deste país. 
 
16 Tais edições foram encontradas no arquivo pessoal de Domingos Rodrigues de Oliveira, atualmente diretor do 
jornal Guariba Notícias. Essas publicações foram deixadas aos seus cuidados por antigos moradores que, na falta 
de um acervo local, confiaram a ele sua preservação, por conta de seu envolvimento com o jornalismo. Oliveira 
as mantém empilhadas no topo de um armário e não possui estrutura para sua limpeza e manutenção. A respeito 
do jornal A Comarca de Guariba, é importante mencionar que, de acordo com um de seus diretores, Roodney das 
Graças Marques, hoje funcionário da Prefeitura, a publicação existiu entre dezembro de 1977 e dezembro de 1984. 
No entanto, assim como a série do ano de 1979, os jornais de 1984 não estavam entre os preservados. Os 
exemplares encontrados de A Gazeta Guaribense (1984) também não comportam o período grevista. 
17 “Artigo no jornal de Araraquara causa mal estar em Guariba”. A Comarca de Guariba, 16 de julho de 1978, p. 
3. 
 
 
21 
 
No Arquivo do Estado de São Paulo também foi possível encontrar alguns periódicos. No 
entanto, se a documentação das Secretarias ainda não está disponível dada a “jovialidade”18 do 
material procurado, na 1ª Vara do Trabalho de Jaboticabal, os documentos foram considerados 
antigos demais para serem mantidos em arquivo. Em meados da década de 1990, quase a 
totalidade desse rico material foi incinerado e o que resta não possui recursos para sua 
manutenção. 
 
Os próprios Sindicatos de Guariba e Jaboticabal tiveram dificuldade de encontrar documentos 
anteriores a 1984. De acordo com o atual presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de 
Jaboticabal, grande parte das atas teriam sido queimadas em 1986 pelo antigo presidente. 
 
Se a memória dos trabalhadores “em geral” é escassa antes da greve de 1984, a menção às 
mulheres é praticamente inexistente antes da chegada da Pastoral do Migrante, em 198519, 
restando quase que exclusivamente os relatos orais. 
 
Maria Izilda Matos se referencia na historiadora norte-americana Joan Scott para afirmar que 
“(...) não é tanto a falta de documentação sobre as mulheres e homens, mas a noção de que tais 
informações não teriam a ver com os ‘interesses do pesquisador’, que gerou a ‘invisibilidade’ 
das mulheres” (2002, p. 247). A afirmação busca de certa forma dar como superada a queixa 
das feministas da década de 1970 a respeito da ausência das mulheres nas fontes oficiais. 
 
Ainda que, a partir do interesse do pesquisador, seja possível encontrar vestígios, além de fazer 
leituras a “contrapelo” de registros públicos, quando se tratam de homens e sobretudo mulheres 
em um país latino-americano, fora dos centros urbanos e trabalhadores rurais, o problema da 
documentação – tanto sua falta quanto a pouca menção no material disponível – não pode ser 
ignorada. Falar em invisibilidade e silenciamento, neste contexto, emerge como tarefa. Ressalto 
ainda que, além de se tratar de um período recente, estamos falando de uma cidade que, por 
 
18 A documentação organizada e disponível para consulta chega, em geral, até a década de 1960. 
19 As primeiras Irmãs chegaram antes à região em julho de 1983, nas comunidades de Dobrada e Santa Ernestina. 
Dois anos depois, inaugura-se a sede em Guariba. 
 
 
22 
conta das greves dos anos 1980, ganhou a atenção de pesquisadores, instituições e jornais, 
tornando-se uma espécie de símbolo do destino dos boias-frias. 
 
É importante destacar que os canavieiros, de modo geral, estão entre os temas mais antigos nas 
ciências humanas, nas crônicas e na literatura no Brasil. Thomas D. Rogers, no livro As feridas 
mais profundas (2017), procura interpretar essa produção a respeito da Zona da Mata de 
Pernambuco, região com aproximadamente quinhentos anos de cultivo de cana-de-açúcar, 
observando as transformações e as questões de longa duração no meio ambiente, em conexão 
com o trabalho, passando por autores relevantes para o imaginário nacional, como Joaquim 
Nabuco, Gilberto Freyre e José Lins do Rego. 
 
No inicio dos anos 1970, crescia no interior paulista o setor canavieiro, que vinha substituindo 
boa parte dos cafezais, em especial na região de Ribeirão Preto, desde os anos 1930. Após o 
golpe de 1964, a questão agrária, os conflitos ligados ao acesso à terra e à organização do 
trabalho ganharam novos contornos, em especial com a promulgação e implementação do 
Estatuto da Terra e com o empreendimento para modernizar a agricultura, que teve como 
importante símbolo o Proálcool. A relação desses processos com a vida e as formas de 
organização dos trabalhadores foi acompanhada por pesquisadores com diferentes perspectivas. 
 
Em São Paulo, o debate acadêmico foi em grande medida impulsionado pela sociologia e pelo 
interesse maior em tipificar as transformações econômicas, a chamada modernização 
conservadora da agricultura, e categorizar teoricamente o resultado desse processo: a remoção 
dos camponesesdas propriedades, a deterioração das formas tradicionais de trabalho no campo 
e o surgimento da figura do boia-fria, o trabalhador rural eventual, não morador das fazendas, 
em geral migrantes provenientes das zonas rurais. O livro de 1975 O “bóia-fria”: acumulação 
e miséria (1981), de Maria Conceição D’Incao, tem um lugar destacado tanto por apresentar 
um trabalho de campo sensível e detalhado, quanto pelo esforço teórico nesse sentido. 
 
Para a autora, o boia-fria seria fruto direto da penetração e do desenvolvimento do capitalismo 
no campo. Na medida em que o sistema gera uma grande população “marginal”, os detentores 
dos meios de produção têm uma condição mais vantajosa para substituir o trabalhador estável 
pelo volante. A condição precária destes trabalhadores e o fato de serem obrigados a vender sua 
força de trabalho os definem como “presença afirmadora do sistema” (1981, p. 87) e sua práxis 
 
 
23 
teria um “(...) potencial negador do sistema (...) inerente à sua própria situação de classe” (1981, 
p. 32). A despeito da qualidade deste e de outros trabalhos, sem dúvida fontes importantes para 
pesquisadores da área, o determinismo e a centralidade econômica os distanciam de trabalhos 
mais recentes da história social do campo. 
 
Por outro lado, no mesmo período, um grupo de antropólogos ligados ao Museu Nacional, 
composto, entre outros, por Moacir Palmeira, Lygia Sigaud, Afrânio Garcia e Beatriz Heredia 
se debruçavam sobre o trabalho na zona canavieira de Pernambuco. Ainda que levassem em 
consideração as mudanças de ordem econômica e técnica, pode-se dizer que tais pesquisadores 
inauguram um corpo de estudos que parte primordialmente das relações sociais e da luta por 
direitos para compreender as transformações campo como resultado desses conflitos. 
 
Em seu livro Os clandestinos e os direitos (1979), Lygia Sigaud analisa a existência dos 
trabalhadores volantes nas periferias das cidades não como um dado ou consequência inevitável 
da penetração do capitalismo no campo, mas como resultado de 
 
(...) um processo de luta, no qual estavam envolvidos não somente moradores e 
proprietários, mas o Sindicato, enquanto organização política dos trabalhadores, que 
havia se imposto como ator em consequência da mobilização política de fins de 50 e 
inicio de 60, a qual teria precipitado o próprio processo” (SIGAUD, 1979, p. 242). 
 
 Nesse sentido, ela refuta a ideia de que as novas relações de trabalho se tratariam de um 
“estágio superior” – comum nas perspectivas evolucionistas – e também aponta como o 
processo não foi uniforme, de modo que a segmentação da força de trabalho também cumpriu 
um papel na manipulação das condições de trabalho. 
 
Diferenciando-se de D’Incao, Sigaud afirma que a remoção dos camponeses para as cidades, 
em Pernambuco, não produziu uma alteração automática dos valores na qual o trabalho na terra 
passaria a ser desvalorizado. Nesse sentido, a autora considera que não há dualidade entre a luta 
pela terra e a luta por direitos, debate relevante também para outros autores. José Graziano da 
Silva, por exemplo, considera que, diferentemente de Pernambuco, em São Paulo 
 
(...) a proletarização praticamente eliminou a categoria dos rendeiros nas regiões 
canavieiras e reduziu drasticamente os pequenos produtores. Mais do que isso: 
consolidou a categoria dos assalariados na medida em que, ao concentrar as terras e 
 
 
24 
os capitais (...) eliminou do horizonte do trabalhador rural a miragem do acesso à terra 
(...) (1997, p. 15). 
 
 
Alexandre Marques Mendes, no entanto, pondera que mesmo a questão do acesso à terra não 
estando presente na pauta das greves de 1984 e 1985, a partir do movimento de Guariba “(...) 
percebe-se a geração de contingentes de trabalhadores que posteriormente irão participar de 
acampamentos e assentamentos na região” (1999, p. 201). A pesquisa de Ferrante (1989) 
também apontou que 71,5%, dos boias-frias, diante de uma situação de escolha, optariam por 
trabalhar em um pedaço de terra, ao passo que 28,5% preferem emprego fixo20. 
 
É relevante salientar também a alta mobilidade geográfica dos trabalhadores da cana na região 
de Ribeirão Preto, em especial nos anos 1970 e 1980. Muitos iam para lá apenas no período de 
safra, mantendo uma pequena propriedade familiar em outro estado, outros tantos se 
deslocaram diversas vezes em busca de melhores oportunidades. Ou seja, o campo paulista não 
pode ser compreendido de maneira tão isolada e uniforme. 
 
Moacir Palmeira, em artigo de 1989, também debate com os autores que dão centralidade à 
modernização como catalizadora das transformações no campo – consensualmente analisadas 
como perversas –, enfatizando que os processos e seus efeitos são sempre mediados por lutas, 
pressões e interesses diversos e que o Estado não deve ser encarado como uma extensão 
institucional do setor privado, de modo que sua presença no campo, por meio de leis e políticas 
públicas, deve ser analisada em seus meandros. Para ele, uma série de outros processos, 
paralelos à modernização, pesaram na transformação do perfil do setor agrário (1989, p. 105). 
 
O município de Guariba, principalmente em maio de 1984, ganhou a atenção de pesquisadores, 
instituições e grandes jornais. Naquele mês, ocorreu a greve de canavieiros na cidade que 
desencadeou um movimento por toda a região e gerou consequências que transformaram a vida, 
as relações de trabalho e as formas de organização da categoria – como a assinatura do Acordo 
de Guariba e a refundação do Sindicato de Guariba, no ano seguinte. Nas mobilizações de 1984, 
além dos piquetes, manifestantes depredaram o escritório local da Sabesp e saquearam um 
 
20 A autora baseia-se em dados da Abra para afirmar o crescimento da presença de boias frias na luta pela terra 
(FERRANTE, 1989, p. 98). 
 
 
25 
mercado. A chegada da Tropa de Choque do Estado de São Paulo, bem como policiais de 
cidades vizinhas, proporcionou cenas de violência não apenas nos locais de manifestação, mas 
nas ruas e até dentro de casas em bairros periféricos (NOVAES e ALVES, 2002a). 
 
A partir de então, a Pastoral do Migrante, que já havia iniciado trabalhos na região, se estabelece 
com sede na cidade. Além disso, uma série de pesquisas começam a ser feitas no sentido de 
remontar o movimento grevista21, interpretá-lo enquanto movimento22 e enquanto legado23, 
assim como outras mais amplas sobre o trabalho rural canavieiro que escolheram Guariba como 
espaço privilegiado de pesquisa24, após 1985. 
 
Boa parte desta produção, no entanto, não apenas foi realizada a partir de 198425, como tem 
como objeto esse ano ou um período posterior, desconectado de mobilizações e práticas de 
resistências anteriores. Esta questão, além de se refletir em um problema ligado à memória – a 
dificuldade de acesso a fontes anteriores a 1984 –, deixa lacunas e perguntas do ponto de vista 
histórico, na medida em que raramente são conectados a experiências anteriores, e pelo 
contrário, como inauguração do novo. 
 
Alguns trabalhos, na contramão, indicam conexões o movimento sindical rural do inicio dos 
anos 1960 e as mobilizações dos anos 1980, como Ferrante (1989). Mais categórico, Clifford 
Andrew Welch, aponta que o movimento de Guariba só fora possível porque “(...) a semente 
do contemporâneo movimento camponês havia sido plantada em décadas anteriores” (WELCH, 
2010, p. 424). Esta semente incluía não apenas táticas de greve e organização sindical, como 
também a utilização da Justiça do Trabalho. Em consonância com a perspectiva de Welch, 
encontrei semelhanças notáveis em fontes do pré-1964 com o movimento de 1984, indicando a 
transmissão de um repertório de luta. 
 
 
21 Ver D’Incao (1985), Penteado (2000) e Novaes e Alves, 2002a. 
22 Como em Barone (1996). 
23 Ver Munhoz (2000), Novaes eAlves (2002b), Thomaz Junior (2002), Alves (1991), Bertero (1994). 
24 Ver Silva (1999) e Vettorassi (2006 e 2010). 
25 Autores como Graziano da Silva (1997) inclusive enfatizam o movimento de Guariba, de certa forma, como a 
inauguração de um novo período para o movimento sindical rural, com novas lideranças e táticas de ação. 
 
 
26 
É fundamental pontuar também que nos estudos clássicos sobre canavieiros, as mulheres e as 
análises de gênero são em grande medida marginais. Mesmo Sigaud argumenta a escolha 
metodológica de uma análise centrada em homens casados que se encontram numa faixa de 
idade entre 20 e 50 anos, pois seriam aqueles 
 
(...) que socialmente são reconhecidos como os responsáveis pela reprodução da 
família (...) todos aqueles que são também trabalhadores, mas que não ocupam a 
posição de chefe de família, foram considerados não como agentes de um processo, 
submetidos à expropriação e responsáveis por estratégias de reprodução, mas a partir 
de sua posição subordinada ao chefe da família (SIGAUD, 1979 p. 16). 
 
Tal ideia coincide com depoimento de um sindicalista da região de Araraquara, apresentado por 
Ferrante (1982, p. 109), que afirma que as campanhas de sindicalização devem ser direcionadas 
aos “chefes de família” e que as mulheres devem ser encaradas apenas como dependentes. 
 
Também ainda são poucos os estudos que trazem a experiência das mulheres e as relações de 
gênero de maneira transversal26 – não como um conjunto de ponderações a respeito das supostas 
especificidades, nem segmentados em núcleos exclusivos ao tema nas instituições. Sem dúvida, 
há um caminho teórico e empírico a ser percorrido no sentido de um diálogo maior entre o que 
se produz na história das mulheres e nos estudos de gênero com a história social do trabalho, 
em especial, do campo. Estudos como o de Verena Stolcke (1986), Olinda Noronha (1986), 
Maria A. M. Silva (1999), Marie F. Garcia, Afrânio Garcia Jr. e Beatriz M. A. de Heredia 
(1984) foram contribuições fundamentais nesse sentido, para este trabalho. 
 
Dadas as considerações, o objetivo desta dissertação é compreender de que maneira as 
experiências das mulheres, permeadas também por relações raciais, se inserem na experiência 
de classe – no sentido analítico – em um contexto específico: a transição de formas de trabalho 
rural de base familiar para o trabalho temporário individual em lavouras de cana-de-açúcar, 
através da migração para zonas periféricas de Guariba (SP). 
 
Ainda que pesquisas como as de Stolcke (1986) e Silva (1999) tenham abordado de maneira 
profunda questão similar, considero que a possibilidade de outras fontes bem como a distância 
 
26 Perspectiva defendida por Joana Maria Pedro (2011). 
 
 
27 
temporal podem fornecer novos elementos de análise, como pontua Ecléa Bosi a respeito da 
singularidade das memórias de pessoas idosas: 
 
Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas já atravessaram 
um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; 
elas já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis: 
enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido 
do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda 
está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a solicita muito mais 
intensamente do que a uma pessoa de idade (BOSI, 1983, p. 22). 
 
Mesmo que nem todas as entrevistadas se insiram na categoria “idosa”, pela idade, o 
distanciamento com os processos vividos naqueles anos e os sentidos dados às transformações 
em suas vidas podem ser elaboradas de outra maneira, na medida em que as “(...) identidades 
são abertas, circunstanciais, e situacionais, fluidas, em transformação, multi-facetadas e 
negociadas (...)” (MENEZES, 2000, p. 55). No mesmo sentido, Portelli (2006) nos mostra a 
relevância das alterações da memória com o tempo, contexto e geração. Stolcke, por exemplo, 
conclui que: 
 
(...) do ponto de vista puramente subjetivo, sua transformação em trabalhadores rurais 
assalariados eventuais parece ter sido muito mais dolorosa e desgastante para os 
homens, devido à perda de auto-estima por ela acarretada. Ainda que o trabalho 
assalariado tenha aumentado a carga das mulheres em relação aos homens, isso não 
afetou, de nenhuma forma significativa, sua identidade social como mulheres, isto é, 
esposas e mães. Pelo contrário, precisamente porque sua identidade social 
permaneceu intacta, elas agora devem arcar com a dupla carga (STOLCKE, 1983, p. 
377). 
 
No mesmo sentido, o Noronha, ao pesquisar canavieiras em Minas Gerais, analisou que as 
mulheres se identificavam mais fortemente com papel de “donas de casa” do que de 
trabalhadoras, condição considerada mais provisória. Os pioneiros trabalho de Stolcke e 
Noronha de certa forma documentaram o início do processo sob o qual me debruço. Naquele 
momento, ainda que Solcke mencione conflitos (e violência) domésticos em decorrência da 
perda de autoestima masculina, ela se depara com mulheres que ainda elaboravam suas 
possibilidades naquele novo contexto. 
 
Os relatos que encontrei, no entanto, revelam deslocamentos significativos nessa percepção, 
sobretudo em relação ao lugar de esposa, à importância dada à identidade de trabalhadora em 
suas trajetórias e à reelaboração de seus projetos individuais, a partir de um questionamento 
 
 
28 
mais acentuado da autoridade paterna, presente em formas familiares de organização do 
trabalho rural27. Além de muitas terem se separado, tornando-se “chefes de família”, os 
deslocamentos parecem ser notáveis também nas que permaneceram casadas. 
 
Assim, a utilização da história oral se justifica não somente pela escassez de documentos, mas 
como ferramenta para compreender as dimensões da experiência feminina, como apontam 
Araújo e Santos (2007, p. 108). Tais fontes também nos parecem frutíferas para a articulação 
entre os espaços público e privado no processo histórico pesquisado. As migrações aqui 
estudadas, bem como as escolhas ligadas ao trabalho e à participação política fazem parte 
também de projetos individuais e familiares, e, por sua vez, são transformadores e 
transformados no decorrer do processo. 
 
É fundamental pontuar, no entanto, as limitações e peculiaridades dos relatos encontrados. 
Primeiramente pelo número de mulheres encontradas que trabalharam nos canaviais entre 1975 
e 1985, muito aquém do esperado. Foram entrevistadas seis mulheres, entre 50 e 94 anos de 
idade, habitantes de Guariba, das quais quatro histórias serão detalhadas na dissertação: as de 
Argentina Teixeira de Souza, Ana Maria da Rocha, Ângela Maria dos Santos (Nina) e Zilda 
Bezerra. Ana e Nina me foram apresentadas por Ana Rosa dos Santos, ex-canavieira de 45 
anos, que em 2007 fora por mim entrevistada para o trabalho de conclusão de curso. As 
possibilidades dessa dissertação devem muito à abertura de Ana Rosa para me inserir em 
espaços de convivência e a seus esforços em acionar sua rede afetiva para encontrar mulheres 
dentro do perfil pesquisado. Cheguei a dona Argentina enquanto buscava por remanescentes da 
Pastoral do Migrante na cidade, dentre eles Eleno Vicente Nene, que, ao ouvir o tema da 
pesquisa, gentilmente me convidou a sua casa para conhecer sua esposa, Jani, e sua sogra, 
Argentina, que já haviam trabalhado nos canaviais da região. Foi na casa de seu Eleno que ouvi 
falar de Zilda, a mulher baleada na greve de 1984, história também mencionada por Ana, que 
me levou até sua casa. Ana Rosa e Jani, assim como outras mulheres contatadas nessa rede 
informal, no entanto, não trabalharam na lavoura de cana no período pesquisado, mas, sem 
dúvidas, o contato com elas enriqueceu o presente trabalho. 
 
27 Questão analisada por Garcia, Garcia Jr. e Heredia (1984);Garcia Jr. (1983, 1989); Nobre (1998); Oliveira 
(1984); Silva (2007); Stolcke (1986). 
 
 
29 
 
Desse modo, as entrevistadas são mulheres que permaneceram na cidade, dentre outras razões, 
pela possibilidade de seguirem trabalhando nas lavouras de cana por um período longo. Nesse 
sentido, assim como os processos trabalhistas encontrados na JCJ de Jaboticabal, seus relatos 
são resquícios, talvez em muitos sentidos atípicos, desta experiência. 
 
Privilegiei histórias de vida de mulheres, não no sentido de isolá-las de uma história “geral”, 
mas de dar luz a essas experiências em um contexto muitas vezes pesquisado sem a perspectiva 
de gênero. Nesse sentido, procuro trabalhar o conceito de gênero de maneira transversal, de 
modo que cada capítulo tem como fio condutor pelo menos uma história de vida, opção que 
resultou muitas vezes em um alargamento da periodização proposta – de 1975 a 1985 – no 
sentido de elucidar os significados desse período dentro dessas narrativas. Entendo, do mesmo 
modo, que o destaque a essas narrativas, bem como o uso da categoria “mulheres”, não impede 
uma interpretação das relações de gênero em geral. Pelo contrário, elas podem aclarar as 
interconexões entre os diversos espaços de vivência, trabalho e participação política – muitas 
vezes artificialmente separadas em estudos. 
 
Por último, dadas as considerações a respeito da documentação, outro objetivo que emerge para 
esta dissertação é a própria contribuição para a documentação dessas experiências, dentro do 
debate de direito à memória, da “(...) necessidade de um discurso público capaz de admitir e 
acolher as narrativas de diferentes sujeitos sociais (...) no qual as memórias de todos possam 
ser reconhecidas e, ao mesmo tempo, elas próprias possam se reconhecer” (SALVATICI, 2005, 
p. 36). É importante levar em conta que o repertório e a subjetividade da pesquisadora não 
poderiam deixar de estar presentes no trabalho de campo, nas entrevistas, e nas análises. O que 
procurei foi deixar claro o meu percurso. 
 
 
Breve discussão de fontes 
 
No capítulo 1, procuro debater as transformações do campo paulista no século XX, em especial 
as políticas de empreendidas pela ditadura militar, através de duas histórias de vida: de um 
descendente de imigrantes italianos, colonos do café, que se tornou diretor gerente da maior 
 
 
30 
usina de álcool da região de Guariba, entre as maiores do país, a São Martinho; e de uma 
descendente de escravos, cuja família também fora colona do café, e que trabalhou na lavoura 
de cana desta mesma usina, entre os anos 1960 e os anos 1980. 
 
Recuei no tempo da periodização proposta, como um esforço de estabelecer diálogos com 
questões de longa duração e com a diversidade de experiências na história dos trabalhadores 
rurais do oeste cafeeiro paulista, permeadas por diferenciações de gênero, raça e origem. Assim, 
as trajetórias desses dois personagens até Guariba introduzem também os debates acerca da 
“modernização” do campo e o contexto da promulgação do Proálcool. Procurei também 
localizar o papel do patronato rural local na disputa pela elaboração e execução das políticas 
governamentais no campo. 
 
Utilizei como fontes as entrevistas de história oral realizadas com Argentina Teixeira de Souza 
e com Roberto Rodrigues – ex-ministro da agricultura e liderança patronal de Guariba, no 
período. Também foram analisadas: 250 edições do jornal semanal A Comarca de Guariba, 
publicadas entre sua fundação, em dezembro de 1977, e dezembro de 1983; menções 
encontradas na revista Brasil Açucareiro, publicação do Instituto do Açúcar e do Álcool que 
existiu até 1979, sobre o município e as usinas da região; e no jornal Realidade Rural, 
publicação mensal da FETAESP (Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de 
São Paulo). 
 
No segundo capítulo, me debruço sobre as “resistências silenciosas” das mulheres, em um 
contexto de transição das formas de trabalho rural de organização familiar para o assalariamento 
individual temporário nas lavouras de cana, processo também abordado por Silva (1999, 2007), 
Stolcke (1983) e Noronha (1986), entre outras. 
 
A partir de relatos de mulheres de origem rural que passaram a residir em Guariba para trabalhar 
no corte de cana, entre 1975 e 1985, busco interpretar de que maneira elas vivenciaram as 
alterações de seu lugar no trabalho e da vida familiar. Mais que isso, o que procuro são as 
respostas dadas a novas e velhas questões ligadas ao lugar social da mulher, estabelecendo um 
diálogo entre o conceito de “resistências cotidianas” (SCOTT, 1990, 2002, 2011) e as questões 
de gênero. Além disso, procuro apresentar elementos que conectam a vivencia familiar e nos 
 
 
31 
bairros periféricos, assim como as práticas cotidianas no local de trabalho, com as lutas 
“públicas” que eclodiriam em 1984. 
 
Pelo próprio caráter do conteúdo proposto, será o capítulo com menos fontes, baseado 
sobretudo em relatos orais da história de vida de Ana Maria da Rocha e Ângela Maria dos 
Santos (Nina), um relato de sindicalistas de Dobrada, encontradas no acervo da Pastoral do 
Migrante de Guariba, no Centro de Estudos Migratórios, além de dados do IBGE e alguns 
trechos dos jornais A Comarca de Guariba e Realidade Rural. 
 
O capítulo 3 pretende conectar as resistências “silenciosas” às “públicas”, em diálogo com a 
literatura sobre lutas sociais no campo paulista. A ideia central do capítulo é observar a forma 
de utilização da Justiça do Trabalho – e também o que pode revelar esse tipo de fonte sobre a 
experiência dos trabalhadores – assim como a influência de ações diretas anteriores, em especial 
do pré-1964, até, por fim, chegar ao movimento grevista de 1984 e à refundação do Sindicato 
do Trabalhadores Rurais de Guariba, em 1985. 
 
As fontes utilizadas para este capítulo são: as entrevistas de Zilda Bezerra, do Padre José 
Domingos Bragheto (na época, pároco e militante da CPT na região), de Ignácio Bernardes 
(antigo militante da Pastoral do Migrante de Guariba), de Lineu Nobukini (atual presidente do 
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaboticabal e militante sindical desde 1971), e de Wilson 
Rodrigues da Silva (atual diretor do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, que migrou 
para a cidade em 1979 para trabalhar nas lavouras de cana); edições dos jornais Gazeta de 
Guariba (1961), A Comarca de Guariba (1977-1983), Terra Livre (1961-1962); um texto de 
mulheres sindicalistas de Dobrada e Santa Ernestina, encontrados no acervo da Pastoral do 
Migrante de Guariba, no Centro de Estudos Migratórios; e processos trabalhistas das Juntas de 
Conciliação e Julgamento de Jaboticabal e Ribeirão Preto. 
 
Para essa pesquisa, analisei 53 processos trabalhistas movidos por trabalhadores rurais. Dentre 
eles, 40 fazem parte do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, que mantém a 
documentação de 1957 a 1988 da JCJ de Ribeirão Preto. Utilizo aqui processos entre 1975 e 
 
 
32 
1979, sendo a ampla maioria de 1976 (36 ações)28, uma vez que, deste ano, foram abertas todas 
as caixas que indicavam haver processos de trabalhadores rurais, de acordo com o nome da 
reclamada, contido na lista do arquivo. Destas caixas, também foram reproduzidos outros 
processos movidos por trabalhadores rurais. Os demais processos são de 1975 (2), 1977 (1) e 
1979 (1). 
 
Os outros 13 processos são provenientes da JCJ de Jaboticabal, fundada em 1979, quatro 
movidos por habitantes de Guariba. São eles de: 1979 (1); 1981 (1); 1982 (1); 1983(1); 1984 
(4), 1985(1); 1986(1); 1987(3). A documentação foi disponibilizada pelo atual diretor da 1ª 
Vara do Trabalho de Jaboticabal, Edson Mendes, que também informou que, em meados dos 
anos 1990, todos os processos contidos no arquivo permanente foram incinerados. Estimo que 
pelo menos 8.059 processos de 1979 a 1985 (cerca de 85%) foram destruídos. 
 
Em levantamento feito por Mendes,foram selecionadas 34 caixas contendo, em cada uma, pelo 
menos um processo trabalhista do período pesquisado (1979-1985). No momento de recolher 
as caixas, uma estava vazia e outra não fora encontrada. Nesse sentido, é importante ressaltar 
que o arquivo, localizado em imóvel separado da Vara, está completamente abandonado, sem 
limpeza e manutenção desde 2006, provocando a deterioração do material, que contém partes 
ilegíveis. Sua consulta também depende da disponibilidade da Vara em ceder um funcionário 
para este acompanhamento. 
 
Além dos processos encontrados, analisei a lista de ações abertas entre 1979 e 1985, que foram 
incinerados. Essa lista oferece algumas pistas, ainda que com muitas limitações, para a presente 
investigação. Trata-se de uma sequência numérica relativamente preservada, com indicação do 
número e do ano de cada processo, seguido pelo nome do reclamante29 e o nome da reclamada, 
em geral, o empregador, seja pessoa física ou jurídica. Alguns processos são apensados a outros 
 
28 É importante admitir o problema metodológico das fontes utilizadas. No entanto, a intenção inicial não era 
utilizar esses processos, pois foram recolhidos em fase de prospecção de fontes, quando o objetivo era averiguar 
se ali estavam os processos de Guariba, pertencentes, em realidade, à JCJ de Jaboticabal. Devido ao caráter 
extremamente residual dos processos encontrados em Jaboticabal, optei por utilizar também os documentos 
recolhidos em Ribeirão Preto. 
29 A lista somente apresenta o nome de um reclamante, ainda que boa parte dos processos seja movido por mais 
de uma pessoa, o que limitam as possibilidades de análise, sobretudo em relação às mulheres, encontradas não 
poucas vezes como segunda reclamante em processos movidos pelo pai ou pelo marido. 
 
 
33 
com o mesmo reclamado, os quais não possuem nome do reclamante. Outros poucos, têm como 
reclamante o próprio sindicato, o que nos permite saber apenas o ramo de atividade dos 
reclamantes. 
 
Deste modo, a análise se baseou na identificação de homens e mulheres através do nome e do 
ramo de atividades do empregador, quando indicado nominalmente, nos anos de 1979, 1983 e 
1985. Também foi observado o número de processos a cada ano. Sem dúvida, se tratam de 
dados imprecisos, uma vez que nomes são informações limitadas tanto para denominar homens 
e mulheres, quanto para definir a função executada por cada reclamante – até porque, usinas e 
fazendas podem possuir um setor industrial, além de funcionários ligados à limpeza e 
segurança, do mesmo modo que grande parte da mão de obra rural era agenciada por 
empreiteiros, em geral, identificados apenas pelo nome. Ainda assim, dada a impossibilidade 
de acessar o conjunto de processos, uma análise, ainda que imprecisa, pode ajudar a indicar 
movimentos a respeito da relação dos trabalhadores rurais da região com a Justiça do Trabalho. 
 
Por último, é importante destacar que se tratam de processos em grande medida atípicos dado 
que são remanescentes do arquivo provisório e, em sua maioria, inconclusos ou sem efeito. Por 
essa razão, optei pela utilização também da documentação recolhida em Ribeirão Preto. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1. “MODERNIZAÇÃO” PARA QUEM? 
1.1 Duas chegadas a Guariba 
 
Finado meu pai era “brabo”... E o administrador da fazenda chegava lá na roça e 
falava: “ô, seu Salvador, essa filha do senhor aí, não é qualquer homem que bate ela 
abanando saco de café. Onde já se viu? Com onze anos, abanar sessenta sacos de café, 
´ponhar’ tudo nas costas e empilhar no carrilhador, para o carro de boi levar para o 
terreirão” 30. 
 
Argentina Teixeira de Souza, aos 93 anos, sorri com orgulho e saudosismo ao descrever sua 
capacidade e dedicação como trabalhadora, desde a infância. Anedotas deste tipo foram 
contadas enquanto falou de cada lugar onde trabalhou, por vezes até repetindo algumas, no 
decorrer das duas entrevistas, realizadas em sua casa, na Vila Garavello, em Guariba. 
 
Figura 2: Argentina Teixeira de Souza, com seu avô Luís, na fazenda Jandaia. 
 
Fonte: Arquivo pessoal. 
 
30 A história de vida de Argentina Teixeira de Souza é aqui remontada com base em duas entrevistas. A primeira 
foi realizada em novembro de 2017, em caráter preliminar, para que, junto com outras fontes, fosse montado um 
roteiro de entrevista, de acordo com Alberti (2013), que serviu como referência para a entrevistadora no segundo 
encontro, em junho de 2018. Ainda que tenha contado com um roteiro, a entrevistadora procurou se manter aberta 
aos temas que apareceram na fala da entrevistada e respeitar também seus silêncios. 
 
 
35 
 
A fotografia é um dos poucos registros que possui da sua infância na tradicional fazenda Jandaia 
e talvez seja o vestígio que consolidou a presença de seu avô em sua memória. Era ele quem a 
levava para a escola todos os dias e para a igreja aos domingos, trajetos feitos sempre com os 
pés descalços, para não gastar o par de sandálias que tinha. Apenas quando se aproximavam do 
destino, limpavam os pés com um pano e calçavam o sapato. Por volta do ano de 1935, ela 
parou de estudar, aos onze anos, e passou a trabalhar integralmente na lavoura de café da 
fazenda, situada em Cravinhos, interior de São Paulo, onde sua família era colona desde 1926, 
quando chegou de Livramento, Minas Gerais. 
 
A história de cidades como Cravinhos e Guariba se insere entre a de uma série de cidades que 
surgiram com o avanço do café, e sobretudo com a extensão das estradas de ferro. Na virada do 
século, a região consolidou a chamada “economia de terra roxa” (MARTINS, 1996), baseada 
não exclusivamente31, mas principalmente na força de trabalho imigrante, estruturada por meio 
do colonato32. 
 
Até se casar, Argentina se acostumou a ser a primeira a acordar em sua casa, preparar o café e 
levar para os pais. Enquanto eles levantavam, ela cuidava dos porcos, das galinhas e de uma 
vaca leiteira, que a família possuía nas proximidades da casa. Em seguida, os três iam para mais 
um dia de trabalho na roça. 
 
 
31Ainda que não caiba aqui um extenso debate, é fundamental pontuar que a expansão cafeeira para o então 
denominado oeste paulista se deu em grande medida através da contratação temporária de “caboclos e caipiras” 
para a derrubada de matas e formação de lavouras. Eles recebiam um pequeno pagamento em dinheiro e a 
possibilidade de plantar feijão e milho entre os jovens pés de café, mas não foram absorvidos permanentemente 
pelas fazendas. Então, em seguida, precisavam migrar (MARTINS, 2010). Também foi notável a utilização de 
mão de obra escrava, que contabilizava 28% da população do estado em 1854 e 19% em 1872, ano em que negros, 
mestiços e índios ou caboclos representavam 48% da população do estado (DOMINGOS, 2004), em um contexto 
de introdução da mão de obra imigrante, detalhada por Stolcke e Hall (1983), e institucionalização de uma política 
estadual de incentivo à migração prioritariamente europeia (DOMINGOS, 2004). A região onde mais tarde seria 
fundado o município de Guariba, em 1870, era povoada por algumas famílias mineiras que viviam de culturas de 
subsistência e da criação de gado (VETORASSI, 2006, p. 23). Por volta de 1895, numerosos grupos de baianos 
chegaram para o cultivo do café, antes da chegada massiva de imigrantes, que aos poucos substituíram os 
trabalhadores nacionais nos cafezais. 
32Particular das fazendas de São Paulo, os colonos viviam em casas geminadas na propriedade e recebiam uma 
parte do pagamento pelo trabalho da família em dinheiro e outra por meio da permissão para ter uma pequena roça 
de subsistência, ou seja, plantar e criar animais de pequeno porte (SILVA, 2004). Para um detalhamento da 
introdução e do funcionamento do colonato, ver Stolcke (1986) e Stolcke e Hall (1983). 
 
 
36 
Muitasvezes sua mãe não ia, ou voltava mais cedo para adiantar o trabalho doméstico. Seu 
trabalho era fundamental para a família, já que, além de garantir sua reprodução, parte da renda 
vinha de refeições vendidas, “dando pensão”, a “peões” que chegavam de fora e também da 
costura e do bordado “para fora”. 
 
No fim do dia, Argentina e a mãe dividiam o serviço doméstico. Seu relato é consonante com 
a análise de Maria A. Moraes Silva (2007), que enfatiza o papel fundamental da indústria 
doméstica no colonato e em outras formas de trabalho rural de base familiar, como a parceria33, 
o arrendamento34 ou a pequena produção, predominantes no campo paulista até a década de 
195035. Nesse contexto, as mulheres eram responsáveis pelo tratamento das carnes, pela 
produção de conservas, de farinha, de polvilho, pelo beneficiamento do arroz, pela costura, pela 
produção de sabão, pelo cuidado dos filhos e irmãos mais novos, entre outras tarefas. Além 
disso, desempenhavam funções na roça de subsistência e no cafezal. Porém, não eram 
consideradas trabalhadoras individualmente e seus trabalhos eram englobados no trabalho 
familiar. 
 
O colonato pressupunha uma organização específica de exploração do trabalho 
preferencialmente familiar, o que além de garantir a permanência dos trabalhadores, 
possibilitava uma reserva de mão de obra barata no interior da fazenda para os períodos de 
colheita e reduzia os custos, uma vez que a família trabalhava por sua subsistência. Esta 
organização do trabalho “(...) referendou uma moralidade familiar particular que enfatizava a 
cooperação entre os membros da família e a autoridade do marido/pai em seu interior” 
(STOLCKE, 1986, p. 360). 
 
De fato, o pai de Argentina era quem recebia e administrava os rendimentos da família, 
distribuía as tarefas, além de sua palavra funcionar como “lei” na casa. Esta questão apareceu, 
por exemplo, quando Argentina contou sobre seu namoro: 
 
 
33Na parceria, o proprietário concedia terra aos trabalhadores para a realização de um determinado plantio, e 
ficavam com metade da produção. (SILVA, 2004, p. 19). 
34Neste caso, os trabalhadores pagavam pelo uso da terra. (SILVA, 2004, p. 19). 
35Até a década de 1950, 20% dos trabalhadores eram colonos, 50% eram parceiros, arrendatários ou pequenos 
produtores, ao passo que os assalariados “puros” representavam apenas cerca de 30% (SILVA, 2007, p. 561). 
 
 
37 
Quando finado meu velho veio em casa me pedir em namoro, sentamos em uma mesa 
grande eu, meu pai, minha mãe e meu namorado, mais longe. Eles aceitaram o 
namoro, mas eu não pude levantar da cadeira e acompanhar ele até a porta, se não, eu 
apanhava. 
Depois, eu fui para o meu quarto e meu pai entrou e falou assim: 
- Minha filha Argentina, você vai casar, é? Então, tem uma coisa: de hoje em diante 
você não ganha uma agulha minha, nem um sapato, nem uma roupa, não ganha 
enxoval, nada, não ganha mais nada (....). E, se fugir, eu vou atrás e mato os dois (...)36. 
 
Apesar da ordem do pai, sua mãe comprava, escondido, o enxoval da moça. A tática era usar o 
dinheiro que elas ganhavam com costura e bordado e dizer ao marido que não cobraram pelo 
serviço, apenas ganharam aqueles presentes. 
 
Então, em um sábado, no dia de Santo Antônio, o casal encontrou a brecha necessária para uma 
conversa e, enquanto dançavam em uma festa, combinaram os detalhes da fuga. Na madrugada 
de segunda-feira, dia 15 de junho de 1942, Pedro Avelino de Souza foi até a janela de Argentina 
buscar uma trouxa de roupas que ela já havia separado. Pela manhã, ela conta: 
 
Eu levantei cedo, tratei das criações, que era costume (...) aí nós fomos para Bonfim 
Paulista pelo meio do cafezal [ao invés de pela estrada, para não serem encontrados 
pelo pai da moça]. Quando chegou perto de Bonfim Paulista, eu tirei a sandalinha e o 
paninho [da sacola], limpei o pé e calcei. Então, fomos para o cartório37. 
 
Depois, parte da resistência do pai à união foi elucidada: após o casamento, foi Sebastião 
Teixeira quem solicitou uma conversa com Pedro, para pedir que Argentina terminasse a safra 
de café, já que ele e a esposa não sabiam abanar38 café. Com a permissão, Argentina terminou 
aquela safra, mas, daí em diante, seu pagamento passou a ser entregue a Avelino, que, 
diferentemente do pai “brabo”, “foi um marido muito bom mesmo, nunca me bateu nem me 
xingou”. Tal justificativa, apresentada como qualidade e distinção, leva a crer também na 
recorrência de violência doméstica entre mulheres de seu convívio. 
 
Na mesma época, em 1941, Orlando Ometto39, então um jovem de 25 anos, se formava médico 
no Rio de Janeiro, profissão que exerceu até o fim da década de 1940, quando foi para a usina 
 
36 Entrevista feita pela autora em 2017. 
37 Entrevista feita pela autora em 2018. 
38 Forma de beneficiamento, com a função de eliminar impurezas dos grãos. 
39 Após encontrar o raro relato de Argentina Teixeira de Souza, testemunha ativa de grandes transformações no 
campo paulista, busquei contar outra história, aproximadamente da mesma geração, que fosse de certa forma 
 
 
38 
Iracema se dedicar aos negócios da família. Como os de Argentina, os pais e avós de Orlando 
foram trabalhadores rurais, neste caso, imigrantes italianos. 
 
Em 22 de agosto de 1887, seu pai, Costante Ometto, aos cinco anos, tomou o navio Roma, com 
destino ao Brasil, com seus pais, Caterina e Antônio e sua irmã Carolina. O livro Os Ometto 
(GORDINHO, 1986), produzido a partir de documentos e relatos da família, descreve a 
dificuldade de acesso à terra, a má remuneração, a repressão às greves agrícolas e episódios de 
seca, na região do Vêneto, entre as razões pela busca de uma vida melhor em outro continente 
(1986, p. 6-7). 
 
Após quase um mês de viagem, a família desembarcou na Ilha das Flores, onde ficou quatro 
dias em quarentena e depois seguiu para São Paulo. Da Hospedaria dos Imigrantes, no Brás, 
partiram para a fazenda Salto Grande, em Amparo, onde se estabeleceram como colonos, alguns 
meses antes da abolição da escravidão no país, através da Lei Aurea, de 1888. 
 
Dona Argentina não se lembra de histórias, nem possui registros, da vida dos seus avós. Por 
parte de mãe, apenas se lembra de sua avó dizer ser “do tempo do cativeiro”, em referência à 
escravidão. Rita era cozinheira em uma fazenda em Livramento, Minas Gerais. Seu avô Luís 
era “boiadeiro” e, ao passar pela fazenda, gostou da cozinheira, com quem se casou e teve um 
filho, Jovelino, e uma filha, Jovita, mãe de dona Argentina. No breve relato, acrescenta que o 
avô era branco e a avó, negra. 
 
Dos avós paternos, sabe apenas que a avó teria morrido quando seu pai ainda era pequeno, em 
um acidente doméstico com fogo, e que, após o ocorrido, seu pai teria sido levado para a sede, 
onde foi criado junto com o filho do dono da fazenda. Dessa experiência, ela não tem relatos. 
 
 
representativa de narrativas mais amplamente encontradas no universo de fontes disponível – de uma ascensão 
social de imigrantes europeus. Alerto, no entanto, para alguns limites metodológicos. Primeiramente pelos limites 
da memória de Argentina. Assim, as entrevistas contaram com o auxilio de sua filha Jani, que enquanto cozinhava 
ou limpava a casa, escutava nossa conversa, trazia documentos e tentava fornecer referências para a memória da 
mãe. Outra questão está ligada a uma falta de simetria entre as fontes dos dois personagens aqui apresentados, uma 
vez que a história do já falecido Orlando Ometto apresentada neste trabalho não foi baseada em entrevistas com 
ele, mas sobretudo no livro Os Ometto (GORDINHO, 1986), na entrevista de João Guilherme Ometto (2010), que 
não são centrados em sua história de vida, além de algumas menções esparsas em periódicos. 
 
 
39 
A família de Orlando, por sua vez, pôde registrar

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